semana santa 2009
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Encarte especial do Voz de NazaréTRANSCRIPT
Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 1ESPECIAL
Conheça a história dos primeiros missionários cristãos
O que aconteceuno mundo após a
ressurreição de Jesus?
A formação dascomunidades e dos Evangelhos
ESPECIALVol. 4, aNo i1 março 2008
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Belém, sexta-feira, 21 de março de 20082 ESPECIAL2 Belém, sexta-feira, 21 de março de 20082 ESPECIAL
a prática de Jesus de Nazaré levantara profunda hostilidade entre seus contemporâneos (mc 3,31), especialmente entre as autoridades judaicas (mc 3,22), pois consideravam absurdas, irreverentes e ultrajosas as posições tomadas por ele com relação às tradições hebraicas, sobretudo acerca das normas de pureza ritual e da observância do sábado.Quanto às autoridades romanas da Palestina, Jesus podia aparecer como um perigoso líder revolucionário reivindicando a realeza sobre seu povo contra as prerrogativas do imperador (Jo 19,12.15).Com efeito, em ocasião de uma viagem a Jerusalém para a festa da Páscoa, Jesus foi preso, processado e condenado à morte de cruz. a
crucificação era a pena capital infligida aos delinqüentes, escravos, criminosos e revoltosos. No letreiro colocado na cruz estava escrito o motivo oficial da condenação: “Jesus de Nazaré, rei dos judeus” (iNri). a execução ocorreu numa sexta-feira, vigília da Páscoa hebraica, quando era procurador da Judéia, Pôncio Pilatos (26-36 d.C.), quase certamente no 7 de abril do ano 30.a história de Jesus não está registrada em crônicas nem nas atas oficiais dos arquivos romanos, nem tampouco em alguma obra de história judaica. as fontes não bíblicas que o mencionam são escassas e resumidas. evocando o incêndio de
roma e a primeira perseguição aos cristãos, sob o imperador Nero (64 d.C.), o historiador romano tácito (55-125) dá a seguinte explicação à palavra ‘cristãos’: “este nome lhes vêm de Cristo, condenado ao suplício pelo procurador Pôncio Pilatos, sob o império de tibério” (annales 15,44,2-5).o corpo de Jesus foi enterrado por Nicodemos, escriba fariseu, secretamente discípulo de Jesus, e por José de arimatéia, pessoa influente em Jerusalém e admirador de Jesus. José de arimatéia cavara na colina rochosa, perto do Calvário, um túmulo em forma de gruta. foi aí que depositaram
o filho de deus venceu a morte e revolucionou a história da humanidade
a morte na cruz e a ressurreiçao~
EXPE
DIE
NTE Especial Páscoa - Caderno extra do Jornal Voz de Nazaré Fundador: Pe. Florence Dubois, bta Presidente: Dom Orani João Tempesta, Arcebispo Metro-
politano de Belém do Pará Diretor Geral: Dom Carlos Verzeletti, Bispo Diocesano de Castanhal, Pará Diretora administrativo e financeiro: Marluce
Guerreiro Milhomem Diretor de Comunicação: João Bosco Gomes Jornalista responsável e edição: Felipe Melo (DRT/PA – 1769) Textos: Pe. Giovanni
Martoccia Revisão: Vladiana Alves Editoração eletrônica e Edição de Arte: Henrique Corrêa (DRT/PA – 1783) Fotos: Luiz Estumano e de domínio
público Redação: (91) 4006-9200/ 4006-9238/ 4006-9239/ 4006-9244/ 4006-9245 Impressão: Gráfica do jornal O Liberal Tiragem: 5 mil exemplares
Site: www.fundacaonazare.com.br E-mail: [email protected]
A morte e a ressurreição
de Jesus constituem o
ponto central da mensagem
do Novo Testamento e
representam para os cristãos
um acontecimento único
e definitivo. Na verdade,
todo o Novo Testamento e
toda a teologia cristã têm
como objetivo desenvolver
o significado do “evento
Jesus Cristo”. Jesus Cristo
é o centro da profissão
de fé cristã. Jesus é o ser
humano histórico, que
viveu na Palestina no tempo
do imperador Tibério e
que morreu crucificado
sob Pôncio Pilatos; Cristo
expressa o papel salvífico
no plano divino dessa
mesma pessoa. A profissão
de fé da comunidade cristã
primitiva inclui também
sua transcendência divina,
pois ela acredita que Jesus
ressuscitou glorioso e é
Senhor do mundo e da
história.
jesus cristo e as origens do cristianismo
Paixão - Dieric BoutsMuseu da Capela Real - Granada
Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 3ESPECIAL3
a morte na cruz e a ressurreiçao~
o corpo de Jesus e fecharam o túmulo com uma grande mó de pedra que se rolava diante da entrada (mc 15,43-47 e par.)a época de Jesus foi a mais fortemente agitada pelas esperanças messiânicas. desde Herodes, o Grande, violentos ou pacíficos, políticos ou não, os movimentos messiânicos não pararam de aparecer, até provocar a destruição de Jerusalém no ano 70 pelos romanos e o aniquilamento do estado judaico na Palestina. o grupo mais conhecido entre os movimentos messiânicos de revolta nessa época é o dos zelotas. fundada por Judas Galileu, a seita dos zelotas era um partido religioso que fazia da espera messiânica um programa político. outros, como João Batista e seu movimento, anunciavam apenas a vinda iminente do messias, sem caráter político manifesto nem uso de violência. eles confiavam na intervenção definitiva de deus para ver o reino messiânico e o fim da dominação romana.assim, surgiu também a seita que viu em Jesus o messias e que, depois de sua morte na cruz, esperava sua volta gloriosa. devido à grande confusão que reinava na Palestina, ficava difícil para os estrangeiros distinguir entre os movimentos políticos e os de caráter apocalíptico, mesmo porque eles tinham muito em comum e seus partidários aderiam freqüentemente aos novos líderes que iam surgindo. No grupo de Jesus, com efeito, havia
zelotas, fariseus, cobradores de impostos, mulheres, discípulos do Batista. Não surpreenderia, portanto, se os romanos ignorassem o verdadeiro significado do projeto de Jesus, sua pregação, seus gestos simbólicos, suas curas, e o tivessem condenado à morte como um perigoso revolucionário. de fato, eles reprimiram muitos movimentos messiânicos que pregavam ódio contra roma e recusavam pagar os impostos, crucificando, ou matando de qualquer outra forma, todos seus líderes. é difícil também determinar exatamente o papel desempenhado pelas autoridades judaicas, que a tradição cristã primitiva, entretanto, considerou principais responsáveis pela morte de Jesus.
