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scientiæ zudia Estudos de Filosofia e História da Ciência

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scientiæ zudiaEstudos de Filosofia e História da Ciência

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scientiæ zudiaEstudos de Filosofia e História da Ciência

Vol. 1, No. 1, jan. ● mar. 2003

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scientiæ zudiaEstudos de Filosofia e História da Ciência

Revista do Departamento de Filosofia – FFLCH – USP

Vol. 1, No. 1, jan. ● mar. 2003

isbn 1678-3166

Editor Responsável

Pablo Rubén Mariconda

Comissão Editorial

Claudemir Roque Tossato, Maurício de Carvalho Ramos, Regina André Rebollo, Valter Alnis Bezerra.

Conselho Editorial

Alberto Oscar Cupani, Alberto Villani, Antonio Augusto Passos Videira, Caetano Ernesto Plastino,Charbel Niño El-Hani, Edélcio Gonçalves de Souza, Eduardo Salles de Oliveira Barra, Fátima ReginaÉvora, Henrique Fleming, Hugh Lacey, Jean-Jacques Szczeciniarz, João Carlos Salles Pereira da Silva,José Roberto Machado Cunha da Silva, Júlio Celso Ribeiro de Vasconcelos, Luiz Henrique de AraújoDutra, Luiz Henrique Lopes dos Santos, Marcos Barbosa de Oliveira, Marisa Carneiro de OliveiraFranco Donatelli, Michel Paty, Nelson Papavero, Osvaldo Pessoa Jr., Otávio Augusto Bueno, PauloAbrantes, Rolf Nelson Kuntz e Ronaldo Rogério de Freitas Mourão.

Universidade de São Paulo

Reitor: Adolpho José MelfiVice-Reitor: Hélio Nogueira da Cruz

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Diretor: Sedi HiranoVice-Diretora: Eni de Mesquita Samara

Departamento de Filosofia

Chefe: Olgária Chain Feres MatosVice-Chefe: Maria das Graças de Souza

Correspondência editorial

scientiæ zudiaAv. Prof. Luciano Gualberto, 315Cidade Universitária ● USP05508-900 ● São Paulo ● [email protected]

Publicação Trimestral

Tiragem: 500 exemplares

Projeto gráfico e capa: Camila Mesquita

Editoração: Logaria Brasil

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Sumário

artigos

A ciência e as idas e voltas do senso comum ● 9Michel Paty

Os modos da teleologia em Cuvier, Darwin e Claude Bernard ● 27Gustavo Caponi

Origem da vida e origem das espécies no século XVIII:as concepções de Maupertuis ● 43Maurício de Carvalho Ramos

documentos científicos

Lógica, experiência e autoridadena carta de 15 de setembro de 1640 de Galileu a Liceti ● 63Pablo Rubén Mariconda

Carta de Galileu Galilei a Fortunio Liceti em Pádua ● 75

Conarius e memória na carta de 1 de abril de 1640 de Descartes a Mersenne ● 81Marisa Carvalho de Oliveira Franco Donatelli

Carta de René Descartes a Marin Mersenne ● 87

notas e críticas

Clonagem humana e ética: o caso Clonaid-Raelianos ● 93Maurício de Carvalho Ramos

“De humani corporis circus” de Gunther von Hagens ● 101Regina André Rebollo

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Editorial

Com este número tem início a publicação de Scientiæ zzzzzudia, periódico trimestraldedicado aos estudos filosóficos e históricos sobre a ciência, entendida na acepção ampla deciência exata, natural e humana, e sobre o impacto da aplicação técnica e tecnológica no con-junto da cultura e da sociedade. Nesse sentido, Scientiæ zzzzzudia está aberta a contribuiçõesque visem entender a ciência como manifestação da cultura e expressão do estágio atual doprocesso civilizatório, analisando os aspectos internos que podem caracterizar racional eautonomamente a ciência e detendo-se também no conjunto dos valores sociais que dão sus-tentação às práticas científicas e tecnológicas, nas quais se põe a questão da responsabilidadeética e social dos cientistas.

O número se inicia com o texto do Professor Michel Paty que até 2001 foi diretor cien-tífico da Equipe REHSEIS (Recherches Epistémologiques et Historiques sur les Sciences Exac-tes et sur les Institutions Scientifiques) do CNRS (Centre National de la Recherche Scienti-fique), vinculada ao DEA d’Epistémologie et Histoire des Sciences da Université de Paris 7 -Denis Diderot. Todos os demais trabalhos publicados são de professores e pesquisadores querealizaram estágios de doutorado-sanduíche, de pós-doutorado ou de pesquisa junto à EquipeREHSEIS. Scientiæ zzzzzudia presta, assim, uma homenagem a Michel Paty, inestimável mestree colaborador entusiasta, que durante os últimos quinze anos teve um papel decisivo para aconsolidação das áreas de filosofia e história da ciência no Brasil. De março de 1989 a fevereirode 1991, ocupou a cátedra francesa junto ao Departamento de Filosofia da Universidade de SãoPaulo, período no qual estreitou os laços de amizade e aprofundou seu sincero interesse pelonosso país e por nossa cultura. De volta à França, Michel Paty ocupou, por suas ações e empre-endimento, o centro das relações entre a França e o Brasil, principalmente em suas áreas deatuação: a filosofia e a história da ciência. Acolheu, no seio da Equipe REHSEIS, sistemática eininterruptamente estudantes, pesquisadores e professores brasileiros, nos seus respectivosestágios de pesquisa, sempre com generosidade e dedicação, firmemente ancoradas no valorfilosófico da promoção da amizade entre os homens. Sua atuação, na orientação de teses e nadiscussão de pesquisas, foi decisiva para que ele ocupasse um lugar privilegiado como difusor,no meio acadêmico brasileiro, de um estilo de pesquisa acadêmica que valoriza a reflexão filo-sófica rigorosa sobre a ciência profundamente enraizada no estudo de seu desenvolvimentohistórico. Os textos aqui publicados possuem, por assim dizer, esse estilo híbrido, essa mesclaindistinta, de filosofia e de história e, nesse sentido, permitem apreciar a influência entre nósdo estilo de reflexão sobre a ciência praticado por Michel Paty.

É, portanto, com imensa satisfação que damos a público esta nova revista, na esperan-ça de que Scientiæ zzzzzudia contribua para a divulgação e o aprofundamento da compreensãofilosófica e histórica da ciência, permitindo ampliar os laços acadêmicos entre pesquisadores,grupos de pesquisa e professores universitários interessados na reflexão crítica sobre o pen-samento científico.

Pablo Rubén Mariconda

editor responsável

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A ciência e as idas e voltas do senso comum

A ciência e as idas e voltas do senso comumMichel Paty

RESUMO

Não podemos conceber a compreensão e a comunicação de idéias sem fazer referência ao senso comum.Porém, por outro lado, todo conhecimento novo que seja importante precisa ultrapassar o senso co-mum e, portanto, romper com ele. Essas duas exigências, aparentemente contraditórias, podem serconciliadas? E, se for o caso, de qual maneira? Devemos, na verdade, reconhecer que, quando conheci-mentos novos são adquiridos e bem compreendidos, assimilados, completamente inteligíveis, e atéensinados; quando neles nos baseamos para avançar na direção de conhecimentos ainda mais novos,estes que foram adquiridos participam da constituição de um senso comum, modificado, diferente doprecedente, mas que tem tanto direito quanto este à qualificação de “ senso comum ”, exatamente nomesmo sentido que o antigo. Desta maneira, o senso comum se enriquece pela assimilação dos conhe-cimentos científicos. Mostraremos como ele beneficia-se, de fato, das “ampliações” da racionalidadeque permitem compreender de que maneira o progresso do conhecimento torna-se possível. Váriosexemplos examinados na área da física contemporânea (com a teoria da relatividade e a teoria quântica)ajudarão a explicitar concretamente a tese assim resumida. Estas considerações têm implicações éticas,do ponto de vista da comunicação, pela possibilidade de compartilhar o conhecimento em termos inte-ligíveis com os não-especialistas, através do senso comum submetido à crítica. Uma reflexão epistemo-lógica se faz necessária a respeito dos elementos de significação do conhecimento a serem compartilha-dos prioritariamente.

PALAVRAS-CHAVE ● Senso comum. Popularização. Compreensão. Comunicação. Racionalidade. Inteligi-bilidade. Ética. Física quântica. Teoria da Relatividade.

Introdução

Não podemos conceber a compreensão ou a comunicação sem fazer referência ao sen-so comum, que é uma espécie de terreno fértil para nosso pensamento e nossas ações.Porém, por outro lado, não existe possibilidade de aparecimento de novos conheci-mentos de uma certa importância, sem ultrapassar o senso comum e, portanto, semromper com ele. Estas duas exigências, aparentemente contraditórias, podem ser con-ciliadas? E, se for o caso, de qual maneira?

Sabemos, em muitos casos, que os conhecimentos realmente novos surgem aodestronar certas idéias admitidas anteriormente como evidentes em nome do senso

scientiæ zudia, Vol. 1, No. 1, 2003, p. 9-26

artigos

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Michel Paty

comum (por exemplo, na matemática ou na física, das geometrias não euclidianas até afísica quântica, e também em outras disciplinas como a biologia evolucionista ou a bio-logia molecular etc.). Uma vez assimiladas e plenamente compreensíveis, tais idéiaspassam a ser ensinadas e até divulgadas, atingindo o grande público e, simultanea-mente, servem de base para se avançar na direção de outros conhecimentos ainda maisinovadores. Um novo “senso comum” foi reconstituído a partir delas, diferente da-quele que o precedeu, mas exercendo a mesma função para a compreensão e a comu-nicação. Deste modo, o senso comum é enriquecido pela assimilação dos conhecimentoscientíficos e, de maneira geral, pela experiência humana.

Tentaremos mostrar que ele beneficia-se, de fato, das “ampliações” (dos “alar-gamentos”) da racionalidade, única maneira de conceber que progressos sejam possí-veis no campo do conhecimento. Vários exemplos examinados na área da física con-temporânea (com a teoria da relatividade e a teoria quântica) ajudarão a explicitarconcretamente a tese assim resumida. Estas considerações têm implicações éticas, doponto de vista da comunicação, pela possibilidade de compartilhar o conhecimentoem termos inteligíveis com os não-especialistas, através do senso comum submetido àcrítica. Uma reflexão epistemológica se faz necessária a respeito dos elementos de sig-nificação do conhecimento a serem compartilhados prioritariamente. Concluiremoscom uma evocação destas questões sobre a ética.

1. O senso comum

Começaremos por esclarecer o que se entende pela expressão “senso comum”. Pode-se dizer, numa primeira abordagem, que o “senso comum” é uma disposição geral detodos os seres humanos para se adaptar às circunstâncias da existência e da vida ordi-nária. EIe se relaciona tanto aos sentidos, por levar em conta dados dos órgãos senso-riais, quanto à capacidade de raciocínio, de reflexão sobre os elementos de uma situa-ção. Na expressão “senso comum”, a palavra “senso” se refere a uma espécie de sínteseinstintiva (mas também intuitiva) imediata, enquanto o termo “comum” indica ocarácter ordinário, difundido, provavelmente generalizado, desta faculdade. Todaviaestes termos, senso, comum e senso comum são ambíguos e recobrem uma pluralidadede significações possíveis, como podemos ver nas suas mais variadas utilizações emdiferentes épocas.

Para alguns, “senso comum” equivale à “opinião comum” e se relaciona com osusos de uma cultura ou de uma dada civilização, impregnado de seu imaginário e deidéias convencionais ou preconceituosas: neste caso, senso comum se opõe à razão crí-tica e ao espírito científico. Para outros, o “senso comum” seria um fundo de noções e

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A ciência e as idas e voltas do senso comum

de aptidões necessárias ao exercício da capacidade de julgar partilhado por todos oshomens, inscrito por toda a eternidade na natureza humana, que constituiria a baseinalterável de todo pensamento racional e, portanto, de toda ciência. Tratar-se-ia deuma retomada da noção de “bom senso”, entendido como razão, segundo a conhecidaafirmação de René Descartes no Discurso do Método: “A capacidade de bem julgar e dedistinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que denominamos ‘bom senso’ou razão, é naturalmente igual em todos os homens”).1

Na realidade, a aceitação da expressão “senso comum” em sua utilização correntevariou com o tempo. Ora ela foi tomada como a base de nossos julgamentos racionais,ora (principalmente da metade do século XIX até o século XX) vista, sobretudo, como amatriz de opiniões equivocadas que constituem um obstáculo ao pensamento científico.

Entretanto, expressões familiares e bastante difundidas hoje em dia como “osenso comum o diz, rapaz”, ou “isso não tem senso comum”,2 sugerem uma aceitaçãoimplícita da noção de “senso comum” pelo... senso comum, que valoriza seu lado ra-cional e sua legitimidade “natural” como instância de julgamento. Precisamente porisso, tais expressões não suprimem a ambigüidade da noção, que lhe parece ser ine-rente: mesmo ao enfatizar a referência à razão, elas implicam a idéia de um julgamentomédio adaptado à vida prática e social, que se deve tanto ao hábito quanto à opinião e àsconvenções. Ela também supõe que a razão que deve guiar o julgamento é a de que dis-pomos, nutrida dos conhecimentos admitidos. Mas o que é que nos dá a garantia deque esta “razão prática” seja suficiente para a constituição ou a aquisição de novosconhecimentos?

