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Semeadura Versos de Esio Antonio Pezzato 1991

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poesias e sonetos

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Page 1: SEMEADURA

Semeadura

Versos de Esio Antonio Pezzato

1991

Page 2: SEMEADURA

Parte IAdubando a Terra

Oitava Rima

A ideia está completa na cabeça,Porém a forma está toda confusa.Antes que a inspiração desapareça,Será preciso agradecer à Musa –Necessário se faz que se ofereçaO Verso para quem declara e acusaO momento de agira de forma claraPorque a ação, cada vez fica mais rara.

O Verbo na Verdade sempre explodeE quem não tem razão morre calado...Se se pode dizer... se se não pode,O instante do depois será testado.No céu toda Palavra vira em OdeNão, porém, o gemido derrotado;Com força audaz que o mundo todo firaOs sons sensíveis desta minha Lira!

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Quero um Canto fazer de forma novaQue não cause estupor nem cause espanto,E o Silêncio infinito seja a provaQue toda a multidão sente meu canto,Pois eu quero falar a minha trovaNa universal linguagem do Esperanto,Para saudar as terras mais extremas,Com as rimas de Amor de meus Poemas!

Corre, meu Verso, corre o mundo inteiro...Faça-se ouvir nos largos Continentes –Vá ser do mundo todo – Companheiro,Vá lançar da União suas sementes.– Não, meu verso, não caia prisioneiroQue os versos devem ser independentes;Devem, livres, voar pelo Universo,Pois só assim terá sido um bom verso.

É hora de conquistar cada cidadeFazendo um bom discurso em plena Praça,Cantar mil loas de felicidade;– Quem é feliz, em tudo encontra graça!Porém, quando falar – Fraternidade,Muito cuidado, pois, existe a traça

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Que indo direto aos corações, mutilaQuem quer viver na Paz pura e tranqüila!...

Aprendi a cantar quando criançaE levava sorrisos ao futuro.– Esse tempo era tempo de esperança,E eu vivia num mundo todo puro.Ah! Bons tempos que guardo na lembrançaDos tempos infantis... por Deus – eu juroQue trocaria o resto dos meus diasPara voltar ao tempo das magias...

Se hoje não trago mais os mesmos cantosQue dentro d’alma, alegre, antes trazia,É que meus dissabores foram tantos,Que me esqueci dos hinos de alegria.Mesmo tendo nos olhos rudes prantos,Ainda tento cantar minha poesiaCom rimas pobres mas cheio de calma,Porque são cantos que brotaram d’alma.

Viceja a Primavera!... nascem floresÁ beira das estradas e nos galhosCantam os passarinhos com amoresOlhando para os pobres espantalhos

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Que protegem os frutos dos senhores...Assobiando sigo por atalhosPara encontrar a primavera amigaQue entre amplos roseirais, feliz, se abriga...

Oh! Primavera, com saudade lembro,Os meus tempos felizes de menino,Quando nos dias quentes de dezembroCompus o meu primeiro alexandrino.Recordações azuis que ora relembroFazem parte constante do destinoDo menino-poeta que sorriaAo terminar sua infantil poesia...

Hoje os cantos são outros... a memóriaRetém somente cantos de justiça;Hinos de Liberdade, hinos de Glória,Que com a multidão se compromissa.– Não se conquista nunca uma vitóriaÀ base da vergonha e da carniça;Pois se a verdade pura me projeta,Tenho motivo para ser Poeta!

Oh, meu Amigo, se a Esperança medra,Vamos cantar pois ainda vale a pena.

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Vamos quebrar os corações de pedraCom um verso na mão e a voz serena...A Paz tem uma imagem poliedraSe bem que tenha a forma bem pequena;Por fim fazer com a Voz nossos arneses,Porque quem canta – reza duas vezes!

14.03.1983

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Poema de Daniel

Se alguém for declamar os meus poemas Nos próximos milênios,Eu creio que não haverá problemasQue teimem em desafiar os gênios Da inteligência humana,Que a cada dia vão vencendo ignotosSegredos, numa força soberana,Enquanto os que hoje, proclamamos sábios,Têm um porvir repleto de ressábiosE mil pontos de dúvidas remotos... Avançam os cientistasA estrada imensurável do UniversoO Sistema Solar buscam a fundo, Tentando um outro mundoAonde jamais chegaram outras vistas! E eu aqui, e o meu verso,– Pequeno grão de areia neste soloSou grão de trigo neste imenso bolo O qual chamamos Terra!Barqueiros do Universo! Os asteróides Tentais ainda entende-los,Porém, vos abismais com os cabelosDe fogo de um cometa que no Orbe erra

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Com órbitas esdrúxulas, ovóides...Eles, um dia, voltarão fulgindoE de vós restará sequer poeira... Eles virão sorrindoMostrando sua flâmea cabeleiraPara então, novos olhos contemplá-los Montados nos cavalos Onde em caminhos velhosIrão tirar, sorrindo, a água do poço...Leio histórias dos rotos EvangelhosE Ezequiel sorri em alvoroço...Suas visões eram de extraterrestres,Porém, Ele as fitava crendo em Mestres! Não, Mestres não, mas Deuses! Siva, Ariman, Eleusis, Duendes cadavéricos, Fantásticos, homéricos,Montados em corcéis de asas brilhantes,Com olhos e narinas fumegantes... Gênios de hoje! AmanhãSereis apenas uma imagem pálida,Corrosiva, das mentes do futuro.Fitais apenas hoje, Aldebarã, Mas o porvir, seguro,Virá mais forte, poderoso, imenso,

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E vós sereis estercorácia inválidaE sem valor algum... e sem receioPenso que ireis valer menos que meio!As máquinas terão – assim eu penso! – Seus próprios pensamentos,E os Homens com seus parcos instrumentos, Serão desnecessários. Todos os maquináriosIrão pensar por vós, oh, gênios de hoje, E vós sereis farrapos Coaxando iguais aos sapos Que nos lodos da noiteArrastam os seus trapos Sem ter quem os acoite! Gênios, o tempo fogeAs correntes elétricas avançamE a lâmina do tempo tudo corta....................................................Não descanseis, Poetas! Não descansamAs idéias. A vida é sempre morta.Continueis fazendo mil poemas Aos próximos milênios,Pois creio ainda que haverá problemasQue teimem em desafiar os gênios! 14.07.1989

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Canto da Agonia

Perdido n’alta noite, em desespero aflito,Todo o meu coração, num pavoroso gritoEsta apóstrofe exclama em lívida magia:– Agonia, agonia, agonia, agonia!Tremo de medo e o medo aumenta em mim.ApelosNão consigo fazer. em negros pesadelosEu sinto em mim a noite atra, negra, medonha,E alucinado saio. A minh’alma não sonhaPois em mim é real esta visão que expeleÍgneos raios de fogo. Ardente, minha peleNão agüenta o calor e a noite está tão fria...Agonia, agonia, agonia, agonia!Tudo envolto em pavor... numa sinistra crençaMorro dentro de mim e em negra recompensaO inferno aterrador abre-me os negros braçosQuerendo me abraçar em sinistros abraços...E novamente em mim, a angústia faz morada...No enorme manto negro, a lua, ensangüentada,Pinga estrelas de foto e – negra bordadeira! –Borda uma cruz vermelha e vermelha bandeiraTremula no atro céu macabro. A noite é fria...Novamente em meu peito, a rima da agonia

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No estribilho feroz, a mim mostra-se rude;E o fim da vida é o fim... e o fim da juventudeÉ o fim... e o fim de tudo é o fim... e o negroaçoite,– Negro vento cruel! – arrasta mais a noiteAo longo labirinto onde este canto medraBufando ódio, ira, espúrio, e a avalancha depedra,De pedras enche a noite e a estrada em pedras,cheiaDa vil superstição soluça, devaneia...E o terrível macabro e profano estribilho,Num ímpeto feroz, tolda o ígneo e rubro brilhoDo Sol que quer brilhar em mágica euforia,Mas tudo chega a mim num Canto de Agonia!

