signos fixadores da fala

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I Do pensamento para a imagem 1 1. Protótipos A origem e desenvolvimento da inteligência humana, como assunto de pesquisa, tem fascinado mais do que nunca. Novas descobertas de evidências de um pensamento pré-histórico estão constantemente se acumulando como peças de um quebra-cabeças, enquanto o trabalho de colocá-las em uma ordem lógica prossegue o tempo todo. Registros na forma de marcas pintadas, cortadas e arranhadas em paredes de pedras sobreviveram desde a Era do Gelo, 60.000 anos antes da nossa era, e é tentador ver esses “memoriais” como precursores da nossa escrita. Grosso modo, certamente eles são precursores, mas não no sentido de considerá- los exemplos diretamente conectados daquilo que hoje é chamado de escrita, mesmo uma escrita pictórica. Naqueles tempos, a humanidade estava muito mais ocupada com tarefas vitais do que com qualquer tentativa de fazer registros da fala. As pinturas das cavernas poderiam ser mais bem avaliadas como um meio de conjuração mágica, produzida pelo medo do sobrenatural, puramente por questões de sobrevivência e satisfação de instintos naturais. 2. Fala e gesto Antes da escrita existia a fala, um tipo de fala, um sistema de comunicação se desenvolvendo ao longo de milhões de anos. Pode-se supor que, no início, esse sistema consistia parcialmente de sons mas que era, sem dúvidas, apoiado por outras formas de expressão que não se dirigiam somente à audição. Todas as espécies animais enviam e recebem informação, expressa, no entanto, no domínio de todos os sentidos: visão, audição, tato, olfato e paladar. É possível supor, portanto, que uma “linguagem” original não consistia somente de sons, mas de gestos, contatos, fungadas, etc. Essa consideração conduz à questão de quanto a “linguagem corporal” pode ter participado da origem dos registros escritos. Uma necessidade interior ainda leva falantes a complementar sua fala por meio de esboços ou gestos figurativos. Se, na praia, por exemplo, dificilmente podemos resistir a desenhar com o dedo na lisa superfície da areia como uma maneira de esclarecer o que estamos dizendo. No período Neolítico, muito mais próximo do nosso momento histórico, os humanos tentaram mais e mais reconhecer e compreender suas limitações de tempo e espaço. Ter consciência da vida e da morte forneceu um motivo para a invenção, para o esforço da autoaceitação. Pareceria ser uma continuação, ainda que posterior, natural desse processo de desenvolvimento expressar experiências passadas e planos futuros, esperanças e medos e também desejar registrar essas novas percepções. Quando se contempla um desenho pré-histórico, imagina-se que uma explicação, uma oração ou uma narrativa deve ter existido em íntima associação com a figura. Uma “narrativa” pré-histórica, cerca de 10.000 a.C. Os desenhos chegaram até nós, mas não herdamos diretamente a fala, e com ela os significados dos signos. 1 Tradução do capítulo “PART 2: Speech-fixing signs” (pp. 111-118), do livro “Signs and symbols”, de Adrian Frutiger, por Thiago (Manga) Godoy.

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capítulo traduzido do livro "Signs and Symbols", de Adrian Frutiger.

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Page 1: Signos Fixadores Da Fala

I – Do pensamento para a imagem1

1. Protótipos

A origem e desenvolvimento da inteligência humana, como assunto de pesquisa, tem fascinado mais do

que nunca. Novas descobertas de evidências de um pensamento pré-histórico estão constantemente se

acumulando como peças de um quebra-cabeças, enquanto o trabalho de colocá-las em uma ordem lógica

prossegue o tempo todo. Registros na forma de marcas pintadas, cortadas e arranhadas em paredes de pedras

sobreviveram desde a Era do Gelo, 60.000 anos antes da nossa era, e é tentador ver esses “memoriais” como

precursores da nossa escrita. Grosso modo, certamente eles são precursores, mas não no sentido de considerá-

los exemplos diretamente conectados daquilo que hoje é chamado de escrita, mesmo uma escrita pictórica.

Naqueles tempos, a humanidade estava muito mais ocupada com tarefas vitais do que com qualquer tentativa de

fazer registros da fala. As pinturas das cavernas poderiam ser mais bem avaliadas como um meio de conjuração

mágica, produzida pelo medo do sobrenatural, puramente por questões de sobrevivência e satisfação de instintos

naturais.

2. Fala e gesto

Antes da escrita existia a fala, um tipo de fala, um sistema de comunicação se desenvolvendo ao longo

de milhões de anos. Pode-se supor que, no início, esse sistema consistia parcialmente de sons mas que era, sem

dúvidas, apoiado por outras formas de expressão que não se dirigiam somente à audição. Todas as espécies

animais enviam e recebem informação, expressa, no entanto, no domínio de todos os sentidos: visão, audição,

tato, olfato e paladar. É possível supor, portanto, que uma “linguagem” original não consistia somente de sons,

mas de gestos, contatos, fungadas, etc. Essa consideração conduz à questão de quanto a “linguagem corporal”

pode ter participado da origem dos registros escritos.

