sentimento de solidariedade entre homens e … · sentimentos e representações que a doação de...
TRANSCRIPT
2107
SENTIMENTO DE SOLIDARIEDADE ENTRE HOMENS E MULHERES NA
DOAÇÃO DE SANGUE – CAMPO MOURÃO (2010 A 2012)
Gilson Mendes Góis Claudia Priori
Unespar – Campus de Campo Mourão
Resumo: Esta pesquisa teve como objetivo abordar quais significados o ato de
doar sangue representa aos homens e mulheres que o fazem, analisando as
motivações que levaram essas pessoas a realizar esse ato, quando tantos não
o fazem. Partindo da premissa de que os papéis de gênero podem influenciar
no número de doadores masculinos e femininos, bem como as significações e
razões para fazê-lo, nosso intuito é delinear e analisar o perfil de doadores de
sangue relativos ao recorte temporal de 2010 a 2012, no contexto sociocultural
de Campo Mourão, procurando estabelecer variáveis econômicas, étnicas,
grau de instrução, entre outras. E ainda, buscamos compreender os
sentimentos e representações que a doação de sangue assume entre os
gêneros, principalmente no que se refere ao sentimento de solidariedade,
identificando as possíveis similaridades e diferenças entre homens e mulheres.
Para isso, utilizamos como metodologia, a aplicação de questionários por
amostragem, a um grupo de homens e mulheres, doadores de sangue,
referente ao período proposto, analisando os sentimentos e motivações que
impulsionam homens e mulheres à doação de sangue. Dessa forma,
esperamos contribuir para as discussões históricas no que se refere à temática
das relações de gênero e dos sentimentos de solidariedade, no ato de doação
de sangue.
Palavras-chave: Doação de sangue. Solidariedade. Relações de gênero.
2108
Introdução
Este relatório se refere à pesquisa que desenvolvemos sobre o perfil dos
doadores de sangue na região de Campo Mourão, entre 2010 e 2012, com o
objetivo de analisar se o sentimento de solidariedade é marcado pelos papéis
de gênero, e como isso implica na participação e nas prováveis diferenças,
grau e significados no ato de doação entre homens e mulheres. Também
buscamos analisar e entender a dinâmica solidária que é a doação de sangue,
traçando o perfil dos doadores.
A pesquisa utilizou os dados do Hemonúcleo de Campo Mourão, órgão
regional estatal que é responsável pela coleta e distribuição do sangue para
esta região, que abrange 25 municípios, que são: Altamira do Paraná, Araruna,
Barbosa Ferraz, Boa Esperança, Campina da Lagoa, Campo Mourão,
Corumbataí do Sul, Engenheiro Beltrão, Farol, Fênix, Goioerê, Janiópolis,
Juranda, Luiziana, Mamborê, Moreira Sales, Nova Cantu, Peabiru, Quarto
Centenário, Quinta do Sol, Rancho Alegre do Oeste, Roncador, Terra Boa e
Ubiratã.
Para conhecermos o estado da arte da temática em questão, realizamos
leituras da bibliografia e constatamos que o processo de socialização entre
homens e mulheres não é feito de forma homogênea, e isso se evidencia ao
longo da história, e é perceptível mediante os papéis sociais preestabelecidos,
a divisão do trabalho em esferas pública e privada, a vida política e doméstica,
o mercado de trabalho e o lar, entre tantos outros.
Dessa forma, a pesquisa se deu através de questionários que visavam
delinear o perfil dos doadores e propiciar uma análise sobre os sentimentos
que envolvem a doação para os gêneros.
A doação de sangue, a solidariedade e as questões de gênero
O processo de socialização dos indivíduos está diretamente atrelado às
construções diferenciadas da identidade de homens e mulheres, que variam
conforme o contexto histórico e cultural, mas que para entendê-las é preciso
2109
partir de uma criteriosa análise do conceito de diferença, pois as relações entre
os sexos masculino e feminino são imbuídas de desigualdades de poder,
estereótipos, naturalizações e práticas discursivas. No campo da historiografia,
depois dos anos de 1960 houve um tratamento relacional e científico da história
das mulheres, segundo Priori (2007) isso ocorreu,
Com o ensejo de produzir um conhecimento que recuperasse a experiência de homens e mulheres em toda sua complexidade, isto é, a presença e significativa participação de ambos na construção histórica. (PRIORI, 2007, p. 34).
A referida autora ainda destaca que após a década de 1970, o gênero
tem sido utilizado para a teorização da questão da diferença sexual, mostrando
uma forma de se rejeitar o determinismo biológico dos termos “sexo” ou
“diferença sexual”, bem como a consideração de gênero como uma construção
social e cultural, que a depender do tempo e espaço em que os indivíduos se
encontram, levam a uma desconstrução da diferenciação social que se atribui
ao masculino e feminino com base na biologia e no sexo.
No mesmo sentido, corrobora o pensamento de Soihet (1997), para a
qual, a construção do universo da mulher sempre foi estruturado de uma forma
a ser o contraponto do masculino, o que acarretaria, segundo a autora, um
problema de construção de identidade:
[...] tornando-se então essencial o exame dos papéis a partir dos conflitos existentes entre imagens e realidade, ou seja, o que as mulheres pensam que são e o que são verdadeiramente [...] Em bloco, as estudiosas da condição feminina nesse período preocupavam-se com o processo de socialização que via sempre a mulher em relação ao homem. Perseguindo um tratamento relacional com bases científicas para essa problemática, as autoras assentam as suas críticas no “Masculinismo”. Para os “masculinistas”, acreditar que o lugar da mulher é na casa e que o seu papel e aptidão para o trabalho derivam da sua anatomia era, e talvez ainda seja, fundamental. Essa é uma argumentação importante e que aparece com frequência em diferentes momentos e discursos. Em decorrência disso, crianças e jovens são socializados de modo sexista, e as mulheres sempre vistas em relação aos homens. (SOIHET, 1997, p. 20-22).
Assim, esta pesquisa visou analisar se encontraríamos também na
concepção de solidariedade uma reprodução vigente nos modelos de
relacionamento das diversas áreas em que se inserem homens e mulheres, ou
2110
seja, se há um modelo implícito a ser seguido para os homens e para as
mulheres, que abordaremos ao apresentarmos os resultados.
