significados trabalho livro aposentadoria (1)

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Parte I O TRABALHO E A APOSENTADORIA São apresentados, nesta parte, alguns significados atribuídos ao trabalho, enquanto categoria conceitual ou perceptiva, e suas decorrentes vinculações à noção que se di- funde de aposentadoria. Discutimos a importância da orientação como oportunidade de reflexão e elaborações cognitivo-afetivas antecipatórias da fase de transição. A relação de ajuda que estabelecemos no processo de orientação é centralizada inces- santemente pela construção de projetos de vida no pós-carreira. Além disso, esclare- cemos as bases conceituais que têm servido de apoio ao nosso trabalho e finalizamos com o registro de aprendizagens e interpretações que foram possíveis durante quase duas décadas de realização do Programa.

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  • Parte I

    o trABALHo e A APosentAdoriA

    so apresentados, nesta parte, alguns significados atribudos ao trabalho, enquanto categoria conceitual ou perceptiva, e suas decorrentes vinculaes noo que se di-funde de aposentadoria. discutimos a importncia da orientao como oportunidade de reflexo e elaboraes cognitivo-afetivas antecipatrias da fase de transio. A relao de ajuda que estabelecemos no processo de orientao centralizada inces-santemente pela construo de projetos de vida no ps-carreira. Alm disso, esclare-cemos as bases conceituais que tm servido de apoio ao nosso trabalho e finalizamos com o registro de aprendizagens e interpretaes que foram possveis durante quase duas dcadas de realizao do Programa.

  • 1signiFicAdos do trABALHo

    A palavra trabalho, em sua origem, como bastante conhecida, est re-lacionada a alguma forma de tortura, sofrimento ou esforo doloroso. Assim interpretada, para muitos, tem o significado de um pesado fardo, que nos im-pede de viver. Esse tipo de conotao conferida ao trabalho est associado compreenso da atividade laborativa como fonte de alienao econmica, po-ltica e de aflio para aqueles que a realizam. Tal concepo se relaciona ao trabalho como fonte de explorao e de deteriorao da qualidade de vida do ser humano, ao despender esforo fsico e psquico que resulta em desgastes e significados pouco relevantes (Zanelli, Cazaretta, Garca, Lipp e Chambel, 2010). O rebaixamento dos padres de qualidade de vida no trabalho, entre outros fatores decorrentes, implica sofrimento, que pode ser compreendido como o tdio experimentado em situaes que resultam na sensao de can-sao, desnimo e descontentamento dos seres humanos com os trabalhos que realizam (Mendes e Tamayo, 2001).

    De uma maneira ampla, o trabalho pode ser compreendido como todo esforo do ser humano, fsico ou psquico, ao intervir em seu ambiente com a finalidade de transformar, incluindo atividades como lazer e outras de natureza no remunerada. por meio do trabalho que o ser humano medeia sua relao com a natureza, transformando-a e sendo transformado por ela (Bordenave, 1999). O trabalho, sem dvida, o fator primordial nas organi-zaes e na sociedade. Como tal, consiste de um esforo planejado ainda que nem sempre formal e sistemtico dirigido, de algum modo, transfor-mao da natureza. Para tanto, sincronia de esforos e coeso de objetivos especficos so imprescindveis para atingir o objetivo maior com frequncia reduzido apenas lucratividade ou obteno de resultados de curto prazo. Passou a representar, desde o surgimento do capitalismo manufatureiro, o modo de produzir os bens de consumo e os servios necessrios sobrevivn-cia. Para o trabalhador, tornou-se o meio de ganhar um salrio e a base da construo de sua identidade.

    As transformaes recentes no mundo laboral (intensificao do desenvolvimento do conhecimento aliado ao desemprego tecnolgico e

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    estrutural) acentuaram, sobretudo nas duas ltimas dcadas, a retirada dos trabalhadores das atividades formais de trabalho de grandes contingentes de pessoas no servio pblico e na esfera privada, em virtude da ausncia de ocupao ou aposentadoria. Preocupaes com as consequncias psicossociais do fenmeno da aposentadoria tm norteado as atividades e reflexes aqui relatadas.

