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1 Renascimento: — Sim ou não? A nossa compreensão do período que vai de Filipe, o Belo [século XV] a Henrique IV – século XVI) ficaria muito facilitada se fossem suprimidos dos livros de Historia dois termos solidários e solidamente inexactos: Idade Média e Renascimento. Com isso se abandonaria todo um conjunto de preconceitos. Ficar-se-ia, especialmente, livre da ideia de ter havido um corte brusco que veio separar uma época de luz de um período de trevas Criada pelos humanistas italianos e retomada por Vasari, a noção de uma ressurreição das letras e das artes graças ao reencontro com a Antiguidade foi, seguramente, fecundada, como fecundos são todos os manifestos lançados em todos os séculos, por novas gerações conquistadoras. Essa noção significa juventude, dinamismo, vontade de renovação. Mas o termo Renascimento, mesmo na acepção estrita dos humanistas que o aplicavam essencialmente, à literatura e às artes plásticas, parece-nos actualmente insuficiente. Parece rejeitar, como bárbaras, as criações simultaneamente sólidas e misteriosas da arte românica e aqueloutras, mais esbeltas e dinâmicas, da idade gótica. Não dá conta nem de Dante, nem de Villon, nem da pintura flamenga do século XV. E, principalmente, ao ser alargado às dimensões de uma civilização (…) mostrou-se inadequado. Não afirmou Burckhardt — que não tinha em conta a economia —, há já um século, que , no essencial, o Renascimento não fora uma ressurreição da Antiguidade? Ora, se dermos aos factos da economia e à técnica o lugar que lhes cabe, o juízo de Burckhardt ganha ainda mais verdade. Pois o regresso à Antiguidade em nada influiu na invenção da imprensa ou do relógio mecânico, nem no aperfeiçoamento da artilharia, nem no estabelecimento da contabilidade por partidas dobradas, nem no das letras de câmbio ou das feiras bancárias. Mas as palavras têm muita vida, impõem-se-nos contra a nossa própria vontade. Com que haveríamos de substituir a palavra Renascimento? Com que outro vocábulo designaríamos essa grande evolução que levou os nossos antepassados a mais ciência, mais conhecimento, maior domínio do mundo natural, maior amor pela beleza? (…) Mas que fique entendido: esta palavra já não pode ter o sentido original No âmbito de uma história total significa (e não pode significar outra coisa) a promoção do Ocidente numa época em que a civilização da Europa ultrapassou de modo decisivo, as civilizações que lhe eram paralelas Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, vol 1, Ed Estampa Reflectir sobre: 1. O significado primeiramente atribuído à palavra Renascimento. 2. As razões que levaram os humanistas do século XVI e outros estudiosos posteriores a aplicá-la à civilização dos séculos XV e XVI na Europa. 3. Os motivos por que Delumeau considera o termo “inexacto”, os motivos por que, apesar disso, o continua a aplicar. 4. As características gerais que se apontam a este período. Curso Profissional de Multimédia História da Cultura e das Artes 1TM09/12 Módulo V A CULTURA DO PALÁCIO Professora Maria Teresa Gonçalves

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Renascimento:

— Sim ou não? A nossa compreensão do período que vai de Filipe, o Belo [século XV] a Henrique IV – século

XVI) ficaria muito facilitada se fossem suprimidos dos livros de Historia dois termos solidários e solidamente inexactos: Idade Média e Renascimento. Com isso se abandonaria todo um conjunto de preconceitos. Ficar-se-ia, especialmente, livre da ideia de ter havido um corte brusco que veio separar uma época de luz de um período de trevas

Criada pelos humanistas italianos e retomada por Vasari, a noção de uma ressurreição das letras e das artes graças ao reencontro com a Antiguidade foi, seguramente, fecundada, como fecundos são todos os manifestos lançados em todos os séculos, por novas gerações conquistadoras. Essa noção significa juventude, dinamismo, vontade de renovação. Mas o termo Renascimento, mesmo na acepção estrita dos humanistas que o aplicavam essencialmente, à literatura e às artes plásticas, parece-nos actualmente insuficiente. Parece rejeitar, como bárbaras, as criações simultaneamente sólidas e misteriosas da arte românica e aqueloutras, mais esbeltas e dinâmicas, da idade gótica. Não dá conta nem de Dante, nem de Villon, nem da pintura flamenga do século XV. E, principalmente, ao ser alargado às dimensões de uma civilização (…) mostrou-se inadequado. Não afirmou Burckhardt — que não tinha em conta a economia —, há já um século, que , no essencial, o Renascimento não fora uma ressurreição da Antiguidade? Ora, se dermos aos factos da economia e à técnica o lugar que lhes cabe, o juízo de Burckhardt ganha ainda mais verdade. Pois o regresso à Antiguidade em nada influiu na invenção da imprensa ou do relógio mecânico, nem no aperfeiçoamento da artilharia, nem no estabelecimento da contabilidade por partidas dobradas, nem no das letras de câmbio ou das feiras bancárias.

Mas as palavras têm muita vida, impõem-se-nos contra a nossa própria vontade. Com que haveríamos de substituir a palavra Renascimento? Com que outro vocábulo designaríamos essa grande evolução que levou os nossos antepassados a mais ciência, mais conhecimento, maior domínio do mundo natural, maior amor pela beleza?

(…) Mas que fique entendido: esta palavra já não pode ter o sentido original No âmbito de uma história total significa (e não pode significar outra coisa) a promoção do Ocidente numa época em que a civilização da Europa ultrapassou de modo decisivo, as civilizações que lhe eram paralelas

Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, vol 1, Ed Estampa Reflectir sobre: 1. O significado primeiramente atribuído à palavra Renascimento. 2. As razões que levaram os humanistas do século XVI e outros estudiosos posteriores a

aplicá-la à civilização dos séculos XV e XVI na Europa. 3. Os motivos por que Delumeau considera o termo “inexacto”, os motivos por que, apesar

disso, o continua a aplicar. 4. As características gerais que se apontam a este período.

Curso Profissional de Multimédia História da Cultura e das Artes

1TM09/12 Módulo V

A CULTURA DO PALÁCIO

Professora Maria Teresa Gonçalves

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A Arte Sente-me, Ouve-me, Vê-me. Seduzir, série de trabalhos de Helena Almeida (e. de 1970)

Helena Almeida (n. 1934) começou a pintar convencionalmente. Mas, a partir dos anos 70 e tendo contactado com a obra de Lucio Fontana (e com a forma como este incorpora na pintura na 3.ª dimensão, através de cortes e perfurações na tela), passou a situar-se nas chamadas práticas anticonceptuais, que rompem com os processos e formatos mais tradicionais e utilizam novas experiências, como a fotografia.

Assim, na obra de Helena Almeida, observamos quase sempre um jogo entre duas formas de representação distintas: por um lado, a imagem da fotografia da própria artista a executar um determinado gesto, que é, por outro lado, completado ou prolongado com um acrescento ou colagem de fios (crina) ou pinceladas de tinta, Cria, assim, dois momentos distintos: o passado, que é a fotografia, e o depois, ou seja, os elementos que ela adiciona posteriormente. Deste modo, dá-nos a noção distinta de tempo.

A essência do seu trabalho é, então, a fixação desse espaço temporal entre dois actos distintos executados na mesma superfície.

Normalmente, a pincelada sobrepõe-se à fotografia, ora limitando-a ora alterando-a, oferecendo sempre novas possibilidades de leitura, através da opacidade azul, negra ou vermelha da tinta, prolongando os limites da representação do corpo e do gesto fixado.

Esta série de trabalhos, intitulada “Sente-me, Ouve-me, Vê-me, é formada por um conjunto de fotografias completadas por uma peça de vídeo (que contém o tema Vê-me) e uma peça de som, alargando o seu campo de intervenção a outras áreas. Juntando à fotografia, os fios de crina, o som e a imagem vídeo, criou um campo sensorial mais vasto: um representado e outro não representado, abrigando a uma maior envolvência do observador.

Estes trabalhos remetem para os gestos e para as atitudes implícitas no título “Sente-me, Ouve-me, Vê-me”, embora correspondam exactamente ao contrário do enunciado. Nos trabalhos “Vê-me”, os olhos estão fechados; no “Ouve-me” a boca está suturada com fios. Limitamo-nos, pois, a “Sentir”.

Ouve-me, 1979, fragmento de um trabalho composto por 16 fotografias a preto e branco (19,7 x 25,7 cm cada)

Sente-me, 1979 duas fotografias a preto e branco, com tinta acrílica azul (62.5x54 cada)

Ouve-me, 1980, excerto de 1 de 28 fotografias (28 x 35,6 cm cada)

O que interessa saber: • O que expressa Helena Almeida nesta obra? • Como utiliza a linguagem plástica para obter essa expressividade?

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A. O Homem Universal, desenho de Leonardo da Vinci para representar, de acordo com o romano Vitrúvio, o cânone ideal do corpo humano.

1. A valorização do Homem como ser supremo da criação Divina

Homens novos, espaços novos, uma memória clássica

1 A Primeira metade do século XV-1618. De meados de Quatrocentos ao início da Guerra dos Trinta Anos (O tempo)

Os historiadores do século XIX denominaram Renascimento o tempo correspondente ao séculos XV e XVI (os primeiros séculos da Idade Moderna), devido à extraordinária evolução das mentalidades e da cultura ocorrida na Europa.

Essa evolução consubstanciou-se nos seguintes factos: • na passagem do pensamento teocêntrico (centrado na figura de Deus) e simbólico,

dominante na Idade Média, para uma mentalidade que tendia a explicar o Mundo através das capacidades do Homem, modelo e referência para todas as coisas (antropocentrismo). A crença no Homem e nas suas capacidades levou ao desenvolvimento do racionalismo e do espírito crítico.

• numa crescente curiosidade e vontade de saber, o que gerou um interesse verdadeiro e objectivo pela Natureza, em todas as suas formas, criando, nas ciências, as bases do conhecimento científico moderno e, na Arte, o gosto pela representação dos homens, do quotidiano e da paisagem através do realismo técnico e da pormenorização. Surgiu, assim, urna concepção mais pragmática e profana da vida, que valorizou conceitos como os de Humanismo e individualismo.

Isto proporcionou aos artistas assumirem-se como intelectuais que, pelo seu talento técnico, pelo raciocínio e compreensão das coisas, foram capazes de criar e inovar artisticamente; assinavam as suas obras e tinham o reconhecimento público da sua genialidade e do seu novo estatuto social.

Idade Moderna – Período da História que sucede à Idade Média, compreendendo os séculos XV, XVI, XVII e XVIII. Convencionalmente, inicia-se com a queda do Império Bizantino em 1453 (face ao avanço dos Turcos Otomanos) e termina com a Revolução Francesa, em 1789.

Humanismo – Movimento cultural renascentista — filosófico, literário e artístico — que se interessa fundamentalmente pelo Homem, as suas características e potencialidades. Apoiou-se na cultura clássica que redescobriu e reinterpretou.

Individualismo – Corrente doutrinal e prática que defende, para cada homem, a concretização das potencialidades e características próprias e sobrevaloriza o papel do indivíduo na evolução das sociedades e da História.

B. O Homem, autor de si próprio O arquitecto supremo escolheu o homem, criatura de natureza

imprecisa, colocando-o no centro do Mundo, dirigiu-se-lhe nestes termos:

“Ó Adão […], tu que nenhum limite constrange de acordo com a livre vontade que colocámos nas tuas mãos, decidirás dos próprios limites da tua natureza. Colocámos-te no centro do Mundo para que daí possas observar facilmente as coisas. Não te criámos nem céu, nem terra; nem mortal, nem imortal, para que, por teu livre arbítrio, como se fosses o criador do teu próprio modelo, tu possas escolher e modelar-te da forma que preferires […]. Pelo teu poder poderás, graças ao discernimento da tua alma, renascer nas formas mais altas que são divinas.

Pico della Mirandola (humanista florentino), Discurso acerca da Dignidade Humana. 1486

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Panorâmica da cidade de Florença, a cidade-berço do Renascimento, onde se vê a cúpula da Catedral de Santa Maria das Flores e o telhado branco do seu baptistério

Foi em Florença, no século XV, que nasceram e/ou se desenvolveram os maiores génios artísticos do Renascimento, como Masaccio, Botticelli, Alberti, Donatello, Leonardo e Miguel Ângelo, para só citar alguns. Esta coincidência explica-se pela precoce prosperidade económico-financeira (indústrias de lã e tinturaria, comércio rico, aparecimento dos câmbios, bolsas e bancos) que aí, desde o século III, se foi

desenvolvendo e permitiu aos seus comerciantes financiar reis e imperadores em toda a Europa. A boa situação económica garantiu a independência política da cidade. Constituída como república livre, Florença criou um ambiente social único, aberto e cosmopolita, propício ao incremento cultural que era amplamente favorecido pela política dos burgueses que a governavam, como os Médicis.

Este espírito foi igualmente impulsionado pela descoberta da cultura clássica e consequente paixão pela arqueologia que se registou primeiro na Itália, devido a ter sido aí o centro do mundo romano, mas que se tomou comum a todos os espíritos cultos da Europa.

Estes factos foram estimulados por uma conjuntura propiciadora — crescimento demográfico e urbano, abertura comercial e maior dinamismo socioeconómico, centralização do poder político e novos intercâmbios culturais — que primeiramente se manifestou em Itália e depois se estendeu pela Europa.

Esta conjuntura histórica do Renascimento (séculos XV-XVI), expansionista e optimista, deu lugar, a partir de meados da centúria de Quinhentos, a um período mais instável. O movimento da Reforma Protestante e a enorme cisão que causou entre os cristãos abalou tremendamente os espíritos. As guerras e lutas religiosas que então se geraram (como a Guerra dos 30 Anos que, em 1618, partindo de um acontecimento religioso se tornou numa guerra europeia) dividiram as nações, causaram perseguições cruéis e desestabilizaram a vida económica, Os reis fortaleceram os seus poderes e o seu controlo sobre as populações, prenúncio do absolutismo. A Igreja Católica encetou a Contra-Reforma, reforçando os poderes fiscalizadores da Inquisição e do Índex.

Assim, tal como a expansão económica e o crescimento populacional degeneraram em depressão e crises económicas e demográficas, ao racionalismo optimista e confiante do século XV e começos do século XVI sucedeu a dúvida, o cepticismo e a crise de valores; à liberdade intelectual sucedeu a censura e o controlo ideológico.

Reflexo dos tempos, a Arte perdeu a clareza formal e o rigor lógico e conceptual das primeiras manifestações, enveredando pelos perfeccionismos técnicos, pela exploração dos sentimentos e da sensualidade, pelo individualismo estilístico e pelo decorativismo. Chegara a época do(s) Maneirismo(s), período de transição que em breve evoluiria no sentido do Barroco.

Reforma Protestante – Movimento de protesto contra o Papa e a moral da Igreja Católica. Surgiu em inícios do

século XVI, na Alemanha, com Martinho Lutero, e alastrou a numerosas outras regiões da Europa do Norte e Leste, criando a maior cisão do Cristianismo depois do Cisma do Oriente. A Reforma deu origem às Igrejas protestantes ainda hoje existentes.

Contra-Reforma – Movimento criado pelos papas do Vaticano para combater o Protestantismo, em prol da

continuação da doutrina e dos dogmas da Fé católica. Inquisição – Tribunal eclesiástico destinado a velar pela pureza doutrinal da Igreja Católica e a julgar questões de fé e

heresias. Criado no final da Idade Média, viria a ser instrumento privilegiado da Contra-Reforma, destacando-se pelo ímpeto repressivo e pela crueldade dos seus métodos.

Índex – Congregação religiosa criada em 1519 pelo Papa Paulo IV para vigiar as publicações intelectuais, proibindo a

difusão e leitura das obras consideradas heréticas ou portadoras de ideias e valores contrários aos ensinamentos da Igreja. Maneirismo – Corrente artística que se iniciou em Itália no segundo quartel do século XVI e se difundiu por toda a

Europa, até cerca de 1600, nas suas manifestações mais tardias. Produziu uma arte de corte, elitista, tecnicista e lúdica, que privilegiou a sensualidade, o dramatismo e o movimento.

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A Europa das rotas comerciais, das ideias e dos objectos de cultura (O espaço)

A Europa das rotas comerciais foi o resultado de grandes transformações ocorridas, algumas delas,

desde o século XII e outras, neste período, com a abertura comercial iniciada no Mar Mediterrâneo, pela Itália.

Tal deveu-se, primeiro, à burguesia das cidades italianas (em franca ascensão, rivalizando com a aristocracia), que gozava de uma boa situação política e de urna economia baseada no comércio internacional e nas lucrativas actividades financeiras; e, em segundo lugar, às grandes descobertas geográficas transcontinentais e transoceânicas, nas quais Portugueses e Espanhóis foram pioneiros.

Esta abertura, que do Mediterrâneo chegou ao Atlântico, ao Báltico e ao Oriente, foi de extraordinária importância, uma vez que:

• quebrou o isolamento europeu, abrindo as portas a uma época de grandes intercâmbios culturais animados pelo espírito de aventura e gosto pelas viagens; • permitiu às nações europeias a construção de um comércio à escala mundial que foi motor de desenvolvimento interno e seu sustentáculo económico e financeiro até ao século XVIII; • revelou aos Europeus, pela primeira vez, a verdadeira dimensão e forma do globo terrestre, dando a conhecer a quantidade dos mares, continentes e ilhas, a variedade dos climas, das faunas e das floras, a multiplicidade dos povos, culturas e religiões; • proporcionou a elaboração de numerosos novos saberes, construídos com base na observação e na experiência vivida, que estão na base do arranque da ciência ocidental; • levou à formulação de novos conceitos sobre o Homem e a existência.