O ser humano sofre influências da cultura onde vive e com o qual mantém
contato, experimentando uma diversidade de fatores que atuam em seu
comportamento. A contemporaneidade reflete essa dinâmica sociocultural, e
podemos destacar alguns pontos que são essenciais para o desenvolvimento,
qualidade e manutenção da vida humana. Referimo-nos ao ato da doação de
sangue, que na atualidade é, sem dúvidas, um fator importantíssimo de
integração do ser humano, especialmente no que diz respeito ao
relacionamento entre os componentes da sociedade. Além disso, a doação de
sangue tem sido considerada um ato de amor à vida, um instrumento para
salvar vidas. Nesse ínterim, procuramos abordar quais simbologias o ato de
doação de sangue representa para os doadores, quais efeitos de sentido a
doação significa: se doação de si mesmo, solidariedade, amor à vida, ao
próximo, entre outras questões. O que leva alguns homens e mulheres à
doação de sangue, se tantos outros não o fazem? O que os impulsionam, são
movidos por quais sentimentos e representações?
Em relação à socialidade, Michel Maffesoli afirma:
Parece que a socialidade escapa, cada vez mais, ao utilitarismo, que foi o estilo da modernidade (o que deveria estimular-nos a não querer mais ser instrumento da utilidade). Na verdade, observa-se uma conjunção sempre maior entre o sonho e a realidade. Essa imbricação estreita constitui essa sociedade complexa em que todos os elementos interagem uns como os outros. O princípio causal simples caducou. O mesmo ocorreu com a teleologia racionalista. Assiste-se ao retorno de um tempo imóvel, de um presente eterno, o do mito e do simbolismo. (MAFFESOLI, 2009, p. 73).
Em se tratando da palavra solidariedade, faz-se necessária a lembrança
do cunho etimológico. Quando falamos solidariedade sempre temos como
cenário secundário as palavras latinas solidum (totalidade, soma total,
segurança) e solidus (sólido, maciço, inteiro). A definição sociológica de
solidariedade do Dicionário Aurélio traz-nos o seguinte:
1-Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade. 2-Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se
2111
sinta na obrigação moral de apoiar o(os) outro(os). (HOLANDA, 1986, p. 1606).
Todavia, faz-se necessário dizer que para o senso comum a solidariedade
está fortemente ligada ao campo das emoções. Seria uma sensibilidade para
com os outros que leva a uma atitude de caridade, se olhássemos pelo sentido
religioso. Se tomarmos por base a doação de sangue, nossa pesquisa
demostrou que esta relação de responsabilidade com quem necessita não se
confirma totalmente na atualidade, já que ela demonstrou que alguns
sentimentos estão permeados agora por fatores outros, tais como a
possibilidade de vir a necessitar de sangue no futuro; ou faz a doação para
repor o sangue utilizado por um familiar, amigo ou conhecido.
É possível solidariedade sem reciprocidade? Parece-nos que o equívoco
está em colocar o significado da solidariedade imediatamente no campo do
agir, da ética, dos resultados. Sabemos que o agir segue o ser. Portanto,
somente podemos tomar atitudes solidárias porque existe uma solidariedade
essencial em nossa identidade humana. Para Edgar Morin (2008, p. 32), foi a
solidariedade que permitiu o salto da animalidade à humanidade.
Aqui entramos no âmago da nossa questão: quais seriam os
pressupostos antropológicos da solidariedade? Para Fernando Henrique
Cardoso:
Parece claro que a emergência do conceito de solidariedade é epocal. Ela é o espaço conceitual de encontro entre a superação do mito moderno do indivíduo em estado puro, a insuficiência antropológica das “teorias da dependência”, que geraram os movimentos emancipatórios de libertação, os anseios ainda um tanto vagos de “inclusão”, os sistemas político econômicos de matiz socialista e neoliberal, uma psicologia refém do indivíduo e a psicologia social. Solidariedade é, hoje, um espaço de consenso conceitual. Progressistas e conservadores o utilizam sem culpa. Mas o que significa exatamente? O perigo do consenso é significar tudo e nada ao mesmo tempo. (CARDOSO, 1970, p. 47).
Assim, apesar de a solidariedade obter por parte dos estudiosos como
Edgar Morin, Michel Mafesolli, Zygmunt Bauman um consenso, que é muito
parecido ao que citamos acima acerca do verbete, observa-se que na prática,
no que diz respeito ao pensamento e atitudes individuais, o termo apresenta
um sentido mais heterogêneo e diversificado, assim como o ser humano com
2112
suas culturas e suas crenças. Dessa forma, o tema ainda apresenta campo
para uma grande gama de estudos.
Contudo, para Durkheim, existem dois tipos de solidariedade, que têm
correspondência com dois tipos de sociedades: a mecânica e a orgânica. Para
o autor, a solidariedade mecânica é característica das sociedades “primitivas",
ou seja, dos agrupamentos humanos de tipo tribal formado por clãs. Em tais
sociedades, os indivíduos que as compõem compartilham das mesmas noções
e valores sociais, tanto às crenças espirituais, como em tudo o que se refira
aos interesses materiais essenciais e necessários para vida da tribo/clã. Dessa
forma, justamente essa correspondência de valores assegurarão a coesão e a
ordem social.
O outro tipo é a solidariedade orgânica, que ocorre nas sociedades
modernas ou complexas, já que estas contam com um elemento novo: a
individualidade associada à socialidade, característica principalmente das
sociedades capitalistas. Nas quais, os indivíduos além de não compartilharem
dos mesmos valores e crenças sociais, ainda demonstram interesses
individuais e consciência bem distintas de uns para outros.
Dessa forma, é importante ressaltar que o direito na solidariedade
mecânica é repressivo, serve para manter a coesão social, pois qualquer ação
errônea vai contra a consciência coletiva e exige a aplicação de uma pena para
reforçar essa consciência.
Já a solidariedade orgânica é aquela que resulta de uma alta divisão
social do trabalho, na qual o grande número de especialistas faz com que haja
uma interdependência social, ou seja, é a diferença entre os indivíduos que faz
com que haja o vínculo social. Neste sentido, Durkheim afirma:
Em razão da intensa DST, há o predomínio da consciência individual, sendo que cada indivíduo tem uma esfera própria de ação, uma personalidade que na consciência coletiva exerce uma coesão mais intensa, pois os indivíduos dependem mais uns dos outros. Nessa forma de solidariedade, os indivíduos estão agrupados não mais segundo as relações de descendência, mas segundo a natureza particular da atividade social que exercem. Temos como exemplo a sociedade capitalista. O direito nessa solidariedade é restitutivo ou cooperativo, em que as ações ferem a uns indivíduos e não a outros. Esse tipo de direito pretende fazer com que o indivíduo esteja apto ao retorno à vida em sociedade. Portanto, há uma correlação entre os tipos de consciência que determina o tipo de solidariedade e de
2113
direito que mantém o elo entre os indivíduos no interior de uma determinada sociedade. (DURKHEIM, 2012, p. 106).