As próprias ciências e suas respectivas histórias fornecem-nos, por duas razões,dados preciosos de apreciação. Em primeiro lugar, a ciência, enquanto o conjunto dosconhecimentos científicos, que também compreende a evolução desses conhecimen-tos, constitui um fato inegável (um fato histórico, cultural, antropológico), com seusresultados verificáveis, por um lado, nas aplicações ao mundo real e, por outro, na uni-

dade do pensamento conferida por ela (unidade parcial, mas em contínuo progresso).Essa unidade inclui a consciência da unidade da matéria e do mundo (a mesma matériado cosmo, dos átomos, das formas orgânicas etc). A segunda razão é que o conhecimentocientífico coloca-se, mais explicitamente que outras formas de pensamento humano,

a questão de sua própria certeza: ele pratica, metodicamente, a crítica permanente dos

1 “La puissance de bien juger et de distinguer le vrai d’avec le faux, qui est proprement ce qu’on nomme le bon sensou la raison, est naturellement égale en tous les hommes” (Descartes, 1996, p. 2).2 As expressões comuns em francês são: “le sens communs le dit, petit!”; “cela n’a pas de sens commun”.

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conhecimentos anteriores e se interroga sobre sua legitimidade, o que implica, porsua vez, questionar a legitimidade dessa própria legitimidade. As ciências nos oferecemum terreno fértil para compreender como a compreensão é possível, e como uma talpossibilidade se deve às transformações do próprio senso comum.

Mas antes de recorrer às lições dos conhecimentos científicos, já podemosconstatar que o próprio senso comum, apreendido de maneira reflexiva, é capaz deengendrar sua própria transformação. Pode-se dizer, a este respeito, com HenriPoincaré, Emile Meyerson, Paul Langevin, Albert Einstein e alguns outros, que o pen-samento científico nada mais é do que um senso comum mais aguçado (Meyerson, 1908;1921; 1931). Entretanto, o “gume” característico do pensamento científico leva amodificações por vezes radicais das noções e das aproximações do senso comum, comoveremos mais adiante. A transformação do senso comum ocorre desde que nos pro-pomos a compreender as formulações verbais da linguagem, os pensamentos e as açõesda vida corrente. Compreender, isto é, explicitar e interrogar suas significações, o que pas-sa necessariamente pela crítica do que é, no princípio, dado como evidente porque

comum (comumente recebido). Tal é o primeiro sentido da filosofia e de suas contí-nuas interrogações.

Pode-se encontrar um exemplo extremamente significativo em uma obra deambição à primeira vista “simples” como o Tractatus logico-philosophicus de LudwigWittgenstein,3 cujas proposições são colocadas, ao mesmo tempo, como imediatamenteadmissíveis e apontam, sem condescendência, as primeiras evidências aparentes, co-meçando por aquelas da linguagem. A leitura desse livro (mas o mesmo se poderá dizerde outros, como, por exemplo, a Ética de Baruch Spinoza4) equivale, de alguma manei-ra, a realizar um parto socrático que termina por instaurar novas condições para a ex-pressão de proposições que sejam legitimamente aceitáveis. O que corresponde a umaelaboração do senso comum enquanto crítico dele mesmo. Essa reflexividade analítica ecrítica do senso comum é o que lhe permite estar muito mais em conformidade com asidéias de significação e de verdade. A lição não é fundamentalmente diferente daqueladas ciências. Mas estas últimas nos ajudam a precisá-la e a ampliá-la.

3 Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus (Wittgenstein, 1961; 1994). Ver também as observações dessemesmo autor sobre o senso comum em Notebook 1914-1916 (1961; 1971) e também no seu On certainty (1969).4 Espinosa (1964). Ver o estudo de Marilena Chaui (1999).

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A ciência e as idas e voltas do senso comum

2. Conflito e renovação: o caso da teoria da relatividade

A história das disputas entre o pensamento científico e o senso comum é uma boa ilus-tração das ambivalências deste último. Gaston Bachelard mostrou, em sua obra A for-

mação do espírito científico (La formation de l’esprit scientifique), como os conceitos dasciências clássicas se impuseram nos séculos XVII e XVIII, opondo-se a noções e concep-ções comuns geradas por preconceitos, por imagens de origem psicológica e por ana-logias mais imaginativas do que racionais (Bachelard, 1938). Podem ser constatadosconflitos desse gênero em muitos capítulos da ciência contemporânea; por exemplo,tanto na resistência do público quanto na dos próprios homens de ciência aos novosconhecimentos.

A recepção à teoria da relatividade de Einstein, em suas duas formas, a restrita ea geral, constitui disso um excelente exemplo. Os que se opunham à teoria evocavam osenso comum ou o bom senso, entendidos como a simples razão natural, para levantar-secontra as noções abstratas, teóricas, puramente matemáticas, como a de espaço-tem-po da relatividade restrita, ou a de curvatura do espaço da relatividade geral. Os parti-dários da teoria de Einstein replicavam evocando um outro senso comum, que se apóiaem uma análise mais crítica dos fenômenos para justificar as novas concepções e, so-bretudo, para torná-las compreensíveis.

Um exemplo notável dessa apresentação das idéias relativistas, segundo um sensocomum renovado, é a que foi exposta em 1911 pelo físico Paul Langevin aos filósofosreunidos num congresso em Bolonha, na Itália. Depois de apresentar as razões da con-cepção relativista da física que renovava o quadro conceitual da mecânica clássica,Langevin propôs uma “experiência de pensamento”, concernente a um fenômeno fí-sico característico da nova teoria. Trata-se da experiência de pensamento do “viajantede Langevin”, ou dos “gêmeos de Langevin”, justamente celebrada (e, também, malentendida no início por certas pessoas), já que possibilitava a compreensão detalhadado sentido físico dos conceitos relativistas de espaço e de tempo.5

É útil explicar em poucas palavras a idéia essencial do raciocínio de Langevin,6

que foi um dos primeiros físicos a adotar a teoria da relatividade de Einstein, tanto arelatividade restrita (que trata dos movimentos de inércia, lineares e uniformes) quan-to a relatividade geral (que trata dos movimentos acelerados e do campo de gravitação).Ele entendeu ao mesmo tempo a forma matemática (o espaço-tempo quase-euclidiano

5 Sobre a recepção da teoria da relatividade, cf. Glick (1987); Paty (1987; 1996; 1999a).6 Paul Langevin (1971-1946), físico francês. Ver a seu respeito a publicação recente: Bensaude-Vincent, Bustamante,Freire e Paty (2002).

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de Minkowski no que diz respeito à primeira, a métrica espaço-temporal variável emcada ponto e os espaços não-euclidianos no que concerne à segunda) e a significaçãofísica correspondente concernente às modificações do espaço e do tempo. Excelentepedagogo, Langevin tinha o dom, como Einstein, de uma notável intuição física, quelhe permitia conceber os fenômenos físicos possíveis ilustrando mais diretamente asnovas visões teóricas. Foi dessa maneira que ele imaginou as “experiências de pensa-mento” que possibilitavam “naturalmente” a compreensão das implicações das duasfases da teoria da relatividade (a do “viajante de Langevin” no caso da relatividade res-trita; a do “obus de Júlio Verne”, no caso da relatividade geral). As idéias da primeirasão as seguintes:

Suponhamos um viajante do espaço que se afastaria da Terra com velocidade bas-tante próxima à da luz, e que ficaria em comunicação com o planeta através da troca desinais eletromagnéticos, retornando à Terra ao cabo de dois anos de seu tempo de reló-gio. (A inversão da direção, que não será considerada aqui, mas que se produziria aofinal de seu primeiro ano, poderia ser feita rapidamente aproveitando o campo degravitação de uma estrela). “Retornando à Terra, dois anos mais velho, ele sairá de seuarco e encontrará nosso globo envelhecido em duzentos anos, se sua velocidade semantivesse somente no intervalo inferior de um vigésimo de milésimo da luz”. Essavelocidade determina o fator de dilatação do tempo do projétil com relação ao de umrelógio terrestre. Apesar das dificuldades práticas consideráveis, uma tal viagem é emprincípio possível. Langevin descreve minuciosamente como os terráqueos e o viajan-te trocariam infomações sobre seus respectivos envelhecimentos através de sinais ele-tromagnéticos, luminosos ou rádio, o que os tornaria compreensíveis uns aos outrossem dificuldade.

Durante a viagem de ida, como eles se afastam um do outro, os sinais levariammuito tempo para chegar até eles : “ Cada um deles verá o outro viver duzentas vezesmais lentamente do que normalmente ”, e o viajante, durante o primeiro ano, só re-ceberá os sinais dos dois primeiros dias terrestres. Além do mais, esses sinais serãodeformados pelo efeito Doppler-Fizeau: o viajante os receberá com um comprimentode onda duzentas vezes mais longo que os emitidos pela Terra nesses dois dias. Na vol-ta, ocorreria o inverso: os sinais recebidos pelo cosmonauta teriam um comprimentode onda duzentas vezes mais curto que os emitidos da Terra, e “cada um deles verá ooutro viver uma vida particularmente acelerada (...) e o explorador, no ano que duraráseu retorno, verá a Terra realizar os gestos de dois séculos”. No total, o viajante terávisto “a Terra se afastar e se aproximar dele num espaço de tempo igual, do seu pontode vista, a um ano, enquanto que a Terra (...) vê o viajante dela se distanciar num es-paço de dois séculos e voltar em dois dias, isto é, em um tempo quarenta mil vezesmais curto”. (A dissimetria entre os dois espaços de tempo, o da Terra e o do viajante,

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A ciência e as idas e voltas do senso comum

deve-se ao fato de que o viajante foi submetido a uma inversão de direção, provocadapor um movimento acelerado, que passa a considerar um referencial privilegiado)(Langevin, 1923, p. 265-300).

A descrição das circunstâncias da viagem imaginada por Langevin deixava claroque os conceitos de espaço e de tempo da relatividade restrita não são puras abstraçõesmatemáticas e que elas têm um conteúdo preciso do ponto de vista dos fenômenos fí-sicos: um tal conteúdo poderia tornar-se concreto relacionando-se o tempo aos reló-gios e as velocidades às variações de comprimento das ondas luminosas. O sentido fí-sico dos conceitos ia desse modo, sem descontinuidade, da forma teórica e matemáticaà sua ação sobre nossas percepções e nossas sensações. Os novos conceitos de espaço ede tempo eram tão racionais e naturais quanto os antigos (e o eram ainda mais, pois seadaptavam melhor ao conjunto dos fenômenos físicos) e se conciliavam igualmentecom aqueles do senso comum – um senso comum renovado. Mas esse novo senso co-mum diferia do antigo pelo fato de fazer sua uma visão crítica de noções que anterior-mente foram recebidas sem análise: admitia uma crítica das “noções comuns” como asde espaço e de tempo.

3. Comunicação e universalidade do conhecimento:

a lição de Galileu e de Langevin

No exemplo que acabamos de evocar, o caráter “natural” dos novos conceitos, isto é,seu acordo com os fenômenos, é aceito tanto pelos homens de ciência, especialistas naárea, que podem acompanhar as explicações de equações ou de experiências reais,quanto pelo público que não conhece os detalhes teóricos ou técnicos. Pelo menos esteúltimo pode doravante ter uma idéia do que está em jogo e integrar na sua própria visãodo mundo, em sua cultura pessoal, as lições tiradas da relação entre os conceitos e osfenômenos e da significação da mediação teórica numa representação científica.

Esta lição tem uma importância considerável. E é a mesma já proposta por Ga-lileu nos seus dois longos diálogos7, nos quais a argumentação, racional e com relaçãoaos fenômenos, possibilitava a toda pessoa dotada de bom senso (e motivada por umavontade sincera) a compreensão da maior verdade do sistema do mundo de Copérni-co em detrimento do de Ptolomeu, ou das leis elementares da mecânica e da queda

7 Cf, de Galileu, o Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano (1970; 1992), recente-mente traduzido em português e ricamente comentado por Pablo Rubén Mariconda (Galilei, 2001); e o Discurso em

torno de duas novas ciências (Galilei, 1958).

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Michel Paty

dos corpos. Toda pessoa dotada de bom senso (e de boa vontade): isto é, dispondo desenso comum.

Para Galileu e também para Langevin, o senso comum não se opõe ao conheci-mento científico, já que, ao contrário, é graças a essa capacidade que seus leitores ououvintes podem começar a compreender o que antes ignoravam. Eles somente preci-sam apurar seu senso comum, desembaraçá-lo dos preconceitos, submeter as idéiasao crivo da dúvida e da crítica, como, aliás, Descartes o preconizava. O senso comumnão só resulta mais apurado desse exercício como, ao mesmo tempo, ele se nutre dosnovos conhecimentos que lhe parecem doravante evidentes, aumentando assim apotencialidade de sua razão, cujo campo se amplifica e cujas exigências são aprofun-dadas. Mais profundamente ainda que o senso comum, é a própria racionalidade quese amplia.

