silêncio para quê?

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SILÊNCIO?! PRA QUÊ? Não sou educadora, mas escritora. Meu ofício é traduzir emoções, idéias e sensações em palavras, de maneira nova. Muitas vezes, contando histórias. Por isso, se vou dar um palpite na área da educação, começo com uma história. Verdadeira. (...) Vítor recebeu de Ivan uma fita com uma música para botar letra. Coisa difícil de fazer bem-feita. Tratou de ouvi-la com a concentração necessária: pôs a fita no gravador, ditou-se no sofá, fechou os olhos. A empregada passou, viu a cena e comentou: - Aí, hein? Descansando... - Nada disso. Trabalhando... Alguns dias depois, Vítor estava mexendo com a terra, plantando alguma coisa, fazendo força, suando. Ela viu e brincou: - Aí hein? Dando duro no trabalho.... - Nada disso. Agora é que eu estou descansando. A história me parece exemplar. É exatamente assim que as coisas se passam. (...) Tudo isso vem a propósito de uma velha idéia minha sobre educação; é preciso haver silêncio. Não aquele arremedo de marasmo que as professoras autoritárias exigem aos berros, dando reguadas na mesa, a ‘ordem’ da repressão. Mas o silêncio ativo, rico e criador. Para esse, não costuma haver espaço nem tempo nas escolas. A jornada diária diminui, os currículos se encarregam de preencher todos os segundos, a arquitetura escolar trata de atulhar todos os espaços, os pátios sumiram, a noção de disciplina e controle bota réguas em ‘ficar à toa’. Ora, essa atitude condena a escola à repetição, já que a verdadeira criação precisa do silêncio, do espaço e do tempo para se gestar. Pode até se manifestar no meio do tumulto, mas passa antes por uma fase de elaboração em que é indispensável o aparente ‘ficar sem fazer nada’, ou ‘estar distraído, desligar-se, viver no mundo da lua’. Como as eternas caricaturas de cientistas e artistas reconhecem que esses criadores são. Meio trapalhões e esquecidos. Ou seja, avessos à burocracia, com um outro tipo de organização, prestando atenção em outra coisa. Isso nos leva a outro dos conceitos distorcidos que pululam pelas escolas: a noção de ‘prestar atenção’. O que seria essa tal prestar atenção? Uma espécie de foco de percepção dirigido estritamente a um ponto. Estrito, estreito. Alan Watts a compara a uma espécie de lanterna num quarto escuro, vasculhando cada cantinho. Sem

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Ana Maria Machado

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SILÊNCIO?! PRA QUÊ?

Não sou educadora, mas escritora. Meu ofício é traduzir emoções, idéias e sensações

em palavras, de maneira nova. Muitas vezes, contando histórias. Por isso, se vou dar

um palpite na área da educação, começo com uma história. Verdadeira. (...)

Vítor recebeu de Ivan uma fita com uma música para botar letra. Coisa difícil de

fazer bem-feita. Tratou de ouvi-la com a concentração necessária: pôs a fita no

gravador, ditou-se no sofá, fechou os olhos. A empregada passou, viu a cena e

comentou:

- Aí, hein? Descansando...

- Nada disso. Trabalhando...

Alguns dias depois, Vítor estava mexendo com a terra, plantando alguma coisa,

fazendo força, suando. Ela viu e brincou:

- Aí hein? Dando duro no trabalho....

- Nada disso. Agora é que eu estou descansando.

A história me parece exemplar. É exatamente assim que as coisas se passam. (...)

Tudo isso vem a propósito de uma velha idéia minha sobre educação; é preciso

haver silêncio. Não aquele arremedo de marasmo que as professoras autoritárias

exigem aos berros, dando reguadas na mesa, a ‘ordem’ da repressão. Mas o silêncio

ativo, rico e criador. Para esse, não costuma haver espaço nem tempo nas escolas. A

jornada diária diminui, os currículos se encarregam de preencher todos os segundos,

a arquitetura escolar trata de atulhar todos os espaços, os pátios sumiram, a noção

de disciplina e controle bota réguas em ‘ficar à toa’.

Ora, essa atitude condena a escola à repetição, já que a verdadeira criação precisa

do silêncio, do espaço e do tempo para se gestar. Pode até se manifestar no meio do

tumulto, mas passa antes por uma fase de elaboração em que é indispensável o

aparente ‘ficar sem fazer nada’, ou ‘estar distraído, desligar-se, viver no mundo da

lua’. Como as eternas caricaturas de cientistas e artistas reconhecem que esses

criadores são. Meio trapalhões e esquecidos. Ou seja, avessos à burocracia, com um

outro tipo de organização, prestando atenção em outra coisa.

Isso nos leva a outro dos conceitos distorcidos que pululam pelas escolas: a noção de

‘prestar atenção’. O que seria essa tal prestar atenção? Uma espécie de foco de

percepção dirigido estritamente a um ponto. Estrito, estreito. Alan Watts a compara

a uma espécie de lanterna num quarto escuro, vasculhando cada cantinho. Sem

nunca chegar à noção global do quarto. Acaba dando a idéia de que o mundo é uma

imensa coleção de cantinhos, coisas separadas, em que devemos pensar uma a uma e

que precisamos classificar em sistemas estanques. Pode até ser muito didático. Mas é

mentira. E não leva ninguém a crescer além de si mesmo – o que deveria ser o

sentido da educação, até etimologicamente.

Sei não, mas acho que educação não é nada disso. Garanto, pelo menos, que criação

artística não é assim. Ao contrário do que a manipulação ideológica induz o leigo a

pensar, a criação não vem de estalo, não brota de uma súbita inspiração, não é

apenas a conjugação de um dom especial de expressão com o domínio de algumas

técnicas. Quem cria tem certeza de que o mecanismo da criação não começa no

momento da expressão e sim muito antes, numa forma diferente de percepção. Algo

que deveria ser naturalmente de todos, mas que a escola tradicionalmente fez

questão de corroer, através do enquadramento. Na escola não há tempo para ouvir,

nem espaço para ver, nem liberdade e silêncio para perceber. Escolas são

estabelecimentos que pensam em si mesmos como os transmissores da cultura que

mora nos livros (por si só já levaria a outra linha de reflexão, mas fica para outra

vez), mas apesar disso, é impossível ficar numa escola lendo ‘à toa’, por puro prazer.

Só esse fato atesta de modo nítido a mentira de um sistema que se quer educacional

mas nega a rebeldia e a criação. E, desta forma, se condena à repetição e à

submissão, eternamente formando rebanhos e manadas e violentando gente.

Será total utopia uma escola capaz de fazer silêncio e ouvir a voz do aluno? Capaz de

abrir mão da palavra autoritária? Capaz de nunca mais jogar a realidade de pernas

para o ar aos gritos de:

- Calem a boca! Eu quero silêncio!

O silêncio verdadeiro é que não quer mais saber da escola. Porque tem muito o

que ouvir em si mesmo.

ANA MARIA MACHADO in REVISTA FAZENDO ARTES