shah muhammad rais - eu sou o livreiro de cabul

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Eu Sou o Livreiro de Cabul

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  • Eu sou o Livreiro de CabulShah Muhammad Rais

    V, acorda tua felicidade", diz-nos um provrbio persa. Estvamos chegando ao final de 2005 e eu continuava com a sensao de que era exatamente o que deveria fazer. O ms de novembro parecia ter sido o pior, o mais torturante da minha vida. Eu havia passado um longo tempo tentando obter para mim e a minha famlia um visto para a Noruega, mas o Departamento de Imigrao acabou negando o pedido. Minha esposa entrou em desespero. Estava exausta de viver em hotis. Raramente eu via seu belo sorriso. Esperamos e esperamos, e nada. Na expectativa de anim-la, disse-lhe que a felicidade viria at ns, de um jeito ou de outro. No fizemos absolutamente nada de errado. Tenho certeza de que tudo vai acabar se resolvendo eu confortava minha esposa. No vejo motivo para tanto otimismo. Essas pessoas so totalmente insensveis. Gastamos quinze mil dlares, que no sero devolvidos, em taxas de visto, reservas de hotel, seguros de viagem e passagens areas. E estamos desperdiando nossas vidas ela desabafou. Voc est coberta de razo, querida, e a coisa ainda pior do que isso num pas pobre como o nosso, com mais de setenta por cento de analfabetos, quinze mil dlares significam quinze mil livros. Mas a Noruega um pas democrtico onde se d muito valor ao indivduo. Tudo vai se resolver. No meio dessa conversa, o visor do meu celular iluminou-se com uma mensagem de texto da maior editora do Paquisto, uma subdiviso da Oxford University Press. Perguntavam se eu gostaria de participar (para uma conferncia?) da primeira feira internacional de livros em Karachi. Expus o assunto a minha esposa e a meu filho, que se encontrava conosco, e pedi-lhes sua opinio. Voc deve ir, sem a menor sombra de dvida, mas no poderei acompanh-lo disse ela. Alegou que no se sentia em condies de participar de um evento literrio de tal porte, e ento iria a Peshawar. E prosseguiu: Aproveite esses dias em que estar ocupado com outras coisas e esquea suas preocupaes. No se preocupe conosco tambm aconselhou meu filho. Comprei uma passagem em aberto para retorno dentro de cinco dias, e pouco depois estava em Icarachi, instalado num hotel. Durante o dia, tinha reunies com editores paquistaneses e internacionais; noite, caminhava cerca de uma hora antes do jantar e depois retornava ao meu quarto no hotel. Trabalhava, ento, cerca de trs horas, at uma da madrugada, em meu livro. Pgina por pgina, eu ia fazendo vrias alteraes. Como as perspectivas de negcios em Karachi eram boas, decidi prolongar minha estada por mais trs dias. O acontecimento que me traria boa sorte aconteceu na noite de sexta-feira. Tinha trabalhado o dia inteiro e, quando anoiteceu, eu estava to cansado que decidi no fazer a minha caminhada diria. Nem mesmo comer eu quis. Fiquei examinando minhas anotaes e percebi que no tinha energia para trabalhar no livro naquela noite. O tique-taque do relgio me irritava. Fui para a cama e apaguei a luz, mas no consegui dormir. Recitei alguns captulos do Coro e tentei obrigar meus olhos a se fecharem, mas s duas da madrugada ainda estava acordado. Do lado de fora, o rudo da cidade se aquietara. De repente, tive a sensao de que no estava sozinho no quarto. Mesmo com a porta trancada, a janela apenas entreaberta e o quarto localizado no segundo andar, senti que algo se movia na escurido. No o Livreiro de Cabul em pessoa? Ouvi dizer em persa uma voz calma e suave. Meu corao saltou. Espiando por debaixo das cobertas, vi duas luzinhas circulares a uns dois metros de distncia. Aquelas luzes me petrificaram; gritei o mais alto que pude. As luzes desapareceram. Meu corao deu outro salto quando ouvi uma batida na porta um camareiro, presumi e um grito: Est tudo bem, senhor? Teve um pesadelo? Estou bem, obrigado. Acho que estava sonhando gaguejei. Senti gotas de suor em minha testa. J havia perdido toda esperana de dormir naquela noite

  • quando o quarto foi novamente iluminado pelas duas luzinhas. Agora mais suave, a voz disse: Meu caro Livreiro, no tenha medo. No somos perigosos. Viemos da Noruega para trazer-lhe boas novas disse ela, enquanto as duas luzinhas se intensificavam. O pior do medo j havia passado, mas eu no sabia o que dizer. Fiquei deitado, olhando para a estranha luz azul. Seria apenas um sonho? Como eu poderia falar com criaturas que pareciam consistir somente de luz? No dava para vocs se apresentarem como duas pombas brancas ou, talvez, dois lindos gatinhos? perguntei. Provavelmente voc acharia dois gatos falantes ainda mais assustador. Ns nos apresentaremos em nossa forma original, mas no precisa ter medo. Seja corajoso disseram as duas luzes. Muito bem, ento. Deixe-me v-los em sua forma original pedi, na esperana de que fosse menos assustadora. As duas luzes, que tinham cerca de trinta centmetros de dimetro cada uma, se transformaram ento, lentamente, em duas criaturas horrendas, enormes e peludas, com grandes e longos narizes pregados bem no meio da cara. Seus olhos amistosos eram arredondados como bolas. Ambos falavam fluentemente a minha lngua materna, e tudo que diziam era sempre em coro, o que se tornava apavorante: Somos os trolls do norte da Noruega. Vivemos nas profundezas de uma floresta virgem que, graas aos esforos do povo noruegus, est a salvo de extino. Embora alguns de ns sejam terrivelmente feios, o povo noruegus nos aprecia, e nosso chefe, o Rei de Trolls, est muito satisfeito com o respeito e a proteo do povo noruegus pelos tesouros da nossa natureza. Ele nos ordenou que cooperssemos com o povo da Noruega em seus esforos para proteger o meio ambiente, assim como em outros assuntos. Eu os observava, tomado de assombro. J havia lido a respeito desses trolls noruegueses e aprendido que eram criaturas ms, que viviam debaixo da terra e s vezes subiam superfcie, na calada da noite, para comer cabras e raptar princesas. Mas os dois trolls minha frente no pareciam, em absoluto, criaturas ms. Aos poucos meu medo foi se dissipando. De que outros assuntos vocs esto falando? Justia. Ajudamos pessoas responderam, com um sorriso astuto. Geralmente sem que elas percebam. Um dos trolls era mais baixo e menos corpulento que o outro. Ento perguntei-lhes por que eram to diferentes. Somos marido e mulher disseram. Seus rostos no eram nada atraentes, mas suas palavras amistosas e seu jeito cordial me acalmaram. Meu caro Livreiro, fomos enviados aqui pelo Rei de Trolls para analisar seu caso e descobrir a verdade sobre toda essa confuso disseram. Ento vocs esto aqui para me ajudar a obter o visto? perguntei, animado. Os trolls negaram com a cabea. A mulher troll estava na janela, olhando para o cu noturno de Karachi. Raramente nos envolvemos em assuntos do Departamento de Imigrao. O Rei de Trolls no quer se envolver demais em assuntos pessoais. Isso geralmente no traz nada de bom disseram em voz baixa. O marido troll estava ao lado da esposa, agora de costas para a janela. Ambos me olharam com seus olhos redondos. Viemos por um motivo completamente diferente que, at onde sabemos, preocupa-o tanto quanto o visto explicaram. Sentei-me na cama, mais confuso do que nunca, mas consciente de que aqueles dois seres haviam conquistado a minha confiana. Observei-os com ateno e senti, no fundo do meu corao, que eles j no me assustavam ao contrrio, pareciam bons e sinceros. Tomei coragem e perguntei: Qual exatamente a misso de vocs? E por que vieram aqui? Viemos para falar sobre as viagens da jornalista sne Seierstad ao Afeganisto, as experincias que ela teve sob o seu teto e as coisas que contou em

  • seu livro. O Rei de Trolls quer saber o que realmente aconteceu explicaram. No pude acreditar. O livro de sne Seierstad tinha virado a minha vida de cabea para baixo. Por causa dele passara a temer pela segurana da minha famlia, mas agora eu quase comeava a acreditar que a verdade acabaria vindo tona. Estamos aqui para ouvir a sua verso da histria. O Rei de Trolls mandou-nos investigar todos os fatos que provocaram discrdias entre o povo da Noruega e outros povos. E assim que recompensamos os noruegueses por seus esforos em salvar o nosso meio ambiente disseram. Vocs no acham que chegaram um pouco tarde demais? perguntei-lhes com delicadeza. Calei-me por um momento, at que disseram: Assim que o livro de Asne Seierstad foi publicado, ele angariou uma imensa popularidade e vendeu milhares de exemplares em toda a Noruega. Mas as histrias contadas no livro deixaram uma srie de perguntas difceis de serem respondidas na mente dos leitores. Eles ficaram perturbados com vrias dvidas e com a confuso que o livro causou. Notcias de como o livro foi recebido pelos leitores chegavam diariamente ao Reino de Trolls, at que, finalmente, o Rei nos convocou para uma audincia secreta. Tanto o Rei quanto a Rainha de Trolls nos receberam e, fique sabendo, meu caro Livreiro, eles pareciam bastante preocupados e chegamos a nos sentir mal. Aps alguns momentos de silncio, o Rei falou: "Meus caros trolls, confio-lhes a tarefa de encontrar o Livreiro de Cabul, submeter o livro apreciao dele e depois relatar-me sua verso, ou seja, aquilo que ele considera ser a verdade sobre o caso. Assim cumpriremos nossa obrigao para com o povo da Noruega." Vocs tm um rei amigo e justo eu disse. Os trolls me contaram, ento, ter pedido ao Rei vinte e quatro horas para organizarem a viagem ao Afeganisto. Tudo isso muito interessante eu disse , mas no se esqueam de que eu lhes fiz uma pergunta que ainda no foi respondida: "Por que vocs no vieram h mais tempo?" Caro Livreiro, seja paciente. Ns lhe contaremos tudo. Desculpem-me. Vocs iam falar dos preparativos da viagem conclu. Sim, caro Livreiro, ns... Os trolls hesitaram. Olharam uma vez mais pela janela como se algo do lado de fora os perturbasse. Estava quase amanhecendo. Pensei que a luz fraca que entrava pela janela estivesse irritando os seus olhos. Caro Livreiro, precisamos ir. Quando a noite chegar estaremos de volta para continuar a conversa. Pronunciando palavras mgicas, os trolls desapareceram. Ainda ouvi suas vozes suaves ecoando pelo quarto depois que se foram: "At logo, caro Livreiro." Sentei-me por um momento pensando no inacreditvel que acabara de acontecer. Senti-me fraco e cansado. Fechei as cortinas e pendurei na maaneta da porta o aviso DO NOT DISTURB. Eu havia combinado uma reunio com um editor paquistans s onze e meia, alm de vrios outros compromissos, mas esqueci todos eles e ca num sono profundo. Acordei s trs da tarde, sentindo fome. Chamei um txi e fui a um dos maiores restaurantes da cidade, onde comi uma farta refeio com um apetite voraz. Em seguida, cancelei todos os compromissos que j havia perdido mesmo. Voltei ao hotel e pedi ao recepcionista que, caso algum me procurasse, dissesse que eu havia sado. Pendurei novamente o DO NOT DISTURB na maaneta da porta e permaneci em meu quarto.Ao cair da noite, os edifcios e as velhas cpulas de Karachi comearam a aparecer, ntidos, contra o cu. Deixei-me cair em profundos pensamentos enquanto aguardava a chegada dos trolls. s oito em ponto, as duas luzinhas apareceram. Salam, caro Livreiro eles me saudaram, calorosos. Salam, caros trolls respondi. Os trolls se sentaram na cama. Um deles trazia entre as garras um caderno de anotaes. Durante alguns momentos fiquei observando seus rostos, bastante amistosos a despeito da imensa feira. Relembrei-lhes, ento, a pergunta que havia feito na noite anterior. Por que tinha esperado tanto tempo para virem me ver uns trs anos?

