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1 Editorial Por Helena Frenzel Neste número textos de: Michele Calliari Marchese Helena Frenzel Entrevista com Carlos A Lopes, do Blog Gândavos Edição: Helena Frenzel Versão Impressa de textos selecionados do Blog Sem Vergonha de Contar - IBSN 2- 505-203-000 - Nr 7 - Agosto 2013 Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected]. Neste número de agosto, o primeiro após a edição especial junina, toda dedicada ao projeto Pequenos Escritores da Canastra, voltamos à nossa programação normal. Abrimos com enigmáticas Rosas , causo da Campina que enfeitou nosso Blog no mês das flores, das cores e das mães. Seguimos com os sensíveis A Escritora , conto meu, O Causo do Homem e Um Homem de Guerras , ambos da Michele. Este último, uma homenagem especial a seu querido tio Mário Bittencourt que, infelizmente, veio a falecer no mesmo dia em que este causo foi publicado em nosso Blog. Coisas do acaso, inexplicáveis como as tantas que ocorrem na Campina e que nos fazem pensar na vida e no emaranhado que ela é. Porém criamos espaço também para o riso: O Preferido é um daqueles contos bem vigaristas que Michele tão bem sabe contar, e escrever. Fechamos então com uma entrevista ao coordenador do projeto Gândavos , vale a pena conhecer. Que le guste“ e deguste é o nosso desejo. Saudações letripulistas, até o mês que vem! SEM VERGONHA DE CONTAR Contos, Causos e Coisas do Gênero Canto das escritoras Helena Frenzel e Michele Caiari Marchese

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Page 1: SEM VERGONHA DE CONTARstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4414254.pdfoutra ali e foi plantando conforme que ia perdendo as esperanças e as crianças em seu ventre. E conforme

1

EditorialPor Helena Frenzel

Neste número textos de:

Michele Calliari Marchese

Helena Frenzel

Entrevista com Carlos A Lopes, do Blog Gândavos

Edição: Helena Frenzel

Versão Impressa de textos selecionados do Blog Sem Vergonha de Contar - IBSN 2- 505-203-000 - Nr 7 - Agosto 2013

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

Neste número de agosto, o primeiro após a edição especial junina, toda

dedicada ao projeto Pequenos Escritores da Canastra, voltamos à nossa

programação normal. Abrimos com enigmáticas Rosas, causo da

Campina que enfeitou nosso Blog no mês das flores, das cores e das

mães. Seguimos com os sensíveis A Escritora, conto meu, O Causo do

Homem e Um Homem de Guerras, ambos da Michele. Este último, uma

homenagem especial a seu querido tio Mário Bittencourt que,

infelizmente, veio a falecer no mesmo dia em que este causo foi

publicado em nosso Blog. Coisas do acaso, inexplicáveis como as

tantas que ocorrem na Campina e que nos fazem pensar na vida e no

emaranhado que ela é. Porém criamos espaço também para o riso: O

Preferido é um daqueles contos bem vigaristas que Michele tão bem

sabe contar, e escrever. Fechamos então com uma entrevista ao

coordenador do projeto Gândavos, vale a pena conhecer. Que „le guste“

e deguste é o nosso desejo. Saudações letripulistas, até o mês que vem!

SEM VERGONHA DE CONTAR

Contos, Causos e Coisas do GêneroCanto das escritoras Helena Frenzel e Michele Calliari Marchese

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013 Causos da Campina

As RosasPor Michele Calliari Marchese

O EUSÉBIO era o homem mais rico da

Campina da Cascave l . Genera l reformado da Guerra do Contestado;

tinha a maior casa da cidade, construída

com esmero e a próprio punho, possuía

cinco quartos na esperança de preenchê-

los com os filhos que não vieram. Sua e s p o s a , a D o n a A d e l a i d e q u e

engravidava, mas não paria, fez das

roseiras suas filhas e do coração, um

inverno rigoroso.

Conseguia uma mudinha de rosa aqui,

outra ali e foi plantando conforme que ia

perdendo as esperanças e as crianças em

seu ventre. E conforme que essas coisas

tristes aconteciam, o Eusébio ficava mais e mais avarento.

Ele tinha dentro de si uma tristeza atroz, e por nada tomava amor, a não ser pelo

dinheiro e por Dona Adelaide. Tinha que

guardar tudo, como a esperar as crianças

que um dia usufruiriam do capital.

Com o passar dos anos e da fertilidade,

Eusébio foi ficando cada vez mais

intratável e mesquinho e da sua avareza

não escapavam nem as roseiras de Dona

Adelaide. E quando ele via que as rosas ameaçavam murchar, mandava tirar tudo

e guardar nos quartos dos pequenos.

Mas como tudo na vida, a Dona Adelaide

passou desta vida para outra e o vazio fez companhia duradoura no peito do

Eusébio.

“(...) fez das roseiras suas filhas e do coração, um inverno rigoroso.”

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013 Aconteceu no inverno mais rigoroso que

se teve notícia. As roseiras em flor

exalando um último perfume para as

exéquias da Adelaide e depois disso,

congelaram-se em botões e flores.