4. O desafio da física quântica

Pode-se perguntar até que ponto os conceitos da física quântica também podem sercompreendidos, em princípio, pelo “homem da rua”, se lhe falamos de átomos, denúcleos e de partículas elementares, de difracção de elétrons ou de nêutrons, da não-separabilidade quântica, das oscilações de neutrinos, do princípio de exclusão de Pauli,do condensado de Bose-Einstein, do gato de Schrödinger e da “decoerência”. A práti-ca da divulgação científica é mais difícil e delicada no que diz respeito à física quântica,pois esta é uma área que escapa às representações habituais. Sua relação com o mundofamiliar dos objetos e dos fenômenos clássicos é necessariamente remota e indireta(Hoffmann & Paty, 1981).

Entre um “objeto” quântico no sentido próprio (diz-se de preferência um siste-

ma quântico) e um objeto no sentido familiar da física clássica, tem-se a dupla barreiraconceitual das pequenas dimensões e dos grandes números. Para as dimensões: 10-8

cm (para o átomo) e 10-13 cm (para o núcleo), quando nossos sentidos só conseguemalcançar o micron (10-4 cm) graças a um microscópio. E para os números: o do Avogadro,N = 6 x 1023 situa-se entre a molécula-grama que se pode pesar numa balança, e a mo-lécula-unidade, que exige para ser alcançada que se desça deste número... astronômico.

Por um lado, têm-se os objetos macroscópicos, com seus meios habituais de des-crição: posição, velocidade, forma etc. Por outro, os objetos microscópicos, que nossão conhecidos somente pelos efeitos que eles produzem em certos fenômenosmacroscópicos, em geral por estatística: interferências de corpúsculos sobre uma gra-de (microscópica) de difracção, necessidade de modificar a lei da radiação em umacavidade, efeito fotoelétrico, supra-condutividade, efeito laser, condensação de Bose-

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A ciência e as idas e voltas do senso comum

Einstein etc. Embora tenhamos acesso a fenômenos produzidos por sistemas quânticosindividuais, como se tornou possível depois de várias décadas, é ainda através de expe-riências estatísticas (repetidas muitas vezes num mesmo sistema) que se pode acederàs suas leis por experiência.

É estritamente impossível representar uma “partícula quântica individual” coma ajuda de noções elementares com as quais descrevemos os objetos. Além do mais,supondo-se que possamos isolar, “descascando” sucessivamente um átomo-grama deuma dada substância de seus átomos, um ínfimo número de átomos ou um único átomoao fim da operação (há algum tempo, isto é feito nos laboratórios, onde se sabe isolaros átomos, mesmo as partículas elementares), ele escaparia de nossa apreensão in-tuitiva, já que ele não é localizável no espaço. Seu caráter não localizável, aliás, dá ori-gem a várias propriedades específicas dos sistemas quânticos como a interferência deuma partícula quântica consigo mesma por difracção, ou a não-separabilidade (ou“intricação”8) de duas partículas quânticas que uma vez estiveram ligadas num mesmosistema.

A descrição do campo quântico em termos simples e segundo conceitos usuais,ou pelo menos clássicos, que corresponderiam ao senso comum, parece então im-possível à primeira vista. Toda tentativa de utilização de analogias clássicas tenderia,neste caso, ao fracasso. Ela não esclareceria nem o senso comum, nem a razão (o julga-mento racional).

5. Conceitos e teorias na física clássica e em física quântica

Esclareceremos brevemente alguns dos conceitos da física quântica, para mostrar commais precisão como é que o problema da compreensão, nessa área, é colocado.

A física clássica descreve os sistemas físicos graças a conceitos expressos porgrandezas matemáticas, em geral contínuas, como o espaço (x), o tempo (t), a veloci-dade (v), a massa (m), a impulsão (v), a energia (E), o movimento angular (J), o campoelétrico (E), a carga elétrica (e) etc. As leis da física (mecânica, teoria da gravitação,eletromagnetismo, termodinâmica etc.) são transcritas por equações diferenciais en-tre essas grandezas (elas fazem intervir suas mudanças recíprocas instantâneasinfinitesimais: dx, dt etc.) cujas soluções (por integração) são valores de grandezasfinitas, mensuráveis graças à ajuda de instrumentos. Esses instrumentos são, por sua

8 Em francês “intrication”; em inglês “entanglement”. O termo foi proposto por Erwin Schrödinger em 1935. Cf.Schrödinger (1935; 1984).

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vez, regidos pelas leis da física clássica. Tanto a teoria quanto a experiência permitemdeste modo um “acesso direto” aos objetos e aos fenômenos considerados.

A física quântica não possibilita um “acesso direto” nesse mesmo sentido, por-que os objetos (átomos, partículas elementares, radiações) escapam à percepção dire-ta e tornam-se conhecidos através de fenômenos que não podem ser descritos da mes-ma maneira como os descritos acima. Esses fenômenos chegam ao nosso conhecimentoatravés de instrumentos clássicos, ao mesmo tempo escapando à descrição clássica.Tornam-se conhecidos através dos valores das grandezas clássicas correspondentesaos conjuntos estatísticos. Entretanto, é possível caracterizar experimentalmente (de-pois de uns vinte anos) sistemas quânticos individuais e não apenas conjuntos estatís-ticos. A descrição teórica fornece a explicação disso, se admitimos que esses sistemasindividuais só podem ser pensados graças unicamente aos conceitos quânticos, semreferi-los aos conceitos clássicos utilizados na medida.

A teoria quântica descreve com precisão as propriedades dos sistemas quânticos,mas através da intervenção de grandezas “abstratas”, de expressão matemática, muitodiferente do que a física clássica nos havia habituado, e cujas relações são igualmenteequações diferenciais, cujas soluções permitem encontrar as grandezas de tipo clássi-co, observadas e medidas. As regras de correspondência põem em relação as grandezasquânticas (teóricas) e as grandezas (clássicas) observadas.

As grandezas quânticas são a função de estado e as variáveis dinâmicas (chamadas“observáveis”, embora elas só o sejam indiretamente, através das quantidades clássi-cas). A função de estado é, matematicamente, um “vetor de espaço de Hilbert”, as vari-áveis dinâmicas são os “operadores” (de diferenciação, ou matrizes) agindo sobre a fun-ção de estado. As leis da física quântica são equações escritas com essas entidades,“equações de valores próprios”, cujas soluções fornecem o espectro dos valores possí-veis dessas grandezas, correspondendo às obtidas através de observação. A diferençaentre a fase de descrição teórica e a de observação consiste no fato de que a segundanos fornece separada e consecutivamente cada um dos estados possíveis (Y1, Y2, Y3 ,…),enquanto a primeira indica globalmente o conjunto desses estados “superpostos” (tra-ta-se do “princípio de superposição”). Com efeito, a mais geral função de estado é umasuperposição linear de soluções possíveis (Y= a1Y1+ a2Y2+ a3Y3+…). Os estados obser-vados na aparelhagem correspondem a cada um dos elementos da superposição (Yi)afetado por uma probabilidade fornecida pelo seu módulo quadrado (Pi= |Yi|

2).O “problema de interpretação”, na física quântica, volta a ser essencialmente o

da significação da diferença e da relação por um lado, entre os estados e grandezas teó-

ricos; e, por outro, os estados e grandezas observados , já que todas as propriedades es-pecificamente quânticas podem ser consideradas como consequências da aplicação doprincípio de superposição.

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6. As interpretações voltadas para o senso comum

Foi então possível obter uma descrição teórica dos sistemas quânticos: a teoria quântica

em suas diversas formas – mecânica quântica, teoria quântica do campo etc. – que, sobmuitos pontos de vista, é incomparavelmente mais precisa e mais sujeita a condições(preditiva) que as da física clássica. Apesar disso, a teoria quântica é freqüentementeconsiderada como um “formalismo matemático”, cujas grandezas (função de estado,variáveis dinâmicas, operadores) não teriam uma contrapartida física direta: o vínculocom os fenômenos observados é fornecido por certas regras, como a “interpretaçãoprobabilista” da função de estado, elaborada por Max Born em 1926. A função de estado

é uma grandeza com propriedades matemáticas definidas com precisão, cujo quadradoda amplitude fornece as probabilidades das configurações de estado observadas, ouobserváveis, correspondendo aos resultados estatísticos das medidas. A função de es-tado (também chamada “função de onda”, mesmo se ela não representa uma onda real)é solução da equação do sistema e possibilita exprimir, graças às suas propriedadesmatemáticas, todas as características da descrição dos fenômenos físicos especifica-mente quânticos.

O conhecimento racional, teórico, do domínio quântico que escapa aos sentidose ao senso comum é, portanto, possível e sua comunicação pelo ensino beneficia-sedoravante de uma longa e rica experiência. Mas qual é, neste caso, o estatuto do sensocomum? Seria tentador aqui estabelecer uma distinção radical entre uma comunica-ção dirigida ao público, que se tornaria praticamente impossível devido à incapacidadedo senso comum de aceder a esse domínio abstrato, e uma outra, reservada aos espe-cialistas, unicamente fundada sobre o “formalismo matemático” da teoria quântica esobre o savoir-faire (ou know-how) experimental, o único capaz de recuperar o sentidofísico.

Entretanto, pode-se considerar artificial uma tal solução, pois os especialistasda física quântica não são feitos de uma matéria diferente da do “homem da rua” quesupostamente se interessaria pelos quanta. Ora, os físicos também experimentam anecessidade de compreender “intuitivamente” e de modo sintético o que eles abor-dam tecnicamente, através do formalismo matemático e das experiências realizadas.Nisso consiste toda a questão da “interpretação” da física quântica, principalmente dasua forma mais “simples”, a mecânica quântica, com seu aparelho teórico abstrato esuas experiências, aparentemente paradoxais.

No fundo, o cuidado com que os fundadores da física quântica abordavam a ques-tão da interpretação não se dissocia da preocupação de tornar simples e intuitivamentecompreensíveis a todo espírito “racional” a significação de um fenômeno quântico, àscustas de um esforço de integração intelectual dos diversos elementos conceituais, te-

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óricos, experimentais, para assimilá-los numa visão sintética imediata. Isso seriarealmente “compreender” os fenômenos quânticos, que se tornariam completamenteinteligíveis para nós. Uma vez que essa assimilação é feita para consigo mesmo e, emseguida, partilhada entre especialistas, deveria ser possível tornar o essencial com-preensível a todo mundo dotado de razão e de um pouco de boa vontade para aprender.Se o que se acaba de dizer tem um sentido, ainda é pela expressão “senso comum”, masentendida como capacidade universal de perceber a razão das coisas, que esse sentidoseria melhor exprimido. E é isso que parece continuar pendente na área da físicaquântica, já que os próprios especialistas não estão certos de terem chegado a issosatisfatoriamente. Ou, pelo menos, nem todos chegaram às mesmas conclusões, por-que eles não têm absolutamente a mesma concepção do que seja a racionalidade nessedomínio.

Voltemos alguns instantes à questão da interpretação na física quântica e às di-ferentes posições a seu respeito, consideradas nas suas grandes linhas (Jammer, 1971).

A natureza abstrata e indireta da descrição pela teoria quântica suscitou muitosproblemas de compreensão dessa teoria. Os físicos manipulavam com sucesso oformalismo, mas sem poder referi-lo a entidades que pudessem ser representadas in-tuitivamente, como as grandezas clássicas. Esta dificuldade para o senso comum, ine-rente às próprias condições da física quântica, deu origem ao debate sobre a interpreta-

ção da mecânica quântica, a fim de propor uma inteligibilidade (conforme ao sensocomum) dessa área do conhecimento.

