sermao à bicharada versão reduzida

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Rui Freitas 11º CSE2 Sermão de um professor cansado à bicharada do recreio I Vós, diz a Dra. Rosalina, Diretora nossa, falando com os professores da Xico, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os professores não ensinam a matéria; ou porque a terra se não deixa salgar, e os alunos, sendo importante a matéria que lhes ensinam, não a querem receber. Ou porque o sal não salga, e os professores dizem um cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os alunos querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou porque o sal não salga, e os professores ensinam o que querem em vez de ensinarem a matéria; ou porque a terra se não deixa salgar, e os alunos ao invés de estudarem, fazem o que lhes apetece. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!

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Page 1: Sermao à bicharada   versão reduzida

Rui Freitas 11º CSE2

Sermão de um professor cansado à bicharada do recreio

I

Vós, diz a Dra. Rosalina, Diretora nossa, falando com os professores da Xico, sois o sal da

terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do

sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo

tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é

porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e

os professores não ensinam a matéria; ou porque a terra se não deixa salgar, e os alunos,

sendo importante a matéria que lhes ensinam, não a querem receber. Ou porque o sal não

salga, e os professores dizem um cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar,

e os alunos querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou porque o sal

não salga, e os professores ensinam o que querem em vez de ensinarem a matéria; ou

porque a terra se não deixa salgar, e os alunos ao invés de estudarem, fazem o que lhes

apetece. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!

Page 2: Sermao à bicharada   versão reduzida

Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há de fazer a

este sal e que se há de fazer a esta terra? O que se há de fazer ao sal que não salga, a

Diretora Rosalina o disse logo: “Se o sal perder a substância e a virtude, e o professor faltar

ao programa e ao exemplo, o que se lhe há de fazer, é lança-lo fora como inútil para o

desemprego.” Quem se atreveria a dizer tal coisa, se a mesma Diretora o não pronunciara?

Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe

há de fazer? Este ponto não resolveu Rosalina, Diretora nossa, na Escola; mas temos sobre

ela a resolução da nossa Professora de português.

Ensinava a Professora em Portugal, na cidade de Guimarães, contra os alunos rebeldes, que

nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não

fazia fruto a professora, mas chegaram estes alunos a se levantarem contra ela, e faltou

pouco para que lhe não tirassem a sua paixão pela profissão. Que faria neste caso o ânimo

generoso da grande Professora? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao

tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória

gramatical da nossa bela língua, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes

partidos. Pois que fez? Mudou somente a secretária e o auditório, mas não desistiu do ensino.

Deixa a sala, vai-se ao recreio e começa a dizer a altas vozes: já que me não querem ouvir

os alunos, ouça-me a bicharada do recreio. A Professora pregava aos bichos e eles ouviam.

Isto suposto, quero hoje, à imitação da nossa professora, voltar-me da escola ao recreio, e já

que os alunos não aproveitam, ensinar aos bichinhos. O recreio está tão perto que bem me

ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles.

Page 3: Sermao à bicharada   versão reduzida

Direi, então, bichinhos o que tenho contra alguns de vós. Olhai lá para fora. Não, não: não é

isso o que vos digo. Vós virais os olhos para as ruas e caminhos? Para cá, para cá; para a

escola é que haveis de olhar. Cuidais que só os outros cidadãos se comem uns aos outros?

Muito maior engano é o de cá, muito mais se comem os que aqui andam. Vedes vós todo

aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às salas e cruzar os

corredores; vedes aquele subir e descer as escadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação

nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem eles buscando como hão-de comer e como se

hão-de comer.

Vede um aluno desses que andam perseguidos de mandriagem ou acusados de rebeldia, e

olhai quantos o estão comendo. Come-o o invejoso, come-o o “doutor” da turma, come-o o

rival dos amores, come-o a escovinha, e ainda não está avaliado, já está chumbado. O triste

que levou o chumbo, não o comem os pais senão depois de reprovado; e o que anda em

avaliação, ainda não está julgado nem examinado, e já está excluído.

Descendo ao particular, direi agora, bichos, o que tenho contra alguns de vós. O bichinho de

que vos irei falar é a aranha, que com o seu pelo parece tão fofa, com aqueles seus raios

estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso, parece a mesma brandura, a

mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia, a aranha é um

dos bichinhos mais traidores que existe. Pois esta, com as suas teias encantadoras, prendem

as moscas inocentes atraídas por aquela perfeição de bordado e depois pela mesma aranha

são comidas. O mesmo acontece a alguns alunos inocentes que caiem na teia de outros

alunos rebeldes e parasitas e tornam-se tão transgressoras quanto os outros, perdendo o

rumo da vida e convertendo-se em marginais.

Page 4: Sermao à bicharada   versão reduzida

Com grande confusão, porém, vos dou um conselho. Ponde os olhos naquele que vos ensina,

e vereis nele o mais puro exemplar da frontalidade, da sinceridade e da verdade, onde nunca

houve dolo, fingimento ou engano. E sabei também que para haver tudo isto em cada um de

nós, bastava antigamente ser aluno da Xico de Holanda, não era necessário ser professor.

Também nesta viagem, que faço todos os dias, e em que passo o portão da escola, vi o que

muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido esta

ronha e pegado também aos bichos. Carraças, se chamam estas de que agora falo, e com

grande propriedade, porque sendo pequenas, não só se chegam a outros maiores, mas de tal

sorte se lhes pegam à pele, que jamais os desferram.

Eis aqui, bichinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que

escolhestes. Considerai, carraças vivas, como caem aqueles que se pegam àquele tão

poderoso Ministério, e porquê. O poder caiu porque desaproveitou, e eles caíram pelo que não

aproveitaram. Pode haver maior ignorância que cair pela incompetência e prepotência alheias

alheias? Mas considerai igualmente, carraças ignorantes e ambiciosas, que também dentro

destes portões, muito se pega. Pegam-se professores às direções, pegam-se alunos aos

professores, pegam-se os mandriões aos que trabalham, mas basta que o governo mude, que

o professor adoeça ou que o nerd de serviço se transfira e caem com eles as carraças. Que

caiam diretores regionais por conivência, caíram por solidariedade política, que caia o

professor por doença, caiu por infelicidade, que caia o nerd de serviço por querer melhor, caiu

de sua vontade, mas que caia a carraça pelo que não soube ou não quis fazer, é o mais

desprezível que podemos conceber!

Page 5: Sermao à bicharada   versão reduzida

Com esta última advertência vos despeço, ou me despeço de vós. «Louvai a Escola, os

grandes e os pequenos, e repartidos em vários coros tão inumeráveis, louvai-a todos

uniformemente. Louvai a Escola, porque vos recebeu em tanto número. Louvai a Escola, que

vos distinguiu em tantos talentos; louvai a Escola, que vos instruiu de tanta variedade e

conhecimento; louvai a escola, que vos habilitou de todos os instrumentos necessários à vida;

louvai a Escola, que vos consente também o entretenimento; louvai a Escola, que vos protege;

louvai a Escola, enfim, para servir e colaborar com os vossos semelhantes, que é o fim para

que por aqui andais;