E continuaram assim, mesmo na entrada

da primavera e depois com o verão. Não

descongelaram e tampouco nasceram

mais flores e o povo começou a estranhar

que as rosas do jardim da falecida eram sempre iguais e cheiravam a plástico.

O fato chegou aos ouvidos do Padre

Dimas, e para acalmar o povo, resolveu

fazer uma visita ao Eusébio, que passava os dias trancado em casa, metido num

laboratório a preparar unguentos. No

auge do conforto que a visita do padre

proporcionou, declarou entre soluços que

ele podia fazer um remédio que trouxesse a vida eterna, sem as dores da morte. E

trabalhava num frenesi, andando de um

lado para o out ro, chorando e

misturando águas coloridas em potes

transparentes, deixando o padre muito c o m ov i d o q u e d i s s e n u m a vo z

entrecortada pela emoção que tudo o que

ele fizesse não traria Dona Adelaide de

volta.

E o Eusébio então sentou, colocou as

duas mãos no rosto para esconder as

grossas lágrimas que corriam pela face e

com os cotovelos no joelho ele respondeu com a lástima dos que sofrem a vida

inteira que a Dona Adelaide ele não

podia mais ter, mas as rosas sim, porque

eram fragmentos do amor dos dois. Em

cada rosa, dizia ele, ele via um pedaço da vida que eles passaram juntos, pois elas

foram plantadas em meio às lágrimas e

ao sofrimento da perda.

Iria continuar com os unguentos e ameaçou por meio do padre que quem

tirasse uma folha sequer das roseiras, iria

se ver com ele e com toda a raiva que

sentia.

O padre deu o recado numa missa de

sábado e então por muitos e muitos anos

ninguém mais viu o Eusébio, e todo

mundo via as rosas iguais, como no dia

do enterro de Dona Adelaide. Já não passavam mais em frente a casa,

atravessando a rua para não sentir e não

ver tão dolorida imagem.

Foi quando apareceram alguns homens da capital para confiscar os bens de

Eusébio que o povo descobriu que ele

estava morto e falido. Tiveram muita

dificuldade em encontrar o corpo no

meio de tantas rosas e espinhos.

Chamaram o delegado, o Padre Dimas e

o barbeiro para dar início ao velório, e

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013 conforme iam andando com o caixão

pela casa, as rosas iam morrendo, uma a

uma como numa passagem magnífica de

despedida.

Percorreram o lindo jardim de rosas de plásticos que iam se transformando em

rosas verdadeiras, seus botões antes

fechados há anos, foram se abrindo e

perfumando o caminho que seu dono

fazia dentro do ataúde e foram se extinguindo também uma a uma na visão

mais triste e desoladora que alguém

poderia presenciar.

Foi enterrado ao lado de Dona Adelaide, debaixo de um jardinzinho de rosas que

se transformaram em plástico assim que o

caixão baixou à terra.

Contos SensíveisA EscritoraPor Helena Frenzel

CENTO e sessenta quilômetros, cem páginas de um manual. O letreiro acima da porta

avisava: aproxima-se o destino e o local. Estava preparado. “O cliente tem sempre razão”.

Alberto torceu o pescoço pensando nisso e guardou os papéis; a esquerda arrumou a

gravata, a direita buscou o paletó. Já vestido, sentiu o peito vibrando e pensou em

taquicardia, mas não passou do celular fino anunciando nova mensagem. “Desculpe a rudeza do meio”, dizia o email, “buscamos outras formas de contato, sem efeito. A Senhora Matoso

Pedreiro faleceu esta manhã.” seguidos de uns “sinceros pêsames, favor entrar em contato de imediato

para acertos finais”. Pela forma do texto nem precisava ter assinado Ester Loureiro para que

ele soubesse que se tratava de uma mulher a serviço da agência funerária. Eram

profissionais, como ele. A morte era o negócio e nessas horas eles bem deveriam saber o que fazer. Por isso ele não entendeu. “Que acertos finais? Tudo já não tinha sido pago?”,

perguntou-se aborrecido preparando-se para o desembarque. Os trens eram rápidos nas

estações não-terminais, teve que apressar-se.

* * *

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013 “Nunca! Só sobre o meu cadáver! Nem dinheiro

nem ações!”. Alberto lembrou-se da

discussão que tivera com a mãe já no

conforto do táxi, apartado do frio e

serpenteando nas ruas vazias de gente a

caminho do hotel. Pegou o celular e buscou o site. Certa vez, passando por

uma crise, recebera via email o convite de

uma amiga da família, Gilda, para visitar

um blog. Poemas e

n a r r a t i v a s n ã o preenchiam sua lista

de preferências, mas o

que ele ali encontrou

tanto o incomodou

que sem se dar conta tornou-se leitor o

m a i s a s s í d u o . A

p r o f u n d e z a n a

s i m p l i c i d a d e d o s

e s c r i t o s d a q u e l a mulher era para ele

u m e n i g m a q u e

t e n t o u p r i m e i r o

entender e, depois,

ignorar; mas sempre nos momentos mais críticos, sentia-se compelido a voltar e ler

sem pausas, e o mais estranho era o alívio

que sentia no final, senão pelo escrito,

pelo prazer rasteiro de ter cedido à

tentação. Certa feita, sentiu um forte desejo de tomar a escritora nos braços e

dar-lhe um sincero beijo de tanto que o

texto o comoveu, mas nunca teve

coragem de manifestá-lo. A escritora sabia que era lida por muitos, ele

pensava, e a ele apetecia saber-se um

ponto só nas estatísticas, anonimato total.

