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    I ENCONTRO DE DILOGOS LITERRIOS:

    Um olhar para alm das fronteiras ISBN 978-85-88753-26-6

    SENTIMENTO E MEMRIA: A REPRESENTAO DO DISCURSO FEMININO NAS LITERATURAS AFRICANAS DE LNGUA PORTUGUESA Carlos da Silva (FAFIPA) INTRODUO

    Para responder a esta questo, ou para estabelecer uma reflexo sobre a presena de um discurso feminino na frica lusfona, este artigo ser delimitado ao perodo abrangido pela colonizao portuguesa, at a segunda metade do sculo XX, mais especificamente ao perodo que compreende a independncia poltica das ex-colnias, ocorrida em 1975.

    RESUMO: As literaturas africanas em lngua portuguesa tm sido estudadas em sua dimenso histrica como manifestaes de formas de sentir a existncia delimitada pela presena do colonizador. Os discursos que nascem dessa relao entre os elementos da colnia e a presena da opresso do colonizador podem oferecer a real dimenso das realidades que envolvem a presena da voz feminina como manifestao artstica. O interesse do artigo recai sobre a produo literria realizada por mulheres que escreveram no espao colonial dominado pelo masculino, sofrendo as mesmas situaes de incertezas e de amarguras, os mesmos medos e as mesmas ansiedades. A criao literria que nasce desse relacionamento conflituoso poder marcar as caractersticas fundamentais de um discurso em torno de uma questo bsica na literatura africana: possvel confirmar a existncia de uma escritura feminina, onde a presena da mulher seja a diferena marcante de um discurso essencialmente masculino? A leitura de poemas de Alda Lara, Nomia de Sousa e Alda do Esprito Santo pode indicar que o complexo universo africano e suas variantes culturais permitem estudar as relaes de um espao caracteristicamente marcado pelas necessidades bsicas da sobrevivncia, e das diferenas do olhar e do sentir essa realidade vivida pela mulher escritora na frica lusfona. PALAVRAS-CHAVE: sentimento; memria; discurso.

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    A escolha de um tema envolvendo a figura da mulher escritora na frica lusfona pode parecer descontextualizado do resto da produo literria africana em lngua portuguesa, se considerar-se que, em frica ou em outros continentes, o domnio masculino na literatura uma constatao. A partir dessa realidade, e considerando o grau de interesse sobre as literaturas africanas demonstrado desde as ltimas dcadas do sculo passado, talvez no seja to estranho propor-se uma abordagem do texto africano de autoria feminina e, ainda, se considerada a crescente importncia assumida pelos estudos comparativos envolvendo as literaturas africanas em lngua portuguesa. O complexo universo africano e suas variantes culturais permitem ao pesquisador investigar as relaes entre a presena de um espao caracteristicamente marcado pelas necessidades bsicas de sobrevivncia a seca, a fome, a misria alastrada, as condicionantes humanas e sociais da guerra colonial - e a representao literria proveniente desse encontro, em que o humano se subordina, mas reflete, em sntese, uma condio de existncia.

    Insistir, pois, numa investigao dessa natureza aceitar a possibilidade de existir, na frica dominada pelo colonialismo, a manifestao de uma forma de pensamento capaz de mostrar que as diversas realidades africanas no tm caminhos idnticos aos olhos do masculino e do feminino mas se constroem pela soma das diferenas do olhar e do sentir. Ao analisar os textos produzidos por mulheres africanas no perodo colonial portugus, o artigo procurar um caminho entre o espao de produo da obra literria e a representao de um sujeito enunciador inserido nesse contexto espacial, o que permitir uma abordagem crtico-analtica sobre textos de algumas escritoras africanas de lngua portuguesa, especialmente as que produziram durante o perodo dominado pela colonizao.

    Nesse propsito, do conhecimento da crtica, e dos tericos da literatura, que o grau de importncia dado s produes literrias de escritoras africanas est em nvel inferior ao conferido s produes masculinas, ou seja, ainda no existem estudos suficientemente quantitativos que possam justificar a importncia das mulheres escritoras do perodo colonial portugus. De outra forma, a existncia de obras variadas atribudas s mulheres em Angola, Cabo Verde, Moambique e Guin-Bissau, antes e aps a independncia poltica dessas ex-colnias, tambm no justifica certo desinteresse que ainda existe sobre esse modo particular de ver a realidade em cada espao colonial. Apesar de existirem estudos consideravelmente importantes na crtica literria da lusofonia, que justificam a presena de uma escritura de mulheres no perodo colonial, sabe-se que sua existncia no pode ser relegada no contexto dos estudos sobre as diversas literaturas africanas, sob pena de no se formar em torno delas um olhar crtico, de natureza histrica e conceitual.

