seminário sobre o "papel do estado e da justiça no sistema capitalista" 5
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Seminário sobre o "Papel do Estado e da Justiça no sistema capitalista" 5TRANSCRIPT
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Marxismo e Teoria do Estado
Luci Praun
“(...) o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido” (Karl Marx, Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel).
A análise e conceitualização do Estado capitalista contemporâneo por parte de
pensadores de origem marxista ou que dialogam com essa vertente tem sido objeto de
constante debate no século XX, particularmente na sua segunda metade.
São diversas as razões histórico-sociais que suscitam essa reflexão. Experiências como
as do Welfare State, vivenciadas de maneira mais profunda nos países europeus desenvolvidos
do pós-guerra, e seu impacto na vida social e na participação política da população,
favoreceram a ampliação do debate sobre o caráter do Estado capitalista. No mesmo sentido,
podemos ainda considerar que a crise de superprodução, evidenciada em meados dos anos
1970 (que explicita os limites do Estado de Bem-estar e da pactuação existente e mediada a
partir da esfera do Estado entre diferentes setores e classes sociais), operou no sentido do
aprofundamento do debate sobre o papel do Estado contemporâneo como instrumento de
regulação das relações sociais.
Outro fator, não menos importante, que clareou o debate sobre o Estado, seu papel e
suas formas de configuração, vincula-se às experiências dos Estados Operários
burocratizados. O colapso destes Estados, também afetados profundamente pela crise dos
anos 1970 e pelos limites impostos ao projeto da revolução pela política desenvolvida pela
burocracia governante, ressoou com força nas elaborações teóricas de um setor que se
reivindica ou dialoga com o marxismo. Degenerados na sua forma e conteúdo, converteram-
se de “arma da classe operária” em “instrumento de violência burocrática contra a classe
operária”1
1 Trotsky, Leon. O Programa de Transição. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sudermann, 2004, p.48.
, trazendo à tona não somente o debate sobre a compatibilidade ou não entre
socialismo e democracia, mas também sobre a possibilidade ou não de efetivação da
democracia para além das regras do jogo do Estado capitalista.
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É nesse marco, portanto, que se insere o debate proposto por Bobbio2
Para Bobbio, existem algumas razões para que o marxismo não tenha avançado neste
sentido. A primeira delas diz respeito ao fato de que o marxismo e os teóricos do socialismo
em geral vêm focando suas análises basicamente na questão da conquista do poder. Fruto
desse olhar, mais que a questão do Estado, ganha relevância a problemática do partido,
enquanto ferramenta fundamental para o alcance do objetivo proposto.
, objeto deste
ensaio. “Existe ou não uma doutrina marxista do Estado?”, questiona o autor, para concluir,
ao longo do texto, pela negativa.
De maneira intrínseca, outra razão para a deficiência da teoria marxista no campo do
Estado relaciona-se, segundo Bobbio, à concepção de transitoriedade da esfera estatal,
posterior à tomada do poder.
Essa situação transitória se materializaria claramente na formulação sobre a existência
de uma ditadura do proletariado. A ditadura, entendida como um tipo de governo excepcional,
fundado na necessidade da classe operária de impor seu domínio frente à dominação da
burguesia, demarcaria assim a condição passageira do Estado. O Estado, portanto, para a
teoria marxista, tenderia ao desaparecimento, na medida em que as relações de dominação de
uma classe sobre a outra perecessem.
Dessa forma, conforme Bobbio, o marxismo, apesar de fornecer importantes
instrumentos para a compreensão geral das relações político-sociais no âmbito do capitalismo,
é deficiente, ou, nas palavras do autor, incompleto no tocante à questão do Estado. Não
consegue dar conta da complexidade das relações engendradas pelo Estado contemporâneo.
Pensa a negação do Estado, e não o Estado.
A não compreensão dessas deficiências por parte de um amplo setor que se reivindica
do campo marxista implicaria, ainda, no entendimento de Bobbio, em novas dificuldades.
Uma delas, que impede o avanço da formulação teórica neste campo, relaciona-se ao
persistente uso do discurso de autoridade.
2 Bobbio, Norberto. Qual Socialismo?: debate sobre uma alternativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
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Para o autor, há uma incessante busca, a partir de citações dos textos clássicos de
Marx, Engels e Lênin, de novas interpretações que convençam sobre a existência de uma
teoria marxista completa do Estado, fato este que não corresponderia à realidade.