A posição de Niels Bohr e da “Escola de Copenhague” respondia em termos deprocedimentos de observação: só se deve considerar um sistema quântico no interior dodispositivo (clássico) de sua medida, adequada à nossa percepção (portanto, às nossasnoções comuns); e a descrição desse conjunto é feita pelas grandezas clássicas, muni-das de condições de restrição. Segundo esta concepção, a noção de sistema físico real

existente independentemente de suas condições de observação (e mesmo concebível in-dependentemente de tais condições) é desprovida de sentido. Outros físicos (Louis deBroglie, David Bohm, Jean-Pierre Vigier etc.) avançavam a necessidade de manter aidéia de uma descrição direta dos sistemas, insistindo num determinismo, oposto àslimitações probabilistas (e necessidade para eles do senso comum): sugerindo com-pletar a descrição quântica (estatística e indeterminista) com variáveis suplementaresocultas “deterministas”. Outros ainda, com Einstein, davam ênfase à necessidade deanalisar os sistemas físicos reais individuais, mesmo ao admitir um grau elevado de abs-tração dos conceitos e das teorias, e um maior afastamento entre a representação teó-rica e os dados empíricos: o “senso comum”, entretanto, lhes parecia pedir a perma-nência da idéia de uma localização espacial precisa, que os sistemas quânticos nãorespeitavam.9

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Uma concepção, um pouco diferente, do “realismo quântico” manteria a idéia desistemas físicos reais individuais, admitindo completamente a importância do ponto devista crítico da teoria quântica em comparação com os conceitos clássicos. O conheci-mento desses sistemas refere-se à percepção só indiretamente, tomando como dadobruto os resultados da observação, dado que informa o entendimento, estando este livrepara elaborar suas construções teóricas. O “senso comum”, como instância de julga-mento, exigiria, para uma teoria direta, a coerência teórica e a representação mais es-tritamente fiel dos fenômenos em suas especifidades. Ora, uma tal representação jáexiste; inegavelmente trata-se da do formalismo da atual teoria quântica, já que o quedá conta desses fenômenos é sua propriedade fundamental de superposição linear dasfunções de estado. Tais fenômenos são produzidos experimentalmente a partir do pen-samento teórico (por grandezas quânticas como a função de estado), que eles contri-buem dessa maneira a tornar concreto e intuitivo apesar de seu carácter inicial abstrato(conforme a fórmula de Langevin: “O concreto é o abstrato tornado familiar pelo uso”).Esses fenômenos são predominantemente a difracção e a interferência de partículas,produzidas individualmente entre si mesmas; a interação de átomos individuais comseu própio campo magnético; as “oscilações de neutrinos”; as propriedades dos siste-

mas quânticos idênticos indiscerníveis, com o princípio de exclusão de Pauli; e a“condensação de Bose”; e ainda a “decoerência quântica” recentemente observada.10

Eles teriam sido impensáveis sem a teoria quântica e seus conceitos, fazendo-nos, porassim dizer, ver com os próprios olhos11 estes últimos e a realidade do sistema quânticodo qual eles são os efeitos, da função de estado que os descreve. Nesse sentido, umanova intuição e um novo senso comum adequados à realidade quântica foram constituí-dos, dando-nos uma inteligibilidade mais imediata dos fenômenos quânticos.

7. A formação de uma inteligibilidade intuitiva

A questão da inteligibilidade, pelos homens de ciência, dos fenômenos quânticos e dasleis dos sistemas físicos que nela se baseiam, relaciona-se, portanto, com a questão daassimilação pelo senso comum, na mesma medida que a ela se pode relacionar a questão

9 Sobre algumas dessas posições, cf. em particular: Bohr (1958); Einstein & Born (1969; 1972); Langevin (1934);Bohm (1980); Bell (1987); Espagnat (1994). Cf. também Freire (1995); Paty (1988; 1995; no prelo).10 Cf. Zurek (1991); Griffin, Snoke & Stringari (1995); Haroche, Brune & Raimond (1997). Sobre os aspectosepistemólogicos destas questões, cf. Paty (1999b; 2000a; 2000b).11 Em francês: “toucher du doigt”.

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da comunicação desses conhecimentos. Constata-se que, na maior parte das interpre-

tações, o senso comum deve ser modificado para assimilar tais conhecimentos.De fato, os físicos que se consagram à física quântica são levados a transformar

seu próprio senso comum de maneira mais prática do que discursiva, chegando a com-preender de modo sintético e, por assim dizer, diretamente, a significação das grande-zas teóricas em termos de fenômenos. O que se torna possível tanto ao analisar-se es-ses fenômenos, quanto ao criá-los, materializando de algum modo os elementos dateoria em fenômenos físicos que eles podem manipular. Desse modo, eles constituempara si mesmos uma inteligibilidade intuitiva dos conceitos quânticos que não passa maispor conceitos clássicos. E assim não se surpreendem mais diante dos fenômenos ex-perimentados no laboratório, que chocariam o senso comum corrente, já que eles secolocam no mesmo plano do sistema de conceitos que exprime a possibilidade de taisfenômenos. A teoria física lhes terá permitido conceber, a partir de seus conceitos tãoafastados das representações clássicas, fenômenos físicos que então é possível ver. Aocontrário, na fase de aprendizagem da área quântica, parecia ser necessário referir todoconhecimento a um ver imediato (o dos instrumentos de observação). Essa compre-ensão familiar não submissa ao diktat clássico resulta de uma assimilação teórico-fenomênica que precisou desfazer-se das sujeições do senso comum anterior, paraaceder a uma racionalidade mais imediata. Para esta, não é necessária uma interpreta-ção suplementar, já que ela fornece diretamente a inteligibilidade dos conceitos e dosfenômenos. E é o próprio vínculo entre os conceitos e os fenômenos que atravessa aestrutura dessa nova racionalidade ampliada (Paty, 2001a; 2001b; 2002).

8. No rumo da questão “inteligibilidade e ética”

Essas considerações têm implicações éticas, sob vários pontos de vista, que não pode-mos analisar aqui; queremos apenas concluir com sua breve evocação. Está claro paratodos que os problemas éticos apontados pelo conhecimento científico na sua relaçãocom o senso comum dizem respeito às aplicações desses conhecimentos, e seus efeitossobre o mundo, sobre o homem (não somente os medicamentos, a biogenética ou osmeios de morte: pensemos, por exemplo, nas florestas de antenas que começaram acobrir a superfície da Terra a partir da teoria magnética de James C. Maxwell e as expe-riências de Heinrich Hertz). Os problemas dessa natureza se multiplicam atualmentee sua importância é crucial para o mundo de amanhã. Eles testemunham visivelmenteo vínculo que existe entre os conteúdos dos conhecimentos científicos, o pensamentocientífico e as outras dimensões do pensamento e das atividades humanas nas quais osenso comum ainda tem um papel mais direto. Eles mostram como o pensamento ra-

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cional e que visa a objetividade é inseparável da vontade e de escolhas éticas, seja naunidade singular dos espíritos individuais ou nas coletividades sociais.

Mas a dimensão ética não diz respeito somente às aplicações técnicas e práti-cas do conhecimento científico. Ela concerne ao próprio conhecimento enquantopensamento.

A ética reside também e sobretudo no próprio movimento que leva o pensamen-to científico, do qual se apropria o indivíduo, a escolher livremente a submissão à idéiade verdade, que o conduz a uma autêntica ascese intelectual e espiritual.12 Uma asceseque não abra mão da exigência de racionalidade e que aceite mudar a sua concepçãoinicial do que é racional para tornar-se mais fiel à idéia de racionalidade, que trans-cende e anima, num processo imanente, seu pensamento. Uma tal ética implica aomesmo tempo uma preocupação com o processo de comunicação, isto é, com a possi-bilidade de compartilhar o conhecimento em termos inteligíveis com os não-especia-listas (Lopes & Silva, 1990) através do senso comum submetido à crítica. Uma reflexãoepistemológica a respeito da significação e das condições de comunicação dos elementosdo conhecimento a serem partilhados se faz necessária. Aqui estamos diante de outrasconsiderações, mas convergentes com as que analisamos sobre a inteligibilidade.O que aí está em jogo é a natureza e o alcance da própria ciência: é claro que uma refle-xão desse tipo é necessária para a vida da ciência, acompanhando a aparição dos seusnovos conteúdos de conhecimento. Sem uma compreensão reflexiva que possa garan-tir que a ciência tenha consciência dela mesma nas suas diversas dimensões, corre-seo risco de asfixiá-la, por mais rica que seja.

Traduzido do original em francês por Maria Aparecida Corrêa-Paty

Conferência proferida no I Congresso Internacional de Divulgação Científica (UNESCO/Associação Brasileira deDivulgação Científica – ABRADIC/Reitoria da USP). São Paulo, de 26 a 29 de agosto de 2002.

Michel Paty

Diretor científico da Equipe REHSEIS (UMR 7596),

CNRS e Université Paris 7-Denis Diderot,

Paris, França.

[email protected]

12 Refiro-me aqui às idéias de ascese e de ética do conhecimento científico exprimidas por Jacques Monod (Mo-nod, 1970).

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abstract

Understanding and communication cannot be conceived without referring to common sense. But, fromanother side, the coming out of significant new knowledge needs overrunning this common sense, whichimplies breaking out with it. Can these two exigencies, which appear at first sight contradictory, be con-ciliated? One must consider that when truly new knowledges are assimilated and have become fullyintelligible, so as to be taught, and even popularized, and to serve as a basis to go further towards other,newer, knowledges, the first ones are henceforth part of a new “common sense”, modified and differentfrom the preceding one, but still having the same function for understanding and communication. Weshow, by taking various examples from contemporary physics (relativity theory and quantum physics),that this renewed common sense takes profit of the widenings of rationality which allow to conceive thata progress of knowledge is possible. These considerations entail ethical implications, from the point ofview of communication, concerning the sharing of knowledge with non-specialists in intelligible terms,through a common sense submitted to the requirement of criticism. Consequently, it appears necessaryto think about the elements of meaning of knowledge whose sharing has priority, and about the condi-tions of such a sharing.

KEYWORDS ● Common sense. Popularization. Understanding. Comunication. Rationality. Intelligibility.Ethics. Quantum physics. Relativity theory.

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Os modos da teleologia em Cuvier , Darwin e Claude Bernard

Os modos da teleologiaem Cuvier, Darwin e Claude Bernard

Gustavo Caponi

RESUMO

A biologia pré-darwiniana reconhecia nos seres vivos uma finalidade dupla: as diferentes estruturasorgânicas, além de estar constituídas e articuladas de modo a integrar um ser organizado, possibilita-vam também a adequação desse ser a seu entorno. Todavia, esta dupla conformidade a fim, que Cuvierainda concebe como um único conjunto de condições que definem a própria possibilidade de um orga-nismo, na biologia contemporânea aparecerá cindida em duas ordens de fenômenos diferentes. Assim,após a identificação do ponto de inflexão na história das ciências da vida, no qual se gerou essa cisão,investigamos neste trabalho as condições conceituais que a exigiram e possibilitaram. Propomos comoresposta que essa “mitose conceitual” teve sua razão de ser no fim da idéia clássica de economia natural;e sugerimos ainda que a mesma deve ser considerada no contexto de uma mudança no ideal de ordemnatural próprio da história natural.

Palavras-chave ● G. Cuvier. C. Darwin. C. Bernard. Teleologia. História da biologia.

Apresentação

Como Uexkúll (1945, p.175) soube certa vez assinalar: “nos seres vivos adultos distin-guimos uma dupla conformidade a fim: de um lado, cada organismo está adaptado con-forme um fim em si mesmo, e de outro, o organismo está adaptado conforme a fim aseu entorno”. E, de certo modo, era a ambas as formas de teleologia que Cuvier (1817,p.6) aludia na célebre formulação do princípio das condições de existência, “vulgar-mente denominado princípio das causas finais”, que encontramos em O reino animal

(Le règne animal): “como nada pode existir se não reúne as condições que tornam suaexistência possível” – podemos ler ali – “as diferentes partes de cada ser devem estarcoordenadas de maneira que tornem possível o ser total, não somente em si próprio,mas também com relação àqueles seres que o circundam”.

Todavia, esta dupla conformidade a fim que Cuvier concebe como um único con-junto de condições que definem a própria possibilidade de um organismo, no discurso

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da biologia contemporânea mostrar-se-á cindida em duas ordens de fenômenos di-ferentes. A primeira delas é a teleologia interna para a qual o próprio Bernard (1878,p. 340) reconhecia um papel fundamental na fisiologia. A segunda é esta adaptação doorganismo a seu meio que só o darwinismo permitiu erigir como objeto de pesquisacientífica (Sober, 1993, p. 83).

A teleologia interna, se quisermos ser mais exatos, é aquela à qual aludia Kant(1992, § 66, p. 296) na terceira crítica, quando definia um produto organizado da na-tureza como “aquele em que tudo é fim e, reciprocamente, meio”. Ou, se preferirmosas palavras do próprio Bernard (1878, p. 137), podemos falar de um corpo organizado edefini-lo como um sistema onde “todas as ações parciais são solidárias e geradorasumas das outras”. A outra conformidade a fim, no entanto, é aquela a que Darwin (1859,p. 200) fazia referência quando, em A origem das espécies (On the origin of species), afir-mava que “cada detalhe da estrutura de toda criatura vivente (...) pode ser consideradade utilidade especial para alguma forma ancestral ou de utilidade especial na atualida-de para os descendentes de dita forma, ora direta ora indiretamente, através das com-plexas leis do crescimento”.

Mas, para além da correta distinção de ambas as ordens de teleologia, tema quejá nos ocupou em trabalhos anteriores (cf. Caponi, 2001; 2002), o que aqui nos inte-ressará são as razões do divórcio entre essas duas formas da conformidade a fim que,segundo dissemos, cabe verificar na biologia contemporânea. Assim, após a identifi-cação do ponto de inflexão na história das ciências da vida no qual se gerou essa cisão,investigaremos as condições conceituais que a exigiram e possibilitaram.