* * *Num misto de impaciência e cansaço não

sentiu segurança ao dizer que azul era a

cor preferida da mãe, mas achou que tons

escuros e opacos bem

combinavam com a o c a s i ã o . E s t e r

Loureiro tinha uma

voz fi r m e p o r é m

m a c i a , nu m t o m

ameno feminino que poderia interessá-lo,

mas Alberto desistiu

de compor a cena ao

lembrar-se que sua

vida em nada casava c o m o r o l d e

e x i g ê n c i a s

sentimentais, e lhe

disse: “Façamos assim,

obrigado.” Não maldizia as tantas viagens, gostava muito até. Era uma forma de

estar em vários lugares sem pertencer a

lugar nenhum. “Ela seria cremada mesmo e

no fim: tudo cinza”, ele pensou e “escuro”

respondeu desligando, pois a conversa havia terminado bem antes dispensando

a praxe social. Resignado pagou a

“Eu não leio seus escritos; é ela

quem me lê antecipando o que eu digo e sonho em

poder dizer, exatamente.”

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013 corrida, pegou a bagagem e entrou no

hotel.

* * *

“Você não conhece sua mãe.” — disse-lhe Gilda ao saber da discussão que tiveram

— “Não faz idéia de quem ela é”.

“Fala das ações?” — perguntou Alberto.

“Sim, das ações” — ela disse, friamente.

* * *

L e m b r o u - s e d a

escritora e das tantas

vezes que ela, com s u a s p a l a v r a s

u n i v e r s a i s h a v i a

conseguido distrair-

lhe a dor. Quando a

e n c o n t r o u , n a internet, ficou com

nítida sensação de

papéis invertidos: ela, escritora; ele, leitor,

porém: “Eu não leio seus escritos; é ela quem me lê antecipando o que eu digo e sonho em poder dizer, exatamente”.

* * *

“Vendidas.” — Alberto recebeu o anúncio

e não soube o que dizer a Gilda. A mãe

tinha aquele jeito sorumbático, pouco

compartia de suas decisões. Naturalmente

ele não a deixaria desamparada, se bem que ela lhe garantira ter mais que o

suficiente para viver. Concluiu o curso,

abriu a firma. “Certas idéias persegue-se ou

elas para sempre perseguirão”. A mãe não o

questionou por isso. Simplesmente disse: “Você é capaz”. Com dezoito anos ele havia

deixado a casa dos pais para estudar em

outro país. A mãe, viúva há um bom

tempo, era ainda muito jovem quando ele

partiu e não pouco alardeava amar o p r o v i n c i a n o e a

solidão, que “não é o mesmo que estar só e nada tem de melancólico, é e s c o l h a c o n s c i e n t e pessoal”, ela dizia. O

pai morrera deixando

Alberto ainda bebê e

em suas lembranças

não havia nada da vida com ele, apenas

um rosto pintado de

fotos e um perfil colado de lembranças

alheias.

* * *

Há vários anos Alberto dividia a vida

entre clientes, acionistas e reuniões,

sobrava tempo apenas no Natal e sonhava com a aposentadoria, quando a

vida, de fato, prometia começar. Soube

da doença da mãe só quando esta já

“Certas idéias persegue-se ou

elas para sempre perseguirão.”

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013 estava no hospital. Certas moléstias nos

pegam desprevenidos, no caso dela nem a

genética poderia antecipar. E em menos

de um mês estava tudo concluído. Os

serviços funerários ela própria havia

contratado muito antes, em tempos de lucidez. Sessenta e um anos completaria

num próximo maio, morreu em abril.

* * *

Em penumbras e quartos de hotéis

Alberto chorou muitas vezes, chorou

como um menino que criou corpo e não

cresceu, incomodado. De tanto choro,

nunca soube a razão. Depois das cinzas e do espólio, Alberto lamentou nunca ter se

sentido à vontade para falar de

sentimentos com a mãe. Lembrou que quando criança ela perguntava vez em

quando: “Você me ama?”, ao que ele

sempre negava ou mantinha o silêncio

com prazer só para contrariá-la, coisas

que as crianças sabem tão bem fazer. Um dia as perguntas cessaram e calaram-se

todas as declarações. Ele nunca quis que

ela vendesse as ações para ajudá-lo em

seus negócios, a essa idéia ele opusera-se

feroz. Porém, diante do feito, aceitou de bom grado. Fazer o quê? Conforto

mater ia l e la sempre teve ; como

prometera: ele nunca a desamparou.

* * *

“(...) ela perguntava vez em quando: “Você me ama?”, ao que ele sempre negava ou mantinha o silêncio com prazer só para contrariá-la, (...). Um dia as perguntas

cessaram e calaram-se todas as declarações.”