  • Caro Livreiro, quando estava tudo pronto para a viagem, fomos ao Rei de todos os trolls e dissemos: "Longa vida ao Rei de Trolls e sua bela Rainha! Agora estamos preparados para cumprir as ordens de Suas Majestades. Pedimos ao Rei de todos os trolls que nos ensine as palavras mgicas que nos levaro at Cabul." O Rei nos deu sua permisso para partir e nos ensinou algumas frmulas especiais para viagens particularmente longas. Assim, demos incio nossa jornada. Havamos planejado subir uma grande montanha e de l voar at Cabul, mas antes de chegarmos ao seu topo comeamos a nos sentir estranhos, totalmente sem foras. Nenhuma palavra mgica, nenhum sortilgio que pronuncivamos surtiam qualquer efeito. "Alguns trolls que tinham vindo desejar-nos boa viagem precisaram retornar ao Rei de Trolls para inform-lo do que nos estava acontecendo. O Rei chegou o mais rpido que pde. Ao ver o nosso estado, mandou chamar os velhos sbios trolls. Mas at as frmulas mgicas que eles pronunciaram tambm deram em nada. "Finalmente, um dos ancios trolls disse: Tonga vida ao Rei de Trolls e sua bela Rainha! Temos razes para crer que seus dois trolls foram enfeitiados por magia negra. Mas nenhum outro troll est to apto a cumprir esta misso como eles dois, pois so os mais qualificados.' O senhor h de entender por que ele disse isso, caro Livreiro, quando lhe informamos que a sia est sob a nossa responsabilidade h quase 300 anos." Movendo as cabeas num orgulhoso gesto de assentimento, os trolls confirmaram o que acabavam de dizer. Na rua, um carro buzinou com insistncia, fazendo-me lembrar que eu estava num quarto de hotel da maior cidade do Paquisto. Eu mal podia acreditar que estava frente a frente com dois trolls noruegueses. Como teriam conseguido chegar a Karachi? Seriam eles perigosos? Criaturas assim podiam viajar de avio? Andando de um lado para o outro no pequeno quarto do hotel, eu tentava pensar com clareza. Os trolls saram da cama e sugeriram que eu me sentasse. No lenol branco onde haviam estado, vi algumas sementes de pinheiro e o que parecia ser pequenos insetos. Os trolls continuaram: Caro Livreiro, eis o que aconteceu em seguida: um jovem troll veio correndo at o topo da montanha e disse, dirigindo-se diretamente ao Rei: "Longa vida ao Rei de Trolls e sua bela Rainha! Trago a seguinte mensagem da Rainha: Os dois trolls que deviam ir a Cabul foram destitudos de sua misso dado que no esto mais em condies de partir." O Rei pareceu no gostar da mensagem. Numa voz tonitruante, ordenou que todos retornssemos ao seu castelo. L, foi direto Rainha e disse: "Longa vida a ns. Eu no esperava que a minha bela Rainha cancelasse a misso dos dois trolls por motivos to precrios. No deveramos, em vez disso, procurar as palavras mgicas capazes de quebrar o feitio, custe o que custar, permitindo assim que nossos dois trolls possam completar sua misso?" Finalmente, ele conseguiu convencer a Rainha de que a misso devia ser considerada irrevogvel. No dia seguinte, fez-se uma grande reunio com a presena dos trolls ancios e do Rei e da Rainha de todos os trolls. Depois de prolongados debates, decidiram enviar mensageiros aos xams da Amaznia, frica e vrias outras partes do mundo para pedir-lhes que ajudassem na execuo de uma frmula mgica que quebrasse o feitio. Era a nica maneira de podermos completar a nossa misso. Vejo que vocs passaram por muitas dificuldades para chegar at aqui, meus caros trolls eu disse. Sim, caro Livreiro, e a espera tambm foi longa e exaustiva. Os mensageiros do Rei viajaram pelo mundo inteiro, foram ao corao da floresta amaznica, mas s tiveram decepo. Em todos os lugares recebiam sempre a mesma mensagem disseram os trolls. Que mensagem? perguntei. A de que ns dois estvamos sob o poder de um grande feitio responderam. Eles disseram algo a respeito de quem os enfeitiou? perguntei, ansioso. Oh, sim, todos afirmaram que a Cappelen Forlag havia usado o seu poder e as suas foras malficas para nos atingir. Ento vocs esto me dizendo que sne Seierstad sabia do planejamento de

  • ssa viagem? Os trolls assentiram com a cabea. Caro Livreiro! continuaram os trolls. Eles tomaram todas as precaues imaginveis e contrataram um excelente advogado. Tentaram usar toda a sua influncia para impedir que ns, e voc, portanto, entrssemos em cena. Eles no conseguiro cegar o mundo inteiro. O mundo saber a verdade; cedo ou tarde ter de saber eu disse. Os trolls explicaram, ento, que tiveram de esperar dois anos at que o Rei e seus homens encontrassem quem soubesse quebrar o feitio que havia sido lanado sobre eles. Paciente e perseverante, o Rei acabou encontrando, em Kanyakumari, no sudoeste da ndia, um feiticeiro cujos sortilgios eram fortes o suficiente para quebrar o encantamento. Finalmente livres para partir, descobrimos, depois de procur-lo durante um longo tempo, que voc estava aqui em Karachi. Viemos imediatamente e agora estamos aqui, conversando disseram. Eu no sabia o que pensar a respeito das coisas que haviam acabado de me relatar. Estava to perplexo que tinha esquecido todas as minhas obrigaes de anfitrio. No gostariam de se sentar? perguntei, apontando a cadeira de brao ao lado da escrivaninha. Ela rangeu quando a mulher troll se acomodou. Querem algo para comer ou beber? Aqui tem um frigobar eu disse. Ns no comemos, nem mesmo frutas silvestres. Acreditamos que os animais da floresta precisam mais do que ns da comida. Ns, os trolls, no somos mesquinhos nem egostas. Amamos a natureza e todas as criaturas que vivem nela. Alimentamo-nos de sol disseram. Essa informao me surpreendeu muito, porque j ouvira dizer que os trolls no podiam se expor luz do sol. Mas no dei muita importncia ao fato, uma vez que a minha mente, agora que a chance finalmente havia surgido, estava mais interessada em comear o relato da minha prpria histria: Caros trolls, nos ltimos anos recebi vrios telefonemas de pessoas desaconselhando-me a ir Noruega. At amigos meus, que tinham ficado a meu favor no conflito, receberam telefonemas ameaadores dizendo que suas vidas estariam em perigo se tentassem ajudar o Livreiro de Cabul. Caros trolls, tenho todas as mensagens eletrnicas guardadas em minha caixa de e-mails. "Lembro que um jornalista noruegus chamado Joran Ledal se props a ir a Cabul para escrever um artigo que transmitisse aos noruegueses uma impresso mais correta sobre mim e a minha famlia. Chegamos a acertar que ele me pagaria trs mil dlares norte-americanos pela entrevista. At hoje no entendo por que ele nunca apareceu em Cabul, depois de afirmar que estava a caminho. "O advogado que se encontrava minha disposio na Noruega, Sr. Brynjar Meling, tambm deve ter sido influenciado por essas foras malficas. Se eu optasse por processar a Cappelen, teramos de assinar um contrato cujos termos eram bem razoveis. Dizia que se perdssemos a causa ele no cobraria seus honorrios de advogado. Se vencssemos, a outra parte teria de pagar todas as despesas. Mas, enquanto preparava a ao, ele exigia um depsito de cinqenta mil dlares norte-americanos, provavelmente para garantir que teria como pagar a outra parte caso perdssemos. Como vocs ho de entendei; caros trolls, era impossvel para mim arranjar tanto dinheiro. Conseqentemente, o caso ficou em suspenso durante os ltimos dois anos. "Outra parte importante da histria que nosso pedido de visto foi negado. Com isso, no s perdemos muito dinheiro como desperdiamos mais de trs meses do nosso precioso tempo. Portanto, vocs esto certos, caros trolls, essas foras que trabalham contra mim so poderosas. Mas eu me sinto melhor quando penso num provrbio afego: A mentira no vai longe." Reparei, ento, que um dos trolls pegou um lpis e um bloco de anotaes, e comeou a escrever: Por que vocs esto tomando notas? perguntei. A nossa memria, felizmente, melhor e menos enganadora do que a dos humanos, mas o Rei sempre exige que lhe entreguemos um relatrio por escrito. A mulher troll levantou-se da cadeira e mais uma vez a vista da janela chamou sua ateno.

  • O sol j se levanta no leste, temos de partir. Voltaremos amanh noite para continuar a conversa sobre o livro de sne Seierstad. Meus caros trolls, vocs so bem-vindos aqui como meus convidados durante o dia tambm. Se precisam descansar, fiquem com o meu quarto. Tenho como conseguir outro. Nossa obrigao internacional ficar de olho na herana cultural da humanidade. Durante o dia, tomamos conta dos milagres do mundo. Agora tudo fazia sentido para mim: os trolls precisavam ir embora no porque no pudessem se expor luz do sol, mas porque o amanhecer os fazia lembrar de suas obrigaes dirias. Era bvio que trabalhavam em muitos campos e nveis, mas o que faziam exatamente, e como faziam, ainda no estava claro para mim. Eu me sentia cada vez mais curioso a respeito de como pretendiam agir no meu caso se que pretendiam. Cumprimos muitas de nossas tarefas sem que as pessoas saibam explicaram os trolls, como se tivessem lido meus pensamentos , mas nunca, jamais, desafiamos o destino. Assim que os trolls se despediram, chamei o servio de quarto. Pedi um caf da manh completo. Depois de comer, finalmente adormeci. Acordei s trs da tarde e sa para caminhar e tomar um pouco de ar fresco, at a hora de jantar num restaurante afego, onde fiquei cerca de uma hora pensando nas boas lembranas das duas noites anteriores; todo o meu corpo se encheu de alegria. Liguei para a minha esposa e ela disse que estava bem. Quando nos encontrarmos, terei boas notcias para voc comuniquei a ela. Provavelmente voc assinou um contrato importante e comprou uma montanha de livros ela disse. No, minha querida, uma histria totalmente diferente e muito mais assombrosa respondi. Ao desligar, a tristeza e a saudade de casa substituram a alegria que a conversa me havia proporcionado. Eu sentia falta de minha esposa. Meus familiares viviam distantes uns dos outros: em Peshawar, no Canad, em Cabul. De repente, senti-me um homem sem lar. Aquela hora tranqila passada no restaurante e a comida afeg haviam aumentado a minha melancolia queria voltar para casa. Mesmo sendo Cabul um lugar devastado, onde veculos militares roncam o tempo todo pelas ruas, eu queria voltar para l. Caminhei durante horas pelas ruas de Karachi, que no uma cidade segura; o contraste entre os diferentes povos tornou-se fonte de violncia e crime. Mas eu vagava como um sonmbulo pelas ruelas escuras sem conseguir pensar em nada alm do Afeganisto. J era noite outra vez quando finalmente retornei ao meu quarto de hotel, onde sentei-me para esperar meus dois amigos. Passados alguns minutos, ouvi vozes suaves: Salam, caro Livreiro. Respondi saudao e perguntei onde haviam estado. Hoje estivemos em Kunar, no leste do Afeganisto, onde quarenta anos atrs comemoramos nosso 135 aniversrio de casamento. Guardvamos a lembrana do agradvel e fascinante ambiente daquela poca, as vastas florestas e seus animais. No imagina, caro Livreiro, como na poca nos alegrou a companhia deles. Mas j no restava l nenhuma rvore milenar. Sero necessrios pelo menos cem anos para podermos ver de novo a beleza que elas exibiam antes da guerra. Os macacos no brincam mais no alto de suas copas. Animais raros foram todos erradicados junto com as florestas. As guas dos rios j no so frescas e limpas. E por toda parte sente-se cheiro de plvora. Parece que houve l uma batalha entre as foras da al-Qaeda e os norte-americanos, e que a floresta foi devastada por incndios e exploses. Em outras palavras, caro Livreiro, trata-se de uma catstrofe. O retrato da situao relatado pelos trolls s fez aumentar a minha saudade de casa. Confidenciei-lhes que sentia muita falta de Cabul. Com um sorriso astuto nos lbios, os trolls trocaram alguma espcie de mensagem usando sinais secretos. Caro Livreiro eles disseram , voc pode ver Cabul esta noite se quiser, mas com duas condies. Farei o que for necessrio. A primeira: voc ter de voltar conosco a Karachi ao amanhecer. A se

