semana santa 2009

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Conheça a história dos primeiros missionários cristãos O que aconteceu no mundo após a ressurreição de Jesus? A formação das comunidades e dos Evangelhos ESPECIAL VOL. 4, ANO I1 MARçO 2008 Suplemento da edição 294 do Voz de Nazaré. Não pode ser vendido separadamente.

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Encarte especial do Voz de Nazaré

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Page 1: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 1ESPECIAL

Conheça a história dos primeiros missionários cristãos

O que aconteceuno mundo após a

ressurreição de Jesus?

A formação dascomunidades e dos Evangelhos

ESPECIALVol. 4, aNo i1 março 2008

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Page 2: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 20082 ESPECIAL2 Belém, sexta-feira, 21 de março de 20082 ESPECIAL

a prática de Jesus de Nazaré levantara profunda hostilidade entre seus contemporâneos (mc 3,31), especialmente entre as autoridades judaicas (mc 3,22), pois consideravam absurdas, irreverentes e ultrajosas as posições tomadas por ele com relação às tradições hebraicas, sobretudo acerca das normas de pureza ritual e da observância do sábado.Quanto às autoridades romanas da Palestina, Jesus podia aparecer como um perigoso líder revolucionário reivindicando a realeza sobre seu povo contra as prerrogativas do imperador (Jo 19,12.15).Com efeito, em ocasião de uma viagem a Jerusalém para a festa da Páscoa, Jesus foi preso, processado e condenado à morte de cruz. a

crucificação era a pena capital infligida aos delinqüentes, escravos, criminosos e revoltosos. No letreiro colocado na cruz estava escrito o motivo oficial da condenação: “Jesus de Nazaré, rei dos judeus” (iNri). a execução ocorreu numa sexta-feira, vigília da Páscoa hebraica, quando era procurador da Judéia, Pôncio Pilatos (26-36 d.C.), quase certamente no 7 de abril do ano 30.a história de Jesus não está registrada em crônicas nem nas atas oficiais dos arquivos romanos, nem tampouco em alguma obra de história judaica. as fontes não bíblicas que o mencionam são escassas e resumidas. evocando o incêndio de

roma e a primeira perseguição aos cristãos, sob o imperador Nero (64 d.C.), o historiador romano tácito (55-125) dá a seguinte explicação à palavra ‘cristãos’: “este nome lhes vêm de Cristo, condenado ao suplício pelo procurador Pôncio Pilatos, sob o império de tibério” (annales 15,44,2-5).o corpo de Jesus foi enterrado por Nicodemos, escriba fariseu, secretamente discípulo de Jesus, e por José de arimatéia, pessoa influente em Jerusalém e admirador de Jesus. José de arimatéia cavara na colina rochosa, perto do Calvário, um túmulo em forma de gruta. foi aí que depositaram

o filho de deus venceu a morte e revolucionou a história da humanidade

a morte na cruz e a ressurreiçao~

EXPE

DIE

NTE Especial Páscoa - Caderno extra do Jornal Voz de Nazaré Fundador: Pe. Florence Dubois, bta Presidente: Dom Orani João Tempesta, Arcebispo Metro-

politano de Belém do Pará Diretor Geral: Dom Carlos Verzeletti, Bispo Diocesano de Castanhal, Pará Diretora administrativo e financeiro: Marluce

Guerreiro Milhomem Diretor de Comunicação: João Bosco Gomes Jornalista responsável e edição: Felipe Melo (DRT/PA – 1769) Textos: Pe. Giovanni

Martoccia Revisão: Vladiana Alves Editoração eletrônica e Edição de Arte: Henrique Corrêa (DRT/PA – 1783) Fotos: Luiz Estumano e de domínio

público Redação: (91) 4006-9200/ 4006-9238/ 4006-9239/ 4006-9244/ 4006-9245 Impressão: Gráfica do jornal O Liberal Tiragem: 5 mil exemplares

Site: www.fundacaonazare.com.br E-mail: [email protected]

A morte e a ressurreição

de Jesus constituem o

ponto central da mensagem

do Novo Testamento e

representam para os cristãos

um acontecimento único

e definitivo. Na verdade,

todo o Novo Testamento e

toda a teologia cristã têm

como objetivo desenvolver

o significado do “evento

Jesus Cristo”. Jesus Cristo

é o centro da profissão

de fé cristã. Jesus é o ser

humano histórico, que

viveu na Palestina no tempo

do imperador Tibério e

que morreu crucificado

sob Pôncio Pilatos; Cristo

expressa o papel salvífico

no plano divino dessa

mesma pessoa. A profissão

de fé da comunidade cristã

primitiva inclui também

sua transcendência divina,

pois ela acredita que Jesus

ressuscitou glorioso e é

Senhor do mundo e da

história.

jesus cristo e as origens do cristianismo

Paixão - Dieric BoutsMuseu da Capela Real - Granada

Page 3: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 3ESPECIAL3

a morte na cruz e a ressurreiçao~

o corpo de Jesus e fecharam o túmulo com uma grande mó de pedra que se rolava diante da entrada (mc 15,43-47 e par.)a época de Jesus foi a mais fortemente agitada pelas esperanças messiânicas. desde Herodes, o Grande, violentos ou pacíficos, políticos ou não, os movimentos messiânicos não pararam de aparecer, até provocar a destruição de Jerusalém no ano 70 pelos romanos e o aniquilamento do estado judaico na Palestina. o grupo mais conhecido entre os movimentos messiânicos de revolta nessa época é o dos zelotas. fundada por Judas Galileu, a seita dos zelotas era um partido religioso que fazia da espera messiânica um programa político. outros, como João Batista e seu movimento, anunciavam apenas a vinda iminente do messias, sem caráter político manifesto nem uso de violência. eles confiavam na intervenção definitiva de deus para ver o reino messiânico e o fim da dominação romana.assim, surgiu também a seita que viu em Jesus o messias e que, depois de sua morte na cruz, esperava sua volta gloriosa. devido à grande confusão que reinava na Palestina, ficava difícil para os estrangeiros distinguir entre os movimentos políticos e os de caráter apocalíptico, mesmo porque eles tinham muito em comum e seus partidários aderiam freqüentemente aos novos líderes que iam surgindo. No grupo de Jesus, com efeito, havia

zelotas, fariseus, cobradores de impostos, mulheres, discípulos do Batista. Não surpreenderia, portanto, se os romanos ignorassem o verdadeiro significado do projeto de Jesus, sua pregação, seus gestos simbólicos, suas curas, e o tivessem condenado à morte como um perigoso revolucionário. de fato, eles reprimiram muitos movimentos messiânicos que pregavam ódio contra roma e recusavam pagar os impostos, crucificando, ou matando de qualquer outra forma, todos seus líderes. é difícil também determinar exatamente o papel desempenhado pelas autoridades judaicas, que a tradição cristã primitiva, entretanto, considerou principais responsáveis pela morte de Jesus.