Por fim, Maffesoli destaca: “As sociedades mecânicas, das quais a
modernidade é um bom exemplo, tendem a homogeneizar-se, tomando por
fundamento um único valor ou um conjunto de valores diretamente
operacionais”. (2009, p. 17).
Os autores citados acima parecem concordar que a solidariedade sempre
foi um dos traços das sociedades, tanto antigas quanto modernas, bem como
concordam também em sua distinção entre mecânica e orgânica, portanto, de
uma forma ou de outra, a solidariedade é um traço inerente da condição de
vida em sociedade.
A solidariedade e as representações de gênero
Nosso olhar para essa temática ocorre pela perspectiva histórica, uma
vez que procuramos entender as motivações, sentimentos, significados e
simbologias do ato de doação de sangue entre os doadores da região, nesse
caso, no contexto sociocultural de Campo Mourão, entre os anos de 2010 e
2012 e também porque partimos da premissa de que os papéis de gênero
podem ter implicações diretas no número de doadores masculinos e femininos
e também nas significações e razões para fazê-lo, principalmente na questão
da solidariedade implícita no processo.
Para desenvolvimento da pesquisa optamos em coletar os dados (sexo,
idade, escolaridade, raça/etnia, situação socioeconômica) agregados a um
questionário por nós elaborado, que trata em levantar não somente dados do
perfil de doadores, mas também questões subjetivas ao ato de doação de
sangue. O questionário seria aplicado, a princípio, a um grupo de 30 homens e
30 mulheres, doadores de sangue. Entretanto, não pudemos coletar a
totalidade que desejávamos, tendo em vista dificuldades em abordar doadores
do período proposto. Assim, aplicamos o questionário a 20 homens e 20
mulheres, doadores de sangue, no recorte temporal abordado.
A aplicação do questionário, fez-se de forma aleatória, até que se
completou o número satisfatório de inquiridos/as. A partir daí fizermos a análise
2114
e discussão dos dados obtidos, abordando aspectos relacionados ao
sentimento de solidariedade, motivações, significados para o ato da doação de
sangue, percebendo as prováveis diferenças entre os gêneros na questão do
sentimento de solidariedade.
Neste sentido avaliamos outro estudo que visava identificar o tipo de
solidariedade em um Banco de Sangue do Estado de Santa Catarina,
elaborado por PEREIMA E REIBNITZL (2008), no qual suas autoras chegaram
à conclusão que, naquele local, o tipo de solidariedade seria o orgânico,
levando-se em consideração a maioria dos doadores pesquisados:
A maioria das doações de sangue efetivadas no HEMOSC de Florianópolis (16) tem se apresentado, nos últimos anos, conforme dados estatísticos obtidos no banco de dados da instituição, na perspectiva de solidariedade orgânica, ou seja, de forma espontânea, voluntária, por querer estar com o outro, pelo afetual e pela ética da estética. (PEREIMA, 2008. p 325).
Para averiguarmos o tipo de solidariedade que prevaleceria entre os
doadores inquiridos/as nesta pesquisa elaboramos questões nas quais os
mesmos pudessem elencar as motivações para serem doadores. Constatamos
que o tipo de solidariedade praticado na instituição, levando em consideração a
maioria das respostas, é a orgânica, ou seja, pode-se dizer tomando por base
as definições e estudos de Durkheim e Maffesoli, que as doações de sangue
dos indivíduos da região estudada são motivadas por questões ligadas ao
sentimento de pertencer a totalidade, de estar junto, de fazer-se importante ao
dar algo de si tão importante. E por outro lado, identificamos uma reduzida
parcela de doadores que podem ser considerados doadores mecânicos, pois, é
importante salientar que encontramos indivíduos que ainda pensam no bem
estar da “tribo” – no caso, a sociedade - e mantém sua forma de contribuir com
o outro.
No que se refere à questão das “representações” de gênero, o autor
Roger Chartier (1991) destaca que na sociedade, tudo pode ser entendido
como representação e prática. Para o citado autor, representações dizem
respeito ao modo como em diferentes lugares e tempos a realidade social é
construída por meio de classificações, divisões e delimitações. Tais esquemas
intelectuais criam figuras e estas figuras dotam o presente de sentidos. Quanto
2115
às práticas, estas também são plurais, pois são as formas que os grupos se
apropriam das representações individuais ou coletivas, seja por aceitação ou
imposição.
Por tal viés, o autor afirma que as formas de poder em geral, sejam elas
políticas ou religiosas, seriam formas de dominação para organizar a sociedade
ou para diferenciar grupos. Dessa forma, as representações estão sempre
presentes e observadas nas entrelinhas e nas linhas de todos os atos que a
humanidade conjuga, tanto coletiva como individualmente. Portanto, de tais
representações decorrem as práticas e principalmente, como essas práticas
são interpretadas no seio das sociedades em diferentes tempos. Chartier
propõe essas noções e incorpora assim, muitos elementos de outras ciências
importantes para a compreensão e análise das representações e práticas, tais
como a sociologia, a antropologia e a história das mentalidades.
Desse modo, ao estudar como as relações são estabelecidas entre o que
representam e as práticas que são geradas a partir das mesmas, Chartier torna
evidente que os historiadores observam questões cotidianas e subjetivas,
deixando de lado ou confrontando com fontes documentais, fazendo da história
uma ciência mais ampla e ao mesmo tempo mais complexa, haja vista que
exige do historiador a capacidade de saber medir quão sério são os
documentos oficiais, bem como dar a relevância necessária para as
representações e práticas. Portanto, Chartier, quando desenvolve o conceito de
representação, faculta ao historiador reconstruir as condições de produção de
textos e documentos, por meio da prática de produção, leitura e recepção dos
textos, ao entender que há um grande universo simbólico que envolve os
documentos. Neste sentido, ele assinala:
A partir deste terreno de trabalho em que se enredam o texto, o livro e a leitura, podem-se formular várias proposições que articulam de maneira nova os recortes sociais e as práticas culturais. A primeira alimenta a esperança de levantar os falsos debates em torno da divisão, dada como universal, entre as objetividades das estruturas (que seria o território da história mais segura, que, ao manipular documentos maciços, seriais, quantificáveis, reconstrói as sociedades tais como verdadeiramente eram) e a subjetividade das representações (a que se ligaria uma outra história dedicada aos discursos e situada à distância do real). Uma tal clivagem atravessou profundamente a história, mas também as outras ciências sociais como a sociologia ou a etnologia, opondo abordagens estruturalistas e procedimentos fenomenológicos, as primeiras trabalhando em
2116
grande escala sobre as posições e as relações dos diferentes grupos, muitas vezes identificadas a classes, os segundos privilegiando o estudo dos valores e dos comportamentos de comunidade mais restritas,muitas vezes tidos como homogêneos (CHARTIER, 1991, p.183)
Conforme afirmamos anteriormente, gênero aparece no vocabulário
historiográfico para suprir uma lacuna, para se tornar uma categoria de análise
histórica em oposição a uma história masculina e universalizante.
