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30 MAI – 7 JUN 2014

SEM UM TU NÃO PODE HAVER UM EU 30 MAI, SEX 21:30 | TNSJ

COMO É QUE EU VOU FAZER ISTO? BITS & PIECES

31 MAI, SÁB 21:30 | TNSJLANDING

5+6 JUN, QUI+SEX 21:30 | TeCAFICA NO SINGELO

6+7 JUN, SEX+SÁB 21:30 | TNSJBAILE

7 JUN, SÁB 23:00O TNSJ É MEMBRO DA

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A idade adulta da dança portuguesa

Em 2014 cumprem-se dezoito anos desde que o ciclo Dancem! se apresentou pela primeira vez no Teatro Nacional São João. Nesta sétima edição, simbolicamente a da maioridade, a programação dos quatro serões, inteiramente nacional, é um pequeno balanço do estado das artes da dança contemporânea portuguesa: três gerações de coreógrafos-intérpretes e cruzamentos artísticos inusitados definem marcos, linhas de continuidade ou curiosas inflexões na trajectória dos seis criadores envolvidos.

Olga Roriz (Viana do Castelo, 1955), a decana da dança contemporânea portuguesa, e Tânia Carvalho (Viana do Castelo, 1976), um dos nomes em ascensão no “pós-nova dança”, expõem, pela primeira vez, os seus universos artísticos ao corpo de Leonor Keil (Ponta Delgada, 1973), quando a carismática bailarina assinala (já) mais de vinte anos de carreira. Um encontro de fortes personalidades artísticas, improvável, talvez, há uns anos atrás. Da geração, hoje consagrada, dos que foram os pioneiros da “nova dança”, Paulo Ribeiro (Lisboa, 1959) regressa, ao fim de duas décadas, à autoria e interpretação de um solo, quiçá o mais arriscado e comovente trabalho do seu percurso. A coreógrafa Né Barros (Porto, 1963) dá-nos conta do último ponto de aterragem do seu itinerário: uma dança que tem ponto de ancoragem nas palavras-chave corpo e colectivo, movimento e nomadismo, memória e viagens, paisagem e lugar. Desassossegada e sempre surpreendente, Clara Andermatt (Lisboa, 1963) confronta-nos com a sua mais recente incursão num território coreográfico por desbravar: o da aproximação entre a dança contemporânea e a herança patrimonial do folclore português. São três solos e duas peças de grupo a levar-nos de viagem em torno de temas como a solidão, os balanços, a vida em comum e o desejo de pertença.

Subitamente, no Verão passadoEntre as leituras que sempre aguardam pelas férias de Verão, Paulo Ribeiro tinha consigo Lanterna Mágica (1987), a autobiografia de Ingmar Bergman (1918-2007). Ainda não imaginava, absorto que andava com o livro, o quanto as deambulações do cineasta sueco sobre as conexões entre a (sua) vida e os (seus) filmes iriam inspirar a coreografia que se estreou, em Novembro passado, em Viseu.

“Sem um tu não pode haver um eu” é a razão de ser, na arte e na vida. Como se as cogitações do cineasta dessem um corpo às inquietações do coreógrafo, a frase saltou do livro e deu o nome ao solo. A banda-sonora da peça inclui, como se prevê, excertos em off de Lanterna Mágica, intercalados com textos

LuíSA ROuBAuD*

* Crítica de dança

do jornal Público.

Professora na

Faculdade de

Motricidade Humana

da Universidade

Técnica de Lisboa.

Investigadora

do Instituto de

Etnomusicologia –

Centro de Estudos

de Música e Dança.

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do próprio Paulo Ribeiro. Os temas obsessivos de Bergman, transpondo para o ecrã a melhor tradição da dramaturgia nórdica, pairam sobre esta versão performativa e sensorial do universo bergmaniano: o incessante combate com Deus, as reflexões sobre arte, as turbulências amorosas.

Paulo Ribeiro adora cinema, e não foi a primeira vez que a sétima arte invadiu a sua dança. Quando, em 2011, a convite de Luísa Taveira, coreografou para a Companhia Nacional de Bailado Du Don de Soi, foi o inconfundível mundo de sombras e espectros do realizador russo Andrei Tarkovski, a sua espiritualidade espessa e perturbante, a catalisar as amplas vagas humanas da coreografia.

Mas, naquele Verão, a empolgante redescoberta de Bergman apanhava o coreógrafo em plena crise interior. Há esquinas que se nos deparam na jornada, e as emoções, à flor da pele, passam ao primeiro plano da vida. O solo prenunciava a única figura performativa ajustada ao debate íntimo.

E ei-lo de novo, aos cinquenta e cinco anos, sozinho em palco, mais de duas décadas volvidas desde os primeiros e únicos solos da sua carreira, Modo de Utilização (estreado na Bienal Universitária de Coimbra, em 1990, e apresentado na Europália 91, marcaria a sua confluência à nova dança portuguesa) e Rambo Ribeiro (1993, Ciclo Auto-Retratos, com a participação do seu cão, Maori), após uma premonitória aparição no prólogo de Jim (2012).

O seu movimento é, agora, mais denso e melancólico. Reencontramos, porém, aquele jeito espasmódico e convulsivo de pendor tragicómico, com que surpreendera o público, quando aterrou em Portugal, em finais de 80. Trazia para a dança uma personalidade motora, à época heterodoxa: uma fisicalidade exuberante, a que não era estranha a parte da adolescência passada no Brasil e a prática de artes marciais; e o “heureux hasard”, como gosta de dizer, que foi a descoberta tardia, embora afortunada, da dança contemporânea, quando decidiu trocar o Brasil pela aventura de percorrer o Atlântico em sentido inverso, de mochila às costas, e tentar uma vida nova entre a Bélgica e a França.

Por coincidência, uma extensa retrospectiva de Bergman chegou este ano a diversas salas do país; e o documentário Trespassing Bergman, de Jane Magnusson & Hynek Pallas, na última edição do IndieLisboa, deu-nos a conhecer a faceta mais íntima das atmosferas bergmanianas: a sua remota casa-refúgio em Faro, a ínfima ilha do Báltico, cenário de vários dos seus filmes e hoje casa-museu Ingmar Bergman; a serenidade de horizontes imensos de terra e água, braços de mar a recortar enseadas por entre rochedos calcários e matagais, prenhes de inquietantes presságios; o recato de austeras mansões trespassado por emoções densas e contidas, e pela omnipresença subtil do sonido dos engenhos de relógios antigos, a recordar-nos discretamente da inexorabilidade do tempo que passa.

Quem pôde (re)visitar estas ambiências melhor reconhecerá na peça apontamentos do pathos bergmaniano e entreverá, na silhueta do coreógrafo a assomar na cena de tons negro e sépia, envergando um sóbrio fato castanho, a icónica figura do circunspecto cineasta.

Ribeiro envolve, porém, a incomplacência de Bergman para com as personagens e os afectos humanos – tão paradoxalmente inundada de compaixão – numa tépida luz meridional. E consegue o inimaginável: colar para sempre à mais intemporal das canções de amor, “Insensatez” (fabulosa,

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a versão de Robert Wyatt), a imagem do seu corpo, de costas para nós, as mãos a percorrer o tronco num auto-aconchego, ou numa dança com um par ausente ou imaginário, e amaciar a severidade nórdica com uma bonomia nostálgica para com as inclemências do amor. E, numa derradeira piscadela de olho do coreógrafo ao realizador, fazer-nos acreditar numa câmara invisível a incidir sobre o seu vulto solitário em cena, deixando-o, no final, entregue à sua própria história.

A mais confessional e autobiográfica das obras de Ribeiro é desarmante na candura com que nos expõe um mapa afectivo e o desprotege do risco. Este é, sem dúvida, um solo da maturidade.

Mas se escutarmos o que o mobilizava para a dança há vinte anos atrás, percebemos as linhas de continuidade, onde se apagam, também, distâncias entre o que é individual e o que é do colectivo: “[Apenas um solo permite explorar livremente o que me é caro]: viver intensamente o momento que passa, respondendo de forma espontânea e intuitiva a estímulos imprevisíveis: eu parto de estados de alma que depois canalizo para um grande tema e é esse grande tema, profundamente ligado ao momento presente, àquilo que me estimula e preocupa naquela altura, que serve de motor para uma fisicalidade tão espontânea quanto possível. O tema vai sendo filtrado através de mim à medida que vou vivendo e sentindo o corpo, no caso dos solos, ou é filtrado através das pessoas que estão à minha frente, da maneira como vivem, e o destilam […], sujeito aos compromissos que entretanto criamos juntos. No fundo, cada obra é um jogo, um jogo de vidas e de emoções, muito presente” (Assis, 1995).1

Um terceiro corpoOs solos que Olga Roriz e Tânia Carvalho criaram com Leonor Kiel partiram de outros procedimentos: Como é que eu vou fazer isto? e Bits & Pieces são como um “terceiro corpo” nascido entre o das coreógrafas e o da intérprete.

As duas décadas que separam os inícios artísticos de Roriz e de Carvalho correspondem às que medeiam a primeira e a terceira vagas da dança contemporânea portuguesa. Após a formação em dança académica no Teatro Nacional de São Carlos e no Conservatório Nacional, Roriz encetou, nos anos 70, a carreira de bailarina, e depois coreógrafa, no Ballet Gulbenkian. Nesses anos, e a anteceder a fundação da sua companhia de autor (Companhia Olga Roriz, 1995), já a teatralidade da sua dança era pioneira a agitar as águas das artes coreográficas nacionais. Como é apanágio da geração “pós-nova dança”, o roteiro de Carvalho nas artes performativas foi independente e ecléctico. Antes de co-fundar o colectivo independente Bomba Suicida, em 2000, a sua formação passou, nos anos 90, pela Escola Superior de Dança, o Forum Dança e o Curso de Coreografia da Gulbenkian.

Keil convergiu cedo com a dança independente, nos anos 90, e cedo se tornou uma das mais singulares intérpretes da sua geração. Cintila nas peças de grupo, mas resplandece em trabalhos a solo: em Orock (Paulo Ribeiro, 1997), Solitary Virgin (Javier De Frutos, 2002) ou Noite de Reis (John Mowat, 2006), revela-se um autêntico animal de palco e descrevê-la como “versátil”, “magnética” ou “tecnicamente inteligente” parecerá sempre redutor.

A Roriz e Carvalho afigurava-se fascinante trabalhar com tão fabulosa

1 Assis, Maria (1995).

Movimentos. Edições

Danças na Cidade.

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intérprete. Por seu turno, Keil refere devotar às coreógrafas respeito e admiração desmedidos. Estes encontros suscitavam altas expectativas.

Sobre Bits & Pieces confidenciava-nos Roriz, bem-humorada, dar por si a pensar que “a nossa dupla era um susto”. Este solo é como um puzzle feito de “troços e peças” de histórias pessoais, ou, talvez melhor, a história da travessia de Roriz e Keil no encalço dos respectivos territórios e particularidades. Quatro semanas intensíssimas mas interpoladas foi, entre múltiplas ocupações e compromissos, a agenda de trabalho possível a ambas.

Durante esse período, Roriz transferia o espaço de trabalho da Baixa de Lisboa para o novo, no Palácio Pancas Palha (de Tancos), na zona de Santa Apolónia, e circulava entre a sua versão a solo de Sagração da Primavera (Culturgest, 2013) e a preparação de Orfeu & Eurídice para a Companhia Nacional de Bailado, com estreia quase simultânea a Bits & Pieces. Ao rebuscar a memória, a coreógrafa dá-se conta de que não criava um solo para outro intérprete2 desde quando, na década áurea do Ballet Gulbenkian, trabalhou com Ger Thomas em Espaço Vazio (1986) e com a maravilhosa Graça Barroso (1950-2013) em Casta Diva (1986). Mas, diz-nos, a distância era agora abissal: “O formato e a duração da peça estavam pré-definidos e, nas situações anteriores, eu conhecia bem aqueles bailarinos, tal como conheço como as minhas mãos os bailarinos da minha companhia; e a Leonor, por quem tenho um enorme respeito artístico, era para mim uma total novidade”.