15.04.1980

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Ode ao Nove de Julho

Os grandes heróis PaulistasTombaram – porém, em pé!E o pendão das treze listasMostrou o poder da fé.– Foram heróicos soldadosQue tendo sonhos douradosMostraram o seu valor...E agachados nas trincheirasErgueram mil cordilheirasCom a base feita de Amor!

E todo o povo paulistaCom a força do coração,Foi constitucionalistaCom ardor e devoção...Mesmo sendo injustiçadoO paulista ergueu seu bradoQue hoje em dia ainda se vê.E quatro jovens tombandoDeixaram todos clamandoO M.M.D.C.!

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Vai, Miragaia – valente!E Martins – vai se rival!Dráuzio – na linha de frente!Camargo – vai triunfal!Na sigla audaz e radiante,São Paulo segue confianteRumo aos páramos de luz!E com sobranceiro orgulhoBradam o Nove de JulhoQue o brasíleo céu seduz!

Que importa se houve vingança,Ódio, rancor e desdém?– Se ainda temos a EsperançaDe ver triunfar o Bem,Para nós isto é o que importa,O resto é paisagem mortaRepleta de ingratidão...– Medalha que expele fogo,Profano e maldito jogo,Negra e lívida oração!

Mas o povo BandeiranteQue mostrou se colossalE que seguiu sempre avante

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Com denodo magistral,Dando à morte sua vidaMostrou sua alma aguerridaAos rincões desta Nação!E cada soldado altivoClamou em coro cativo:–“À Pátria o meu coração!”

Mártires dessas jornadas,Em cada peito febrilCintila em letras douradasUm nome apenas – Brasil!E com triunfante orgulhoDizeis que o Nove de JulhoRepresenta o que hoje sois.E quais grandes timoneiros,Sois Soldados brasileiros,Soldados de Trinta e Dois!

09.07.1980

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Engenho CentralTeu destino é viver!(Francisco Lagreca)

Venho para o recanto antigo, venhoBuscar a solidão do velho Engenho, Seu passado buscar...Entre árvores imensas, verdejantes,Vejo sombras perdidas e distantes, Vejo um vulto passar.

O coração em êxtase palpita...A riqueza de brilhos é infinita, Que fere o coração.Na sombra um vulto pálido e sombrio,Entre saltos, no Salto desce o Rio Numa lenta oração.

Perdido do passado na conquista,O Vulto flutuante lança a vista A uma história fugaz...É o Barão de Rezende que retornaPara o futuro em malhos de bigorna, Num desejo de paz.

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É o Engelho Central, que junto ao RioEpopeias viveu num alvedrio Numa força de Amor.É o lar perdido na folhagem densa,Que guarda ainda imaculada crença Presa em seu interior.

E o Rio surge audaz, forte, valente,E a vida no suor de tanta gente

Move o Engenho Central...Na paisagem sublime, soberana,O verde que se casa à verde cana Verdeja o canavial...

O Operário cansado mais trabalha...O suor – combustível da fornalha – Acende o fogaréu!O cheiro da garapa e do melado,Do açúcar e do mel é esparramado E sobe para o céu.

Os sonhos crescem no fulgor dos sonhos,As esperanças fazem mais risonhos, Os rudes corações –

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E o Engenho forte, belo, rude, altivo,Cada vez mais do olhar deixa cativo Baronesas, Barões!...

Salve, Engelho Central! Oásis verdeDesta Piracicaba que se perde Em usinas além...Foste o Panteon de glórias desta Terra,A força ultriz que os corações encerra, Foste Vida, porém...

Teu prédio altivo, majestoso, belo,Guarda de Deus o mais sublime elo Da corrente do Amor...Guarda o suor sagrado do Operário,Que para receber o seu salário, Deu-te o maior valor!

Guarda histórias e mil histórias guarda...Os tijolos à vista da mansarda, Guardam sonhos febris...Filhos que aos pais levavam o almoço,E havia entre algazarras e alvoroço, Sorrisos infantis...

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E ao doce sonho de teu sono doce,De fora a força estranha também trouxe O Progresso febril.Homens – em ti buscaram fama e glória!Heróis – que conquistaram a vitória Adoçando o Brasil!...

Hoje – és relíquia de um passado nobre;A hera esverdeada as tuas formas cobre Para te perpetuarEm segredos guardados entre chaves,Mas que são desvendados pelas aves Quando estão a cantar!

Velho te visitar... com passos lentosVou apreciando os lerdos movimentos De outros, que iguais a mim,Enrustidos em meio à Natureza,Procuram decifrar tua beleza Que é imensa e não tem fim...

É uma questão de Amor... e há no meu peitoO grito forte, alegre, satisfeito, De te ver a sorrir...Forte e imponente aos séculos tu vences,

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Hoje, porém, ao povo tu pertences, – Pertences ao porvir...

És legado dos homens do passado,Que com o pensamento iluminado Deram-te a vida a ti...E hoje, ao porvir glorioso a vista cravas,Marcado por mãos livres, não escravas, Que te ergueram aqui!

E eu com o coração feito Poeta,Olhando o Rio imenso que projeta Tua sombra imortal,Junto a Lagreca faço-te uma prece,Que o verso do Poeta te enobrece, Oh, Engenho Central!

E ao te deixar após tamanho encanto,Após te oferecer neste meu canto Rimas do coração!,Vejo com a vista entorpecida, pasma,Passar por mim, a rir, branco fantasma, De um formoso Barão!

01.05.1991

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Ao Crepúsculo

Todos os dias, quando a noite desce,E o sol despede-se fazendo prece À hora crepuscular,E há prelúdios de salmos entre as avesQue em allegros sublimes e suaves Instigam-me a cantar...

E ao longe, o terno sol d’Ave-MariaInvade o espaço e há ecos de Poesia A retumbar nos céus;Olho o horizonte que de luz se banha,E penso ouvir nas cristas da montanha O respirar de Deus!

De joelhos então – piedoso monge! –As minhas vistas lanço ao longe... ao longe, E faço uma oração,E nest’hora de mago franciscano,Ouço o choque das águas do Oceano Fazendo uma Canção!...

É formoso o momento – este momentoQue a Água e a Terra em divino Mandamento

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Ajoelham-se ao Senhor.E tudo numa arcoirisada crençaFaz, em pura oblação, a mais intensa Declaração de Amor!

Tudo – neste momento contagiante,Une-se num só grito altissonante De mágico refrão...Vibra a lia, flautins silva, chilreiam,E as almas toda do Universo anseiam De ouvir uma canção.

E o Senhor canta quando a noite chega...Até parece uma escultura grega Quando fala o Senhor...E sua fala – mágico tesouro! –Faz que as palavras se transformem no outro Dos instantes de amor!

Oh, Poetas, vós todos, acredito,Com os ouvidos lançando no Infinito Já ouviram esta Luz –A Luz que brilha e ao mesmo tempo fala,E enquanto fala – suave essência exala E brilhos lança a flux!

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Oh, Poetas, sois voz a semelhançaPerfeita do Senhor, pois se Ele lança Esse facho triunfal;Vós fazeis a Epopéia num só verso,Para glorificar todo o Universo Com o sobrenatural...

E Deus também nos mostra que é Poeta,Pois com rimas de luz e voz de Esteta, Perlustra a ImensidãoE atira sobre nós sua bafagemPara lembrar que o Grande Personagem De toda a Criação!