A conceitualização de gênero tem intenção de desbancar conceitos
arraigados historicamente e que reforçavam essencialmente que as diferenças
entre homens e mulheres seriam biológicas. O gênero surge com o intuito de
estabelecer um arcabouço teórico que pudesse trabalhar com as relações
existentes entre os sexos. Para Matos (1997), não há dúvida que a categoria
gênero reivindica um território específico, por conta de insuficiência das teorias
que existem para explicar a continuidade da desigualdade entre mulheres e
homens. Segundo a autora:
Enquanto nova categoria, o gênero vem procurando dialogar com outras categorias históricas já existentes, mas vulgarmente ainda é empregado como sinônimo de mulher, já que seu uso teve uma acolhida maior entre os estudiosos deste tema. [...] Por sua característica basicamente relacional, a categoria gênero procura destacar que os perfis de comportamento feminino e masculino definem-se um em função do outro.[...] Não se deve esquecer, ainda, que as relações de gênero são um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças hierárquicas que distinguem os sexos e são, portanto, uma forma primária de relações significantes de poder. (MATOS, 1997 p. 97).
Como se nota, a autora ressalta a importância de se entrecruzar
elementos como cultura, classe, etnia, geração e ocupação para se
acompanhar a diversidade na construção social dos gêneros. Samara (1997)
discute como as variáveis raça e classe, atreladas a outras categorias, com
vistas à realização de estudos comparativos, dão novas cores às diferenças e,
por outro lado e ao mesmo tempo, realçam e permitem a compreensão de
semelhanças e singularidades no que se refere à questão da identidade.
Já Rachel Soihet (1997) explicita que a crítica historiográfica que opôs
as categorias históricas universais às ideias de diferença e de múltiplas
identidades para as mulheres, traz uma reflexão que propõe um debate voltado
para a história social e seu eixo ligado à investigação das relações de poder
2117
que acontecem cotidianamente, enfatizando na análise das práticas e
representações que constituem a experiência social e cultural dos sujeitos.
Provavelmente, a autora esteja se referindo ao tratamento quase nulo que
os historiadores deram ao papel da mulher na história, ou quando deram-lhe
visibilidade foi de uma forma pejorativa, de inferioridade, de complementação
dos feitos dos homens. Podemos tomar como exemplo a história regional, na
qual não se há menção das primeiras habitantes, ou das “pioneiras”, mas
exalta-se apenas a figura do homem, do “pioneiro”, e quando se remete às
mulheres, é como se elas fossem extensão deles, “a esposa do pioneiro”.
Sendo assim, Soihet (1997) destaca a importância de se trabalhar com a
categoria gênero nos estudos referentes aos interesses e jogos de poder
relativos às políticas de Estado e demais instituições sociais. A ênfase é para a
necessidade de um trabalho voltado para a história do cotidiano e das
mulheres, de forma a garantir maior visibilidade aos processos sociais em que
estas viveram. A autora ainda aponta críticas a uma historiografia sobre as
mulheres que seja construída dentro dos mesmos pressupostos metodológicos
e mesmos marcos políticos e cronológicos de uma história escrita pelos setores
dominantes e do ponto de vista masculino.
De fato isso é essencial para que consiga uma equiparação
historiograficamente falando, do papel da mulher ao do homem na construção
histórica, tanto no passado quanto no presente.
Eni de Mesquita Samara (1997) propõe uma discussão em torno da
utilização das categorias gênero e identidade nos estudos sobre as mulheres
na América Latina. Ela se preocupa em discutir como a historiografia tem
abordado a condição feminina e as relações entre os sexos, e para isto
apresenta uma discussão da produção bibliográfica publicadas na
contemporaneidade, tanto nos Estados Unidos e em outros países da América
Latina.
Ora, sabemos que a diversidade cultural entre os povos da América
Latina é gigantesca, apesar de termos em comum alguns fatores idênticos, tais
como a colonização ibérica e a utilização do trabalho escravo. Mas é complexa
a universalização de temas e generalização de fatores constitutivos destas
culturas, assim a questão da abordagem do papel da mulher pela historiografia
2118
torna-se mais um dos fatores primordiais a serem equacionados pelos
pesquisadores.
Neste sentido, Samara conclui que:
[...] apesar das tradições culturais comuns, é impossível traçar um perfil único para a mulher da América Latina, sendo assim, é necessário, nas pesquisas sobre gênero, estar atento às “diferenças”, tendo, também, sensibilidade para entender as semelhanças.( SAMARA, 1997, p. 45).
Para a historiadora norte-americana, Joan Scott, as abordagens utilizadas
pela maioria dos historiadores se dividem em duas categorias distintas. A
primeira é essencialmente descritiva, isto é, se refere à existência de
fenômenos ou realidades sem interpretar, explicar ou atribuir uma causalidade.
A segunda abordagem é de ordem causal, ela elabora teorias sobre a natureza
dos fenômenos e das realidades, buscando entender como e porque aqueles
tomam a forma que eles têm. No seu uso recente mais simples, “gênero” é
sinônimo de “mulheres”. Livros e artigos de todo o tipo, que tinham como tema
a história das mulheres substituíram durante os últimos anos nos seus títulos o
termo de “mulheres” pelo termo de “gênero”. O gênero parece integrar-se na
terminologia científica das ciências sociais e, por consequência, dissociar-se da
política do feminismo.
Ao refletirmos sobre os pressupostos elencados pelas autoras citadas
acima, fica latente que as relações de gênero na contemporaneidade, em se
falando do campo historiográfico, evoluiu e tende a evoluir mais, se levarmos
em consideração os esforços de pesquisadoras e pesquisadores que não se
intimidaram com as pressões e padrões culturais assentados no sexismo, que
visam a manutenção de um status quo, baseado desde a antiguidade no
patriarcalismo e na subjugação da mulher, de alguns grupos étnicos ou grupos
de orientação sexual tidas fora do padrão heteronormativo da sociedade
ocidental judaico/cristã.