Nesse campo, não seriam raras as situações nas quais as diferentes vertentes que
dialogam com o marxismo apresentam ou fundamentam em base a uma mesma passagem dos
textos clássicos, visões antagônicas sobre o tema. Frente a essa situação, questiona: “(...) não
seria mais sábio utilizar a obra de Marx, como de resto já o fazem economistas e sociólogos
que se pretendem marxistas, para aquilo que ainda é utilizável, para dela tirar instrumentos
conceituais adaptados à análise da sociedade contemporânea?”3
.
- O que propõe Bobbio?
Para o autor, o marxismo, preocupado com a questão da conquista do poder e sua
consolidação por meio da ditadura do proletariado, não pensou a relação entre Estado e
democracia. Neste sentido, salienta que uma das questões de “vida ou morte para o futuro do
socialismo” e, portanto, para o marxismo, diz respeito “a recuperação da instância
democrática”4
“O único sentido em que se pode falar racionalmente de democracia sem permitir
enganos, ou seja, um sistema no qual vigorem e sejam respeitadas algumas regras que
permitam ao maior número de cidadãos participar direta ou indiretamente das
deliberações que em diversos níveis (locais, regionais, nacionais) e nas suas mais
diferentes sedes (a escola, o trabalho etc.), interessam à coletividade”.
. Bobbio explica que instâncias seriam estas:
Mais adiante, clareia sua concepção:
“(...) por ‘democracia’ se entende um conjunto de regras (as chamadas regras do jogo)
que consentem a mais ampla e segura participação da maior parte dos cidadãos, em
forma direta ou indireta, nas decisões que interessam à toda a coletividade”5
Ao partir dessa conceitualização geral sobre democracia, o autor segue rumo a uma
descrição do que seriam as “regras do jogo” dos direitos políticos neste âmbito: direito de
3 Idem, p.40. 4 Idem, p. 46. 5 Idem, p. 55-56.
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expressão da opinião por meio do voto, elegendo representantes que a expressem; equidade
no valor do voto entre todos que participam do jogo democrático; direito amplo de opinião
concretizado na liberdade de organização política que expresse os anseios do grupo
representado; liberdade de escolha; princípio da maioria numérica tanto para deliberações
coletivas como para eleição de representantes; regras de participação que garantam não só a
existência da maioria, mas também da minoria.6
Bobbio nos fala da democracia enquanto uma questão de “vida ou morte para o futuro
do socialismo”. Mas a qual democracia refere-se?
Questionando o uso, por parte de vertentes que se reivindicam de origem marxista, da
afirmação feita por Lênin de que a república democrática seria “o melhor invólucro do
capitalismo”, salienta que “muitos continuam sentindo-se na obrigação de sustentar que a
república democrática não pode ser o invólucro de um Estado socialista”. E provoca: qual
seria o melhor invólucro para o socialismo? A ditadura?”.7
Argumenta ainda que a ampliação dos espaços de manifestação, participação e
conquistas obtidas no terreno dos regimes democráticos sob o Estado capitalista ao longo do
século XX, são inquestionáveis. O não reconhecimento dessas conquistas,
“(...) termina por prestar honras não merecidas ao adversário, é que todas as
conquistas que custaram lágrimas e sangue ao movimento operário – do direito de
greve ao sufrágio universal, da legislação social ao estatuto dos trabalhadores – são
interpretadas como hábeis movimentos estratégicos dos capitalistas para conservarem
o poder. (...) Lênin podia desprezar a democracia representativa e tomar a defesa
daquela maior e mais perfeita democracia que Bernstein, realisticamente, havia
definido ‘doutrinária’ ou ‘primitiva’, porque talvez julgasse, em boa fé, que a
revolução proletária e democracia nova fossem duas faces de uma mesma moeda.
Hoje não podemos mais permitir semelhantes deboches e defesas, sobretudo em
virtude do que aconteceu... depois de Lênin”8
O que Bobbio propõe, portanto, é que o marxismo incorpore em sua doutrina os
valores políticos do liberalismo. Nesse sentido, o resgate aos clássicos, não no sentido do
discurso de autoridade tão atacado por ele, mas no de restabelecer seu conteúdo, se faz
necessário, já que as formulações propostas por Bobbio não encontram qualquer relação com
.
6 Idem, p.56. 7 Idem, p.46. 8 Idem, p.47.
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a visão de Marx e Engels sobre o Estado capitalista e o papel da política nesse universo, e de
Lênin sobre a democracia.