23.05.1983

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Poema de Férias

I

Saio a passear... as nuvens arrogantesParece que conhecem meus passeios;Me acompanhando vão extravagantesE não mostram, por mim, quaisquer receios.

Se agora eu fosse um mágico, fariaComo Shimoda, desaparece-las.Mas qual! Eu faço e muito mau poesia,Que, às vezes, nem mesmo eu chego aentende-las.

Creio que sou Poeta por acaso.Melhor: alguns de chamam de Poeta.– Nunca bebi nas fontes de Parnaso,Nem tenho o porte altivo de um atleta!

Um semideus, como eram os antigos:Vergílio, Homero, Baudelaire, Petrarca...Nunca comi da Chelidônia os figos,E nem tive uma gôndola ou uma barca!

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Nem fui herói! Sequer tive um cavalo.Pios ainda, nem sequer montei-oCom esses pensamentos eu me abaloE volto para casa sem passeio.

II

Vou direto em meu quarto para a camaE penso ler qualquer coisa que preste.Porém, a minha mente mais se inflamaQuando leio um gibi de faroeste.

Depois, rio a valer... me delicioCom as aventuras e com as fantasiasDo Patacôncio, do Donald e o TioPatinhas, que emprestei do amigo Elias.

Ele tem uma coleção completaDe todos os gibis, e eu, na aventura,Rindo das maluquices do Pateta,Não quis saber mais de Literatura.

Os decassílabos e alexandrinosPodiam esperar, pois cada trama

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Dos personagens, tinha mil destinosQue me faziam rir... rolar na cama.

III

Outras vezes eu vinha para a casaPara cuidar das minhas lindas flores:– A avenca está com a terra um pouco rasa...– Disso já vou cuidar com mais amores!

As samambaias, os jasmins e os cravos,E o chorão com a grama japonesaDavam trabalho para dez escravosLibertados, porém pela Princesa!

Porém valia a pena... as samambaiasCom as folhas compridas de três metros,Mais pareciam flutuantes saias,E os cravos, pareciam lindos cetros...

Foi olhando essas plantas que eu, um dia,Escrevi “Sonho e Realidade” e os músicosJorge e Anuar, com grande maestria,Musicaram-na em bela marcha-rancho.

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(Viram, faltou a rima ao verso acima,Mas faço agora rima coroadaPara ajustar a que faltou em cimaE fica tudo conta já acertada.)

Enquanto eu conto as sílabas nos dedosA metrificação correr perfeita,Assim eu me desvencilho dos segredosDo Verso, já que a rima sai bem feita.

IV

Em casa sem ocupação é duro!O ócio mata bem mais do que o trabalho.Porém, eu faço um juramento: eu juroQue a tarde inteira vou jogar baralho!

Após o almoço, é bom jogar um truco;Com o Isael de parceiro, não tem caldo.Enquanto o Júlio nos prepara “um suco”,Eu berro “seis!” no “truco” do Geraldo.

Era vidinha boa... agora em Julho,Com o vento soprando a todo instante,Vou mostrar às crianças, com orgulho,

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Que a minha pipa voa mais distante!

Afinas as varetas é proezaDa minoria, pois, eis o segredo:– Se não segura a faca com firmezaBem mais fácil será afinar o dedo!

E quem já viu um dedo de varetas?Nossa Senhora! Isso é demais, tolice...Agora vou tomar três vacas-pretas,E logo após eu vou jogar boliche!

Porém, Julho se acaba e vem agosto...O prazer que é benigno, dura pouco.O vento frio vem bater no rosto,E é além do mais, mês de cachorro louco!

Meu poema também vai se findandoE vou pensando em coisas bem mais sérias:Eu vou passar os dias trabalhandoCom o pensamento fixo – em outras Férias!

26.07.1982

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Fragmentos de Infância

Lembranças, quantas lembrançasDos tempos que lá se vão...

(Guilherme de Almeida)

Oh, que saudade que tenhoDa aurora da minha vida

(Casimiro de Abreu)

A Saudade é como um sino...Badala um som argentinoDentro de meu coração.E enquanto bate, badalaUma saudade que falaNuma tristonha canção...

Em seu badalar me acorda,E vai desfiando a cordaDe uma saudade fugaz;Uma saudade que insisteEm deixar minh’alma tristeE que em prantos se desfaz.

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Lembro – perdida a distânciaA minha adorada infânciaQue entre brumas se perdeu.,E enquanto badala o sinoDistingo ao longe, um menino!E este menino – sou eu!

E recordo... e bem sei onde:Foi lá, na rua ViscondeQue minha Infância vivi...Trepava nos pés de mangas,Deitava a chupar pitangasE imitava o bem-te-vi.

De todos vivia AmigoE vinham brincar comigoLúcio, Bolacha, Didis.E agora, triste, pergunto:Por que não trago mais juntoOs tempos que fui feliz?!...

Cada um de nós era Artista:Um ia se maquinistaPara andar sempre de trem...Um outro ia ser pedreiro,

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(O Lúcio hoje é Engenheiro!)Eu procuro ser alguém...

No tempo do mês de agostoBatia um vento no rostoMas mesmo assim, todos nós,Soltávamos papagaios,Que, ligeiros, como os raios,No céu lembravam cipós.

Tinha época para tudo:Girar arco, jogar ludo,Jogar bolinhas, peões...Às vezes, nos ribeirinhos,Íamos caçar peixinhos,Em junho – soltar balões...

Quando dezembro chegavaMeu pai sempre nos levavaA caçar papa-capim.Mas hoje, quando me vejo,Ainda cheio de desejo,Tenho saudade de mim.

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(A saudade é um tronco tosco!)No Oratório do D. BoscoNós todos éramos reis!Ai, que saudade que guardoDo amado Padre EduardoQue era tão cheio de leis...

– Menina era proibida...Somente sóbria vestidaPoderiam freqüentarAs missas da sete e meia...E o grande pátio de areiaEra também nosso lar...

Alegre, no mês de maio(Hoje, às vezes, me distraio...)Ajudava a procissãoDa Senhora Auxiliadora,Que era a primeira SenhoraDe quem quer fosse Cristão!

Éramos todos – coroinhas,Cantávamos as ladainhasE toda a missa em latim.O “Tantum Ergum” na Bênção...

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– Turíbulos ainda incensamAs imagens de marfim...

Antes da reza o recreio,Depois o cinema cheioCom os filmes de Tarzan...Tinha o macaquinho Chita,E aquela moça bonitaSempre ao lado do galã................................................

O tempo era sempre curto...Mas hoje ainda sempre furtoMomentos para sonhar,E sonhando vou vivendo,Porém, nunca me esquecendoDo que é bom de recordar...

23.09.1981

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Passeio com meu Filho

Saio a passear... comigo vai meu FilhoQue fica dando as ordens do passeio:– Pai, quero ir ver o Rio, aonde o brilhoDo sol faz mais bonito o meu recreio...

– É claro que as palavras não são estas,Elas aí vão para causarem rima.Por exemplo: ele agora quer florestas,Também quer visitar a sua prima...

E juntos vamos nós pela cidade:Vamos à Vó, na Praça, no Mirante,Tudo numa total felicidadeQue da vida real fico distante...

No Bar do Celso toma Coca-Cola,Porém, ele me insiste no sorvete...Depois quer ir buscar Thaís na escola,E chora porque quer um canivete...

Depois vamos à casa do PachecoE o Thalles ganha balas de presente...

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Passa no céu um lindo teco-tecoE ele me faz perguntas de inocente...

Junto o Pacheco vamos ver o Rio,E nos barzinhos da rua do Porto,A todo o instante o copo está vazioE logo o nosso passo fica torto.