    Na sociedade ocidental em que vivemos, centrada no mercado e orien-tada por relaes tpicas de convenincia (Ramos, 1989), o trabalho est associado ao conceito de atividade remunerada, geralmente realizada sob a denominao de emprego, em contextos burocratizados, repletos de normas e rotinas, em evidentes incompatibilidades com a vida familiar e social das pessoas. Tal concepo enderea de modo predominante a ideia de trabalho produzido por meio de relaes orientadas pelo comprometimento do tipo instrumental. Nesta perspectiva prevalece a percepo do trabalhador das perdas materiais que ter, caso opte por se desligar da organizao onde tra-balha (Zanelli e Silva, 2008).

    Os motivos que mobilizam os seres humanos para o trabalho se encon-tram vinculados funo denominada expressiva ter um trabalho interes-sante, fonte de autoestima e autorrealizador concomitante com a funo econmica, por meio de a contrapartida econmica prover necessidades fi-siolgicas e de segurana (Maslow, 2000). Entretanto, nas sociedades atuais, em qualquer parte do mundo, as oportunidades de um trabalho significativo e motivador parecem tornar-se cada vez menos possveis. Ao mesmo tempo, intensificam-se, em compensao, exigncias cada vez mais altas para os tra-balhadores, paralelas ao aumento dos ndices de desemprego (Muchinsky, 2004). Paradoxalmente, tambm possvel observar, desde a dcada de 1990, um crescente desejo de autonomia e de envolvimento dos trabalhadores nas decises que os afetam direta ou indiretamente.

    As relaes de poder esto se alterando no s no topo da hierarquia organizacional. O chefe do escritrio e o supervisor de cho de fbrica esto descobrindo que os trabalhadores j no aceitam mais ordens cegamente. Cada vez mais eles fazem perguntas e exigem respostas (Toffler, 1990). Se-guindo essa tendncia, a de deslocamentos de poder cada vez mais intensos nas interaes sociais da modernidade, at as crianas retrucam com veemn-cia os nos que ouvem, respondendo-os do seguinte modo: Por que no?! No resposta!. Por meio disso, reivindicam com frequncia argumentos que justifiquem de modo consistente as frustraes que lhes so impostas no cotidiano.

    Em que pesem as mazelas e metamorfoses processadas na atualidade, o trabalho ocupa um inegvel e largo espao na constituio da existncia humana. Insere-se entre as atividades mais importantes, constituindo fonte relevante de significados na constituio da vida humana associada. A ocu-pao de um ser humano, expressa por meio de suas atividades dirias, ao

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    satisfazerem suas necessidades bsicas e motivacionais, compe elemento central do seu autoconceito, que se torna vital construo de sua autoesti-ma (Zanelli e Silva, 2008).

    Na perspectiva social, o trabalho o principal ordenador da vida huma-na associada. Regras, horrios, atividades e interaes sociais so dispostas conforme as exigncias que as tarefas impem. Tais caractersticas, se por um lado, contemplam a peculiaridade humana de busca por ordem, consistncia e previsibilidade, por outro, ao estabelecerem sincronicidade e um ritmo fre-ntico de vida no trabalho, dispem s pessoas tempo fsico e psquico restrito para que possam pensar e aprimorar suas vidas pessoais (Senge, 1999).

    Em razo da importncia da presena fsica e psicossocial do trabalho na vida das pessoas, ao perderem o emprego, muitas ficam desorientadas, depri-midas, desestruturam-se emocionalmente, sentem-se inteis e com a percep-o, aliada a sentimentos, de que no tm contribuies teis que possam dar. Como consequncia, buscam em outras situaes formas compensatrias ou refgios, como o caso do uso abusivo do lcool e de outras drogas, percebi-das como modos de atenuar os efeitos das dores existenciais s quais se en-contram submetidas. Isso se deve ao fato de que as pessoas, em geral, passam significativa parte ou a totalidade de suas vidas atuando de algum modo em organizaes. Nelas, a instituio trabalho constitui fenmeno central e inevi-tvel. Portanto, nascemos, crescemos e morremos dentro das organizaes de trabalho. E difcil imaginar algum tipo de vcuo social existente entre elas (Hall, 2004). As sociedades humanas se organizam em funo do trabalho.