é provável, ao que tudo indica, que, preocupadas em manter o status quo, tenham denunciado Jesus como revolucionário e colaborado para sua condenação. de fato, Jesus foi morto na cruz como profeta messiânico, do mesmo modo que outros agitadores.mas o movimento escatológico-messiânico surgido com Jesus não morreu. a tradição comum dos evangelhos relata as experiências pascais de alguns discípulos, principalmente as mulheres, que atestaram terem encontrado Jesus ressuscitado. entretanto, Jesus ressuscitado não é logo reconhecido. ele leva a pessoa a um ato de fé, através de um gesto simbólico – a partilha do pão como no caso dos discípulos de emaús –, ou por suas palavras – como com madalena –, ou também por um “sinal” – como a pesca no mar de tiberíades (lc 24,30s; Jo 20,16; 21,4s). os discípulos são convidados a reconhecer Jesus de Nazaré nessa personagem misteriosa. madalena, reconhecendo Jesus, quer tocá-lo e retê-lo. ela crê que ele ficará ainda na terra como antes. Não será assim. mas Jesus não abandona os seus, ele estará sempre com eles; sua presença será diferente, mas também real.
Este nome (cristãos) lhes vêm
de Cristo, condenado ao suplício
pelo procurador Pôncio Pilatos,
sob o império de TibérioTácito
(55-125)Historiador romano
“PADRE GIOVANNI
MARTOCCIA é missionário da
Pia Sociedade São Francisco
Xavier. Mestre em Bíblia pelo
Studium Biblicum Franciscano
de Jerusalém, atualmente,
ele é professor de Sagradas
Escrituras no Instituto Regional
para a Formação Presbiteral,
em Belém, e pároco de Nossa
Senhora do Rosário, no
município de Colares, Pará.
Italiano, ele tem 57 anos, 29
dedicados ao sacerdócio e
está no Brasil desde 1995. Foi
colaborador na produção dos
textos deste Especial.
SepultamentoFra Angelico
Alte Pinakothek, Munique
Belém, sexta-feira, 21 de março de 20084 ESPECIAL
ao escrever o relato dos discípulos de emaús,
lucas reproduz a experiência da “fração do pão”
das primeiras comunidades. Na primeira parte das
reuniões aprendia-se a conhecer a pessoa de Jesus,
fazendo-se uma leitura comentada do evangelho.
Quando os corações estavam aquecidos pela luz da
Palavra, o presidente da assembléia repetia os gestos
de Jesus, dizia suas palavras sobre o pão e o vinho e
Jesus estava lá. Pela fé, os olhos se abrem e os cristãos
reunidos sabem que Jesus está no meio deles e que
eles o encontram realmente. mesmo se não o vêem,
estão à mesa com ele, como no Cenáculo ou em
emaús, e unem-se a ele pela comunhão.
são Paulo faz memória dessa tradição na Carta aos
Coríntios: “eu mesmo recebi do senhor o que vos
transmiti: na noite em que foi entregue, o senhor
Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o
e disse: “isto é o meu corpo, dado para vós; fazei
isto em memória de mim...” (1Cor 11,23s).
a experiência do encontro com Jesus vivo,
após sua crucificação e sepultamento, foi uma
experiência de fé, ainda que real. foi uma
concessão de deus àqueles que iriam se tornar
as testemunhas do ressuscitado até os confins
da terra. Não se manifestou a todo o povo (at
10,41). a própria ressurreição de Jesus e suas
aparições aos discípulos, tanto às mulheres como
aos apóstolos, foram “fatos” que escapam ao
conhecimento empírico, ao estudo cientifico e à
comum percepção obtida por meio dos sentidos.
daí a dificuldade dos pregadores de convencer
seus ouvintes acerca da verdade da ressurreição.
os próprios apóstolos foram os primeiros a
terem dúvidas (lc 24,11-41).
eles pensavam que estavam vendo coisas, que se
tratasse de uma ilusão. Por isso, o apostólo tomé
queria absolutamente tocar com o dedo as chagas
do corpo de Jesus.
os evangelhos, muitas vezes e de várias maneiras,
destacam o chamado de atenção de Jesus aos
apóstolos por eles demorarem a acreditar (lc
24,25; Jo 20,27; cf. mc 16,11 e mt 28,17). as
próprias mulheres não foram ao túmulo impelidas
pela esperança de assistir ao grande evento da
O APÓSTOLO TOMÉ, também chamado Dídimo, era gali-
leu e pescador.
Após acreditar na ressurreição de
seu Mestre, ele seguiu em missão
evangelizando parte da Pérsia e da
Índia, onde morreu martirizado
Belém, sexta-feira, 21 de março de 20084 ESPECIAL
Incredulidade de São ToméCaravaggio
Sanssouci, Potsdam
Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 5ESPECIAL
vitória da vida, mas apenas por um sentimento de
piedade e saudade, visitar o sepulcro (mt 28,1),
levar ungüentos (mc 16,1). o sepulcro vazio,
porém, mais do que a prova da ressurreição, é a
confirmação que o ressuscitado é o mesmo que foi
crucificado, o elo entre o Jesus da história e o Cristo
da fé, entre o Cristo humilhado e o Jesus glorificado.
a ressurreição de Jesus foi um acontecimento
misterioso, que não se podia ver, nem registrar, nem
filmar; que se passou sem testemunhas.
é um acontecimento do mundo de deus e, então,
nos escapa. mas é também um acontecimento
bem real da história dos homens; nenhum outro
acontecimento teve tal impacto na vida do mundo.
os apóstolos de Jesus e os primeiros cristãos, de
quem os evangelhos trazem com fidelidade a fé
e o pensamento, tinham a certeza e as provas de
que Jesus não ficou sob o poder da morte, mas
que ele entrara numa vida nova e está vivo junto
de deus. seu corpo ressuscitado é um corpo
recriado por deus, transfigurado pelo espírito,
incorruptível e celeste (1Cor 15,42s).
Na sua vida nova, Jesus não está mais ligado
às condições habituais da existência na terra.
ele escapa às leis do espaço e do tempo, não
precisa de passagem para sair do túmulo, ou de
porta aberta para entrar em qualquer parte. ele
pode também estar presente em nossa vida e
comunicar-nos seu amor, sua graça, sua luz, sua paz.
as últimas palavras do evangelho de mateus
ensinam que Jesus não se despediu, mas garantiu:
“eu estarei com vocês todos os dias, até o fim
do mundo”. assim, Jesus não fala de sua partida,
mas declara que sua presença é permanente. No
início de seu evangelho, mateus dissera que Jesus
era o “emanuel”, o “deus conosco”. ele termina
seu evangelho como começou. a história de Jesus
na terra terminou. agora será a história de sua
presença misteriosa entre nós.