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013 O incômodo só crescia quando ele

recorria ao site buscando uma palavra de

auxílio, um sentido qualquer e nada; há

meses, nenhuma publicação. Na falta de

novos escritos burilou antigos, mas nada

conseguia lhe acalmar. Alí ficara um hiato, uma pausa nas postagens sem

qualquer explicação e esse não saber o

i n q u i e t a v a e f a z i a - o c h e c a r

neuroticamente atualizações. Pela

primeira vez sentiu-se órfão, sozinho. Teve certeza. Mas, desta vez, não chorou.

“Quatsch!”, a disciplina falou mais alto e

a ordem foi trabalhar. A noite foi-se com

o sono evadido levando o temor de

perder o trem, que sairia a poucas horas, e de perder-se na conta dos cordeiros:

centenas de clientes, quilômetros de

trilhos, milhões em ações, cem manuais...

O Causo do HomemPor Michele Calliari Marchese

O HOMEM entrou no pátio da casa e por

ali ficou. Foi a Dona Anja quem viu e

ficou aguardando os acontecimentos.

Estranhou o fato porque ali, naquela casa

velha, ninguém entrava havia muitos anos e o mato tomava conta de tudo. Era

um completo abandono.

A casa tinha sido do jagunço Angelin e

após a morte dele naquele fatídico dia no cemitério a esposa tinha pegado os filhos

e deixado tudo para trás. Saiu só com a

roupa do corpo, para destino incerto.

Ninguém nunca soube dela e das

crianças.

Fazia muito tempo que a casa fora abandonada e as trancas enferrujaram, a

pintura descascou e ninguém tinha

coragem de por os pés ali. Talvez porque

fosse do Angelin, ou talvez porque fosse

que a esposa tinha sumido, enfim, ela tinha uma aura assustadora.

Provavelmente aquele homem, que agora

lá estava, não sabia de nada. Nem de

jagunço, nem de abandono, nem de nada. Usava uma capa preta, por causa

do frio cortante e um chapéu que lhe

cobria o rosto. Deixou o cavalo amarrado

na cerca e entrou no pátio como se fosse

o próprio dono.

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Para a Dona Anja pareceu-lhe o Angelin

e um arrepio percorreu sua espinha.

Lembrou-se do tempo que ele vinha ver a

mulher a cada 15 dias, e nesses dias a

vida se renovava naquele lugar. Flores abriam-se, frutas amadureciam, os dias

eram enso larados e as cr ianças

brincavam no pátio mais que nos outros

dias. A vinda do Angelin era o próprio

amor chegando.

O homem abriu uma pequena sacola que

estava debaixo da capa e pegou uma

chave grande, antiga, gasta. Foi para a

porta de entrada e lá ficou um bom tempo até que enfim conseguiu abrir e

entrou.

A vizinha, que nada perdia e cujo hálito

embaciava o vidro, ficou tensa com a invasão. Chamou o marido para que este

fosse buscar o delegado e para que

tirassem a história a limpo, mas o marido

ficou tão arrepiado quanto a Dona Anja.

Dizia que se não tivesse visto o Angelin morto, tinha certeza que era o próprio

que estava ali, de volta.

Foi quando aconteceu que as flores se

abriram em pleno inverno, nas árvores secas e sem cuidados daquela casa havia

frutos maduros e então um enlevo de

amor fez a Dona Anja e o seu marido

escutarem os gritos das crianças de tantos anos atrás. E eles apertaram os olhos,

porque foram capazes de vê-las em seus

folguedos infantis. E viram também a

esposa do Angelin de braços abertos na

porta agora aberta por aquele homem.

Tomados de urgente amor juvenil, Dona

Anja e o marido fizeram amor ali mesmo

e lembraram que quando o jagunço

chegava, eles se amavam mais que nos dias que ele não estava. E o verão brotou

depois de tantos anos.

Quando terminaram e se abraçaram e se

beijaram, lembraram também tudo o que tinha sido deixado para trás. Foram

interrompidos pelos soluços que vinham

da casa velha, um choro tão doído e

sofrido que se ressentiram do que tinham

feito e foram para fora ver quem era, conhecer o homem que havia aberto

todas as portas e janelas da vida e que

reacendeu o amor.

Mas não havia cavalo amarrado na cerca, tampouco as flores abertas e frutas

maduras.

Havia um grande vazio e a tranca

continuava intacta sem marcas recentes e nem pegadas no pó da varanda.

Não havia nada, como nunca houve.

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“ A vinda do Angelin era o próprio amor chegando. (...) e foram para fora ver quem era, conhecer o homem que havia aberto todas as portas e janelas da vida e que

reacendeu o amor.”

Um Homem de GuerrasPor Michele Calliari Marchese

Em honra a Mário Bittencourt.

NÃO se lembrava de quando tinha

envelhecido. Espantou-se ao escutar a esposa dizendo que fazer noventa e dois

anos era muito difícil. Ficava pensando se

ela falava dele ou de outra pessoa, e

bastava alguém passar a mão em suas

costas num sinal de consolo que sabia perfeitamente que era ele o senil. Não

recordava de comemoraçõe s de

aniversário e tampouco dessa última, a

dos noventa e dois. Quando foi isso?