O Thalles fica, na infantilidade,Jogando mil pedrinhas sobre as águas,Tudo numa total felicidadeQue da vida real, esqueço as mágoas...

Depois, com o Arakén e com a Jandira,Que têm um lindo bar neste recanto,Rola alguma historieta de mentiraQue risada provoca com espanto.

O Elias chega logo e com orgulhoVai falando de sua esplêndida arteQue é fazer os bonecos com entulhoE espalhá-los depois, por toda a parte.

Quem vê o Rio em a margem direita,Pensa ver um montão de pescadores

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Que estão fazendo uma ótima colheita,– Mas eles estão mais plantando flores...

(O Thalles continua em seu brinquedo...)Logo após, uma garça, em sua graça,Voa, de leve, sobre um arvoredo,Logo após, outra garça – chega e passa...

A tarde vai morrendo lentamenteAo som de um violão e de um pandeiro...Logo mais vem surgindo alegre, ardente,Um genuíno samba brasileiro.

A criançada brinca em alvoroço,E meu Filho tem várias companhias...– Suor de terra escorre em seu pescoço,E ele brinca com suas fantasias...

Atira pedras n’água, sobe em galhos,Não tem parada: corre, pula, salta.E desce até o Rio por atalhos,Para ficar olhando a ave pernalta...

Fica tarde e lá vamos nós embora,Vamos deixar Mestre Pacheco em casa.

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Depois vamos chupar alguma amoraPara a língua ficar da cor de brasa...

O Thalles não se cabe de alegria...Amanhã diz que vai sair comigoPara fazer de novo mais folia...(Ele está se saindo um bom amigo!)

Chegando em casa, está todo contente,Conta para a Thaís que foi ao Rio,E ela faz beiço, fica indiferente,Depois, diz para mim num desafio:

(Novamente aqui vou tramando a rima...)–“Ô Pai, não venha, não, mudar de assunto...”(Com solene discurso ela me intima)–“Se o Senhor for sair, eu quero ir junto...”

10.12.1987

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Em Casa

Em minha casa, após o entardecer,Molemente deitado numa rede,E fico olhando os quadros na paredeNuma visão repleta de prazer...

Minha Mãe molha as plantas no quintalE as rolas e os pardais comem quirela,Formando uma paisagem de aquarelaNesta hora sonolenta, vesperal!...

Minha Mãe e eu jogamos papo fora,Falamos do passado e do presente;Tarde abafada, tropical e quente,Sempre atrasada, a noite mais demora...

Os beijinhos e os verdes tinhorões,Rejuvenescem com os jatos d’água...Espantam do calor a dura mágoaSoltando flores lindas, aos montões...

As rúculas e as couves, com vigor,Aprumam nos canteiros suas hastes,

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E os brotos que cortei para desbastes,No chão de terra vão perdendo a cor.

Vou ao quintal e faço companhiaÀ minha Mãe, que molha suas plantas,No chão os moranguinhos fazem mantasVerdes-vermelhas, numa sinfonia...

A mangueira, com flores cor carmim,Atrai abelhas que – pólen a pólen –As florinhas miúdas beijam, bolem,Num vôo que parece não ter fim...

Pés de mamão, maracujá e figoFormam neste quintal um paraíso –No chão o caramujo deixa um frisoPara mostrar que fez um novo abrigo.

A goiabeira, em profusão, atraiSaíras e sanhaços dia inteiro...Que fazem de seus galhos um poleiroE cantam para a ausência de meu Pai.

Fico, às vezes, compondo algum Soneto,Enquanto minha Mãe faz guardanapos...

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Depois voltamos em sonoros papos,Arquitetando um mundo de projeto.

Ela me conta histórias magistrais –Fala como foi dura a sua infância...E, perdida num mundo de distância,Fica lembrando histórias de seus pais...

Minha Avó que morreu bonita e jovem,E as Irmãs que morreram tão crianças...Divagamos perdidos nas lembrançasE essas histórias tanto nos comovem...

Às vezes, de improviso, chega alguémE também toma pare na conversa,Nesta hora então, o assunto sempre versaNuma informalidade que faz bem...

Depois ficamos oura vez sozinhosE colocamos o jantar à mesa...E assim jantando temos a certezaQue nossa vida é feita de carinhos...

10.05.1991

Page 40: SEMEADURA

Maria, Minha Mãe

Eu não sou Jesus...Embora a minha Mãe se chame MariaEu não sou Jesus.Existem tantas MariasCom tantos filhos que não se chamam JesusE nem são Jesus.Tantas MariasQue cuidam de seus filhosLargados no mundo.

E eu embora não sendo JesusSendo filho de Maria,Tenho uma Maria que se equiparaÀ Mãe de Jesus.Minha Maria cuida de mim,Lava minhas roupas,Põe o almoço à mesa,Lava, passa,Faz guardanapos,Cuida dos outros Filhos com iguais carinhos,Dos Netos,Tem amigos,

Page 41: SEMEADURA

E muitas vezes me tira do caminho da cruz.

Minha MariaEstá de cabelos brancos,Neve de um tempoQue já em 85 anos...Minha MariaLembra a Maria do Menino JesusE eu não sendo JesusNão pude ressuscitar o Lasinho...

Minha Maria quando ele partiuFicou triste, triste, triste,E eu mais triste ainda,Pois sendo filho de MariaNão era Jesus...

Minha MariaMinha MãeEste não é um poema de NatalNem ao menos um poema para o Natal,Porém,Como Jesuscristinho anda muito esquecidoE só é lembrado por causa dos presentes,Neste Poema,

Page 42: SEMEADURA

Maria, minha Mãe,– Aceite-Me presente em casaNovamente.

22.12.1991

Page 43: SEMEADURA

Para o meu Pai

(01.10.1987)

Pai,É preciso que o Sr. sare logo,Porque assim doenteSerá impossível, Pai,Que a gente possa agora em dezembro,Caçar papa-capins.

Pai,Tá todo mundo preocupadoCom a sua doença.Logo o Sr. que era tão forte,Osso duro de roer,É impossível, Pai, que não sai dessa.

Pai,Vê se restabelece,Engorda, fica forte,A caçada exige pernadasE um bom papa-capimNão fica cantando na beira das estradas.

Page 44: SEMEADURA

Pai,Teremos que ir mato adentroCom as gaiolas e as batedeiras.(Quem sabe a gente encontra um bompintassilgo,Aí, sim, a caçada seria boa.)

Pai,Vamos fazer tudoComo quando eu era criança,– O Sr. dando as dicasE eu enchendo as gaiolas.Lembra, Pai,Chegávamos a caçar até vinte papa-capins.

Pai,E as casinhas de João-de-barroQue o Sr. trazia?Ainda existem duas em casa, Pai,Reminiscências do serviço pesado que era o Seu.

Pai,Vamos esperar o Sr. sarar,Consertar o viveiro e criar curiós?Era gostoso, Pai,

Page 45: SEMEADURA

Ver os filhotinhos saindo do ninho,E eu, criança,Arranjando navalha-de-mico,Arroz-bravo, cânhamo, gafanhotos, cupins,Para dar aos filhotes...E os canários, Pai,Os mestiços,As ninhadas de pintassilgosQue quase nunca vingavam...

Pai,Não deixe que a doença o vença, Pai,A Mãe fica nervosa,A Rê, a Lena, a Dalva e euNão gostamos de ver o Sr. comendo pouco,Deitado sempre, sem ânimo para nada.Chato dizer para os amigosQue o Sr. tá doente.

Pai,Sare logo,Porque dezembro vem chegandoE com ele, os papa-capins,Que estarão cantando aos bandosÀ espera de serem caçados,

Page 46: SEMEADURA

Para logo em seguida,Serem soltos por nós,Novamente.