Para a tradição cristã original, Jesus não é uma
figura do passado mas, antes de tudo, o senhor
ressuscitado, que atua na vida da igreja com seu
poder salvífico e sua Palavra de vida. No encontro
com Jesus, o autor da Vida (at 3,15), cada pessoa
recebe um novo presente, porque a vida, o
mundo, a existência de cada criatura encontram-
se agora iluminados pela luz do amor divino
que emana do Crucificado, inundando a história
humana de alegre esperança até a manifestação
final de sua glória. dela poderá participar todo
aquele que responder com fé e amor, pois essa é
a vocação da humanidade e o destino que deus
preparou para ela (1ts 3,13).
assim, Jesus não é um que voltou à vida, como
lázaro reanimado, chamado a uma prolongação
da existência que terminará algum tempo depois.
Não, Jesus não pode mais morrer, pois ele
entrou num novo gênero de existência. desta
nova vida não se pode fazer idéia exata, pois
ela é do mundo de deus, e o mundo de deus
nos ultrapassa. só sabemos que seremos
semelhantes a ele, porque o veremos tal
como ele é (1Jo 3,2).
Vemos nos evangelhos dois tipos de
encontro com Jesus ressuscitado. em certos
relatos acentua-se este fato: depois de sua
morte, Jesus foi encontrado vivo. mas ele
devia dar provas de que não era um espírito, um
fantasma (lc 24,36-43). ele se apresentou, então,
de modo familiar, como na vida do dia-a-dia:
ele se fez ver, tocar, conversou, comeu, andou.
No entanto, Jesus quis também mostrar que
ele era de outro mundo e escapava à condição
humana: de repente, ele estava lá, todas as portas
fechadas... e de repente não estava mais lá!
Noutros relatos, acentua-se sua glória de
ressuscitado. Jesus é exaltado e triunfante junto
de deus, após sua vitória sobre a morte. ele é
declarado senhor do universo. No encontro da
Galiléia, ele se apresenta assim: “toda a autoridade
sobre o céu e sobre a terra me foi entregue” (mt
28,18). estes dois gêneros de relato são feitos
para completarem-se.
Eu estarei com vocês todos
os dias, até o fim do mundo
Jesus aos discípulos,enviando-os em missão,
antes de sua subida aos céus(Mateus 28, 20b)
“Ceia de Emaús
Caravaggio
Galeria Nacional, Londres
Belém, sexta-feira, 21 de março de 20086 ESPECIAL
Para os apóstolos e para os discípulos da primeira hora, e para os que vieram depois, como Paulo e os evangelistas, Jesus de Nazaré era o Cristo (o messias), a quem deus não abandonou no sepulcro após sua morte, não deixou que experimentasse a corrupção do túmulo, mas o ressuscitou (at 2,29-32). aquele que foi elevado na cruz foi exaltado por deus na glória. lucas termina seu evangelho por um último encontro no monte das oliveiras, perto de Jerusalém: “enquanto os abençoava, distanciou-se deles e era levado ao céu” (lc 24,51). Chama-se isto a ascensão de Jesus.Não se deve imaginar Jesus voando para o céu feito super-homem. é uma maneira para dizer plasticamente que Jesus foi glorificado “à direita do Pai”. No livro dos atos, lucas retoma as imagens e o estilo do antigo testamento que fazem das nuvens uma escada de glória e triunfo subindo para deus (at 1,9). é um modo de dizer que Jesus é senhor do universo.os relatos das aparições devem ser vistos como testemunhos de fé e não como crônicas. o que se tornou uma certeza na igreja foi que deus mesmo tinha intervindo com mão
onipotente, arrancando Jesus de
Nazaré do poder da morte, glorificando-o como Juiz universal.a Páscoa é, pois, o reconhecimento
que deus concede a Jesus, a quem o mundo havia rejeitado. é o início do novo mundo de deus neste velho
mundo, marcado pelo pecado e pela morte. é a inauguração
definitiva do reino de deus, anunciado por Jesus durante sua vida terrena. só que agora o próprio Jesus, com sua morte e ressurreição passa a fazer parte dessa mensagem, tornando-se o centro do anúncio (kerygma).a crítica liberal negava a
historicidade de Jesus e a credibilidade dos apóstolos e evangelistas, mas exaltava a mensagem moral como a mais sublime que o mundo já ouviu. mas como podiam pessoas de má fé e de origem tão
humilde inventar uma ética tão excelsa e, ao mesmo tempo, uma mensagem tão inusitada, incrível e inaceitável para o Judaísmo: a de um homem divinizado ou de um deus encarnado (Jo 1,14)? se Jesus não era nada daquilo que eles anunciaram, por que inventar um salvador humilhado na cruz, idéia tão absurda quanto escandalosa para os judeus e, com relação aos romanos que o teriam justiçado, extremamente perigosa. Com efeito, quem se declarasse parente, amigo ou
discípulo de um subversivo justiçado era passível também de pena capital.Por outro lado, se Jesus é
realmente aquilo que eles anunciaram, um conhecimento
meramente histórico, por mais científico que seja, nos daria uma
o ressuscitado revela o autêntico rosto de deusmistério de jesus cristo
Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 7ESPECIAL
“eu sou o Primeiro e o Último, o vivente;estive morto, mas eis que estou vivo Pelos séculos dos séculos“imagem distorcida e falsa, ou pelo menos dramaticamente parcial do homem de Nazaré, profeta ou charlatão, mestre ou subversivo, faltando-lhe sua verdadeira identidade de filho de deus e salvador do mundo.o testemunho de fé da igreja primitiva, contido nos livros do Novo testamento, é praticamente a única fonte existente para conhecer o Jesus histórico. é essa a única “biografia” possível de Jesus. mas a figura ali descrita não é o Jesus conhecido empiricamente pelas pessoas ao longo de sua vida nesta terra, mas é a releitura desse seu passado por aqueles que acreditaram na sua ressurreição e que fizeram questão de comunicar o que tudo isso significava para eles e para a vida do mundo. assim, embora os evangelhos e todo o Novo testamento tenham suas raízes na vida e morte de Jesus, eles não são meras fontes históricas, mas a reunião de fatos vividos por Jesus e narrados do ponto de vista de escritores que acreditam ser ele o Cristo, o filho de deus enviado para salvar o mundo, morto e ressuscitado, o Vivente glorioso que tem a chave da morte: “eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e do Hades” (ap 1,17-18). Poderíamos dizer, em outras palavras, que não se conhece uma única frase de Jesus nem uma simples narração sobre ele que não contenham, ao mesmo tempo, a profissão de fé da comunidade cristã. e os evangelistas querem deixar isso bem claro: “assim, quando ele ressurgiu dos