Precisava pensar. Pegou um papel envolto em plástico e passou os dedos para tirar a

água da chuva que molhava as diretrizes

que o comandante havia lhe passado.

Como estava difícil de enxergar, esperou

um clarão de um bombardeio qualquer para ler e firmou as vistas e ajeitou o

capacete para proteger-se daqueles

pingos infernais.

Tinha urgência em saber qual era o passo a seguir. A tropa aguardava o comando e

a s r e s p i r a ç õ e s t i r a v a m a s u a

concentração.

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013 Ouviu a esposa pedindo-lhe se estava

com frio, e mesmo sem resposta ela

envolveu-o numa manta tricotada e

perfumada. Sentiu o cheiro dela e

também da pólvora. Tinha que agir.

Ele comandava aquela peça de artilharia

naquele exíguo pedaço de chão e usavam

os mortos para se protegerem. Agradeceu

com uma olhada para o

alto, pois a chuva levava o cheiro do sangue de

seus companheiros e de

tantos outros que sequer

conhecia por nome.

Obedeciam-lhe, era certo.

Sentiu o aperto de mão

da mulher que falava

com amor e sentiu o calor do lar a confortar

seu peito. Retribuiu o

aperto de mão com um

aceno de cabeça, poderia

ser a última vez que veria o seu imediato. “Vão! Vão!” Corriam assustados,

confiantes na ordem recebida e pensou

quantos daqueles achavam que voltariam

para casa, e sentiu uma fome dos diabos.

Comeu com avidez a papa de bolacha

com leite que a esposa carinhosamente

lhe dava. A cada colher metida em sua

boca, vinha-lhe um beijo de amor. Aquele amor que ele deixou para trás quando foi

convocado para a guerra. Nunca se

arrependeu de ter levado a foto da

namorada, pois era aquele olhar de

mulher apaixonada que o fazia viver no meio de tanta dor .

Engatilhou o fuzil em alerta, molhado.

“As crianças não”, pelo

amor de Deus. Tudo podia ver, mas não

m a t a r i n o c e n t e s .

Repetiu a ordem em voz

alta, se perguntando se

ele mesmo não o tinha feito num momento de

l o u c u r a . A n t e s

enlouquecer do que

cometer um ato que

nunca iria esquecer.

Foi quando colocaram

uma bolinha de plástico

em sua mão que saíra

daquele sonho longínquo do passado miserável que tivera. Ensaiou um sorriso

para aquela que esperara o retorno dele

para poderem se casar. Amava-a mais

que nunca e pensou que estavam

aguardando ele jogar a granada naquela trincheira inimiga e então tirou a argola e

a bolinha rolou perto de seus pés.

“ Não se lembrava de quando tinha envelhecido.”

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todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

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013 “Você sempre joga a bola para que eu

pegue”, lhe disse a velha esposa. E ele

escutou o barulho da explosão, os gritos

que nunca mais saíram de sua cabeça e o

cheiro de muitas mortes e da terra

molhada. Aqui lo era o in fer no. Avançaram até a trincheira explodida,

verificaram as baixas, mataram aqueles

feridos e num frenesi de loucos

informaram o comando que a operação

tinha sido bem sucedida.

Deveria montar guarda naquela noite,

mas a mulher lhe disse num sussurro de

arrepiar que era hora de dormir, ao lado

dela e bem juntinhos como faziam desde sempre e foi acordado de supetão pelo

imediato que lhe disse necessitar de

ajuda, pois que havia inimigos rondando

por ali. Tinha-os visto num virar de olhos

passando por baixo de algumas árvores mais adiante. Engatilhou o fuzil, ficou

olhando para aquele lugar e foi só depois que o dia clareou que viu a esposa lhe

trazendo um copo com água e a dizer o

“bom dia” mais quente de sua existência.

Precisava urinar. Era uma urgência febril, vivia molhado e com frio, decerto pegou

alguma coisa que lhe fazia doer a bexiga

e os testículos e no meio de tanta dor

escutou a voz da filha a lhe gritar da

cozinha que tinha chegado para ajudar. Tinha orgulho dos filhos, eram a

extensão dele e de sua esposa. Pensou que

sabia exatamente como ela seria no dia

em que nasceu. “As crianças não, porra”.

Gritou novamente para um soldado que estava totalmente ensandecido com tanta

catástrofe ao seu redor e atirava para

todos os lados, e que por fim, não

aguentou tamanha dor e deu o tiro

derradeiro em seu rosto manchado pelas lágrimas da exaustão.

Cavou o buraco para enterrar o corpo ali

mesmo no meio de tanta fumaça, chuva e

grito e tinha as mãos cheias de terra e lágrimas e encontrou a bolinha de

plástico que alguém colocou ali. Tirou a

lama das mãos e com a ponta da faca

tirou a lama das unhas. Estava cansado.

Tinha noventa e dois anos.

Tirou a argola da granada e jogou a

bolinha a seus pés.

“Antes enlouquecer do que cometer um ato que nunca iria

esquecer.”