Foi a mundialização das rotas, cio comércio, das ideias e dos objectos de cultura. A Itália do Renascimento Nos séculos XV e XVI, a Itália que hoje conhecemos ainda não existia. O país encontrava-se dividido em várias unidades políticas autónomas que se constituíam como reinos, ducados, principados e repúblicas. De comum, a situação privilegiada no meio do Mediterrâneo e o precoce desenvolvimento das actividades artesanais, mercantis e financeiras.

3. O alargamento dos conhecimentos geográficos: do Mediterrâneo ao Báltico; do Atlântico ao

Oriente

Em finais do século XV e início do século XV[…]tudo muda. Em 1492, Colombo atravessa o Atlântico e “descobre” as Antilhas; nos anos que se seguem chega ao continente americano. Em 1498, Vasco da Gama dobra o Cabo da Boa Esperança e abre o caminho marítimo para a Índia. Em 1500 Pedro Álvares Cabral aproa à costa brasileira. Em 1519, Cortez desembarca no México [...]. Por fim, em 1522, as naus de Fernão de Magalhães concluem a primeira volta ao Mundo […]. Nunca trinta anos modificaram tanto face do Mundo!

Tzevtan Todorov, Viajantes e Indígenas, em Eugénio Garin, (dir. de), O Homem Renascentista Presença, Lisboa

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O palácio, habitação das elites. As artes no palácio (O local)

A.

B.

Palácio de Médici-Ricardi, obra de Michelozzo, Florença, iniciado em 1444 Esta obra, encomendada por Cosme de Médicis, foi um dos primeiros palácios renascentistas em Florença. Apresenta

uma gradação na composição da fachada externa [A]: o rés-do-chão, de aparelho rústico; o 1 ,° andar e seguinte com a cantaria cada vez mais polida. Os andares são altos devido à utilização de abóbadas nas coberturas interiores. As janelas são geminadas, com um mainel central e arcos de volta perfeita. Um majestoso entablamento de modilhões clássicos coroa o palácio. Um banco de pedra rodeia-o exteriormente. No interior [C], as amplas divisões, bem distribuídas e decoradas com pinturas de artistas como Uccello e Pesellino, abrem-se para o pátio interno quadrangular [B] que tem uma arcada coríntia. No 1.º andar, vêem-se janelas de duas luzes e esgrafitos decorativos. As cozinhas foram colocadas na cave alta, com respiradores para arejamento e conservação dos alimentos.

Neste palácio foram combinados a força gloriosa do castelo e o recolhimento calmo do convento, onde a família patriarcal vivia.

No Renascimento, a vida centrou-se nas cidades — onde reis e príncipes construíram as suas

cortes, onde moravam os bispos e as grandes colegiadas, onde se instalaram as universidades, onde os burgueses possuíam as suas sedes de negócios/palácios e até os nobres instalaram os seus palácios. Assim, a vida mundana deslocou-se para a cidade.

No mundo urbano, o palácio era a habitação típica das elites (nobres, eclesiásticas e burguesas). De planta quadrangular, ocupava normalmente, pelas suas dimensões, todo um quarteirão. Apresentava ainda, do lado de fora, um aspecto compacto, fechado e maciço (o rés-do-chão possui poucas janelas colocadas a grande altura, pois o mundo urbano continuava a requerer protecção e defesa).

Contrastando com o exterior, as fachadas internas, criadas em torno de um pátio central aberto (cortile), rasgavam-se em elegantes loggias, galerias de arcos redondos, à maneira romana, decoradas com mármores, medalhões de cerâmica esmaltada e peças de estatuária, O pátio era o centro orgânico do palácio, cujas divisões, em cada piso, se desenvolviam quase simetricamente a partir dele; ordenava também os eixos de circulação interior. Os pisos organizavam-se segundo critérios funcionais: o rés-do-chão continha a área de serviços; o primeiro andar, as dependências nobres e sociais (piano nobile); o terceiro, as zonas privadas.

A delicada elegância da loggia reflectia o luxo da decoração interior onde, desde o revestimento das paredes, tectos e chãos, ao mobiliário e todo o equipamento, tudo era tratado com requinte e arte.

Orgulho dos seus proprietários, os palácios eram, igualmente, o símbolo da sua forma de vida. Com efeito, as elites deste período criaram estilos de vida requintados onde o conforto e o luxo se associaram ao gosto pelos prazeres mundanos e espirituais: banquetes, bailes e saraus eram acompanhados por música, poesia ou teatro; bibliotecas e museus privados guardavam objectos raros, relíquias e obras de arte, com fervor de coleccionismo.

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Muitos homens cultos, como Lourenço de Médicis, organizavam tertúlias (algumas apelidadas de academias nas suas casas, para as quais convidavam os mais brilhantes filósofos e literatos da época. Outros, amantes das belas-artes, convidavam artistas, fazendo-lhes encomendas e/ou patrocinando a sua formação, desenvolvendo o mecenato (apoio e protecção à produção intelectual, literária, artística ou científica).

Assim, os palácios reais e das famílias mais ricas e importantes transformaram-se em verdadeiros centros culturais e artísticos, pequenas cortes onde os prazeres da vida, do corpo e do espírito, eram verdadeira mente celebrados.

A. B. C.

Palácio Farneso, obra de Sangallo e Miguel Ângelo, Roma, iniciado c. 1514 Foi inicialmente obra de Sangallo. Miguel Ângelo concluiu-a construindo: o último andar, chamado o andar de ático [C]; a cornija de grandes proporções e muito decorada com aspecto maciço; e a saliente e monumental porta encimada pela janela central do piano nobile [A], ela mesma decorada pelo brasão de família. A fachada, com 56 m, contém janelas em edículas (emolduradas por colunas que suportam frontões), de proporções harmónicas, em paredes lisas. Como se pode verificar na planta [B], as dependências internas comunicam entre si e através de corredores.

Adimari, Mestre de Núpcias, Os músicos – pormenor de uma pintura de meados do século XVI

Tertúlia na corte de Urbino O hábito de todos os cavalheiros desta casa era o de se dirigirem, após o jantar, para a casa da Senhora Duquesa

Elizabeth Montefeltro, onde, entre festas, concertos e da danças havia um salão onde tanto se discutiam elegantes questões, como se entregavam aos jogos engenhosos de sociedade [...]. Algumas vezes nasciam debates sobre diversos assuntos ou então havia despiques de ditos espirituosos. Tinha-se um enorme prazer em tais entretenimentos, porque a casa estava cheia de espíritos notáveis...

Baltasar Castiglione, O Cortesão, 1528

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O Humanismo e a imprensa (Síntese) O Humanismo foi a expressão literária do pensamento e dos valores dos intelectuais do

Renascimento. Os humanistas foram escritores, filósofos e professores que, imbuídos pelo espírito novo do racionalismo, do individualismo e do antropocentrismo e fascinados pelos exemplos dos autores clássicos, gregos e romanos, renovaram o pensamento europeu nas letras, nas ciências e nas artes e produziram um movimento novo — o Humanismo. Este partiu de Itália (onde teve precursores como Dante, Petrarca e Boccaccio) e expandiu-se por toda a Europa.

Amantes da erudição, os humanistas procuraram a Antiguidade nos originais e não nas versões adulteradas da interpretação eclesiástica que a filosofia medieval fizera da Antiguidade. Por isso. pesquisaram nas velhas bibliotecas e nos scriptoria dos mosteiros os manuscritos antigos e leram, em grego e latim clássicos, as obras originais de Platão, Aristóteles, Cícero, Plutarco e outros.

Contudo, para os humanistas, admirar os clássicos não significava copiá-los, quer nos temas, quer nos géneros literários — imitá-los consistia, sobretudo, em recriá-los com espírito criativo e crítico. Assim, a cultura clássica foi entendida como instrumento pedagógico ao serviço do desenvolvimento de capacidades intelectuais, de valores morais, do conhecimento de si próprio e do mundo envolvente, em suma, ao serviço da formação da personalidade humana (antropocentrismo e humanismo).

A valorização da experiência pessoal, da Razão e do espírito crítico (e não apenas do saber livresco e teórico) no processo de descoberta do Homem e do Mundo proposto pelos intelectuais do Humanismo, constitui a consciência da modernidade.

A atenção dada ao seu tempo histórico e aos homens que nele viveram foi visível em muitas obras, onde a utopia e a crítica social e política, bem como a preocupação com a educação dos jovens, foram temas constantes.

Neste campo, ressaltam nomes como os de Baltasar Castiglione (1478-1529), Thomas More, Erasmo de Roterdão, Nicolau Maquiavel, Giorgio Vasari (1511-74), que relatou as Vidas dos artistas italianos mais célebres do seu tempo; e ainda Rabelais (1494-1553) em França e Damião de Góis (1502-1574) em Portugal.

A par das línguas clássicas, os humanistas valorizaram as línguas nacionais, nas quais se notabilizaram autores como Shakespeare (1564-1616), em Inglaterra, e Luís de Camões (1525?-1580) em Portugal.

Optimistas em relação ao mundo, amantes da vida e da beleza, como os clássicos, os humanistas souberam acreditar no homem sem deixar de acreditar em Deus, fazendo uma análise racional, um livre exame, aos dogmas religiosos e à Sagrada Escritura, dando um sentido mais humanista à religião.

Para a rápida difusão do movimento humanista e para o sucesso dos seus autores, muito contribuiu o aparecimento da imprensa. Trazida da China ou inventada por Gutenberg, o que é certo é que a tipografia, a arte da impressão, surgiu na Alemanha por volta de 1440-50 onde foi impresso o primeiro livro, por volta de 1456-58; em Portugal tal aconteceu em 1494.

Até ao século XV, os livros impressos eram, principalmente, de carácter religioso: Bíblias, missais, vidas de santos...A partir do séc. XVI, também se publicaram romances de cavalaria, literatura de viagens, reedição de clássicos, em latim ou grego, livros de medicina, de direito e obras dos humanistas da época.

Os livros, dado o seu preço, eram considerados produto de luxo e propriedade de importantes coleccionadores. Apesar disso, o gosto pela leitura e a paixão pelos livros difundiu-se entre as mentes mais evoluídas da época.

A paixão pelos livros e pelo saber (na lista de compras feita por Salutati a Jacopo da

Scarperia, humanistas Italianos)

Traz tantos livros quantos possas. Faz de maneira que não falte nenhum historiador, nenhum poeta, nenhum tratado sobre fábulas poéticas. Faz-nos ter as regras de versificação. Gostaria que trouxesses toda a obra de Plutão e todos os vocabulários disponíveis, indispensáveis para resolver as dificuldades de compreensão.

compra -me Plutarco, todos os escritos possíveis de Plutarco e um Homero escrito em pergaminho, em caracteres grandes. Se encontrares uma mitologia, compra-a também.

Coluccio Salutati, Carta a Scarperia, em Epistolário, vol. III, século XVI

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Três eminentes humanistas: A. Erasmo de Roterdão (1466-1536), autor de O Elogio da Loucura, uma critica ousada à sociedade e ao clero na procura da definição de um humanismo cristão; B. Nicolau Maquiavel (1469-1527), em Florença, que escreveu O Príncipe onde teoriza o Estado despótico, com base na repressão; C. Thomas More (1478-1 535), em Inglaterra, que relatou A Utopia, criação imaginária de uma sociedade mais igualitária. A. B. C.

A formação de um cortesão

O cortesão — imagem idealizada do Homem do Renascimento (A. Bronzino, Retrato de um

Jovem Cortesão, óleo sobre tela, c. 1530) A tipografia renascentista

funcionava com caracteres móveis feitos numa liga de chumbo, estanho e antimónio. Com esses caracteres, compunham-se manualmente os textos, palavra por palavra, linha por linha. Depois era preciso apertar as linhas e as entrelinhas, tintá-las e prensá-las sobre a folha de papel. Segundo o historiador francês Fernand Braudel, um verdadeiro trabalho de ourives”.

Oficina de impressão cerca de 1530 (iluminura do manuscrito francês Chant Royal ou Divin Savol,)

Que o cortesão Seja, além de nobre, homem de bem, isto é, prudente, bom, corajoso, confiante, belo e elegante. Que a sua principal e autêntica profissão seja a das armas, que saiba todos os exercícios que convêm a um militar. Que o perfeito homem de corte seja alegre, saiba jogar e dançar, que se mostre homem de espírito e seja discreto.

As letras que Deus revelou aos homens são úteis e necessárias à vida e à dignidade do homem. Que o cortesão conheça não só o latim, mas também o grego. [...] Que ele saiba escrever em verso e em prosa, particularmente a nossa língua. Louvá-lo-ei também por saber várias línguas estrangeiras […]. A sua cultura parecer-me-á insuficiente se não tiver conhecimentos de música e não basta que saiba ler a partitura, deve ainda tocar vários instrumentos. [...] Há ainda um aspecto que julgo de grande importância: trata-se da arte do desenho e da pintura. […] Que o nosso homem, de corte seja um perfeito cavaleiro de toda a sela: nos torneios, nos duelos, nas corridas, no lançamento do dardo e da lança. [...] Convém também que saiba saltar e correr.

Baltasar Castiglione, O Cortesão, 1528

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O mecenas Lourenço de Médicis (1449-1492)

Lourenço de Médicis, o Magnífico, num retrato pintado por Vasari

Lourenço teve muitas razões para se sentir privilegiado. Primeiro por ter nascido no seio da família Médicis, uma das mais poderosas da Itália nos séculos

XIV a XVI. Burgueses por nascimento, os Médicis deviam a sua fortuna à boa gestão dos negócios em actividades artesanais, comércio e transporte de mercadorias, actividades cambistas, bancos e outras operações financeiras, um pouco por toda a Europa. A riqueza permitira-lhes um lugar de destaque na chefia política da sua cidade que governaram durante todo o século XV.

Depois, por ter nascido em Florença, uma república oligárquica que usufruía, na época, de um ambiente político e social dinâmico e aberto, propício ao desenvolvimento económico e cultural que fez dela, durante o governo dos Médicis, uma das grandes capitais da Europa.

Educado no palácio da família onde tantos intelectuais e artistas estanciavam, frequentador da Academia Platónica fundada por seu avô em 1459, não faltaram ao jovem Lourenço oportunidades para cultivar o seu espírito, já de si curioso e vivo, animado por uma inteligência acima da média e por grande sensibilidade artística. Tornou-se, desse modo, um homem culto, tendo escrito obras, em verso e em prosa (como Canções e Sonetos e Neucia da Barberini), peças de teatro e cânticos religiosos. Governou Florença com grande sabedoria e com um poder quase absoluto, proporcionando aos seus concidadãos prosperidade, fama e bem-estar.

Amante das letras e das artes, desenvolveu também uma política cultural notável: atraiu à sua corte poetas, pensadores e artistas; fundou tipografias, criou escolas e bibliotecas; coleccionou livros, obras de arte e objectos raros; estimulou os estudos clássicos; renovou arquitectonicamente a cidade e promoveu numerosas festas privadas e públicas, para as quais pediu o concurso de muitos artistas, criando na cidade um ambiente de permanente animação. Apesar da popularidade que o envolveu e da prosperidade que a cidade conheceu, a sua acção governativa sofreu críticas, nos finais do século XV, pela política de ostentação, luxo e alienação que promovera.

Lourenço, por ele mesmo Que poderia haver de mais desejável para um espírito bem formado que a fruição do ócio na

dignidade? É o que todos os homens bons desejam obter, mas que tão-só os grandes homens conseguem. [...] Não posso negar que o caminho que foi o meu quinhão tenha sido árduo e acidentado, cheio de perigos, rodeado de traição. Mas eu me conforto, sabendo que contribuí para o bem do meu país, cuja prosperidade pode agora rivalizar com a de todo outro Estado, por mais florescente que seja. Não estive nunca desatento aos interesses e ao progresso de minha própria família, tendo-me sempre proposto como exemplo de meu avô Cosme que vigiava os seus negócios públicos e privados com uma igual vigilância. Tendo atingido desde agora o objecto de meus cuidados, estou confiante que me será permitido gozar as doçuras do ócio, partilhar a reputação de meus concidadãos, e exultar na glória da minha cidade natal.

Lourenço de Medicis, Cartas

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Benozzo Gozzoli, O cortejo dos Reis Magos, fresco da capela do Palácio dos Médicis, em

Florença, de c. 1459-61

1. Giovanni (ou João) de Médicis (1360-1429). Foi o primeiro dos Médicis a fazer parte do governo de Florença, onde se notabilizou. Dirigiu com grande sucesso a casa bancária da família e foi distinto mecenas (financiou a construção da Igreja de São Lourenço).

2. Cosimo, ou Cosme, de Médicis, Il Vecchio (1389-1464), sucedeu a Giovanni, seu pai, nos negócios da família e no governo oligárquico de Florença, tendo sido um dos seus governantes mais brilhantes e eficientes. Foi, também, um grande mecenas da cidade.

3. Piero de Médicis, Il Gottoso (1416-1469). Foi pior governante que seu pai Cosimo, mas um amante da cultura e das artes, coleccionou manuscritos, livros e moedas antigos, fundou a Biblioteca Médici.