mortos, seus discípulos lembraram-se de que dissera isto e creram na escritura e na palavra de Jesus” (Jo 2,22). Para alcançar seu objetivo eles lançam mão de gêneros literários, técnicas e recursos próprios da pregação religiosa.Jesus, o profeta e rabi de Nazaré, cuja história começou na Galiléia e terminou sobre a cruz, em Jerusalém, é ao mesmo tempo o Cristo ressuscitado, revelador definitivo do autêntico rosto de deus com quem reconciliou o mundo por seu amor incondicional até o extremo. a igreja compreende o passado da história de Jesus a partir da sua ressurreição dentre os mortos, incluindo tudo isso na sua pregação como um acontecimento que diz respeito ao presente e desvenda o futuro do homem.Na tradição cristã, a paixão de Jesus é entendida à luz de sua ressurreição: “Porventura não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (lc 24,26). os relatos evangélicos da paixão são dominados por esse grande e misterioso imperativo divino, a partir do qual até mesmo os protagonistas humanos desse acontecimento são vistos como instrumentos na realização do plano salvífico de deus, sem por isso anular sua liberdade e responsabilidade. a morte de Jesus tem, para os pregadores cristãos, o sentido de transformar este mundo, abrindo-o à irrupção da glória do ressuscitado que aceitou livremente a paixão, embora inocente, para nos presentear com o dom da reconciliação com deus e entre nós. o próprio Jesus, quando o sumo sacerdote lhe perguntou: “és tu o
Cristo, o filho do deus Bendito?”, rompeu o seu segredo messiânico: “eu o sou” (mc 14,61-62).de fato, o testemunho que os apóstolos deixaram e que foi transmitido de geração em geração, tornando-se tradição, e os escritos do Novo testamento, que a comunidade cristã considera como inspirados pelo espírito santo, são a única ponte para conhecermos tanto o Cristo histórico como o Jesus da fé.
Os textos do evangelista são os de
maior expressão literária do Novo
Testamento. Segundo a tradição, ele
foi médico e pintor. Converteu-se ao
cristianismo e tornou-se discípulo e
amigo de Paulo de Tarso
são lucas
Chamando Pedro e AndréDuccio di Buoninsegna
Galeria Nacional de Arte, Washington
São LucasAndrea Mantegna
Pinacoteca de Brera, Milão
Belém, sexta-feira, 21 de março de 20088 ESPECIAL
A pregação de Jesus retomada com novo
vigor por seus discípulos encontrou a
aprovação e adesão de um número cada vez
maior de seguidores. Em pouquíssimos anos
as comunidades cristãs se espalharam no
litoral da Palestina, Samaria, Galiléia, Síria
e, sucessivamente, na Ásia Menor e Grécia,
Roma.
Conforme o testemunho de Atos, estas
comunidades eram lideradas por um apóstolo
ou recebiam a visita de seus representantes
enviados com o intuito de as fortalecer,
confortar e garantir a fidelidade da mensagem
do Senhor (At 8,14; 11,22; 1Cor 16,10s;
2Cor 8,16). Ora, a difusão crescente, o tempo
que is passando, a dispersão dos Apóstolos,
os desvios doutrinários, etc. levaram os
discípulos a começar a fixar por escrito as
palavras e ações de Jesus. A necessidade
de formar os catecúmenos, de traduzir e
adaptar, esclarecer e aprofundar o conteúdo
da fé, de responder a questionamentos e
acusações provenientes tanto do judaísmo
como do paganismo – e até mesmo do meio
das novas comunidades – a organização
da vida litúrgica, os problemas morais e as
perseguições, tudo isso também incentivou
e influenciou o processo literário. Foram
surgindo coletâneas de milagres de Jesus,
resumos de discursos, relatos de episódios
significativos da vida do Mestre, sobretudo
as narrativas da paixão, listas de citações
bíblicas apropriadas para uma melhor
compreensão de seu significado e seu
alcance. Essas tradições, pois, adaptadas
às circunstâncias da pregação e da vida das
comunidades, confluíram na redação dos
Evangelhos, que ocorreu entre os anos 60
e 80, a dos Sinóticos, e lá pelo ano 95, a
redação final do Evangelho de João.
Marcos foi companheiro do apóstolo Pedro,
e Lucas, que vivia na igreja de Antioquia,
centro de irradiação missionária, foi o
companheiro de viagem do apóstolo Paulo.
Para um breve e simplificado resumo da
a formaçao do novo testamento:
os evangelhos~
ESPECIAL
Maiestas DominiHaregarius
Biblioteca Nacional, Paris
Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 9ESPECIAL
história dos Evangelhos, podemos
dizer o seguinte: uma primeira
coleção foi redigida por Mateus,
em aramaico (língua de Jesus),
mas essa obra perdeu-se. Marcos
inspirou-se nela e na pregação de
Pedro para escrever seu Evangelho,
moldado numa estrutura geográfica
e destinado a acompanhar os
catecúmenos pagãos no caminho da
fé no Messias crucificado. Mateus
(ou um rabino, seu discípulo)
retomou seu primeiro trabalho e,
tendo como base o Evangelho de
Marcos e acrescentando outras
lembranças, elaborou uma obra
teológica sobre o mistério do Reino
e da Igreja, num estilo tipicamente
hebraico. Lucas tinha a disposição
muitos trabalhos sobre Jesus
(Lc 1,1-4), quase certamente os
Evangelhos de Mateus e de Marcos
também, tinha ouvido a pregação
de Paulo e, por ser homem culto,
escreveu seu Evangelho em um
bom grego, querendo dialogar
com o mundo helenista e mostrar
a universalidade da Boa Nova da
misericórdia divina bem enraizada
na história humana.
Os Evangelhos de Mateus, Marcos
e Lucas são chamados “sinóticos”.
Esta palavra quer dizer que
colocando-os em três colunas, vê-se
logo que se assemelham em muitas
partes. Já o Evangelho de João é
muito diferente. Ele vê a vida de
Jesus noutra perspectiva: não o
mistério do Homem-Deus, mas a
revelação do Deus feito Homem.
Os mais velhos fragmentos dos
Evangelhos que se possui datam
do séc. II. O papiro Rylands, por
exemplo, datado do ano 125,
contém alguns versículos do
Quarto Evangelho (Jo 18,31-33.37-
38). Existem numerosos antigos
manuscritos dos Evangelhos;
milhares de papiros, pedaços de
pergaminhos que vêm dos séculos
III, IV, e V, alguns com longas
passagens do Evangelho, como o
papiro Chester Beatty (200-250).