é provável, ao que tudo indica, que, preocupadas em manter o status quo, tenham denunciado Jesus como revolucionário e colaborado para sua condenação. de fato, Jesus foi morto na cruz como profeta messiânico, do mesmo modo que outros agitadores.mas o movimento escatológico-messiânico surgido com Jesus não morreu. a tradição comum dos evangelhos relata as experiências pascais de alguns discípulos, principalmente as mulheres, que atestaram terem encontrado Jesus ressuscitado. entretanto, Jesus ressuscitado não é logo reconhecido. ele leva a pessoa a um ato de fé, através de um gesto simbólico – a partilha do pão como no caso dos discípulos de emaús –, ou por suas palavras – como com madalena –, ou também por um “sinal” – como a pesca no mar de tiberíades (lc 24,30s; Jo 20,16; 21,4s). os discípulos são convidados a reconhecer Jesus de Nazaré nessa personagem misteriosa. madalena, reconhecendo Jesus, quer tocá-lo e retê-lo. ela crê que ele ficará ainda na terra como antes. Não será assim. mas Jesus não abandona os seus, ele estará sempre com eles; sua presença será diferente, mas também real.

Este nome (cristãos) lhes vêm

de Cristo, condenado ao suplício

pelo procurador Pôncio Pilatos,

sob o império de TibérioTácito

(55-125)Historiador romano

“PADRE GIOVANNI

MARTOCCIA é missionário da

Pia Sociedade São Francisco

Xavier. Mestre em Bíblia pelo

Studium Biblicum Franciscano

de Jerusalém, atualmente,

ele é professor de Sagradas

Escrituras no Instituto Regional

para a Formação Presbiteral,

em Belém, e pároco de Nossa

Senhora do Rosário, no

município de Colares, Pará.

Italiano, ele tem 57 anos, 29

dedicados ao sacerdócio e

está no Brasil desde 1995. Foi

colaborador na produção dos

textos deste Especial.

SepultamentoFra Angelico

Alte Pinakothek, Munique

Page 4: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 20084 ESPECIAL

ao escrever o relato dos discípulos de emaús,

lucas reproduz a experiência da “fração do pão”

das primeiras comunidades. Na primeira parte das

reuniões aprendia-se a conhecer a pessoa de Jesus,

fazendo-se uma leitura comentada do evangelho.

Quando os corações estavam aquecidos pela luz da

Palavra, o presidente da assembléia repetia os gestos

de Jesus, dizia suas palavras sobre o pão e o vinho e

Jesus estava lá. Pela fé, os olhos se abrem e os cristãos

reunidos sabem que Jesus está no meio deles e que

eles o encontram realmente. mesmo se não o vêem,

estão à mesa com ele, como no Cenáculo ou em

emaús, e unem-se a ele pela comunhão.

são Paulo faz memória dessa tradição na Carta aos

Coríntios: “eu mesmo recebi do senhor o que vos

transmiti: na noite em que foi entregue, o senhor

Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o

e disse: “isto é o meu corpo, dado para vós; fazei

isto em memória de mim...” (1Cor 11,23s).

a experiência do encontro com Jesus vivo,

após sua crucificação e sepultamento, foi uma

experiência de fé, ainda que real. foi uma

concessão de deus àqueles que iriam se tornar

as testemunhas do ressuscitado até os confins

da terra. Não se manifestou a todo o povo (at

10,41). a própria ressurreição de Jesus e suas

aparições aos discípulos, tanto às mulheres como

aos apóstolos, foram “fatos” que escapam ao

conhecimento empírico, ao estudo cientifico e à

comum percepção obtida por meio dos sentidos.

daí a dificuldade dos pregadores de convencer

seus ouvintes acerca da verdade da ressurreição.

os próprios apóstolos foram os primeiros a

terem dúvidas (lc 24,11-41).

eles pensavam que estavam vendo coisas, que se

tratasse de uma ilusão. Por isso, o apostólo tomé

queria absolutamente tocar com o dedo as chagas

do corpo de Jesus.

os evangelhos, muitas vezes e de várias maneiras,

destacam o chamado de atenção de Jesus aos

apóstolos por eles demorarem a acreditar (lc

24,25; Jo 20,27; cf. mc 16,11 e mt 28,17). as

próprias mulheres não foram ao túmulo impelidas

pela esperança de assistir ao grande evento da

O APÓSTOLO TOMÉ, também chamado Dídimo, era gali-

leu e pescador.

Após acreditar na ressurreição de

seu Mestre, ele seguiu em missão

evangelizando parte da Pérsia e da

Índia, onde morreu martirizado

Belém, sexta-feira, 21 de março de 20084 ESPECIAL

Incredulidade de São ToméCaravaggio

Sanssouci, Potsdam

Page 5: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 5ESPECIAL

vitória da vida, mas apenas por um sentimento de

piedade e saudade, visitar o sepulcro (mt 28,1),

levar ungüentos (mc 16,1). o sepulcro vazio,

porém, mais do que a prova da ressurreição, é a

confirmação que o ressuscitado é o mesmo que foi

crucificado, o elo entre o Jesus da história e o Cristo

da fé, entre o Cristo humilhado e o Jesus glorificado.

a ressurreição de Jesus foi um acontecimento

misterioso, que não se podia ver, nem registrar, nem

filmar; que se passou sem testemunhas.

é um acontecimento do mundo de deus e, então,

nos escapa. mas é também um acontecimento

bem real da história dos homens; nenhum outro

acontecimento teve tal impacto na vida do mundo.

os apóstolos de Jesus e os primeiros cristãos, de

quem os evangelhos trazem com fidelidade a fé

e o pensamento, tinham a certeza e as provas de

que Jesus não ficou sob o poder da morte, mas

que ele entrara numa vida nova e está vivo junto

de deus. seu corpo ressuscitado é um corpo

recriado por deus, transfigurado pelo espírito,

incorruptível e celeste (1Cor 15,42s).

Na sua vida nova, Jesus não está mais ligado

às condições habituais da existência na terra.

ele escapa às leis do espaço e do tempo, não

precisa de passagem para sair do túmulo, ou de

porta aberta para entrar em qualquer parte. ele

pode também estar presente em nossa vida e

comunicar-nos seu amor, sua graça, sua luz, sua paz.

as últimas palavras do evangelho de mateus

ensinam que Jesus não se despediu, mas garantiu:

“eu estarei com vocês todos os dias, até o fim

do mundo”. assim, Jesus não fala de sua partida,

mas declara que sua presença é permanente. No

início de seu evangelho, mateus dissera que Jesus

era o “emanuel”, o “deus conosco”. ele termina

seu evangelho como começou. a história de Jesus

na terra terminou. agora será a história de sua

presença misteriosa entre nós.