As autoscopias teatrais de Roriz em torno das emoções e do feminino, revela Keil, “são universos dos quais eu tendo a não me aproximar como intérprete”. A relação de ambas com o humor é também distinta: o de Keil assume contornos histriónicos e o de Roriz, trágico. Por isso, na ocasião das decisões drásticas, não terá sido fácil decidirem-se entre os respectivos estilos emocionais e “respirações performativas”. Mas dispunham de trunfos: o profissionalismo e a cumplicidade, que foi rápida. No esforço de desbravar domínios em comum, afloraram as pontas dos dedos e quase deram as mãos. E ficou no horizonte uma certeza: um dia voltarão a trabalhar uma com a outra.

Como é que eu vou fazer isto?, o título escolhido por Tânia Carvalho para o solo, desvela ao espectador os embaraços do acto criativo, a ansiedade da “tela em branco”. Porém, ao invés de Roriz, Carvalho tinha muito claro o que queria da peça: uma reflexão sobre a condição do intérprete, ancorando-a na figura de Keil. Entre o que se é, o que se sente, e o que se parece ser no palco, o recolhimento dos bastidores, as inquietações e a fatuidade da ribalta, a personagem que a intérprete constrói é alter-egóica.

Seguindo rotas opostas, recorda Keil, “uma e outra conduziram-me à mesma interrogação: o que é ser intérprete, estar em palco? Como resolver a contradição entre convocar a minha intimidade e, simultaneamente, expor-me em contexto de espectáculo?” Retorquir à questão implicou, decerto, fazer o balancete de vinte anos de carreira. Mas uma resposta possível é formulada através de uma soberba metáfora, no instante final de Como é que eu vou fazer isto?: um salto projecta-a para fora do cilindro de luz que recorta o palco, e o corpo desaparece na escuridão da cena, como que sugado no espaço sideral.

2 Assinalamos ainda

o solo para Ana

Lacerda, com música

de Bernardo Sassetti,

integrado, porém, na

obra colectiva Uma

coisa em forma de

assim (Companhia

Nacional de Bailado,

2011).

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Genealogias do Norte O fluir incessante entre as dimensões do colectivo e do individual é central em Landing, de Né Barros, coreógrafa que afirma não ter experimentado verdadeiramente a urgência de criar um solo. É provável, contudo, que a vejamos numa incursão iniciática no género, em Untraceable Patterns, trabalho apresentado em Berlim, em 2011 (com o músico Gustavo Costa), no próximo Outono, no ciclo Rivoli Já Dança.

Landing é um enunciado abstracto sobre os comportamentos dos indivíduos, em grupo e em multidão. Onze bailarinos em cena são figuras apátridas de passagem por não-lugares. Agem ou reagem, observam ou são observados, cruzando uma paleta de climas emocionais que, ao longo do processo de criação, enveredou por representações de confronto, violência ou beligerância. Esta atmosfera traria para dentro da peça os poemas A War Song to Englishmen e A Divine Image, de William Blake (1757-1827). Da introdução de excertos destes versos em motores de busca na Internet, a cenógrafa Gabriela Vaz-Pinheiro seleccionou as quinhentas imagens que, projectadas no ciclorama ao fundo do palco, constroem conexões (aparentemente) aleatórias com o movimento.

A peça situa-se na continuidade de Vooum (1999), No Fly Zone (2000) e das mais recentes A Praça (2010) – relevante, nestas obras, o contributo plástico de Daniel Blaufuks – e Estrangeiros (2012), desenhando a linha de pesquisa a partir da qual Né Barros formulou o conceito de movimentante, um neologismo com expressão teórica e prática, já que problematiza as questões da representação do corpo na dança actual.

A atribuir uma filiação estética à abordagem de Barros, esta poderia ser a do “movimento puro” norte-americano. Para a geração que chegou à dança contemporânea no Portugal dos anos 80, ao contrário de hoje, prosseguir esse caminho implicava sair do país. Assim, após a formação em dança clássica na escola Parnaso, no Porto, e depois de frequentar a Faculdade de Ciências do Porto, segue para os EUA (1985-86), onde se familiariza com a dança americana e estuda composição coreográfica. De regresso à Invicta, concluído o Curso Superior de Teatro (ESAP, 1990), volta ao estrangeiro, para obter o grau de mestre no Laban Centre for Movement and Dance de Londres (1992) e, mais tarde, um doutoramento em dança (Faculdade de Motricidade Humana, 2004). A década de 80 foi também, para Né Barros, a da co-fundação do Balleteatro, que se tornaria referência da dança portuguesa contemporânea feita a Norte.

O roteiro da coreógrafa, na confluência do desabrochar das artes performativas daquele período, integra o ramo portuense da nova dança portuguesa – reiterando ser este um movimento cuja homogeneidade foi mais sociológica do que estética, composto de respostas individuais, informais e espontâneas, às circunstâncias de um país deficitário em matéria de interlocuções artísticas, sedento, todavia, de abertura e de mudança.

A dança portuguesa a olhar para si própriaAo contrário do colectivo, abstracto e sem pátria, de que nos fala Landing, a comunidade de corpos que vemos em Fica no Singelo, de Clara Andermatt, enraíza categoricamente num telúrico sentimento de pertença: a cultura expressiva popular portuguesa.

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O modo como Andermatt defronta, com o arrojo que lhe conhecemos, música, instrumentação e dança tradicionais (como a chamarrita, a gota, o fandango, o corridinho ou a muinheira), e as traslada do contexto social original – o terreiro – para um espaço de representação teatral, está nos antípodas da cristalização museológica. As tradições são elas próprias entidades dinâmicas. A peça arrisca desconstruir e reelaborar a herança performativa, mantendo-a reconhecível.

Este voo livre sobre a cultura patrimonial, nutrido na energia fulgurante dos jovens intérpretes, é a surpreendente alegoria de uma portugalidade contemporânea.

Este acercamento, radioso e orgânico, entre a dança contemporânea e a cultura popular constitui um momento ímpar – que tardava – na história das artes performativas portuguesas; uma demora cujo alcance radica nos labirínticos processos identitários nacionais.

Agente e resultado da abertura ao mundo trazida pelas aragens de Abril, a contemporaneidade da nossa dança tem sido um barómetro, imagético e não-verbal, de um imaginário nacional em transformação: para acertar o passo com o tempo novo, precisou de dirigir o olhar para fora, para Norte e Ocidente, os Estados Unidos e a Europa. Ao contrário da música, que cedo se entrosou aos enfáticos anos pós-revolucionários, assimilando e miscigenando múltiplos referentes, nessa maré não couberam as danças do folclore (tal como, inicialmente, o fado), ostracizadas que foram pela sua conotação aos “ranchos” institucionalizados pelo antigo regime a partir dos anos 30. A regulamentação, operacionalizada pelo Secretariado de Propaganda Nacional/Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SPN/SNI) e pela Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), visava definir o “verdadeiro folclore”, e representar a “ideia de nação” do Estado Novo – a de um “país enquanto eterna aldeia”.

Contudo, enquanto Portugal se aperaltava para a Europa, e apesar de arredados dos grandes eventos comemorativistas e da “alta cultura”, os ranchos proliferaram no pós-25 de Abril, em redes informais e na diáspora, numa espécie de circuito alternativo de coesão identitária e social (Holton, 2005).3

A relação complexada com o folclore, um cisma peculiar na sociedade portuguesa, encontra, ainda, outro fundamento de peso: os Bailados Portugueses Verde Gaio, a primeira companhia de dança profissional portuguesa, fundada em 1940 no rescaldo da euforia nacional-historicista da Exposição do Mundo Português, foram a única iniciativa “consistente” de teatralização das danças do folclore português – ensejo peregrino, o de combinar o ruralismo salazarista ao que restava do devaneio modernista de António Ferro, o ideólogo do SPN/SNI, de inventar uns tardios “bailados russos portugueses”.

A dissociação entre a dança contemporânea e a património coreográfico popular conterá, pois, um elemento traumático. O espaço deixado vazio foi timidamente aflorado por Olga Roriz (Terras do Norte, 1985), Rui Lopes Graça (Cantoluso, 1997), mais recentemente por Filipa Francisco (A Viagem, 2011), e apenas muito ao de leve tangenciado pela “nova dança portuguesa”. O sucesso de Fica no Singelo junto de um público entusiástico indicia aqui existirem mecanismos colectivos a reclamar outras reflexões.

3 Holton, Kimberly

da Costa (2005).

Performing Folklore:

Ranchos folclóricos

from Lisbon to

Newark. Indiana

University Press.

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Não é de espantar ver Clara Andermatt a percorrer este caminho. A comunidade, o teatro, o envelhecimento, a deficiência, o urbano ou a cultura popular exemplificam a diversidade de temas e géneros performativos que tem abarcado. De Dançar Cabo Verde4 (1994) a Dan Dau (1999), ciclo decorrido entre o Mindelo e Lisboa, e, mais recentemente, as vivências da emigração africana em Portugal (VOID, 2009), integram outra das suas assinaláveis incursões no domínio, também significativamente pouco frequentado, das questões do pós-colonial.

O projecto de trabalhar com as danças tradicionais germinou, em Andermatt, na audição dos míticos LP em vinil (os de capa de sarapilheira!) com as recolhas etnomusicológicas de Michel Giacometti (1929-1990) dos anos 60-70, e com os seus célebres documentários para a RTP (O Povo que Canta, 1970-74); fora ensaiado em Reviravolta (2009, com o Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra) e Vira como a Vida (2012, com o Grupo Folclórico da Casa do Povo de Serzedelo). Floresceu, finalmente, nesta parceria criativa com a Associação PédeXumbo, que – enquadrando conceptualmente o fenómeno sociológico que é, desde 1996, no interior do país, o Festival Andanças, e a febre internacional pelas “danças do mundo” – tem sustentado a projecção do património da cultura expressiva popular nas práticas da contemporaneidade. No final de Fica no Singelo, a PédeXumbo animará um habitualmente concorrido baile, inspirado em temas dançados na peça.

Muitas léguas separam o país que dança em Fica no Singelo daquele que víamos folcloricamente aprumado nas fastidiosas tardes de domingo na TV a preto-e-branco, no ocaso do regime, no programa Danças e Cantares, sob a locução aristocrática do poeta Pedro Homem de Mello; mas não será, também, o país da série televisiva Povo que Canta (tão comoventemente desafinado!), nas puristas recolhas etnográficas que procuravam, no dealbar dos anos 70, antevendo um tempo novo, um desígnio militante na sociologia cinematográfica de Giacometti e Alfredo Tropa.

Fica no Singelo consubstancia um dos momentos mais felizes da dança portuguesa. Uma dança capaz de se subtrair às sombras fantasmáticas e de arriscar a trajectória minada que é a de teatralizar práticas expressivas que pertencem ao quotidiano e à tradição popular. E fá-lo, em estado de júbilo, num imenso exercício de liberdade. Como se, fracassado o império e defraudado o sonho europeu, esta dança nos mostrasse um Portugal apto a olhar outra vez para si próprio.

Maturidades contemporâneasCom Paulo Ribeiro, divisamos no vácuo deixado pela ausência do outro, afinal, uma emoção conjugável no colectivo; com Roriz, Carvalho e Keil, percebemos que um balanço autobiográfico se torna um enunciado sobre dinâmicas interpessoais, quando diferentes parcerias espoletam distintas tonalidades de nós mesmos; com Barros e Andermatt, discernimos a subjectividade do coreógrafo no modo como orquestra, selecciona e incorpora os contributos da sua comunidade de intérpretes. A dimensão introspectiva da dança a solo e os processos sociais implícitos às coreografias de grupo são, afinal, graus e modos diversos de procurar vínculos entre o individual e o colectivo. Entendemos ainda que, em qualquer caso, o acto coreográfico está repleto de alusões ao mundo exterior à própria dança.

4 Coreografia em

co-autoria com Paulo

Ribeiro.