Se historiograficamente a questão é polêmica, socialmente ela não pode
ser relegada ou empurrada para debaixo de um tapete qualquer, observamos
que apesar de muitos preferirem manter a “ordem social vigente” como ela foi
concebida por sistemas sociais e culturais excludentes e opressores, nossa
2119
pesquisa mostra que o sentimento de empoderamento da mulher, por exemplo,
no que tange ao fazer aquilo que era tido como tarefa/obrigação do homem, é
assumido e assimilado pelas mulheres, como o ato da doação de sangue.
Assim, abre-se mais um embate nas relações de gênero que faz com que
o homem venha a ter que assumir uma reflexão sobre seu papel, o que gera
conflitos internos naquele que foi culturalmente ensinado a ser o “sexo forte‟, o
„provedor‟.
O termo gênero não implica necessariamente uma tomada de posição
sobre a desigualdade ou o poder, nem mesmo designa a parte lesada (e até
agora invisível). Enquanto o termo “história das mulheres” revela a sua posição
política ao afirmar que as mulheres são sujeitos históricos legítimos, o “gênero”
inclui as mulheres sem as nomear, e parece assim não se constituir em uma
ameaça crítica. Este uso do “gênero” é um aspecto que poderíamos denominar
de procura de uma legitimidade acadêmica pelos estudos feministas.
Para Stearns (2012) a História mundial está intimamente ligada à história
do gênero. Isso nos parece óbvio, haja vista a reivindicação da mulher na
História, por exemplo. E no que se refere à discussão da masculinidade? A
masculinidade passa inicialmente pelos valores de gênero, e para o autor
citado:
Valores de gênero são profundamente pessoais, parte da identidade individual e social. As pessoas podem ser particularmente relutantes em substituir padrões que definem feminilidade e masculinidade, mesmo quando pressionadas por uma sociedade que parece excepcionalmente e bem sucedida, ou podem buscar formas de compensar quaisquer concessões que sejam obrigadas a fazer. (STEARNS, 2012 p. 18)
Ao longo dos séculos, o homem se encontrava numa posição confortável
em relação às mulheres e isto perdurou até que elas reivindicaram ou iniciaram
a reivindicação de primária de seus direitos de humanas, tanto na História
quanto na sociedade. E dessa forma, os embates, intelectuais e até mesmo na
prática do cotidiano, se acirraram a partir de 1960 e, posteriormente com
muitas e muitas adesões. Ocorre que esta movimentação feminina em torno de
seus direitos, está levando uma parte dos homens a se questionarem quanto a
sua posição na relação dos gêneros, ou até mesmo de se “encontrar” ou se
2120
definir quanto “masculino”. Em suma, o movimento das mulheres provocou, por
assim dizer uma ruptura do status quo masculino. Neste sentido, PEDRO e
GROSSI (2000), destaca:
Um indicador desta transformação, muito embora inexista enquanto um movimento organizado nos moldes e com a repercussão do movimento feminista, é o expressivo crescimento dos “grupos de homens” no espaço terapêutico. Mas o importante a ser registrado é que se trata de um fenômeno restrito em termos sócio-culturais, assim como a um tempo histórico, já que normalmente estão na mesma faixa etária: 35 a 50 anos. Em comum, a contestação dos valores herdados de seus pais. Jovens na década de 60, tiveram algum tipo de aproximação com as novas ideias sobre relacionamento homem/mulher, relações interpessoais, sexualidade, enfim, as que se convencionou denominar movimentos de contracultura. Não ignoram o movimento feminista, que a partir de da década de 70 tem grande penetração nesta camada social. (PEDRO e GROSSI, 2000, p. 132).
As autoras mostram que há um temor dos homens, pois ser homem é
essencialmente não ser mulher e isto, segundo elas, é um dos maiores
impasses que enfrentam os homens que de alguma forma querem transformar
o modelo de masculinidade que aprenderam com os pais, ou seja, o medo de
serem vistos como não homens, já que a identidade de gênero é relacional e
mediada pela cultura e construída através de aproximação gerada pela
identificação e pelo distanciamento, fruto da diferenciação. Assim a
possibilidade do equilíbrio destes dois movimentos dependeria de os homens
descontruírem os significados que têm internalizados do que é ser mulher.
Tal reflexão sugere que os homens possuiriam uma forma diferente de
construção da subjetividade, exclusiva dos mesmos, o que tornaria as
diferenças entre homens e mulheres irrelativizáveis. Portanto, Pedro e Grossi
(2000), concluem que esta “crise” do masculino é muito mais estrutural e que é
resultado de como se constrói a subjetividade masculina em confronto com as
exigências de mudança colocadas a partir de um referencial feminino.
O perfil dos doadores e suas motivações
A seguir, apresentamos os resultados alcançados na pesquisa, numa
perspectiva histórica, e mais que dados quantitativos, há também uma
2121
abordagem qualitativa, pois delineia o perfil de homens e mulheres, doadores
de sangue, dos quais responderam ao nosso questionário 20 mulheres e 20
homens.
A análise dos dados coletados por meio da aplicação de questionários
nos permitiu traçar o perfil socioeconômico de homens e mulheres, doadores
de sangue, abordando variáveis como escolaridade, profissão e faixa salarial,
bem como questões subjetivas relacionadas ao sentimento de doar de sangue,
e ainda os significados que o ato de doação representa para as pessoas
inquiridas.
Podemos afirmar que os homens e mulheres, doadores de sangue, na
nossa região, no recorte temporal estudado, é composto essencialmente por
trabalhadores do comércio, funcionários públicos de diversos escalões, entre
eles professores, e também pequenos agricultores ou trabalhadores rurais,
assim como trabalhadoras do lar, empregadas domésticas, e alguns
profissionais liberais. Pode se dizer que na maioria, estes doadores compõem
o que a economia denomina de classe média baixa.
Em relação aos dados socioeconômicos tivemos os seguintes resultados,
conforme tabelas abaixo:
Tabela 1: Faixa etária de doadores, por sexo (%)
Faixa Etária
Mulheres Homens Total
16 a 20
21 a30
31 a 40
41 a 50
51 a 60
61 a 69
05
45
45
05
0
0
0
35
35
20
10
0
05
80
80
25
10
0
TOTAL 100% 100% 100%
2122
Fonte: Dados coletados via aplicação de questionários aos doadores de sangue
Tabela 2: Identificação da cor de doadores, por sexo (%)
Cor Mulheres Homens Total
NEGRA
BRANCA
PARDA
AMARELA
05
70
25
0
05
65
25
05
10
135
50
05
Total 100 100% 100%
Fonte: Dados coletados via aplicação de questionários aos doadores de sangue
Tabela 3: Escolaridade de doadores, por sexo (%)
Escolaridade Mulheres Homens Total
Não Alfabetizada
E Fund Inc.