4. Lourenço de Médicis, Il Magnifico (aqui um jovem de cerca de 15 anos)

Curriculum vitae 1449 — Nasce Lorenzo, filho de Piero e de Lucrezia de Médicis, senhores da República de Florença, e

neto de Cosimo ou Cosme de Médicis, um dos maiores governantes da cidade, denominado pelo povo paterpatriae (pai da pátria).

1464 — Viaja pela Europa: França, Nápoles, Milão, Roma... 1469 — Casa com Clarice Orsini, filha de uma família romana. A festa durou três dias. Por morte de seu

pai, Lourenço assume, com seu irmão Julião (1453-78), o governo da cidade. 1478 — Julião morre assassinado numa conspiração preparada pelos Pazzi com o apoio do Papa Sisto

IV. Lourenço escapa miraculosamente. 1480-91 — Lourenço consolida a sua posição no governo de Florença e na cena política italiana,

considerado árbitro absoluto. Fez da sua cidade uma das mais ricas da Europa e o centro cultural mais brilhante do seu tempo. 1492 — Morre passando o poder a seu filho mais velho, Piero (1471-1503), que, dois anos depois, foi

expulso da cidade por incompetência política.

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Lourenço de Médicis, um político e um mecenas

A conduta, a habilidade e a fortuna de Lourenço de Médicis constituíram assunto de admiração

para os príncipes, não só na Itália, mas nos países mais afastados. Matias, rei da Hungria, deu-lhe muitos testemunhos da sua afeição. O sultão do Egipto cumprimentou-o e mandou embaixadores oferecerem-lhe presentes [...]. O Grande Turco entregou-lhe Bernardo Banduri, assassino de seu irmão. Tudo isto lhe concedeu a mais alta consideração na Itália, o que aumentava todos os dias com as provas dos seus dons.

Tinha uma palavra eloquente e espirituosa, decisão ajuizada, execução pronta e corajosa […]. Não se pode falar de vícios que fizessem sombra a tantas qualidades.

Lourenço de Médicis sonhou tornar a sua cidade a mais bela e maior [...]. Como encerrava grandes espaços desprovidos de habitações, fez traçar sobre estes terrenos novas ruas para aí construir edifícios que a tornaram maior e mais bela [...]. Graças a ele, a cidade, quando não estava em guerra, estava perpetuamente em festa, convidada para torneios, para cortejos onde se representavam os mais importantes acontecimentos e feitos da Antiguidade. [...] Acarinhava e estimava todos que eram notáveis nas artes; protegia os homens de letras. […]

O conde Pico dela Mirandola, homem quase divino, atraído pela magnificência de Lourenço de Médicis, preferiu permanecer em Florença, onde se fixou, a viver em qualquer parte da Europa que tinha visitado. Lourenço dedicava-se, sobretudo, à música, à arquitectura e à poesia.

Nicolau Maquiavel, Histórias Florentinas, em Les Mémoires de l’Europe, vol. II [Lourenço de Médicis] tinha adornado os Jardins da Praça de S. Marcos [em Florença] com belas estátuas antigas; a Loggia, as áleas do parque, todas as salas estavam embelezadas com admiráveis estátuas antigas, quadros e mil objectos da autoria dos melhores mestres que tinham vivido em Itália ou no estrangeiro. Todas as obras de arte constituíam não só um incomparável adorno para a sua casa e jardins, mas também uma escola ou academia para os jovens pintores, aprendizes de escultura e todos os que se aplicam ao desenho. [...] Lourenço de Médicis favoreceu sempre os grandes génios, particularmente os nobres dotados para as artes [porque podem mais facilmente alcançar a perfeição e não têm que lutar contra os rigores da corte e contra a pobreza... e não são assim obrigados às necessidades mecânicas que lhes impedem o exercício e a elevação aos cumes da arte] [...] Àqueles que, demasiado pobres, não tivessem podido consagrar-se ao estudo do desenho. Lourenço assegurava os meios de vida e vestuário e concedia grandes recompensas aos que, entre eles, realizavam os melhores trabalhos. Giorgio Vasari, Vidas, c. 1550

Estátua de Lourenço de Médicis na Galeria dos Ofícios, Florença O que interessa saber: • Que características definem a personalidade e a actuação política de

Lourenço de Médicis? • Quais os contributos de Lourenço para a vida da sua cidade,

Florença? • De que modo a sua personalidade e a sua actuação política reflectem

o seu tempo?

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De Revolutionibus Orbium Ccelestium (1543), de Nicolau Copérnico (1473-1543)

Escrita por Nicolau Copérnico — um cónego polaco de saberes

eclécticos (foi advogado, juiz, matemático, médico, cobrador de impostos, chefe militar...) —, De Revolutionibus Orbium Ccelestium é uma obra importante na evolução científica da Humanidade. Foi nela que, pela primeira vez, de uma forma matemática e científica, se expôs e defendeu a teoria heliocêntrica do universo cosmológico (as concepções dominantes ao tempo acreditavam que a Terra era fixa e ocupava o centro do Universo, girando todos os astros à sua volta — geocentrismo).

Copérnico chegou ao heliocentrismo após anos de estudo e investigação, apoiado apenas num quadrante solar (aparelho que media o arco diurno percorrido pelo Sol no horizonte), numa esfera armilar (para determinar a posição dos astros no firmamento) e num torqueton (instrumento para medir com precisão a posição dos astros no céu), já que o telescópio só foi inventado 65 anos após a sua morte, por Galileu. À observação, Copérnico adicionou a análise rigorosa das teorias clássicas, geocêntricas (defendidas por sábios como Pitágoras, Aristóteles, Platão, Ptolomeu, Eudóxio, Apolónio...) e dos estudos que se lhe opunham, como os de Aristarco de Samos (autor da primeira teoria heliocêntrica, em 270 a. C.), Filolau, Heríclides, Rhadir de Sevilha, Nicolau de Cusa, Feuerbach e Johan Müller. Destas análises resultou o seu livro Commentariolus, onde defendia já o heliocentrismo, embora sem demonstração científica. No De Revolutionibus, Copérnico comprova, com complexas, rigorosas e pormenorizadas demonstrações matemáticas, que o Sol é uma estrela fixa e ocupa o centro do Universo, que continuava a considerar (ao contrário das convicções actuais) como fixo e finito, atribuindo-lhe, contudo, maiores dimensões que as que Ptolomeu lhe calculara; e que os outros astros, incluindo a Terra, são planetas e giram em torno de si próprios (movimento de rotação), bem como em torno do Sol (movimento de translação), em órbitas circulares. Comprova ainda que o movimento que estes astros descrevem no firmamento terrestre é apenas aparente e consequência directa dos movimentos da Terra. As conclusões de Copérnico eram contrárias aos saberes empíricos e às teorias dos Antigos e negavam afirmações da Bíblia, pondo em causa alguns dogmas religiosos. Isto valeu-lhe uma enorme polémica e uma forte reprovação da Igreja: primeiro da luterana e depois da Igreja Católica que manteve o De Revolutionibus no Index até 1835. A obra de Copérnico serviu de ponto de partida para as descobertas dos astrónomos Tycho Brahe (1546-1601), Giordano Bruno (1548-1600), Galileu Galilei (1564-1642) e Kepler(1571-1630). Curriculum Vitae 1473 — Nasce em Torun, Polónia. 1491 — Entra na Universidade de Cracóvia. 1495 — Muda-se para Frombork, onde foi nomeado cónego. 1496 — Começa a estudar Direito em Bolonha, Itália, 1500 — Obtém doutoramento em Astronomia, em Roma. 1503 — Doutora-se em Direito Canónico, em Ferrara (Itália). 1512 — Observa Marte. 1520 — Começa a escrever De Revolutionibus. 1524 — Escreve De Octava Sphera, onde critica a obra do astrónomo Johan Werner, Do Movimento da Oitava Esfera. 1529 — Presencia um eclipse da Lua, que relata na sua obra De Revolutionibus. 1533 — A teoria heliocêntrica de Copérnico é discutida no Vaticano. 1535-36 — 1.ª tentativa de publicação de De Revolutionibus, mas o manuscrito perdeu-se. 1542 — Inicia-se a impressão de De Revolutionibus numa oficina de Nuremberga, a

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cargo do luterano Andreas Osiander que introduz alterações na obra. 1543 — De Revolutionibus é impresso. Morte de Copérnico.

Copérnico e o sistema cosmológico heliocêntrico Depois de longas investigações, convenci-me, enfim, de que:

• O Sol é uma estrela fixa, rodeada de planetas que giram à sua volta e dos quais ele é o centro e o facho. • Além dos planetas principais, há ainda outros, de segunda ordem, que giram primeiro como satélites à volta dos seus principais e, com estes, à volta do Sol. • A Terra é um planeta principal (...). • Todos os fenómenos dos movimentos diurno e anual, a sucessão periódica das estações, todas as vicissitudes da luz e da temperatura da atmosfera que os acompanham são resultantes da rotação da Terra à volta do seu eixo e do seu movimento periódico à volta do Sol. O movimento aparente das estrelas é uma ilusão de óptica, produzida pelo movimento real da Terra e pelas oscilações do seu eixo. (...)

Não duvido de que os matemáticos sejam da minha opinião se quiserem dar-se ao trabalho de conhecer, não superficialmente, mas de uma maneira profunda, as demonstrações que darei nesta obra. Se alguns homens superficiais e ignorantes quiserem atacar-me sobre algumas passagens da Escritura, às quais deformamos o sentido, eu desprezo os seus ataques: as verdades matemáticas só devem ser julgadas por matemáticos. Nicolau Copérnico, De Revolutionibus Orbiurn Coelestium, 1543

A Evolução do Pensamento Cosmológico

A. B. Desde as suas origens, a Cosmologia conheceu três momentos em que protagonizou uma mudança na concepção do mundo: uma primeira etapa aristotélica e ptolemaica em que se imaginava um universo geocêntrico, isto é, em que a Terra ocupava uma posição central e estática [A]; outra marcada pela visão heliocêntrica de Copérnico, Galileu, Kepler e Newton [B]; e a actual, baseada na Teoria da Relatividade de Albert Einstein, que descreve o Universo como um todo espácio-temporal, formado por numerosos sistemas planetários. A. A visão geocêntrica do Cosmos, segundo Ptolomeu (repare-se no desenho circular das órbitas dos planetas e na posição secundária do Sol). B. A teoria heliocêntrica, segundo Nicolau Copérnico (Na imagem, gravura da obra de Cellari, Harmonia Macroscópica, de 1661). O que interessa saber: • Qual a importância histórica e científica desta obra? • Quem foi Copérnico e como atingiu todos estes conhecimentos? • Por que foi esta obra tão polémica no seu tempo?

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As Artes do Renascimento e Maneirismo

Arte de síntese, a do Renascimento? […] Os artistas do Renascimento possuíam uma técnica superior à dos Antigos e não ignoravam este facto. Os pintores da Grécia e de Roma não utilizavam a pintura a óleo, embora encausticassem painéis de madeira. É verdade que, em Pompeia, nos séculos II e I antes da nossa era, tentaram estudos de perspectiva; mas Pompeia ficou escondida dos olhares da Humanidade até ao século XVIII. Os estudos dos Flamengos e, mais ainda, dos Italianos do Quattrocento, em matéria de pintura, tiveram, pois, carácter inédito. As pesquisas de Masaccio, Piro della Francesca, Paolo Ucello, Leonardo e os estudos teóricos de Alberti e dos matemáticos Manetti e Pacioli permitiram aos pintores, a partir do início do século XVI dispor de uma técnica que se pode dizer perfeita [...]. Seguros do seu talento e dos seus processos, como é que os artistas do Renascimento não haviam de fazer obra original? Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Editorial Estampa A. B.

Piero della Francesca, A Flagelação, 1465 (têmpera sobre madeira, 59 x 81,5 cm) Esta obra representa as ideias que Della Francesca descreveu nos seus

tratados sobre geometria e perspectiva. O espaço arquitectónico circundante dá ao autor a possibilidade de enquadrar a cena religiosa numa autêntica câmara óptica, subdividida em paralelepípedos que se “escalonam” com uma exactidão milimétrica [B]. Todas as linhas convergem num ponto crucial (ao lado do flagelador), para o qual o olhar é atraído e tudo é ritmado em função de valores matemáticos preestabelecidos. As colunas dividem o espaço em duas partes ritmadas

C. de acordo com a secção áurea, considerada pelo pintor como garantia de uma beleza harmoniosa. A perspectiva é o reflexo da harmonia que rege a Criação; é o produto de uma racionalidade superior e divina que sanciona o acordo perfeito entre o Homem e a Natureza. A luz é tida como elemento capaz de configurar as pessoas numa materialização absoluta, quase escultórica [C]. O ambiente é de tipo clássico, mas as vestes são renascentistas [A].

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Masaccio, O Pagamento do Tributo, c. 1427 (247 x 597 cm, fresco na Capela Brancacci, Florença) Nesta obra, Masaccio relata a parábola do Tributo justapondo três momentos sucessivos do tema numa única representação espacial. Aliada à inovação compositiva, realce-se ainda a descrição plástica e humanística das personagens, criando um realismo dramático à maneira de Giotto. A história começa no centro, onde, de entre todos, Cristo ordena a Pedro que vá pescar; na boca do peixe, este encontrou a moeda necessária para pagar o tributo exigido pelo barqueiro (único personagem de costas): no lado esquerdo Pedro cumpre a ordem e no lado direito paga ao barqueiro.

O Homem, unidade de medida A pintura renascentista enquanto exercício intelectual

Tendo corno ponto de partida a cultura e a arte da Antiguidade Clássica, o artista do Renascimento procurou urna formação mais humanista e científica. como afirmava Ghiberti (1378-1455) ao propor que o pintor e o escultor estudassem também Geometria, perspectiva, teoria da elaboração de projecto, aritmética, gramática, Filosofia, História, Astronomia, Medicina e Anatomia de modo a poderem expressar bem a sua arte. O conteúdo e a finalidade da Arte era a beleza entendida como representação objectiva da realidade. Tal atingia-se com o conhecimento e a cópia da Natureza, conseguidos pela dedução de regras racionais e soluções científicas para a criação de Cânones, representações e técnicas. A pintura era “cosa mentale”, Como Leonardo definiu. A pintura italiana do início do Quattrocento (século XV), ainda muito marcada pela arte de Giotto e pela do Gótico Internacional (e dada a falta de modelos antigos), apresenta características muito próprias e inovadoras, tanto técnicas como estético-formais e temáticas. A primeira e mais retumbante conquista técnica foi a de perspectiva (Arte de representar o espaço tal como se apresenta à vista, com tridimensionalidade e profundidade virtuais), rigorosa e científica, que permitiu a construção do espaço pictórico segundo as leis da óptica, das proporções geométricas, da exactidão matemática e do tratamento da luz, de um modo coerente e integrador. A segunda e mais tardia foi a introdução da pintura a óleo, técnica importada da Flandres e das cidades alemãs que, nesta fase, conviveu com o fresco e a têmpera. A pintura a óleo, porque tem um tempo maior de secagem, permitiu a elaboração de modelados (Técnica utilizada na pintura para obter, através de gradações cromáticas a completa ilusão da volumetria; no desenho, é conseguido pelo sombreado) e de velaturas (técnica de pintura que simula as transparências), pormenorizando a representação com obtenção de brilhos e reflexos intensos de grande vivacidade cromática, tão necessários ao verismo procurado pelos pintores renascentistas. Com a utilização de novos aglutinantes, as tintas tornaram-se mais homogéneas e pastosas, possibilitando gradações de cores, de modo a produzirem uma atmosfera e uma luminosidade corpóreas, concretas, que envolvessem os objectos e ajudassem a construir os espaços e a modelar os corpos.