Page 47: SEMEADURA

Para meu Pai

(26.10.1987)

Pai,Não teve mesmo jeito.O Sr. tinha que ficar encantadoE encantou-se –O Sr. tinha que criar asas,Por isso voou –Como as rolinhas, os pintassilgos, ospapa-capins.

Pai,Foi importanteSaber que o Sr. poderia, como os pássaros,Voar a imensidão azulJunto de Fernão Capelo Gaivota.Agora olhas aqui por teus filhotesQue desarvoradamenteTentam bater as asasEm prelúdios de vôos rasantes.

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Pai, euQue dia desses planejava caçar papa-capinsJunto com o Sr.,Agora te vejo pássaro liberto da gaiolaAberta por alguém menino– E como caçá-lo, Pai,Se como o sem-fimApenas posso ouvir teu canto?

Em que matas verdejantes te escondes, Pai,Que te tornas etéreo e impalpável,Sombra e Luz, Canto e Magia?

Pai,Foram os canários rolleresQue abriram a porta de tua gaiola?Ou foram as rolinhas,Que em nosso quintal – livres! –Sempre pousavam em teus joelhos?

Ou foi um certo menino,– Chiquinho, aquele de Assis,Que acompanhado de foguinhos,Sabiás, bicos-de-lacre, azulões,Curiós, pulvis, melros

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E outra infinidade de avesQue te deixou encantado e te fez voar?

Pai,Agora que és um deles,Vens fazer ninho na jabuticabeiraDe nosso quintal,Assim poderás soltar teu cantoPara que nós,Pai,Possamos te ouvir e te cuidar.

Pai,Em casa restaO eco de tua voz transformada em canto,A rima de teu canto transmudada em voz,O silêncio de tua ausência,A gaiola vazia!– Mas os alçapões continuarão armados...Cuidado, hein, Pai,Pois senão bastará um teu descuidoE te caçamos!...

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Saudade de meu Pai

Quando recordo, Pai, nosso passado,Com o Sr. presente em nossa casa,Na face o pranto escorre em densa brasaPois já não mais estas ao nosso lado.

Um ano, Pai! Que estás de nós ausente!Ao tempo inexorável me sucumbo!E a saudade, pesada como chumbo,Tanto magoa o coração da gente.

O câncer foi te consumindo em vidaE lentamente, então, foste morrendo.Nós víamos sem crer... e assim não crendo,A todos ias dando a despedida...

Cada dia mais triste, mais calado,Devas o eterno adeus aos que e amavam.E enquanto os filhos teus, tristes, choravam,A Mãe sempre te dava mais cuidado:

“Tome, Lasinho, este fortificante,“Este prato de sopa está quentinho...

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“Não quer tomar um pouco de caldinho?“Vamos, Lasinho, coma tudo, jante...”

A Rege, a Dalva e a Lê, com vitaminas...Porém, dizias que não tinhas fome...E o câncer... (ai, este é o maldito nome!)Ia pondo em teu corpo, atras ruínas...

Muitas vezes, levei-te até CampinasPara fazer-te radioterapia.Como doía, Pai, como doíaVer o Sr. passar tão tristes sinas.

Nem fumar o Sr. tinha vontade...Mas mesmo assim compraste fumo e palha...Como eles eu forrei tua mortalha,Tudo num simbolismo de Saudade.

Hoje, em casa, o passado está presente,Tudo recorda que o Sr. é vivo.Pois ainda está o teu lugar cativoE estamos te esperando... inutilmente...

26.10.1988

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In Memoriam

Sem ti eu volto para a nossa casaE uma angústia de morte, me tortura!Infinita tristeza ora me arrasaJá que ficaste numa sepultura...

Estás agora na Eternal moradaOnde o Silêncio –tens por companhia;– Não mais verás o brilho da AlvoradaNem verás o nascer de um novo dia.

E eras tão moça, eras tão jovem, tudoAo teu redor desabrochava em rosas...– Teu futuro está mudo, mudo, mudo,Não mais terás manhãs maravilhosas!

Entro agora, em silêncio, no teu quartoOnde tudo ainda está como deixaste.Para mim é difícil este parto,– Rosa arrancada abruptamente d’haste...

Retratos espalhados pela cama,O chinelo em que andavas sem alarde,

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Lençóis bordados, bibelôs e a chamaDe uma vela apagada que não arde.

Na penteadeira estojos de pintura,Um livro de poesias que eu, um dia,Te ofertei com carinho e com ternura...(Eu dar poesias para uma Poesia!)

Tudo é teu e mais nada te pertenceJá que não mais estás aqui presente.Por mais que eu me torture, chore, pense,Para sempre estarás de mim ausente.

A tua cama desmontar iremos,Teu quarto agora vai ficar vazio...– eu barco não precisa mais de remosPois flutuando vai seguindo o rio...

Há frio na minh’alma, atra amargura,Neste meu coração silêncio, tédio...Sem ti a vida me será bem duraE para a solidão – não há remédio...

Eu irei visitar tua moradaMas tudo me será bem diferente:

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Nada tu me dirás, ai, nada, nada,O teu silêncio e fará presente.

Querida Amiga, nada mais existeDo que a recordação... do que a SaudadeQue deixa o coração no peito tristeE triste fica cheio de ansiedade.

Não mais irei ouvir os teus conselhos;Mas parece que vejo ainda teu rostoRefletido no brilho dos espelhosOnde te embelezavas com bom gosto.

Quando á tarde, Gounod, na Ave-MariaPreludiar a noite em seus recamos,Eu irei te escrever uma PoesiaPara o tempo lembrar que nos amamos...

E se tu, no Silêncio e na QuietudeEscutares meus versos, como prece,Lembra de nossa linda juventudeE um beijo manda a quem jamais te esquece...

14.05.1986

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Durante o Temporal(25.11.1987)

Chove torrencialmente. A chuva grossaDespenca aos borbotões, do espaço aberto.Meu coração, de súbito, alvoroça, Não e sentindo perto.

A enxurrada, na rua, desce, cresce...Meu desespero sobe e me apavora.A chuva me alucina, me entorpece, A alma em pancadas, chora...

Lá fora a tempestade turbulenta,Aqui dentro, relâmpagos, escolhos...O sofrimento aumenta, aumenta, aumenta, Há trovões em meus olhos.

Tento entreter o espírito... procuroUm livro para ler... mas um coriscoFulmíneo, rasga o céu, fico no escuro, Nos olhos cai um cisco.

Uma goteira pinga na varandaE a cadência monótona, me irrita.

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Onde, meu Deus, onde será que Ela anda?! A chuva deixa-a aflita!

O martírio é sem fim... vou procura-la,Penso. Estará talvez toda molhada.Eis que chega. Tremendo. Adentra a sala, Me beija e não diz nada...

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Para a que se foi

Se, trago n’alma desespero tanto,Se minha voz já não consegue o cantoE a hora da angústia no meu peito medra;Se, o prazer pela vida ardente busco,Se, o coração de imensa dor chamusco,Se, tento abrir um coração de pedra;

Se, dizes não a tudo o que te oferto,Se, queres meu viver amplo e desertoE em meu caminho solidão e abrolhos,Se, me amarguras com prazer profundo,Vou então inventar meu próprio mundoOnde os meus, não encontrem os teus olhos.

Se a paixão sufocada me resiste,E, se retorno de maneira tristeO caminho onde fui feliz outrora,Se, último me parece este desejo,Necessário se faz que um novo beijoMantenha-me acordado à nova aurora...

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Se o desespero hoje me sangra o peito,Se o mundo construído foi desfeitoPor um capricho, ou por desejo oculto,Para esquecer-te eu tenho a Eternidade,E, um dia restará sequer saudadeDeste teu hoje tão amado vulto.