Neste sentido, e reconhecendo que, por ora, só se trata de duas conjecturas a serposteriormente desenvolvidas e justificadas, diremos que essa “mitose conceitual” tevesua razão de ser mais imediata no fim da idéia clássica de economia natural; e, a seguir,nos permitiremos sugerir que ela teve também uma razão mais mediata, ainda que tal-vez mais fundamental, numa mudança daquilo que, seguindo Toulmin, caracterizare-mos como o ‘ideal de ordem natural’ próprio da história natural.

1. Os modos da teleologia

Como Russell (1916, p. 34) tem sublinhado, e apesar de que, conforme acabamos dever, a formulação do princípio das condições de existência aluda, de certo modo, aoentorno dos organismos (cf. Grimoult, 1998, p. 15; Lopez Piñero, 1992, p. 23), as con-dições externas de existência, o ambiente, não são fatores muito considerados no pen-samento de Cuvier. Nas análises funcionais das estruturas anatômicas que encontra-mos em seus textos, o entorno nunca chega a ser um entorno ecológico concreto, mas

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Os modos da teleologia em Cuvier , Darwin e Claude Bernard

qualquer coisa genérica como podem ser um meio aquático ou terrestre, ou uma dietaherbívora ou carnívora.

“Por condições de existência”, observava muito bem Foucault, “Cuvier entendiaa interseção de dois conjuntos: de uma parte, o conjunto das correlações que são fisio-logicamente compatíveis entre si e, da outra parte, o meio no qual o organismo vive,isto é: a natureza das moléculas que ele haverá de assimilar ora pela respiração ora pelaalimentação” (Foucault, 1994, p. 34; cf. Cuvier, 1805, p. 4). Na idéia cuvieriana de con-dições de existência (conditions d’existence) entra alguma coisa mais vagamente seme-lhante ao meio cósmico (milieu cosmique) bernardiano que às condições de vida(conditions of life) darwinianas. É possível dizer, nesse sentido, que o enfoque de ClaudeBernard fica mais próximo ao interesse de Cuvier que ao enfoque de Darwin; o que nãoé tão surpreendente, se considerarmos que, conforme Cuvier (1805, p. iii e ss.) expli-cava a Mertrud, a anatomia comparada era para ele basicamente um método para o es-tudo não experimental da fisiologia orgânica (Balan, 1979, p. 158).1

Por isso, e indo um pouco além de Russell (1916, p. 43; 1948, p. 286 n.), pode-mos dizer que Darwin não somente fez um uso restritivo da noção de condições de exis-tência, mas acabou também por desvirtuar essa noção. Em A origem das espécies, naúnica referência que se faz ao princípio formulado por Cuvier, a expressão em questãoé usada como equivalente a condições do ambiente (Darwin, 1859, p. 206). No entanto,para Cuvier, as condições de existência têm a ver, antes de mais nada, com a condição

1 Hoje, no espaço de inteligibilidade inaugurado por Darwin, lemos a anatomia comparada como um conjunto deevidências que testemunham a evolução e a genealogia dos seres vivos, isto é, como uma disciplina pertencente aocampo da biologia evolutiva. Mas isto pode nos levar ao engano quando tentamos compreender o significado queessa disciplina tinha para Cuvier. Para ele, e isto é óbvio, a anatomia comparada não podia ter um significado genea-lógico mas, sim, morfológico e fisiológico. Sua meta era revelar padrões de correlação entre órgãos; leis relativas aomodo em que a forma e o funcionamento de um órgão determinavam a forma e o funcionamento de outro. E, nestesentido, pode-se dizer que, por seu objetivo cognitivo, que era o estudo da economia animal (Balan, 1979, p. 73),ainda que não por seu método, que era comparativo e não experimental (Appel, 1987, p. 47; Jacob, 1973, p. 201;Lenoir, 1982, p. 63), a anatomia comparada cuvieriana aproxima-se mais do domínio do que hoje chamamos biologiafuncional do que do domínio da biologia evolutiva. Considerar o projeto bernardiano como sendo uma reformulaçãoem termos experimentais do projeto de Cuvier é mais correto que considerar o pensamento deste último como sen-do o empecilho que desbaratou uma “aurora gálica” do pensamento evolucionista (cf. Buffetaut, 2001; Coleman,1964; Corsi, 2001; Grimoult, 1998; Laurent, 2001; Le Guyader, 1998b). Para nós, a expressão história natural sópode ser um modo mais literário, ainda que um tanto fora de moda, de se aludir à biologia evolutiva. Mas, paraCuvier (1817, p. 3-4), ela era equivalente à física particular (physique particulière); isto é, um conjunto de disciplinascujo objeto era “aplicar aos numerosos e variados seres que existem na natureza, as leis reconhecidas pelos diferen-tes ramos da física geral, com o fim de explicar os fenômenos que cada um desses seres apresenta”; e, na medida emque era uma física aplicada ao estudo da economia animal, podemos dizer que história natural dos seres organizados(Lenoir, 1982, p. 63) era para Cuvier algo muito próximo do que hoje chamamos fisiologia (Balan, 1979, p. 73).

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de possibilidade de um ser vivo considerado em si mesmo como um todo coerente eharmônico, ou organizado; e isso se faz evidente quando, num pequeno escrito sobreas analogias zoológicas (cf. Coleman, 1964, p. 189-90), a idéia de condições de exis-tência aparece vinculada à idéia de não-contradição: “todas as combinações que sãonão-contraditórias são possíveis; em outras palavras, tudo aquilo que tem uma condi-ção de existência, cujas partes cooperam numa ação comum, é possível” (Cuvier apud

Coleman, 1964, p. 189).Darwin, de sua parte, “tomou a expressão ‘condições de existência’ para signifi-

car as ‘condições ambientais’ e considerou a lei das condições de existência como a leida adaptação ao ambiente” (Russell, 1916, p. 239). Mas, como o próprio Russell apon-ta, não era isso o que Cuvier entendia por tais expressões: em O reino animal, elas sãointroduzidas para aludir à “coordenação das partes na formação do todo” (cf. Lenoir,1982, p. 63). Para Darwin, no entanto, as condições de existência, que ele tornahomólogas das condições de vida, têm somente a ver com as contingências da luta pelasobrevivência.

Mas, mesmo que, das duas conformidades a fim previstas por Cuvier, Darwin sótenha retido como objeto de sua indagação aquela que esse autor deixou subordinadacomo segundo plano; isso não significa que a outra conformidade a fim tenha sido es-quecida pela biologia. Longe disso, e conforme já o apontamos na apresentação, a fisi-ologia experimental, cujo projeto Bernard enuncia com total clareza na sua Introdução

ao estudo da medicina experimental de 1865, não poderá deixar de assumir essa teleologiainterna como sendo sua idéia reguladora fundamental: entender um fenômeno orgâ-nico não somente exige contar com uma explicação causal que nos mostre quais sãosuas condições antecedentes; mas também pressupõe uma análise funcional capaz deindicar o papel desse fenômeno na constituição e preservação do organismo.

Como Kant o entreviu, sem a noção de organismo entendido como entidade auto-constituinte (sem a noção de produto organizado da natureza) nunca poderíamos pas-sar do puro domínio da física ao domínio dessa física do vivente que é a biologia funcio-nal (Keller, 2000, p. 106; Lebrun, 1993, p. 600; Marques, 1987, p. 192; Merleau-Ponty,1953, p. 215); e era também a isso que Claude Bernard (1984, p. 137) chamava a atençãoquando dizia que:

“Enquanto o físico ou o químico pode negar toda idéia de causas finais nos fatosque eles observam; o fisiólogo é levado a admitir uma finalidade harmônica epreestabelecida nos corpos organizados cujas ações parciais são solidárias e gera-doras umas das outras. É necessário reconhecer, por isso, que se decompomos oorganismo vivente isolando as diferentes partes, é somente para facilitar a análi-se experimental, e não para conceber essas partes isoladamente. Quando se quer

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dar a uma propriedade fisiológica seu valor e sua verdadeira significação, sempreé necessário remeter-se ao conjunto e não tirar nenhuma conclusão definitivasem levar em consideração seus efeitos com relação a esse conjunto”.

Por isso, enquanto fisiólogos filósofos, dizia Bernard (1878, p. 340), podemosadmitir um tipo de finalidade particular ou de teleologia intra-orgânica, segundo a qual“todo ato de um organismo vivo tem seu fim na interioridade desse organismo”.“O agrupamento dos fenômenos vitais em funções”, acrescentava Bernard, “é a ex-pressão desse pensamento”. Com efeito, a função – nada menos que o objeto privilegi-ado da fisiologia (Coleman, 1985, p. 241) – não era outra coisa para Claude Bernard(1878, p. 370) que “uma série de atos ou de fenômenos agrupados, harmonizados, comvistas a um resultado determinado”. E, ainda que, para a execução de uma função, “asatividades de uma multidão de elementos anatômicos” convergissem entre si, tal fun-ção não podia ser reduzida à “soma bruta das atividades elementares e células justa-postas” (Bernard, 1878, p. 370). Longe disso, para individualizar uma função, para queseja possível descrever um conjunto de atividades orgânicas como cumprindo uma fun-ção, devemos considerar essas atividades como “harmonizadas, concertadas, de formaque convirjam para um resultado comum” (Bernard, 1878, p. 370).

Porém, para que possamos entender os organismos enquanto seres vivos – e nãomeramente como sistemas físicos de alta complexidade – temos que ir além da análisefisiológica e além da teleologia intraorgânica. Isto é: somos levados a considerar estaoutra forma de conformidade a fim que tem a ver com a relação que existe entre o orga-nismo e seu meio ambiente2. A teoria darwiniana da seleção natural aparece então comoaquela que nos permite pensar essa adequação de uma perspectiva científica. Pode-sedizer, por isso, que a principal contribuição do darwinismo tem sido a de permitir umacolocação e um tratamento não-teológico daquele problema que Newton formulou, navigésima oitava questão de sua Óptica: “Por que os corpos dos animais são projetadoscom tanta arte, e para que fins são suas várias partes?” (Newton, 2000, § 28, p. 279).

Quase coincidindo no seu ponto de partida com a teologia natural que encontra-mos em Paley e também em Lineu, o argumento apresentado em A origem das espécies

está baseado na presunção de que o mundo orgânico pode e deve ser compreendido emvirtude das adaptações que nele se manifestam; mas a teoria da seleção natural nospermite fazer isso sem que tenhamos de apelar para a idéia de um artífice supremo(Campbell, 1983, p. 192; Ruse, 1983, p. 323; Gould, 1994, p. 138; Brandon, 1999, p. 383).

2 Relação que, como Conry (1974, p. 734) aponta, Bernard (1878, p. 147) deixava explicitamente fora do escopo e dointeresse da fisiologia.

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A Inversão Darwiniana

Voltamos assim a nossa oposição inicial entre as duas teleologias: a de Kant ou Bernard,e a de Darwin. Porém, ao fazer isso, não podemos deixar de notar algo que tem a vercom o modo pelo qual se vinculam ambas as formas de adequação a fim. Referimo-nos, especificamente, ao fato de que, dentro da biologia contemporânea, a teleologiadarwiniana é, em certo sentido, o fundamento ou a razão de ser da teleologia intra-orgânica. É que, mesmo sem esquecer que o fisiólogo e o biólogo funcional não preci-sam, em geral, nem da idéia de seleção natural, nem da idéia de um projeto divino paradizer que a função do coração é bombear o sangue;3 se nos perguntamos sobre como épossível que existam seres cujas partes ou totalidade sejam meios e fins ao mesmo tem-po, talvez, a única forma, permitida pela ciência atual, de levantar e responder essapergunta seja aquela proposta por Darwin.

A presunção de que no organismo nada é em vão – presunção essa legitimada porKant (1992, § 66 p. 296) como máxima na terceira crítica – não corresponde à idéiadarwiniana segundo a qual cada estrutura orgânica responde, direta ou indiretamente,às exigências da seleção natural. Porém, uma tal presunção está baseada num certo prin-cípio de economia: “nada há no organismo que não tenha um papel a cumprir”; e esseeco da navalha de Occam parece antecipar ou pedir uma fundamentação darwiniana: senão é um austero Deus pietista, quem poderia estar por trás dessa frugalidade vitorianasenão a cruel seleção natural? (cf. Darwin, 1859, p. 455).

Para Kant, a estrutura e o funcionamento dos seres organizados, e até sua consti-tuição individual, podiam e deveriam ser objeto da ciência natural. Para ele, a idéia doque temos chamado de teleologia interna funcionava como um princípio heurístico,uma máxima, que guiava a análise causal. Ela, como apontou Cassirer (1967, p. 400),“prepara o terreno para a explicação causal assinalando os fenômenos e os problemassobre os quais ela haverá de projetar-se”. Mas, para o próprio Kant, a condição de pos-sibilidade dos seres auto-organizados era algo que fugia a qualquer explicação em ter-mos da ciência natural; por isso, no parágrafo 75 da terceira crítica, Kant reputa comoum absurdo “esperar que um Newton possa ainda nascer para explicar mesmo que sejaapenas a geração de uma folha de erva a partir de leis da natureza as quais nenhumaintenção organizou” (Kant, 1992, §75, p. 338). Assim, não sendo esta questão objeto daciência natural, ela só podia permanecer como motivo de mera reflexão teológica (cf.Kant, 1992, §75, p. 338-9).