Uma necessidade interior ainda leva falantes a complementar sua fala por meio de esboços ou gestos

figurativos. Se, na praia, por exemplo, dificilmente podemos resistir a desenhar com o dedo na lisa superfície da

areia como uma maneira de esclarecer o que estamos dizendo.

No período Neolítico, muito mais próximo do nosso momento histórico, os humanos tentaram mais e

mais reconhecer e compreender suas limitações de tempo e espaço. Ter consciência da vida e da morte forneceu

um motivo para a invenção, para o esforço da autoaceitação. Pareceria ser uma continuação, ainda que posterior,

natural desse processo de desenvolvimento expressar experiências passadas e planos futuros, esperanças e

medos e também desejar registrar essas novas percepções.

Quando se contempla um desenho pré-histórico, imagina-se que uma explicação, uma oração ou uma

narrativa deve ter existido em íntima associação com a figura.

Uma “narrativa” pré-histórica, cerca de 10.000 a.C.

Os desenhos chegaram até nós, mas não herdamos diretamente a fala, e com ela os significados dos

signos.

1 Tradução do capítulo “PART 2: Speech-fixing signs” (pp. 111-118), do livro “Signs and symbols”, de Adrian Frutiger, por Thiago (Manga) Godoy.

Page 2: Signos Fixadores Da Fala

No nosso ponto de vista, o desenvolvimento do registro “gráfico” do pensamento expresso reside no

desenvolvimento, por um lado, dos sons falados e, por outro lado, dos gestuais descritivos. Gradualmente esse

modo complementar de expressão conduziu ao uso dos mesmos signos associados às mesmas declarações. E

nesse momento as figuras se tornaram escrita, a qual fixou o que era pensado e dito de tal maneira que, sem

limitações de tempo, poderia ser inúmeras vezes representado, ou seja, lido.

II – Fixação da fala

Pode-se dizer que a escrita, no sentido de um registro genuíno do pensamento e da fala, passou a existir

de fato a partir do momento em que desenhos e signos aparecem em direta relação com sílabas, palavras e frases

ditas.

Supõe-se que os primeiros “escribas” viveram no quinto milênio antes de Cristo no Oriente Médio. Com

o auxílio de signos conhecidos como pictogramas, eles fizeram representações esquemáticas de objetos, datas

e ações. A escrita propriamente dita, todavia, não começou até o momento em que eles a organizar os signos

horizontal ou verticalmente em linhas ou colunas, correspondendo a sua linear estrutura de pensamento. Dessa

maneira, alinhamentos de signos gradualmente começaram a aparecer e, através do uso constantemente

repetido, se desenvolveram em culturas de escrita contínua.

Pictogramas Hititas, cerca de 4.000.

1. Dois caminhos de desenvolvimento da escrita

Signos pictóricos foram certamente a origem de todas as escritas que existiram através de um curso

natural de desenvolvimento. No estudo das laboriosas e largamente distintas rotas em direção da fixação gráfica

definitiva de uma língua, duas categorias principais podem ser identificadas.

a. Escritas ainda pictóricas

Esta categoria inclui todas as escritas que não passaram por nenhuma mudança revolucionária, mesmo

depois de centras de anos, mantendo seus signos num estágio pictórico, ainda que estilizado. A prova viva disso

é a escrita chinesa. Por exemplo, o signo para “cavalo” é claramente reconhecível em sua forma arcaica e, mesmo

que, de alguma forma, tenha sido posteriormente sistematizado, os traços e movimentos básicos ainda estão

presentes no signo moderno (quatro patas, cabeça, rabo, etc.).

Cavalo (arcaico) Cavalo (moderno)

Page 3: Signos Fixadores Da Fala

b. Escritas alfabéticas

Esta categoria inclui todas as escritas cujos signos pictóricos originais se transformaram, através dos

séculos, em símbolos puramente fonéticos, sendo seus traços reduzidos à mais extrema simplificação. Isso é

mais claramente exemplificado pelo alfabeto latino. Nossa ilustração mostra, no primeiro quadro, um primitivo

signo para “touro”, “aleph”2, com todos os detalhes como orelhas, chifres e olho. Conforme o signo se desenvolve,

as partes pictoricamente significantes são deixadas, pouco a pouco, até a letra A se cristalizar como pura

abstração.

Desenvolvimento dos caracteres latinos

Do hieróglifo ao caractere fonético moderno “A”

2. Origem comum?

Aqueles que estudam a história de numerosas línguas escritas de nossa civilização procuram sem

sucesso por uma origem comum de formação de signos. Certamente foram feitas muitas tentativas para descobrir

afinidades e associações entre as escritas primitivas de distintas regiões e continentes, mas nunca foi possível

estabelecer incontroversas conexões e é improvável que elas sejam encontradas.

Existem, no entanto, algumas analogias irrefutáveis entre signos elementares, pelo menos na representação

pictórica de objetos que devem ter sido comuns para todos os povos. É preciso somente pensar na representação

de figuras humanas ou animais e armas típicas como flechas. A lua era certamente representada no mundo inteiro

como falciforme3; uma montanha como um triângulo e água como uma linha ondulada, mas esses fatos não

indicam de maneira alguma a existência de uma escrita original, ou ur-schrift4, o aguçado poder de observação e

um senso especial de interpretação dos primeiros “escribas”.