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Claire Rousier5 recorda-nos que a dança a solo – género performativo que emerge da cena da dança moderna euro-americana no despontar do século XX, enquanto espaço privilegiado de produção de depoimentos do sujeito sobre o mundo – foi um reflexo da valorização da individualidade naquele contexto social. A sua proliferação nos dias de hoje reflectirá, porventura, a atomização dos indivíduos nas sociedades contemporâneas, e, consequentemente, o desejo de a colmatar. A dança a solo ecoa o pulsar colectivo.

Invocar motivos práticos e as contingências da crise económica não aclararam, por si só, a proliferação da performance a solo na dança actual. Todos os autores presentes nesta mostra a (re)visitam, amiúde ou ciclicamente. Se recensearmos apenas os mais recentes, este é o caso de Tânia Carvalho (Síncopa, 2013), Olga Roriz (Electra, 2010; Sagração da Primavera, 2013) e Clara Andermatt (So Solo, 2009). Tal como em Paulo Ribeiro, e a avaliar pelo estádio avançado do caminho a que a ela chegam ou regressam os criadores, a dança a solo, além de traduzir ciclos de expansão ou recolhimento, utopia ou cepticismo, será, também, uma figura da maturidade.

A sétima edição do Dancem! traz-nos uma mini radiografia do estado actual da dança portuguesa. No rescaldo de duas décadas de acérrimo questionamento, terão chegado tempos de apaziguamento e recobro. É da natureza das vanguardas serem temporárias, e os que foram os pioneiros da dança contemporânea portuguesa são hoje agentes institucionais. Mas, perante peças como as de Paulo Ribeiro e Clara Andermatt, vislumbramos manter-se, embora noutros termos, a centelha temerária.

Um esquisso da distribuição geográfica das produções apresentadas e seus locais de estreia mostrar-nos-ia a predominância das suas conexões a Norte: Lisboa deixou de ser o epicentro absoluto da dança no país.

Ao colocar em pacífica colaboração várias gerações de coreógrafos e intérpretes, apercebemo-nos de que no ano da “maioridade” do Dancem! – apesar da conjuntura difícil, ou com ela – a dança portuguesa dá mostras de ter entrado, de forma salutar, na idade adulta. A peça colectiva Uma coisa em forma de assim, evento ímpar estreado no Teatro Camões, no Dia Mundial da Dança de 2011, já o parecia prenunciar.

Esta abertura tolerante e tranquila derivará da bonomia céptica que traz, também, a maturidade, pensarão alguns. Outros nela verão o sinal de que, contra ventos e marés, há um sistema vivo e em movimento e uma expressão da democracia. E assim sendo, quando se comemoram os quarenta anos da Revolução dos Cravos ter-se-ão cumprido, pelo menos, alguns dos ideais de Abril.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

5 Rousier, Claire,

dir. (2002). La danse

en solo: une figure

singulière de la

modernité. Éditions

Centre National de

la Danse.

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música Robert Wyatt (“Insensatez”, Cuckooland), Franz Koglmann (“Third Movement, Distinctions: IX”, O Moon My Pin-Up), J.S. Bach (“Suite para Violoncelo n.º 5 em Dó Menor”, BWV 1011/Pablo Casals), Magnus Lindberg (“Clarinet Quintet” e “Related Rocks”, Ictus)figurino José António Tenente desenho de luz Nuno Meira

montagem e operação de luz Cristóvão Cunhaprodução e operação de som Rafael Fernandes

coprodução Companhia Paulo Ribeiro Centro Cultural de Belém Centro Cultural Vila Flor TNSJ

agradecimentos António Ribeiro de Carvalho João Luís Oliva Maria José Arêde e Henrique Tomás amigos preciosos de todas as ocasiões

estreia 23Nov2013 Teatro Viriato (Viseu)dur. aprox. 50’M/12 anos

COREOgRAfIA E INTERPRETAçãOPaulo RibeiRo

SEM UM TU NÃO PODE HAVER UM EU

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Partiu para esta criação fascinado com a força das palavras e com a humanidade profunda do universo de Ingmar Bergman, mas deixou-se absorver pela teia do realizador e acaba por se apresentar em estado puro, recorrendo à sua própria experiência pessoal para tocar o coletivo. Paulo Ribeiro voltou à essência do movimento “nervoso” e puro que o caracteriza, para se revelar um coração em carne viva, conciliando o que era urgente dizer e o tema da peça que é, justamente, ser fiel ao universo da obra do cineasta sueco. A poucos dias da estreia de Sem um tu não pode haver um eu no Teatro Viriato, em Viseu, Paulo Ribeiro fala do seu olhar sobre a obra de Ingmar Bergman e sobre o frenesim interior que o solo espoletou.

LILIANA GARCIA O que é que na obra de Ingmar Bergman acabou por ser pretexto para o Paulo Ribeiro falar das suas próprias emoções?PAULO RIBEIRO O que mais me impressionava na obra de Ingmar Bergman era a presença de uma humanidade profunda e a força das palavras... A maioria das palavras que as personagens de Bergman utilizam são palavras cheias, são diálogos que devemos ouvir várias vezes, dada a sua enorme riqueza. Fascinava-me a sinceridade das relações humanas, sempre presente nas suas criações, assim como a flutuação de humores. Mas este meu olhar poético e cheio de significado sobre o universo de Bergman mudou. [risos] Afinal, parece-me que, na sua obra, vivemos sempre num espaço sem saída.

E o Paulo quis fazer um solo.Pois... quer dizer, quando se faz um solo nunca se está só. Mesmo num solo abstrato, de movimento puro, o intérprete nunca está sozinho... dança com o espaço, com a atmosfera que o rodeia. Em Sem um tu não pode haver um eu, estou constantemente acompanhado. Esta peça, no fundo, é um dueto, só que o outro não se vê. E, por outro lado, se observarmos bem os filmes de Ingmar Bergman, o que vemos não são solos, mas duetos. Mesmo que haja uma multidão, as cenas são sempre feitas por duetos que se vão mantendo e que depois vão arrastando outros. Tragicamente, na obra de Bergman, as relações acabam sempre por estar num patamar de “não saída”.

Ricardo Pais disse sobre si o seguinte: “Quando o vemos a dançar o que ele próprio cria, percebemos que o ideário dele vem da sua experiência pessoal, das lutas”. O que há de pessoal e de luta neste solo?Criar e ir para o palco é uma luta. Estar em luta faz parte da natureza humana. Neste caso, as lutas são interiores, bem ao jeito de Bergman. Aliás, em Sem um tu não pode haver um eu, a minha vida cruza-se com o universo de Bergman. Há, neste solo, algo de completamente autobiográfico. À semelhança de Ingmar – que no espaço das suas obras equacionava e questionava a sua própria vida, plasmando nos seus filmes até a relação tumultuosa e atormentada que manteve com as várias mulheres da sua vida –, eu recorro à minha vivência pessoal para tocar o coletivo, acabo por refletir sobre as inquietações existenciais comuns a todo o ser humano: a responsabilidade de nos ultrapassarmos a nós mesmos, de nos tornarmos mais capazes, de nos surpreendermos, de irmos mais longe

Paulo Ribeiro em estado puroEntrevista com PAULO RIBEIRO. Por LILIANA GARCIA.

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e, ao mesmo tempo, convivermos com a nossa fragilidade. Este solo é uma luta enorme entre uma força interior e uma fragilidade exterior, ou também interior. É um confronto entre a força interior e aquilo que a vida nos impõe e que nos ultrapassa. Desta peça emerge o sentimento de que somos manipulados por algo que não controlamos e de que não conseguimos ser donos da nossa vida, da nossa vontade, das nossas expectativas e dos nossos projetos, porque há sempre algo mais forte que nos surpreende. A última coisa que digo, que é de Bergman, e que tem uma certa piada, é: “Talvez os meus sonhos fossem um pouco belos demais e como punição a vida castiga-nos quando menos esperamos. Quando atinges o teu orgasmo, o teu nariz está tão metido na merda que quase sufocas”. Diz tudo, no fundo.

De facto, o solo inclui excertos da autobiografia de Bergman [Lanterna Mágica], mas também um texto escrito por si, uma espécie de apresentação do espetáculo.Gosto imenso de dar aos espectadores indicações de como as coreografias se resolvem e qual a direção que tomam. O primeiro solo que fiz, em 1991, chamava-se Modo de Utilização e, nele, intercalava o movimento com momentos em que explicava ao público porque tinha dançado daquele modo e o que queria dizer o que tinha acabado de fazer. Depois, voltava a dançar e pedia ao público para interpretar o que tinha feito. O primeiro texto de Sem um tu não pode haver um eu é uma espécie de “mestre-de-cerimónias”, que tem como função “receber” os espectadores e orientá-los para o que vai acontecer. Os outros textos, excertos retirados da autobiografia de Bergman, são deliberadamente sobre relações conjugais – tema, aliás, recorrente na obra deste cineasta.

O Paulo definiu Modo de Utilização como “um solo patusco”. Como define este seu novo solo?Ainda o sinto à flor da pele para o conseguir definir. Mas de patusco não tem nada. É antes um solo em carne viva, onde não me preservo, não me poupo; onde me exponho completamente. Chamei “patusco” ao Modo de Utilização porque

era uma brincadeira. Brincava com a questão de haver pessoas que dizem que não gostam de dança por acharem que não percebem nada desta expressão artística. No entanto, a dança não tem que se perceber; a dança sente-se. É tão simples quanto isso. E é engraçado porque, no outro dia, convidei uma amiga para assistir ao ensaio e ela dizia-me: “Ai, mas eu não percebo nada de dança e estás a convidar-me para assistir ao ensaio, não vai ser de utilidade nenhuma porque não entendo esses códigos da dança”. E, no final do solo, ela tinha percebido tudo e viu que não havia códigos escondidos. Esta peça fala por si e dá-me um gozo especial por ter conseguido conciliar aquilo que eu queria dizer, aquilo que era para mim urgente dizer, e o tema desta peça, que é justamente ser fiel ao universo da obra de Ingmar Bergman.

O primeiro tema musical do solo, “Insensatez”, interpretado por Robert Wyatt, cola-se à peça. Não se consegue depois ouvir aquela música e desligá-la deste espetáculo. Acaba por dar um cunho melancólico à coreografia. Foi uma escolha óbvia?A minha escrita coreográfica é determinada pelo meu estado de alma e por aquilo que quero dizer. Mexo-me em função dessas condições. Nesta peça, fui usando músicas diferentes, fui construindo e afinando o movimento que já tinha delineado. Este processo de construção pretende levar mais longe o que nos move por dentro: não reproduzir o movimento, mas habitar o movimento. Mas, de facto, “Insensatez” foi logo uma das primeiras músicas que fui buscar e que utilizei para trabalhar. Quando eu acabava o ensaio e ia tomar banho, ou então enquanto aquecia antes do ensaio, deixava passar as várias versões do “Insensatez” e esta do Robert Wyatt impôs-se completamente. Não sei o que é que tem... mas, de resto, as outras músicas também acabaram por se impor a si próprias.

É curioso ter usado há pouco a expressão “à flor da pele”, porque imagino que todo este processo de criação e o regresso ao palco,

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depois de algum tempo sem dançar, tenham sido muito exigentes e que a entrega tenha sido enorme.Quando comecei esta criação sentia-me entorpecido e pesado, por dentro e por fora. E senti uma espécie de quase vazio de movimento. Mas tudo se foi diluindo, à medida que fui para o estúdio e me obriguei a mexer e a assumir este processo solitário. Este é um trabalho singular porque nunca vivi um processo de criação tão solitário quanto este. Nunca estive sozinho num estúdio, apenas com uma câmara a gravar tudo o que compunha, para mais tarde ver na televisão e corrigir o que não estava tão bem. Para a maioria dos bailarinos, é muito complicado ver-se, olhar para si próprio. Mas quis obrigar-me a esse processo. Foi importante passar por esta solidão. Curiosamente, este projeto esteve para ser um dueto. A Beatriz Batarda desafiou-me a criar um solo para ela. Depois, sugeriu um dueto e, pouco tempo depois, já queríamos fazer um trio, com o Gonçalo M. Tavares a escrever. Entretanto, quando saíram os resultados dos apoios da Direção-Geral das Artes, percebi que não havia dinheiro para desenvolver um projeto desta envergadura. Acabei por o assumir sozinho e trabalhar o universo de Bergman. O desafio que a Luísa Taveira me lançou, em 2011, de criar para a Companhia Nacional de Bailado a partir de Tarkovski, mexeu muito comigo. Gostei imenso até porque o cinema é, para mim, muito inspirador. Foi interessante todo o trabalho de pesquisa e de passagem dessa investigação sobre Tarkovski para um coletivo de trinta e seis bailarinos. Neste solo, fui na mesma direção: agarrar no cinema.