23.03.1990

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Parte II

SonetosSemeadura

Amo

Preso à cama, o eu corpo era-me um mapaOnde eu seguir em vales e montanhas.Como um Rei soberano, como um Papa,Feliz, eu possuí tuas entranhas!

Muitas vezes, usei a minha capaPara cobrir-te as formas tão castanhas –Outras vezes, com fúria dava um tapa,Para possuir-te com nervosas sanhas.

Na arte do Amor, então, eu fui teu Mestre!O teu corpo era a minha Geografia,– Para não te perder, eu e marcava! –

E na fúria do amor, num sonho equestre,Te conquistei inteira na porfia,Que te possuo ainda como escrava! 14.06.1990

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Dos olhos

Depois de tanto tempo, frente a frente –E o fantasma fatal de uma lembrança;Porém, os olhos, mortos de esperança,Sem brilho, olhavam frios, o Poente.

Tétrico, o Tempo, inexoravelmente,Sepultou – qual coveiro em negra dança! –O nosso amor – e hoje, funéreo avança,Tentando destruir este presente.

Só nos resta o passado, só nos restamFantasmagóricas alegoriasDe um tempo bom que já não mais me ilude.

Nossos olhos, por fim, somente prestamPara mostrar-nos mortas alegriasQue floriram em nossa Juventude...

25.07.1986

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Ressurreição

Meu sonho era um Altar abandonadoSem imagens de santos, sem rosário.Na lenta Via-Crucis do CalvárioEu era um pecador a ser julgado.

O madeiro por mim era arrastadoPara um Gólgota frio e solitário.Nesse atroz e patético cenárioEu ia ser enfim, crucificado.

E nesta 6a.-feira de agoniaTinha sede – bebi fel e vinagre! –E soldados gozavam minha dor.

Mas fui ressuscitado em novo dia,Pois teus beijos fizeram o milagreDe dar-me nova vida para o Amor!

23.06.1990

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Meus Dedos

Teu cheiro está na ponta dos meus dedos:Com eles tateei teu corpo inteiro,Descobrindo recônditos segredos,Que agora, deles, vivo prisioneiro.

Teu corpo, para mim, foi um braseiroOnde dourei meus sonhos lindos, ledos,Teu ventre – saboroso licoreiro,Onde afoguei meus traumas e meus medos...

O olfato ora me diz que foste minha,Meus dedos denunciam-te a presença,Pois eles desvendaram-te completa.

E minh’alma, não mais está sozinha.A paixão que nos une é tão intensa,Que a cada dia me sei mais Poeta.

24.06.1990

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Do Amor

Imponderabilíssima Ilusão!Cantei o amor, porém, não era amado.Antes, era iludido e desprezadoO meu sincero e simples coração.

Em nome deste amor fui derrotadoE cheguei à mais triste conclusão:– O amor não passa de uma diversãoQue nos diverte até ficar cansado.

Hoje, não creio mais nessas histórias...Se alguém vem me contar infaustas glóriasDe um amor, eu não creio nelas, não.

O Amor é uma mentira que se aprende.Mercadoria que se compra e vende,Imponderabilíssima Ilusão...

21.11.1987

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História Triste

Era uma vez uma princesa tristeQue andava abandonada num castelo,Tinha no coração um sonho beloE uma esperança que não mais existe...

E ela dizia: –“Se este atroz cuteloA perfurar meu coração persiste,Se à eterna solidão minh’alma assiste,Por que nos amor, meu sonho não atrelo?!...”

E andando, triste, ela, infeliz, pensava...“Como farei para ficar escravaDe um sonho lindo, de um ridente amor?”

Mas foi-se o tempo e seu amor não veio...Com um punhal ela furou seu seioMorrendo um dia, de tristeza e dor.

28.06.1988

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Aranha

Aranha... e me prendeste em tua teiaE não consigo me livrar da tramaDos teus fios sedosos... oh, Sereia,No teu, meu coração todo se embrama...

Me aquece, que me aqueço nesta chama,Me chama, me inebria, me incendeia...O eu fio prateado é como a veiaQue vai ao coração... e queima e inflama...

Fulgura ao sol e qual viúva negraMe possua e no espasmo voluptuosoEu morrerei feliz – pois esta é a regra...

Com teus palpos mortais fere e me arranha,Põe em minh’alma do veneno, o gozo,Ao me prender em tua teia... Aranha...

15.07.1986

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Soneto Canção

Presta muita atenção, minha querida,Que vou te dedicar uma canção...Uma canção tão linda como a vida,Que faz ficar feliz, o coração.

Ouve: minh’alma fica estremecida,Sinto o corpo ferver em emoção.Esta canção é linda e nos convidaA ter na vida, um pouco de ilusão.

Vem pertinho de mim, me abraça forte,Vou me tornar agora um belo Orpheu,Cantar até morrer – pois esta é a sorte.

Ouve, Julieta, sou o teu Romeu!O que importa morrer? Que importa a morte?!A canção é de amor! O amor sou eu!...

23.02.1991

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No Estio

Agora que passou a tempestade,– Meu barco em águas mansas vou remando! –Instigas-me com olhos de maldadeE duelo de palavras, vens tentando...

Tentas travar minha felicidade –Falsos conceitos ficas inventando...Tudo numa total ferocidade,Como das lepras más, ascoso bando...

Hoje que não conduzes mais o barcoDe nossas vidas, hoje que és passado,E vives tua vida em podre charco,

Tentas com as mãos fazer os próprios remos,E que naveguem juntos, lado a lado,Os corações que estão em dois extremos...

14.11.1990

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Engano

O tempo, Amiga, em desenfreada louca,Tudo destrói com fúria e com maldade...Se, temos n’alma uma felicidade,Sempre ela nos parece muito pouca.

Às vezes, nossa voz, de forma rouca,Tenta ao tempo pedir, com ansiedade,Que ele nos prenda na perpétua gradeDe um sonho bom... mas ele não se apouca...

Rápido, ele carrega no seu dorso,Esperanças, anseios, sentimentos,Que conseguimos com tamanho esforço...

Sendo ilusão, o tempo é igual fumaça:Vive vagando no valsar dos ventos,E faz sombra ligeira enquanto passa...

17.10.1990

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Posseiro

Teu corpo, para mim, é um mapa-mundo!Sei de cor teus abismos e montanhas!Tuas matas exóticas e estranhas,Teus lagos , onde os membros meus, afundo!

Na geografia deste amor profundoRealizo as mais inéditas façanhas:Uso armas, armadilhas, artimanhas,E cada vez me torno mais fecundo!

És minha Pátria! Falo o teu idioma!És minha Terra! E planto-me em teus vales!Vendo-te flor, aspiro o eu aroma!

E sabendo-te fértil cordilheira,Bebo-te o pólen rubro de teu cálix,Desbravador eu e possuo interia!

17.07.1990

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Sonhos

Se em sonhos uma nova vida buscas,Vê que tu buscas tão-somente um sonho.E, a realidade é um Nero atro e medonho,Que Romas queima de maneiras bruscas.

Se, chamas de ódio lanças e chamuscas,Nesta maldade – minhas mãos não ponho.Se a realidade ora me faz tristonho,É que matas meus sonhos e os ofuscas.

Pensa bem nos delírios que tu fazes...Se, pensas procurar um novo oásisOnde possa matar a tua sede,

Vê que o deserto só contém areia,E a caminhada de visões é cheiaE outra irá descansar em tua rede...

23.03.1990

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Reverso da Medalha

A aranha muitas vezes tece a teiaPara caçar a mosca distraída;Mas, incauta, caíste na cadeia,E deste adeus da Liberdade, à vida.

Tentei tirar-te de prisão tão feia,Mas o veneno foi uma bebidaQue entorpecida e deixou sem peia,... E eu não tive sucesso na investida.