Marx, Engels e o Estado Capitalista
A definição de democracia e de suas regras de funcionamento propostas por Bobbio
nos remete não somente ao debate sobre o Estado, mas, de maneira inter-relacionada, à
questão do estatuto da igualdade e do direito na sociedade capitalista.
A burguesia, na sua luta contra a servidão feudal e contra o domínio da nobreza e das
leis divinas sobre a vida terrena, estabeleceu o princípio da igualdade entre os homens. Para
além de uma formulação meramente ideológica, a idéia de igualdade se manifesta em duas
diferentes, mas conectadas, esferas. Na esfera da vida prática, material, enquanto relação de
troca entre diferentes proprietários, na qual os possuidores da força de trabalho estabelecem
relações com os proprietários dos meios de produção. Na esfera da política, enquanto iguais
perante a lei, como integrantes da comunidade política.
No marco geral do estatuto da igualdade, os interesses entre diferentes classes e
setores sociais se apresentam, ao menos na sua forma abstrata, como interesses comuns. A
democracia, defendida por Bobbio, como campo da efetivação da liberdade e participação,
seria por excelência, o espaço da igualdade, da efetivação dos interesses da coletividade,
expressos através da mediação do Estado. Mas afinal, em que consiste esse estatuto da
igualdade na sociedade capitalista? Qual a razão de existência do Estado capitalista?
Nos escritos de Marx e Engels é possível encontrarmos importantes referências sobre
o Estado capitalista. Em Ideologia Alemã, o Estado, na sua forma genérica, é definido
enquanto: “Forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses
comuns”.9 No Manifesto Comunista sua definição é apresentada como um “comitê para gerir
os negócios comuns de toda a burguesia”.10
Expressão de uma unidade de interesses particulares nem sempre comuns e de uma
universalidade irreal, o Estado, para Marx, configura-se numa forma político-institucional de
9 Marx, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 98. 10 Engels, Friedrich ; Marx, Karl. Manifesto Comunista. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sudermann, 2003, p.28.
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dominação sobre do conjunto da sociedade. O interesse do capital, enquanto expressão
genérica de interesses particulares, na configuração institucional assumida pelo Estado,
assume forma de dominação não somente econômica, mas, sobretudo, política. Trata-se da
expressão do capital - “produto coletivo” que “só pode ser posto em movimento pelos
esforços combinados de muitos membros da sociedade”11
Enquanto ferramenta de dominação de uma classe sobre a outra, o Estado também
expressa a existência da luta travada entre classes antagônicas e dos diferentes interesses
abrigados nas distintas frações da burguesia. O Estado reflete, portanto, a dinâmica da luta de
classes; sintetiza as contradições e antagonismos existentes na sociedade.
-, na esfera política, enquanto “força
social” apropriada pela classe dominante.
É na esfera do Estado que a burguesia constrói e legitima seus interesses, na mesma
proporção em que eles aparecem neste universo enquanto interesses de todos, da coletividade.
O Estado opera, portanto, uma cisão entre o homem da vida real, particularizado pelas
relações de produção das quais participa, e o homem genérico, participante “da comunidade
política”, espaço no qual ele se vê como ser coletivo.
“O Estado político acabado é, pela sua própria essência, a vida genérica do homem em
oposição a sua vida material. Todas as premissas dessa vida egoísta permanecem de
pé à margem da esfera estatal, na sociedade civil, porém, como qualidade desta. Onde
o Estado político já atingiu seu verdadeiro desenvolvimento, o homem leva, não só no
plano do pensamento, da consciência, mas também no plano da realidade, da vida,
uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a vida na comunidade política, na qual
ele se considera um ser coletivo, e a vida na sociedade civil, em que atua como
particular; considera outros homens como meios, degrada-se a si próprio como meio e
concerte-se em joguete de poderes estranhos.”12
Nesse sentido, podemos dizer que as relações de liberdade e igualdade na sociedade
capitalista, emancipadoras no que diz respeito à organização sócio-econômica anterior, têm
seus limites claramente delimitados pela propriedade privada e, de maneira inseparável, pelo
estatuto jurídico que regula as relações sociais, e ao qual o conjunto da sociedade se encontra
subordinada por meio do Estado. O limite da emancipação encontra sua forma no estabelecido
11 Idem, p.39. 12 Marx, Karl. A Questão Judaica. São Paulo: Moraes, s / d, p.26.
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pelo Direito. Trata-se, portanto, da igualdade perante a lei fundada no direito privado. A
igualdade, nesse sentido, se firma enquanto produtora e reprodutora da desigualdade.