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A terceira foi a divulgação do uso do papel e o aparecimento das telas e dos cavaletes, que facilitaram a criação e a feitura das obras. Quanto às inovações estéticas e formais, estas observam-se na harmonia, equilíbrio, realismo anatómico e beleza contidos nas figuras, revelando o estudo e o desenho da estatuária da Antiguidade Clássica. À temática religiosa cristã, a predominante, acrescentaram-se os temas mitológicos ou ligados à literatura clássica. Vulgarizaram-se os temas marianos e a representação dos doadores junto das imagens. Os temas laicos, como o retrato, o nu e a paisagem são, neste campo, as grandes inovações. O retrato devido ao individualismo de homens e mulheres poderosos que pretendiam a eternidade; o nu, pela influência da arte clássica, onde o belo era a nudez natural; e a paisagem, dado o gosto pela cópia e pela idealização da Natureza. A pintura do século XV ficou marcada por diferentes individualidades artísticas. Pintores como Masaccio, Luca Signorelli (c. 1441-1523), Paolo Uccello, Piero della Francesca e o veneziano Andrea Mantegna foram vanguardistas, realistas interessados pelo estudo da anatomia, da perspectiva e do volume, entendendo a arte da pintura como um objecto de aprendizagem e reflexão constantes. Outros, marcados pela tradição gótica, foram mais líricos e místicos, com uma figuração que mantinha um tratamento natural e uma perspectiva ainda empírica, como Fra Angélico, Fra Fillippo Lippi (c. 1406- -1469) e Sandro Botticelli. Outros, ainda, como os pintores venezianos, exaltaram a cor e o movimento, caso de Giovanni Bellini (1432-1516) e de Antonello da Messina (c. 1430-1479). Analisemos alguns destes pintores: — Fra Angélico (1395-1455) revelou grande austeridade religiosa nos temas, porém as figuras, delicadas e estilizadas, expressam uma fé veemente. A sua pintura possui um intenso cromatismo feito com cores luminosas e douradas. Apesar disso, utiliza a perspectiva empírica, o que se constata pelo tratamento do espaço arquitectónico; Fra Angélico, A Anunciação, c. 1430, Igreja de S. Domenico de Cortona, Itália O sentido espiritual do conjunto deste fresco sobrepõe-se ao rigor da perspectiva e é dado pela simplicidade das personagens e reforçado pelo delicado cromatismo. A cena principal passa-se numa loggia, que apresenta pouca decoração arquitectónica. Ao lado, a expulsão de Adão e Eva do Paraíso alude ao tempo bíblico. Denote-se a descrição pormenorizada da Natureza. — Paolo Uccello (1397-1475) trabalhou com o escultor Ghiberti e pintou um ciclo de murais sobre A Batalha de San Romano. Nestas obras nota-se o estudo científico da perspectiva: as figuras e os objectos têm alguma geometrização e ocupam todo o espaço numa composição cénica complexa; realçam-se os escorços dos cavalos e a orientação das lanças que dão as linhas perspécticas e criam ritmo; Paolo Uccello, A Batalha de San Romano, c. 1452-57 (183 320 cm, têmpera sobre madeira) Esta obra cumpre os princípios da perspectiva científica, estando as figuras distribuídas em diferentes planos. A cena, muito complexa, apresenta constantes mudanças cromáticas que intensificam a sensação de dinamismo. As lanças partidas, no chão, estão em diferentes direcções, mas vão dar ao ponto de fuga.

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— Masaccio (1401-28) foi o iniciador do Renascimento na pintura. Combinou a espiritualidade realista de Giotto com a aplicação da perspectiva empírica e serviu-se da luz e da sombra para obter o volume e as massas dos corpos solenes que pintou. A composição possui um sentido naturalista de que fazem parte a luz ambiental, os elementos arquitectónicos e a paisagem; — Piero della Francesca (1415/20-1492) contactou com o arquitecto Alberti. A sua linguagem imagética, estilizada, apresenta figuras monumentais, solenes e hieráticas, em paisagens quase líricas, mas de grande rigor na composição geométrica. Denota-se a presença da luminosidade que materializa as figuras e os elementos arquitectónicos perspectivados;

Sandro Botticelli, Alegoria da Primavera, c. 1482 (314 x 203 cm, têmpera sobre madeira) Baseado, possivelmente, no poema de Policiano, Botticelli descreveu a chegada da Primavera. Começando pelo lado direito, vemos o vento quente da Primavera, Zéfiro, com asas, perseguindo e envolvendo a ninfa Clóris que se transformará na deusa Flora. No centro, a deusa Vénus está ladeada de laranjeiras e, por cima dela, o seu filho Cupido, de olhos vendados, lança setas para as Três Graças (que parecem representar as três fases do amor: a beleza, o desejo e a realização). No extremo esquerdo, Mercúrio, o mensageiro dos

deuses, afasta as nuvens. Mantegna, Cristo Morto, c. 1480 x 81 cm, têmpera sobre tela) Esta representação de Cristo, em escorço, é uma das mais audaciosas pelo modo como o artista utiliza a perspectiva, pela cor que a sublinha, pelo verismo do desenho e pelo realismo dorido, quase cruel, também patente nas feridas dos pés e das mãos. A figura de Cristo adquire uma solidez semelhante a uma escultura modelada a cinzel. — Andrea Mantegna (1431-1506) destacou nas suas obras o volume escultural das figuras, quase monocromáticas, acentuadas pelo domínio do conhecimento anatómico e pela aplicação da perspectiva. Pintou formas arquitectónicas de um modo majestoso e em construções perspécticas imponentes, como no fresco do tecto da Câmara dos Esposos (1474) do Palácio Ducal de Mântua; — Sandro Botticelli (1445-1510) defendeu a prevalência do desenho sobre a modelação, criou corpos esguios e graciosos, integrados em harmoniosas composições; a perspectiva não é científica e a paisagem serve apenas de enquadramento. Fez uma série de pinturas de carácter mitológico, relacionadas com o amor físico e espiritual. A temática religiosa esteve também presente em obras como A Anunciação a Maria (1489-90).

Leonardo da Vinci, A Última Cela, numa das paredes do refeitório do Convento de Santa Maria da Graça, Milão, 1495-98 (óleo sobre têmpera sobre gesso, 420 x 910 cm) Tema antigo, mas com uma nova vivacidade na composição (vários momentos num só momento), é de uma perfeição absoluta na organização perspéctica, nos ambientes, nas cores, na luz, na constituição dos grupos dos Apóstolos e nas suas atitudes (“apanhados” como numa fotografia), ao ouvirem Cristo dizer: Um de vós me trairá.

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Miguel Ângelo, A Sagrada Família, 1504 (tondo com 120 cm de diâmetro, têmpera sobre madeira) Numa forma piramidal, a Virgem, S. José e o Menino ocupam o primeiro plano; no muro, S. João Baptista Menino, e num plano mais recuado, figuras nuas da Antiguidade pagã — num entendimento entre dois mundos. A forma escultórica das figuras está marcada pelo desenho e pelo claro-escuro.

A segunda fase do Renascimento, na viragem para o século XVI, especialmente até 1520, foi designada por Vasari como Alto Renascimento ou Perfeito Renascimento, por nele se atingir o auge das pesquisas e inovações, do equilíbrio e da maturidade, assim como uma linguagem sistematizada.

Foi a época dos mais prodigiosos artistas de sempre como Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo e Rafael. Iniciada em Florença, teve em Roma o seu foco principal, dado os grandes projectos arquitectónicos que os Papas desta época se propuseram realizar.

A arte, cheia de autoconfiança, caracterizou-se pela harmonia, pela graciosidade, pelas proporções com base na forma humana, por uma maior expressividade e pela ligação à Ciência. Assim, houve:

• um crescente entendimento da Natureza e da capacidade para a reproduzir artisticamente, como o provam os estudos efectuados por Leonardo da Vinci e por Giorgione;

• um maior conhecimento e compreensão da anatomia (dada a necessidade de representar o Homem e em particular o nu) como o fizeram Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo; e das características psicológicas, como o fez, sobretudo, Rafael;

• progressos na pintura a óleo que permitiram o uso mais subtil da cor, da luz e da sombra, assim como as ilusões de óptica. Para tal contribuíram a técnica do sfumato (Técnica utilizada par Leonardo da Vinci, que consiste numa transição da luz/sombra tão gradual que tornava os contornos das formas quase imperceptíveis), criada por Leonardo da Vinci, o colorido forte e equilibrado de Rafael e, especialmente, a luz/cor dos pintores venezianos;

• e uma melhor compreensão da perspectiva, da matemática e da óptica que conduziram a pintura a um maior domínio das relações espaciais e a alguma monumentalidade, como se nota nas obras A Última ceia (1495-98), de Leonardo, e A Escola de Atenas (1508-11), de Rafael.

Miguel Ângelo Buonarroti (1475-1564), escultor,

arquitecto, pintor e poeta, autor de Rimas, criou uma obra de cunho muito próprio que evoluiu do Renascimento Pleno para e Maneirismo. As suas figuras apresentam escorços e estruturas escultóricas e expressam monumentalidade, movimento, tensões turbulentas e ansiedade. Nos frescos da capela Sistina, estão representadas mais de 343 figuras, o que lhe exigiu um grande esforço intelectual e físico, pela localização, pela falta de luz e pelo complexo programa iconográfico: relata a História Sagrada (segundo o Antigo Testamento — a Criação cio Mundo, do Homem e da Mulher por Deus e os mais conhecidos episódios da História bíblica até ao Dilúvio) intercalada e ritmada por figuras bíblicas, as sibilas e os profetas, e por elementos arquitectónicos simulados.

Em 1535, ainda na Capela Sistina, pintou na parede do altar-mor O Juízo Final, um turbilhão de figuras dramáticas, onde também se retratou.

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Miguel Ângelo, Juízo Final, 1535 (fresco cobrindo toda a parede do altar da Capela Sistina, 13,70 x 12,20 m) O tema representado e o modo como está expresso denotam um cunho maneirista. A figura de Cristo, acima e ao centro, possui um intenso movimento de rotação que anima toda a superfície. As figuras, de corpos musculados, escorços escultóricos, olhares e atitudes expressivos e os intensos contrastes de claro-escuro imprimem grande tensão ao conjunto. Sabe-se que Miguel Ângelo se baseou na Divina Comédia e noutros

conhecimentos teológicos, históricos e filosóficos para a criação desta grandiosa obra.

Miguel Ângelo, Tecto da Capela Sistina, 1508-12 (diagrama e panorama geral) 1. A Criação da Luz; 2. Criação das Estrelas e dos Planetas; 3. Separação da Terra e da Água; 4. Criação de Adão; 5. Criação de Eva; 6. Queda em Desgraça; 7. Expulsão do Paraíso; 8. Dilúvio; 9. Embriaguez de Noé; 10. Judite e Holofrenes; 11. David e Golias; 12. A Serpente Astuta; 13. O Castigo de Amã; 14. Jeremias; 15. A Sibila da Pérsia; 16. Ezequiel; 17. A Sibila da Eritreia; 18. Joel; 19. Zacarias; 20. A Sibila de Delfos; 21. Isaías; 22. A Sibila de Cumas; 23. Daniel; 24. A Sibila da Líbia; 25. Jonas; 26. a 39. Os Antepassados de Cristo e cenas do Antigo Testamento; 40. O Juízo Final.

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Rafael, A Escola de Atenas, 1510-11 (7,7 m de base, fresco) A cena desenrola-se na Academia de Platão onde se encontram vários filósofos da Antiguidade, cujos rostos representam contemporâneos de Rafael, como: Platão (com o rosto de Leonardo da Vinci), Euclides (com o rosto de Bramante), Heráclito (com o rosto de Miguel Ângelo). O próprio Rafael se retrata com um barrete preto, inserido num grupo à direita. O ambiente arquitectónico é o projecto de Bramante para a Basílica de S. Pedro, pintado segundo as rigorosas regras da perspectiva. Numerosas esculturas de deuses da Antiguidade, em fingidos nichos, ocupam as paredes.

Rafael (1483-1520) criou um desenho com grande força estático-contemplativa, equilíbrio, elegância e serenidade. As Virgens ou Madonas, as Anunciações e as Sagradas Conversaciones (uma cena com várias figuras, em diferentes colocações perspécticas, numa única composição) constituem a sua mais conhecida iconografia. As Madonas, com olhos cândidos e sorrisos leves, são figuras poéticas, serenas, refinadas e doces, representadas em esquemas compositivos piramidais.

Destaca-se também a pintura veneziana que atingiu grande notoriedade na decoração de interiores dos palácios. A espectacularidade das festas organizadas pela burguesia rica contribuiu para uma produção artística que privilegiava a cor brilhante e que contemplava a paisagem em detrimento de outras temáticas. Entre os pintores venezianos, destaca-se Giorgione (1477-1510) que foi perito no tratamento da paisagem, real e humanizada, tornada assunto principal, como em O Concerto Campestre e A Tempestade. Mas o pintor de maior renome foi Ticiano (1490-1376), famoso retratista que valorizou a cor e a luz em detrimento da perspectiva. Foram estes pintores, com a sua tendência para a composição complexa e movimentada e para a exaltação cromática, que fizeram a transição para o Maneirismo.

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Giorgione, A Tempestade, 1507-8 (82 x 73 cm, óleo sobre tela) As figuras são secundárias e apenas povoam a paisagem. A tela conta uma história mitológica; atrás da mulher há construções e do homem há ruínas.

Ticiano, A Vénus de Urbino, 1538 (119 x 165 cm, óleo sobre tela) Num aposento íntimo, Vénus, descrita como uma cortesã, fixa o espectador com um olhar sonhador. O ambiente é completado pela presença de um cão e de duas figuras femininas. Executada com grande mestria técnica e artística, esta Vénus mostra um contraste delicado entre a carnação e o brilho dos tecidos que a rodeiam.

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A arquitectura renascentista como metáfora do Universo

A arquitectura do Renascimento é descendente natural da arte da Antiguidade Clássica e herdou dela os princípios fundamentais da harmonia e do equilíbrio. Os arquitectos estudaram os clássicos através da observação e do estudo directo de monumentos dessa época (como o Coliseu e as suas ordens clássicas, o Panteão e a sua cúpula, os arcos de triunfo e a sua simbologia, as termas e as suas abóbadas), mas também através dos tratados de arquitectura clássica, como o de Vitrúvio, Os Dez Livros de Arquitectura, século 1 a. C. Assim, criaram urna arquitectura monumental e vinculada ao princípio da colocação do Homem como centro e medida de todas as coisas. Na arquitectura religiosa, no século XV, relevamos Fillippo Brunelleschi (1377-1446), desenhador, ourives, escultor e criador de mecanismos de engenharia. Mas foi como pintor, ao representar o baptistério de Florença, a partir de um único ponto de visão, que deu o seu contributo para a invenção da perspectiva rigorosa. A partir de 1420, em Florença, Brunelleschi, como arquitecto, projectou e executou a cúpula da catedral gótica de Santa Maria das Flores, o Hospital dos Inocentes , a Capela dos Pazzi e as igrejas de S. Lourenço e do Espírito Santo, entre outras obras. Nelas iniciou o regresso à estética greco-romana e pôs em voga a simetria e o uso constante do módulo de base. B. – Planta

A.–Perspectiva em corte

Brunelleschi, Capela Pazzi A capela foi estruturada segundo formas geométricas puras: quadrados e círculos [B]. É antecedida por um pórtico e coberta com uma cúpula sobre pendentes. Internamente é decorada com medalhões de terracota vidrada da autoria de Luca della Robbia [A].

Brunelleschi, Hospital do Inocentes, Florença, 1420, perspectiva das arcadas O intercolúnio dos arcos é igual ao espaço entre a coluna e a parede (proporções modulares); o arco redondo e a coluna adelgaçada tornaram o espaço mais elegante (regras formais). Com a ajuda dos tirantes, as forças distribuem-se pelos pilares (meios técnicos). Tudo na procura das regras da composição arquitectónica.

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Brunelleschi, cúpula de Santa Maria das Flores, Florença, 1418-36 A cúpula de Brunelleschi, na Catedral de Florença, foi uma das primeiras obras arquitectónicas do Renascimento — tempo de racionalismo e de afirmação. É um trabalho de engenheiro, mais do que de arquitecto, pois Brunelleschi concebeu inovadores meios técnicos e construtivos que atenderam à resistência das estruturas, à repartição das cargas, ao peso dos materiais e às condições de trabalho e de segurança dos operários. Assim, foi construída sobre uma base octogonal, sem andaimes no solo, pois estavam colocados num estrado de madeira, sobre o alto tambor. A cúpula possuía dois cascos da mesma espessura — o interior [1], mais pequeno, com tirantes metálicos; e o exterior [2] mais alto — que exerciam no interior uma força vertical. Nestes foi usado o tijolo (para aligeirar o peso), colocado em escamas de peixe (cada camada de tijolo avançava um pouco para dentro, dando forma à cúpula) e numa fiada completa, para que cada nova fiada fosse suportada pela anterior. Assim foi possível elevar a cúpula através de uma série de anéis horizontais e de nervuras longitudinais e sem a tradicional armação de madeira interior. As nervuras contribuíram para dar a sensação de leveza e também serviram para sustentar a lanterna, que encimava a cúpula. Eis o modelo que, pela sua pureza de formas, levará Miguel Ângelo a dizer da de S. Pedro de Roma: “Maior poderá ser, mas não a mais bela”. A Brunelleschi (1377-1446) – foi o descobridor da designada perspectiva paralela. Esta perspectiva caracteriza-se pela existência de um ponto de fuga central situado sobre a linha do horizonte. Mas se Brunelleschi foi o “engenheiro”, Leon Battista Alberti (c. 1404-72) foi humanista, arquitecto, urbanista, teórico da arquitectura e autor de tratados sobre: pintura — Della Pintura (1436) — que contém a primeira descrição da construção da perspectiva; escultura — De Statua; e arquitectura — De Re Aedificatoria — onde, inspirado por Vitrúvio, descreve os princípios da arquitectura e do urbanismo. Alberti via a arquitectura como uma actividade cívica, ao serviço e à medida do Homem O seu racionalismo arquitectónico traduziu-se pela preferência de formas geométricas puras, o espaço circular. Na construção do Templo Malatestiano, 1450, em Rimini, usou a forma do arco de triunfo romano, baseando-se num existente na cidade. Mais tarde, aplicou-a na Igreja de Santo André, em Mântua, na fachada e nas arcadas da nave. Esta estrutura, contínua e lógica, assim como as colunas colossais (onde a altura da coluna ou pilastra atinge vários andares) serviram de modelo para as construções do século seguinte. Também é de Alberti a reconstrução da fachada da Igreja de Santa Maria Novela, em Florença. No século XVI — Alto Renascimento —, na arquitectura religiosa, afirmou-se como modelo mais comum a planta centrada coberta por uma ou várias cúpulas. Esta foi vulgarizada por Donato Bramante (1444-1514), arquitecto, engenheiro e pintor, que a utilizou no Tempieto de São Pedro, em Montório, e no projecto da Basílica de São Pedro, em Roma. Miguel Ângelo Buonnaroti (1475-1564) utilizou a mesma planta para outro projecto na mesma basílica. Ambos são tidos como os criadores da arquitectura do Alto Renascimento pelos seus papéis na construção desta basílica.