    O trabalho um ncleo definidor do sentido da existncia humana. Toda a nossa vida baseada no trabalho. Os processos de socializao primria e secundria nos preparam para isto, mesmo quando ainda no entendemos de modo mais preciso tais significados. A construo do amadurecimento do ser humano, portanto, constitui processo relativamente longo, que percorre a infncia, a adolescncia, a fase adulta e a terceira idade. Acentuadas relaes de dependncia so caractersticas dos humanos ao nascerem, principalmente em seus primeiros anos de vida. A maturidade, espera-se, deve se acentuar e se vincular, via de regra, insero do ser humano no mundo do trabalho.

    por meio do trabalho assalariado que as pessoas, em expressiva parcela, buscam o atendimento de suas necessidades e alcance de autono-mia. Contudo, as relaes de produo se caracterizam pelo estabelecimento de outra forma de dependncia: a organizao dispe da fora de trabalho e, quase sempre, retribui parcimoniosamente. Neste caso, quando os geridos entregam sua fora de trabalho, e por isso so remunerados pelos gestores, o comprometimento que se pe em evidncia restrito e se caracteriza como do tipo instrumental, como decorrncia de uma relao do tipo racional-eco-nmica (Meyer e Allen, 1997; Schein, 1982).

    A busca da sobrevivncia e construo da autoestima e da autorrealiza-o contrapem-se aos sentimentos de pouca utilidade do trabalho realizado

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    e restrita expresso da potencialidade que existe em cada um. Assim, as de-mandas organizacionais, junto com as necessidades e expectativas indivi-duais, no raro, descompensam algo implcito na relao: as necessidades e as expectativas do ser humano ficam em parte ou no todo frustradas. So estabelecidas situaes de rupturas dos contratos psicolgicos, o que significa o rebaixamento da reciprocidade de necessidades e expectativas dos ges-tores e demais trabalhadores, com evidentes decorrncias na motivao e comprometimento de ambos (Rousseau, 1995).

    As aes do trabalhador so influenciadas pela formao que o diferen-cia como ser nico, ao nvel dos contedos subjetivos e da herana gentica, e pelos fatores do ambiente externo. Sua satisfao depende intrinsecamente do modo como percebe as condies circundantes e como associam-se s suas expectativas. Em outras palavras, o trabalho que executa e o ambiente onde esto inseridas as atividades devem ser dotados de sentido ou significado con-sistente com o conjunto de valores que peculiar quele trabalhador. Desse modo, constri-se alinhamento entre valores pessoais, de trabalho e organi-zacionais (Teixeira e Pereira, 2008).

    Afirmamos no incio do presente captulo que o trabalho pode ser visto como todo esforo empreendido com certa finalidade. Atividades que so de algum modo impostas para trabalhadores que no conseguem perceber a fi-nalidade delas ou, como acontece em situaes extremas, com o propsito de tortura, como nas situaes em que atividades percebidas sem significado so feitas e invariavelmente desfeitas, pem em risco a sanidade mental dos seres humanos. Nessas condies, os trabalhadores se encontram alienados, no percebendo a existncia das mltiplas relaes existentes entre as entregas da sua fora de trabalho e as consequncias geradas nos servios prestados ou produtos feitos (Morin, Tonelli e Pliopas, 2007).

    As organizaes so reconhecidas ao longo da histria como ambientes de sofrimento fsico e psquico e de desconforto. Interpretamos que o trabalho, conforme prescrito, distancia os objetivos pessoais dos interesses organizacio-nais. As mltiplas potencialidades humanas so relegadas, seja na dimenso fsica, intelectual, emocional ou espiritual. Em circunstncias como essas, o que caracteriza uma organizao no humanizada e o desenvolvimento de competncias tcnicas e humanas relevantes tendem a ficar em segundo plano (Vergara e Branco, 2001).