3 A noção de ser organizado, por si própria, serve de sustentação categorial para esse juízo: Harvey nada deve, nessesentido, nem a Darwin nem a Paley.

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E eis precisamente o lugar onde se dá a grande ruptura do darwinismo: a teoriada seleção natural permitiu que entendêssemos a existência desses seres econômicose austeros, nos quais cada coisa tem uma função a cumprir, sem apelar para a teologiado artífice supremo. Ali onde só parecia caber uma reflexão teológica, Darwin nos fezver a forma e a possibilidade de um novo domínio de indagação científica. Aquilo queaté então estava prometido à teologia transformara-se, com ele, em assunto de ciência(Sober, 1993, p. 82 e ss.).

Mas, malgrado Haeckel,4 Darwin não foi, falando estritamente, aquele “Newton

da folha de erva” ao qual Kant aludia; porque, longe de excluir a finalidade da biologia, oque aquele ex-tripulante do Beagle fez, foi mostrar como é que uma tal finalidade po-deria tornar-se inteligível dentro de uma perspectiva naturalista. Todavia, para queessa naturalização da teleologia fosse possível, era mister inverter a maneira como abiologia pré-darwiniana vinculava a teleologia intra-orgânica com a adequação das es-truturas orgânicas ao meio.

Com efeito, relativamente à maneira pela qual a perspectiva cuvieriana relacio-na as duas teleologias, a relação estabelecida por Darwin implica uma inversão de hie-rarquias. Na biologia darwiniana, de certo modo, as exigências do meio são primáriascom relação à estrutura interna do organismo. Isso não significa que, para Darwin, aestrutura interna do organismo não conte. Apenas que ela não é a chave principal parase entender o fenômeno biológico. Isso é exatamente o oposto do que, segundo vimosmais acima, acontece na perspectiva cuvieriana. Ali, o que chamamos de teleologia in-terna é o fundamental. É mister, portanto, não confundir o funcionalismo cuvierianocom o adaptacionismo darwiniano.

Assim, ainda que Amundson tenha razão ao apontar a importância da oposiçãoentre a perspectiva darwiniana e a perspectiva morfológica ou estruturalista da biologiapré-darwiniana; ele está incorrendo numa confusão quando vincula essa última opo-sição àquela outra aludida por Russell em Forma e função (cf. Admudson, 1988, p. 154).Nesta obra, no contexto de uma comparação entre as perspectivas de Cuvier e de EtienneGeoffroy Saint-Hilaire, Russell (1916, p. 78) contrapõe “a atitude teleológica, com asua insistência na prioridade da função sobre a estrutura, à atitude morfológica, com oseu convencimento da prioridade da estrutura sobre a função”. Ademais, Russell con-sidera esse contraste “um dos mais fundamentais da biologia”.

4 Obnubilado pela sua interpretação mecanicista da teoria da evolução, Haeckel acredita replicar a Kant dizendoque “no entanto esse Newton, reputado impossível, apareceu sessenta anos mais tarde. Foi Darwin que, com a teoriada seleção, resolveu o problema reputado insolúvel” (Haeckel, 1961, p. 77).

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Porém, o que ali Russell entende por atitude teleológica não é o privilégio doestudo da adaptação do organismo ao ambiente sobre a análise de sua coerência estru-tural. Trata-se, antes, do privilégio do estudo da unidade funcional do organismo so-bre o estudo de sua pauta morfológica. Russell, é verdade, fala de adaptação funcional,mas o que ele entende por isso não é a adaptação darwiniana às condições de vida, masantes a adequação de uma estrutura à sua função na economia animal. De fato, no quetange à oposição por ele colocada, e conforme se evidencia dois parágrafos mais abai-xo, Russell põe Darwin ao lado de Geoffroy e não ao lado de Cuvier. Já no que diz res-peito à oposição pertinentemente salientada por Admudson, Cuvier – como bem apon-tavam Webster e Goodwin (1996, p. 15 e ss.) – fica do mesmo lado de Geoffroy e deOwen; isto é: do lado do estruturalismo e da tipologia, na calçada oposta à de Darwin.5

2. O kantismo cuvieriano

Sem negligenciar definitivamente o estudo de qualquer coisa semelhante a isso quehoje, darwinianamente, chamamos de adaptação, acontece que tanto o projeto cuvie-riano quanto o bernardiano (Bernard, 1878, p. 340; 1984, p. 137; Cuvier, 1805, p. 46)centravam-se nessa teleologia intra-orgânica que Kant, segundo já o apontamos, ti-nha considerado como inerente à definição de ser organizado (Russell, 1916, p. 35;Cassirer, 1948, p. 161).6 Assim o reconhece Cuvier (1805, p. 6) nas primeiras páginasde suas Lições de anatomia comparada, quando cita textual e explicitamente a noçãokantiana de ser organizado.

Mas esse interesse se exprime melhor no princípio de correlação das formas nosseres organizados introduzido no “Discurso preliminar” ao Pesquisas sobre os ossamentos

fósseis dos quadrúpedes (Recherches sur les ossements fossiles de quadrupèdes) de 1812. Se-

5 Podemos encontrar erros análogos ao de Admudson em Ruse (1983) e em Gould (2002). Assim, em A revolução

darwiniana e citando este célebre parágrafo de Forma e função, Ruse (1983, p. 189) vincula o que Russell chama deatitude teleológica com o modo utilitário de entender as estruturas biológicas proposto pelos teólogos como Paley(1809). O comentário de Ruse abona, ademais, o duplo erro que cometem Coleman (1964, p. 43) e Appel (1987,p. 46) ao vincular o funcionalismo cuvieriano com uma teleologia a la Paley que, por sua vez, ambos confundem como pensamento aristotélico (cf. McClellan, 2001, p. 7). Gould (2002, p. 329), de sua parte, considera o conflito entreo formalista Owen e o adaptacionista Darwin como um replay da polêmica entre o formalista Geoffroy e o funcionalistaCuvier. Na realidade, e até onde pudemos apreciar sua derradeira e monumental The structure of evolutionay theory,Gould (cf. 2002, p. 251) não toma muito cuidado em distinguir funcionalismo de adaptacionismo.6 Por isso, ainda quando tenha razão em apontar que a posição de Cuvier não supõe o apelo a uma teleologia a la

Paley, McClellan (2001, p. 7) se equivoca ao não reconhecer o lugar que a teleologia interna, a la Kant, continua a tertanto no pensamento de Cuvier quanto no de Bernard.

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gundo este outro princípio, que é a genuína pedra basilar do projeto cuvieriano (Russell,1916, p. 35; Le Guyader, 1998a, p. 24), “todo ser organizado forma um conjunto, umsistema único e fechado, no qual todas as partes se correspondem mutuamente, e con-vergem para a mesma ação definitiva por uma reação recíproca” (Cuvier, 1992, p. 97).Do ponto de vista de Cuvier, para que um organismo possa adaptar-se às exigências doseu ambiente num sentido mais ou menos próximo ao darwiniano, devia ser antes umaestrutura possível, isto é, uma estrutura submetida às constrições formais derivadasdesse princípio de correlação das formas.

Sob esta perspectiva, complementada por sua vez pelo princípio da subordina-ção dos caracteres (Cuvier, 1817, p. 10), as estruturas anatômicas, que definem o modopelo qual um animal se vincula ao seu entorno e às suas fontes de alimento, são umcorolário de sua organização interna (id., ibid., p. 69). Grande parte do que hoje pode-ríamos chamar estratégias ou estruturas adaptativas era, para Cuvier (1805, p. 57), umaresultante necessária de certas leis de coexistência que regem a fisiologia dos organis-mos, e não uma simples resposta às exigências do ambiente.

Assim, e conforme lemos em O reino animal (Cuvier, 1817, p. 70-1), “é a respira-ção moderada dos mamíferos o que em geral os dispõe a marchar sobre a terra comforça e de uma maneira contínua”; e é em virtude dessa mesma necessidade, e não pelamediação de algum processo lamarckiano ou darwiniano de adaptação, que “um ani-mal que não pode digerir outra coisa que carne, deve, sob pena de destruição da suaespécie, ter a faculdade de perceber sua presa, de persegui-la, de capturá-la, de vencê-la, de despedaçá-la”. Ele precisa, por isso e de maneira imperiosa, diz Cuvier, “de umavisão aguda, de um olfato delicado, de uma carreira rápida, e de força nas patas e nasmandíbulas” (Cuvier, 1805, p. 55).

Para Cuvier, um organismo é um sistema cuja harmonia ou coerência interna,sua condição de existência, somente pode ser percebida considerando sua inserção noentorno; mas seu modo de inserção nesse entorno não é independente de sua própriaorganização interna: um aspecto não pode ser considerado sem o outro. Isto é: na suaconcepção da teleologia orgânica, a adequação ao entorno não somente está subordi-nada, mas é também absorvida na teleologia interna; esta é um aspecto daquela (cf.Nordenskiöld, 1949, p. 383; Gohau, 1974, p. 90; Le Guyader, 1988, p. 114).

Eis aí, mais uma vez, a grande e dupla diferença entre o ponto de vista cuvierianoe o darwiniano. Pois, em Darwin, existe não apenas uma inversão na hierarquia dasteleologias; senão que, já antes, e como condição de possibilidade dessa mesma in-versão, foi mister que acontecesse uma radical cisão entre ambas noções. Porém, seessa separação entre a teleologia de Kant e a de Paley, ou entre a teleologia de Bernard ea de Darwin, pode ser considerada como sendo um princípio de funcionamento legiti-mado pelos desenvolvimentos da biologia contemporânea, isso não obsta que, de uma

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perspectiva epistemológica, perguntemo-nos pelos fundamentos dessa separação. E éclaro que nada pode estar mais longe de nosso interesse que pretender denunciar aquiqualquer coisa semelhante a um esquecimento de Cuvier, a uma ocultação da integra-lidade do ser vivo, ou a uma obliteração da continuidade existente entre as suas finali-dades interna e externa.

Como estamos muito longe da tentação de escrever um manifesto holista, o quenos interessa fazer é antes perguntarmo-nos pelas razões, fundamentos e condiçõesde inteligibilidade e visibilidade da cisão que temos apontado. Richard Lewontin (2000,p. 47) tem razão: “a separação do interno e do externo, proposta por Darwin, constituíaum passo absolutamente essencial para o desenvolvimento da biologia moderna”; masessa separação exigiu uma mutação epistemológica, cuja natureza e magnitude nemsempre têm sido devidamente apreciadas. A grande pergunta é: de que exigências, deque pressupostos e, se assim quisermos, de que obstáculos nosso modo de pensar ovivente teve de se libertar para poder dar esse grande passo?

3. Duas conjecturas

Assim, como primeiro ponto de inflexão, podemos assinalar o rompimento darwinia-no com a interpretação biológica da idéia de economia natural corrente no final doséculo XVIII e início do XIX (Limoges, 1972, p. 9; Avila-Pires, 1999, p. 158). ComoLimoges (1976, p. 77 e ss.) soube mostrar, e independentemente do fato de Darwincontinuar a usar a expressão “economia natural” (Limoges, 1972, p. 9), o recurso à se-leção natural como mecanismo capaz de produzir adaptações exigiu o abandono da formasob a qual essa idéia se apresenta, sobretudo, nas obras de Lineu (1972a; 1972b); e esseabandono, por sua vez, tornou inviável a continuidade entre a economia animal e aeconomia natural que fica pressuposta no enunciado cuvieriano do princípio das con-dições de existência (Daudin, 1926, p. 58; Conry, 1974, p. 363; Balan, 1979, p. 159;Coleman, 1985, p. 38).

Desse modo, quebrada tal continuidade, o estudo da economia animal ficou con-denado àquela fértil liberdade experimental que deu origem à fisiologia moderna: se aeconomia animal não está subordinada à economia natural, então ela é relativamenteautônoma com relação à ordem cósmica e, portanto, pode ser estudada (assim comoperturbada e manipulada experimentalmente) com relativa independência desta últi-ma ordem.

Porém, e também como efeito dessa ruptura, a história natural poderá reconhecerque, entre as formas vivas e o meio, existe uma relação que, para dizê-lo sumariamen-te, é sintética, e não analítica; uma relação que, longe de ser necessária, é o produto de

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Os modos da teleologia em Cuvier , Darwin e Claude Bernard

uma série de contingências históricas que, em cada caso, é preciso reconstruir. Assim,uma vez quebrada a continuidade entre a ordem interna do organismo e sua inserçãona ordem natural geral7, a noção de adaptação poderá emergir como um conceito dis-tinto daquele de função, isto é, a adaptação orgânica, entendida no sentido darwinianodo termo, recortar-se-á como algo visível.