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Alberti, fachada da Igreja de Santa Maria Novella, Florença, c. 1455-60 O desenho que Alberti fez para a sua reconstrução foi executado por meio de traçados geométricos rigorosos. A solução das aletas ou volutas permitiu disfarçar a verticalidade gótica da fachada primitiva, conseguindo, assim, a articulação entre os dois corpos da igreja: o central mais alto que os laterais.

A Alberti, fachada [A] e planta [B] da Igreja de Santo André, em Mântua, 1470 Construída sobre uma plataforma ou pódio elevado, apresenta uma fachada com um frontão que se inspira nos arcos de triunfo. Possui planta de igreja-salão, com capelas laterais. Bramante morreu antes de as paredes da basílica de São Pedro terem sido levantadas e Miguel Ângelo, continuando a sua obra só a partir de 1546, aplicou a ordem colossal da fachada e desenhou a cúpula. Quando Miguel Ângelo morreu, em 1564, só o tambor da cúpula estava construído. Assim, em termos estruturais, a arquitectura religiosa do Renascimento evoluiu, a partir do século XV, do uso da planta basilical em cruz latina para plantas quadradas ou de cruz grega e centrada na procura da perfeição e do absoluto. Estas soluções surgiram, primeiro, em pequenos templos e, depois, em plantas intermédias onde a cabeceira seguia o modelo de planta centrada, mas o corpo principal se alongava e as naves laterais se transformavam em pequenas capelas. É o caso da Igreja de Santo André de Mântua, de Alberti. A partir do segundo quartel do século XVI, e seguindo as orientações do Concílio de Trento, foi imposto o tipo de igreja de nave única, criando a visão do espaço absoluto. As paredes finas eram locais privilegiados para a colocação de elementos decorativos — pintura e decoração escultórica. Para a cobertura usaram-se abóbadas de berço e de aresta e preferencialmente as cúpulas. A fachada e o portal eram entendidos como a entrada triunfal e, por isso, relevados. A decoração subordinava-se à estrutura dos edifícios e era através dela que os arquitectos individualizavam a sua obra. Os elementos decorativos usados eram retirados da gramática clássica, sendo mais estruturantes que escultóricos. A B

Projectos para a Basílica de S. Pedro, em Roma: A. de Bramante, 1506; B. de Miguel Ângelo, 1546

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Bramante, Tempieto de S. Pedro, em Montória, Roma, c. 1502 Bramante, em vez de repetir os temas da Antiguidade Clássica, utilizou os conhecimentos sobre a perspectiva e o volume para criar este edifício harmonioso e elegante. A sua forma volumétrica faz lembrar o templo romano dedicado a Vesta. Neste pequeno templo, o arquitecto usou colunas dórico-

toscanas, um pódio contínuo de três degraus, balaustrada, corpo cilíndrico central com nichos encravados e uma cúpula semiesférica. O pátio circundante foi projectado de novo mas o seu plano nunca chegou a ser executado.

Miguel Ángelo, Praça do Capitólio, Roma, começada em 1546 Miguel Ângelo transformou o cimo do Monte Capitólio numa praça trapezoidal [A], com três dos quatro lados delimitados por fachadas de palácios. O Palácio dos Senadores situa-se no topo da praça [B-1]. O Palácio dos Conservadores [B-2], que já existia e ao qual Miguel Ângelo alterou a fachada, está à esquerda e o Palácio Novo ou Museu Capitolino [B-3], à direita. Este tem uma fachada igual à dos Conservadores. Ambos têm um pórtico com pilastras lisas da ordem colossal, pequenas colunas jónicas de escalas diferentes e uma cornija encimada por uma balaustrada. No centro da praça fica a estátua equestre romana de Marco Aurélio, em bronze, sobre um pedestal (esta obra de Miguel Ângelo) e no pavimento de mármore desenhos de elipses com losangos irregulares radiantes [A]. A praça é rematada por uma monumental escadaria. A B No século XVI, a decoração tornou-se mais sóbria conferindo monumentalidade e grandeza aos edifícios. A decoração do interior consistia em pinturas murais, retábulos e ornamentação em estuque. Na arquitectura civil a construção mais significativa foi o palácio enquanto representação e exaltação do Homem. De Florença, a arquitectura palaciana difundiu-se para Roma com o mesmo aspecto severo. Em Veneza e Verona estas construções são mais alegres e festivas, ornamentadas com entablamentos e colunas decoradas. Eram edifícios essencialmente urbanos, mas também rurais. Seguiram de perto as construções religiosas quanto aos princípios estéticos (simetria, regularidade, alinhamento, proporções) e por isso apresentavam: um traçado rigoroso e geométrico, com volumetrias cúbicas e paralelepipédicas, fachadas rectilíneas segundo a regularidade ortogonal que, acentuando a horizontalidade, davam forma ao conjunto — a caixa; no interior, têm um pátio e, no exterior, as fachadas são em silharia rusticada (pedra não lavrada) no rés-do-chão e nos outros andares pedra almofadada ou lisa e com janelas alinhadas; a porta central ganha importância com a decoração. São exemplos os palácios de Rucelai, de Alherti, e o dos Senadores, de Miguel Ângelo. Nas villae, ou palácios rurais, persistiram a simetria, o rigor geométrico, a imitação de fachadas antigas e o ideal das plantas centradas. Inseriam-se em jardins e parques e a decoração era alusiva aos locais onde os palácios se edificavam. Um dos melhores exemplos é a villa Rotonda de Andrea Palladio, representante da arquitectura tardo-renascentista veneziana.

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Andrea Palladio, Villa Rotonda, Vicenza, meados do século XVI

Donato Donatello, busto de Nicola de Uzano, século XV (terracota policromada) O realismo da representação não escondeu a fealdade do modelo, mas acentuou-lhe a expressividade.

A. Estátua equestre de Marco Aurélio (escultura romana, séc. II d. C.)

B. Donatello, estátua equestre de Gattamelata, 1447-53 (340 cm de atura)

C. Estátua equestre de B. Colleoni C. Verrocchio, 1479-88

Se se compara a estátua equestre do condottiero Gattamelata, em Pádua, com o monumento a Corlleoni, de A. Verrocchio, em Veneza, podemos seguir claramente o caminho que a arte da escultura percorreu no século XV. Do Gattamelata irradia uma confiante serenidade que recorda o equilíbrio da estátua clássica romana de Marco Aurélio, no Capitólio. Sem nenhuma relação com a arquitectura, a estátua, em bronze, ergue-se livremente sobre o alto pedestal. Cavalo e cavaleiro fundem-se numa unidade e formam urna composição fechada em si mesma e serena. Verrocchio abandona intencionalmente esta serenidade no seu Corlleoni, onde tudo é mais intenso e momentâneo. O cavalo parece mais fogoso, mas também mais inquieto; o seu movimento de cabeça é absorvido pelo acentuado movimento contrário do cavaleiro, que se ergue sobre os estribos. O rosto contrai-se numa expressão altiva e os movimentos parecem mais angulosos. Como na pintura, também aqui se percebe, em vésperas do classicismo do século XVI, uma certa tendência para a exacerbação. Ursula Hatje (dir. de), Historia de los Estilos. vol. II. Ediciones Istmo

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Lorenzo Ghiberti, excertos de Porta do Paraíso, 1425-52 (relevos em bronze dourado, 80 x 80 cm) Em pequenos espaços quadrangulares o escultor conseguiu representar cenas complexas, com muitas personagens, graduando planos e obtendo tridimensionalidade, o que demonstra as qualidades técnicas e artísticas do autor.

O desenho projectual na escultura: Pollaluolo, estudo à pena para o monumento equestre dedicado a Francesco Sforza, 1480-85 A B

A estrutura geométrica das composições escultóricas renascentistas: A. Esquema compositivo da Pietá, de Miguel Ângelo. B. Esquema estrutural do David, de Donatello.

A escultura renascentista. Entre o Gótico e o retorno ao Antigo

A escultura renascentista foi fruto de um processo evolutivo gerado durante a arte gótica e aperfeiçoado pelos contactos que os artistas italianos foram mantendo com a arte clássica da Antiga Roma, cujos vestígios, principalmente os escultóricos, perduravam ainda por toda a Itália em museus, igrejas e colecções privadas. Tendo nascido em Itália no século XV, mais propriamente em Florença através do talento individual de escultores como Lorenzo Ghiberti e Donato Donatello, a escultura renascentista atingiu o seu apogeu no século XVI através daquele que foi, talvez, o maior escultor de todos os tempos — Miguel Ângelo. Seguindo a herança clássica e levados pelo humanismo e individualismo do seu tempo, os escultores do Renascimento interessaram-se sobretudo pelo Homem, medida de todas as coisas, e representaram-no com fidelidade visual, quer nos seus aspectos físicos e anatómicos (ossatura, músculos, proporções, modelação de formas...), quer nas suas capacidades expressivas (movimentos, gestos, rostos, sentimentos, sensualidade). Deste interesse renasceu a prática do nu, género escultórico preferido por todos os artistas deste período, e também a do retrato, procurado por burgueses, nobres, eclesiásticos e políticos desejosos de fama e glória. O retrato conheceu várias formas: em corpo inteiro, em cabeça e busto, em efígie e também em estátua equestre. Inovação relevante foi o facto dos artistas usarem como modelos, não só as obras clássicas, mas, especialmente, homens e mulheres do seu tempo, modelos vivos, mesmo que estes se destinassem a representar figuras alegóricas, mitológicas ou até sagradas. Com frequência, esculpiram contemporâneos seus e inseriram nas suas obras pormenores da actualidade da época, como trajes, jóias, cortes de cabelo...

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Original foi a metodologia empregue que começa pelo desenho projectual, pelo qual, seguindo as regras da Geometria, da perspectiva, da anatomia..., se estudavam as formas, posições e movimentos. A seguir fazia-se o modelo em escala reduzida, de barro, gesso ou cera; corrigiam-se algumas imperfeições e passava-se ao modelo de tamanho natural e deste à obra final. Assim, foi possível obter composições geometricamente organizadas, conseguir mais naturalismo e realismo na estatuária de grupo e enquadrar correctamente as cenas nos relevos, graduando as imagens por planos e conseguindo noções perfeitas de profundidade, tridimensionalidade e perspectiva. Outra novidade foi a completa autonomização da escultura em relação à arquitectura, seu habitual suporte e enquadramento. Tal deve-se ao regresso à simplicidade estrutural clássica que a arquitectura desta época pretendeu realizar. Esta libertação levou os escultores a valorizarem a escultura de vulto redondo em detrimento do relevo e a utilizarem a escultura como monumento individual, exposto livremente no meio das praças, jardins ou edifícios públicos e privados. A independência da escultura tornou os artistas mais livres para criar e conceber as suas obras (apesar de ainda serem significativas as limitações impostas pela encomenda), às quais atribuíam um cunho próprio e individual que os distinguisse e os fizesse sair do anonimato. Este cunho próprio residia, principalmente, na concepção da obra — a ideia criadora — que agora se sobrevaloriza, atribuindo a cada peça um novo valor, subjectivo, o da autoria. O século XV — o Quattrocento, ou 1.º Renascimento — foi um período marcado por grande produção escultórica e por um desejo de perfeição e realismo técnico e formal. Para tal contribuiu Lorenzo Ghiberti (1378-1455), um homem da transição entre o Gótico e o Renascimento. A sua obra, já com influências clássicas, é caracterizada, sobretudo, pelos relevos, entre os quais se destacam os painéis de bronze para as duas portas do baptistério de Florença, sendo a de leste apelidada, por Miguel Ângelo, de Porta do Paraíso, pela sua beleza formal e rigor técnico. Nesses relevos Ghiberti aplicou tais saberes da geometria, perspectiva e anatomia que fez deles os baixos-relevos mais pictóricos que se conhecem.

Donatello, David c. 1430-40 (bronze, 158 cm) Recuperando o uso do nu, Donatello concebeu a figura bíblica do pastor David como a de um rapazinho imberbe, que posa triunfante, após a luta com o gigante Golias, cuja cabeça calca aos pés. Encomendado pela Senhoria para ser exposto no átrio do palácio comunal, David era como que o símbolo religioso da pequena república que, sozinha, havia vencido os inimigos estrangeiros. Verrocchio, David, 1465-75 (bronze, 126 cm) Comparado com o de Donatello, este é semelhante nas proporções e no tratamento da cena, mas menos arrojado na modelação e na expressividade.

Da oficina de Ghiberti saiu o primeiro grande escultor verdadeiramente renascentista: Donato Donatello (1386-1466). Foi um mestre na escultura em pedra, mármore e bronze, inventando para os relevos a técnica do esbatido (schiacciato), que aumentava o número de planos possíveis e criava maior profundidade. Mas os seus principais dons manifestaram-se na modelação anatómica das figuras de vulto redondo, na imaginação formal das suas composições e na sensibilidade expressiva das suas personagens. Entre as suas obras destaca-se David, o primeiro nu de corpo inteiro depois da queda do Império Romano, os vários profetas esculpidos para o campanário da Catedral de Florença e a estátua equestre do condottiero Gattamelata, em Pádua, bem como os relevos da cantoria, galeria dos cantores na Catedral de Florença.

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Foram ainda escultores significativos desta época: — Jacopo della Quercia (1364-1458), que trabalhou em Siena e Bolonha. Os seus relevos vivem da poderosa modelação dos volumes e da expressividade das personagens em composições de grande simplicidade; — Luca della Robbia (1400-1482), especializado na escultura de barro cozido, esmaltado e policromado, em cores simples como o branco, o azul e também o amarelo e o verde. Estes seus trabalhos foram continuados, no século XVI, pelo seu sobrinho Andrea e os filhos deste, Giovanni e Girolamo della Robbia. De Luca della Robbia destaca-se o relevo em mármore da Cantoria de Florença; — Andrea Verrocchio (1436-1488) trabalhou, principalmente, em Veneza. As suas obras mais célebres foram o retrato equestre de Condotiero Bartolomeo Colleoni e David; — e António Pollaiuolo, cujas obras anunciam, pela expressividade e dinamismo, o Maneirismo.

Jacopo della Quercia, Expulsão do Paraíso, 1408-1420, relevos em mármore da Piazza del Campo, Siena Luca della Robbia, pormenor da Cantoria da Catedral de Florença, c. 1431-38 (mármore)

O século XVI foi o de Miguel Ângelo Buonnaroti, cujo génio ultrapassou todos os escultores seus contemporâneos. Nascido em Florença, foi um homem multifacetado. Considerava-se, essencialmente, escultor, capaz de esculpir e cinzelar as formas directamente do bloco de pedra (onde, segundo ele, todas as figuras se encontravam potencialmente contidas), elaborando-as sozinho (como no caso de David) num acto de diálogo permanente entre a concepção e a execução. Entre as suas obras, contam-se a Pietá do Vaticano, o David da Praça da Senhoria em Florença, os grupos escultóricos do Túmulo de Júlio II no Vaticano, e os túmulos dos Médicis, Lourenço e Julião, na sacristia da Igreja de São Lourenço, em Florença. Do primeiro túmulo, destacam-se as figuras de Moisés e do Escravo Moribundo; dos dois últimos as figuras alegóricas do Crepúsculo, da Aurora e de O Dia. Na parte final da sua vida Miguel Ângelo abandonou o realismo racional das primeiras obras e passou a expressar-se numa técnica mais livre e rude, que assumiu o inacabado e indefiniu as formas, deixando as marcas dos utensílios de trabalho na pedra. Contudo, a “perda do realismo” foi compensada pela maior carga emotiva das figuras — era a exacerbação da expressividade, anunciando os períodos seguintes.

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Miguel Ângelo: A Pietá do Vaticano [A], 1498-1501 (mármore, 174 cm de altura); A Pietá de Florença [B] 1535-50 (mármore, 226 cm de altura); A Pietá Rondanini [C], 1552-64 (mármore, 195cm altura) No primeiro conjunto, a impressão dominante é a de uma grande serenidade. No entanto, a regularidade e a harmonia da composição foram obtidas pela não obediência ao real: o rosto da Virgem é demasiado jovem para uma mãe com um filho adulto e o corpo de Cristo, que repousa no regaço da mãe, é demasiado pequeno se comparado com o dela. O segundo conjunto perdeu em serenidade e ganhou em expressividade e emoção. No terceiro, as figuras alongadas e as posições anticanónicas, assim como o facto de estarem inacabadas, conferem ao conjunto um dramatismo próprio do período seguinte.

Miguel Ângelo, David, 1502-03 (mármore, 5,17 m de altura)

Moisés, 1513–1515, mármore, (2,35 m) Roma – a extraordinária força desta figura, plena de tensão nas veias e nos músculos, a postura e a raiva sem limites, fizeram do Moisés de Miguel Ângelo, e com toda a justiça, uma das obras escultóricas mais admiradas de todos os tempos.

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Rosso, O Descimento da Cruz, 1521 (óleo sobre madeira, 335 x 187 cm) As figuras são agitadas e a composição sinuosa. No conjunto, o realce vai para as fisionomias conturbadas, perplexas e dramáticas.