    No so poucas as pessoas tratadas como seres humanos imaturos nos seus ambientes de trabalho. A predominncia de valores burocrticos ou pira-midais produz relaes fracas, superficiais e no confiveis. Ao considerarmos que essas relaes no facilitam a expresso natural e livre de sentimentos, tor-nam-se falsas e dissimuladas, reduzindo sobremaneira a competncia interpes-soal. A ausncia de competncia humana, aliada a um contexto fsico e psquico doentios, transforma as organizaes em contextos propcios para a construo de desconfiana e de conflitos interpessoais destrutivos (Argyris, 1969).

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    Se, para a sobrevivncia, o trabalho deveria satisfazer pelo menos as ne-cessidades bsicas dirias, na perspectiva psicolgica uma categoria central no desenvolvimento do autoconceito e uma fonte importante de autoestima. a atividade fundamental para o desenvolvimento do ser humano. Estabele-ce suas aspiraes e seu estilo de vida. Em suma, um forte componente na construo da pessoa que convive bem consigo mesma, acredita e orgulha-se de si. Em virtude disso, muitos problemas humanos derivados da aposenta-doria tm origem na sbita perda de identidade que acompanha o trmino do ciclo formal da vida profissional. A explicao para tal est no fato de que nossa autoimagem ocupacional uma parte essencial de nossa autoimagem total. Para muitas pessoas, a parte mais relevante (Schein, 1982, 1996).

    As estruturas sociais e as relaes construdas, de um ponto to lon-gnquo quanto possamos imaginar a histria da humanidade, so marcadas pelas atividades produtivas. No perodo mais recente, a Revoluo Industrial acentuou tendncias que trazem consigo srias implicaes, como a fragmen-tao e a repetitividade das tarefas, a concentrao urbana, a destruio dos recursos naturais caractersticas que, para alguns, so compensadas pelo impulso dado ao desenvolvimento cientfico e tecnolgico e outras coisas que abrigam sob o rtulo de progresso. No padro de consumo orientado pela lgica dominante reside o pressuposto de que os recursos naturais so infini-tos, o que tem levado ao esgotamento de muitos deles, por exemplo, gua e solo, e insustentabilidade desse tipo de relao com a natureza. Ao que tudo indica, no s o modelo de consumo daqueles que podem consumir que se est demonstrando insustentvel. Tambm o um sistema econmico que no leva em conta as pessoas (Forrester, 1997; Schumacher, 1983).

    No processo produtivo, em que o ser humano transforma e transfor-mado, o trabalho, como ao humanizada, impe assimilaes em aspectos fisiolgicos, morais, sociais e econmicos. elemento-chave na formao das coletividades e, portanto, dos valores que tais coletividades difundem. Os valores so crenas hierarquizadas sobre estilos de vida e formas de existn-cia que orientam nossas atitudes e comportamentos (Ros, 2006). Valores so difundidos nossa volta a todo instante. o que ocorre, por exemplo, quan-do se vinculam atividades e o status ocupacional de um trabalhador. Como consequncia, as pessoas que executam tarefas manuais ou operacionais, em mltiplas circunstncias, tendem a ser desdenhadas. J quelas que planejam ou tomam as decises so atribudas melhores recompensas e consideraes.

    Existem trabalhadores pobres, pessoas cujo trabalho no proporciona renda suficiente para viver. Entretanto, h tambm trabalhadores que atuam no nvel estratgico das organizaes que ganham at 150 vezes mais do que os seus subalternos. Isso parece indicar que a distribuio da renda est fluin-do para cima e no para baixo (Donkin, 2003).

    Todo trabalho envolve, em alguns casos mais e em outros menos, es-foros fsico e intelectual. Privilegiar o trabalho que demanda maior esforo

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    intelectual , sem dvida, um modo de favorecer interesses, desprezando a evidente indissociao do pensar e do fazer em qualquer atividade labora-tiva e suas consequncias para a sade mental do trabalhador. A dicotomia entre o pensar e o fazer, entre outras consequncias, produz no trabalhador sentimentos de alienao (Vechio, 2008).

    Cada mundo concreto do trabalho constitui um subsistema social especfico, com seus interesses grupais, seus valores e seus princpios, suas normas e seu estilo peculiar. Tais caractersticas influenciam sobremaneira o fenmeno psicossocial da aposentadoria, conforme passaremos a discutir no captulo que segue.