Na peça, vemos um coração em carne viva, que oscila entre a subtileza dos gestos e os movimentos mais inquietos e agitados. Esta peça é uma súmula das coreografias do Paulo Ribeiro ao longo dos anos?Esta peça sou eu em estado puro. Para quem me conhece, este solo poderá trazer algo de novo por causa da narrativa, mas, no que diz respeito ao léxico do movimento, sou eu levado ao extremo. E, dentro da minha particularidade,

estou completamente solto. Quis entrar no meu movimento o mais possível. Acaba por ser um trabalho de uma autenticidade enorme, é uma espécie de frenesim interior.

No final, a felicidade chega a espreitar?Aquilo que quis dizer na peça pode ter vários significados. Mas é inequívoco que a felicidade é a esperança da vida, é aquilo que nos resta e que nos mantém vivos. A felicidade não é um desejo sequer; a felicidade é a respiração. Tem que haver felicidade na vida, senão não há saída.

Pensa voltar a dançar depois desta experiência? Depois deste solo, ficou aí uma inquietação maior de voltar ao palco?Não sei. Agora há que fazer e resolver este espetáculo. E, na verdade, gostava de fazer este solo muitas vezes. Acho que é uma peça que merece circular e ser vista por muitos.

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desenho de luz Olga Rorizseleção musical Olga Roriz, João Raposomúsica René Aubry, End, Monkey Mafia, Henry Torgue & Serge Houppin, Daniel Bacalov, C.W. Gluckpós-produção áudio João Raposo

montagem e operação de luz Cristóvão Cunhaprodução e operação de som Rafael Fernandes

coprodução Companhia Paulo Ribeiro Centro Cultural de Belém Centro Cultural Vila Flor TNSJ residência artística Companhia Olga Roriz

agradecimentos Paulo Reis

estreia 29Mar2014 Centro Cultural de Belém (Lisboa)dur. aprox. 30’M/12 anos

figurinos e desenho de luz Tânia Carvalho música W.A. Mozart (1.º andamento da “Sonata para Piano em Dó Maior”, K. 545/uri Caine Ensemble), J.S. Bach (Prelúdio coral “Wer nur den lieben gott lässt walten”, BWV 691/Tânia Carvalho)

coprodução Companhia Paulo Ribeiro Centro Cultural de Belém Centro Cultural Vila Flor TNSJparceria Teatro Viriatoresidência artística Centro Cultural Vila Flor

estreia 16Nov2013 Teatro Viriato (Viseu)dur. aprox. 20’M/12 anos

COREOgRAfIAolga RoRizINTERPRETAçãOleonoR Keil

COREOgRAfIATânia CaRvalhoINTERPRETAçãOleonoR Keil

COMO É QUE EU VOU FAZER ISTO?

BITS & PIECES

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Vinte anos de uma carreira sem sair muito do lugar! Neste ponto em que me encontro, penso no tempo em que ando nesta vida de saltimbanco, de criador em criador, de palco em palco, de país em país, de público em público. O tempo voa e não consigo sentir que tenham passado vinte anos.

Sempre admirei quem festeja longas datas e perguntava-me se algum dia eu iria sentir necessidade do mesmo. E sim, esse desejo surgiu-me, mas olhando para trás penso que tantos anos não são assim tantos, parecem poucos, sinto-me cansada, mas cansada de não andar mais, quero mais!

O desafio é trabalhar com quem muito admiro, mas cujo encontro ainda não se proporcionou. Quero mais vinte e, depois, vou querer plantar flores.

“Quero mais vinte”LEONOR KEIL

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A dança da Leonor inquieta-me. Inquieta-me positivamente. Inquieta-me... e não consigo tirar os olhos dela. Parece-me que tem lá dentro um grito muito alto, muito grande. Um grito que é capaz de nos varrer a todos e nos pôr fora do teatro. Voados... num instante. Há qualquer coisa que habita o corpo da Leonor e que é maior que ela, e, por isso, esse grito, enorme, gigante, está sempre prestes a sair... mas nunca sai.

Não que isto seja a “verdade” da Leonor, mas a minha “verdade” ao vê-la. Quero trabalhar com a Leonor a partir desta ideia de inquietação, de vontade de gritar, mas não gritar. De algo de dentro muito grande que, em vez de sair de uma vez, vai saindo devagar, e de várias formas. Até que...

“A escrita da história é claramente uma construção: nós ligamos pedaços do que nos chega às mãos através dos séculos, de forma a criar um quadro convincente do passado.”

A convite da Companhia Paulo Ribeiro, assim surge este inesperado reencontro de duas mulheres separadas há décadas pelo fio que as une, a dança.

Leonor mergulha nas suas memórias enquanto eu traço o percurso da sua viagem. Armadilhadas de tudo o que vivemos e despidas do saber uma da outra, vamos por fim acertar o passo por instantes. E, quiçá, descobrir que nunca nos separámos.

“Até que…”

“Acertar o passo por instantes”

TâNIA CARVALhO

OLgA RORIz

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1. Ponto de vista/ponto de fuga biográfico (Sem um tu não pode haver um eu, de Paulo Ribeiro)(Bits & Pieces, de Olga Roriz)(Como é que eu vou fazer isto?, de Tânia Carvalho)

A 3 de maio de 1994, Trisha Brown estreava no Joyce Theater de Nova Iorque o solo If you couldn’t see me, com música e desenho de figurino de Robert Rauschenberg. A coreógrafa norte-americana dançava toda a peça virada de costas para o público, centrando no trabalho do torso e dos membros superiores e inferiores a multitude de movimentos que sugeririam no final, e em última análise, que só a ausência de visibilidade da cara comprometia o vício humano de leitura das expressões, à qual se confia ingenuamente a leitura do todo do outro. Além da valorização de outras partes do corpo que sustentam em permanência o jogo do movimento, Brown fazia uma surpreendente proposta de alteração do ponto de vista, o que deve ser de grande evidência para quem dança, mas não para quem vê dança. Se bem me lembro, quando o solo foi pouco mais tarde apresentado em Lisboa, fiquei presa na sua construção frásica e na espantosa ocupação do espaço que aquele corpo fazia. Porém, e ao mesmo tempo, fiquei obcecada em saber se o jogo seria levado até ao fim ao nunca mostrar a cara da intérprete, perguntando-me como resolveria ela no final os agradecimentos. Virar-se-ia Trisha Brown para o público?

Este era o tempo em que dificilmente se escrevia sobre dança contemporânea sem se ser, pelo menos, obrigado a pensar no corpo do património coreográfico que se formava dos dois lados do Atlântico. A expressão “corpo do património coreográfico” faz mais sentido hoje, vinte anos passados sobre essa espécie de permanente diálogo que necessariamente se estabelecia entre “duas” formulações de uma mesma pulsão criativa, a norte-americana e a europeia. Principalmente tendo em conta que muitos europeus tinham passado pedaços de tempo das suas formações nos Estados Unidos e traziam para a Europa formalizações inspiradas (chamemos-lhes assim), nas quais aplicavam todas as nuances da “História” do seu continente de origem. Estou tanto a referir-me, se quisermos pensar em dois extremos do espectro, ao formalismo de Merce Cunningham, que no período mais tardio da sua criação introduzia software específico no desenvolvimento e multiplicação das possibilidades formais das suas coreografias; como estou a referir-me à busca das causas do movimento colecionadas a partir do lugar de observação do mundo, que é, afinal, a única pista que temos para elaborar sobre o “método” de Pina Bausch.

Mostrar aquilo que não se vêCRISTINA PERES*

* Jornalista.

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Quer em Cunningham quer em Bausch, como em Trisha Brown, é inegável a presença difusa da biografia de cada um destes desenhadores de movimento para corpos em relação uns com os outros e com o espaço, e as suas respetivas linguagens. Talvez uma espécie de pudor norte-americano perante a espessura da confissão daquilo que é pessoal (teoria minha!) tenha levado os coreógrafos do Novo Mundo a expandir as regras do corpo que, em numerosos casos, tão voluntária e extraordinariamente se desenvolveram no velho continente. Não será por acaso que, a partir dos anos 80-90 do século passado, o sucesso de gente da dança e do teatro como William Forsythe e Robert Wilson se tenha concretizado na Europa, e em parte substancial, como nestes dois casos, na Alemanha.

Na Europa passou-se pela fase eufórica da Nova Dança, que fazia surgir no mesmo tempo uma série de coincidências: apesar das diferenças formais e dos vários ADN que eram passíveis de ser identificados, aquilo que se dizia através da dança tinha propriedade de geração, fosse qual fosse o grupo etário de quem o fizesse. Assim, ao mesmo tempo que havia grande expectativa pelos novos e pelos novíssimos que pareciam estar sempre a surgir em todo o lado, e se classificava rápida e talvez injustamente como demodé uma série de consagrados, integravam-se com semelhante facilidade nesses “novos” todos os que fossem vistos e sentidos como estando a lidar artisticamente com aquele tempo e a fazer por traduzi-lo em termos artísticos. E eram vistos até como estando a integrar uma formulação das suas biografias com aparente despudor.

Biografia pode ser entendido de forma exagerada neste contexto (e em todos). Diga-se antes traços biográficos, memórias pessoais, fenomenologia de relação, níveis múltiplos de leitura, já que, em abono da verdade, estamos sempre a lidar com fogachos de visões parciais, mais vislumbres do que outra coisa, que dependem mais de um mundo que arranjou imensas formas de pôr as pessoas a dar permanentemente conta dos seus gestos do que a fazê-las realmente falar de si próprias.

Mesmo assim, biografia! Numa conferência aberta ao público por ocasião de 2008: Um Festival Pina Bausch, organizado pelo São Luiz Teatro Municipal e pelo Centro Cultural de Belém, a bailarina Nazareth Panadero declarou que, “surpreendentemente”, descobria que dançar depois dos cinquenta anos “era melhor do que antes”. Terminou a frase com uma curta pausa, coincidente com o rolar dos olhos pelo teto do Jardim de Inverno, fazendo-os voltar à audiência com aquela timidez radicalmente incompreensível das pessoas que fazem uma vida entre o palco e os bastidores a prepararem-se para o pisar. Panadero parecia estar a contar os segundos para que terminasse o prazo para ali surgir uma prova em contrário, eventualmente nascida da incredulidade de alguém na assistência. Mas a verdade é que, mesmo que por bizarria alguém ali tivesse por missão reunir provas para contrariar a bailarina, as pessoas têm tolerância alargada para a confissão. E esperam com paciência por uma “verdade biográfica”, sem conseguirem bem avaliar até que ponto não estão dispostas a abrir mão daquilo de que gostam. Nem dos artistas que seguem e inscrevem como parte do seu património pessoal.

Sem um tu não pode haver um eu é uma peça de chegada. Diz: este é o meu corpo, que é vosso conhecido há décadas, com o qual já me cansei vezes sem conta, que já mostrei de todos os ângulos, cujo movimento foi muitas vezes

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emprestado a outros, mas que é meu e em mim funciona deste modo, e que agora, em 2013-14, é assim. Neste solo, Paulo Ribeiro leva-nos por ele próprio, como se tivesse “resolvido”, décadas depois do outro solo de 1990, Modo de Utilização, como é que alguém com a sua idade (biológica e artística) pode apresentar-se num solo, totalmente exposto, como assume na entrevista que deu no final do processo de criação. Se não o tivesse assumido, seria à mesma visível, ainda que o trabalho faça uma incursão (também) por materiais que não são o Paulo Ribeiro/criador nem a personagem deste solo, mas, no caso, Ingmar Bergman, numa proposta assumida de diálogo entre os dois.