Para a tradição cristã original, Jesus não é uma

figura do passado mas, antes de tudo, o senhor

ressuscitado, que atua na vida da igreja com seu

poder salvífico e sua Palavra de vida. No encontro

com Jesus, o autor da Vida (at 3,15), cada pessoa

recebe um novo presente, porque a vida, o

mundo, a existência de cada criatura encontram-

se agora iluminados pela luz do amor divino

que emana do Crucificado, inundando a história

humana de alegre esperança até a manifestação

final de sua glória. dela poderá participar todo

aquele que responder com fé e amor, pois essa é

a vocação da humanidade e o destino que deus

preparou para ela (1ts 3,13).

assim, Jesus não é um que voltou à vida, como

lázaro reanimado, chamado a uma prolongação

da existência que terminará algum tempo depois.

Não, Jesus não pode mais morrer, pois ele

entrou num novo gênero de existência. desta

nova vida não se pode fazer idéia exata, pois

ela é do mundo de deus, e o mundo de deus

nos ultrapassa. só sabemos que seremos

semelhantes a ele, porque o veremos tal

como ele é (1Jo 3,2).

Vemos nos evangelhos dois tipos de

encontro com Jesus ressuscitado. em certos

relatos acentua-se este fato: depois de sua

morte, Jesus foi encontrado vivo. mas ele

devia dar provas de que não era um espírito, um

fantasma (lc 24,36-43). ele se apresentou, então,

de modo familiar, como na vida do dia-a-dia:

ele se fez ver, tocar, conversou, comeu, andou.

No entanto, Jesus quis também mostrar que

ele era de outro mundo e escapava à condição

humana: de repente, ele estava lá, todas as portas

fechadas... e de repente não estava mais lá!

Noutros relatos, acentua-se sua glória de

ressuscitado. Jesus é exaltado e triunfante junto

de deus, após sua vitória sobre a morte. ele é

declarado senhor do universo. No encontro da

Galiléia, ele se apresenta assim: “toda a autoridade

sobre o céu e sobre a terra me foi entregue” (mt

28,18). estes dois gêneros de relato são feitos

para completarem-se.

Eu estarei com vocês todos

os dias, até o fim do mundo

Jesus aos discípulos,enviando-os em missão,

antes de sua subida aos céus(Mateus 28, 20b)

“Ceia de Emaús

Caravaggio

Galeria Nacional, Londres

Page 6: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 20086 ESPECIAL

Para os apóstolos e para os discípulos da primeira hora, e para os que vieram depois, como Paulo e os evangelistas, Jesus de Nazaré era o Cristo (o messias), a quem deus não abandonou no sepulcro após sua morte, não deixou que experimentasse a corrupção do túmulo, mas o ressuscitou (at 2,29-32). aquele que foi elevado na cruz foi exaltado por deus na glória. lucas termina seu evangelho por um último encontro no monte das oliveiras, perto de Jerusalém: “enquanto os abençoava, distanciou-se deles e era levado ao céu” (lc 24,51). Chama-se isto a ascensão de Jesus.Não se deve imaginar Jesus voando para o céu feito super-homem. é uma maneira para dizer plasticamente que Jesus foi glorificado “à direita do Pai”. No livro dos atos, lucas retoma as imagens e o estilo do antigo testamento que fazem das nuvens uma escada de glória e triunfo subindo para deus (at 1,9). é um modo de dizer que Jesus é senhor do universo.os relatos das aparições devem ser vistos como testemunhos de fé e não como crônicas. o que se tornou uma certeza na igreja foi que deus mesmo tinha intervindo com mão

onipotente, arrancando Jesus de

Nazaré do poder da morte, glorificando-o como Juiz universal.a Páscoa é, pois, o reconhecimento

que deus concede a Jesus, a quem o mundo havia rejeitado. é o início do novo mundo de deus neste velho

mundo, marcado pelo pecado e pela morte. é a inauguração

definitiva do reino de deus, anunciado por Jesus durante sua vida terrena. só que agora o próprio Jesus, com sua morte e ressurreição passa a fazer parte dessa mensagem, tornando-se o centro do anúncio (kerygma).a crítica liberal negava a

historicidade de Jesus e a credibilidade dos apóstolos e evangelistas, mas exaltava a mensagem moral como a mais sublime que o mundo já ouviu. mas como podiam pessoas de má fé e de origem tão

humilde inventar uma ética tão excelsa e, ao mesmo tempo, uma mensagem tão inusitada, incrível e inaceitável para o Judaísmo: a de um homem divinizado ou de um deus encarnado (Jo 1,14)? se Jesus não era nada daquilo que eles anunciaram, por que inventar um salvador humilhado na cruz, idéia tão absurda quanto escandalosa para os judeus e, com relação aos romanos que o teriam justiçado, extremamente perigosa. Com efeito, quem se declarasse parente, amigo ou

discípulo de um subversivo justiçado era passível também de pena capital.Por outro lado, se Jesus é

realmente aquilo que eles anunciaram, um conhecimento

meramente histórico, por mais científico que seja, nos daria uma

o ressuscitado revela o autêntico rosto de deusmistério de jesus cristo

Page 7: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 7ESPECIAL

“eu sou o Primeiro e o Último, o vivente;estive morto, mas eis que estou vivo Pelos séculos dos séculos“imagem distorcida e falsa, ou pelo menos dramaticamente parcial do homem de Nazaré, profeta ou charlatão, mestre ou subversivo, faltando-lhe sua verdadeira identidade de filho de deus e salvador do mundo.o testemunho de fé da igreja primitiva, contido nos livros do Novo testamento, é praticamente a única fonte existente para conhecer o Jesus histórico. é essa a única “biografia” possível de Jesus. mas a figura ali descrita não é o Jesus conhecido empiricamente pelas pessoas ao longo de sua vida nesta terra, mas é a releitura desse seu passado por aqueles que acreditaram na sua ressurreição e que fizeram questão de comunicar o que tudo isso significava para eles e para a vida do mundo. assim, embora os evangelhos e todo o Novo testamento tenham suas raízes na vida e morte de Jesus, eles não são meras fontes históricas, mas a reunião de fatos vividos por Jesus e narrados do ponto de vista de escritores que acreditam ser ele o Cristo, o filho de deus enviado para salvar o mundo, morto e ressuscitado, o Vivente glorioso que tem a chave da morte: “eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e do Hades” (ap 1,17-18). Poderíamos dizer, em outras palavras, que não se conhece uma única frase de Jesus nem uma simples narração sobre ele que não contenham, ao mesmo tempo, a profissão de fé da comunidade cristã. e os evangelistas querem deixar isso bem claro: “assim, quando ele ressurgiu dos