  • gunda: ter de ser extremamente cauteloso e cuidar para que ningum o veja. Ento um dos trolls abriu a janela e, de algum lugar dentro do seu plo desgrenhado, tirou um tapete, que desenrolou sobre o peitoril. O tapete flutuou no ar, com as franjas adejando suavemente ao vento. Os trolls subiram no tapete, que oscilou sob o seu peso, e em seguida fizeram sinal para que eu os seguisse. No este o meio de transporte mgico preferido nesta parte do mundo? perguntaram. Fechei os olhos e subi cautelosamente no tapete, com o corao acelerado. Movido pelas palavras mgicas ditas pelos trolls, logo o nosso tapete voava sobre os vastos subrbios de Karachi. De incio agarrado ao tapete, em pouco tempo percebi que ele nos transportava com segurana e estabilidade pelo ar. Foi, de fato, uma viagem bastante confortvel, exceo da passagem sobre as montanhas de Peshawar, onde sentimos alguma turbulncia. Ainda assim, mal tinha coragem de olhar para baixo. Caro Livreiro, precisamos falar com voc sobre algumas coisas que tm preocupado o povo noruegus disseram eles quando nos aproximvamos de Cabul. O vento os obrigava a quase gritar. Quando sne Seierstad lhe perguntou se poderia morar com a sua famlia para escrever um livro sobre o Afeganisto, voc disse imediatamente que sim. Franqueou-lhe sua casa durante cinco meses sem nada pedir em troca e sem qualquer contrato ou acordo por escrito. Na Noruega, a maioria das pessoas sabe disso. Cinco meses so um longo tempo para se ter um hspede em casa, principalmente nas circunstncias em que vocs se encontravam, em que cada hora do dia era importante e valiosa. Por que voc fez isso se lhe to precioso proteger a sua privacidade? Meus caros trolls, embora naquela poca fosse mais ou menos impossvel para mim ter hspedes em casa, a cultura afeg e as regras de hospitalidade nos dizem que todo hspede um amigo de Deus. Ento, seria difcil dizer no. Como parte considervel da cidade havia sido destruda pela guerra, a situao de moradia em Cabul estava terrvel. ramos vinte pessoas dividindo quatro quartos bem pequenos. Depois da queda do Talib, mais de um milho de afegos retornou a Cabul, vindo do Paquisto e das provncias. Tentei imaginar a dificuldade que era ter vinte pessoas vivendo num pequeno apartamento carente dos confortos mais bsicos, como colches, cobertas e utenslios de cozinha. Quase tudo que possuamos estava em nossa casa no Paquisto. E era praticamente impossvel trazer mveis e outros objetos de volta a Cabul, porque no havia como transport-los expliquei aos trolls. J sobrevovamos Cabul. Talvez fosse apenas o vento, mas senti as lgrimas brotarem dos meus olhos. Na descida, circundamos as montanhas e baixamos at a plancie, quase roando o telhado do hospital Akbar Khan, onde por algumas janelas se viam luzes acesas. Achei que minhas pernas no me sustentariam quando chegssemos ao solo. Mais do que qualquer outra coisa, eu queria ver meus familiares e meus velhos amigos. Mas como havia prometido aos trolls no mostrar o rosto para ningum, optei por gui-los numa turn pela cidade. Vocs no imaginam as pssimas condies de vida no pas disse-lhes. Depoide trinta anos de combates devastadores, a maior mquina militar do nosso tempo est agora se mobilizando contra a al-qaeda e o Talib. Nesse nterim, fomos invadidos por um dilvio de estrangeiros: trabalhadores da ajuda humanitria internacional, jornalistas, espies, contrabandistas, diplomatas e soldados de toda parte do mundo. Vieram, sem exceo, a Cabul com a esperana de pegar uma parte dos bilhes de dlares que estavam sendo despejados sobre o Afeganisto. Que tipo de acordo voc fez com sne Seierstad? Os trolls ainda no estavam, obviamente, prontos para abandonar o assunto. Absolutamente nenhum. Meu cdigo moral me obrigou a ajud-la, deixando-a ficar com minha famlia para poder relatar ao mundo a cultura e o modo de vida dos afegos. No fizemos nenhum trato, no houve qualquer transao comercial envolvida porque acredito que quanto mais os povos do mundo nos entenderem, mais podero nos ajudar. Nas atuais circunstncias, o Afeganisto completamente dependente da ajuda do resto do mundo respondi. Caminhvamos ao longo do rio. Quando passamos pela mesquita Shah-Do-Shamshira, os trolls me perguntaram se me incomodava o fato de sne no ser muulmana. Como hspede, sne Seierstad desfrutou de uma posio especial em nossa casa. Ela podia at no acreditar em Deus, mas nossa religio nos ensina que estamos t

  • odos sujeitos vontade Dele. Todos os seres humanos e criaturas que nos cercam foram criados por Ele, mesmo aqueles que no crem Nele, e nossa obrigao honrar tudo que Ele criou. Como hspede em um lar afego, ela foi tratada de acordo com esses preceitos expliquei. E o que o resto de sua famlia pensava de sua hspede? perguntaram os trolls. Meu filho mais velho no gostava dela e costumava me dizer: "No vejo qualquer indcio de que essa mulher seja uma escritora. O que ela vai escrever sobre a cultura afeg? Alm disso, no h um quarto para ela em nossa casa." E eu lhe dizia: "A personalidade dela no nos diz respeito. E assunto dela, no nosso. Se ela pretende escrever um livro sobre a cultura e a sociedade afegs, melhor que as conhea por meio da observao direta do que por intermdio de livros. Deixe-a fazer seu trabalho. Devemos nos orgulhar de ter uma norueguesa como hspede em nossa casa. H dezenas de boas norueguesas ajudando os refugiados afegos nos campos do Paquisto. E, quanto falta de espao, lembre-se do provrbio que diz: 'Sempre h espao quando o corao ande.' Alm do mais, minha irm 'Leila' vai poder aperfeioar o ingls dela, j que no est atualmente na escola." Graas a essas minhas palavras, meu filho veio a se tornar muito amigo dela disse aos trolls. Caro Livreiro, voc acaba de mencionar que sua irm "Leila" no freqentou a escola durante algum tempo. As pessoas falam sobre isso na Noruega que voc no deixava seu filho de doze anos e sua irm "Leila" estudarem. Elas tm dvidas sobre o seu carter, acham que dinheiro e lucro so tudo que importa para voc disseram os trolls. E o que vocs mesmos pensam, meus caros trolls? Acham realmente que eu seria capaz de impedir algum membro de minha famlia de freqentar a escola? perguntei-lhes. Se vocs conhecessem a minha famlia, veriam que todos sabem ler e escrever. So todos instrudos, exceto minha me e minha segunda esposa, que cresceram durante a guerra civil e o regime talib, e foram, portanto, privadas do direito educao. Se conhecessem meus familiares, vocs saberiam que eles esto na classe das pessoas mais instrudas do Afeganisto. A essa altura, j nos encontrvamos na parte ocidental da cidade, onde a toda hora passvamos por casas bombardeadas. De mos dadas, os trolls pareciam tristes. Expliquei-lhes que a maioria dessas casas, um total aproximado de setenta mil, havia sido destruda durante a guerra civil. Meus caros trolls, muitas escolas afegs do Paquisto foram fechadas imediatamente aps o 11 de setembro de 2001 devido guerra entre os Estados Unidos e a al-Qaeda. Hoje o mundo inteiro sabe que, sob o regime talib, todas as escolas de meninas e a maioria das escolas de meninos do Afeganisto foram fechadas. Alm disso, a estada de Asne Seierstad no Afeganisto coincidiu com as frias escolares de inverno, que duram quatro meses. "Vocs fazem idia, caros trolls, do que se passou nesses ltimos trinta anos de guerra no Afeganisto? Se eu lhes disser que setenta por cento dos afegos so analfabetos, vocs acreditariam que homens avarentos e cruis como 'Sulto Khan'* como fui nomeado no livro de Asne Seierstad so os culpados dessa desgraa? Ser que no resto do mundo as pessoas no percebem que somos vtimas de uma guerra mundial? Ser que elas no sabem que cento e cinqenta mil soldados russos, equipados com as armas mais letais que se pode imaginar, invadiram o Afeganisto e aqui permaneceram por mais de uma dcada? Que eles incendiaram centenas de escolas afegs como parte de sua guerra imperialista? Meus caros trolls, ser que no resto do mundo, e na Noruega especialmente, as pessoas no sabem que a guerra contra o Talib teve conseqncias devastadoras para o nosso sistema educacional? Ser que, ao assistir as reportagens feitas por seus prprios jornalistas, elas no percebem que Cabul est devastada, que a maior parte da cidade est em runas e que em todo o Afeganisto as escolas foram arrasadas?"1 Os trolls, seres pacficos por natureza e altamente respeitadores do ser humano, estavam profundamente deprimidos com o que viam pelas ruas de Cabul. Mas no deixaram de comentar sobre as lojinhas e casas que as pessoas conseguiam erguer das runas da guerra. Disse-lhes reiteradamente que a maior parte dos membros da minha famlia