A dança depois dos cinquenta pode claramente ser muita coisa. Surpreendente é de certeza. Se quisermos, Paulo Ribeiro está todo inteiro neste solo, que percorre o léxico que lhe é próprio e natural. Porém, tem uma capacidade de detenção, de paragem, em última análise, de silêncio, que nunca antes esteve assim patente. Talvez eu esteja a falar daquilo que me parece ser o núcleo do processo de criação deste solo, à vez técnica, à vez resultado: Paulo Ribeiro filmou-se e reviu as filmagens dos ensaios. E só ele saberá as horas que levou a fazê-lo. O público pode ignorar o quanto o coreógrafo se demorou nesse gesto de fazer/rever o movimento. Mas parece-me que o gesto se repetiu a “quantidade” de vezes suficiente para ter ficado inscrito na estrutura do espetáculo como uma espécie de matriz, mais visível ainda no primeiro terço do solo. Basta isso para me parecer “quantidade suficiente” de biografia – entendida como matéria espreitada através de uma frincha improvável –, independentemente de toda a informação que surge por meio da música, dos textos extraídos da autobiografia de Ingmar Bergman, ou mesmo do primeiro texto do solo onde Paulo Ribeiro lança o isco da “explicação”.

Se quisermos, e apesar de o Paulo Ribeiro/bailarino nem ter imaginado a hipótese de ocultar a cara durante a interpretação do seu solo, como Trisha Brown o fez propositadamente, esta peça é atravessada pelo não-dito. Desafia

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o público a seguir o seu caminho, para além das identificações que a estrutura da peça tenha tomado do encontro que faz com o tema – a linguagem do realizador sueco. Em particular naquilo que fez Bergman insistir em retratar a dificuldade de fazer coincidir “aquilo que é” com “o que se esperou que viria a ser”.

Eu arriscaria repetir, a propósito de Sem um tu não pode haver um eu, como suspeito que a Nazareth Panadero faria: é surpreendente o que a maturidade reserva.

2. Para o outro/Leonor Keil(Bits & Pieces, de Olga Roriz) (Como é que eu vou fazer isto?, de Tânia Carvalho)

Numa crítica publicada no Expresso há uns bons anos, chamei a Leonor Keil “provavelmente a melhor bailarina do mundo”. Era então evidente o jogo com uma publicidade a uma cerveja, que seria fácil de identificar pela maioria das pessoas. Hoje já não tenho a certeza se muitos se lembrarão. Mas tenho a certeza de que Leonor Keil continua a ser uma bailarina que, não estando fora de todas as apreciações técnicas e interpretativas que possam ser feitas a bailarinos de todos os treinos e graus de stamina, tem “muitas coisas” que são só dela.

Bits & Pieces tem tanto de Olga Roriz como de Leonor Keil, para ser compreensível na sequência do que acabo de dizer. Refiro-me à identificação das linguagens pelas quais cada uma é responsável num primeiro momento, a estrutural e a interpretativa. Olga Roriz escolheu elementos cénicos e uma relação com a música comum à sua forma de criar peças para vários intérpretes, do modo como ocupa o espaço cénico e como faz as escolhas estruturais. Cria “aquela mulher”, para a qual encadeia uma história difusa, que bem pode conter memórias biográficas imprecisas, comuns a si e à bailarina. A personalidade artística de Olga Roriz reconhece-se na robustez que confere à “personagem”, nas mudanças bruscas de atitude, bem como nas fraquezas que a obriga a demonstrar. Leonor Keil passa a ser “aquela mulher”, caracterizando-a com aquilo que tem de mais exclusivo: pode ser o modo como utiliza o corpo, como amplia a extensão dos seus braços ou expande a flexibilidade das suas pernas para parecer gigante, às vezes, ou mal-adaptada, frágil, noutras vezes, aos espaços diminutos a que o espaço físico e emotivo de interpretação a limita.

Como é que eu vou fazer isto? é a pergunta de fundo a que estes três solos respondem. A estratégia do trabalho de Tânia Carvalho faz uma separação dos universos da representação e da sua ausência, suspendendo a ação com recurso ao desenho de luz, levando Leonor Keil a criar hipóteses de resposta com expressões antitéticas. Como se fornecesse à bailarina uma espécie de corda bamba invisível na qual ela tem de se equilibrar e desequilibrar com método. O meio para o fazer é sempre a demonstração daquilo que o seu corpo pode.

Tudo parece confirmar que o corpo é sempre surpreendente. Inseparáveis da sua história, cada uma das pessoas citadas neste texto tem a sua resposta. E reformulam-na uma e outra e outra vez, atualizando formas de mostrar aquilo que não se vê.

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música Alexandre Soares Biagio Marini (tema Passacaglio)espaço cénico Gabriela Vaz-Pinheirofigurinos Flávio Rodriguesdesenho de luz Alexandre Vieirapoemas de William Blakevídeo Né Barros/Filipe Martinsprodução executiva Tiago Oliveira

interpretação André Mendes, Belisa Branças, Bruno Senune, Carlos Filipe Oliveira, Joana Castro, Flavio Leihan, Flávio Rodrigues, Pedro Rosa, Ricardo Pereira, Sónia Cunha, Valter Fernandes

coprodução Balleteatro Centro Cultural Vila Flor TNSJapoio Teatro Camões

estreia 28Set2013 Teatro Camões (Lisboa)dur. aprox. 1:00M/16 anos

DIREçãO E COREOgRAfIAné baRRos

LANDING

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O campo exploratório deste trabalho gera-se a partir de um determinado chegar, um aterrar num estado de coisas. Os corpos em cena são simultaneamente corpos apátridas (o corpo dançante como desterritorialização, sem pertença nem pátria) e corpos da memória de um lugar, de uma terra, de um continente. Estes corpos são lugar de entrada onde circulam todas as imagens, todas as memórias. Neste caso, em particular, circulam as imagens de guerra e de paraíso, imagens de agora e imagens antigas. É esse o desenlace. Os temas, como noutros trabalhos anteriores, são mais direções processuais, pistas e paisagens sobre o que um corpo em gestos se permite alcançar. Amoral, este corpo batalha em livre destino, e é a insistência desse curso que se vai fazendo terra.

A sequência de quinhentas imagens utilizada (Random Access Mnemonicum) partiu de um exercício com motores de busca na Internet, feito a partir de palavras dos textos de William Blake utilizados pela coreógrafa. Esta busca foi depois várias vezes reprocessada por similaridade de imagens. Está em jogo um conjunto de escolhas em que o critério, enganosamente aleatório, tanto pode ser baseado em palavras, tonalidade, assunto, contaminação, etc. Breve elegia à condição contemporânea da visão, ao controle que temos enquanto seres humanos sobre as nossas escolhas e o nosso destino, e à própria veracidade das imagens que nos assolam, de tal forma que os seus autores se indiferenciam.

“Aterrar num estado de coisas”

“Breve elegia à veracidade das imagens que nos assolam”

NÉ BARROS

gABRIELA VAz-PINhEIRO

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Cruelty has a human heart, And Jealousy a human face; Terror the human form divine, And secrecy the human dress. The human dress is forged iron, The human form a fiery forge, The human face a furnace seal’d, The human heart its hungry gorge.

A Crueldade tem um coração humano,E a Inveja uma face humana;O Terror a divina forma humana,E o Segredo as roupagens humanas.

As roupagens humanas são ferro forjado,A forma humana uma forja ardente,O rosto humano uma fornalha selada,O coração humano sua gorja esfaimada.

WILLIAM BLAKETrad. Rui Pires Cabral.

A Divine Image

Uma Imagem Divina

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Prepare, prepare the iron helm of war, Bring forth the lots, cast in the spacious orb; Th’ Angel of Fate turns them with mighty hands, And casts them out upon the darken’d earth! Prepare, prepare! Prepare your hearts for Death’s cold hand! prepare Your souls for flight, your bodies for the earth; Prepare your arms for glorious victory; Prepare your eyes to meet a holy God! Prepare, prepare! Whose fatal scroll is that? Methinks ‘tis mine! Why sinks my heart, why faltereth my tongue? Had I three lives, I’d die in such a cause, And rise, with ghosts, over the well-fought field. Prepare, prepare! The arrows of Almighty God are drawn! Angels of Death stand in the louring heavens! Thousands of souls must seek the realms of light, And walk together on the clouds of heaven! Prepare, prepare! Soldiers, prepare! Our cause is Heaven’s cause; Soldiers, prepare! Be worthy of our cause: Prepare to meet our fathers in the sky: Prepare, O troops, that are to fall to-day! Prepare, prepare! Alfred shall smile, and make his harp rejoice; The Norman William, and the learnèd Clerk, And Lion Heart, and black-brow’d Edward, with His loyal queen, shall rise, and welcome us! Prepare, prepare!

A War Song to Englishmen

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Preparai, preparai o férreo elmo de guerra,Mostrai os dados lançados no vasto globo;O Anjo do Destino agita-os com mão possanteE lança-os sobre a terra escurecida!Preparai-vos, preparai-vos!

Preparai os corações para a fria mão da Morte! PreparaiAs almas para o voo, os corpos para a terra;Preparai os braços para a vitória gloriosa;Preparai os olhos para o encontro com Deus sacrossanto!Preparai-vos, preparai-vos!

De quem é aquele pergaminho fatal? Julgo-o meu!Porque se me abate o coração, vacila a língua?Tivesse eu três vidas, e por esta causa morreria,E pairaria, com os espíritos, sobre o campo de batalha.Preparai-vos, preparai-vos!

Estão prontas as flechas de Deus Todo-Poderoso!Os Anjos da Morte perfilam-se nos céus carregados!Que almas aos milhares procurem os reinos da luz,E caminhem juntas sobre as nuvens do céu!Preparai-vos, preparai-vos!

Soldados, preparai-vos! A nossa causa é a causa do Céu;Soldados, preparai-vos! Sede dignos da nossa causa:Preparai-vos para ir ao encontro de nossos pais nas alturas:Preparai-vos, ó soldados, que ides tombar hoje!Preparai-vos, preparai-vos!

Alfredo há-de sorrir e tanger com júbilo a sua harpa;Guilherme, o Normando, e o Clérigo ilustrado,E Coração de Leão, e Eduardo do negro cenho,Com a sua leal rainha, erguer-se-ão a saudar-nos!Preparai-vos, preparai-vos!

WILLIAM BLAKETrad. Rui Pires Cabral.

Canção de Guerra para os Ingleses

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Diz Nietzsche: trata-se de dar uma memória ao homem; e o homem, que se constituiu por uma faculdade activa de esquecimento, por um recalcamento da memória biológica, deve arranjar uma “outra” memória, que seja colectiva, uma memória de palavras e já não de coisas, uma memória de signos e já não de efeitos. É um sistema da crueldade, um alfabeto terrível, esta organização que traça signos no próprio corpo.Gilles Deleuze, Félix Guattari – O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1

Chegamos e já alguém nos espera. Procuramos o nosso lugar, mais ou menos expectantes, mais ou menos irrequietos, mais ou menos faladores. Somos aquele que vai ser interpelado.

Ainda em meio de começar, sentimos uma oscilação. Há já movimento do outro lado. De um lado para o outro, levemente, o corpo daquele que nos interpela do outro lado oscila, também numa tensão entre esse expectante, esse irrequieto, esse que fala pelo corpo, como que a dar lanço para algo que está para vir. E, sem levantar do movimento, dessa oscilação que se mantém, através de um recorte de luz, outros corpos avançam, reúnem-se, multiplicam-se e tornam-se imagens nítidas de breves instantes, estados de coisas, fotografias, multidão.