Com efeito, numa perspectiva na qual se suponha uma clara continuidade entrea economia animal e a economia natural não há margem nem de inteligibilidade nemde visibilidade para a adaptação darwiniana. Numa tal perspectiva, os fenômenos, quedepois virão a ser pensados com base nessa última categoria, serão ora negligenciadosora deixados num segundo plano e, nesse caso, sempre serão pensados ou como fun-ções, no sentido fisiológico do termo, ou, em última instância, como curiosidades apro-priadas à reflexão teológica.8

Como se esse tema, tão caro aos teólogos e aos espíritosingênuos, não fosse apto à indagação científica.

Mas, essa abertura ou interesse da biologia darwiniana pela singularidade e pelacasuística da adaptação orgânica envolve, pensamos, uma outra diferença fundamen-tal entre seu ponto de vista e o ponto de vista cuvieriano. Referimo-nos àquilo que,apelando para Toulmin (1973, p. 49), podemos caracterizar como uma mudança na con-cepção do ideal de ordem natural que está na base de uma e outra perspectiva. EntreCuvier e Darwin, acreditamos existir uma diferença fundamental a respeito do que deveser considerado como um evento digno de explicação: para o primeiro, o que deve serexplicado é a constância e permanência de certas regularidades que se verificam nomodo pelo qual se organizam os seres vivos; para o segundo, no entanto, o que deve serexplicado não é a constância das formas, mas antes sua diversificação.

Por trás da multiplicidade das formas vivas, Cuvier (1817, p. 57) adivinhava qua-tro modos fundamentais de organização e o grande enigma da história natural era, nessaperspectiva, o porquê de tais planos fundamentais, sendo o estudo das leis da forma oque nos revelaria sua razão de ser. Mas, dentro das margens estabelecidas por essasleis da forma, dentro desses limites que estabelecem o repertório dos seres possíveis,

7 Num parágrafo de A lógica do vivente (La logique du vivant), François Jacob (1973, p. 16) distingue a biologia funcio-nal da biologia evolutiva apontando que cada uma delas “aspira a instaurar uma ordem no mundo vivente”. No casoda primeira, trata-se de uma ordem inter-orgânica; e no caso da segunda, de uma ordem intra-orgânica; mas o queJacob não vê é que essa distinção não é conatural a toda ciência do vivente: na biologia pré-darwiniana, tal distâncianão era possível porque a continuidade entre a economia natural e a economia animal a tornava ininteligível.8 Nesse sentido é importante lembrar a insistência de autores como Limoges (1976, p. 38) e Barthelemy-Maudele(1979, p. 117) no fato de que não cabe procurar em Lamarck nenhuma noção que realmente anuncie a noçãodarwiniana de adaptação.

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Gustavo Caponi

Cuvier atribuía à natureza o poder e a propensão de gerar, espontaneamente, todas asvariantes viáveis de seres vivos:

“permanecendo sempre dentro dos limites prescritos pelas condições necessá-rias de existência, a natureza se abandona a toda sua fecundidade naquilo que taiscondições não a limitam; e sem jamais sair do pequeno número das possíveis com-binações que se podem dar entre as modificações essenciais dos órgãos impor-tantes, ela parece ter-se permitido variar ao infinito em todas as partes acessó-rias” (Cuvier, 1805, p. 58).

Nesse caso, dizia Cuvier (1805, p. 58), nem sequer é preciso que uma modifi-cação seja útil para que ela seja realizada: “é suficiente que ela seja possível, isto é, queela não destrua o acordo do conjunto” (cf. Russell, 1916, p. 38). Ainda que não seja deuma maneira explícita, Cuvier, tal como indica Coleman (1964, p. 17), parece acreditarque, dados os limites estabelecidos pelo princípio da correlação das partes, “tudo oque pode existir efetivamente existe, e tudo o que não existe não pode existir”. Isto é,sem aceitar já a idéia da scala naturae, Cuvier aceita ainda aquilo que Lovejoy (1936,p. 52) chamou princípio de plenitude: o pressuposto, a confiança ou o temor secreto deque tudo aquilo que pode existir, e cuja existência não contradiz a existência de algumaoutra coisa, de fato existe.

Esse pressuposto define a concepção do ideal de ordem natural de seu programade pesquisa: a variedade e a multiplicidade das formas são dadas como algo óbvio, comoaquilo que não precisa de explicação, como o estado ou o devir natural das coisas.Analogamente ao que acontece com o movimento retilíneo e uniforme na física clássi-ca, no pensamento de Cuvier, o florescimento da variedade não precisa ser explicado:ça va de soi. A natureza é pródiga em formas e combinações (Russell, 1916, p. 38); senão há razões para que algo não exista, por que não haveria de existir?

O que se deve, todavia, explicar é o desvio dessa ordem natural ideal: a saída domovimento retilíneo e uniforme no caso da física clássica e, no caso da história naturalcuvieriana, a existência de hiatos ou lacunas no plexo dos seres existentes que nos fa-lam de aparentes possibilidades que não foram realizadas. Sendo as constrições for-mais, derivadas do princípio da correlação das partes, as chaves que nos explicam aexistência desses intervalos que menoscabam a plenitude do mundo dos seres vivos(cf. Coleman, 1964, p. 171-2).

No entanto, no caso de Darwin, é a variedade aquilo que deve ser explicado: nasua perspectiva, não há diferença que não tenha uma razão de ser; e a mesma deve serencontrada caso a caso. Na teoria darwiniana, não se pressupõe nenhuma força ou leique leve à mudança e à diversificação dos seres vivos; e, para cada afastamento do tipo

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Os modos da teleologia em Cuvier , Darwin e Claude Bernard

primitivo, para cada diferença registrada, deve haver alguma explicação que nos mos-tre que essa divergência do tipo responde a uma exigência da seleção natural.

“O mundo darwiniano”, como muito bem apontou Conry (1974, p. 354), “já nãoreconhece o princípio de plenitude”. A natureza darwiniana, ao contrário da cuvieriana,não é pródiga; ela é, pelo contrário, uma natureza austera e parcimoniosa; nela, entia

non sunt multiplicanda praeter necessitatem; nela, toda variação tem um custo e esse cus-to deve ser justificado por algum ganho. É a teoria da seleção natural que nos ensina areconstruir, para cada caso particular, esse balanço entre ganhos e perdas que se cons-titui na razão de ser de todas as diferenças.

Enquanto que, em Cuvier, a variedade e a multiplicidade das formas são dadosprimitivos que nossa análise deve transcender na procura de regularidades e de limi-tes a serem explicados; em Darwin, são as diferenças que, caso a caso, devem ser expli-cadas como aquilo que, em princípio, não tínhamos porque esperar. O movimentoretilíneo uniforme do mundo darwiniano, o que nele é o estado natural das coisas, oideal de ordem natural, é sempre a permanência do ancestral comum primitivo; e é oafastamento dessa forma ancestral o que, em cada caso particular, deve ser explicado.Por estranho que pareça, o mundo darwiniano, ao contrário do que acontece, por exem-plo, com o mundo de Lamarck, não é um mundo natural ou espontaneamente propen-so à mudança.

Gustavo Caponi

Professor Adjunto do Departamento de Filosofia

da Universidade Federal de Santa Catarina

e pesquisador do CNPq.

[email protected]

abstract

Pre-Darwinian biology acknowledged the existence in living beings of a double finality: different struc-tures were not only constituted and articulated in such a way as to integrate an organized being, but theyalso allowed the fit of this being into its environment. However, this double conformity to ends, stillconceived by Cuvier as an unique set of conditions that defined the very possibility of an organism, willin contemporary biology appear split into two different kinds of phenomena. Thus, after identifying theturning point in the history of life sciences where that partition happened, we shall analyze the concep-tual conditions that made it both possible and necessary. We hold that this “conceptual mitosis” had itsraison d’être in the end of the classical idea of natural economy; and we shall also argue that it must beconsidered in the context of a change in the ideal of natural order of natural history.

Keywords ● G. Cuvier. C. Darwin. C. Bernard. Teleology. History of biology.

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Gustavo Caponi

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Origem da vida e origem das espécies no século xviii...

Origem da vida e origem das espéciesno século XVIII: as concepções de Maupertuis

Maurício de Carvalho Ramos

RESUMO

A obra de Pierre-Louis Moreau de Maupertuis abrange os domínios da geometria, da física e da astro-nomia, mas também explora um tema biológico central da agenda científica e filosófica do século XVIII:o problema da geração dos organismos. No Sistema da natureza (1752), o autor apresenta uma ampla teoriaque pretende explicar, a partir de um princípio gerativo universal, como os organismos atuais são gera-dos, como as espécies podem conservar-se ao longo do tempo e como ocorre a formação de novas espé-cies a partir de uma dada linhagem de organismos. Com base em tais explicações, Maupertuis apresentacertas conjecturas sobre a origem dos primeiros organismos e das primeiras espécies que serão o objeto cen-tral deste artigo. Segundo nossa interpretação, Maupertuis explorou o problema das origens da vida edas espécies a partir de dois quadros teóricos distintos, que designaremos como quadros metafísico efísico das origens. No primeiro, a ação de Deus é decisiva para a produção dos primeiros organismos edas primeiras espécies, mas no segundo essa mesma produção é explicada conjecturalmente a partir deuma concepção natural e atomista.

Palavras-chave ● Geração. Origem da vida. Origem das espécies. Epigênese. Preformação. Transfor-mismo. Evolução. Mecanicismo. Maupertuis.

I

A obra científico-filosófica de Maupertuis fez importantes contribuições tanto para afísica-matemática quanto para a história natural. Seus estudos em física e astronomiaacabaram sendo unificados em uma cosmologia e sua história natural aparece, na suaformulação final, como um sistema da natureza. Primeiramente faremos uma exposi-ção abreviada da teoria da geração de Maupertuis e, em seguida, trataremos de algunselementos de sua cosmologia visando, por fim, discutir o problema das origens da vidae das espécies.

Pierre-Louis Moreau de Maupertuis (1698–1759) foi eleito em 1723 para aAcadémie des Sciences de Paris e em 1728 para a Royal Society de Londres. Ardentedefensor do newtonianismo na Académie, considerava-se “o primeiro que se atreveu,

scientiæ zudia, Vol. 1, No. 1, 2003, p. 43-62

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Maurício de Carvalho Ramos

na França, a propor a atração como princípio a ser examinado” (Maupertuis, 1965a,p. 284). Em 1744 é convidado por Frederico II para reorganizar a Academia de Ciênciasde Berlim, da qual foi Presidente de 1746 até sua morte. Duas de suas realizações cien-tíficas bem conhecidas são a comprovação empírica do achatamento dos pólos da Terrae a formulação do princípio físico de mínima ação, nas quais travou, respectivamente,intensa disputa com os discípulos de Descartes e Leibniz. As concepções de Mauper-tuis sobre a geração dos organismos aparecem em três de suas obras: a Vênus física, de1745, o Sistema da natureza, de 1752 e a Carta XIV – Sobre a geração dos animais compo-nente das Cartas de 1752. Referências importantes à questão da geração no que diz res-peito ao papel do acaso, da providência e das leis naturais aparecem em seu Ensaio de

cosmologia de 1750, obra que utilizaremos para a análise das relações entre a cosmolo-gia e a história natural do autor.

Para compreender o valor filosófico mais amplo da teoria da geração de Mauper-tuis podemos explorá-la a partir de sua polêmica com a concepção dominante na épo-ca, a saber, a teoria da preexistência dos germes. Esta, por sua vez, foi proposta comosolução às insuficiências da embriologia de Descartes. Em seu confronto com apreexistência, Maupertuis retoma alguns dos pressupostos da embriologia mecanicistacartesiana, mas os altera profundamente ao fundamentar suas conjecturas na mecâni-ca dinâmico-corpuscular de Newton. Assim, apresentaremos inicialmente um resu-mo dos principais aspectos presentes nessas mudanças teóricas juntamente com asdefinições dos conceitos centrais envolvidos na polêmica.

II

A embriologia de Descartes é, em essência, uma epigênese mecânica: o embrião for-ma-se gradativamente através da organização de partes de matéria inerte que se mo-vem segundo as leis do movimento pelo choque. Descartes toma como fundamentofisiológico e genético dessa embriologia a teoria hipocrática da dupla semente: os pro-genitores produzem líquidos ou licores seminais que são misturados no ato da cópula.As partes seminais masculinas e femininas reunidas produzem mecanicamente o em-brião. O elenco básico de tipos de corpúsculos presentes na embriogênese é pratica-mente o mesmo encontrado na produção do Universo, da Terra e de suas partes. Com-parativamente aos corpos inorgânicos, a diversidade de formas presente nas partesseminais necessária para produzir a complexidade orgânica deve ser bem maior, mastais formas serão sempre mais simples do que a estrutura final que produzirão. Emoutras palavras, não há na embriologia de Descartes estruturas orgânicas pré-forma-das ou preexistentes. A ação que garante a localização precisa das partes seminais na

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Origem da vida e origem das espécies no século xviii...

estrutura orgânica é regida pelas leis ordinárias do movimento. A teoria também re-corre à fermentação e ao calor como fatores gerativos, mas eles são interpretados comoresultante do movimento e do atrito das partes seminais, não havendo a participaçãode virtude fermentativa naturalmente ativa.