Pode-se dizer que não há nenhuma
personagem da Antiguidade cuja
história ofereça certezas maiores
que as de Jesus.
No centro dos Evangelhos está
a pessoa de Jesus de Nazaré, o
Messias, Filho do Homem e Filho
de Deus. Nos dias de sua vida
pública, com palavras e ações,
Ele anunciou o advento, em sua
própria pessoa, do Reino de Deus
(Mc 1,15). Entretanto, o convite à
conversão nunca se tornou, na boca
de Jesus, condenação para
os mais fracos,
para os afastados
da religião e os
pecadores. À luz
das palavras do
profeta Isaías, Ele é
proclamado o Messias
“enviado para anunciar
a alegre notícia aos
pobres, para proclamar
a libertação aos
prisioneiros e aos cegos
a recuperação da vista...
e proclamar um ano de
graça do Senhor” (Lc 4,18s). Jesus,
portanto, anunciou a misericórdia de
Deus, invocado como “Aba”, Pai,
que, assim como o pai da parábola
do filho pródigo, aguarda ansioso
que o pecador retorne para recebê-lo
com festa e paternal ternura.
Este anúncio foi, digamos assim,
visualizado pelos milagres,
que operavam a cura física,
manifestando ao mesmo tempo a
libertação da escravidão do pecado
e a alegria de uma nova vida. Ao
lado de Jesus, durante seu ministério
publico, atuavam os discípulos,
entre os quais destacavam-se os
Doze e algumas mulheres – coisa
notável para o judaísmo daquela
época.
A pregação do Mestre de Nazaré
encontrou forte oposição,
especialmente por parte dos grupos
mais influentes dos judeus –
sacerdotes, mestres da lei e fariseus
– espantados pela sua maneira de
falar de Deus, cheia de profunda
familiaridade, e escandalizados
por sua escolha preferencial dos
pobres, dos oprimidos e
marginalizados, dos
pecadores e das classes
mais humildes da
sociedade. Surgiu, pois, o
medo de desordens políticas e,
conseqüentemente, da repressão
dos romanos.
Por causa dessa oposição, cada
vez mais violenta e ameaçadora,
Jesus ficou convencido que estava
trilhando o caminho da morte.
Mesmo assim, não se abala, não
arreda o pé, mas faz o rosto duro e
se dirige para Jerusalém (Lc 9,51).
Pois sua morte não será em vão, mas
terá significado e valor salvífico. Ele
morrerá a serviço da vida, pois ele
veio “para servir e dar sua vida em
resgate por muitos” (Mc 10,45), e,
após sua morte, o Pai o exaltará e o
receberá em sua glória.
O objetivo dos evangelistas é,
antes de qualquer coisa, proclamar
e suscitar a fé, mas uma fé que se
fundamenta na realidade histórica
de Jesus de Nazaré! Eles contam
uma “história” não para descrever
quem era Jesus outrora, mas para
proclamar quem é Jesus de verdade
(Jo 20,30-31). Justamente por causa
disso, apresentam divergências
cronológicas e geográficas
relevantes aos olhos críticos do
historiador. As indicações de tempo
limitam-se a fórmulas genéricas
(“depois”, “naquela ocasião”,
“então”, “poucos dias depois”),
assim como as referências aos
lugares (“no caminho”, “num lugar
deserto”, “num alto monte”, “em
casa”), usadas nos Evangelhos de
maneira diversa e discrepante. Essa
ausência de preocupação crítica
com os detalhes históricos aparece
também com relação às palavras e
sermões de Jesus. Na medida em
que, para a Igreja, o Jesus terreno
é também o Senhor glorioso, a
sua palavra assume, na tradição,
um valor universal e sempre atual.
Dessa forma, ao lado de uma
indiscutível fidelidade à mensagem
de Jesus, pode-se notar uma
espantosa liberdade na reprodução
de suas palavras históricas. Palavras
e gestos de Jesus refletem, de fato,
as circunstancias em que foram
relatadas e a compreensão teológica
do próprio narrador.
Manchester, Inglaterra
Fragmento do
papiro Rylands
Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 9ESPECIAL
Belém, sexta-feira, 21 de março de 200810 ESPECIAL
A IMPORTâNCIA DE COMuNICAR CRISTOmas antes mesmo da redação dos evangelhos, foi se formando o corpo das cartas apostólicas que, respondendo a exigências e problemas das comunidades destinatárias, têm caráter basicamente doutrinal e exortativo.
APAIxONADA CONVERSãOentre essas cartas destacam-se, por força e originalidade de pensamento, as de Paulo. de fato, as cartas e a teologia que elas contêm são marcadas profundamente pela experiência religiosa do apóstolo, sua fé apaixonada, sua pregação incansável, suas viagens e sua existência turbulenta. formando-se no judaísmo da diáspora, familiar com os grandes temas religiosos e culturais da época, ele converteu-se dramaticamente nas proximidades de damasco, aonde se dirigia para perseguir os cristãos (at 9,1s e par.). relembrando na carta aos Gálatas esse momento central de sua vida, ele o interpreta como o ponto de chegada de uma vocação profética que iniciou já no seio materno: “Quando, porém, aquele que me separou desde o seio materno e me chamou por sua graça, houve por bem revelar em mim seu filho, para que eu o evangelizasse entre os gentios...” (Gl 1,15s).
de Perseguidor de cristãosa um dos maiores ProPagadores da boa nova
PAULO era judeu, nascido em Tarso, na Cilícia, atual Turquia, e se chamava Saulo.
Possuía cidadania romana e foi criado sob as culturas grega e judaica. Rigoroso em
suas convicções religiosas, achava que os discípulos de Cristo eram traidores da
Tradição. Morreu decapitado, entre 66 e 67, em nome da fé em Jesus.
O apostolo Paulo´
A coversão no caminho para DamascoCaravaggio
Capela Cerasi, Santa Maria do Povo, Roma
Belém, sexta-feira, 21 de março de 200810 ESPECIAL
Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 11ESPECIAL 11
uM PROJETO DE SALVAçãOPaulo, portanto, viu em Cristo o revelador e realizador do grande desígnio da benevolência de deus, pensado antes mesmo da criação do mundo, o projeto insondável de deus Pai de salvar todas as nações por meio de seu filho: “ensinamos a sabedoria de deus, mistério oculto, que deus, antes dos séculos, de antemão, destinou para a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o senhor da Glória” (1Cor 2,7-8). Cristo – ensina Paulo – não apenas revelou o projeto de deus, mas foi também quem conseguiu o beneplácito do Pai por meio de sua morte vicária, se substituindo aos pecadores e transformando a ira em bênção: “deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores. Quanto mais, então, agora, justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (rm 5,8-9).