Tal como quando entrámos, havendo já algo a pulsar, aquilo que vamos experimentando, durante, é o fluxo desse pulsar. Do movimento mais amplo até ao mais pequeno, do mais rápido até ao mais lento, os corpos vão-se transformando. Não há começo. Começamos sempre a meio. E a meio, aqueles que dançam, os habitantes do espaço que para nós foi aberto ao olhar, tornam-se corpos desejantes, força matérica do inconsciente. Ora se despem, ora se vestem, ora procuram o salto, ora a contracção, trocam de lugar, insistindo em ser constantemente outro. Piratas de si.

Há desejo investido nestes corpos, que é maquinador de real e que procura o que já não é da ordem do sujeito fixo, da personagem unitária, mas da constância do próprio desejo e da sua passagem por corpos que se tornam excêntricos, nómadas, excessos de uma produção social que corre em paralelo, e que se engendra como corpo da terra, em que homem e natureza já não são distintos mas parecem identificar-se “na vida genérica do homem” (O Anti-Édipo). No ficcionar de modos de ser em constante trânsito de um a outro, no encarnar plástico do que pode ser a crueldade, o ciúme, a paixão, o terror, o encerramento e a exclusão, os corpos destas personagens errantes exprimem estados de intensidade mutantes em figura e forma, disputando entre si questões complexas.

Landing: onde é o que é da memória do corpo?ROSSANA MENDES fONSECA*

* Fotógrafa

e escritora.

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Mas o processo é claro: é neste turbilhão de corpos que habitam estados imagéticos convulsos, que se deslocam entre pontos espaciais, que se tocam e se repelem, que se lançam em novos motes para novas formações de ser, que nos é proposto pensar a memória do corpo, e o hábito do que fazemos e do que é escrito, como um guião, para nós. Essa, a tal natureza indissociável do homem, é nada mais que a história. E o guião para nós escrito, o traçado habitual das suas façanhas, inquestionáveis e incontornáveis. Temos, então, de procurar a sua escrita no nosso corpo, para que possamos multiplicar e esticar de tal maneira as suas linhas ao ponto de não deixarmos o presente aquém do que nos foi dado como memória.

Regressamos aos corpos que dançam para nós – na verdade, nunca os deixámos –, os corpos que atacam o espaço, que se atacam entre si, que saltam, rodopiam, que experimentam esgares, torções, colisões, dobras; corpos que, subitamente, estacam, respiram e preparam-se. Permeados por espaços de trégua e batalha, movimentos de retirada e investida, tempos de reconciliação e discórdia, preparam-se para a guerra, para a morte, para a vitória, movidos pelo desejo e à procura, talvez, de um sentido. Fragmentados e fragmentários, encontramo-nos nestes corpos a enlouquecer na nossa própria memória de algo que já havíamos visto e, contudo, perante o qual estamos pela primeira vez. Será porque o que nos é deixado é o anónimo, o nómada, persona da história que assinala, que constrói, que cria, com a sua própria carne; ou porque o próprio anónimo se revelou numa série de catarses em que não mais o sujeito está no centro da subjectivação, mas exactamente a persona cindida, em dissolução, que é, a cada momento, outra?

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Observamos corpos singulares, a viver a sua própria dança, pois que em cada acto há a possibilidade de voltar a traçar, de redesenhar e, assim, experienciar a densidade de cada personagem. A potência vital que é doada no corpo de cada personagem respira nos interstícios do desenho directivo, e contamina-nos imediatamente: revemos a nossa história, essa história que nos é traçada e à qual resistimos. Mas, ao mesmo tempo, compreendemos um todo na coreografia conjunta que, atravessada pelas palavras de William Blake, parece construir um plano ao mesmo tempo estético e político, no qual está depositado o problema da nossa existência. Entre movimentos e contra--movimentos, intuímos uma vontade de problematizar a impossibilidade de um possível lugar, pois que na sua realidade encontraríamos o paraíso.

Do real, sabemos que vemos imagens, imagens de imagens, imagens sobre imagens. Sabemos que habitamos um mundo repleto de imagens, que vivemos na sociedade da imagem. E, na era da veracidade e da prova pela imagem, da ficção e da ilusão pela imagem, desconfiamos cada vez mais e mais dela. Contudo, não desconfiamos apenas das imagens exteriores com que nos confrontam, consolam, cercam, mas, e sobretudo, daquelas que irrompem numa memória entre o passado e o presente, que ora abraçamos ora rejeitamos, e que forjam uma ideia de real a que não mais sabemos pertencer.

A experiência interior do homem é dada no momento em que, rasgando a crisálida, o homem tem a consciência de se rasgar a si próprio, e não a resistência oposta do fora. Uma imensa revolução se produz quando se é capaz de ultrapassar a consciência objectiva que as paredes da crisálida limitavam.Georges Bataille – O Erotismo

Em Landing há um voo colado ao chão, há uma tentativa de elevação e, depois, queda; há revolução no corpo. Há também a serenidade e a leveza. E há, em tudo isto, a suspensão de corpos que se passeiam com diferentes trajectórias, fazendo e refazendo o próprio espaço cénico. Ao mesmo tempo, há como que uma promessa de viagem, de fuga, no caminhar incessante daquele que é o sopro sonoro dançado, repetindo indefinidamente o que não pode ser lembrado. Há um combate interior que procura a margem do espaço possível. E há uma força curva que nos extirpa do centro.

Da história partem imagens de arquivo, imagens que vemos e revemos, imagens que nunca encontrámos visualmente, mas que sobrevoam o nosso imaginário. Estas imagens que se insinuam no caminho da nossa procura, da nossa história, da nossa vida, como dados quase-aleatórios, integram um campo de percepção que não é somente visual, mas no qual todos os sentidos são activados. Este campo de percepção, estrategicamente organizado e infinitamente modulável, é um campo de batalha, onde permanentemente aterramos e nos debatemos. E é também onde os corpos de Landing estão permanentemente em meio de aterrar. Talvez seja esse o real que o desejo nos promete, e do qual nos diz mais um pouco a presente obra.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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direção musical Luís Pedro Madeira Clara Andermattcomposição Luís Pedro Madeiradesenho de luz José Álvaro Correiafigurinos José António Tenentepaisagem sonora eletrónica Jonas Runaconsultadoria e pesquisa antropológica Sophie Coquelinreportório de danças tradicionais Mercedes Prieto Ana Silvestre

operação de luz Miguel Abelhooperação de som Ricardo Figueiredodireção de produção Alexandra Sabino

intérpretes/criadores André Cabral, Bruno Alves, Francisca Pinto, Joana Lopes, Linora Dinga, Sergio Cobos; Catarina Moura, Luís Peixoto, Quiné Teles

coprodução Companhia Clara Andermatt Culturgest Teatro Viriato Centro Cultural Vila Flor TNSJparceria Associação PédeXumbo apoio Musibéria

agradecimentos Conceição Correia, Associação Filarmónica 25 de Setembro de Montemor-o-Velho, Interpress, Manuel Louzã Henriques, Salazar Pinheiro

estreia 13Dez2013 Teatro Viriato (Viseu)dur. aprox. 1:15M/3 anos

músicos Sergio Cobos Luís Peixoto Quiné Teles

produção Associação PédeXumbo em colaboração com Companhia Clara Andermatt

dur. aprox. 40’

DIREçãO E COREOgRAfIAClaRa andeRmaTT

MANDADORAana silvesTRe

FICA NO SINGELO

BAILE

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Costumes que exprimem a alma. A nossa, a de agora e a de um outro tempo. Um tempo-terreno vinculado aos ciclos da natureza, circular e mutante.

Nos rituais, nas celebrações, nas vozes, nas histórias, no trabalho... Tudo envolve o corpo, a dança e a música. Do vazio ao Amor.Cadências repetitivas que atenuam o cansaço e estimulam o fôlego. Por

necessidade e defesa, o corpo chega a estados hipnóticos.Somos apenas nós e nós com o outro, somos todos porque é preciso, porque

se quer. Na companhia, na crença, na tarefa, no apaziguar da solidão. Em roda, em linha. Em pares, em bando. Momentos de espera ou humildade ou beleza ou alegria. Assim, singelo.

“Assim, singelo”CLARA ANDERMATT

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O tempo é veloz, apressa-te o passo, os indícios que interpretas hoje são a retórica do passado logo adiante, ali, vida fora. A tua perda constante não é só do tempo, quebras todos os dias a promessa que ontem depositaste no dia de hoje, com ou sem dor, perdes fulgor, perdes gente, perdes sentido.

Ganhas porém a nitidez do todo, a precisão do olhar. Reconheces a ordem, o desenho da tua face no espelho da tua vida, reconheces a memória da alegria e do desgosto na mesma paisagem antiga, no velho mês de julho, no cheiro da chuva, na cor da resina.

A contemporaneidade é extemporânea neste miradouro do tempo. Daqui vês chegar o novo inverno, semelhante àquele antes dele, semelhante a todos os outros mas tão particular por só chegar agora, por não fazer ainda parte do acervo de tempo que o tempo acumula na memória infinita do mundo. É este instante a tua volátil contemporaneidade.

Olhas os velhos do largo comentando o vento norte e adivinhas uma ciência esparsa, feita de sabedorias herdadas ao longo de muitas gerações, que agora se perde, sem préstimo e sem remorso. Olhas o granito das casas que cheiram a fumo e alguma coisa te apela, vinda da imanência de uma memória que talvez nem seja a tua, mas que atravessa a tua pele e que tem o timbre da tua própria voz. Olhas os sulcos na terra e pensas na guerra de amor e ódio que sempre travaste com ela, em representação de alguém que te deixou esse legado, esse vetusto antepassado buscando a sobrevivência e sonhando com a abastança ou amargando penúrias esfaimadas. Olhas enfim o chão onde te calhou nascer como se o interrogasses, porque pressentes que algo muito importante te pode ser dito pela miríade de sentidos que a geografia destes lugares encerra. Este é o teu chão!

O que procuras saber é pouco menos do que o que és, talvez mais. Procuras confirmar a sensação de que algo muito parecido com a tua vida já aconteceu por aqui, algo menos semelhante à voracidade dos teus movimentos mais ambiciosos do que ao incerto vagar da tua alma e da alma de outros antes de ti. Algo que te constitui num significado do tempo.

E então ouves a música, a toada metálica da braguesa, o troar da pele dos tambores, a flauta dos pastores alinhada ao sopro do vento. É a música que embalou os berços, que animou os bailes, que assanhou o amor, que festejou as colheitas, que ritmou o labor nos campos, no mar, nas pedreiras, nas eiras, a música que chorou as mortes e celebrou a vida em todos os momentos em que o tempo respirou, desde que a identidade a que sentes pertencer se fez matéria e se fez espírito.

Agora movem-se os corpos, e cada movimento está inscrito nesse longo arco que envolve a memória e anuncia o devir. São gestos novos que criam novas leituras e, no entanto, reconheces neles o calor da tua casa, um novo elo da cadeia infinita que te explica, que te sossega e que te desafia.

“Este é o teu chão!”JOãO LuCAS*

* Compositor.

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A colaboração da Associação PédeXumbo na criação do novo espetáculo da Companhia Clara Andermatt assentou num diálogo em torno de conceitos como a tradição, o folclore, a revitalização, o revivalismo e o património. Prendeu-se com a necessidade de evidenciar a dança tradicional nas suas diferentes materializações atuais, em território nacional. Permitiu abordar a questão das representações associadas à reconstrução do passado e à apreensão de um mundo rural na sua relação com o urbano. Pretendeu desmistificar o exótico e procurar no imaginário coletivo uma alteridade que transforma o longínquo numa realidade dinâmica, suscetível de alimentar uma reflexão sobre a identidade.

A transmissão informal das danças tradicionais, tal como o ensino da dança, inclui uma dimensão implícita, na qual a observação, a interpretação e a apropriação resultam de uma passagem subtil entre o fortalecimento da individualidade e a sua conformação a um coletivo gerador de normas e princípios estéticos. A repetição é um motor de incorporação, ao mesmo tempo que o contexto social e cultural modela o corpo num corpo comum. Da sua tecnicidade às suas dimensões comunicativas e expressivas, o corpo revela-se como o centro do diálogo e a dança passa a integrar um conjunto de atividades onde o corpo é instrumentalizado: rituais, trabalho, ciclos da vida...