mortos, seus discípulos lembraram-se de que dissera isto e creram na escritura e na palavra de Jesus” (Jo 2,22). Para alcançar seu objetivo eles lançam mão de gêneros literários, técnicas e recursos próprios da pregação religiosa.Jesus, o profeta e rabi de Nazaré, cuja história começou na Galiléia e terminou sobre a cruz, em Jerusalém, é ao mesmo tempo o Cristo ressuscitado, revelador definitivo do autêntico rosto de deus com quem reconciliou o mundo por seu amor incondicional até o extremo. a igreja compreende o passado da história de Jesus a partir da sua ressurreição dentre os mortos, incluindo tudo isso na sua pregação como um acontecimento que diz respeito ao presente e desvenda o futuro do homem.Na tradição cristã, a paixão de Jesus é entendida à luz de sua ressurreição: “Porventura não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (lc 24,26). os relatos evangélicos da paixão são dominados por esse grande e misterioso imperativo divino, a partir do qual até mesmo os protagonistas humanos desse acontecimento são vistos como instrumentos na realização do plano salvífico de deus, sem por isso anular sua liberdade e responsabilidade. a morte de Jesus tem, para os pregadores cristãos, o sentido de transformar este mundo, abrindo-o à irrupção da glória do ressuscitado que aceitou livremente a paixão, embora inocente, para nos presentear com o dom da reconciliação com deus e entre nós. o próprio Jesus, quando o sumo sacerdote lhe perguntou: “és tu o

Cristo, o filho do deus Bendito?”, rompeu o seu segredo messiânico: “eu o sou” (mc 14,61-62).de fato, o testemunho que os apóstolos deixaram e que foi transmitido de geração em geração, tornando-se tradição, e os escritos do Novo testamento, que a comunidade cristã considera como inspirados pelo espírito santo, são a única ponte para conhecermos tanto o Cristo histórico como o Jesus da fé.

Os textos do evangelista são os de

maior expressão literária do Novo

Testamento. Segundo a tradição, ele

foi médico e pintor. Converteu-se ao

cristianismo e tornou-se discípulo e

amigo de Paulo de Tarso

são lucas

Chamando Pedro e AndréDuccio di Buoninsegna

Galeria Nacional de Arte, Washington

São LucasAndrea Mantegna

Pinacoteca de Brera, Milão

Page 8: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 20088 ESPECIAL

A pregação de Jesus retomada com novo

vigor por seus discípulos encontrou a

aprovação e adesão de um número cada vez

maior de seguidores. Em pouquíssimos anos

as comunidades cristãs se espalharam no

litoral da Palestina, Samaria, Galiléia, Síria

e, sucessivamente, na Ásia Menor e Grécia,

Roma.

Conforme o testemunho de Atos, estas

comunidades eram lideradas por um apóstolo

ou recebiam a visita de seus representantes

enviados com o intuito de as fortalecer,

confortar e garantir a fidelidade da mensagem

do Senhor (At 8,14; 11,22; 1Cor 16,10s;

2Cor 8,16). Ora, a difusão crescente, o tempo

que is passando, a dispersão dos Apóstolos,

os desvios doutrinários, etc. levaram os

discípulos a começar a fixar por escrito as

palavras e ações de Jesus. A necessidade

de formar os catecúmenos, de traduzir e

adaptar, esclarecer e aprofundar o conteúdo

da fé, de responder a questionamentos e

acusações provenientes tanto do judaísmo

como do paganismo – e até mesmo do meio

das novas comunidades – a organização

da vida litúrgica, os problemas morais e as

perseguições, tudo isso também incentivou

e influenciou o processo literário. Foram

surgindo coletâneas de milagres de Jesus,

resumos de discursos, relatos de episódios

significativos da vida do Mestre, sobretudo

as narrativas da paixão, listas de citações

bíblicas apropriadas para uma melhor

compreensão de seu significado e seu

alcance. Essas tradições, pois, adaptadas

às circunstâncias da pregação e da vida das

comunidades, confluíram na redação dos

Evangelhos, que ocorreu entre os anos 60

e 80, a dos Sinóticos, e lá pelo ano 95, a

redação final do Evangelho de João.

Marcos foi companheiro do apóstolo Pedro,

e Lucas, que vivia na igreja de Antioquia,

centro de irradiação missionária, foi o

companheiro de viagem do apóstolo Paulo.

Para um breve e simplificado resumo da

a formaçao do novo testamento:

os evangelhos~

ESPECIAL

Maiestas DominiHaregarius

Biblioteca Nacional, Paris

Page 9: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 9ESPECIAL

história dos Evangelhos, podemos

dizer o seguinte: uma primeira

coleção foi redigida por Mateus,

em aramaico (língua de Jesus),

mas essa obra perdeu-se. Marcos

inspirou-se nela e na pregação de

Pedro para escrever seu Evangelho,

moldado numa estrutura geográfica

e destinado a acompanhar os

catecúmenos pagãos no caminho da

fé no Messias crucificado. Mateus

(ou um rabino, seu discípulo)

retomou seu primeiro trabalho e,

tendo como base o Evangelho de

Marcos e acrescentando outras

lembranças, elaborou uma obra

teológica sobre o mistério do Reino

e da Igreja, num estilo tipicamente

hebraico. Lucas tinha a disposição

muitos trabalhos sobre Jesus

(Lc 1,1-4), quase certamente os

Evangelhos de Mateus e de Marcos

também, tinha ouvido a pregação

de Paulo e, por ser homem culto,

escreveu seu Evangelho em um

bom grego, querendo dialogar

com o mundo helenista e mostrar

a universalidade da Boa Nova da

misericórdia divina bem enraizada

na história humana.

Os Evangelhos de Mateus, Marcos

e Lucas são chamados “sinóticos”.

Esta palavra quer dizer que

colocando-os em três colunas, vê-se

logo que se assemelham em muitas

partes. Já o Evangelho de João é

muito diferente. Ele vê a vida de

Jesus noutra perspectiva: não o

mistério do Homem-Deus, mas a

revelação do Deus feito Homem.