E Fundamental
Médio Inc.
Médio
Superior
05
15
10
0
20
50
0
0
25
0
30
45
05
15
35
0
50
95
TOTAL 100% 100% 100%
Fonte: Dados coletados via aplicação de questionários aos doadores de sangue
2123
Tabela 4: Faixa Salarial de doadores, por sexo (%)
Faixa Salarial Mulheres Homens Total
Até 01 Sal.
De 01 a 03 sal.
De 03 a 05 sal.
De 05 a 07 sal.
Acima de 07 sal
35
55
10
0
0
05
50
25
10
10
40
105
35
10
10
TOTAL 100% 100% 100%
Fonte: Dados coletados via aplicação de questionários aos doadores de sangue
Em relação às tabelas demonstradas acima, fica evidente que a faixa
etária (Tabela 1) dos doadores da região, com base nos dados coletados, se
situa entre os mais jovens; e com maior concentração na faixa entre 21 anos
de idade até os 50 anos, com uma pequena amostra além desta faixa etária
para os homens e completa ausência de doadores mulheres acima da mesma,
que para a doação de sangue chega aos 69 anos. Provavelmente este dado,
que não é objeto de nossa pesquisa, possa ser analisado por profissionais
ligados à saúde e a captação de doadores.
Contudo, podemos dizer, de certa forma, que resida aí a diferença no
número de doações das mulheres, tendo em vista que os dados do
Hemonúcleo do mês de julho de 2014, apontam que as doações masculina
são 40% maiores que as doações de mulheres. Isto pode significar, tanto um
dado de saúde pública, quanto uma questão de gênero. De saúde pública,
quando tentamos compreender porque as mulheres, numa determinada faixa
etária doa menos sangue que os homens. Seria por problemas de saúde nesta
faixa? Ou seria por impedimentos outros relacionados ao gênero que as
dificultam de doar nesta idade? Como já dito anteriormente, esse dado pode
ser o ponto de partida na busca de se visualizar o que acontece e por que
acontece.
2124
Inicialmente, na questão relacionada a orientação sexual, todos os
participantes se declararam heterossexuais. Faz-se necessário dizer acerca
dessa questão um fator interessante, que é o fato de ser vedado ao doador
homossexual masculino a doação de sangue. E esta proibição é determinada
por lei do Ministério da Saúde, determinada pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), através da Portaria 1353/2011. Esta portaria
segue uma diretriz, que estabelece que na politica de doação de sangue haja
um pressuposto básico de saúde pública que visa assegurar que não ocorra
discriminação. Se utiliza também, de outro pressuposto, que assegura que
quando há risco aumentado, prevalece o interesse coletivo em detrimento do
indivíduo. Sendo assim, se o doador revelar ser homossexual masculino, com
vida sexual ativa, ele será impedido de doar temporariamente. Por outro lado, a
homossexualidade feminina não gera impedimento para a doação. Parece que
esta é uma questão que tem necessidade urgente de ser revista e
regulamentada, tendo em vista seu caráter excludente e discriminatório para
com o homossexual masculino.
Em se falando da identidade racial (Tabela 2), constatamos que 70%
(homens e mulheres) dos entrevistados se autodenominaram brancos, sendo
destes 65% dos homens e 75% das mulheres. Como sendo pardos, 22,5% da
amostragem total se identificou como tal, dos quais 25% das mulheres e 25%
dos homens. Constatamos ainda, que apenas 5% deles se identificaram como
negros, com um percentual idêntico para ambos os gêneros. Ainda
observamos entre os homens 5% identificados como amarelos.
No entanto é no binômio escolaridade/renda (Tabelas 3 e 4) que notamos
uma diferença muito significativa entre os gêneros, senão vejamos: 50% das
mulheres possuem e/ou estão cursando o curso superior/pós graduação,
contra 45% dos homens na mesma situação. 25% deles possui o ensino
fundamental incompleto e os outros 30% cursaram ou cursam o ensino médio.
Já entre as mulheres, constatamos que 20% concluiu ou cursa o ensino médio
e outros 25% concluíram ou estudam no ensino fundamental e 5% não possui
escolaridade nenhuma.
Embora a escolaridade feminina seja numericamente um pouco maior que
a masculina nos dados coletados, o mesmo não acontece com a
2125
remuneração/renda recebida. Enquanto entre os homens, 45% recebem entre
3 e 7 salários, (sendo que destes, 20% recebem entre 5 e 7 salários) 50%
estão na faixa que recebem entre 1 e 3 salários e apenas 5% recebem até
1salário.
No caso das mulheres constatamos uma concentração na faixa entre 1e 3
salários (55%) e temos 35% que recebem até 1salário. Contudo, não temos
trabalhadoras que recebam entre 5 e 7 salários. Numa clara desvalorização
profissional das mulheres. Ora, isto não deveria ser surpresa, pois em pesquisa
de 2008 do IBGE, descobriu-se que mulheres com nível superior recebem 60%
do rendimento dos homens. E segundo os dados daquele Instituto, no mesmo
ano, vemos que a distribuição entre as atividades econômicas, das mulheres
ocupadas verificamos que 16,5% estavam nos Serviços Domésticos ; 22,0% na
Administração Pública, Educação, Defesa, Segurança, Saúde; 13,3% nos
Serviços prestados à Empresa ; 13,1% na Indústria, 0,6% na Construção ,
17,4% no Comércio e 17,0% em Outros Serviços e Outras Atividades.
Outra avaliação com dados da PNAD, em 2001, mostra que cerca de 40%
dos homens e 90% das mulheres declararam desenvolver atividades
domésticas. Também nesse aspecto, além da discriminação a que as mulheres
estão sujeitas, os problemas relacionados ao uso do tempo por homens e
mulheres fora de suas atividades profissionais parecem ser relevantes para a
explicação da situação desfavorável destas quanto ao acesso a ocupações
melhor remuneradas.
Como o tema de nossa pesquisa não trata acerca da discriminação
salarial das mulheres, apesar de ser muito relevante e se tornaria necessário
outra pesquisa para tratar especificamente deste assunto, passamos adiante
sem, no entanto, esquecermos que em nossa amostra o problema se mostrou
saliente.