Este deslocamento já se encontra presente na PédeXumbo, na medida em que esta privilegia não a dança mas o baile como forma artística de se relacionar com os outros. Refletir sobre o corpo cultural permite assim sair da caracterização essencialista, que reduz as danças tradicionais às suas coreografias, figuras e passos. Surgem então as noções de dinâmica postural, de interações, de contexto, que nos levam a pensar sobre o modo como o corpo habita o movimento.

Para um bailarino, isto pode significar trabalhar não a amplitude mas a economia do movimento, a fluidez, procurar um corpo global, ligar de novo certas partes do corpo e investigar formas de comunicar com os outros bailarinos e com os músicos. Não se trata de um processo de simplificação, mas sim de explorar uma outra linguagem.

Para além da descoberta e do encanto que as danças sociais imprimem nas pessoas através do seu carácter relacional e performativo, há que introduzir a questão da encenação. O palco torna-se o espelho de uma sociedade através do olhar curioso e distanciado do artista. A questão da beleza entrelaça-se com a forma de interrogar não o movimento em si mas a repetição da sua experiência. Ao retirar as tensões e as expectativas, o corpo atinge um estado de libertação que o torna disponível para sublimar a simplicidade.

A contracorrente da virtuosidade, habitar o movimento é colocar todo o processo criativo no efémero de um presente desejado, intemporal e universal.

“Habitar o movimento”SOPhIE COQuELIN

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foi assim que cheguei à poesia narrativa:nos poemas moviam-se figurase a essas figuras aconteciam coisas

Estes três versos de Vasco Graça Moura podem ilustrar subitamente o que acontece no palco de Fica no Singelo: há figuras, corpos, a quem acontecem coisas: encontros, muitas vezes, mas também alguns desencontros; pequenos movimentos que parecem por vezes concluir uma narrativa que se iniciou há décadas ou até há séculos.

Fica no Singelo de Clara Andermatt – memória da dança contemporânea e nova invenção da dança tradicional. E ainda o inverso.

A.Algumas notas sobre dança

1.Atentemos neste verso: Intensidade errada alojada na Perfeição (de Livro da Dança, Assírio & Alvim). Toda a dança é assunto de um desequilíbrio e de uma tentativa para endireitar. Endireitar algo que estava torto, errado. Dançar é no fundo corrigir um erro, um desacerto inicial que bem pode ser o facto de se existir como se existe: com essa certeza inflexível da morte. Dançar não deve pois significar a introdução de uma intensidade certa na perfeição.

Assim, alojar o erro na perfeição é um modo de exigir a continuação do movimento: como não atingimos a perfeição continuamos; como não atingimos a perfeição somos quase imortais. A perfeição toma assim o sentido de fim, de momento a partir do qual nada mais há para a frente; a perfeição como fim da linha. É a morte, no limite.

Dançar é, pois, adiar a morte. Introduzir consecutivamente intensidades erradas na perfeição; intensidades que não dão conta certa; sobram restos, vestígios, que obrigam a acertos infinitos e a um adiar constante.

O simples, o antigo e o novo – e ainda: o último dos movimentosFica no Singelo de Clara Andermatt

gONçALO M. TAVARES*

* Escritor.

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2.A dança é um movimento que altera as circunstâncias, estamos face a um ataque às leis. Dançar é perturbar o solo, é excitar o solo.

E a dança é um movimento que interfere no que é baixo, no que é intermédio e no que é alto. O ar contorce-se para acompanhar quem dança; o ar, dir-se-ia, torce o pescoço para conseguir olhar de frente para o bailarino. O ar desorienta-se porque nunca sabe onde está o rosto, as pernas ou as costas do bailarino.

O corpo que dança incita à perda da razão daquilo que o rodeia: do solo ao céu, passando pelo ar baixo que envolve os bípedes com ritmo, eis que tudo se perturba, eis que tudo é perturbado; o solo perde a razão.

3.Perturbar uma certa tendência para a escultura, uma certa tendência para a imobilidade, eis o que faz a dança. Um corpo que é músculos e carne e ossos tem tendência a definir-se como um corpo sólido. Dançar é, pois, interferir no estado dessa matéria que é o corpo. É lembrar ao corpo que não é tão sólido como parece quando visto do exterior. Dançar, a princípio, suavemente, é infiltrar um outro estado físico: o corpo é matéria sólida, sim, mas também líquida; também é a coisa que se pode derramar pelo espaço como a água, quando o copo que a envolvia se parte no chão. Também assim o corpo: rodeado de uma massa que o protege e o impede de se derramar, mas também com essa fragilidade das coisas líquidas. E é a dança que permite recordar essa fragilidade, esse outro estado da matéria humana.

Fica no Singelo de Clara Andermatt: perturbar a perfeição, interferir no solo, lembrar a fragilidade.

B.Algumas notas sobre o velho e o novo (sobre a tradição e o contemporâneo)

Descoberta do Museu.Deitar abaixo o Museu.No corpo as obras-primas resistem um quinto de segundo e menos de meio instinto.Descoberta do Museu.Deitar abaixo o Museu.O Museu dos Movimentos estragou-se!Destruição do lugar-comum no lugar do corpo.Descoberta do Museu.Deitar abaixo o Museu.(de Livro da Dança)

No Museu estamos diante do que já foi feito. Nenhum museu nos mostra o instante presente: vemos no museu o que já aconteceu, portanto: vemos o que não está a acontecer (desviamos os olhos do presente). Entrar no museu é sair do que acontece.

No corpo há movimentos que se tornam movimentos-museu: já aconteceram, conhecemo-los, não espantam; podemos repeti-los mas não os podemos inaugurar.

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O corpo necessita de alguns destes movimentos, movimentos reconhecíveis, de museu, movimentos cujo efeito é bem conhecido. Movimentos práticos, habituais, movimentos que nos permitem repetir gestos de sobrevivência, gestos que no limite sabem, eles próprios, que o mais importante é mesmo sobreviver.

Mas tal como na linguagem o poeta tenta fugir dos lugares comuns, também no corpo o dançarino tenta fugir dos lugares comuns, dessas repetições exaustivas de movimentos.

Dançar é interferir poeticamente na fisiologia; e uma poética dos músculos é aquela onde estes se encontram e cruzam em lugares incomuns; um encontro raro entre dois movimentos – poesia (Rimbaud): “um encontro raro entre palavras” – pode ser visto como um gesto desastrado na vida prática, mas é um gesto sublime na vida não-prática: nesses movimentos de luxo, movimentos de quem se pode mexer para objectivos que não os da sobrevivência ou da alimentação – os movimentos da dança.

Transformar o amor para melhorar o amorTransformar o corpo para melhorar o corpo.Transformar a poesia para melhorar a poesiaTransformar este sítio para melhorar este sítiomas transformar também este sítio para melhorar aquele sítio.Transformar o corpo para melhorar outros corpos.Transformar o amor para melhorar o amor(de Livro da Dança)

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Há na mudança, em qualquer mudança, uma segunda parte, um resto. Falamos de quê? Do que fica para trás, do que não é aproveitado para a caminhada daquilo que é novo.

Porque, afinal, o novo é constituído, em sua grande parte, pelo velho reconstruído, pelo velho com nova forma, pelo velho depois de sabotado em sítios estratégicos. Assim o novo digere quase todo o velho; é mais forte do que aquilo que existia anteriormente porque veio depois: é o que existia antes de mais qualquer coisa, mesmo que esse qualquer coisa seja simplesmente um acto de sabotagem. Sabotar artisticamente, e de forma elegante, o velho – uma forma de inventar o novo.

Fica no Singelo de Clara Andermatt: resgatar e sabotar artisticamente o Museu dos Movimentos Tradicionais.

C.Para finalizar. Sobre o movimento mais antigo, mais actual e também: mais ameaçador

A parte mais terrível da peça Fica no Singelo – a violência tristemente isolada de um corpo perante o que não se entende, o que nunca se entendeu, a morte. Um luto individual e extremo. Clara Andermatt em palco num solo onde só o absurdo encontra forças para falar (tentar falar) com o Absurdo Maior; o Absurdo Mestre; o Inaceitável Absurdo. Como se ali, finalmente, com aquele solo de gaita-de-foles, percebêssemos que a morte é realmente um acontecimento antigo. Que a morte é, de facto, uma tradição dos corpos, portanto: uma tradição essencial e primária da dança.

Há algo ali, então, que nos faz como que adivinhar que há uma tradição não apenas nas danças de um país, Portugal, danças alegres ou tristes, mas uma tradição maior e mais vasta e mais antiga. Há – percebemos nesse solo – uma tradição na forma como um corpo reage à morte de outro; uma tradição nessas convulsões do tronco, nessas dobras sobre si próprio, nesses esgares, nesse levantar súbito do tronco que subitamente se contorce de novo e de novo e de novo e de novo.

Em Portugal morre-se como em todo o lado, mas quem fica sofre com o seu corpo de uma forma distinta. E a verdadeira dança que resgata a mais antiga tradição portuguesa é essa mesma – a dança feita com os pés sobre a sombra dos que nos morrem. E este texto, claro, é dedicado a Luna Andermatt.

fim

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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Iniciou os seus estudos de dança com Luna Andermatt. Diplomada pelo London Studio Centre e pela Royal Academy of Dancing (Londres, 1980-84). foi bailarina da Companhia de Dança de Lisboa, sob a orientação de Rui horta (1984--88), e da Companhia Metros de Ramón Oller (Barcelona, 1989-91). Em 1991, cria a sua própria companhia, coreografando um vasto número de obras regularmente apresentadas em Portugal e no estrangeiro. Em 1994, inicia a sua colaboração com Cabo Verde, organizando várias ações de formação e realizando diversos espetáculos com bailarinos e músicos daquele país, uma cooperação que se manteve durante sete anos. É regularmente convidada a criar para outras companhias, a lecionar em diversas escolas e a participar como coreógrafa em peças de teatro e cinema. Ao longo da sua carreira, tem sido distinguida com diversos prémios, dos quais destaca: Menção honrosa do Prémio ACARTE/Maria Madalena de Azeredo Perdigão da fundação Calouste gulbenkian para a coreografia Mel (1992); com Paulo Ribeiro, o Prémio ACARTE/Maria Madalena de Azeredo Perdigão para a obra Dançar Cabo Verde (1994); e Prémio Almada, atribuído pelo Ministério da Cultura, e Espetáculo de honra do festival Internacional de Almada para a obra Uma História da Dúvida (1999).

Nasceu em Ponta Delgada, em 1973. Iniciou os seus estudos de dança na Escola de Dança de Maputo (Moçambique), concluindo a sua formação na Escola de Dança do Conservatório Nacional de Lisboa. Como intérprete de dança/teatro, trabalhou com Joana Providência, Madalena Victorino, Marta Lapa, João fiadeiro, Paulo Ribeiro, francisco Camacho, Amélia Bentes, José Wallenstein, Claudio hochman, John Mowat, Rafaela Santos, giacomo Scalisi, Companhia TPO (Itália), Luis El gris (Pogo Teatro), francisco Campos (Projeto Ruínas) e Nuno M Cardoso (Cão Danado). foi assistente de ensaios do coreógrafo João fiadeiro na obra Branco Sujo, e de Paulo Ribeiro na obra New Age para o Nederlands Dans Theater III (holanda). No cinema, destaca a sua participação em É só um minuto, de Pedro Caldas, Contra Ritmo, de João figueiras, Pas perdu, de Saguenail, O Barão e Cinesapiens, de Edgar Pêra. No âmbito do seu trabalho com a Companhia Paulo Ribeiro, na qual é intérprete regular desde 1995, foi-lhe atribuída uma Menção honrosa pela sua interpretação na obra Rumor de Deuses nos V Rencontres Chorégraphiques Internationales de Seine-Saint--Denis (1996) e, em 1999, o Prémio Revelação José Ribeiro da fonte, pelo Instituto Português das Artes do Espetáculo. Em 2002, foi uma das intérpretes escolhidas para participar no programa Vif du Sujet, do festival d’Avignon,

Clara Andermatt Leonor Keil

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para o qual convidou o coreógrafo Javier De frutos (solo Solitary Virgin). É, desde 2003, a responsável pelo desenvolvimento de projetos de âmbito pedagógico no Lugar Presente, em Viseu.