Pontormo, Deposição, c. 1525-28 (óleo sobre madeIra, 321 x 190 cm) A composição sinuosa é reforçada pela cor, violentamente luminosa e contrastante, e pelos rostos cheios de dor.

Miguel Ângelo, A Crucificação São Pedro (pormenor), 1545-50 (fresco) Capela Paolina, Vaticano

O(s) Maneirismo(s), da regra à transgressão

Ao período de transição entre o Renascimento Pleno e o Barroco deu-se a designação de Maneirismo, que advém do italiano maniera, que significa elegância. Note-se, todavia, que o termo contém também algo de pejorativo, fundamentado no conceito de uma arte amaneirada e conscientemente artificial.

Ainda que de designação imprecisa, este período, situado sensivelmente entre 1525 e 1600, corresponde ao aparecimento de tendências antagónicas que traduziram, por um lado, a necessidade de libertação das regras rígidas fixadas no Renascimento e, por outro lado, a subjectividade individual dos artistas.

Na sua génese, o Maneirismo deriva directamente das concepções artísticas de Miguel Ângelo e Rafael.

Nestes autores, os primeiros sinais de perturbação em relação ao Renascimento notam-se sobretudo: nas composições complexas, fluidas, sinuosas e movimentadas; na assunção de novos desafios técnicos, como o uso do trompe-l’oeil (do francês enganar o olho - género de pintura que utiliza efeitos ilusionísticos para simular e ampliar a realidade de um espaço ou criar objectos que não existem, como elementos arquitectónicos, paisagísticos e corpos em escorços) na pintura mural e do escorço; na pesada carga emocional dada através de contrastes cromáticos fortes, expressões fisionómicas e corporais alteradas, realçando a subjectividade; no uso exacerbado do nu em composições sofisticadas e algo exageradas; e no sentido cenográfico muito diferente do rigor renascentista, numa atitude anticlássica.

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O Maneirismo encontrou expressão nos seguintes pintores: — Giacomo Pontormo (1494-1556), amigo de Rosso, de personalidade igualmente introvertida, foi um extraordinário desenhador. A sua arte é agitada; — Parmigianino (1503-1540), influenciado pela obra de Rafael, cria uma beleza “artificia1”. — Agnolo Bronzino (1503-1572), expoente do gosto delicado e sofisticado, executou obras (com o apoio de patronos aristocráticos e do rei de França) onde os corpos nus são ao mesmo tempo de uma frieza e sensualidade marmóreas; — e, finalmente, Correggio (1489-1534), de cuja obra se destaca o misticismo, e Andrea del Sartro (1486-1531), que utilizou grande subtileza cromática.

Só mais tarde o Maneirismo apareceu em Veneza, tendo como nomes mais relevantes Tintoretto (1518-94) e Veronese (1528-88). O primeiro desenvolveu uma arte de compromisso entre Ticiano e Miguel Ângelo, através de uma pintura “anticlássica e elegante”. O segundo revela uma arte de intensa beleza, dedicada ao luxo. Os seus trabalhos são ricamente coloridos, cheios de humanidade.

Tintoretto, A Última Ceia, 1592-94 (óleo sobre tela, 366 x 569 cm) San Giorgio Maggiore, Veneza É uma visão particular da cena bíblica que revela muitas cenas dentro da cena, vivendo de representações acessórias, como criados, cães, gatos e anjos que pairam sobre toda a composição.

Parmigianino, Nossa Senhora do Pescoço Longo, c. 1534-40 (óleo sobre madeira, 215 x 132 cm) Esta obra é o símbolo da elegância, do requinte e da graciosidade da pintura maneirista. As imagens de Nossa Senhora e do Menino são alongadas e delas sobressai o esguio pescoço da Senhora Bronzino, Uma Alegoria com Vénus e Cupido, c. 1545 (óleo sobre madeira, 146 x 116 cm) Esta pintura é marcada pela frieza e sensualidade dos nus que contrastam com os azuis intensos do fundo, do qual surge uma figura alegórica de expressão corporal e fisionómica violenta.

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Na arquitectura, o Maneirismo também se traduziu por urna atitude de ruptura em relação aos cânones clássicos: introduziu irregularidades, destruindo o equilíbrio (acabando com as coordenadas axiais que organizavam o edifício segundo um eixo simétrico); preferiu espaços longitudinais e salas estreitas, proporcionando uma ideia de maior profundidade; criou efeitos de surpresa e de fuga espacial, conseguidos através da relação calma/tensão e de urna série de efeitos teatrais; usou consolas para dividir o espaço entre as janelas, abandonando o princípio das três ordens; a decoração tornou-se mais caprichosa e exagerada, mas de um refinado intelectualismo e de grande virtuosismo técnico. Miguel Ângelo, Biblioteca Laurenciana, 1525-42 Podemos observar a entrada, as escadas e a estreita sala de leitura; alguns elementos arquitectónicos e decorativos parecem não ter função própria, como: as consolas duplas que nada sustentam; o frontão quebrado por cima da porta; os nichos vazios e estreitos; as colunas alongadas sem sustentação aparente (mas na realidade sustentam o vigamento do telhado); as impostas salientes; e a escadaria. Tudo em branco-mate e cinzento-ardósia que aumentam a complexidade da construção.

Vignola, Igreja de II Gesù, Roma, 1568 Concluída por Della Porta, será o modelo das igrejas jesuíticas e barrocas. A fachada tem saliências, e reentrâncias, e dois corpos a diferentes alturas ligados por duas volutas ou aletas.

Peruzzi, Palácios dos Massimi, Roma, 1555 São dois palácios com uma só fachada, abaulada, porque dava para uma rua curva. O edifício apresenta uma galeria antecedendo a entrada principal; o rés-do-chão é de cantaria em aparelho rusticado e a planta é irregular, aproveitando todo o terreno.

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As tipologias arquitectónicas do Maneirismo foram as mesmas do Renascimento: palácios, villas, bibliotecas e igrejas. Nestas últimas nota-se a solidez pesada das paredes, a nave única de abóbada de berço — usada por razões acústicas —, as capelas entre os contrafortes, o transepto pouco saliente, a capela-mor reduzida à abside e uma cúpula no cruzeiro. É o novo sentido da volumetria e de equilíbrio estático e formal das massas, dado que, com as imposições da Contra-Reforma, as igrejas passaram a ser um local privilegiado da pregação; e, também por isso, o púlpito e o altar deviam ser bem visíveis. Miguel Ângelo e Vasari podem ser considerados os primeiros arquitectos maneiristas pois há, nos seus projectos, um certo sentido introspectivo, libertador e fantasioso. Seguiram-se Júlio Romano (c. 1499-1546), discípulo de Rafael; Baldassarre Peruzzi (1481-1536), também pintor, e Vignola (1507-1573), autor do modelo da Igreja de Il Gesù. A escultura maneirista nunca conseguiu igualar a qualidade da pintura e da arquitectura. Caracterizou-se pela perda do rigor da representação clássica, substituindo o realismo racional por um grande virtuosismo técnico e formal — com escorços difíceis, contrapostos e posições em desequilíbrio. As figuras possuem movimentos fluidos e angulosos, e expressões faciais e corporais exageradas; e as composições acentuam o jogo dos volumes e os contrastes luz-sombra, privilegiando a subjectividade, os sentimentos, a sensualidade e o efeito puramente plástico e decorativo. A modalidade mais comum foi a estatuária de grandes dimensões que cumpriu funções monumentais, representativas e decorativas (destinada a interiores palacianos e a lugares públicos) e teve um cunho mais profano, alegórico ou comemorativo que religioso. São exemplo deste tipo de escultura a estatuária individual, grupos escultóricos, estátuas equestres e fontes esculpidas. Outra das modalidades foi a estatuária de pequena dimensão e de sentido mais decorativo, destinada a coleccionadores e Outra clientela privada. A estatuária individual caracteriza-se pela preferência pela figura contorcionada sobre si mesma, artificialmente serpentinada, numa linha sinuosa e helicoidal que evolui em ascensão.

Nos grupos escultóricos abandonou-se completamente a regra da estatuária do Renascimento clássico que defendia a unifacialidade da obra (isto é, um único ângulo de visão) e aplicou-se a perspectiva estereométrica e multivisual que permite a contemplação omnilateral da obra; a utilização de um só bloco de material foi substituída pelo uso de vários. Como escultores mais significativos deste período salientam-se: — Bartolomeo Ammannati (1511-1592), que explorou os efeitos estéticos resultantes do forte contraste cromático dos materiais usados; — Giovanni di Bologna (1529-1608); — Benvenuto Cellini (1500-1571), escultor e ourives florentino que trabalhou na corte dos Médicis, em Florença, e na de Francisco 1 de França. Maneirismo significou para alguns elegância conforme a moda, para outros uma estranha transformação da realidade em sonho ou pesadelo e para outros, ainda, a exploração da alma humana e das suas relações com o meio, as suas paixões, o bem e o mal, o mundo, a carne, Deus e o diabo. Fare piacere,fare stupore (deleitar, espantar) parece ter sido o seu objectivo.

Giovanni di Bologna, O Rapto das Sabinas, 1582, Loggia dei Lanzi, Florença (mármore, 397 cm de altura) Composição sinuosa que envolve três personagens num movimento helicoidal ascendente de grande expressividade e dramatismo

Bartolomeo Ammannati, Carro de Neptuno na Fonte de Neptuno, c. 1570, Praça da Senhoria, Florença (c. 560 cm de altura) – Mármore branco, bronze e água são os materiais usados pelo escultor para compor esta obra anunciadora do futuro barroco

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Benvenuto Cellini, saleiro de Francisco I, 1540-43, madeira de ébano, ouro parcialmente esmaltado (altura 26 cm e largura 33,5 cm) A figura masculina é

Neptuno, deus do mar, logo o sal; a feminina é Reha, deusa da terra, onde nasce a pimenta.

A Europa entre o Renascimento e o Maneirismo

Apesar de o Renascimento e o Maneirismo serem movimentos italianos, atingiram tardiamente - e em datas variáveis de país para país - a Europa, em particular a França, os países anglo-saxónicos (Inglaterra, Alemanha e Países Baixos) e a Península Ibérica (Espanha e Portugal). Reflectiu-se neles com os mesmos modelos e concepções estéticas, interpretados segundo as expressões locais, onde o Gótico Tardio era dominante. O tipo de arte que melhor expressou as concepções plásticas renascentistas e maneiristas foi a pintura, pelo facto de ser uma arte móvel que, aliada à tradição naturalista do retrato e da paisagem típicos do Norte da Europa, atingiu uma expressão rica e peculiar. A pintura renascentista francesa é continuadora do Gótico Internacional, o qual se misturou com o Naturalismo flamengo. A influência italiana nota-se na obra de Jean Fouquet (c. 1420-1481). No século XVI, a Escola de Fontainebleau, dominada pelo mecenato do rei Francisco I, é a protagonista do Maneirismo, destacando-se os irmãos François (1510-1572) e Jean Clouet (c. 1485-1540/41). A arquitectura francesa deste período foi palaciana e combinou a estrutura gótica com a decoração renascentista, como por exemplo nos castelos do Vale do Loire, o Palácio de Chambord (1519-47), o Cour Carré do Palácio Real do Louvre, da autoria de Pierre Lescot, e o Palácio de Fontainebleau Na escultura, em França, distinguem-se duas modalidades: a decoração de monumentos fúnebres e a decoração arquitectónica. O maior escultor desta época foi Jean Goujon (c. 1510-1568). A pintura do século XV, na Alemanha, foi influenciada pelas artes flamenga e italiana. A maior figura foi o desenhador, pintor e gravador Albrecht Dürer (1471-1528), que explorou a perspectiva, estudada com minúcia, e observou a Natureza, reproduzindo-a com a precisão e rigor do biólogo. Nos seus quadros sobressai a perfeição técnica, assim como o retrato físico e psicológico.

François Clouet, Dama no Banho, c. 1570 (óleo sobre madeira, 92 x 81 cm) Nesta obra, o artista misturou o retrato (pois parece tratar-se de Diana de Poitiers) com elementos característicos de uma pintura mitológica e alegórica, porque o seu conjunto transcende a realidade.

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Pierre Lescot, fachada ocidental do Cour Carré, no Louvre, 1546 Esta obra do renascimento francês apresenta uma perfeita combinação da arquitectura com a escultura.

Albrecht Dürer, tábua esquerda do díptico Os Quatro Apóstolos, c. 1523-26 (óleo sobre madeira, 215 x 75 cm cada tábua) Estão representados S. João Evangelista e S. Pedro. As figuras, quer pelos rostos quer pelas vestes, revelam a grande mestria técnica e artística do autor.

Estudo geométrico da composição.

Pieter Brueghel, A Parábola dos Cegos, 1568 (têmpera sobre madeira, 84 x 154 cm) Este tema bíblico mostra a ironia peculiar do autor. A pintura, bastante homogénea ao nível da cor, é, no entanto, muito dinâmica pela linha oblíqua que os cegos descrevem.

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Hans Holbein, Os Embaixadores, 1533 (óleo sobre madeira, 207 x 210 cm) Estes retratos mostram os instrumentos ligados à sabedoria e às tendências culturais destas duas figuras. A obra é caracterizada pelo rigor e minúcia da representação. Em primeiro plano, a anamorfose de um crânio, o que demonstra a perícia do pintor em relação aos conhecimentos da geometria.

No século XVI, destacam-se autores como Lucas Cranach (1472-1553) e Hans Holbein (c. 1489-1543). A pintura da Flandres no século XV definiu-se por um realismo seguro, minucioso e empírico como é exemplo Pieter Brueghel, o Velho (c. 1528/30-1569). No século XVI, cultivou a arte da paisagem e a “pintura de género” (tipo de pintura centrada em temas ligados à vida do quotidiano ou aos elementos do dia-a-dia -cenas do quotidiano, natureza-morta, retrato, paisagem e pintura histórica- tratados com grande realismo. Possuía, em regra, pequenas dimensões) em pequeno formato. Na arquitectura dos países do Norte perdurou a verticalidade do Gótico. A inovação esteve na profusão de formas decorativas interpretadas segundo o gosto maneirista — grotescos, arabescos, volutas, formas abstractas e vegetalistas. Em Inglaterra, onde esta arquitectura revelou maior sobriedade, destaca-se o Palácio de Hampton Court, iniciado em 1515. Na escultura destes países de tradição gótica salienta-se, na Alemanha, os escultores Hans Daucher (1485-1538), Peter Vischer (1460-1529) e Hubert Gerhard (c. 1550-1622), este último influenciado pelo maneirista Giovanni di Bologna. Ao primeiro, coube a decoração escultórica da capela dos Függer e, ao segundo, o Túmulo do imperador Maximiliano (1493-1519). Na pintura espanhola do século XVI sobressai El Greco (1541-1614). Na arquitectura, influenciada pela expansão ultramarina e mantendo as tradições das artes gótica e mudéjar, a Espanha criou um estilo decorativo próprio, o plateresco. Só em meados do século XVI é que se fez a ruptura com a tradição, devido à construção do Palácio de Carlos V, em Granada, e do Palácio do Escorial (1563-84). Na escultura, juntaram-se influências flamengas, góticas e italianas, aliadas ao plateresco e ao mudéjar. No período renascentista situam-se Bartolomé Ordónez (c. 1490-1520) e Damián Forment (c. 1480-1541); no maneirista, Alonso Berruguete (c. 1486-1561), Juan de Juni (c. 1507-1577) e Gaspar Becerra (c. 1520-70).

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El Greco, O Enterro do Conde de Orgaz, Igreja de São Tomé, Toledo, c. 1586-88 (óleo sobre tela, 460 x 360 cm) Um completo “horror ao vazio” na distribuição das figuras induz dinamismo na composição, que foi rigorosamente pensada. As cores e a pincelada rápida e fluida contribuem para a mesma sensação, reforçada pelo alongamento das figuras. Assim, apesar da densidade da cena, fica uma sensação de leveza. .