TESTEMuNHAS DA HISTÓRIAsegundo o testemunho das Cartas de Paulo e dos evangelhos, a ressurreição de Jesus marca o início da “nova criação”, a ressurreição geral dos mortos. Não é um fato que pertence simplesmente ao passado. é atual e ultrapassa os limites da história. os primeiros cristãos viviam desta fé: “agora o Cristo ressuscitou, primícia daqueles que dormem” (1Cor 15,20).
O EVANGELHO É PARA TODOSPelo batismo os cristãos percorrem esse itinerário: da maldição merecida à bênção gratuita. Para corresponder a essa dádiva inteiramente gratuita da benevolência divina temos que viver como remidos no amor mútuo, com a mente e o coração voltados para o
nosso libertador Jesus Cristo. acolher a graça de deus com fé é, portanto, condição indispensável. e ela é oferecida não somente aos hebreus mas a todas as gentes: “Não há mais nem judeu nem grego...” (Gl 3,28-29). a tarefa de Paulo, aliás, foi justamente a de anunciar o evangelho aos gentios, missão à qual ele se dedicou com incansável zelo até o martírio, ocorrido em roma em 64 ou, mais provavelmente, em 67 d.C. lucas resume nos atos dos apóstolos a trajetória da atividade missionária de Paulo em três grandes viagens, mostrando a progressiva penetração do evangelho no mundo grego-romano, a partir de Jerusalém até a capital do império, conforme o projeto de Jesus ressuscitado (at 1,8).
FÉ NO RESSuSCITADOonde houvesse testemunhas e comunidades cristãs, por mais que a sua mensagem e a sua teologia pudessem diferenciar-se, havia sempre um ponto em comum: a fé no ressuscitado. falando como representante de todo o cristianismo primitivo, Paulo destacou isso de maneira vigorosa e inequívoca: “tanto eu, como eles, eis o que pregamos” (1Cor 15,11). é sobre o anúncio da ressurreição de Jesus que a fé cristã se fundamenta: “se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé” (1Cor 15,14). Paulo, que escreve esta carta antes mesmo da redação dos evangelhos, cita todos os encontros dos apóstolos com Jesus ressuscitado; e ele toma como testemunhas muitos discípulos que ainda vivem no momento em que escreve sua carta (1Cor 15,13s).
São Paulo pregando em AtenasRafael Sanzio
Victoria and Albert Museum, Londres
Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 11ESPECIAL
ESPECIALESPECIAL12
igreja de batismo e comunhãoem decorrência dos eventos pascais, os discípulos e as discípulas de Jesus, unidos pela fé no mestre crucificado e senhor glorioso, formaram uma comunidade para orar, celebrar juntos a fração do pão, isto é, a eucaristia, e viver a caridade fraterna. formou-se assim uma comunidade cristã em Jerusalém, o novo povo de deus, o autêntico israel – é essa a consciência que ela tinha de si mesma – que vivia na alegre esperança da Parusia, ou seja, do retorno do senhor Jesus Cristo.os escritos do Novo testamento, especialmente os atos dos apóstolos, contêm indicações bastante precisas sobre a vida litúrgica e sobre o dia-a-dia das comunidades dos discípulos de Jesus.a vida litúrgica vai se moldando entorno da administração dos sacramentos e da comemoração dos gestos salvíficos do senhor, principalmente sua morte-ressurreição. os sacramentos (termo latim que traduz o grego “mysterion”) são os sinais salvíficos que Jesus Cristo deixou aos discípulos para significar a continuidade de sua presença, uma presença
misteriosa e invisível, nem por isso menos real e autêntica.os sacramentos mais importantes, testemunhados pela literatura neotestamentária, são o Batismo e a eucaristia. Com o Batismo se promete a remissão dos pecados e se entra a fazer parte da comunidade cristã, chamada com o termo grego “ekklesia”, ou seja, igreja. segundo uma praxe já consolidada, o batismo era administrado por imersão numa fonte ou num rio. logo, porém, devido o crescente número dos catecúmenos, deu-se mais destaque ao elemento simbólico e se considerou suficiente a aspersão dos novos fiéis.Com relação à eucaristia, os atos dos apóstolos relatam que os primeiros discípulos de Jesus se reuniam no primeiro dia da semana para a “fração do pão” (at 20,7). esta expressão já designava a comemoração da última ceia do senhor Jesus com seus discípulos, durante a qual ele “partiu o pão” e abençoou o cálice do vinho, ordenando aos discípulos de perpetuar, após sua morte, os mesmos gestos como memorial (zikkaron) de sua paixão, substituindo o memorial da Páscoa
do êxodo (ex 12,14). obedecendo à ordem do mestre, os discípulos, desde os primórdios, começaram a se reunirem para a celebração eucarística “no primeiro dia da semana” (1Cor 16,2), o dia conhecido como “dies domini” (ou dies “dominica”, cf. ap 1,10), isto é, o dia do senhor, no qual maria madalena, outras mulheres e os apóstolos viram o senhor ressuscitado (mt 28,1s e par.). Pelo que diz respeito à vida cotidiana dos cristãos, costuma-se tomar como referencial o quadro descrito pelos atos dos apóstolos (cf. at 4,32). ainda que a prática de vida dos primeiros cristãos fosse sustentada por uma intensa e elevada convicção religiosa de caráter escatológico, ou seja, a expectativa do iminente retorno de Cristo, a descrição de atos é basicamente um ideal a ser almejado. Não há duvida quanto ao espírito comunitário, a solidariedade recíproca e o esforço de amor sincero para com todos. entretanto, o episódio de ananias e safira (at 5) e os repetidos chamados de atenção encontrados nas cartas de Paulo (cf. 1Cor), bem como no apocalipse (ap 2-3), deixam claro que também os primeiros cristãos foram sujeitos às fraquezas e misérias humanas.
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vida litÚrgicae cotidianaBatismo do Povo - Andrea del Sarto
Florença - Itália
Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 13ESPECIALESPECIALESPECIAL
No seu interno, a comunidade cristã, desde
seu primeiro gesto simbólico, ou seja, a eleição
do apóstolo matias no lugar de Judas para
recompor o número dos doze, se mostra
estruturada hierarquicamente (at 1,21-26). de
fato, assim como 12 era o número simbólico
das tribos de israel, 12 também tinham que ser
as colunas no novo israel.