Coreógrafa e bailarina. Doutorada em Dança pela faculdade de Motricidade humana da universidade Técnica de Lisboa, e Master of Arts em Dance Studies no Laban Centre, London City university. Investigadora no grupo de Estética, Política e Artes do Instituto de filosofia da universidade do Porto. Colabora com o Centro de Estudos Arnaldo Araújo da Escola Superior Artística do Porto e com o Instituto de Etnomusicologia da faculdade de Motricidade humana da universidade Técnica de Lisboa. frequentou a faculdade de Ciências do Porto e concluiu o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Ao longo da sua carreira, tem desenvolvido os seus trabalhos artísticos em ligação com os científicos. Artisticamente, iniciou a sua formação em dança clássica, tendo mais tarde estudado dança contemporânea e composição coreográfica no Smith College (Estados unidos da América). Para além do Balleteatro, estrutura que fundou e dirige e com a qual tem apresentado trabalho regular desde os anos 1990, trabalhou com a Companhia Nacional de Bailado no âmbito

do Estúdio Coreográfico, no qual recebeu o prémio de Melhor Coreografia, e com o Ballet gulbenkian. Como atriz, fez cinema e teatro. Realizou filmes de vídeo-dança, com os quais participou em diversos festivais. Em 2006 e 2007, fez parte da comissão de seleção do festival Curtas de Vila do Conde. Em 2009, publicou o livro Da Materialidade na Dança e, em 2013, com filipe Martins, Das Imagens Familiares. Tem diversos artigos publicados. É fundadora e codiretora do ciclo de cinema e vídeo fffilm Project.

Natural de Viana do Castelo, teve como formação artística na área da dança o curso da Escola de Dança do Teatro Nacional de São Carlos, com Ana Ivanova, e o curso da Escola de Dança do Conservatório Nacional de Lisboa. Em 1976, integrou o elenco do Ballet gulbenkian sob a direção de Jorge Salavisa, aí permanecendo até 1992, tendo sido primeira bailarina e coreógrafa principal. Em 1992, assumiu a direção artística da Companhia de Dança de Lisboa. Em 1995, fundou a Companhia Olga Roriz, da qual é diretora e coreógrafa. O seu reportório na área da dança, teatro e vídeo é constituído por mais de noventa obras, onde se destacam as peças Treze Gestos de um Corpo, Isolda, Casta Diva, Pedro e Inês, Paraíso, Electra, Nortada e A Sagração da Primavera. Criou e remontou peças para um vasto número

Né Barros

Olga Roriz

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de companhias nacionais e estrangeiras, entre elas o Ballet gulbenkian e Companhia Nacional de Bailado (Portugal), Balé Teatro guaíra (Brasil), Les Ballets de Monte-Carlo (Mónaco), Ballet Nacional de España, English National Ballet (Reino unido), American Repertory Ballet (EuA), MaggioDanza e Teatro alla Scala (Itália). Internacionalmente, os seus trabalhos foram apresentados nas principais capitais europeias, assim como nos EuA, Brasil, Japão, Egito, Cabo Verde, Senegal e Tailândia. Tem um vasto percurso de criação de movimento para teatro e ópera. Na área do cinema, realizou os filmes Felicitações Madame, A Sesta e Interiores. Várias das suas obras estão editadas em DVD pela produtora Real ficção, realizadas por Rui Simões. uma extensa biografia sobre a sua vida e obra foi editada em 2006 pela Assírio & Alvim, com texto de Mónica guerreiro. Desde 1982, Olga Roriz foi distinguida com relevantes prémios nacionais e internacionais. Entre eles, destacam-se o 1.º Prémio do Concurso de Dança de Osaka (Japão, 1988), prémio de Melhor Coreografia da revista londrina Time Out (1993), Prémio Almada (2004), a insígnia da Ordem do Infante D. henrique – grande Oficial pelo Presidente da República (2004), grande Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores e Millennium bcp (2008) e Prémio da Latinidade (2012).

Natural de Lisboa, fez carreira como bailarino em várias companhias belgas e francesas. A estreia enquanto coreógrafo deu-se em 1984, em Paris, no âmbito da companhia Stridanse, da qual foi cofundador. De regresso a Portugal, em 1988, começou por colaborar com a Companhia de Dança de Lisboa e com o Ballet gulbenkian, para os quais criou, respetivamente, Taquicardia (Prémio Revelação do jornal Se7e) e Ad Vitam. Com o solo Modo de Utilização, representou Portugal no festival Europália 91, em Bruxelas. A sua carreira de coreógrafo expandiu-se no plano internacional a partir de 1991, com a criação de obras para companhias de renome: Nederlands Dans Theater II (Encantados de Servi-lo e Waiting for Volúpia), Nederlands Dans Theater III (New Age); grand Théâtre de genève (Une Histoire de Passion); Centre Chorégraphique de Nevers (Le Cygne Renversé); e Ballet de Lorraine (White Feeling e Organic Beat). Criou para o Ballet gulbenkian Percursos Oscilantes, Inquilinos, Quatro Árias de Ópera, Comédia Off 1, White e Organic Beat, Organic Cage, Organic Feeling. Em 1994, foi galardoado com o Prémio ACARTE/Maria Madalena de Azeredo Perdigão pela obra Dançar Cabo Verde, realizada conjuntamente com Clara Andermatt.Em 1995, fundou a Companhia Paulo Ribeiro, para a qual criou até ao momento as coreografias Sábado 2, Rumor de Deuses, Azul

Paulo Ribeiro

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Esmeralda, Memórias de Pedra – Tempo Caído, Orock, Ao Vivo, Comédia Off 2, Tristes Europeus – Jouissez Sans Entraves, Silicone Não, Memórias de um Sábado com Rumores de Azul, Malgré Nous, Nous Étions Là, Masculine, Feminine, Maiorca, PAISAGENS – onde o negro é cor e, mais recentemente, Jim. Em 1996, a obra Rumor de Deuses foi distinguida com os prémios Circulação Nacional, atribuído pelo Instituto Português do Bailado e da Dança, e Circulação Internacional, atribuído pelo Centro Cultural de Courtrai, ambos no âmbito do concurso Mudanças 96. Em 1999, venceu ainda o Prémio Almada do Instituto Português das Artes do Espetáculo. Ao longo da carreira, tem recebido vários outros prémios de relevo, como o Prix d’Auteur, nos V Rencontres Chorégraphiques Internationales de Seine-Saint-Denis (frança); o New Choreography Award, atribuído pelo Bonnie Bird Choreography fund – Laban Centre (Reino unido); o Prix d’Interpretation Collective, concedido pela ADAMI (frança); ou ainda o Prémio Bordalo da Casa da Imprensa (2001). Em 2009, recebeu mais duas distinções: o prémio Coreógrafo Contemporâneo, no 1.º Portugal Dance Awards, e o Prémio do Público, no Dance Week festival da Croácia. Em 2011, o espetáculo PAISAGENS – onde o negro é cor foi galardoado com o prémio de Melhor Coreografia pela Sociedade Portuguesa de Autores. Em acumulação com o trabalho na companhia, Paulo Ribeiro comissariou o ciclo Dancem! do

Teatro Nacional São João, nas edições de 1996, 1997 e 2009. Desempenhou, entre 1998 e 2003, o cargo de Diretor-geral e de Programação do Teatro Viriato/CRAE – Centro Regional das Artes do Espetáculo das Beiras, e foi ainda Comissário para a Dança em Coimbra 2003 – Capital Europeia da Cultura. Em 2006, regressaria ao Teatro Viriato, para reocupar o cargo de Diretor-geral e de Programação, após a extinção do Ballet gulbenkian, que dirigiu entre 2003 e 2005, tendo nesse período recebido o Prémio Bordalo da Casa da Imprensa (2005) pelo trabalho desenvolvido com esta companhia. Em 2008, participou como coreógrafo na produção Evil Machines, de Terry Jones, para o São Luiz Teatro Municipal. Em 2010, coreografou o espetáculo Sombras, de Ricardo Pais. E, em 2011, criou Desafinado, para o grupo Dançar com a Diferença (Madeira), e ainda um quarteto para o espetáculo coletivo Uma coisa em forma de assim, com a Companhia Nacional de Bailado, para a qual criou seguidamente Du Don de Soi, um espetáculo sobre o cineasta Andrei Tarkovski. No cinema, concebeu uma coreografia para La Valse, um filme de João Botelho. Tem vindo a dedicar-se também à formação, orientando vários workshops em Portugal, mas também em países onde a companhia tem marcado presença. Lecionou a disciplina de Composição Coreográfica, no âmbito do mestrado de Criação Coreográfica Contemporânea promovido pela Escola Superior de Dança, e deu aulas no Conservatório Nacional de Dança.

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Nasceu em 1976, vive e trabalha entre Viana do Castelo e Lisboa. Aos cinco anos, iniciou-se nas aulas de dança clássica e em 1995 começou a frequentar a Escola Superior de Dança, em Lisboa. Dois anos depois, ingressou no Curso de Intérpretes de Dança Contemporânea, no forum Dança (Lisboa). Em 1999, obteve o primeiro apoio do Estado para uma criação sua. Já em 2005, realizou o Curso de Coreografia da fundação Calouste gulbenkian. Ao longo da carreira, tem desenvolvido vários trabalhos, como intérprete e como criadora, em colaboração com diferentes coreógrafos: Clara Andermatt, Carlota Lagido, filipe Viegas, francisco Camacho, Luís guerra e Vera Mantero. Como atriz, trabalhou com a associação Projeto Teatral. Enquanto coreógrafa e intérprete, criou, entre outras, as seguintes peças: De mim não posso fugir, paciência! (2008), Danza Ricercata (2008), Movimentos Diferentes #4 #5 #6 (2009), Der Mann ist verrückt (2009), Olhos Caídos (2010), Icosahedron (2011), 27 Ossos (2012) e ainda O Reverso das Palavras (2013) e Síncopa (2013). Desenvolve ainda projetos musicais com voz e piano, estando atualmente a frequentar aulas de piano com Yuri Popov. É cofundadora da associação de promoção cultural Bomba Suicida.

Tânia Carvalho

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ficha técnica tnsj

coordenação de produção Maria João Teixeiraassistência de produção Eunice Basto, Maria do Céu Soares, Mónica Rochadireção de palco Rui Simão, Emanuel Pina (adjunto)direção de cena Pedro Guimarães, Cátia Estevesluz Filipe Pinheiro, Abílio Vinhas, Adão Gonçalves, José Rodrigues, Nuno Gonçalvesmaquinaria António Quaresma, Carlos Barbosa, Joel Santos, Paulo Ferreirasom António Bica, Joel Azevedo, João Oliveira

APOIOS tnsj

apoios à divulgação

agradecimentos tnsj

Câmara Municipal do PortoPolícia de Segurança PúblicaMr. Piano/Pianos – Rui Macedo

Teatro Nacional São JoãoPraça da Batalha4000-102 PortoT 22 340 19 00

Teatro Carlos AlbertoRua das Oliveiras, 434050-449 PortoT 22 340 19 00

Mosteiro de São Bento da VitóriaRua de São Bento da Vitória4050-543 PortoT 22 340 19 00

[email protected]

EDIÇÃO

Departamento de Edições do TNSJcoordenação João Luís Pereiracapa e modelo gráfico Joana Monteiropaginação João Guedesfotografia Susana Paiva (Bits & Pieces, capa), José Alfredo (Sem um tu não pode haver um eu; Como é que eu vou fazer isto?), Rodrigo de Souza (Bits & Pieces), Delfim Bessa (Landing), Inês D’Orey (Fica no Singelo)impressão Multitema

Não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante os espetáculos. O uso de telemóveis ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os intérpretes como para os espectadores.

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