Os mais velhos fragmentos dos

Evangelhos que se possui datam

do séc. II. O papiro Rylands, por

exemplo, datado do ano 125,

contém alguns versículos do

Quarto Evangelho (Jo 18,31-33.37-

38). Existem numerosos antigos

manuscritos dos Evangelhos;

milhares de papiros, pedaços de

pergaminhos que vêm dos séculos

III, IV, e V, alguns com longas

passagens do Evangelho, como o

papiro Chester Beatty (200-250).

Pode-se dizer que não há nenhuma

personagem da Antiguidade cuja

história ofereça certezas maiores

que as de Jesus.

No centro dos Evangelhos está

a pessoa de Jesus de Nazaré, o

Messias, Filho do Homem e Filho

de Deus. Nos dias de sua vida

pública, com palavras e ações,

Ele anunciou o advento, em sua

própria pessoa, do Reino de Deus

(Mc 1,15). Entretanto, o convite à

conversão nunca se tornou, na boca

de Jesus, condenação para

os mais fracos,

para os afastados

da religião e os

pecadores. À luz

das palavras do

profeta Isaías, Ele é

proclamado o Messias

“enviado para anunciar

a alegre notícia aos

pobres, para proclamar

a libertação aos

prisioneiros e aos cegos

a recuperação da vista...

e proclamar um ano de

graça do Senhor” (Lc 4,18s). Jesus,

portanto, anunciou a misericórdia de

Deus, invocado como “Aba”, Pai,

que, assim como o pai da parábola

do filho pródigo, aguarda ansioso

que o pecador retorne para recebê-lo

com festa e paternal ternura.

Este anúncio foi, digamos assim,

visualizado pelos milagres,

que operavam a cura física,

manifestando ao mesmo tempo a

libertação da escravidão do pecado

e a alegria de uma nova vida. Ao

lado de Jesus, durante seu ministério

publico, atuavam os discípulos,

entre os quais destacavam-se os

Doze e algumas mulheres – coisa

notável para o judaísmo daquela

época.

A pregação do Mestre de Nazaré

encontrou forte oposição,

especialmente por parte dos grupos

mais influentes dos judeus –

sacerdotes, mestres da lei e fariseus

– espantados pela sua maneira de

falar de Deus, cheia de profunda

familiaridade, e escandalizados

por sua escolha preferencial dos

pobres, dos oprimidos e

marginalizados, dos

pecadores e das classes

mais humildes da

sociedade. Surgiu, pois, o

medo de desordens políticas e,

conseqüentemente, da repressão

dos romanos.

Por causa dessa oposição, cada

vez mais violenta e ameaçadora,

Jesus ficou convencido que estava

trilhando o caminho da morte.

Mesmo assim, não se abala, não

arreda o pé, mas faz o rosto duro e

se dirige para Jerusalém (Lc 9,51).

Pois sua morte não será em vão, mas

terá significado e valor salvífico. Ele

morrerá a serviço da vida, pois ele

veio “para servir e dar sua vida em

resgate por muitos” (Mc 10,45), e,

após sua morte, o Pai o exaltará e o

receberá em sua glória.

O objetivo dos evangelistas é,

antes de qualquer coisa, proclamar

e suscitar a fé, mas uma fé que se

fundamenta na realidade histórica

de Jesus de Nazaré! Eles contam

uma “história” não para descrever

quem era Jesus outrora, mas para

proclamar quem é Jesus de verdade

(Jo 20,30-31). Justamente por causa

disso, apresentam divergências

cronológicas e geográficas

relevantes aos olhos críticos do

historiador. As indicações de tempo

limitam-se a fórmulas genéricas

(“depois”, “naquela ocasião”,

“então”, “poucos dias depois”),

assim como as referências aos

lugares (“no caminho”, “num lugar

deserto”, “num alto monte”, “em

casa”), usadas nos Evangelhos de

maneira diversa e discrepante. Essa

ausência de preocupação crítica

com os detalhes históricos aparece

também com relação às palavras e

sermões de Jesus. Na medida em

que, para a Igreja, o Jesus terreno

é também o Senhor glorioso, a

sua palavra assume, na tradição,

um valor universal e sempre atual.

Dessa forma, ao lado de uma

indiscutível fidelidade à mensagem

de Jesus, pode-se notar uma

espantosa liberdade na reprodução

de suas palavras históricas. Palavras

e gestos de Jesus refletem, de fato,

as circunstancias em que foram

relatadas e a compreensão teológica

do próprio narrador.

Manchester, Inglaterra

Fragmento do

papiro Rylands

Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 9ESPECIAL

Page 10: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 200810 ESPECIAL

A IMPORTâNCIA DE COMuNICAR CRISTOmas antes mesmo da redação dos evangelhos, foi se formando o corpo das cartas apostólicas que, respondendo a exigências e problemas das comunidades destinatárias, têm caráter basicamente doutrinal e exortativo.

APAIxONADA CONVERSãOentre essas cartas destacam-se, por força e originalidade de pensamento, as de Paulo. de fato, as cartas e a teologia que elas contêm são marcadas profundamente pela experiência religiosa do apóstolo, sua fé apaixonada, sua pregação incansável, suas viagens e sua existência turbulenta. formando-se no judaísmo da diáspora, familiar com os grandes temas religiosos e culturais da época, ele converteu-se dramaticamente nas proximidades de damasco, aonde se dirigia para perseguir os cristãos (at 9,1s e par.). relembrando na carta aos Gálatas esse momento central de sua vida, ele o interpreta como o ponto de chegada de uma vocação profética que iniciou já no seio materno: “Quando, porém, aquele que me separou desde o seio materno e me chamou por sua graça, houve por bem revelar em mim seu filho, para que eu o evangelizasse entre os gentios...” (Gl 1,15s).

de Perseguidor de cristãosa um dos maiores ProPagadores da boa nova

PAULO era judeu, nascido em Tarso, na Cilícia, atual Turquia, e se chamava Saulo.

Possuía cidadania romana e foi criado sob as culturas grega e judaica. Rigoroso em

suas convicções religiosas, achava que os discípulos de Cristo eram traidores da

Tradição. Morreu decapitado, entre 66 e 67, em nome da fé em Jesus.

O apostolo Paulo´

A coversão no caminho para DamascoCaravaggio

Capela Cerasi, Santa Maria do Povo, Roma

Belém, sexta-feira, 21 de março de 200810 ESPECIAL

Page 11: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 11ESPECIAL 11

uM PROJETO DE SALVAçãOPaulo, portanto, viu em Cristo o revelador e realizador do grande desígnio da benevolência de deus, pensado antes mesmo da criação do mundo, o projeto insondável de deus Pai de salvar todas as nações por meio de seu filho: “ensinamos a sabedoria de deus, mistério oculto, que deus, antes dos séculos, de antemão, destinou para a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o senhor da Glória” (1Cor 2,7-8). Cristo – ensina Paulo – não apenas revelou o projeto de deus, mas foi também quem conseguiu o beneplácito do Pai por meio de sua morte vicária, se substituindo aos pecadores e transformando a ira em bênção: “deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores. Quanto mais, então, agora, justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (rm 5,8-9).