Ao analisarmos a totalidade das respostas vemos que nas
representações, no que diz respeito ao ato de doar sangue, os sentimentos
expressos tanto de homens quanto de mulheres, num primeiro olhar, são
parecidos, ou, indiferenciáveis, já que vemos respostas univocabulares para
muitas das perguntas tanto de homens quanto de mulheres, são respostas
como: “feliz”, “realizado(a)” “amor”, “amor ao próximo”, “satisfeito(a)”. Isso nos
2126
leva a pensar em algumas hipóteses, teria sido nossas questões de difícil
compreensão aos abordados? Porém, também vemos que nenhuma das
pessoas entrevistadas deixou de responder qualquer questão. Assim, podemos
crer que ali estavam expressos os sentimentos que lhes vinham a cabeça,
como, aliás, era a nossa intenção, buscar o sentimento que surgisse sem
elaboração, com a emoção, ou não, em alguns casos.
E por outro lado também observamos a recorrência de palavras-chave
nas respostas das quais destacamos: amor, solidariedade, gratidão.
Contudo, fica nítido dois discursos diferentes nas “entrelinhas” ao menos
na maioria das respostas tanto de homens quanto de mulheres. E os
sentimentos expressos neles são duas maneiras distintas de exercer a
solidariedade: para os homens ela é exercida pelo poder ou pela obrigação, e
em alguns casos pela troca da doação pelo resultado dos exames que são
feitos, ou seja, a doação é feita com vistas a outro fim que não ajudar o
próximo, salvo exceções, já que não podemos nem devemos ser
generalizantes, e tratamos da análise do discurso do outro. Se para os homens
o sentimento “escondido” é o de poder, já para as mulheres o sentimento é o
de “fazer parte”, de pertencer, de novo, salvo exceções.
Em relação aos sentimentos de um modo geral, ficou evidente nas
respostas das pessoas inquiridas que o que as move à doação de sangue, são
especialmente dois motivos: a prática da solidariedade e o amor à vida, ao
outro. Isso pode ser percebido nas respostas abaixo:
Doador 1: “Ajudar as pessoas que precisam”.
Doadora 1; “Satisfação em saber que eu posso estar salvando uma vida.”
Doador 2: “A gente se sente muito bem, a gente sabe que tá salvando
uma vida a gente tá fazendo o bem.”
Doadora 2: “Solidariedade.”
Doador 3: “Porque já vi muita gente precisar de sangue e não ter, o
sentimento é de salvar uma vida.”
Doadora 3: “O sentimento de amor ao próximo, de esperança, me sinto
uma pessoa melhor sabendo que posso ajudar pessoas que necessitam.”
Doador 4: “Principalmente o sentimento de amor no seu, principal
significado que é doar-se ao próximo.”
2127
Doadora 4: “Sentimento de solidariedade.”
O sentimento de servir ao próximo em sua necessidade é o mais
acentuado. Observamos também que os sentimentos desses doadores trazem
uma carga de manifestação religiosa (cristã), que justifica e os move no sentido
de ajudar o próximo. Constatamos, dessa forma, que neste grupo há uma certa
convergência no que se refere aos sentimentos em relação à doação de
sangue.
No que tange aos motivos da doação encontramos algumas diferenças,
assim, vejamos:
Doador 1: “Reposição para amigos.”
Doadora 1: “A primeira vez que doei foi pelo meu curso de Pedagogia.
Todos os alunos vieram. Depois disso sempre doo, pois penso muito nas
pessoas que necessitam, vejo através da TV que está diminuindo o número de
doações por causa do frio, então o sentimento de amor aos outros me leva a
doar.”
Doador 2: “ajudar o próximo, gratidão a Deus, ser mais generoso.”
Doadora 2: “Ajudar aos que necessitam.”
Doador 3: “Para salvar uma vida acho. A gente não sabe quando vai
precisar sempre que doo sangue me sinto bem.”
Doadora 3: “Além de voluntária, para ajudar uma amiga que precisa de
horas de estágio.”
Nesta relação vemos que os motivos podem ser variados, mas ainda
permanece aquele sentimento da ajuda ao próximo, seja por quais motivos
sejam e o sentimento de cumprimento das premissas da religião. É evidente
também, que tanto as mulheres, quanto os homens, apresentam uma gama
diversificada para os motivos que os levaram doação.
Dessa forma, após análise dos questionários, podemos assinalar que
de forma geral, a motivação dos doadores que entrevistamos giram em torno
da solidariedade e de amor ao próximo. E do ponto de vista simbólico podemos
afirmar que na maioria, os doadores se sentem de fato como elementos
importantes, cumpridores do dever e que são de certa forma, seres parecidos a
míticos heróis que com seu ato altruístico e de doação de si mesmo são
salvadores de vidas.
2128
No tangente à implicação dos papéis de gênero serem capazes de
influenciar no número de doações de homens e mulheres, constatamos que
isto pode ocorrer, conforme citamos anteriormente, em relação a faixa etária de
mulheres próximas ao que se convencionou chamar atualmente de terceira
idade, faixa esta que dentro do perfil abordado não apresentou doadoras.
Provavelmente, há outros fatores de gênero, não identificados por nós, mas
que de fato influenciem no menor número de doações femininas, já que em se
tratando da questão de solidariedade em si não há diferenciação entre homens
e mulheres.
Por outro lado, constatamos com base no questionário, que os
significados de ser doador implícitos para homens e mulheres, salvo equívoco,
são diferentes. E o são naquilo que é tomado como masculino e feminino por
parte dos homens. Como vimos anteriormente, os homens tendem a “se
fechar” num universo cultural que lhes deem segurança e que não traga
dúvidas sobre serem masculinos. Assim, eles utilizam, salvo exceções, a
doação de sangue como modo de se auto-afirmarem como machos. Mesmo
que isto não esteja explícito nas respostas, pode-se perceber nas entrelinhas
dos discursos uma saliente afirmação de poder masculino.
Já no discurso da maioria das mulheres vamos observar um sentimento
literal de doação de apoio ao outro, de estar perto do próximo, o que
poderíamos pontuar que se aproxima muito da solidariedade orgânica.
Sendo assim, comparamos algumas respostas:
Doador 1: “Bem, ajudar não faz mal a ninguém,”
Doadora1: “Maravilhosamente bem.”
Doador 2: “Com certeza. Porque além da gente ter saúde para repartir
com os outros, a gente salva vida também.”
Doadora 2: Porque é um ato de voluntariado com as pessoas que
precisam da reposição de sangue.”
Doador 3: “Sim, porque todos estamos sujeitos a precisar”.
Doadora 3: “Me sinto com esperança que posso estar ajudando e até
salvando uma ou até mais vidas.”
Doador 4:“Me sinto com dever cumprido com a sociedade.”
2129
Doadora 4: “Cada vez que eu venho e já me sinto realizada, eu me sinto
muito bem doando sangue.”