  • havia freqentado a escola, que alguns se encontravam atualmente na universidade e que estvamos empenhados em abolir o analfabetismo no Afeganisto. Falei-lhes do nosso profundo pesar devido ao fechamento das escolas. Durante todo o perodo do regime talib, minha segunda irm mais velha e cinco outras mulheres da minha famlia trabalharam duro para implantar escolas clandestinas para meninas. Passaram seis anos ensinando s meninas que queriam aprender a ler, mas acabaram vendo suas escolas serem fechadas por uma base voluntria do regime talib. Eu mesmo ajudei essas meninas criando centros de ensino com o suporte de uma organizao de ajuda estrangeira. Meus caros trolls, sne Seierstad entrou no Afeganisto pela fronteira norte; ficou cinco meses em Cabul antes de deixar o pas pela fronteira leste com o Paquisto. Como possvel ter escapado aos seus olhos europeus a viso de todas essas escolas arruinadas? Em vrios momentos ela parece responsabilizar "Sulto Khan" pela tragdia que se abateu sobre o nosso sistema educacional desabafei. Os trolls no pareciam convencidos. Percebi que, apesar de amistosos e receptivos, a impresso que tinham a meu respeito estava determinada pelo livro de sne Seierstad. E comecei a me perguntar se "Sulto Khan" estaria sempre alguns passos minha frente, arruinando meu nome e minha boa reputao. Caro Livreiro, mesmo sabendo que seu filho de doze anos no ia escola pelo simples fato de que no havia escola para ir, os noruegueses se perguntam por que voc o obrigava a trabalhar doze horas por dia. Essa questo perturba muita gente naquele pas disseram os trolls. Digam-me, caros trolls, aonde eu deveria, como pai, mandar meu filho de doze anos para brincar e se divertir quando o que estava plantado nos parques de Cabul no eram flores coloridas, mas granadas de fragmentao confeccionadas para parecerem brinquedos e, ao serem detonadas, cegar as crianas e dilacerar seus membros? "Para que mandar meu filho ao jardim zoolgico, quando o de Cabul se encontrava na linha de fogo, e seu nico elefante, de que as crianas gostavam tanto, havia sido encarcerado e abandonado mngua para morrer? Os gansos, os pssaros silvestres, as perdizes, as gazelas de olhos negros e os antlopes, todos tinham sido comidos! As rarssimas cobras pintadas, adoradas pelas crianas afegs, haviam sido estraalhadas por balas e granadas de mo. Os escorpies de ferro duplo, to raros quanto essas cobras, acabaram sendo esmagados pelos calcanhares das botas militares. As crianas no podem mais atiar os escorpies pela parede de vidro. A leoa Marjn, a vov do zoolgico, tambm adorada pelas crianas, teve um de seus olhos arrancados e hoje mal pode ver seus amiguinhos. H muito tempo no h mais macacos no zoolgico de Cabul para fazerem rir as crianas afegs. O zoolgico inteiro exala o fedor das carcaas e dos animais maltratados. "A que montanha eu deveria mandar meu filho de doze anos para brincar, quando todas as colinas verdes esto envenenadas, destroadas, esquecidas ou mortas aps trinta anos de guerra? Desde que as colinas acabaram, caros trolls, as borboletas no brincam mais de pique com as crianas afegs. "A que museu deveria eu mandar meu filho de doze anos para elevar seu orgulho e sua auto-estima, se o Museu Nacional foi saqueado por contrabandistas que roubaram artefatos ancestrais e antigidades de at seis mil anos de existncia? Meus caros trolls, as esttuas do rei e da rainha, de dois mil anos, foram despedaadas, e o jarro de ouro da rainha, derretido e vendido a peso como ouro comum! "A que biblioteca eu deveria mandar meu filho de doze anos, se todas as bibliotecas de Cabul foram destrudas e o Talib queimou todos os livros infantis, muitos deles maravilhosamente ilustrados? sne Seierstad sabe dos graves perigos que espreitam as crianas afegs. Provavelmente ela se lembra da histria de uma criana da minha famlia, de cinco anos de idade, que foi raptada. Aps semanas de busca, os pais encontraram seus restos mortais: mechas de cabelo e suas roupas rasgadas. Raptores perversos vendem essas crianas a demnios que acreditam poder aumentar magicamente sua libido molestando meninas menores de idade. Depois de morrerem massacradas pela fora bruta, seus rgos internos so vendidos no mercado negro. "Eu amo todos os meus filhos, como se espera de um pai. Para os padres afegos, meus filhos so bastante instrudos e esto frente de sua idade no que diz resp

  • eito a conhecimento e educao. Depois de doze anos na escola, meu filho mais velho quis seguir os passos do pai e trabalhar no ramo de compra e venda de livros. Negcios de pai e filho podem ser encontrados em todo o mundo. Qualquer noruegus ver que meu filho um homem instrudo, se chegar a conhec-lo. Ele fala cinco idiomas, fluente em rabe e tem um ingls perfeito. Alm do mais, o Afeganisto precisa de uma editora." Os trolls concordaram quanto a essa ltima parte. Fiquei contente por terem me escutado, e ento, a todo momento, eu os via assentir com a cabea em aparente concordncia com as minhas palavras. Mas quando lhes perguntei se poderiam ajudar, e, se em caso afirmativo, o que poderiam exatamente fazer, a resposta que recebi foi: Isso depende do Rei de Trolls. Ainda no havia amanhecido. Eu tinha algum tempo antes de voltarmos para Karachi, conforme o combinado. Movamo-nos como num filme; num minuto estvamos junto aos muros da cidade, no seguinte vamo-nos diante da casa de um parente. Mas eu ainda no havia compreendido completamente que tinha pegado carona nos poderes mgicos dos trolls at subirmos cidadela Bala Hissar por um caminho totalmente minado e com bombas no-detonadas sem sofrer um arranho sequer. Quando sne Seierstad estava morando conosco eu disse, enquanto olhvamos a vista da cidade bem pouco iluminada , o meu segundo filho mais velho costumava ajud-la a resolver problemas em seu computador. Ele era muito bom em processadores de texto. Naquela poca, o melhor lugar para meus filhos aprimorarem seus conhecimentos era o Hotel Continental, onde moravam de quinhentos a seiscentos estrangeiros. Eles iam para l se divertir e aprender mais sobre o mundo diferente do deles. Mas eles no trabalhavam doze horas por dia, tampouco o que faziam era obrigatrio. Exatamente no dia em que as escolas reabriram, meus filhos estavam entre os primeiros a passarem pela sua porta para voltar a estudar. Meu filho e minha filha que moram no Canad esto hoje entre os melhores alunos de suas escolas e receberam vrios diplomas de louvor. Eu queria mostrar aos trolls a Escola Istiqlal; ento, caminhamos at a rea mais elegante da cidade. Essa escola, criada pelos franceses no lado sul do velho castelo, considerada a melhor e mais moderna do Afeganisto. Expliquei aos trolls que ela recebe apoio financeiro da Frana e que seus professores so franceses e afegos. Disse-lhes tambm que sne Seierstad havia visitado essa escola na companhia de Fazil. Sim, caros trolls! Fiz questo de que meu sobrinho se matriculasse nessa escola. sne Seierstad afirma que eu me aproveitei de sua fora de trabalho. Eu o deixava trabalhar quando no estava na escola, com o intuito de que ele pudesse aprimorar sua personalidade e alguma hora contribusse para a economia familiar, ganhando tambm algum dinheiro para si prprio. O que sne Seierstad escreveu a esse respeito um insulto a mim e a todos os seus leitores da Noruega, pas onde ela teve as melhores condies de vida possveis. Contei aos trolls que, durante o regime talib, matrias como cincias naturais, biologia, fsica e matemtica foram eliminadas do currculo escolar. Hoje os tempos mudaram, e a escola tem professores sem barba que ensinam cincias. Os trolls disseram-me estar felizes com esta evoluo. Mesmo assim, meus caros trolls, parece que sne Seierstad no percebeu esse fato. H uma passagem em seu livro em que ela descreve as dificuldades de Fazil na Escola Istiqlal. Num certo pargrafo ela narra: "Deu tudo errado quando Fazil teve que ir ao quadro-negro para responder sobre Deus." A ela apresenta a lista de perguntas: Deus pode morrer? Deus pode falar? E assim por diante. Meus caros trolls, essas perguntas so de um livro escolar talib que havia sido eliminado do currculo sete meses antes! Os trolls riram. Ficamos durante algum tempo na frente do castelo. Disse-lhes que ele havia sido construdo na dcada de 1920 e que suas macias muralhas de pedra haviam protegido vrios lderes afegos ao longo do sculo. Os trolls escutavam assentindo com a cabea. Toda vez que passava um carro eles colocavam o queixo contra o peito para esconder o rosto. Mal se podia distingui-los na paisagem. Para mim, que no tinha essa capacidade mgica, era mais difcil, mas eu procurava no despertar a ateno porque f

  • azia parte do nosso trato. Meus caros trolls, como esta rea est sob a sua responsabilidade h sculos, provavelmente vocs sabem como fcil ser injusto com as pessoas quando no se est familiarizado com a sua cultura. Muitos noruegueses, sobretudo jornalistas, disseram-me suspeitar de que eu havia sido injustiado e que, ainda que fosse verdade o que escreveu sne Seierstad, ela nunca deveria t-lo publicado. sne Seierstad iludiu as pessoas do restante do mundo quando falou da catastrfica realidade das crianas afegs. Ao abordar a educao de "Leila", sne disse que ela freqentou a escola apenas durante nove anos e que falava bem o ingls. Vocs no diriam que normal em todo o mundo uma garota de dezessete anos de idade ter freqentado a escola durante nove anos? Ela foi para uma escola no Paquisto e perdeu um ano de estudo porque a escola foi fechada durante a guerra. E apesar da prioridade que damos educao, sne Seierstad escreveu que "Sulto Khan" no deixava seus filhos estudarem. Minha terceira noite com os trolls estava chegando ao fim. Como eu queria passar pelo meu apartamento antes de ir embora, consegui convenc-los a atrasar nossa partida por alguns minutos. Atravessamos a Praa Sadarat, ainda imersa no silncio da noite. Disse-lhes que era ali que meu sobrinho supostamente se esfalfava carregando enormes caixas de livros. Meu apartamento estava exatamente como eu o havia deixado. Bebi um copo d'gua; os trolls no quiseram gua nem comida, como sempre. Como foi que o Rei de Trolls se interessou tanto pelo meu caso a ponto de ordenar que vocs viessem examin-lo mais de perto? perguntei. Caro Livreiro! O Rei de Trolls atribui grande importncia justia e, assim como todo o povo noruegus, tem profundo respeito pelo ser humano responderam. Percebi que era a melhor resposta que poderia obter deles, pelo menos por ora. Estou convencido da veracidade do que vocs dizem sobre o povo noruegus. Desde o comeo da catstrofe aqui no Afeganisto, noruegueses abnegados trabalham na ajuda humanitria aos campos de refugiados afegos no Paquisto, onde as condies so terrveis e o clima bastante rigoroso. Vejam vocs, meus caros trolls, a guerra no Afeganisto uma guerra mundial que traz imenso sofrimento a pessoas inocentes. Eu gostaria de poder dizer s demais pessoas do mundo inteiro, e da Noruega em particular, que somos vtimas dessa guerra mundial. "Os russos queriam ter acesso costa da ndia. Milhares de soldados invadiram nosso belo pas com seus milhares de armas. Durante essa longa guerra, os russos perderam somente quinze mil homens, ao passo que mais de um milho e meio de afegos morreram como mrtires ou ficaram invlidos. H mais de trs milhes de exilados e refugiados. Mais de dez milhes de minas espalhadas em todo o solo do nosso pas; apesar de tantos anos j passados, as pessoas ainda esto sujeitas a sofrer as terrveis conseqncias de pisar numa delas. "Meus caros trolls! Pensem em quantas pessoas vivem felizes na ptria de Osama Bin Laden, enquanto nosso querido pas foi transformado num reino de terror por uma guerra onde quem sofre e morre somos ns. Provavelmente vocs devem ouvir os noticirios dando conta das vidas afegs que se perdem todos os dias. Meus caros trolls! Ser que os noruegueses no percebem que para cada homem que morre neste pas como mrtir ou vtima da guerra h uma mulher que perde seu marido, uma irm que perde seu irmo, ou uma me que passar anos chorando a morte de seu filho inocente? No temos, ento, o direito de perguntar ao mundo se justo estarmos sofrendo porque outros povos querem usar nosso pas para seus propsitos? "Meus caros trolls, centenas de escolas foram queimadas nos ltimos cinco anos. No direito de toda pessoa viver a sua prpria vida? No direito de toda mulher poder fazer seu trabalho, no direito de todo menino e toda menina ir escola, no direito de todo homem ganhar a vida da mesma forma como se ganha na Noruega e em todos os outros lugares do mundo?" Parei de falar quando vi lgrimas nos olhos da mulher troll. Ento disseram: Sim, horrvel. Vimos o estado lamentvel em que esto as pessoas por causa dessa guerra sem fim. Ser possvel que os noruegueses no desejam saber a verdade do que es