    Pensando nesse aspecto, este artigo percorrer os textos de Alda Esprito Santo, de So Tom e Prncipe ( nosso o solo sagrado da terra, 1978); da moambicana Nomia de Sousa (Sangue negro, 2001), cujos poemas foram escritos entre 1949 e 1951; e sobre os poemas da angolana Alda Lara (Poemas, 1984), dentre outros, escritos sob o peso do colonialismo portugus em frica.

    Com esses textos, ser possvel verificar de que forma a realidade colonial vem exposta atravs do olhar da mulher africana, historicamente

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    relegada a um plano inferior na historiografia literria sobre as naes africanas de lngua portuguesa, em um tempo definido pelo sentimento e pela memria dessas mulheres da frica lusfona.

    1. O TEXTO E SEU CONTEXTO DE PRODUO Ao se estudar as literaturas africanas produzidas no perodo colonial sob

    domnio de Portugal, comum ao pesquisador deparar-se com a presena reduzida de obras produzidas por mulheres, particularmente antes da independncia das ex-colnias portuguesas em frica. Algumas situaes podem explicar, talvez, a ausncia de mulheres nas coletneas literrias ou mesmo nas publicaes individuais. O pouco acesso instruo, a maternidade a que estavam impostas, alm da tradio de atribuir figura masculina maior importncia no contexto social e, de certa forma, a convivncia em determinado espao dominado politicamente pelo colonizador podem ajudar a entender o distanciamento da voz autoral feminina em obras individuais, em antologias poticas ou narrativas.

    Em poemas ou em textos narrativos construdos sob a ptica do colonialismo, no se pode esquecer que o local de onde emergem essas produes determinante para a produo de um sentido, pois o ato da enunciao est contaminado pela diffrance da escrita (Bhabha, 1998), querendo afirmar que o sentido nunca ser essencialmente mimtico e transparente, mas que a linguagem a ordenadora de um ou mais sentidos para o texto, enquanto produto de um determinado espao, em que as variantes sociais, culturais e polticas interferem decisivamente no direcionamento a ser conferido obra literria. As contribuies advindas das concepes de Bhabha (1998) no se referem especificamente s literaturas produzidas por escritores da chamada lusofonia, mas se apresentam como teoria adaptada a qualquer sistema simblico de produo, literria ou cultural, pois o enunciado formulado tendo como referncia o local onde reside a estrutura da simbolizao.

    Ainda sobre a importncia conferida ao espao na estruturao dos sentidos projetados nos textos, interessante observar que a contribuio de Bhabha (1998) se amplia para mostrar que a interpretao no exatamente uma comunicao direta entre um eu e um voc, mostrados no interior do enunciado, mas que:

    A produo de sentido requer que esses dois lugares [eu e voc] sejam mobilizados na passagem por um Terceiro Espao, que representa tanto as condies gerais da linguagem quanto a implicao especfica do enunciado em uma estratgia performativa e institucional da qual ela no pode, em si, ter conscincia. O que essa relao inconsciente introduz uma ambivalncia no ato da interpretao (BHABHA, 1998, p.66).

    A partir dessas observaes, possvel entender que as produes literrias originadas no interior das colnias assumem um papel decisivo para a compreenso mesma de duas realidades distintas, porm complementares: a

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    do estatuto colonial, de autoritarismo e poder, e a do escritor africano, de ordem pessoal, em que se encaixam a memria e o sentimento de estar em um espao especfico, e de assumir com esse espao os elementos capazes de formar um contexto prprio em torno da presena de um eu que se mostra, especificamente quando este eu circunscreve uma questo de gnero.

    Nesse ritmo, portanto, as produes literrias atribudas a mulheres africanas do perodo colonial devem ser entendidas no como atividades autnomas, mas relacionadas a um contexto pr-determinado e, de alguma maneira, impositivo de certos comportamentos do eu enunciador. Falando a respeito da relao interdependente entre obra e estrutura scio-histrica - tomando o romance como referncia - Edward Said afirma:

    O aspecto fundamental do que venho chamando de consolidao da autoridade pelo romance no est intimamente ligado ao funcionamento do poder e gesto social, mas aparece como normativo e soberano, ou seja, granjeando sua validao no curso da narrativa. Isto paradoxal apenas se esquecermos que a constituio de um objeto narrativo, por mais anormal e inslito que seja, sempre um ato social por excelncia, e como tal carrega atrs ou dentro de si a autoridade da histria e da sociedade (SAID, 1995, p. 117).

    As observaes de Said referem-se, de forma abrangente, ao gnero

    romance, o que, entretanto, no invalida