TESTEMuNHAS DA HISTÓRIAsegundo o testemunho das Cartas de Paulo e dos evangelhos, a ressurreição de Jesus marca o início da “nova criação”, a ressurreição geral dos mortos. Não é um fato que pertence simplesmente ao passado. é atual e ultrapassa os limites da história. os primeiros cristãos viviam desta fé: “agora o Cristo ressuscitou, primícia daqueles que dormem” (1Cor 15,20).

O EVANGELHO É PARA TODOSPelo batismo os cristãos percorrem esse itinerário: da maldição merecida à bênção gratuita. Para corresponder a essa dádiva inteiramente gratuita da benevolência divina temos que viver como remidos no amor mútuo, com a mente e o coração voltados para o

nosso libertador Jesus Cristo. acolher a graça de deus com fé é, portanto, condição indispensável. e ela é oferecida não somente aos hebreus mas a todas as gentes: “Não há mais nem judeu nem grego...” (Gl 3,28-29). a tarefa de Paulo, aliás, foi justamente a de anunciar o evangelho aos gentios, missão à qual ele se dedicou com incansável zelo até o martírio, ocorrido em roma em 64 ou, mais provavelmente, em 67 d.C. lucas resume nos atos dos apóstolos a trajetória da atividade missionária de Paulo em três grandes viagens, mostrando a progressiva penetração do evangelho no mundo grego-romano, a partir de Jerusalém até a capital do império, conforme o projeto de Jesus ressuscitado (at 1,8).

FÉ NO RESSuSCITADOonde houvesse testemunhas e comunidades cristãs, por mais que a sua mensagem e a sua teologia pudessem diferenciar-se, havia sempre um ponto em comum: a fé no ressuscitado. falando como representante de todo o cristianismo primitivo, Paulo destacou isso de maneira vigorosa e inequívoca: “tanto eu, como eles, eis o que pregamos” (1Cor 15,11). é sobre o anúncio da ressurreição de Jesus que a fé cristã se fundamenta: “se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé” (1Cor 15,14). Paulo, que escreve esta carta antes mesmo da redação dos evangelhos, cita todos os encontros dos apóstolos com Jesus ressuscitado; e ele toma como testemunhas muitos discípulos que ainda vivem no momento em que escreve sua carta (1Cor 15,13s).

São Paulo pregando em AtenasRafael Sanzio

Victoria and Albert Museum, Londres

Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 11ESPECIAL

Page 12: Semana Santa 2009

ESPECIALESPECIAL12

igreja de batismo e comunhãoem decorrência dos eventos pascais, os discípulos e as discípulas de Jesus, unidos pela fé no mestre crucificado e senhor glorioso, formaram uma comunidade para orar, celebrar juntos a fração do pão, isto é, a eucaristia, e viver a caridade fraterna. formou-se assim uma comunidade cristã em Jerusalém, o novo povo de deus, o autêntico israel – é essa a consciência que ela tinha de si mesma – que vivia na alegre esperança da Parusia, ou seja, do retorno do senhor Jesus Cristo.os escritos do Novo testamento, especialmente os atos dos apóstolos, contêm indicações bastante precisas sobre a vida litúrgica e sobre o dia-a-dia das comunidades dos discípulos de Jesus.a vida litúrgica vai se moldando entorno da administração dos sacramentos e da comemoração dos gestos salvíficos do senhor, principalmente sua morte-ressurreição. os sacramentos (termo latim que traduz o grego “mysterion”) são os sinais salvíficos que Jesus Cristo deixou aos discípulos para significar a continuidade de sua presença, uma presença

misteriosa e invisível, nem por isso menos real e autêntica.os sacramentos mais importantes, testemunhados pela literatura neotestamentária, são o Batismo e a eucaristia. Com o Batismo se promete a remissão dos pecados e se entra a fazer parte da comunidade cristã, chamada com o termo grego “ekklesia”, ou seja, igreja. segundo uma praxe já consolidada, o batismo era administrado por imersão numa fonte ou num rio. logo, porém, devido o crescente número dos catecúmenos, deu-se mais destaque ao elemento simbólico e se considerou suficiente a aspersão dos novos fiéis.Com relação à eucaristia, os atos dos apóstolos relatam que os primeiros discípulos de Jesus se reuniam no primeiro dia da semana para a “fração do pão” (at 20,7). esta expressão já designava a comemoração da última ceia do senhor Jesus com seus discípulos, durante a qual ele “partiu o pão” e abençoou o cálice do vinho, ordenando aos discípulos de perpetuar, após sua morte, os mesmos gestos como memorial (zikkaron) de sua paixão, substituindo o memorial da Páscoa

do êxodo (ex 12,14). obedecendo à ordem do mestre, os discípulos, desde os primórdios, começaram a se reunirem para a celebração eucarística “no primeiro dia da semana” (1Cor 16,2), o dia conhecido como “dies domini” (ou dies “dominica”, cf. ap 1,10), isto é, o dia do senhor, no qual maria madalena, outras mulheres e os apóstolos viram o senhor ressuscitado (mt 28,1s e par.). Pelo que diz respeito à vida cotidiana dos cristãos, costuma-se tomar como referencial o quadro descrito pelos atos dos apóstolos (cf. at 4,32). ainda que a prática de vida dos primeiros cristãos fosse sustentada por uma intensa e elevada convicção religiosa de caráter escatológico, ou seja, a expectativa do iminente retorno de Cristo, a descrição de atos é basicamente um ideal a ser almejado. Não há duvida quanto ao espírito comunitário, a solidariedade recíproca e o esforço de amor sincero para com todos. entretanto, o episódio de ananias e safira (at 5) e os repetidos chamados de atenção encontrados nas cartas de Paulo (cf. 1Cor), bem como no apocalipse (ap 2-3), deixam claro que também os primeiros cristãos foram sujeitos às fraquezas e misérias humanas.

Belém, sexta-feira, 21 de março de 200812

vida litÚrgicae cotidianaBatismo do Povo - Andrea del Sarto

Florença - Itália

Page 13: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 13ESPECIALESPECIALESPECIAL

No seu interno, a comunidade cristã, desde

seu primeiro gesto simbólico, ou seja, a eleição

do apóstolo matias no lugar de Judas para

recompor o número dos doze, se mostra

estruturada hierarquicamente (at 1,21-26). de

fato, assim como 12 era o número simbólico

das tribos de israel, 12 também tinham que ser

as colunas no novo israel.