Doador 5: “Realizado em saber que de certa forma fiz minha parte como
cidadão, não como obrigatoriamente (sic), mas como pessoa em si.”
Doadora 5: “Sim eu acho importante porque é sinal de amor ao próximo,
ajudar as pessoas é uma alegria.”
É importante salientar que encontramos similaridades entre homens e
mulheres em algumas respostas, como por exemplo, no caso da doação em
troca do exame, que em ambos os casos sugerem um interesse diferente
daquele de ser solidário, mas a referência da maioria em relação a salvar vidas
foi explícito, contudo, com um olhar mais atento ficarem visíveis que ocorrem
algumas diferenças nas entrelinhas discursivas de ambos. Ou seja, não se
trata de dizer aqui, que as mulheres são mais solidárias que os homens, se
trata de dizer que comprovamos que ambos os gêneros tem a atitude solidária,
mas por sentimentos e motivações diferentes na maioria, impostas ainda por
um complexo sistema que dita as normas de ser homem e mulher, que na
maioria das vezes são imperceptíveis àqueles que se identificam como tal em
face daquilo que o outro é, ou seja, na doação de sangue, os homens também
são homens porque não são mulheres. É isso que eles parecem afirmarem ao
doarem. Ao contrário, as mulheres doam porque se sentem bem em fazê-lo.
Considerações finais
A doação de sangue é um ato de solidariedade e pode estar vinculado a
alguns fatores, ou seja, pode ser um ato voluntário ou quando se repõe o
sengue usado por alguém do circulo do doador, amigo, familiar, colega de
trabalho, etc. Também existem muitas variáveis que podem incidir sobre o
número de doadores de sangue, entre elas podemos dizer que o fator gênero
pode incidir também.
Em se tratando das doações feitas para serem distribuídas pelo
Hemonúcleo de Campo Mourão, Paraná, podemos afirmar que os doadores
praticam o que podemos chamar de solidariedade orgânica, pois as pessoas
dispostas nesta amostra e que se dispuseram a falar demonstraram ser em sua
2130
maioria pessoas que se importam com o outro e que são capazes de atos que
os venham a torna-los seguros e saudáveis, ou até mesmo salvando-lhes as
vida literalmente ao doarem o próprio sangue.
Outra constatação é a de que o futuro regional em relação a doação de
sangue é promissor, tendo em vista que a pesquisa demonstrou que maioria de
doadores é composta de jovens estão se disponibilizando a se tornarem
doadores de sangue e mostrando que se importam com o próximo, ou seja,
ainda existem muitas pessoas solidárias e elas continuarão a existir. Perceber
isso na pesquisa nos surpreendeu, pois nossa abordagem foi aplicada a
homens e mulheres, doadores de sangue, num recorte temporal no qual se
fazia necessário que a pessoa entrevistada já fosse doador(a), portanto não
pressupúnhamos que haveria um perfil tão jovem.
Também comprovamos que as questões de gênero podem ser abordadas
na dinâmica da doação de sangue e que tais relações são explícitas e carentes
de estudos mais aprofundados. As representações de gênero na doação de
sangue se mostraram importantes e requerem sua relevância como nos
diversos setores da sociedade brasileira. Assim acreditamos que este trabalho
apresentou um novo caminho ainda não trilhado.
Enfim, também é possível que na doação de sangue as representações
masculinas tendem a manifestar poder, em praticar um ato heróico de doação,
ao pragmatismo, ao sentimento de obrigação ou de troca. Ou seja, o doador
dessa região pertence ou sofre os ditames culturais e sexistas no que diz
respeito a ser homem e, na sua maioria continua a perpetuar este modelo que
está vigente desde os primórdios da história humana, mas que apresenta
mudanças desde os anos 1960 até a contemporaneidade. Também o doador
dessa região, tenta se autoafirmar como masculino por oposição ao feminino e
demonstra na maioria que doa sangue como forma de afirmação de “poder”
masculino.
As representações aparentes com relação as mulheres nos levam a crer
que elas praticam a doação de sangue como um ato de pertencer à
comunidade, de realizar isto de uma forma natural e devocional e que na
maioria se sentem realizadas com tal ação. Por outro lado, vimos que a
incidência do fator gênero pode incidir no número menor de doadoras de
2131
sangue e que os fatores podem ser, desde questões de saúde, ou mesmo pela
própria condição de impossibilidade da mulher em doar, face ao modelo
discriminatório que exige das mesmas um desdobramento para conciliar
trabalho e os cuidados com a casa o que poderia afastar, dessa forma a
doadora que se encontra numa faixa etária acima dos 40 anos.
Finalmente, a constatação do crescente número de jovens doadores, bem
como de que nosso tipo de doador é do tipo solidário orgânico (a maioria), traz
um alento para este setor público que necessita essencialmente deste
voluntariado. E acreditamos que os resultados dessa pesquisa possam
contribuir no sentido de mostrar tais nuances relacionados ao tema, e colaborar
de alguma forma, seja suscitando novos estudos nesta área ou, até mesmo
incentivando as pessoas sobre esse importante ato de humanidade, que é a
doação de sangue.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
CARDOSO, F. H. FALETTO, E. Dependência e desenvolvimento na América Latina; Ensaio de interpretação sociológica, Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados; 1991
DURKHEIM, EMILE. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes; 2012.
JUNQUEIRA, P. C. O essencial da transfusão de sangue. São Paulo: Andrei Editoras, 1979.
MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
__________________. O mistério da conjunção: ensaios sobre comunicação, corpo e socialidade. Porto Alegre: Sulina, 2005.
__________________. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
MORIN, Edgar. O método 3: o conhecimento do conhecimento. . Porto Alegre: Sulina, 2008.
2132
PEDRO, Joana Maria; GROSSI, Miriam Pillar (Orgs). Masculino, feminino, plural: gênero na interdisciplinaridade. Florianópolis: Editora Mulheres, 2000.
PEREIMAL, Rosane Suely May Rodrigues. REIBNITZL, Kenya Schmidt. MARTINILL, Jussara Gue. NITSCHKELL, Rosane Gonçalves. Doação de sangue: solidariedade mecânica versus solidariedade orgânica. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília: 2010.
PRIORI, Claudia. Retratos da violência de gênero: denúncias na Delegacia da Mulher de Maringá (1987-1996). Maringá: Eduem, 2007.
SAMARA, Eni de Mesquita; SOIHET, Rachel; MATOS, M. Izilda S. de (Org.). Gênero em Debate: trajetória e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo, Educ, 1997.
SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (Org). A escrita da História. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. São Paulo: Contexto, 2012.