3. Arquétipos5 herdados?

A ideia de que certas figuras estejam profundamente ancoradas em nosso subconsciente, desde o

nascimento, como arquétipos com uma interpretação simbólica comum deveria também ser mencionada aqui.

Um filhote de gato tem uma imagem mental de um rato antes de ver um pela primeira vez, ou uma criança

reconhece fogo como perigo antes de se queimar? Isso suscita uma questão fundamental que vai muito além da

abrangência de nossa pesquisa, a saber, se a noção pictórica pode ser inata ou se ela primeiro tem que ser

experimentada para que entre o subconsciente como uma memória.

4. Do pictograma ao ideograma

Em uma ilustração combinada, tentamos comparar signos das três maiores culturas e demonstrar alguns

princípios básico dessas escritas pictográficas.

chinês mesopotâmio egípcio

porta orelha touro montanhas jarro água

2 Nota do tradutor: em hebraico antigo, “aleph”, ou “aluf”, significava “touro”. 3 O que tem a forma de foice. 4 Palavra alemã que, no direito civil, é usada para designar um documento original. 5 Qualquer modelo, paradigma.

Page 4: Signos Fixadores Da Fala

escutar escondido selvagem fresco

A linha do alto (da esquerda para a direita) mostra formas arcaicas de signos chineses, precursores da

escrita cuneiforme mesopotâmica e os hieróglifos do Antigo Egito. Cada caixa contém os signos referentes a dois

objetos: porta e orelha em chinês antigo, touro e montanhas na escrita mesopotâmica, jarro e água nos hieróglifos

egípcios. Na linha de baixo, cada par de signos é combinado para dar um novo significado a uma expressão mais

complexa. A combinação expressa uma qualidade de acordo com os dois signos: uma orelha atrás da porta

significa “escutar escondido”; as montanhas na cabeça do touro, “selvagem”, “silvestre” (o gado procura as

montanhas); e a água associada ao jarro, “fresco”.

Mais três exemplos mostram, cada um, dois pictogramas com significado abstrato. Em chinês um ponto

(uma flecha) no alvo significa “centro” e a suástica de quatro braços se refere a “região”. O signo original

cuneiforme para o sol significa “movimento” e a flecha, “velocidade”. Na terceira caixa, dois signos hieroglíficos

puramente figurativos ilustram conceitos abstratos: a planta inclinada em direção ao sol significa “sul” e o pássaro

com a cabeça para baixo, o verbo “procurar”.

chinês mesopotâmio egípcio

centro região movimento velocidade sul procurar

Nosso último exemplo mostra seis signos na fronteira do pictórico: um ponto colocado acima ou abaixo

de uma linha significa “acima” ou “abaixo” em chinês; um ângulo obtuso, “afundar”; uma cruz na diagonal,

“proteger” na língua da Mesopotâmia. No signo egípcio da cruz para “divindade” uma figura humana é

reconhecível; e no hieróglifo para “dia” os raios de sol na manhã, tarde e meio-dia ainda tem uma função

explicativa.

acima abaixo afundar proteger divindade dia

A partir dessa série de exemplos, é possível observar como um pictograma pode se transformar em

ideograma no seu primeiro estágio de desenvolvimento.

5. Determinativos

Seria apropriado descrever os inumeráveis principais processos de desenvolvimento de todos os

sistemas linguísticos e gramáticas, mas isso iria exceder em muito os limites de nossas considerações puramente

gráficas.

Como um exemplo impressionante fazemos referência a somente uma dessas importantes regras, a do

“determinativo”, que desempenhou um papel muito importante nas primeiras regras de escrita.

O mesmo signo objeto para “arado” se torna um signo determinativo quando está próximo de um retângulo, que

significa “pedaço de chão”, dessa maneira se referindo a um “campo”.

O mesmo signo “arado” se transforma em determinativo para “fazendeiro”, quando está próximo de um pictograma

para “homem” ou “pessoa”. Os traços que cruzam o signo “homem” são indicações de valor ou categoria

hierárquica.

Page 5: Signos Fixadores Da Fala

campo agricultor

6. Do ideograma para o fonograma

Um dos mais importantes desenvolvimentos no registro da fala foi proporcionado pelo uso de um

pictograma para reproduzir um som silábico e não um conceito.

Isso torna o pictograma um fonograma. Em trocadilhos, ou na forma de rébus6, nossas ilustrações mostram a

palavra alemã “ursprung” (origem) representada pelas figuras urh (relógio) e sprung (salto).

Em inglês, um fonograma pode ser composto pelas figuras “bee” (abelha) e “leaf” (folha) para soletrar

“belief” (crença).

belief uhr-sprung

Nesse sentido, signos silábicos foram feitos a partir de imagens e signos conceituais: não somente o

significado de uma inscrição mas também a pronúncia foi fixada permanentemente na escrita.

6 enigma figurado que consiste em exprimir palavras ou frases por meio de figuras e sinais, cujos nomes produzem quase os mesmos sons que as palavras ou frases representam.