Pedro exercia a função de chefe, ou pelo
menos de porta-voz da comunidade. Havia,
pois, o grupo daqueles que acompanharam
Jesus durante sua vida pública, os que
foram confirmados apóstolos pelo Cristo
ressuscitado (1Cor 15,5-10) e, por fim, os
discípulos de forma geral. Com o crescimento
da igreja, foram constituídos os diáconos, mais
diretamente responsáveis pela evangelização
e governo das comunidades oriundas do
helenismo (at 6-8). as cartas paulinas
falam de presbíteros, epíscopos e diáconos
encarregados de dirigir a comunidade, presidir
a eucaristia e cuidar da assistência aos
pobres (fl 1,1; 1tm; tt). aos Coríntios que
contestavam sua autoridade e ensinamento,
Paulo declara que há uma ordem divina na
organização da igreja: “e aqueles que deus
estabeleceu na igreja são, em primeiro lugar,
apóstolos; em segundo lugar, profetas; em
terceiro lugar, doutores...” (1Cor 12,28). é
nessa ordem que os encontramos atuando
na igreja de antioquia (at 13,1s). a carta
aos efésios especifica que é Cristo “que
concedeu a uns serem apóstolos, outros
profetas, outros evangelistas, outros pastores
e mestres, para aperfeiçoar os santos...” (ef
4,11). os chamados para esses ministérios
recebiam a imposição das mãos por parte
dos apóstolos (at 6,6; 1tm 4,14; 2tm 1,6). a
evolução rumo a uma estrutura consolidada
e definitiva foi surpreendentemente rápida,
como testemunham, desde o início do séc. ii
as cartas de inácio de antioquia, martirizado
durante o reinado de trajano (98-117).
santo inácio foi um convicto defensor da
unidade dos cristãos: há uma só fé e um único
sacrifício, celebrado pelo bispo ou por quem
dele recebeu o cargo.
servidores do reinoos bispos, portanto, tornaram-se os chefes das comunidades cristãs e desenvolviam a função que havia sido dos apóstolos, dos quais se consideravam sucessores. essa autoridade, entretanto, deve-se diferenciar radicalmente da maneira como os chefes políticos costumam exercer seu poder, com arrogância e em proveito próprio. os dirigentes na igreja, seja qual for seu título ou ministério, são apenas servidores do evangelho e do povo de deus, do qual têm que cuidar e prestar contas (Hb 13,17; 1ts 5,12; 1Cor,16,16). Para deixar isso extremamente claro, o evangelista lucas coloca esse ensinamento, que a tradição fazia remontar ao próprio Jesus, num contexto muito significativo, o das advertências do mestre durante a ceia de despedida: “os reis das nações as dominam...” (lc 22,...).da mesma forma, o bispo de roma, sucessor de Pedro, que na capital do império havia sofrido o martírio, lentamente mas progressivamente estabeleceu-se como chefe da igreja. Que Jesus quisesse dar continuidade à função exercida por Pedro pode-se deduzir a partir do texto de mateus. dizendo o evangelista, com uma linguagem rabínica, que Jesus prometeu proteger sua igreja sempre no futuro e que Pedro teria a responsabilidade “de ligar e desligar” na terra por meio de decisões disciplinares, jurídicas e doutrinais que serão ratificadas nos céus, revela implicitamente a intenção do mestre de prover uma instituição estável para esse serviço.
Designado por Jesus a chefiar a Sua Igre-
ja, o humilde e rude pescador, juntamente
com o convertido Paulo, consolidou os
primeiros pilares do cristianismo no mun-
do. Morreu entre 66 e 67, crucificado de
cabeça para baixo, a seu pedido, por não
se achar digno de morrer como o Mestre.
o PaPa Pedro
vida litÚrgicae cotidiana
São Pedro - El GrecoÓleo sobre Tela
Monastério de San Lorenzo - Madri - Espanha
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Belém, sexta-feira, 21 de março de 200814 ESPECIAL
O cristianismo irrompeu no mundo romano como um movimento messiânico de amplitude internacional. A nova religião trazia uma mensagem escatológica, centrada na ressurreição e glorificação, valorizava o ser humano e o tornava membro de uma nova família universal, presidida por um Deus único que se manifestara sob forma humana e histórica. Ao ressuscitar, o Verbo divino
encarnado superou a própria morte e iniciou um processo que continuaria na história: sua ressurreição acarretava igualmente a ressurreição da humanidade. Quando ele voltasse traria a glorificação do mundo e a felicidade plena e eterna no Reino de Deus.A mensagem de salvação baseava-se na transformação espiritual a partir da conversão individual a Jesus Cristo. Uma opção possível a todos,
embora a salvação seja operada pela graça, e não pelos homens.O cristianismo atingiu todas as camadas da população, ainda que penetrasse mais facilmente entre os escravos e as classes mais pobres das grandes metrópoles. As comunidades cristãs pregavam a fraternidade em Cristo e a igualdade de todos perante Deus e se esforçavam de viver em comunhão de bens. Dessa forma, embora querendo alcançar essencialmente a renovação espiritual, a mensagem cristã ganhou a característica de revolução social e atraiu a população injustiçada. Em seus primórdios, portanto, o cristianismo, não se opondo à organização social do Império Romano, agia, digamos assim, a distância e acima de seus interesses.Visto inicialmente como heresia judaica, o cristianismo foi em seguida incluído entre as religiões de mistério, como um dos numerosos cultos orientais.
o cristianismoMas ele foi crescendo e se consolidando, graças também à rigorosa organização hierárquica que, no decorrer dos três séculos iniciais, deu à doutrina e ao culto uma coesão inédita face às outras religiões do mundo antigo. Numa carta endereçada ao imperador Trajano, Plínio, o Jovem, então governador na Bitínia (111-113), pergunta como se deve comportar em relação a um movimento de
“grande teimosia e inflexível obstinação” que é justamente o dos cristãos, acusados de perturbação da ordem pública. Eles se reuniam “num dia determinado, antes do amanhecer” (certamente no domingo), e entoavam “um hino a Cristo, como a um Deus”, vinculando-se ao sacramentum, isto é, ao “juramento” de não praticar nenhuma maldade.No relacionamento entre a comunidade cristã e o império romano podemos distinguir claramente duas grandes fases, separadas pelo Edito de Milão, do imperador Constantino (313).A primeira fase foi marcada por um relacionamento conflitante. As autoridades romanas, interrompendo uma tradição secular de tolerância com as religiões dos povos conquistados, declaram repetidamente “não lícita” a religião dos cristãos, infligindo todo tipo de pena aos seguidores da nova religião: da confisca dos bens até o exílio e a condenação à morte. As perseguições freqüentemente ficaram circunscritas a uma determinada região, como parece ter sido a que Nero desencadeou em decorrência do incêndio de Roma em 64. Outras vezes, elas se estenderam a todo o império, como a perseguição ordenada por Décio, no século III.