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013 Conto Vigarista

O PreferidoPor Michele Calliari Marchese

ESSE causo aconteceu quando as

primeiras famílias apareceram para

desbravar a Campina da Cascavel,

vinham de lugares distantes e também de

outros países. Uma dessas famílias era oriunda da Itália e veio o casal com três

filhas pequenas.

A mama fazia comidas espetaculares e

usava um ingrediente que não existia na região e todos que provavam do petisco

queriam saber da receita e do dito

“manjericão roxo” que ela usava para

d e i x a r t u d o m a i s a p e t i t o s o . O

condimento acabou virando contrabando e renda principal para a família da mama

que enriqueceu de uma hora para outra.

Com o tempo as filhas casaram; a mais

nova com o João, a do meio com o José e a mais velha com o Ademir. Nessa

ordem, porque a mais nova casou muito

cedo em função de uma gravidez de

susto. O João que foi o primeiro a entrar

para a família ganhou o posto suado de “o preferido”.

Pois que a mama reunia a família todo o domingo para um grande almoço e o

preferido ganhava a honra de ter a

comida predileta à sua frente. O João

comia o que mais gostava e lambia os

beiços de satisfação gerando uma espécie de ciumeira entre os concunhados.

O José pouco falava e a mama chamava o

pobre de “povereto” e o Ademir, bom, o

Ademir questionava se já não era hora de uma troca de genros no posto da

predileção da matriarca, ao que ela

respondia num vozeirão de poucos

amigos que “no! Aspettare il tuo turno” e

bem baixinho para o nono escutar: “bruta bestia”. E o Ademir que não

entendia italiano, mas entendia muito

bem a língua escaldada da sogra, comia

numa ponta da mesa a remexer-se na

cadeira de madeira.

E os domingos eram de festa e de muitos

gritos, a cada almoço o nono aparecia

com uma cadeira nova para acrescentar à

mesa que já estava com uns bons remendos para ficar maior, pois os netos

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013 não paravam de chegar — dezoito ao

todo. A mama e o nono nunca sabiam

que filho era de quem e quando iam

chamar algum diziam: “Quello altre ali”,

ou então diziam todos os nomes —

quando lembravam — até acertar o nome da criança que queriam chamar. E

era um tal de empurra filho daqui e dali

que os dezoito apareciam na frente da

mama para atender-lhe o pedido.

“Polpetta” de novo nona? E a mama

respondia que “si, era il cibo preferito di

João, mangia i cala a boca impertinente”.

Todos comiam, mas não calados e então aconteceu que uma vizinha apareceu

pedindo do dito manjericão roxo, só um

tantinho para que ela pudesse fazer a

receita de pastel que a mama tinha lhe

passado. E a mama foi até a cozinha e trouxe um naquinho de nada do

condimento e cobrou a queima roupa na

frente de todo mundo: “ Il costo è di

trenta mil réis”. A outra quase caiu de

costas, mas diante daquele espetáculo minúsculo apertado entre os dedos,

resolveu ceder e pagou sem pestanejar

com o brilho da cobiça em seus olhos.

Os genros não respiraram quando esticaram o pescoço para ver onde a

mama guardava tão rico alimento pois

que era escondido à sete chaves e

ninguém nem o nono, sabia onde era. Todos aqueles anos eles passaram

procurando o manjericão, sem sucesso.

Foi quando aconteceu que o nono

apareceu com uma cadeira a mais na mesa e a mama gritou num português

gelado que era a hora de parar com os

netos, que estavam todos velhos e para

que tanta criança se não tinha mais

panela para fazer tanta comida e notou que muitas cadeiras estavam vazias e

faltavam muitos netos à mesa e que a

g r i tar ia hav ia encer rado. Todos

explicaram que muitas delas estavam já

em faculdades nas capitais e o José, aquele “povereto” disse numa voz que

ninguém até então conhecia que foram

estudar para serem gente de bem e graças

à mama que tinha parido as filhas... e a

mama não deixou o “povereto” terminar gritando que “Da ora avanti, il mio

preferito è Bepin, mio povereto”.

O João se engasgou, mas ao mesmo

tempo ficou aliviado porque não teria mais as polpettas no domingo e o Ademir,

bom, o Ademir deu uma fungada entre

uma garfada e outra e fez as contas que

dali uns 20 anos ele poderia ser o

preferido se tudo fosse bem. Ficou pensando e lamentando o fato de nunca

ter descoberto o esconderi jo do

manjericão, aquele condimento que lhe

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013 abriria muitas portas e janelas e também a independência familiar e lembrou que o José

nunca falava e ninguém sabia que comida ele gostava e pediu em voz alta mesmo — já

que com toda aquela gritaria dificilmente alguém iria escutá-lo — o que ele faria agora

com o posto de preferido e o José respondeu depois de limpar a boca no guardanapo

bordado que a hierarquia lhe conferia que era para o Ademir se acalmar que logo tudo

se arranjaria pois que tinha visto onde a mama escondia o manjericão roxo.