  • t se passando conosco? Eles no querem que sejamos tratados com justia? perguntei-lhes. Sim ambos me asseguraram. Como j dissemos, os noruegueses tm um profundo respeito pelas pessoas. por isso que se interessam tanto pelo que est acontecendo no mundo, pelo que os outros pensam e sentem. Na Noruega, ilegal insultar qualquer pessoa sem algum motivo. E ilegal trazer a pblico os assuntos privados de uma famlia inocente do jeito que foi feito. Pude ver, assim, que eles haviam captado o que mais me chateava. Faltava muito pouco para o amanhecer, e os trolls disseram que tnhamos de retornar. Enquanto subiam no tapete, corri para buscar uma carta que havia guardado em algum lugar e que fazia questo de lhes mostrar. Em vrias passagens do livro de sne Seierstad, fui retratado de maneira implacvel como um homem medonho, egocntrico e extremamente ambicioso. Meus caros trolls, quando conheci, em setembro de 2003, na Alemanha, o jornalista noruegus Guro Hoftun Gjestad, do jornal VG, aps uma rpida conversa ele me olhou entre desconfiado e incrdulo, e disse: "Custo a crer que o senhor seja o Livreiro de Cabul, porque a pessoa que imaginei ao ler o livro de sne Seierstad no combina absolutamente nada com a sua personalidade." Meus caros trolls, quando um homem instrudo passa toda a vida trabalhando com o conhecimento e a cultura, os lados negativos de sua personalidade no tm chance de se desenvolver gritei do meu quarto enquanto procurava a carta. "Pessoas mal-educadas e ignorantes podem ser cruis e egocntricas. Pessoas bem-educadas so amistosas, sinceras e compassivas. Nestas, podemos ver todos os lados positivos da humanidade. Da forma como sou descrito por sne Seierstad, o ttulo de seu livro devia ter sido O carniceiro de Cabul." Finalmente encontrei o que procurava um e-mail impresso que havia recebido de um jornalista freelance noruegus que certa vez visitara a mim e minha famlia, acompanhado de um diplomata amigo seu. Eu o li para os trolls antes de nos sentarmos no tapete e decolarmos para Karachi. Dizia: Caro Shah, Muito obrigado por sua rpida resposta. No estou to surpreso com a sua reao ao livro de sne. Como lhe disse ao nos conhecermos em Cabul, h aspectos do livro que achei curiosos, e depois de t-lo visitado e entrevistado na livraria, e conhecido sua adorvel famlia, compreendi que algumas partes da histria de sne no transmitiam a imagem correta. Lembro-me de ter-lhe dito que o livro de sne dava dos leitores noruegueses a impresso de que voc, meu amigo, um pai demasiado rigoroso e severo, que no trata a sua famlia de uma maneira digita para os padres ditos "ocidentais". Mas o que vi ao conhec-lo e aos seus entes queridos, e desfrutar da sua hospitalidade, foi um homem apaixonado por seu trabalho e sua famlia, um bom pai e marido, e um muulmano liberal. As idias e reaes que voc teve naquele ms de fevereiro, e as coisas que me disse na entrevista, foram narradas num artigo publicado num jornal noruegus. As reaes dos meus leitores restringiram-se ao fato de que seria realmente interessante ouvir seus comentrios sobre sua maneira de educar os filhos, seu convvio com suas esposas e a conduo que d s suas livrarias e aos seus negcios. Meu artigo foi lido por 1,5 milho de leitores. Se for do seu interesse, posso escrever outro artigo com base em suas reaes leitura da verso traduzida para o ingls. Tenho certeza de que todos os amigos noruegueses que voc fez por intermdio do livro de sne gostariam de ouvir uma resposta autntica e honesta, onde voc possa comentar os detalhes, falar de seus sentimentos e contar ao povo noruegus que partes do livro no correspondem verdade. Se voc quiser que eu escreva tal artigo, ficaria muito honrado. Espero que considere essa proposta. Diga-me, por favor, sim ou no. E se a sua resposta for "sim", poderei enviar-lhe algumas perguntas por e-mail. Espero tambm que voc consiga vir Noruega, onde poder exprimir seus sentimentos sobre o famoso livro de sne. Caso possa vir, e tenha tempo e oportunidade, seria motivo de grande alegria para mim e a minha famlia receb-lo em nossa casa. Todos aqui se emocionaram com a sua histria e a de sua famlia. Quase sem que eu percebesse, o tapete decolou e pairamos sobre os telh

  • ados. Os transeuntes do incio da manh pareciam no perceber que vovamos sobre eles, mas ces e gatos corriam to rpido quanto podiam. Os trolls me consultaram se poderiam levar emprestado a carta. At que o caso esteja resolvido pediram. Quando lhes perguntei para que precisavam dela, murmuraram qualquer coisa a respeito de "documentao", antes de me darem a resposta de costume: Isso com o Rei de Trolls. Livreiro! Temos de reconhecer que Cabul um lugar muito bonito confessaram os trolls enquanto sobrevovamos a cidade. Ainda estava escuro o bastante para que as estrelas fossem percebidas com nitidez. Em nenhum lugar no mundo vimos tantas estrelas. Apesar das marcas que a guerra deixou em Cabul, a beleza da noite de tirar o flego disseram os trolls. Circulamos sobre Cabul durante algum tempo. De repente, tivemos de aumentar a altitude para evitar um helicptero militar norte-americano. Em seguida rumamos para Karachi. Nenhum de ns falou durante boa parte da viagem. Apenas desfrutamos a vista fabulosa: o sol se erguendo sobre as montanhas, os pssaros voando abaixo de ns. Comeamos a conversar quando j nos aproximvamos da fronteira com o Paquisto. Eram oito mulheres na casa quando sne Seierstad veio morar conosco: minha me, minhas irms, minhas duas esposas, minhas duas primas vivas, e Najiba, uma hazara que trabalhava para ns como domstica. Vrias vezes durante sua esta da sne Seierstad visitou a casa de Najiba. Foi l que ela tomou conhecimento da difcil situao das mulheres afegs. Najiba deixava os quatro filhos em casa durante o dia, enquanto trabalhava em minha casa para ganhar o sustento. A filha de oito anos tomava conta das outras crianas. Por que sne Seierstad no escreveu uma nica palavra sobre Najiba e a vida dela? Desconfio que seu editor aconselhou-a a no mencionar Najiba porque, se o fizesse, a histria de "Leila" pareceria sem sentido eu disse. O vento s nossas costas nos permitiu cruzar a fronteira em boa velocidade. Por um momento ocultamo-nos no interior de uma nuvem branca, mas logo samos novamente para o claro cu azul. Os trolls sentavam-se de frente para mim para facilitar o fluir da conversa. Na verdade, no precisvamos de Najiba como empregada, mas eu a contratara por causa de suas dificuldades financeiras expliquei. Quais eram as tarefas de responsabilidade dela em sua casa? perguntaram os trolls. Limpar a casa e lavar a loua expliquei. Ela chegava s oito, tomava o caf da manh e comeava a trabalhar. A primeira pessoa a se levantar era sempre a minha primeira esposa. Ela e minha me preparavam o caf para vinte pessoas. Minha segunda irm mais velha era um pouco mimada. Ela se levantava para ajudar minha esposa e minha me cerca de uma hora depois. Todos preferamos que minha me fizesse o caf, porque nenhuma comida era to boa quanto dela e o trabalho a mantinha saudvel. Alm disso, preparar o caf da manh a deixava feliz. O motivo de minha segunda esposa acordar tarde era porque passava a maior parte da noite amamentando nosso filho recm-nascido. No tinha nada a ver com o despotismo de "Sulto Khan", mas com o direito natural da me que amamenta o filho, e minha me e minha primeira esposa reconheciam esse direito ainda mais do que eu. Minha irm "Leila" era a ltima a se levantar de manh. ramos uma famlia rica e feliz. Todos gozvamos de boa sade. A histria da infelicidade de "Leila" pura inveno. Nenhuma famlia comum tiranizaria uma jovem como "Leila" ou a faria trabalhar como se fosse uma escrava. Sempre que ela fazia o ch, ou ia buscar um copo d'gua, estava apenas agindo como irm afetuosa que tem um profundo apreo por seu irmo mais velho e sua me. Ela no agia como "criada" nem como "Cinderela", como afirma sne Seierstad em seu livro. Assim como os outros homens da famlia, quase nunca eu estava em casa. Trabalhvamos at tarde da noite; e quando voltvamos para casa, depois do jantar ficvamos conversando durante mais ou menos uma hora antes de irmos para a cama. Simplesmente no tnhamos tempo de usar algum como escrava. Na cultura afeg, a me sempre nutre um amor especial pelo filho mais novo, e "Leila" era a mais nova. As razes pelas quais ela no estudava, e pelas quais as demais mulheres no trabalhavam, eram outras. Na verdade, convenci minha irm a se m