as perseguiçõesAo descrever o trágico quadro de uma Roma arrasada pelo incêndio,
IdeAIs e mensAgens de crIsto jesus cAtIvAm o povo pobre e InjustIçAdo do ImpérIo romAno
a novidade cristã
Contantino IMosaico bizantino do sé. XIgreja Hagia Sofia - Istambul - Turquia
Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 15ESPECIAL
na qual as acusações mais infamantes eram lançadas contra o louco imperador responsável pela tragédia, Tácito escreve: “Para cessar esse boato, Nero declarou culpados e condenou aos mais atrozes suplícios aqueles que o povo chamava de cristãos – odiosos por suas abominações” (Annales 15,44). Outro historiador, Suetônio, na sua “Vida de Cláudio” (cerca 121 d.C.), lembrava que “os judeus, que continuamente provocavam perturbações por instigação de Cresto, foram expulsos de Roma” (n.25). Também os Atos dos Apóstolos lembram essa decisão de expulsar os judeus de Roma (At 18,2). Parece que Suetônio atribuísse a Cristo (Cresto!), anacrônica e levianamente a responsabilidade pelas tensões causadas pelos cristãos, confundidos por ele com os judeus da cidade. Os cristãos, claro,
consideraram totalmente injustificada a perseguição e chegaram a ver no império romano a personificação do mal, o dragão do Apocalipse, por querer aniquilar “os que observam os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus” (Ap 12,17). No meio dessas provações os cristãos desenvolveram a mística do martírio como uma perfeita imitação de Cristo (Ap 6,9; 7,9s). Morrendo pela fé, o mártir se torna companheiro de Jesus no calvário e participa de sua paixão e de sua glória. Portanto, ainda que só em forma de veneração e modelo, o mártir pode ser a Ele associado no culto. Justifica-se assim o culto dos mártires e, mais em geral, dos santos, que rapidamente assume um papel importante na vida dos cristãos.Mas no séc. IV a situação mudou
radicalmente. Conseguido o reconhecimento de sua
legitimidade, o cristianismo conquistou logo uma
posição de favor e de privilégio que levou à formação da Igreja imperial. Contudo, a nova
situação não
estava isenta de riscos, como apontava com muita lucidez São Jerônimo quando escrevia: “Desde que a Igreja há imperadores cristãos, cresceu com certeza em poder e riqueza, mas se enfraqueceu em sua força moral”. Realmente, a excessiva colaboração acabava inevitavelmente por submeter a Igreja ao Império, configurando os bispos como funcionários públicos que nem sempre gozavam de boa reputação, fazendo com que um grande número de vigaristas entrasse a fazer parte da Igreja, motivados unicamente pela ganância, busca de privilégios e perspectivas de autopromoção.Tem início a história da Igreja, da sua missão e expansão para além dos confins da Palestina, em todo o mundo. Uma história rica de conflitos e de tensões, na
qual o mundo se defronta com o Evangelho, mas também a Igreja se encontra com o mundo, obrigada a apresentar a mensagem de Jesus Cristo em formas e em línguas sempre novas. História de ações e reações, de fidelidade e infidelidade, de intuições e erros, de vitórias e fracassos entre os povos e no coração dos homens. Tudo isso é ainda, só aos olhos da fé, a história de Jesus Cristo e de seu poder, mas também a história de sua paixão e morte que não termina jamais. O escândalo da cruz era a luz que o mundo esperava e não conhecia; o amor autêntico e incondicional que salva gratuitamente, por amor, por pura graça; o dom divino que a humanidade tanto desejava mas não ousava esperar.
O imperador Nero e o Coliseu Romano: referên-cias históricas sobre o mar-
tírio dos cristãos
Belém, sexta-feira, 21 de março de 200816 ESPECIAL
o cristianismo defrontou-se com um mundo consolidado: um mundo onde, desde as conquistas de alexandre, o Grande (356-323 a.C.), predominava a cultura greco-romana. Nessa vastidão que incluía quase toda a europa, a Ásia menor e o norte da África, o clima espiritual era contraditório.a religião oficial de roma, politeísta e eclética, caracterizava-se pelo pragmatismo político. roma procurava garantir suas tradições e supremacia por meio das divindades nacionais, mas não deixava de utilizar deuses estrangeiros
para manter sob controle os povos conquistados. Não faltavam templos na capital do mundo dedicados às divindades importadas, ainda que Júpiter fosse o patrono da cidade e o culto ao imperador, desde o fim da república, fosse motivo de poder e unidade dentro do
império. mas essa religião vazia e teologicamente frágil,
que não passava de um conjunto de ritos sem
significação profunda, foi prejudicada pela chegada dos cultos
orientais ao ocidente, pelo fascínio que exerciam sobre o povo. as classes pobres voltavam-se para elas, procurando nos “mistérios” que prometiam o perdão das faltas e
a união com deus através de ritos como o “batismo” e as refeições sagradas. dessas religiões, a mais fascinante era sem dúvida a de mitras. Vindo da Pérsia e conhecida desde o séc. i a.C., praticava ritos litúrgicos muito parecidos aos do cristianismo, como o batismo, os ágapes, o jejum, a penitência e as unções. ensinava a imortalidade dos crentes e a existência de um paraíso para as almas puras. organizava reuniões noturnas sob a liderança de um clero numeroso, que incluía sacerdotisas.de início, roma reconheceu como legítimos os deuses dos
povos conquistados, mas, ante a ameaça desse sincretismo desagregador, buscou respostas mais universalizantes e unificadoras: desde a radicalização do culto ao imperador até a introdução do culto ao sol invictus.aqueles que procuravam encontrar outras perspectivas, morais ou intelectuais, refugiavam-se no ceticismo ou na religiosidade de caráter filosófico, com tendências monoteístas. restringiam-se, porém, às camadas mais eruditas, e seu abstrato conceito de deus carecia, talvez, de piedade e conteúdo emocional.
a antigüidade crista: igreja e império~nova religião surge Para suPrir carência de um deus abstrato e sem amor
Rei da Macedônia, Alexandre, O Grande, é tido por
alguns historiadores modernos como um “homem
de valores cristãos”, mesmo antes do nascimento de
Jesus, por praticar a paz e a justiça
Deus MitrasMuseu do Vaticano