EntrevistaGândavos - Os Contadores de HistóriasPor Helena Frenzel

Em junho, publicamos lá no Blog uma entrevista que fiz com Carlos A. Lopes,

coordenador do projeto Gândavos – Contadores de Histórias, buscando oferecer

uma visão geral do projeto e, o que é melhor: despertar o interesse e a vontade de

participar. Vamos à entrevista:

P - Converso aqui com Carlos A. Lopes, organizador do  Blog Gandavos -

Contadores de Histórias, um projeto que chamou minha atenção pela proposta de

incentivo à leitura e à escrita, bem como pelo efeito de contribuir para registrar a

memória popular de vários cantos do país. Diga lá, amigo Carlos, como surgiu o

Gândavos? 

R – Gândavos é um passado resgatado no presente, noutro formato. Cresci numa

cidadezinha, na região Moxotó de Pernambuco. Lá não existia banca de revistas, bibliotecas, ou sequer sinal de televisão e de entretenimento, só havia mesmo os bailes

no clube e o cinema do meu pai, do qual, com apenas doze anos de idade, eu já era

projecionista. Foi nesse ambiente simplório que um grupo de jovens criou um grupo de

teatro, cujo objetivo era adquirir cultura e oferecer diversão para aquela gente que só

sabia do mundo através das ondas de rádio. A origem do Grupo Teatral Os Gândavos se deu no final de 1974, a partir de uma apresentação de uma peça extraída de um

cordel. O nome do Grupo foi descoberto meramente por acaso. Em uma das suas

viagens psicodélicas pelas páginas do “pai dos burros”, dicionário cujas letras eram

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minúsculas, fez com que um dos membros do grupo lesse gândavos em vez de gandavos.  Prevaleceu a palavra gândavos, por sua eufonia em relação ao hino, que se cantava

antes do início das apresentações. Passados os arroubos da juventude, resgatamos

atualmente o mesmo nome para um ambiente de rede mundial, não só para agrupar

velhos amigos, mas também para compor um rol agradável com as pessoas de outras

regiões que gostam de nostalgia e de contar novas histórias.

Carlos A. Lopes e seus dois primeiros 'filhos': Gandavos - Os Contadores de Histórias e Gandavos - Contando Outras Histórias. Foto de acervo privado, aqui usada com permissão.

P - Quem faz parte?

R – Fazem parte do Blog Gândavos, autores das mais diversas regiões do país e também

alguns que residem fora do Brasil. A ideia era essa mesma, misturar culturas e formar

um grupo que interagisse sem necessariamente se conhecer fisicamente e evidentemente

agregar também aqueles que já se conhecem. E para formar esse grupo careceu de

apostar num trabalho lento e progressivo.  O Blog tem como foco os contos, no entanto

publico crônicas e até poesias, não tenho preconceito com gêneros. O começo não foi fácil, eu fazia de tudo para encontrar gente de talento e que pudesse contribuir na

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013 segunda e tapa do Pro je to – a s

publicações. Nessa primeira fase, temos

muitas histórias, afinal foi muito estranho

para alguns autores encontrar em suas

caixas de mensagens apelos por liberação

de textos, vindas de um nordestino de pouca prática na escrita. Fui salvo até

pela avó do escritor Gilberto Dantas, que

por ser nordestina, o autor se sensibilizou

e até hoje está conosco. Enfim, depois de

umas tantas adesões o trabalho foi merecedor de outro tratamento e ganhou

respeito em nível nacional. Hoje quando

convido alguém para participar, muitas

vezes escuto: ¨Rapaz, como você

conseguiu tanta gente de talento no seu Blog?¨  A resposta é sempre a mesma:

¨Respeito e confiança, só isso!¨  Enfim,

fazem parte do Blog Gândavos hoje,

autores famosos ou não, também pessoas

iniciando na vida literária, com textos confessionais ou reminiscências próprias,

bem comuns em início da carreira.

Sempre digo que a melhor maneira de

mostrar nossos trabalhos de início, é se

agrupando com quem já tem uma bagagem literária avantajada. Uma coisa

é certa, os autores com trabalhos já

consagrados que fazem parte do Blog

jamais demonstraram constrangimento

“Sempre digo que a melhor maneira de mostrar nossos trabalhos de início, é se agrupando com quem já tem uma bagagem literária avantajada. Uma coisa é certa, os autores com trabalhos já consagrados que fazem parte do Blog jamais demonstraram constrangimento em figurar junto aos iniciantes, o que é muito louvável da parte deles.”

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013 em figurar junto aos iniciantes, o que é

muito louvável da parte deles. Só tenho

que agradecer a toda essa gente bonita e

talentosa desse Brasil de meu Deus!

P - Esse projeto já gerou a impressão de

dois livros e sei que um terceiro volume está a caminho. Conte um pouco dessa

experiência de publicação independente.

Como tem sido a recepção?