  • atricular num curso de ingls em Cabul e pedi a sne Seierstad que a acompanhasse no primeiro dia, como, alis, ela relata em seu livro. Mas o curso no atendeu s suas expectativas e o ambiente era to ruim que nem minha me a deixaria continuar. Abaixo de ns, o belo rio Indo coleava no horizonte. Avista era to deslumbrante que passei um longo tempo sem conseguir falar. Os trolls disseram que devamos seguir o rio por todo o Paquisto at a costa, onde fica Karachi. Ento prossegui o meu relato. As meninas e mulheres afegs no sentem mais necessidade de sair para passear na cidade porque os ciprestes no crescem mais nos parques nem nas ruas de Cabul. Elas no podem mais competir entre si para ver quem a mais alta ou a mais esbelta. Para elas, doloroso ver os parques, as praas e as ruas de Cabul porque se lembram de tempos mais alegres, e tudo isso faz com que se sintam duplamente mais infelizes. A vista das ruas e parques de Cabul leva toda mulher afeg a se lembrar dos bons tempos passados. Seu corao j no suporta mais ver os jardins e os roseirais. Quando sai para caminhar no parque, ela se lembra de que costumava ir ali passear de mos dadas com seu pai que j no habita mais este mundo: foi torturado e morto numa priso russa. Antes, ela passeava por essa rua com o namorado que lhe foi roubado pela exploso de um mssil. Antes, ela passeava por esse parque com o irmo que hoje vive como refugiado num pas distante. Tudo que lhe restou foi a voz dele ao telefone. Quando o telefone toca, seu corao bate mais forte. Ela escuta a voz do irmo. Sente um n na garganta, as lgrimas escorrem pelo rosto e ela no consegue falar. Seu irmo grita do outro lado da linha: 'Irm, sou eu; sou eu, irm; sou eu Seu irmo s a ouve chorar, nada mais. "As mulheres afegs foram privadas de toda espcie de felicidade por causa da guerra. Em seu lugar, restam o pesar e a dor de estarem separadas de seus entes queridos. E tm de enfrentar a pobreza em todos os aspectos da vida. Uma viva com cinco ou oito filhos tem de se manter com menos de trezentos dlares norte-americanos por ano. Comparem isso com rendimentos noruegueses de cinqenta a cem mil dlares por ano. A guerra, que j dura mais de trinta anos, a causa dessa desastrosa pobreza das mulheres. Em sua ignorncia, sne Seierstad omite a catastrfica realidade dessas mulheres; ela ilude as pessoas de todo o mundo quando as leva a acreditar que homens como 'Sulto Khan', e no os soldados russos, o Talib, a al-Qaeda e todos os anos de guerra civil so os culpados pela sua desgraa." Os trolls fizeram a volta ao nos aproximarmos do mar. Pareciam estar se preparando para pousar. Sobrevoamos o delta do rio e as ondas das praias de Karachi. De cima, pareciam tiras de espuma branca. Ao alcanarmos as camadas mais baixas de ar, fomos atingidos por um intenso calor. Pousamos na praia vazia, atrs de um pequeno abrigo oculto pela nvoa. Caro Livreiro, voc afirma que sua instruo e conhecimento fazem de voc uma boa pessoa disseram os trolls enquanto se espreguiavam aps longa viagem , mas o fato de no ser amigo de seu irmo e de ele ter sido afastado do convvio da sua famlia faz com que os noruegueses ponham em dvida o seu carter. Meus caros trolls! Esta mais outra inveno peculiar de sne Seierstad. Vocs sabem que fui muito bom para sne Seierstad; que sempre lhe ofereci minha amizade e minha considerao paternal. Por que, se nunca lhe fiz mal algum, ela me ataca reiteradamente em seu livro? Por que escreve uma coisa dessas a meu respeito que eu no me dou com meu irmo? Pois se ela mesma nos viu juntos em certa ocasio! Tnhamos muitas coisas para conversar, e Farid me contou um monte de timas piadas. Ela no entendeu o que viu? Ela no se lembra direito de Farid? Ela o conheceu; devia saber que ele um sujeito feliz e muito divertido, Ela sabia muito bem que ele motorista de txi e vive ocupado trabalhando para jornalistas estrangeiros. Quando vinha passar um ou dois dias em Cabul, claro que ele preferia ficar com a esposa e os filhos a vir nos visitar. "A ltima vez que nos vimos foi quando ele teve uns dias de folga depois de passar dois meses conduzindo um grupo de japoneses pela provncia de Bamiyan. Depois disso, viajou a outra provncia, onde deveria ficar vrios meses. Na poca, a situao em Cabul no propiciava s pessoas o tempo necessrio para se encontrarem e conversar. E eu cometi a tolice de perder o meu precioso tempo com sne Seierstad. Ser que ela no se lembra de que meu irmo me telefonou de Jalalabad para dizer que queria vir me visitar? Eu lhe disse que estava no Paquisto, na companhia de sne Seiersta

  • d, e que voltaramos para Cabul no dia seguinte. Combinamos, ento, encontr-lo no dia seguinte e viajarmos juntos para Cabul. Ele j estava nossa espera quando chegamos, e se mostrou visivelmente emocionado ao nos ver. Infelizmente, por desconhecer o idioma persa, sne Seierstad no pde entender a maior parte das histrias divertidas e interessantes que eu e meu irmo compartilhamos durante as doze horas de viagem. Ela teria podido entender o quanto nos gostamos. E ao chegarmos a Cabul, sne Seierstad sequer lhe agradeceu a carona. O verdadeiro motivo de eu quase nunca ver o meu irmo, caros trolls, porque ele passa meses seguidos trabalhando como motorista de txi nas provncias. Mas todos ns cuidvamos de sua famlia quando ele estava fora." Na praia, os trolls enrolaram o tapete. Eu me sentei num banco e fiquei olhando o mar. A maresia penetrava minhas narinas. No se via ningum. Posso suportar o fato de a minha gentileza e generosidade serem recompensadas com calnias eu disse aos trolls , mas sne Seierstad desvia a ateno do mundo das desastrosas circunstncias do Afeganisto para foc-la na figura de "Sulto Khan", que no nem senhor da guerra, traficante de drogas, ladro, e muito menos um canibal impiedoso. E isso eu no posso aceitar. E mesmo que todas as suas histrias fossem verdadeiras, ela ainda estaria iludindo as pessoas por no ajud-las a entender que "Sulto Khan" tambm seria uma vtima desses trinta anos de guerra. 'sne Seierstad escreve de um modo que me faz lembrar certa ocasio em que entrei numa loja de tecidos indianos. Quando voc entra numa loja dessas, o proprietrio comea a lhe mostrar todos os tipos de tecido que tem em estoque. Com gestos rpidos, em menos de um minuto ele constri sua frente uma verdadeira pilha de peas exuberantemente coloridas. Toda essa azfama faz voc achar que tem de comprar alguma coisa mesmo que j nem lembre o motivo de ter entrado na loja." Os trolls se sentaram ao meu lado no banco, e o caderno de anotaes surgiu uma vez mais. De incio ele me pareceu bem pequeno, pois quase desaparecia na mo enorme do troll, mas depois percebi que se tratava de um grande caderno pautado. Com os trolls tudo era grande, e o banco rangeu com o nosso peso. Ela no est nada preocupada com as conseqncias de revelar ao mundo inteiro que escondo meu dinheiro dentro dos livros. evidente que sequer considerou as coisas terrveis que podem acontecer num pas inseguro como o Afeganisto, se essa informao chegar s pessoas erradas. como se no houvesse limites para o que ela considerou apropriado publicar. Caro Livreiro! Temos de admitir que a nossa Rainha, que uma venervel e virtuosa troll, ficou muito aborrecida ao saber que o livro de sne Seierstad contm uma reveladora descrio da sua me tomando banho. Para ela, isso um insulto claro e grosseiro integridade de uma mulher muulmana idosa. Ela tem toda razo, meus caros trolls. Minha me corre o risco de perder completamente a sua honra aos olhos dos outros e at o apreo dos prprios netos. As mulheres muulmanas acreditam que a honra da famlia fica ameaada quando elas tiram o vu, smbolo de seu amor e fidelidade aos maridos. Caros trolls, sne Seierstad parece no entender nada disso. E como se ela tivesse escrito qualquer coisa que lhe veio cabea, ligando tudo, infelizmente, minha famlia. Alm de descrever em detalhes o corpo da minha me, ela diz que rastros da sujeira que sai do corpo das mulheres ficam pelo cho depois do banho. Isto um insulto a qualquer ser humano, seja qual for a cultura a que pertena. A mulher troll escrevia com um lpis que parecia um galho. s vezes a ponta percorria quatro ou cinco pginas de uma s vez, mas ela continuava escrevendo como se nem percebesse. E ela revela aos leitores no apenas a nudez da minha me como a da minha irm tambm, entrando em detalhes sobre seu corpo e seus hbitos de higiene pessoal. Para completar ainda diz que minha irm sofre de carncia de vitamina D e insinua que porque o tirano "Sulto Khan" a probe de tirar a roupa e tomar banho de sol. Meus caros trolls, vocs podem ler com seus prprios olhos o que ela escreveu! Ns lemos o livro disseram os trolls. Agora queremos ouvir a sua verso, que o que nos ordena o Rei de Trolls. Quer dizer que o Rei de Trolls formar a sua prpria opinio baseando-se nas duas verses e usar seus poderes mgicos para garantir que a justia seja feita? perguntei, na esperana de obter alguma informao sobre o que o Rei poderia fazer po

  • r mim. Vi os trolls cerrando as sobrancelhas sob o plo desgrenhado. S o tempo dir, caro Livreiro. Tudo depende do Rei de Trolls. No perca seu tempo pensando nisso agora, conte-nos mais. Meus caros trolls, uma guerra envolvendo as maiores potncias militares do mundo ainda est em curso no Afeganisto: a OTAN e os Estados Unidos de um lado, o Talib e as foras guerrilheiras da al-Qaeda do outro. No Afeganisto, as mulheres no podem se desnudar e tomar banho de sol como fazem as europias. A vida da mulher afeg uma batalha diria para pr comida na mesa. Apenas seis por cento da populao afeg usufruem as bnos da eletricidade. As pessoas no sabem ler nem escrever, e tampouco tm trabalho. Centenas de milhares de mulheres perderam seus maridos na guerra. Nas provncias fronteirias, as escolas ainda esto em chamas. Como podem essas pessoas desfrutar da magnfica natureza de seu pas, suas quatro estaes, seus dias ensolarados, suas noites estreladas? Eu me pergunto se sne Seierstad cega quando acusou "Sulto Khan" de no deixar as mulheres de sua famlia tomarem sol. Ser que ela no viu os soldados e os senhores da guerra? Seus olhos europeus no conseguiram ver o que est acontecendo esquerda e direita? perguntei aos trolls. A nvoa havia se dissipado e percebi que os trolls se sentiam incomodados na praia, talvez porque faltassem rvores e outros lugares sombra para se proteger. Eles se levantaram e disseram que tinham de ir embora cedo, mas retornariam assim que contassem ao Rei o que haviam escutado at aquele instante. Caro Livreiro, antes de partirmos h uma coisa sobre a qual precisamos lhe falar. A Rainha de Trolls ficou muito aborrecida ao ler no livro de sne Seierstad que as mulheres afegs so vendidas. Ela quer ouvir de voc alguma coisa a respeito. Meus caros trolls, minha irm tinha vinte anos de idade quando se casou, e eu, dezoito. sne Seierstad diz em seu livro que meus pais venderam minha irm por 300 libras para pagar "Sulto Khan" pela educao que ele lhe deu. Mas como, se a educao sempre foi gratuita no Afeganisto? Essa histria ofende a minha honra e a da minha famlia, e prova que sne Seierstad no tem a menor gratido pela hospitalidade e generosidade com que foi recebida em minha casa, "Em outra passagem ela diz que eu viajei ao Ir e depois a Moscou quando ainda era jovem. Se eu tinha dinheiro suficiente para viajar a Moscou, por que precisaria vender a minha irm? Trezentas libras uma quantia pequena. O oramento da minha viagem de negcios a Moscou, que ocorreu antes do casamento de minha irm, foi de seis mil dlares. Descrever as mulheres afegs como mercadorias venda um grave insulto nossa cultura. Se para falar de comrcio, temos de falar do que se passa entre as superpotncias e essas mulheres, que lhes tm pago com a sua prpria carne e sangue. As centenas de milhares de mortos, invlidos e refugiados so irmos, maridos e filhos das mulheres afegs. Depois de ler o livro de sne Seierstad, nossa Rainha chamou ateno para o fato de que at os trolls trocam presentes quando se casam e que tambm eles teriam de gastar grandes somas nos nossos casamentos se o dinheiro humano circulasse entre ns disseram os trolls. Exatamente. Nem nas sociedades ocidentais os casamentos so celebrados sem custos. As pessoas organizam festas, compram roupas e trocam presentes com base na renda e no gosto pessoal. sne Seierstad no viu isso, apesar de tudo que eu lhe falei sobre os nossos costumes matrimoniais. Ela insistiu na idia de que as mulheres afegs so negociadas. Em compensao no disse que eu gastei muito dinheiro com o casamento de outra de minhas irms, e no qual ela prpria esteve presente. sne Seierstad ridicularizou a unio entre duas pessoas e colocou etiquetas de preo nas mulheres como se fossem gado. E avaliou por baixo, porque o preo que ela atribuiu a uma mulher afeg s vezes era menor do que o de um bezerro em seu prprio pas. No Afeganisto, as mulheres no so mais oprimidas do que os homens. As mulheres e os homens no podem viver uns sem os outros. Se as mulheres afegs so dependentes de seus homens, esses homens so duas vezes mais dependentes de suas mulheres. O lugar da mulher na sociedade afeg to elevado que somente por intermdio de sua me uma pessoa pode obter a salvao no dia do Juzo Final. Um provrbio nosso diz: 'O Paraso fica debaixo dos ps das mes', o que significa que voc no entrar nele se no tratar sua me com respeito. Alm disso, na condio de esposa a mulher torna o lar seguro e confortv