Pedro exercia a função de chefe, ou pelo

menos de porta-voz da comunidade. Havia,

pois, o grupo daqueles que acompanharam

Jesus durante sua vida pública, os que

foram confirmados apóstolos pelo Cristo

ressuscitado (1Cor 15,5-10) e, por fim, os

discípulos de forma geral. Com o crescimento

da igreja, foram constituídos os diáconos, mais

diretamente responsáveis pela evangelização

e governo das comunidades oriundas do

helenismo (at 6-8). as cartas paulinas

falam de presbíteros, epíscopos e diáconos

encarregados de dirigir a comunidade, presidir

a eucaristia e cuidar da assistência aos

pobres (fl 1,1; 1tm; tt). aos Coríntios que

contestavam sua autoridade e ensinamento,

Paulo declara que há uma ordem divina na

organização da igreja: “e aqueles que deus

estabeleceu na igreja são, em primeiro lugar,

apóstolos; em segundo lugar, profetas; em

terceiro lugar, doutores...” (1Cor 12,28). é

nessa ordem que os encontramos atuando

na igreja de antioquia (at 13,1s). a carta

aos efésios especifica que é Cristo “que

concedeu a uns serem apóstolos, outros

profetas, outros evangelistas, outros pastores

e mestres, para aperfeiçoar os santos...” (ef

4,11). os chamados para esses ministérios

recebiam a imposição das mãos por parte

dos apóstolos (at 6,6; 1tm 4,14; 2tm 1,6). a

evolução rumo a uma estrutura consolidada

e definitiva foi surpreendentemente rápida,

como testemunham, desde o início do séc. ii

as cartas de inácio de antioquia, martirizado

durante o reinado de trajano (98-117).

santo inácio foi um convicto defensor da

unidade dos cristãos: há uma só fé e um único

sacrifício, celebrado pelo bispo ou por quem

dele recebeu o cargo.

servidores do reinoos bispos, portanto, tornaram-se os chefes das comunidades cristãs e desenvolviam a função que havia sido dos apóstolos, dos quais se consideravam sucessores. essa autoridade, entretanto, deve-se diferenciar radicalmente da maneira como os chefes políticos costumam exercer seu poder, com arrogância e em proveito próprio. os dirigentes na igreja, seja qual for seu título ou ministério, são apenas servidores do evangelho e do povo de deus, do qual têm que cuidar e prestar contas (Hb 13,17; 1ts 5,12; 1Cor,16,16). Para deixar isso extremamente claro, o evangelista lucas coloca esse ensinamento, que a tradição fazia remontar ao próprio Jesus, num contexto muito significativo, o das advertências do mestre durante a ceia de despedida: “os reis das nações as dominam...” (lc 22,...).da mesma forma, o bispo de roma, sucessor de Pedro, que na capital do império havia sofrido o martírio, lentamente mas progressivamente estabeleceu-se como chefe da igreja. Que Jesus quisesse dar continuidade à função exercida por Pedro pode-se deduzir a partir do texto de mateus. dizendo o evangelista, com uma linguagem rabínica, que Jesus prometeu proteger sua igreja sempre no futuro e que Pedro teria a responsabilidade “de ligar e desligar” na terra por meio de decisões disciplinares, jurídicas e doutrinais que serão ratificadas nos céus, revela implicitamente a intenção do mestre de prover uma instituição estável para esse serviço.

Designado por Jesus a chefiar a Sua Igre-

ja, o humilde e rude pescador, juntamente

com o convertido Paulo, consolidou os

primeiros pilares do cristianismo no mun-

do. Morreu entre 66 e 67, crucificado de

cabeça para baixo, a seu pedido, por não

se achar digno de morrer como o Mestre.

o PaPa Pedro

vida litÚrgicae cotidiana

São Pedro - El GrecoÓleo sobre Tela

Monastério de San Lorenzo - Madri - Espanha

13

Page 14: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 200814 ESPECIAL

O cristianismo irrompeu no mundo romano como um movimento messiânico de amplitude internacional. A nova religião trazia uma mensagem escatológica, centrada na ressurreição e glorificação, valorizava o ser humano e o tornava membro de uma nova família universal, presidida por um Deus único que se manifestara sob forma humana e histórica. Ao ressuscitar, o Verbo divino

encarnado superou a própria morte e iniciou um processo que continuaria na história: sua ressurreição acarretava igualmente a ressurreição da humanidade. Quando ele voltasse traria a glorificação do mundo e a felicidade plena e eterna no Reino de Deus.A mensagem de salvação baseava-se na transformação espiritual a partir da conversão individual a Jesus Cristo. Uma opção possível a todos,

embora a salvação seja operada pela graça, e não pelos homens.O cristianismo atingiu todas as camadas da população, ainda que penetrasse mais facilmente entre os escravos e as classes mais pobres das grandes metrópoles. As comunidades cristãs pregavam a fraternidade em Cristo e a igualdade de todos perante Deus e se esforçavam de viver em comunhão de bens. Dessa forma, embora querendo alcançar essencialmente a renovação espiritual, a mensagem cristã ganhou a característica de revolução social e atraiu a população injustiçada. Em seus primórdios, portanto, o cristianismo, não se opondo à organização social do Império Romano, agia, digamos assim, a distância e acima de seus interesses.Visto inicialmente como heresia judaica, o cristianismo foi em seguida incluído entre as religiões de mistério, como um dos numerosos cultos orientais.

o cristianismoMas ele foi crescendo e se consolidando, graças também à rigorosa organização hierárquica que, no decorrer dos três séculos iniciais, deu à doutrina e ao culto uma coesão inédita face às outras religiões do mundo antigo. Numa carta endereçada ao imperador Trajano, Plínio, o Jovem, então governador na Bitínia (111-113), pergunta como se deve comportar em relação a um movimento de

“grande teimosia e inflexível obstinação” que é justamente o dos cristãos, acusados de perturbação da ordem pública. Eles se reuniam “num dia determinado, antes do amanhecer” (certamente no domingo), e entoavam “um hino a Cristo, como a um Deus”, vinculando-se ao sacramentum, isto é, ao “juramento” de não praticar nenhuma maldade.No relacionamento entre a comunidade cristã e o império romano podemos distinguir claramente duas grandes fases, separadas pelo Edito de Milão, do imperador Constantino (313).A primeira fase foi marcada por um relacionamento conflitante. As autoridades romanas, interrompendo uma tradição secular de tolerância com as religiões dos povos conquistados, declaram repetidamente “não lícita” a religião dos cristãos, infligindo todo tipo de pena aos seguidores da nova religião: da confisca dos bens até o exílio e a condenação à morte. As perseguições freqüentemente ficaram circunscritas a uma determinada região, como parece ter sido a que Nero desencadeou em decorrência do incêndio de Roma em 64. Outras vezes, elas se estenderam a todo o império, como a perseguição ordenada por Décio, no século III.