Frrancisco de Holanda, Nossa Senhora de Belém, meados do século XVI A representação da Virgem repete um modelo peculiar, na época, com o manto aberto protegendo algumas figuras da corte portuguesa Gaspar Vaz, Adoração dos Magos, século XVI – Esta obra fez parte do retábulo de Nossa Senhora da Glória da Igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca. Em Portugal, a pintura do Renascimento

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coincide, em parte, com a pintura manuelina, confundindo-se com esta nas fontes de inspiração, no tratamento das personagens e do cenário e, como tal, nos resultados plásticos. De temática religiosa, foi influenciada por obras e pintores provenientes da Flandres, da Alemanha e da Itália. A influência flamenga, presente desde o Gótico, marcou a nossa pintura através das obras importadas e pelos pintores que cá estiveram, como Quentin Metsys e Albrecht Dürer. De raiz mais genuinamente portuguesa foram as obras de Nuno Gonçalves e Jorge Afonso que tiveram como pontos de difusão as escolas de Lisboa, Coimbra e Viseu. Destacam-se os artistas: Vasco Fernandes (c. 1475-1542), Gaspar Vaz (c. 1490-1568), Garcia Fernandes (n. 1565) e Gregório Lopes (c. 1490-1550). A pintura maneirista em Portugal recebeu grande influência da italiana. Denota-se Francisco de Holanda (1517-1584), que em Itália contactou com as obras de Rafael, Miguel Ângelo, Parmigianino e Rosso. A sua obra teórica e pictórica contribuiu para o desenvolvimento cio Maneirismo em Portugal. A arquitectura renascentista é de âmbito religioso, de estruturas e formas simples, reflectindo desde cedo o espírito da Contra-Reforma. Está marcada pelo Manuelino, na utilização das igrejas-salão, na preferência pelas construções horizontais, no uso de abóbadas assentes sobre arcos abatidos e no recurso às nervuras. A decoração recorre a elementos platerescos e renascentistas. Durante a primeira metade do século XVI, os arquitectos mais importantes foram: os irmãos Arruda — Diogo (n. 1530) e Miguel (n. 1563) — e os irmãos Castilho — João (1490-1551/53), autor da Igreja da Conceição e do projecto do claustro principal de D. João III no convento de Cristo, ambos em Tomar, e Diogo (1493-1574). A arquitectura maneirista permaneceu pelos séculos XVI, XVII e XVIII, correspondendo ao domínio filipino e início do Barroco. Conhecida por Estilo Chão, devido à singularidade das fachadas, rapidamente se espalhou, chegando a África, Índia, Brasil e Macau. A sobriedade exterior contrapõe-se a interiores muito decorados. As igrejas foram as construções mais importantes pelo seu fim doutrinal e localizavam-se nos principais centros urbanos. São exemplos: as igrejas de S. Vicente de Fora e de S. Roque, em Lisboa; as igrejas de S. Lourenço e S. Salvador de Grijó, no Porto; e a da Serra do Pilar, em Gaia. A escultura portuguesa do século XVI continuou ligada ao Gótico Tardio, principalmente às formas manuelinas e platerescas, e “presa” à arquitectura, através dos relevos decorativos e da estatuária colocada em nichos, mísulas ou baldaquinos. Para além destas formas escultóricas, outras três se impuseram: a talha para a decoração de púlpitos, altares e retábulos; a estatuária de madeira policromada para a decoração das igrejas; e a escultura tumular. A influência italiana chegou através de estrangeiros como Nicolau de Chanterenne (m. 1551), João de Ruão (m. 1580) e Filipe Hodarte.

Vasco Fernandes, S. Pedro Patriarca, c. 1529 (óleo sobre madeira de castanho, 215 x 235 cm) Esta pintura denota uma estrutura e um desenho de grande unidade plástica, aos quais se alia a execução excepcional e uma caracterização forte, mas humana, da personagem. A rigorosa perspectiva e a simetria tanto do trono como das duas janelas, que deixam ver duas cenas da vida do santo, dão ao conjunto da obra uma serenidade típica do espírito renascentista. As volumetrias do corpo, dos motivos ornamentais — o trono é renascença — e das sumptuosas vestes de S. Pedro introduzem uma nota escultórica de grande monumentalidade na obra.

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Claustro prIncipal do Convento de Cristo, em Tomar Iniciado por João de Castilho em estilo renascentista, foi continuado, a partir de 1558, por Diogo de Torralva em estilo maneirista. Filipe Terzi viria a concluí-lo em 1587, seguindo o mesmo modelo. Nicolau de Chanterenne, Retábulo da Capela do Palácio da Pena, Sintra, 1532 (mármore e jade) É uma composição complexa, composta de múltiplas cenas que se desenrolam como num palco.

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A Anunciação (1473-1475) de Leonardo da Vinci (1452-1519)

Se tivermos de eleger uma figura que simbolize o tempo simultaneamente racional e culto, sensível e humanista que foi o do Renascimento, um nome surge naturalmente: Leonardo da Vinci. Nascido em 15 de Abril de 1452, em Vinci, discípulo do pintor e escultor Andrea Verrochio (1433-1485), muito cedo se revelou um talentoso e extraordinário desenhador. Atento e estudioso, foi à Natureza e às suas regras que foi buscar grande parte dos motivos e soluções para os seus trabalhos — usava sempre modelos reais. A diversidade dos seus interesses — que incluíam minuciosos estudos sobre aspectos físicos e de funcionamento da anatomia humana e de outros animais, as leis da física, da engenharia, da arquitectura e da botânica...— revelou um espírito inquieto, simultaneamente reconhecido mas sempre enigmático, mesmo para os seus contemporâneos. É a partir de desenhos minuciosos, quer de pormenores, quer da composição global, na procura do rigor da composição, que Leonardo, de forma calculada e cerebral, apoiada numa técnica notável, executa as suas primeiras pinturas, algumas das quais se tornaram parte da iconografia renascentista, como A Ultima Ceia ou a Mona Lisa. Sabemos que por volta dos 30 anos abandonou a sua Vinci natal, soltando-se do ambiente florentino, e que foi ao serviço do duque de Milão, Ludovico Sforza, que continuou a sua obra. Nela traduziu um completo conhecimento do que tinha sido a apurada pesquisa de grandes artistas que o precederam: no uso da perspectiva geométrica pura, nos estudos da óptica e das regras matemáticas, na definição das composições e das relações espaciais. A pintura de Leonardo da Vinci ultrapassa a mera criação artística para se tomar algo de racional e científico quando, para além da aplicação das regras da pintura, capta a essência psicológica das personagens que figuram nos seus quadros — transforma a pintura em cosa mentale. Leonardo, ao contrário dos artistas seus contemporâneos, não pensava a pintura apenas como um conjunto de regras de representação: acrescentava-lhe uma ambiência simultaneamente real, pela forma como as figuras emergiam de fundos sombrios, mas ao mesmo tempo imaterial, esbatendo as linhas de contorno, o que se traduzia numa noção mais evidente de tridimensionalidade (os seus contornos são sempre implícitos, nunca explícitos).

Privilegiando a importância da incidência da luz em detrimento da cor pura, através de gradações distintas, criava uma unidade pictórica que por vezes anulava a justaposição de pianos que, no entanto, existiam. Esse ambiente “vaporoso” e irreal, no qual as personagens apareciam num etéreo “chiaroscuro” (não por acaso, as figuras de Leonardo são frequentemente enigmáticas, como ele próprio), era obtido através da sua famosa técnica de “sfrmatto” (Diz-se de uma técnica utilizada por Leonardo da Vinci que consistia numa transição luz/sombra tão gradual e subtil que se tornava quase imperceptível o contorno das formas).

Sao disso exemplo algumas das suas obras mais significativas como A Virgem dos Rochedos, a Gioconda, A Virgem, o Menino e Santa Ana e João Baptista, entre outras.

Estabelecendo um equilíbrio genial entre a realidade e a representação para lá dessa realidade, as figuras de Leonardo da Vinci são atemporais e simbólicas na forma como se tomaram objecto de estudo e momentos maiores da criação humana.

“Verdadeiramente admirável e celeste foi Leonardo (…). O seu raciocínio era de grande vigor (…); exprimia tão bem o seu pensamento, que dominava pela argumentação e confundia pelo discurso as mais vigorosas inteligências. Inventava sem cessar projectos e modelos (...). A sua conversa era tão agradável que atraía a simpatia; quase sem fortuna e trabalhando regularmente, teve sempre servos, cavalos de que muito gostava e todas as espécies de animais de que se ocupava com interesse e paciência infinitos. Conta-se que, passando no mercado de pássaros, libertava-os da gaiola, pagava o preço pedido e deixava-os voar para lhes restituir a liberdade perdida.” G. Vasari, Elogio a Leonardo da Vinci, em Vidas

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Auto-retrato de Leonardo da Vinci, c. 1512, sanguínea, 33 x 21 cm Leonardo foi um homem possuidor de curiosidade insaciável e de uma profunda compreensão do mundo, o que está patente nos seus inúmeros desenhos e livros de apontamentos.

A Anunciação

“Esta Anunciação foi pintada entre 1473-75 e é compreensível que, ao enorme êxito obtido pelo jovem pintor com o seu primeiro «anjo», se tenha seguido um motivo semelhante. A obra foi exposta pela primeira vez como original de Leonardo da Vinci na Galleria degli Uffici em 1867, tendo imediatamente desencadeado uma acalorada discussão pública. (...)

Na verdade, surpreende a precisão no pormenor, nada típica para Leonardo, que se pode apreciar na decoração da mesa de pedra, em frente à qual se encontra sentada a Virgem Maria, bem como a frieza rectilínea dos silhares do edifício que surge por detrás dela. É provável que estes elementos tenham sido executados por outro pintor, talvez por Ghirlandaio ou qualquer outro aprendiz da oficina de Verrocchio. É também possível admitir que Leonardo, que ao longo da sua vida tantas pinturas deixou por concluir, tenha delegado para um companheiro a responsabilidade de terminar este quadro de grandes dimensões, que ultrapassa os dois metros de comprimento.

Porém, os três elementos mais importantes — o anjo, a Virgem e a paisagem vespertina do fundo — são tão característicos do conceito e estilo de Leonardo que a mais ninguém se pode atribuir a sua autoria. De facto, nunca antes se tinha visto uma Anunciação assim. Ainda que a interpretação, a composição e a rigorosa perspectiva linear se insiram perfeitamente na continuidade estilística proveniente do Quattrocento, os aspectos inovadores podem encontrar-se na paisagem de fundo, na luz, na composição das figuras e na expressão dos rostos. Uma luz dourada de fim de tarde derrama-se por toda a cena, transformando em sombrias silhuetas as árvores de fundo. Também o anjo projecta uma sombra à sua frente, ao pousar silenciosamente e com as asas abertas no canteiro florido que se encontra à frente de Maria. A sua atitude é de respeitosa distância. Ajoelhado, inclina-se submisso para a frente, mas a sua testa alta e orgulhosa está virada para ela. Com os olhos levemente obscurecidos pela sombra dirigida a ela, lança-lhe um olhar intenso, que o revela como conhecedor do seu destino. A sua boca entreaberta está prestes a anunciar a «boa nova», mas algo nos faz intuir que os seus lábios suaves não irão revelar tudo aquilo que sabe sobre o doloroso final da história da Redenção. O seu braço erguido e o gesto da mão correspondem numa perfeita harmonia à forma das asas. Com um olhar mais admirado do que surpreendido, embora atento, a jovem Maria escuta as palavras do anjo. A sombra de incerteza e dúvida que se espelha nos seus olhos rasgados e ligeiramente oblíquos parece converter-se, nesse preciso momento, num gesto de reconhecimento meditativo. Com a doçura da inocência, embora com a concentração que só a sabedoria concede, esse jovem rosto dá a impressão de pertencer a uma criança inteligente e estranhamente madura. Já neste quadro se manifesta a mestria de Leonardo em integrar psique e tma numa grandiosa harmonia.”

Alexander Rauch em Rolf Toman, A Arte da Renascença Italiana, Könemman

O génio de Leonardo (...) Foi conduzido a Milão com grande reputação Leonardo ao duque (Ludovico Sforza), o qual muito se deleitava com a lira, para que tocasse; e Leonardo levou aquele instrumento que ele tinha por suas mãos fabricado, de prata, grande parte em forma de caveira de cavalo, coisa bizarra e nova, para que a harmonia fosse com maior tubo e mais sonora voz; por isso superou todos os músicos que ali tinham acorrido para tocar. Além disso, foi o melhor declamador de rimas de improviso do seu tempo. Ouvindo o duque os razoamentos tão admiráveis de Leonardo, de tal modo se encantou com suas virtudes, que era coisa incrível. E, rogando, mandou-lhe fazer em pintura um retábulo enquadrando uma Natividade, que foi enviada pelo duque ao imperador. (...) GiorgioVasari, Vidas dos Mais Excelentes Escultores e Arquitectos, 1550

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A Anunciação, c. 1473-75, óleo sobra madeira, 98 x 217,2 cm Nesta pintura, os elementos da composição são de facto separáveis, de tal modo que se pode experimentar a

estratificação do espaço e estabelecer a subtil relação da superfície com a profundidade. No primeiro pleno, as figuras do Anjo e de Nossa Senhora “aparecem em relevo”; no chão e a meio, as flores abertas

vão ficando progressivamente mais pequenas e menos coloridas. O plano médio é formado pelo muro do jardim que continua os limites da perspectiva do edifício cujas linhas

convergem, à distância, na linha do horizonte. O fundo está pintado à maneira vaporosa e deslocada que Leonardo considerava a melhor para dar a sensação de

distância (“diminuição da definição, da medida e da cor”).

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Fala do Licenciado e diálogo de Todo o Mundo e Ninguém, Gil Vicente, Lusitânia, 1532

Em finais de Quatrocentos, na transição da Idade Média para o Renascimento, as classes privilegiadas, clero e aristocracia, viviam despreocupadamente na corte que oferecia honras, comendas, animação e galantarias. Foi neste cenário que apareceu o poeta Gil Vicente (c. 1465-c. 1537), a fazer teatro na corte. Logo em 1502 escreveu e apresentou a sua primeira peça, O Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, para festejar o nascimento do primeiro filho do rei D. Manuel I, o futuro D. João III. Partindo deste simples monólogo, Gil Vicente procurou outras formas mais evoluídas. Aproveitou antigos temas religiosos e mitológicos, contos populares, romances de cavalaria, momos e entremezes, sermões burlescos, ladainhas e ideias de poetas espanhóis coevos (contemporâneos) para criar os seus argumentos. Melhorou a qualidade poética e a estrutura compositiva dos seus escritos usando a redondilha maior, a divisão por actos e as tipologias do auto (composição, inicialmente em um acto, e de ambiência religiosa, forma genérica de todas as obras de Gil Vicente) e da farsa (composição sem exigências de estilo, com o objectivo de fazer folgar, relatando episódios cómicos da vida quotidiana, e que invade os domínios do auto e da comédia). Explorou o espectacular e as técnicas de dramatização (a expressividade e a imagem dos actores), associando ao texto dialogado a música, o canto e a dança, dando à acção mais ritmo e movimento e tornando o espaço cénico mais elaborado, mais vistoso com cenários e luzes, tudo com um estilo mui eloquente e mui novas invenções, como referiu Garcia de Resende in Miscelânea. Partindo da cultura popular, da experiência vivencial da corte, do gosto pela poetização do real e pela criação de personagens-tipo, Gil Vicente escreveu, em 1509 a sua primeira farsa literária — Auto da Índia—, a que se seguiu uma série de obras-primas desse género. Acrescentou outros tipos como a moralidade (teatro religioso sobre o mistério da Encarnação, em que entram anjos e diabos ao lado de personagens alegóricas e tipos sociais), como o Auto da Fé a comédia (narrativa em verso que exigia um estilo mais eloquente, mas satírico), como Corte de Júpiter e Rubena, em 1521. A actividade regular de Gil Vicente era escrever, encenar, participar nas peças, assim como organizar autos, representações e folias para entradas solenes (como a muito famosa entrada em Lisboa de D. Leonor, terceira esposa de D. Manuel I), casamentos, nascimentos, celebrações, satisfazendo os desejos reais nas pequenas e grandes festas cortesãs. O ambiente cénico era também da sua autoria. Pouco se sabe deste assunto mas, atendendo às referências comidas nas peças, seria montado, nos salões dos palácios e nas igrejas, um estrado ou um palanque. Nesse estrado eram colocados quadros vivos (exemplo: imagem real da Natividade) e distribuídas as instalações de barcos com ondas do mar (panos pintados), de casas, de pequenos templos em madeira, de ornamentos luxuosos para dar vida ao alegórico e simbólico, por vezes, artificiosamente movimentados, de acordo com a complexidade das cenas; estas possuíam unidade de acção, tempo e lugar e a sua sequência era muitas vezes assinalada por uma cortina, como em certas cenas do Auto da Lusitânia. Neste, dada a complexidade da trama, o palco tinha até dois andares e várias portas.

Pela frequência das representações, pela criação destes ambientes cénicos, pela especialização dos seus actores (bailarinos, cantores, músicos com diversos instrumentos como gaitas, pandeiros, atambores, atabales, sacabuxas, trombetas, charamelas...) e pela criação de guarda-roupas específicos, bem precisava Gil Vicente de uma companhia teatral, mas de tal não se sabe. Só se conhece que, seguindo a tradição medieval, muitas vezes os espectadores também participavam nas peças. Este desempenho de Gil Vicente deu-lhe prestígio, independência, liberdade e autoridade de criação e de crítica.

Convivendo com o Sagrado e o Profano, o Espiritual e o Carnal, a Verdade e a Ilusão, a Alma e o Diabo, o Lirismo e a Ironia, o Simbólico/Mágico e o Real, Gil Vicente criou um teatro de sátira social, ou um teatro de ideias, que critica sem apresentar alternativas ou questionar. Em mais de cinquenta obras, observou a sociedade quinhentista, denunciou os males, os desvios e os vícios, dizendo verdades com um aparente sem sentido, através do anedótico e do caricatural.

Mestre de Retórica das Representações, criou personagens-tipo, figuras paradigmáticas da sociedade do seu tempo, acentuando-lhes linguagens e traços característicos como: o simples camponês, que paga pesados impostos; o velho namoradeiro (como o Velho da Horta); o criado manhoso; o pastor e o parvo que, com a sua ignorância, fazem rir; o abastado burguês (como na Lusitânia); o escudeiro ocioso e a mania nobilitária (como em Quem têm farelos?); o médico charlatão (Falsos Físicos); os magistrados corruptos; o frade folião; o clero depravado e ostensivo; a mulher

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volúvel; a alcoviteira; o usurário (conotado com os judeus, que ora são satirizados, ora bem aceites, como na Lusitânia); e os excessos da corte. Estes retratos, com alguma carga psicológica, estão inseridos em relatos bucólicos e vidas simples; a própria Natureza tem uma grande presença e expressividade dramática e até as montanhas e florestas são personificadas. Deste modo Gil Vicente contou, poeticamente, intrigas dramáticas.