  • el. Na condio de filha, a mulher a amiga mais dedicada e compreensiva do pai. Na condio de irm, a mulher a pessoa que mais se sacrifica por seu irmo. "sne Seierstad faz questo de ridicularizar mais uma vez as prticas matrimoniais afegs. Vou lhes contar como as coisas realmente acontecem: Quando os pais de dois jovens afegos decidem que chegou a hora de eles se unirem em matrimnio, familiares do rapaz vo casa da moa com uma proposta de casamento. Cada uma das famlias faz uma investigao completa sobre a outra, e se no se encontra razo alguma pela qual os jovens no devam se unir, a famlia do rapaz geralmente recebe uma resposta afirmativa por parte da famlia da moa. Isso anunciado a todo mundo com uma grande festa em que se trocam doces e presentes. Na cerimnia dos doces, o chefe supremo da comunicao e o mula da mesquita da comunidade esto presentes. Perguntam, ento, diretamente moa se ela quer o jovem como marido. Se a resposta for sim, eles anunciam em voz alta que o noivado est confirmado, tendo como testemunhas dois homens da famlia da moa. Em seguida, pedem a Deus todo-poderoso que conceda alegria e felicidade ao casal. Depois do noivado, o casal tem permisso das famlias para se relacionar socialmente durante os meses ou anos que precedero o casamento. Assim, os futuros marido e mulher podero se conhecer e desfrutar a companhia um do outro antes do matrimnio, que, diga-se de passagem, uma cerimnia religiosa muito agradvel. "Duas testemunhas que vm ver a moa antes do casamento anunciam em alto e bom som durante a cerimnia, jurando pelo sagrado Coro, que a moa deu o seu consentimento. Se a jovem no consente em se casar com o rapaz, o noivado cancelado. A me, o pai e os parentes da moa no tm o poder de obrig-la a se casar contra a vontade. Meus caros trolls, sne Seierstad esteve presente s cerimnias de noivado e casamento da minha irm e eu lhe contei tudo sobre as nossas tradies matrimoniais." Como dissemos, caro Livreiro, precisamos ir embora anunciaram os trolls, olhando nervosa mente sua volta. Do outro lado da praia, insinuavam-se silhuetas de pessoas que pareciam estar se aproximando. Os trolls se levantaram e foram para trs do pequeno abrigo. Eu os segui e disse: Meus caros trolls, h uma outra coisa que o Rei de Trolls deve saber sobre esse assunto: sne Seierstad escreveu em seu livro que a nsia de amar da mulher um tabu na cultura afeg, proibido pelo cdigo de honra das tribos e pelos mulas. Ela escreveu que o casamento pouco tem a ver com amor e que este pode at ser interpretado como um crime grave, passvel de punio com a morte. E mesmo sabendo disso, ela relatou vrios episdios amorosos de mulheres e moas que nunca lhe fizeram mal algum. Ser que sne Seierstad no pensou, nem por um segundo, nas desastrosas conseqncias que essas informaes poderiam trazer para essas mulheres? Se seus maridos descobrirem que elas tiveram romances com outros homens, as conseqncias sero devastadoras. Os trolls prometeram levar esse caso ao seu Rei. Prometeram tambm voltar na noite seguinte para ouvir o resto. Uma repentina rajada de vento obrigou-me a virar o rosto. Ao me voltar, os trolls j haviam partido. Permaneci na praia por algum tempo, tentando entender aquilo tudo, assoberbado por to estranhas circunstncias. As pessoas que eu tinha visto do outro lado da praia estavam mais perto agora. Subitamente lembrei-me de que no poderia deixar-me ver por ningum, exatamente como os trolls, mas logo percebi que no tinha motivo para me esconder. Por um momento, senti como se o mundo inteiro soubesse quem eu era. sne Seierstad declarou, com bastante sensatez, ter alterado o nome do Livreiro para que ningum o reconhecesse! "Que infantilidade a dela", pensei, enquanto caminhava de volta ao hotel. Certa vez ela me disse ao telefone que se algum me perguntasse algo a esse respeito, eu deveria apenas dizer: "Eu no sou 'Sulto Khan'." Queira ela ou no, seu livro convida as pessoas a participar de uma espcie de jogo. Ela fornece ao leitor algumas pistas sobre a personagem principal; quem acertar, ganha um prmio: Ele afego e, na juventude, teve uma namorada em Moscou. Algum sabe quem ? Ele nasceu na rua Deh Khudaydad, em Cabul Seria algum que voc conhece? Ele tem uma livraria num hotel de Cabul. Isso lhe diz alguma coi

  • sa? Sua livraria ficou famosa em todo o Afeganisto quando o Talib a incendiou. Isso ajuda? Ele foi preso vrias vezes pelos comunistas. Ainda no adivinhou? Ele mora na quadra 37 do bairro Mikrorayon. Ser que agora voc sabe quem ? Eu, a autora de um bestseller internacional, estou lhe dando um monte de pistas sobre a pessoa em questo. Acho estranho que voc ainda no tenha adivinhado! Ele tem um irmo chamado Farid, e outro que agora est desaparecido, chamado Nesar Ahmad. Voc ainda no o identificou? Ento veja as fotos de sua me, suas duas esposas e suas duas filhas na contracapa da edio inglesa, e a foto de seu filho na capa da edio norueguesa! Isso deve lhe dar uma pista. Mas como, ainda no suficiente? Seu endereo, quando morava em Peshawar, no Paquisto, era rua 103 no bairro de Hayatabad. Por acaso voc idiota? Ser que preciso gritar? A barriga da me dele assim; as espinhas do rosto da irm so assado. Eu conheo centenas de outras histrias insultuosas e ofensivas sobre ele. Se voc ainda no o reconheceu, porque no tem neurnios. Caminhava pelas ruas de Karachi repassando em minha cabea tudo que gostaria de dizer aos trolls. Sim, ela um gnio, essa autora de um bestseller internacional, incapaz de esconder a identidade de suas personagens inocentes. Todas as pessoas citadas no livro podem se reconhecer. Ningum tem dificuldade em descobrir quem "Saliqa" e o que fizeram sua me e sua irm, que tem marido e filhos. Depois da minha caminhada costumeira, almocei num restaurante. Ao anoitecer, voltei a p para o hotel. Quando entrei em meu quarto, percebi que os trolls estavam minha espera na estreita moldura do lado de fora da janela. A julgar pelos grandes narizes espremidos contra o vidro e pelo aspecto das marcas deixadas nele, estavam esperando havia algum tempo. Salam, caro Livreiro eles me saudaram com alegria quando os fiz entrar. Salam, meus caros trolls respondi. Os trolls me trouxeram boas notcias. O Rei de Trolls informara-lhes que talvez eu conseguisse uma audincia. Ele queria falar comigo pessoalmente. Animado com a notcia, pensei que alguma coisa finalmente ia acontecer. Mas os trolls me explicaram que eu deveria esclarecer primeiro outras questes. Caro Livreiro, nosso justssimo Rei nos disse que uma das coisas que mais o preocupam no livro de sne Seierstad a histria do carpinteiro desonesto. No livro de sne Seierstad essa histria contada de um jeito que faz voc parecer um tirano desalmado explicaram os trolls. Eu lhes direi, meus caros, como as coisas realmente aconteceram. Durante os quarenta e cinco dias em que o carpinteiro trabalhou para mim, ele me roubou uma imensa quantidade de cartes-postais. Quando descobri o desfalque, disse ao meu motorista que era muito importante que a famlia do carpinteiro nunca soubesse nada a esse respeito, pois do contrrio deixariam de respeit-lo. Mandei cham-lo e ele imediatamente me devolveu os dois mil e quinhentos postais. sne Seierstad foi testemunha disso. Mais tarde, ao examinar meus estoques, eu me dei conta, acima de qualquer dvida, de que ele me havia roubado vinte mil postais! Ento disse ao carpinteiro, de um modo amistoso sne Seierstad estava presente e tudo foi traduzido para ela , que se ele me dissesse para quem tinha vendido os postais, eu esqueceria o caso. "Deixamos que ele fosse para casa. Nessa mesma noite, depois do jantar, contei a histria para a minha famlia e pedi que me aconselhassem. sne Seierstad estava presente. Disse ao meu motorista, aos meus filhos e aos meus irmos que mantivessem o fato em absoluto segredo para no prejudicar a reputao do carpinteiro. Eu queria dar a ele algum tempo para limpar o seu nome, evitando assim ser preso. Meus caros trolls, o carpinteiro teve um ms para devolver os cartes-postais, e eu disse aos meus filhos que, se ele fosse preso, ajudaramos financeiramente a sua famlia com o equivalente de seus ganhos normais. "Por fim decidi lev-lo delegacia de polcia local, com a qual, alis, no estvamos em bons termos. Eu esperava que ele confessasse e que a polcia o deixasse li