E muitos riram diante o meu fracasso...Enquanto eu, louco, te ofertava o braço,Tu seguias atrás de uma ilusão.

E agora que chegaste ao fim do poço,Desesperada, buscas no alvoroço,Que te apoiava... e hoje te nega a mão...

23.04.1990

Page 72: SEMEADURA

A Roseira

Há no meu coração uma roseiraQue insiste e teima em me deixar contente...Floresce em rosas, continuadamente,E, cativa, se torna prisioneira.

Quando uma rosa, com perfume olenteDesabrocha sangrando, prazenteira,Ela, a mim oferece intacta, inteira,A sua virgindade permanente...

E assim, vamos vivendo nós: unimosVeias, raízes, sumos, liquens, imos,.Andando e perfumando alvos caminhos...

Mas ela, às vezes, cheia de arrogância,Cuida estar só e numa impávida ânsia,Me cutuca e me fere com espinhos.

07.07.1986

Page 73: SEMEADURA

Em “P”

– Partir! – para o Poeta pensativo,Partir parece a própria penitência,E o Pensamento, de penhor plausivo,Põe no porto um programa de prudência.

Para o Poeta pobre, o paliativoPadece e permanece na pendência.Pronto ao problema popular me privo,E o povo-pedra, a podridão que prense-a.

Paupérrimo perturba o pensamentoProfundas pontes perpendiculares,– Pégasus que pacientes ao porvir,

Procuram – prontos – ao padecimento,A própria Pátria em amplidões polares,– O Porto de aportar e de partir.

09.09.1988

Page 74: SEMEADURA

Tela

Vive o homem a buscar felicidadeNos canteiros floridos da esperança,Porém, a cada passo que ele avança,Vai encontrando mais iniqüidade.

Em tudo existe atroz ferocidadeE as sementes produzem só vingança.Nenhuma traz um sonho de criança –Somente angústias a su’alma invade.

A própria Terra já não tem mais vida,E o Homem, na angústia imensa se consome...Seu desespero torna-se total...

– Parece a Terra a tela enegrecidaDe um quadro que o pintor não pôs seu nome,Pois foi rascunho para o original.

10.10.1986

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Segredos da Noite

Era preciso que uma noite houvesse,Mais negra, mais profunda, mas intensa,Para que fosse necessária a prece,Para que fosse necessária a crença.

A negra luz da noite espessa e densaColocaria morte em quem quisesseBrilhar de uma maneira mais imensa,– A noite é sempre morte quando desce!... –

E a noite, fulgurando sua treva,Em cada coração coloca o medoQue prevalece enquanto o sangue escorre...

E de um ventrículo a outro, aos jorros, levaO sangue indesvendável do segredoQue encontra a luz na hora que em trevas,morre...

24.09.1987

Page 76: SEMEADURA

Necessidade

Era preciso que uma noite houvesseTão negra, tão profunda, ao feroz,Para que minha cavernosa vozAo céu subisse igual profana prece.

Era preciso que uma podre messeOs celeiros enchessem de arriós,Para que o desespero fosse atrozEstampado no olhar de quem padece.

Era preciso que a matéria toscaApodrecesse num paiol de pusE que a esperança, de uma forma fosca

Se mostrasse coberta de capuz,E o apetite necrófago da mosca,Acuasse a multidão de encontro à cruz.

25.09.1987

Page 77: SEMEADURA

Semeador

Tantos versos estão em minha menteQue é necessário apenas escrevê-los –E, quando a Inspiração vem num repente,Desfio-os como as lãs de alvos novelos.

Dentro da noite então, andando pelosRumos do Sonho, inesperadamenteJunto à memória tento, em vão, retê-losTal como o Semeador faz com a semente.

Faço-me enfim, de Semeador do Verso!Nos campos adubados do UniversoLanço ao chão as sementes da bonança...

– Passado o tempo da Semeadura,Todo o campo se cobre de ternura,Com as perfumadas flores da Esperança.

12.12.1987

Page 78: SEMEADURA

Busca

Busca este meu Poema a Perfeição e buscaA alva sonoridade em campos de Esperança;Porém, o meu olhar na imensidão se ofuscaE o Espectro do Terror aos meus olhos se lança.

Fatídico revés... na caminhada bruscaTento achar onde estão meus Sonhos decriança...Mas o fogo da dor minha Ilusão chamusca,Que o desespero a mim chega sem maistardança.

Deserto o meu jardim... onde outrora floriaA pura perfeição da plácida Poesia,Hoje somente mina o mato e o cardo medra.

Ah! nada consegui, mas um podre esqueletoParece recordar os ossos de um SonetoQue sepulto ficou num túmulo de pedra.

23.12.1986

Page 79: SEMEADURA

O Homem

O Homem se vangloria! E, enquanto busca aglória,De tropeço em tropeço Ele alcança as alturas,Para poder deixar o seu nome na HistóriaAo povo que chegar nas épocas futuras.

– Que vale a espaçonave a boiar toda flóreaNo imenso azul do céu, se tantas sepulturasSão abertas de forma infusa, merencória,E nos causam horror, desesperos, agruras?

O Homem se vangloria... e há neste vangloriar-seUma Ilusão fatal, furuncular, funesta,Que para se mostrar, necessita disfarce.

E o Homem se julga um Deus, um Atilas, umAquiles!E, ao cantar esta força, em sua boca infestaUma gosma esverdeada e amargura de bílis.

14.06.1988

Page 80: SEMEADURA

O Tempo

O Tempo corre... a fina areia da ampulhetaFlui em horas de sono em sua calma aflita.A vida brota breve, o braço bruto britaO corcel que cavalga em sensível carreta.

O Ontem fenece, fica o fosfóreo cometaDe uma lembrança azul na paisagem finita.O Homem agride a noite, em desespero gritaE seu passado vê nas lentes da luneta.

O porvir fica pobre e perlustra a derrotaQue sobre os ombros pesa – o amanhã é umafrutaQue ainda está verde e a vida é de cinzenta rota.

E o louco do Homem sai, alucinado, à cataDa efêmera visão do tempo e na árdua lutaNão percebe que a vida é uma ilusão ingrata!

14.09.1988

Page 81: SEMEADURA

Infância

Os dias do futuro estão chegandoE os passado a distância vai seguindo.E aos quatro mundos, fico perguntandoPara onde foi aquele tempo lindo...

A alegria era pássaros em bandoQue entre os jardins em flor, iam surgindo;E todos vinham, céleres, cantando,A sinfonia de um viver infindo.

Hoje o futuro atroz se faz presente.Uma voz diz inexoravelmenteQue o passado é uma bola de sabão

Que fica flutuando colorida,E parece ter alma, luz e vida,E não passa de efêmera ilusão.

12.10.1983

Page 82: SEMEADURA

Semeadura

O Pensamento – preso entre grilhões,Liberta-se nos campos da procura.Passado o tempo da semeaduraA terra estoura em tenros tinhorões.

Na úmida era viceja aos borbotões,Dá folhas, flores, frutos, em fartura.Mistura o cheiro do capim-gordura,Às acácias, às dálias, aos festões.

Os pirilampos com os colibrisProvocam espetáculos de coresQue a alma do camponês fica feliz.

Um, na colheita – põe a sua luz!O outro, entre afagos – vai beijando as flores!E a Natureza o seu amor traduz.

23.10.1984

Page 83: SEMEADURA

Coisas Sagradas

Penso em coisas sagradas... penso, e enquantoNessas coisas sagradas – aéreo penso,Respiro no ar a essência de um incensoE de anjos penso ouvir etéreo canto.