Denotou também saberes sobre a astrologia, a jurisprudência e a teologia (debateu ideias e opinou sobre atitudes papais como a venda das indulgências e a Reforma, como acontece no Auto da Feira).

Apesar de ter estado em sintonia com a moral e os valores cristãos, foi criticado, perseguido e silenciado, como ele próprio refere, pela Inquisição, instalada em Portugal por D. João III.

Em 1562, os seus filhos, Luís e Paula Vicente, juntaram na Compilaçam as suas obras, tendo referido que foi necessário apurar alguns textos e mutilar muitas peças; algumas delas até desapareceram e outras encontravam-se no Index (lista de livros proibidos elaborada pela Inquisição). Porém, muitas das suas obras eram conhecidas em folhetos de cordel ou folhas volantes e representadas fora da corte.

Sempre viva e actual, a obra de Gil Vicente reflecte já, para a literatura, a necessidade de liberdade de consciência e de opinião.

Gil Vicente — Vida e Obra

1502 — 1.ª Representação do Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro. 1504 — 1.ª Representação de Milagre de S. Martinho — Episódio Hagiográfico. 1509 — D. Manuel 1 nomeia G. V. ourives da rainha D. Leonor (possível relação com a Custódia de Belém.). Auto da Índia, primeira farsa literária. 1510 — Auto da Fé, primeira tentativa de uma moralidade. 1511 — C. V. foi feito vassalo d’ el- rei, categoria que só era dada a distintos representantes do povo. 1516 — G. V. colaborou na feitura do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. 1517 — Auto da Barca do Inferno. 1518 — Auto da Alma ou da Barca do Purgatório. 1519 — Auto da Barca da Glória. 1520 — G. V. organiza autos, representações e folias para a entrada solene, em Lisboa, de D. Leonor. 1523 — Farsa de Inês Pereira. 1527 — Apogeu da carreira de G. V. Criação da peça Breve Sumário da História de Cristo. 1531 — Em Bruxelas foi representada, na embaixada portuguesa, a moralidade: Jubileu de Amores (peça que desapareceu). — Defesa da inocência dos Judeus no terramoto havido em Santarém. Condenação da violência como meio de conversão dos Judeus. 1532 —Auto da Lusitânia. 1536—Instalação da Inquisição em Portugal por decisão de D. João III. — G. V. acaba a comédia Floresta de Enganos. 1537—Morte de G. V. 1551 — A Inquisiçào começa a censurar as suas obras, nomeadamente a l,usitânia, e algumas delas passam afazer parte do Index. 1562 — Publicação de Compilaçarn, pelos filhos Luís e Paula Vicente.

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AUTO DA LUSITÂNIA

A farsa seguinte foi representada ao muito alto e poderoso rei dom João, o terceiro deste nome em Portugal, ao nascimento do muito desejado príncipe dom Manoel, seu filho. Era do Senhor de 1532. E porque ao diante vai o argumento dela se nam põe aqui neste princípio. Começa a farsa num razoamento de uns judeus pelas figuras seguintes: Lediça, um Cortesão, a mãe da Lediça, Saulinho, Jacob e o pai deles. (...)

Saem-se elas e despois de idas diz Jacob:

Falemos tu e eu sós: que invenção faremos nós num aito bem acordado que tenha ave e piós? Oue folias já são frias e as pélas as mais delas e os toiros mataram à mata-moiros e a ussa já nam se escusa e a festa nam se escusa pois andamos nos pelouros. Pera que compridamente aito novo enventemos vejamos um excelente que presenta Gil Vicente e per i nos regeremos. Ele o faz em louvor do príncipe nosso senhor porque não pôde em Alvito. Logo virá o relator veremos com que primor argumenta bem seu dito. Entra o Iicenciado argumentador da obra que adiante se seque e diz: Oh que douda presunção cuidar ninguém na pousada que traz discreta invenção aqui onde a descrição tem sua própria morada. Que a corte é um precioso norte que guia os mais sabedores e onde há rosas e flores pampilos nam fazem sorte. E pois o primor inteiro nace aqui em tais lugares e todo o al é grosseiro nam presuma o sovereiro de dar tâmaras doçares. Gil Vicente o autor me fez seu embaixador mas eu tenho na memória que pera tam alta história naceu mui baixo doutor. Creo que é da Pederneira neto dum tamborileiro sua mãe era parteira e seu pai era albardeiro. E per razão ele foi já tecelão

destas mantas d’Alentejo e sempre o vi e vejo sem ter arte nem feição. E quer-se o demo meter o tecelão das aranhas a travar e escrever as portuguesas façanhas que só Deos sabe entender. Doutro cabo dizem que achou o diabo em figura de donzela e ele namorou-se dela porém ela era diabo encantado Levou-o a uns arvoredos vai a dama assi a furto e alevanta os cotovelos e levou-o polos cabelos e fez-lhe o pescoço curto E meteu-o logo ess’hora sem lhe valerem seus gritos onde a Sebila mora encantada encantadora antre os malinos espritos. E ali foi ensinado sete anos e mais um dia e da Sebila enformado dos segredos que sabia do antigo tempo passado. Em especial o antigo de Portugal: Lusitânia que cousa era e o seu original e por cousa mui severa vo-lo quer representar. E pera claro cimento e a obra nam ser escura direi em prosa o argumento porque a cousa que é segura procede do fundamento. E como sempre isto guardasse este mui leal autor até que Deos enviasse o príncipe nosso senhor não quis que outrem o gozasse. (…)

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Resumo dos Textos Este auto, pela sua construção cénica, pela subtileza literária e pelas possíveis

interpretações, é um dos mais ricos que Gil Vicente produziu. Tem várias cenas, com várias histórias sobrepostas, pois é uma representação encaixada noutras representações — é um espaço de cruzamentos e confluências diversas, efectivas ou possíveis — é a técnica de teatro no teatro, no dizer de Graça Abreu. Segundo Teyssier, é um auto constituído por duas obras acopladas: um quadro realista, tratado à maneira de farsa, no início, e uma comédia alegórica, cujo tema são as origens simbólicas de Portugal.

Contaria, possivelmente, cerca de 20 actores. Deste complexo texto são seleccionadas duas cenas:

• a fala do licenciado, que começa com dois judeus que estão a pensar como organizar uma festa para comemorar o nascimento de D. Manuel, filho de D. João III. Concluíram que G. V. seria a melhor escolha. Entretanto, o Licenciado, que é o argumentador do texto, entra e faz a apresentação de G. V. e do assunto que ele quer representar e, a seu modo, ensinar aos espectadores;

• e o diálogo de Todo o Mundo e Ninguém, (em que o primeiro é um rico mercador

que, possivelmente, representa a corte e a Igreja, e o segundo um pobre homem, talvez G. V. ou o povo). Este diálogo é comentado por dois capelães, diabos que são os servidores de Lúcifer, para quem têm de relatar tudo o que viram e ouviram e que estão escondidos; os seus nomes são Berzabu e Dinato. Todo o Mundo, além do dinheiro, quer honra muito grande, vida, paraíso, mesmo que para tal tenha de enganar e lisonjear. Ninguém procura a consciência, a virtude, a morte, a verdade, o desengano e aceita ser repreendido sempre que erra. Esta preferência pela vida simples, despojada mas verdadeira, é a mensagem de G. V.

Entra Todo o Mundo, homem como rico mercador, e faz que anda buscando algua causa que se lhe perdeu. E logo após ele um homem vestido como pobre, este se chama Ninguém. E diz Ninguém: Que andas tu i buscando? Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar delas nam posso achar porém ando perfiando por quam bom é perfiar Ninguém: Corno hás nome cavaleiro? Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo e meu tempo todo enteiro sempre é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo. Ninguém: E eu hei nome Ninguém e busco a conciência. Berzabu: Esta é boa experiência Dinato escreve isto bem. Dinato: Que escreverei companheiro?

Berzabu: Que Ninguém busca conciência e Todo o Mundo dinheiro. Ninguém: E agora que buscas lá? Todo o Mundo: Busco honra muito grande. Ninguém: E eu virtude que Deos mande que tope co ela já. Berzabu: Outra adição nos açude escreve logo i a fundo que busca honra Todo o Mundo e Ninguém busca virtude. Ninguém: Buscas outro mõr bem qu’esse? Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fezesse.

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Ninguém: E eu que me reprendesse em cada causa que errasse, Berzabu: Escreve mais. Dinato: Que tens sabido? Berzabu: Que quer em estremo grado Todo o Mundo ser louvado e Ninguém ser reprendido. Ninguém: Buscas mais amigo meu? Todo o Mundo: Busco a vida e quem ma dê. Ninguém: A vida nam sei que é a morte conheço eu. Berzabu: Escreve lá outra sorte. Dinato: Que sorte? Berzabu: Muito garrida: Todo o Mundo busca a vida e Ninguém conhece a morte. Todo o Mundo: E mais queria o paraíso sem mo ninguém estrovar Ninguém: E eu ponho-me a pagar quanto devo pera isso Berzabu: Escreve com muito aviso. Dinato: Que escreverei? Berzabu: Escreve que Todo o Mundo quer paraíso e Ninguém paga o que deve. Todo o Mundo: Folgo muito d’enganar e mentir naceu comigo.

Ninguém: Eu sempre verdade digo sem nunca me desviar. Berzabu: Ora escreve lá compadre nam sejas tu preguiçoso. Dinato: Quê? Berzabu: Que Todo o Mundo é mentiroso e Ninguém diz a verdade. Ninguém: Que mais buscas? Todo o Mundo: Lisonjar. Ninguém: Eu som todo desengano. Berzabu: Escreve anda l mano, ´ Dinato: Que me mandas assentar? Berzabu: Põe aí mui declarado nam te fique no tinteiro: Todo o Mundo é lisonjeiro e Ninguém desenganado. Vénus: Capelanes y nos todas pues que tenéis bien rezadas vuestras horas ordenadas concluyamos nuestras bodas bodas bienaventuradas. Tornam à sua cantiga, bailando todos ao som dela: Luz amores de la niña quê tan linduz ujuz ha quê tan linduz ujuz ha ay Diuz quién luz haverá ay Diuz quién luz haverá.

O que interessa saber: • Quem era Gil Vicente? • Que características evidenciam os intervenientes nestes excertos? • Qual a moralidade que se pode extrair do segundo texto? • Qual a função do teatro como actividade cortesã?

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GIL VICENTE, A SUA OBRA, AS SUAS PERSONAGENS

Gil Vicente (c. 1465-1536) foi um poeta, dramaturgo e encenador, que fez teatro na Corte portuguesa de Quinhentos.

Gil Vicente aproveitou antigos temas religiosos e mitológicos, contos populares, romances de cavalaria, entre outros elementos, para criar as suas histórias. Explorou o espectacular e as técnicas de dramatização – a expressividade e a imagem dos actores –, associando ao texto dialogado a música, o canto e a dança, dando à acção mais ritmo e movimento e tornando o espaço cénico mais elaborado, mais vistoso, com cenários e luzes, tudo com um estilo muito eloquente e inventivo. Para além do auto (composição de ambiência religiosa) e da farsa (relato de episódios cómicos da vida quotidiana), acrescentou outros tipos: a moralidade (teatro religioso, com personagens alegóricas e tipos sociais) e a comédia (narrativa satírica em verso). As cenas possuíam unidade de acção, tempo e espaço.

Convivendo com o Sagrado e o Profano, o Espiritual e o Carnal, a Verdade e a Ilusão, a Alma e o Diabo, o Lirismo e a Ironia, o Simbólico/Mágico e o Real, Gil Vicente criou um teatro de sátira social, ou um “teatro de ideias”, que critica sem questionar ou apresentar alternativas. Em mais de cinquenta obras, observou a sociedade quinhentista, denunciando os males, os desvios, os vícios, dizendo verdades com um aparente “sem sentido”, através do anedótico e do caricatural, e criando personagens-tipo, figuras paradigmáticas da sociedade do seu tempo.

O «Auto da Lusitânia» (1532), um dos mais ricos que o autor produziu e do qual fazem parte as cenas analisadas, é constituído por um quadro realista, tratado à maneira de farsa, no início, e por uma comédia alegórica/simbólica sobre as origens de Portugal. A «fala do licenciado» (1ª cena) apresenta dois judeus que estão a pensar como organizar uma festa para comemorar o nascimento de D. Manuel, filho do rei D. João III, e que concluem que Gil Vicente seria a melhor escolha. Então, o licenciado entra e faz a apresentação de Gil Vicente e do assunto que ele quer representar e, a seu modo, ensinar aos espectadores. Por sua vez, o «diálogo de Todo o Mundo e Ninguém» é comentado por dois demónios escondidos (Berzabu e Dinato), servidores de Lúcifer, para quem têm de relatar tudo o que ouvem e vêem; Todo o Mundo (rico mercador) quer dinheiro, honra muito grande, vida luxuosa e paraíso, mesmo que para tal tenha de enganar e lisonjear; Ninguém (pobre) procura a consciência, a virtude, a morte digna, a verdade, o desengano e aceita ser repreendido sempre que erra; esta preferência de Ninguém pela vida simples, despojada mas verdadeira, é a mensagem de Gil Vicente.

Apesar de ter estado “em sintonia com a moral e os valores cristãos”, Gil Vicente foi criticado e inclusive perseguido e censurado pela Inquisição.

Sempre viva e actual, a obra de Gil Vicente reflecte já, para a Literatura, a necessidade de liberdade de consciência e de opinião.

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Requiem — Introito (1625), de Frei Manuel Cardoso (1566-1650) Portugal viveu, nos séculos XVI e XVII, uma situação de isolamento e de subalternidade cultural devido à perda da independência e à aplicação total das decisões do Concílio de Trento (único país que o fez), com a introdução da Contra-Reforma e do Índex. Neste contexto — de medo, de estado depressivo e de fervor religioso —, as ciências e as artes (plásticas, literárias, teatrais.) foram as primeiras a serem afectadas, assim como a música profana, que quase desapareceu. Em contrapartida, a música religiosa desenvolveu-se com renovado vigor, para responder às imposições tridentinas e devido à actividade dos mestres de capela das sés catedrais e dos conventos. Foi nesta atmosfera que surgiram várias escolas de música, nomeadamente a Escola de Évora e, neta, Frei Manuel Cardoso. Frei Manuel Cardoso foi a personalidade criativa mais original da Escola de Évora, um dos mais importantes compositores da história da música portuguesa polifónica e, como tal, reconhecido pelos seus contemporâneos. Organista e contrapontista, está inserido no Maneirismo musical. Teve o privilégio de ver algumas das suas obras impressas em Lisboa por Pedro Craesbeeck e foi aplaudido em Madrid. Escreveu, pelo menos, três Livros de Missas, um de motetes, um sobre cântico Magnificat, publicado em 1613 e outros que não foram impressos ou que faziam parte da Livraria de Música de D. João IV, destruída com o terramoto de 1755. Cumprindo os princípios de ascetismo da Regra carmelita e as orientações da Contra-Reforma (toda a missa com algo de ímpio ou lascivo deve ser excluída), a sua obra pautou-se pela mensagem artística submetida ao prestígio da Palavra bíblica e litúrgica, valorizando o texto claro e audível. Através de grande virtuosismo técnico, apresenta influências de músicos coevos, como Palestrina e Victoria, mas também um estilo próprio, místico, expressivo, dramático, com um acentuado conteúdo emocional. As suas peças eram cantadas a 4, 6 ou 8 vozes e acompanhadas por instrumentos de sopro, de corda e órgão. As missas do 1.º livro foram baseadas em motetes de Palestrina, as do 2.° em obras indicadas pelo futuro D. João IV e as do 3.° por temas de Filipe IV. O Requiem ou Missa dos Defuntos (Missa Pro Defunctis) inclui-se no livro das missas de 1625. Organiza-se em: Introitus: Requiem aeternam; Kirie; Graduale: Requiem aeternam In memoria; Qffertorium: Domine lesu Criste; Sanctus & Benedictus; Agnus Dei I, II &III; Communio: Lux aeterna; Responsorium: Libera me. Enquanto a Europa vivia a revolução musical com o Barroco, Portugal elegia, na música sacra, a polifonia ao stilo antico.

O que interessa saber: • Qual o papel da Contra-Reforma na música da época? • Relacione o estádio da música religiosa com a situação da arquitectura, da pintura e da escultura

portuguesas. • Descreva os sentimentos/emoções que esta música lhe provoca.

Vida e obra 1574-75 — Estuda no Colégio dos Moços do coro da Catedral de Évora onde tem como mestre Manuel Mendes. 1588 — Tomou o hábito no Convento dos Carmelitas, Lisboa. 1589 — Tornou-se mestre de capela e organista, subprior e vigário do provincial da Ordem. 1613 — Publicou Cantica Beatae Virginis. 1618-25 — Viveu no Paço dos Duques de Bragança, contactando com o futuro D. João IV de Portugal. Dedicou-lhe o 1. ° Livro de Missas, em 1625, e o 2.° em 1636. 1636 — Patrocinado por Filipe IV, rei de Espanha, publica o 3.º Livro de Missas que contém a Missa Philippina em sua honra. 1648 — Escreveu Livro de Vários Motetes.