  • vre. Mas uma semana na delegacia no foi suficiente para que o carpinteiro confessasse seu crime. A nica coisa a fazer era transferi-lo para a polcia do Estado a fim de que fosse punido de acordo com a lei. Na priso, o carpinteiro confessou que havia roubado vinte e quatro mil cartes-postais, os quais tinha vendido de livreiro para livreiro por uma pequena soma doze dlares por duzentos cartes equivalente, porm, a trs vezes a sua diria. Re-compramos os cartes do livreiro e o carpinteiro foi libertado trs meses depois. sne Seierstad escreveu que o carpinteiro foi condenado a trs anos de priso! "O carpinteiro dizia: 'Eu sou um homem pobre. Tenha piedade de mim\ e eu lhe respondia: 'Voc devia ter piedade de sua mulher e de seus filhos, e cuidar de no ir parar na priso. Confesse quantos cartes-postais voc roubou Todos somos pobres no Afeganisto. Isso significa que devemos roubar? A maioria ganha menos do que um carpinteiro. Roubo crime em qualquer pas, e quem comete um crime merece ser punido nos termos da lei. Esse crime poderia ter tido graves conseqncias para mim. Meus fregueses ficariam muito aborrecidos se descobrissem que era possvel comprar os mesmos postais muito mais baratos noutro lugar. Os efeitos sobre meus negcios seriam tremendamente negativos. "Meus cartes-postais so grandes 18 x 12,5cm para ser exato e de alta qualidade. sne Seierstad afirmou que eu conseguia imprimir sessenta cartes por um dlar, o que obviamente impossvel. De qualquer modo, esse assunto segredo comercial. Apesar de dizer que seu livro ao mesmo tempo fico e histria real, dependendo das circunstncias, sne Seierstad deixa claro no prefcio que se trata de um produto jornalstico. Devo admitir que considero um tanto estranho ela no seguir as mesmas diretrizes ticas e prticas dos demais jornalistas noruegueses." Os trolls me olharam com seus grandes olhos arredondados. A mulher troll procurou uma pgina em seu caderno de anotaes. Virava as folhas com tanta fora e velocidade que uma brisa agradvel soprou pelo quarto. A certa altura do livro, sne Seierstad diz que eu trouxe para casa um saco cheio de roms, tangerinas e mas, e as tranquei num armrio para no dividir com ningum, exceto minha segunda esposa outra prova do lado egosta de "Sulto". Meus caros trolls, em nosso clima no se pode guardar essa quantidade de frutas fora da geladeira, alm do que, no apartamento como ela mesma descreve , o nico mvel que existe o armrio de livros. Ela parece no se dar conta de como so ofensivos esses comentrios. Cautelosamente, os trolls disseram: O Rei de Trolls quer saber tambm o que voc pensa da descrio que sne Seierstad fez das fantasias do seu filho mais velho. Meus caros trolls! Como pai, fiquei revoltado ao ler essa passagem do livro de sne Seierstad. D a impresso de que ela escreveu tudo aquilo sem pensar nas conseqncias que poderia ter para o meu filho. Como livreiro experiente, fiquei surpreso ao ver como ela trata pessoas reais, vivas, como personagens de fico, atribuindo-lhes fantasias e pensamentos obscenos. Quando isso for lido no Afeganisto, meu filho no ter mais lugar na sociedade, ser estigmatizado como um homem indigno que vive pensando em molestar meninas de rua. Nenhuma mulher afeg aceitar se casar com ele. Quando expliquei isso para sne Seierstad aps a publicao do livro, ela me respondeu por e-mail que eu era livre para dizer aos meus amigos e conhecidos que tudo se tratava de fico, uma inveno baseada em meros boatos. Ela deixou a meu critrio decidir o que escrever s pessoas. Graas a Deus ela me concedeu pelo menos isso. No entendo como ela pde retratar meu filho como um jovem talentoso e bem-educado, e ao mesmo tempo dizer que ele fantasiava ter relaes indecentes com mendigas. Essas mendigas so crianas inocentes que se tornaram rfs devido a uma guerra sem fim. Caro Livreiro, acreditamos j ter ouvido o bastante. Ns lhe agradecemos em nome do Rei e da Rainha de Trolls. So o que nos resta agora saber se o Rei desejar receb-lo em seu reino do Norte. Se lhe serve de consolo, podemos garantir que ele trata de casos como este com muito mais agilidade do que o Departamento de Imigrao. Encontre-nos atrs do hotel meia-noite de amanh, e veremos. Com essas palavras, os trolls subiram na janela e desapareceram na escurido. Como combinado, na noite seguinte, meia-noite, eu esperava os trolls atrs do hotel. No havia comido nem dormido. A perspectiva de encontrar o Rei de Tro

  • lls em pessoa me parecia ao mesmo tempo assustadora e fascinante. Eu esperava que ele, com seus poderes mgicos, pudesse quebrar a maldio que O livreiro de Cabul havia lanado sobre mim. Os trolls apareceram meia-noite em ponto, saudando-me da maneira polida de costume. Nossas peripcias noturnas me faziam sentir que j ramos amigos, razo pela qual, ao perceber neles um certo mau humor, perguntei-lhes o que havia de errado. Caro Livreiro! eles responderam. Estivemos hoje no Canad e vimos sua primeira esposa, sua filha e seu filho de doze anos. Encantou-nos ver seus filhos estudando com afinco. Mas sua esposa parecia infeliz. Espero que vocs no a tenham assustado! No, ns fomos muito discretos. Mas havia lgrimas naqueles belos olhos. Sim, meus caros trolls, os olhos dela ainda no secaram. Seu corao di e as lgrimas lhe rolam pela face quando lembra do rosto e da figura orgulhosa de nosso filho mais velho, que no v h dois anos. E sofre tambm por estar longe de minha me, meus irmos e minhas irms, a quem tanto ama. H vinte anos ela uma esposa amorosa, dedicada e fiel. E sua tristeza aumenta ainda mais quando estamos distantes um do outro. Ela est to acostumada a viver no seio de uma famlia de vinte pessoas que sofre terrivelmente com a separao expliquei. Desejamos que vocs se renam logo disseram os trolls, com sorrisos cordiais. Mas agora, caro Livreiro, o Rei o aguarda, e ele no um troll muito paciente. Eu esperava ver o tapete voador, mas os trolls me explicaram que no havia tempo para um meio de transporte to lento. A mulher troll me passou um frasco contendo um elixir e me disse para beb-lo. Pediram-me que quando pronunciassem as palavras mgicas, eu formulasse o desejo de me transportar ao Reino de Trolls. Mesmo com o pensamento no Canad e em Cabul, dei o melhor de mim e consegui, finalmente, me concentrar no Reino de Trolls. Num instante me vi frente a frente com o Rei e a Rainha de Trolls e sua corte, num grande campo aberto cercado de bosques. Um squito de sbios trolls sentava-se de ambos os lados do Rei e da Rainha. Esta trajava um vestido de seda vermelho. Trazia na mo um leque chins ricamente ornamentado, que movimentava sem parar. Eu e os dois trolls permanecemos de p, para que todos pudessem nos ver. A mera presena do Rei de Trolls fazia as rvores nossa volta se curvarem, reverentes. Finalmente ele falou, e sua voz fez tremer a terra sob nossos ps. Nosso convidado vem de um pas distante cujo povo tem sido vtima de inmeras guerras impostas por estrangeiros. Sua natureza foi destruda palas armas mais letais e venenosas que podemos conceber. Nosso desejo que cessem definitivamente os bombardeios em seu pas, que foi pilhado por ladres e contrabandistas, e que as rvores milenares da floresta em Kunar sejam deixadas em paz. Os dois trolls que enviamos para encontrar o Livreiro trouxeram-nos sua histria tal como foi contada por ele mesmo. Decidimos, ento, convid-lo para que a relatasse a ns com as suas prprias palavras. O que j ouvimos no corresponde ao que lemos no livro. As informaes que recebemos de voc e as que encontramos em O livreiro de Cabul so to diferentes e conflitantes que no podemos, assim como o povo da Noruega, aceit-las. Ou o relato dos nossos dois trolls inverdico, ou a autora do livro, sne Seierstad, inventou sua histria e abusou da confiana do povo noruegus, ou ainda o prprio Livreiro nos iludiu. Pedimos novamente aos dois trolls e a voc que recordem o juramento de dizer somente a verdade, e se seus relatos so falsos que dem um passo frente para que possamos esclarecer tudo. Os trolls dirigiram a palavra ao rei com a cabea baixa e disseram: Vida longa ao nosso justssimo Rei e sua bela Rainha. Juramos uma vez mais que relatamos tudo que o Livreiro nos disse sem nada omitir e sem nada acrescentar. Seguindo as instrues de nossa misso, fomos a Karachi para registrar por escrito a verso do Livreiro. Juramos ter-lhes apresentado um informe completo e verdadeiro a respeito de tudo que vimos e ouvimos at agora. "Juramos pela majestosa beleza das montanhas nevadas da cordilheira Hindu Kush...

  • "Juramos pela triste situao da floresta em Kunar e pela devastao de suas rvores milenares... "Juramos pela destruio das esttuas de dois mil anos em Bamiyan, motivo de profundo pesar para todos os trolls... "Juramos pelas centenas de milhares de vivas afegs que, noite aps noite, aguardam desesperadas a chegada da aurora... "Juramos pelas crianas afegs, rfs descalas cujos coraezinhos anseiam por uma escola... "Juramos pela morte de um milho e meio de afegos inocentes... "Juramos pela queda das Torres Gmeas nos Estados Unidos, por cujas chamas milhares de pessoas inocentes foram devoradas... "Finalmente, piedoso Rei, juramos pela beleza da natureza intocada da Noruega e garantimos a todos que tudo o que vimos e ouvimos lhes foi relatado sem nada ser omitido nem acrescentado." Muito bem. Mas, porventura, vocs so como certos seres humanos que no se sentem presos ao prprio juramento? perguntou o Rei de Trolls. No, Majestade. Ns nunca mentimos responderam os trolls. O rei assentiu com a cabea. Em seguida, olhou para mim. Livreiro, voc afirmou que o livro de sne Seierstad causou muitos problemas a voc e a sua famlia. Seja especfico! Majestade eu disse, e ento me aproximei cuidadosamente do trono , o irmo de minha segunda esposa foi a primeira vtima do livro de sne Seierstad. O pai de um colega dele de escola leu O livreiro de Cabul e contou partes do Ir TO para o filho. Este logo identificou que um de seus colegas ou seja, meu cunhado era parente do protagonista da histria. Foi ento que comearam os problemas. Em pouco tempo chegou aos ouvidos de todos os colegas de escola de meu cunhado que seu pai tinha vendido a filha para comprar duas mulheres mais em conta para ele e seu irmo, e que o Livreiro havia subornado seu pai para poder passar a noite com ela antes de se casarem. Ferido, meu cunhado acabou se envolvendo em vrias brigas e desentendimentos com seus colegas. Sim, ns percebemos que o irmo mais novo de sua esposa no vai mais escola disse o Rei. Meu cunhado acha que eu errei em deixar sne Seierstad ficar conosco e me culpa por sua desgraa. Estou muito consternado porque a vida de um jovem afego foi destruda e me preocupa pensar no que o destino reserva para as demais pessoas mencionadas no livro. Rezo toda noite para que ningum mais leia o livro, para que esses seres humanos inocentes sejam deixados em paz enquanto viverem eu disse. Continue! exigiu o Rei. Minha primeira esposa est desconsolada. Desde o dia em que ouviu falar das situaes que sne Seierstad inventou, ela se sente muito infeliz. Em 2004 eu a levei a Paris chamada no Afeganisto de a Noiva de Todas as Cidades com a esperana de que sua beleza lhe mitigasse a dor. Mas ela no se sentiu bem l, e depois de visitar outras duas cidades europias fomos para o Canad. Mas tambm l ela continuou infeliz. No parava de se perguntar como uma mulher podia ser irresponsvel a ponto de publicar tais histrias num livro. Percebendo a difcil situao por que estava passando, decidi que seria conveniente que permanecesse no Canad at se sentir melhor. Sua me, quatro irmos e seis irms moram l com suas famlias. O magnnimo governo do Canad n tardou em lhe conceder visto de permanncia. Mas a saudade insuportvel de casa a casa onde viveu vinte anos, a casa que nunca est vazia no lhe sai da lembrana. Cada mvel, cada objeto da casa representa algo para ela exp