O céu se veste de um azul intensoE mostra-me do Amor – fulgor e encanto.Coisas Sagradas – vibração! E o mantoDa humildade me cobre em sonho denso!

No Oráculo da vida eu me ajoelhoE a vida a mim se mostra no alvo espelhoDe um lago azul que me reflete o Céu!

E em forma de asas, abro então meus braços,E na volúpia de abarcar espaços,Escuto a voz de Deus, num escarcéu!

23.10.1988

Page 84: SEMEADURA

Operário

Coordeno o pensamento, os vocábulos prendo,E tento, entre grilhões, aprisionar a rima.Se a ânsia de extravasar em versos vem de cima,Então, às Leis de Deus no Universo me rendo!

Se a idéia não vem pronta – é necessário a limaQue possa desbastar o que saiu horrendo,Em plena combustão, como ferro fervendoE à cabeça aderiu como poderoso ímã.

Depois de tudo pronto – a jóia lapidada,Às vezes pode não agradar quem a leia,Como pode sair sem ter nenhum valor.

Para o Artista, porém, será sempre lembradaComo obra capital, como a importante veiaQue leva aos corações, os suspiros do Amor!

23.10.1986

Page 85: SEMEADURA

Soneto de Faxina

Meu coração é um mar e nele existe um portoOnde as embarcações da vida, de hora em hora,Chegam sem avisar, trazendo um sonho morto,Uma dor, uma angústia ou uma paz sonora.

Sempre de prontidão, logo ao luzir da auroraAs cargas vão chegando e às vezes, eu, absorto,As bagagens misturo e depois, sem demora,Separo-as com mais calma em horas de conforto.

Às vezes, nos baús dessas reminiscênciasEncontro, com prazer, cartas amareladas,Flores secas, papéis com mil anotações;

E depois, sem saber as reais procedênciasDe tudo o que encontrei, deixo-as ao chão,jogadas,Pois já não trazem mais sequer recordações.

14.10.1984

Page 86: SEMEADURA

O Velho

Quantas vezes, com as mãos apoiadas ao rostoE com o olhar pensativo, a fitar o Infinito,Fica ele a divagar... e a consciência, num grito,À sua mente traz um quadro já composto...

Agora, quando a vida esmaecendo ao sol posto,(Sem que se note o vício atraído ao tempo) o ritoCadenciado, se mostra às faces do precitoQue entre rugas estampa as marcas do desgosto.

Perdido olhar sinistro!... além, busca uma estrelaQue brilha cintilante e os seus olhos já opacos,Esforçam para ter uma visão mais forte

Do que em vão tenta ver... e a vista força... e, aovê-la,Julga estar vendo a Vida e os joelhos, sentefracos,E por terra estertora entre espasmos de morte.

13.02.1983

Page 87: SEMEADURA

Cigarro

O cigarro descansa no cinzeiroEnquanto, em espirais, lenta, a fumaçaSe solta, preguiçosa, do braseiroE, em instantes, me deixa a vista baça.

Forma desenhos no ar; um corpo inteiroAparece impalpável nesta massa...Após, parece o corpo de um carneiro,Que, em marcha lenta, flutuando, passa...

E eu fico a olhar esses desenhos... percoDo tempo, então, sua noção exata,E nesses devaneios, tolo, penso,

Que o Ser Humano é este cigarro imenso,Que na vida somente vive à cataDa Ilusão que lhe serve por esterco.

23.10.1988

Page 88: SEMEADURA

Lenitivo

Ao vitorioso um beijo satisfaz!E ao derrotado, nem milhões de beijosPodem matar a fúria dos desejosQue o gosto amargo da derrota traz.

O derrotado no silêncio jazOuvindo ao longe, os urros benfazejosDe quem canta a vitória com arpejosE nem se lembra o que ficou atrás.

Às vezes, a derrota é uma vitóriaQue não é compreendida no momentoPorque a amargura, angústias reproduz.

Cristo também só teve sua glóriaQuando sentir na carne o sofrimento,E, no silêncio, padeceu na Cruz.

09.09.1987

Page 89: SEMEADURA

Soneto do Passado

Os meus poemas tinham os saboresDe uma época que as frutas eram sãs,O cheiro dos canteiros de hortelãsE dos eucaliptais cheios de flores.

Os meus poemas tinham os fulgoresDo sol brilhando aos nimbos das manhãs,Das polpas rubescentes das romãs,Do arco-íris refletindo as sete cores.

Os meus poemas tinham mil amores,Por diletas e tímidas irmãsTinham das rimas fetos criadores.

Mas hoje, minhas rimas são pagãs,Os meus sonhos tornaram-se traidores,E minhas esperanças foram vãs.

11.11.1988

Page 90: SEMEADURA

Revisão

Passo a limpo os capítulos da históriaDe minha longa e tenebrosa vida:Vou, pois, puxando os fios da memóriaE remexendo a casca da ferida...

Jorra o sangue de forma aleatória,E quem me lê, de forma aborrecida,Não consegue encontrar dedicatóriaNem vê tanta tortura carcomida!...

Entro no mais profundo dos meus cômodosPara encontrar o mais nefando acervoDos capítulos podres desses fatos...

A alma, porém, encontra mil incômodos...Retraio o corpo e sinto em cada nervo,Profundo corte no findar dos atos...

13.10.1990

Page 91: SEMEADURA

Cadeia

Às vezes, me pergunto, introspectivo,Se, vale a pena me prender aos versos,E por vontade própria ser cativoSe, posso ter os mundos mais diversos.

Tanto tempo atrás deles, tolo, vivo,Que poderia ter mil Universos,Se, eu os deixasse todos num arquivo,Se, os deixasse, então, todos dispersos...

Esta espontânea obrigatoriedadeMe faz que eu fique preso por vontade,Num desespero imponderado, louco...

Vale a pena ser deles, prisioneiro,Pois com eles conquisto o mundo inteiro,E esta prisão me prende muito pouco!

14.10.1990

Page 92: SEMEADURA

Meu Coração

Meu coração é uma tapera imundaOnde só cabem ímpios, maus e sujos.Cabe a prole bastarda dos marujosE o estuprador de mente furibunda.

Em pensamentos maus ele se afundaE anda de rastos, como os caramujos...Pensa nas podres prostitutas, cujosVentres, uma só vida atroz fecunda...

Nojento escorpião – ferrão em riste –Sempre esperar seguir alguma vítimaQue possa pôr em pânico cruel.

Meu coração é podre, pobre, triste.Se, mata – busca uma razão legítima,E em seus ventrículos, só corre fel.

21.01.1990

Page 93: SEMEADURA

Pureza

A minha luta é grande, e forte, e vã,Pois contra a idéia travo mil batalhas.Com as lâminas afiadas, as navalhasTeimam em não deixar a pele sã.

No ontem trabalho o dia do amanhãE no arremate, ponho fim às falhas.Se as idéias tornarem-se grisalhas,Ao ofício retorno com afã.

Domo o vocábulo, aprisiono a luz,Coloro a mente com o fulgor da aurora,Palmilho a estrada ao sol que me seduz.

E num poema sobrenatural,Comungo a hóstia solar, que sangue chora,E fico sem pecado original.

23.03.1990

Page 94: SEMEADURA

De Tocaia

A agonia letárgica dos PapasCausa-me desesperos e me oprime –Assim pensando num macabro crimeTrago nas mãos uns estudados mapas.

Na atra Noite procuro obscuras capasPara a Alma que, em pecados, se comprime.– Se, em versos negros, meu cantar se exprime,Para o lirismo dou sonoras tapas.

Na geografia dos caminhos rotos,Conheço as espeluncas com esgotosPodríssimos, correndo a céu aberto.

E na alta combustão do podre estrumeEstiro minha pele num curtumeComo réu condenado no deserto.

23.10.1988