as perseguiçõesAo descrever o trágico quadro de uma Roma arrasada pelo incêndio,

IdeAIs e mensAgens de crIsto jesus cAtIvAm o povo pobre e InjustIçAdo do ImpérIo romAno

a novidade cristã

Contantino IMosaico bizantino do sé. XIgreja Hagia Sofia - Istambul - Turquia

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Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008 15ESPECIAL

na qual as acusações mais infamantes eram lançadas contra o louco imperador responsável pela tragédia, Tácito escreve: “Para cessar esse boato, Nero declarou culpados e condenou aos mais atrozes suplícios aqueles que o povo chamava de cristãos – odiosos por suas abominações” (Annales 15,44). Outro historiador, Suetônio, na sua “Vida de Cláudio” (cerca 121 d.C.), lembrava que “os judeus, que continuamente provocavam perturbações por instigação de Cresto, foram expulsos de Roma” (n.25). Também os Atos dos Apóstolos lembram essa decisão de expulsar os judeus de Roma (At 18,2). Parece que Suetônio atribuísse a Cristo (Cresto!), anacrônica e levianamente a responsabilidade pelas tensões causadas pelos cristãos, confundidos por ele com os judeus da cidade. Os cristãos, claro,

consideraram totalmente injustificada a perseguição e chegaram a ver no império romano a personificação do mal, o dragão do Apocalipse, por querer aniquilar “os que observam os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus” (Ap 12,17). No meio dessas provações os cristãos desenvolveram a mística do martírio como uma perfeita imitação de Cristo (Ap 6,9; 7,9s). Morrendo pela fé, o mártir se torna companheiro de Jesus no calvário e participa de sua paixão e de sua glória. Portanto, ainda que só em forma de veneração e modelo, o mártir pode ser a Ele associado no culto. Justifica-se assim o culto dos mártires e, mais em geral, dos santos, que rapidamente assume um papel importante na vida dos cristãos.Mas no séc. IV a situação mudou

radicalmente. Conseguido o reconhecimento de sua

legitimidade, o cristianismo conquistou logo uma

posição de favor e de privilégio que levou à formação da Igreja imperial. Contudo, a nova

situação não

estava isenta de riscos, como apontava com muita lucidez São Jerônimo quando escrevia: “Desde que a Igreja há imperadores cristãos, cresceu com certeza em poder e riqueza, mas se enfraqueceu em sua força moral”. Realmente, a excessiva colaboração acabava inevitavelmente por submeter a Igreja ao Império, configurando os bispos como funcionários públicos que nem sempre gozavam de boa reputação, fazendo com que um grande número de vigaristas entrasse a fazer parte da Igreja, motivados unicamente pela ganância, busca de privilégios e perspectivas de autopromoção.Tem início a história da Igreja, da sua missão e expansão para além dos confins da Palestina, em todo o mundo. Uma história rica de conflitos e de tensões, na

qual o mundo se defronta com o Evangelho, mas também a Igreja se encontra com o mundo, obrigada a apresentar a mensagem de Jesus Cristo em formas e em línguas sempre novas. História de ações e reações, de fidelidade e infidelidade, de intuições e erros, de vitórias e fracassos entre os povos e no coração dos homens. Tudo isso é ainda, só aos olhos da fé, a história de Jesus Cristo e de seu poder, mas também a história de sua paixão e morte que não termina jamais. O escândalo da cruz era a luz que o mundo esperava e não conhecia; o amor autêntico e incondicional que salva gratuitamente, por amor, por pura graça; o dom divino que a humanidade tanto desejava mas não ousava esperar.

O imperador Nero e o Coliseu Romano: referên-cias históricas sobre o mar-

tírio dos cristãos

Page 16: Semana Santa 2009

Belém, sexta-feira, 21 de março de 200816 ESPECIAL

o cristianismo defrontou-se com um mundo consolidado: um mundo onde, desde as conquistas de alexandre, o Grande (356-323 a.C.), predominava a cultura greco-romana. Nessa vastidão que incluía quase toda a europa, a Ásia menor e o norte da África, o clima espiritual era contraditório.a religião oficial de roma, politeísta e eclética, caracterizava-se pelo pragmatismo político. roma procurava garantir suas tradições e supremacia por meio das divindades nacionais, mas não deixava de utilizar deuses estrangeiros

para manter sob controle os povos conquistados. Não faltavam templos na capital do mundo dedicados às divindades importadas, ainda que Júpiter fosse o patrono da cidade e o culto ao imperador, desde o fim da república, fosse motivo de poder e unidade dentro do

império. mas essa religião vazia e teologicamente frágil,

que não passava de um conjunto de ritos sem

significação profunda, foi prejudicada pela chegada dos cultos

orientais ao ocidente, pelo fascínio que exerciam sobre o povo. as classes pobres voltavam-se para elas, procurando nos “mistérios” que prometiam o perdão das faltas e

a união com deus através de ritos como o “batismo” e as refeições sagradas. dessas religiões, a mais fascinante era sem dúvida a de mitras. Vindo da Pérsia e conhecida desde o séc. i a.C., praticava ritos litúrgicos muito parecidos aos do cristianismo, como o batismo, os ágapes, o jejum, a penitência e as unções. ensinava a imortalidade dos crentes e a existência de um paraíso para as almas puras. organizava reuniões noturnas sob a liderança de um clero numeroso, que incluía sacerdotisas.de início, roma reconheceu como legítimos os deuses dos

povos conquistados, mas, ante a ameaça desse sincretismo desagregador, buscou respostas mais universalizantes e unificadoras: desde a radicalização do culto ao imperador até a introdução do culto ao sol invictus.aqueles que procuravam encontrar outras perspectivas, morais ou intelectuais, refugiavam-se no ceticismo ou na religiosidade de caráter filosófico, com tendências monoteístas. restringiam-se, porém, às camadas mais eruditas, e seu abstrato conceito de deus carecia, talvez, de piedade e conteúdo emocional.

a antigüidade crista: igreja e império~nova religião surge Para suPrir carência de um deus abstrato e sem amor

Rei da Macedônia, Alexandre, O Grande, é tido por

alguns historiadores modernos como um “homem

de valores cristãos”, mesmo antes do nascimento de

Jesus, por praticar a paz e a justiça

Deus MitrasMuseu do Vaticano