R – Até sair do meu interior, Custódia,

ouvia dizer que empurrar bêbados

ladeira abaixo era a coisa mais fácil do mundo, é não! A coisa mais fácil do

mundo é publicar livros, desde que o

sujeito não fique correndo atrás de

edi tora que os promova, ou de

patrocinadores, basta se agrupar. Uso a seguinte premissa: Somos seres sociais! As

ferramentas estão aí, basta usá-las. Dizem

que a internet é perigosa, é nada! Os

carros não foram feitos para matar, no

entanto matam. Tudo na vida é uma questão de saber se posicionar.  Como

disse antes, o trabalho do Blog é moldado

dentro dos preceitos de respeito e

confiança. Quando envio a seguinte

mensagem aos autores: “Amigos, é chegada a hora de depositarem o

dinheiro correspondente a suas opções de

compra”, todos depositam o dinheiro

rapidamente. Excelente nosso grupo!

Nesse Projeto do terceiro livro tipo

coletânea, que a amiga citou, está por acontecer, a procura foi maior que o

espaço físico disponibilizado. Cinco

autores que costumam publicar seis

textos, gentilmente concordaram em

reduzir suas publicações no próximo volume, para que autores iniciantes

p u d e s s e m p a r t i c i p a r. H á mu i t a

compreensão nesse sentido. Temos bem

d e fi n i d o s t r ê s t i p o s d e a u t o re s

participantes dos livros. Uma grande parte adquire poucos exemplares e

distribui com familiares e amigos; outro

grupo pede mais livros e revendem, são

autores que geralmente já publicaram

livros antes. Por último, temos um grupo que vende uma parte da sua opção de

compra para cobrir as despesas e o

restante distribui com amigos e familiares.

E para alguém não dizer que estou a

dizer asneira quando digo que publicar é fácil, lhes digo: Publicamos dois livros em

poucos meses; evidente que a partir do

q u a r t o l i v r o , v a m o s p u b l i c a r

espaçadamente e considerar outras

possibilidades.

P - Dificuldades? Quais têm sido as

maiores?

R – Dificuldade para mim, são aqueles

obstáculos que não estão previstos num

empreendimento. Para se publicar um

livro há etapas a serem ultrapassadas, as

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013 quais não chamo propriamente de

dificuldades, pois elas estão em qualquer

lugar onde se publica livros. Porém, para

não dar a entender que tudo é lindo e

maravilhoso, citarei uma dificuldade que

me tira o sono: o envio dos livros aos autores quando os recebo da editora. A

única forma de enviar livro de forma

compensatória financeiramente para os

autores, são os chamados impressos, os

quais são relegados às piores condições de entrega ao destinatário. Isso para não

dizer que também tenho que afixar nos

pacotes: “Os Correios estão autorizados a abrir esta embalagem”. Quanto maior o volume,

maior é a demora, que se multiplica no

serviço de entrega.

P - Pelo que entendi, o Gândavos é uma

iniciativa que visa, sobretudo, a divulgação dos textos e autores, com o

propósito não de vender livros, mas de

fazer as histórias chegarem ao leitor.

Como você vê a possibilidade de

distribuição via E-Livro? Estaria disposto a ver também os volumes da Gândavos

nesse formato à disposição do leitor?

R -  Quando resolvi sair do meu interior,

minha mãe disse: ¨Meu filho, se você tem um emprego disponível aqui, porque ir para o Recife e ficar distante de nós?¨ Respondi: ¨Mamãe,

gosto do novo, do moderno¨. Acrescentei: ¨Se quero encomendar uma roupa, tenho que escolher os botões que a venda de Seu Domingos dispõe,

não os que queria utilizar no modelo¨. Enfim,

gosto do novo e amo meu passado! Não v ivo sem os do i s ! Respondendo

objetivamente a sua pergunta: sou a favor

de que num futuro próximo as nossas

publicações possam ser vinculadas noutro

formato, no caso o livro digital. Porém, entendo que neste momento o foco do

Blog Gândavos é fazer o processo inverso:

fazer publicações de livros físicos a partir

de textos ora hospedados nas páginas

virtuais em rede mundial.

“ (...) neste momento o foco do Blog

Gândavos é fazer o processo inverso:

fazer publicações de livros físicos a partir

de textos ora hospedados nas

páginas virtuais em rede mundial.”

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013 Muito obrigada, Carlos A. Lopes, por seu tempo e disposição em responder estas perguntinhas.

Helena Frenzel

Link: gandavos.blogspot.com

P.S.: não sou nem pretendo atuar como jornalista. O objetivo da entrevista foi conhecer

(e dar a conhecer) melhor o projeto e contribuir na divulgação. (Helena Frenzel).

Quem somos

HELENA FRENZEL é maranhense, autora e editora

de vários Ebooks, entre eles, as coletâneas de

contos Perfis Interessantes, Trinta Contos de Euros

e Três de Natal e Outros Quinze Contos. Mantém o

blog Bluemaedel onde concentra suas letripulias e o

projeto 15 Contos+, onde pretende reunir

anualmente contos de diversos novos autores

brasileiros.

MICHELE CALLIARI MARCHESE  é catarinense e

contista. Participou em coletâneas publicadas pela

Editora Literata de São Paulo nos Livros UFO-

Contos não Identificados (2009) e Espectra (2010) e

no Livro dos Prazeres publicado pelo SESC de Santa

Catarina em 2008. Mantém uma escrivaninha no site

Recanto das Letras onde publica contos e outros

gêneros.