“O Estado como tal, anula, por exemplo, a propriedade privada. (...) Não obstante, a
anulação política da propriedade privada, ao contrário e longe de destruir a
propriedade privada, a pressupõe. O Estado anula, a seu modo, as diferenças de
nascimento, de status social, de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o
status social, a cultura e a ocupação do homem como diferenças não políticas, ao
proclamar todo membro do povo, sem atender a essas diferenças, coparticipante da
soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real
do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade
privada, a cultura e a ocupação atuem a seu modo, isto é, como propriedade privada,
como cultura e como ocupação, e façam valer sua natureza especial.”13
O Estado, dessa forma, aparece aos olhos como um poder manifesto sobre toda a
sociedade. Mas ao contrário de eliminar as diferenças existentes no interior das relações
sociais, “só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua
generalidade em contraposição a estes elementos seus”.
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Essa aparência, que lhe dota de características neutras, acima das contradições da vida
material, é essencial para a efetivação das formas de dominação de classe. Encobre com um
véu a dominação de classe, submetendo ao controle, por meio de sua forma institucional
político-jurídica, o conjunto da sociedade.
O que converte, na esfera do
Estado, o homem em ser genérico encontra-se em contraposição à sua vida material, real.
No âmbito da vida material, propriedade dos meios de produção e sua negação
(expressa na forma de trabalho assalariado) determinam a maneira segundo a qual os
proprietários da força de trabalho, assim como os dos meios de produção, participam da
repartição das riquezas socialmente produzidas pelo trabalho.
Produção e distribuição das riquezas não podem ser entendidas dissociadas da maneira
pela qual os membros da sociedade se localizam no processo produtivo enquanto proprietários
de diferentes meios.
13 Idem, p.24-25. 14 Idem.
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Trata-se de uma articulação que, se na esfera da troca se apresenta como estabelecida
entre sujeitos iguais, encerra em desigualdades cuja origem repousa nas condições histórico-
sociais em que a produção se efetiva, operando de maneira inseparável e articulada com a
distribuição das riquezas produzidas. Dessa maneira, uma relação que impõe diferenças não
só em relação às características da propriedade que as diferentes classes sociais possuem, mas,
de maneira inseparável, na apropriação da riqueza produzida. Neste campo, a classe que
dispõe da força de trabalho se converte em mercadoria.
A problemática da propriedade privada, portanto, assume importância fundamental
para o debate sobre o estatuto da igualdade no interior da sociedade capitalista, na medida em
que a liberdade individual, na sociedade capitalista aparece enquanto elemento inseparável do
direito à propriedade. Direito este que, nas Constituições republicanas, figura como direito
fundamental.
Qual democracia?
Bobbio não fala da democracia no âmbito do socialismo. Suas formulações, tanto no
que diz respeito ao que vem a ser a democracia como no tocante às “regras do jogo”
democrático, operam num profundo vazio social.
As classes e seus interesses antagônicos não existem. A “coletividade”, a quem as
decisões democráticas devem ser de interesse, aparece como um ente acima das relações
sociais. Não estabelece, portanto, qualquer diferenciação entre democracia e conquistas
democráticas, sendo esta última fruto da dinâmica da luta de classes no interior da sociedade.
O Estado, por conseqüência, se apresenta desnudo de sua natureza de classe. A democracia, a
qual se refere Bobbio, ao contrário do que anuncia, não transita no universo da teoria marxista
do Estado ou da política, limita-se ao marco da fórmula adotada pela democracia liberal, no
âmbito do Estado burguês.
Nesse sentido, podemos considerar que a polêmica em torno à existência ou não de
uma teoria marxista do Estado consiste num falso debate. Há em Marx uma teoria sobre o
Estado, no entanto, localizada no campo de sua destruição enquanto instrumento de
dominação de uma classe sobre a outra.
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Na esfera da sociedade de classes, em Marx e Engels, a política assume o caráter de
disputa de classe e, na esfera do Estado capitalista, de ferramenta de dominação.
A Teoria do Estado marxista é, nesse marco, a crítica ao Estado capitalista e de
maneira intrínseca, uma teoria da revolução na qual a luta dos trabalhadores é ao mesmo
tempo em que econômica, uma luta política contra a dominação burguesa e por sua superação.
O Estado, nesse sentido, só assume a condição de representante de interesses coletivos
ou universais, na forma de uma “consciência invertida do mundo”, ou seja, enquanto
expressão da dominação ideológica da burguesia. A democracia, portanto, só pode ser
entendida enquanto democracia de classe.