Esses resultados foram bastante criticados pelos mecanicistas posteriores a Des-cartes e sua embriologia epigenética foi substituída pelas teorias da preexistência e doembutimento dos germes. Segundo Malebranche e Boyle, por exemplo, o movimento podedesenvolver as partes de um animal, mas não pode formá-las. A embriologia cartesia-na não pode ser reduzida à sua fisiologia. Para Boyle, os cristais podem resultar dacondensação de um fluído, mas o mesmo não aconteceria com a estrutura mais elabo-rada dos animais (Pyle, 1987, p. 234). Malebranche, criticando Descartes, afirma emseu Entretiens sur la métaphysique et la religion: “O esboço desse filósofo pode nos ajudara compreender como as leis do movimento bastam para fazer crescer pouco a pouco aspartes de um animal. Mas que essas leis possam formar e unir essas partes é algo quejamais alguém provará” (cf. Roger, 1993, p. 337). A mecânica é suficiente para explicaro desenvolvimento do embrião, mas jamais poderá explicar sua formação. Esta deve serconsiderada sempre como preexistente na forma de germes diminutos.

Para Malebranche, principal responsável pelo desenvolvimento da teoria dapreexistência dos germes, todas as coisas são feitas por Deus, mas afirmar que tudoocorre no universo graças a causas milagrosas implica em eliminar a possibilidade deproduzir explicações físicas racionalmente inteligíveis. Para explicar os fenômenosordinários da natureza, a ação de Deus é entendida por Malebranche como produzidapor leis. Elas podem explicar inteligivelmente os fenômenos mais gerais da natureza, asaber, os fenômenos mecânicos ordinários e, com modificações, o escopo geral da me-cânica cartesiana poderia dar conta desse domínio de fenômenos. Já no âmbito dosprincipais fenômenos biológicos, como a geração orgânica, o problema não podia serresolvido com a mesma facilidade e sem modificações mais radicais. Malebranche, bemcomo outros mecanicistas da época, poderiam aceitar que o crescimento fosse explicadopelas leis do choque entre partes de matéria inerte, mas essas partes já devem ter sidopreviamente estruturadas segundo a ordem própria da planta ou animal em questão.Ou seja, Malebranche considera a mecânica e a física como impotentes para explicaros processos de gênese das estruturas organizadas. Uma vez que re-introduzir qualquerpoder, faculdade ou princípio ativo na matéria estava fora de questão por ferir os prin-cípios mais básicos da filosofia mecânica, a solução foi colocar o próprio processo degeração no âmbito dos milagres. Deus produziu no ato da criação não apenas todas asespécies, mas todos os indivíduos pertencentes a cada uma delas na forma de germesdiminutos e encaixados. A verdadeira produção ou geração de seres organizados é prer-rogativa do Criador e não de suas criaturas e, assim, é, por princípio, naturalmente

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Maurício de Carvalho Ramos

ininteligível. Resolve-se um aparente fracasso do projeto mecanicista postulando quecertos processos devem possuir um vínculo sobrenatural necessário.

Não é o aparecimento de um animal ou planta que é milagroso, no sentido deorganismos que se tornam sensíveis: esse tornar-se visível é o resultado da ação de leisnaturais. Milagrosa é a produção do germe inicial a partir do qual atuarão as leis mecâ-nicas que darão origem ao organismo. Ao afirmar que as leis da comunicação do movi-mento é que garantem o crescimento dos germes, está sendo garantida a inteligibili-dade e a cientificidade da investigação física sobre a geração. Além disso, afirmandoque esses germes foram criados no início do mundo, as ações sobrenaturais diretas –não mediadas por leis – ficam restritas apenas ao quadro das origens. Essa forma deconceber a geração dos organismos irá vigorar até o século XIX. Ehrard sintetiza daseguinte maneira esse sucesso:

“Se a geração supõe uma intervenção divina, é melhor admitir, pensava-se, ummilagre único e original: o Criador criou de uma só vez todos os seres viventes detodos os tempos; a matéria nada cria, mas se limita a ‘desenvolver’ os germespreexistentes. O sistema da preexistência dos germes permitiria conciliar a sim-plicidade das vias da natureza com a onipotência do Criador. Ela era sedutora obastante para impor-se durante mais de um século não apenas aos filósofos comoMalebranche e Leibniz, mas aos mais autênticos cientistas como Ch. Bonnet,Haller ou Spallanzani e à grande maioria de seus colegas” (Ehrard, 1994, p. 211).

III

Maupertuis apresenta sua primeira teoria da geração dos organismos na Vênus Física,obra várias vezes reeditada e relativamente popular, na qual a teoria da preexistência edo embutimento dos germes são criticadas e rejeitadas em favor da epigênese. Tal crí-tica incluiu uma série de controvérsias suscitadas na época, mas nos deteremos nasquestões filosóficas mais gerais.

Segundo Maupertuis, se atribuirmos uma causa sobrenatural à produção dos ger-mes ou embriões estamos eliminando do âmbito da física o verdadeiro problema ouobjeto a ser investigado. A pesquisa autêntica sobre a geração deve explicar como seforma o próprio embrião. A noção de preexistência dos germes é, portanto, uma solu-ção ilusória para o problema:

“se o sistema dos desenvolvimentos [i.é., a preexistência dos germes e do embu-timento] torna a física mais luminosa do que ela o seria admitindo novas produ-

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ções, é certo que não se compreende em absoluto como, em cada geração, um cor-po organizado, um animal, pode-se formar. Mas compreende-se melhor comoesta série infinita de animais contidos uns nos outros foi formada ao mesmo tem-po? Parece-me que se cria aqui uma ilusão e que se acredita resolver a dificuldadeafastando-a” (Maupertuis, 1965a, p. 66).

A formação do germe deve sair do âmbito sobrenatural e receber, tanto quanto ocrescimento do germe, uma explicação natural. Aqui, portanto, vemos uma clara opo-sição metodológica de princípio a todo o projeto embriológico mecanicista “clássico”.Porém, podemos já adiantar que ao se envolver posteriormente com os polêmicos te-mas das origens da vida e das espécies, Maupertuis adotará uma solução semelhante aessa que critica na Vênus física.

Além dessa crítica de caráter teórico, a obra vale-se ainda de uma série de in-consistências e dificuldades empíricas implicadas pela noção de preexistência que sãodetalhadamente utilizadas para rejeitar a teoria oficial. Feito isso, Maupertuis propõeentão suas próprias conjecturas.

Como Descartes, Maupertuis entende que a geração de um organismo é feita apartir da mistura dos líquidos seminais paterno e materno. Cada sêmen contém as par-tes próprias à geração oriundas dos vários órgãos corporais. Contudo, elas não são iner-tes mas dotadas de forças especiais de atração que Maupertuis identifica com as afini-dades químicas. Tais afinidades foram postuladas pelo químico francês Geoffroy paraexplicar a seletividade necessária para a combinação das substâncias nas diversas rea-ções químicas ordinárias. Revelando uma clara tentativa de reduzir a embriologia àquímica newtoniana da época, Maupertuis estabelece uma analogia entre a produçãode certas cristalizações semelhantes a vegetais, como aquela conhecida por Árvore de

Diana, e a geração do corpo de uma planta viva. Generalizando o processo, afirma quena produção de qualquer organismo as diferenças de afinidades entre as partes semi-nais são determinadas por sua origem no corpo dos pais quando da formação do sê-men. Partes oriundas de um determinado órgão terão maior afinidade e se atrairãoentre si com maior intensidade. Desse modo, pode-se restabelecer no embrião a dis-posição orgânica semelhante à dos pais.

Em 1751, Maupertuis apresenta em seu Sistema da natureza uma versão modifi-cada dessa teoria na qual o papel da força de atração nos fenômenos gerativos é pro-fundamente modificado e perde sua prioridade. O autor passa a entender que sendo aatração “uma força uniforme e cega espalhada por todas as partes da matéria”, ela não écapaz de explicar a regularidade exigida para a formação dos organismos: “Se todas [aspartes da matéria] têm a mesma tendência, a mesma força, de unirem-se umas às ou-tras, por que estas vão formar o olho, por que aquelas a orelha? Por que esse arranjo

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maravilhoso? E por que não se unem todas elas de qualquer jeito?” (Maupertuis, 1965a,p. 146). A força de atração, tomada em sua formulação geral, não pode, sozinha, expli-car o caráter teleológico da geração.

Tampouco considera satisfatória a utilização da atração na forma de afinidadesquímicas. Segundo o autor, sendo elas atrações que seguem outras leis seriam neces-sários tantos tipos de atrações quantas partes diferentes de matéria participassem daformação do organismo. A esse respeito diz Maupertuis: “Mas com essas mesmas atra-ções, a menos que se suponha, por assim dizer, que haja tantas quantas partes diferen-tes no interior da matéria, estamos ainda bem longe de explicar a formação de umaplanta ou de um animal” (1965a, p. 141). Com tal posição, Maupertuis afasta-se do pro-jeto de elaboração de uma embriologia epigenética fundada exclusivamente na quími-ca newtoniana e atribui à matéria, juntamente com suas propriedades físicas, proprie-dades psíquicas capazes de atuar na ordenação dos corpos. Afirma Maupertuis: “se épara dizer alguma coisa razoável sobre isso [referindo-se à geração dos animais], mesmoque baseado em analogias, é preciso recorrer a algum princípio de inteligência, a algu-ma coisa semelhante ao que denominamos desejo, aversão e memória” (1965a, p. 147).....

A postulação de propriedades psíquicas na matéria torna-se o elemento centralda nova versão da teoria de Maupertuis. Dentre as formas que esse psiquismo assumenessa teoria, a percepção parece ser a mais elementar de todas. Num certo sentido, Mau-pertuis não toma a extensão e o pensamento como essências absolutamente distintas,mas as reduz como propriedades de um mesmo objeto. Assim, propriedades psíquicase físicas, representadas especialmente pela percepção e pela atração respectivamente,serão consideradas como capazes de interagir. Essa interação pode ser razoavelmenteentendida na teoria – apesar das dificuldades envolvidas com o problema clássico dacomunicação das substâncias – como uma espécie de modulação da força de atraçãopor intermédio da percepção dos elementos materiais. Dessa forma, quando um em-brião está se formando, a atração espalhada por todas as partes da matéria não serámais uniforme e cega: a intensidade dessa força poderá variar segundo a aversão ou odesejo dos elementos materiais por estabelecer certas interações e a direção da açãodessa força será orientada por uma memória capaz de indicar a localização espacial ade-quada à organização do corpo em formação.

Com sua teoria reformulada, Maupertuis enfrentou todas as dificuldades que ageração dos organismos colocava para a ciência mecânica de sua época. Não poderemosaqui apresentar, mesmo que resumidamente, tais explicações para cada caso. Assim,vamos colocar em foco dois aspectos da questão que estarão diretamente vinculados aoproblema das origens das espécies e da vida. Primeiramente discutiremos a produçãode formas orgânicas variantes no interior das linhagens regulares de descendência e,em seguida, o problema da geração espontânea.

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IV

A produção de variações na regularidade da geração, bastante discutida na época, estárepresentada por uma série de fenômenos ligados à mestiçagem das raças, à hibridizaçãode espécies, à seleção artificial de raças domésticas e ao nascimento de organismoscom malformações congênitas. Podemos facilmente perceber que todos esses fenô-menos colocam sérias dificuldades à noção de preexistência dos germes e, tanto naVênus física como no Sistema da natureza, Maupertuis os explora em detalhe. Para nos-sa discussão tomaremos o caso mais dramático e que mais esteve envolvido em po-lêmicas, a saber, a geração dos monstros. Trata-se de organismos que exibem ao nascermutilações, órgãos supra e infra-numerários ou ainda órgãos e partes disformes.A variação numérica dos órgãos pode ser de dois tipos: há monstros por excesso e mons-

tros por escassez. O primeiro fenômeno é explicado por Maupertuis da seguinte manei-ra: no licor seminal há sempre mais elementos do que o necessário para formar umorganismo. Esses elementos supérfluos poderiam acidentalmente continuar a reunir-se mesmo quando uma determinada parte do feto já estivesse estruturada. Como oselementos supérfluos podem manter sua percepção inalterada, os órgãos supra-nu-merários aparecem, como mostra a experiência, na mesma posição relativa corporalem que apareceriam ordinariamente. Os monstros por escassez são formados quandocasualmente faltam elementos geradores no sêmen ou quando alguma circunstânciatambém acidental os impede de unir-se. Finalmente, os casos de órgãos malformados,ou mesmo de desorganização total do embrião, seriam causados por uma espécie deconfusão generalizada nas percepções dos elementos durante a geração.

Em resumo, Maupertuis considera como fonte de variação congênita da formaordinária dos organismos alterações acidentais de três tipos: na quantidade de ele-mentos, nas possibilidades de união entre os elementos e na atuação da memória doselementos. Por serem acidentais, essas variações introduzem a possibilidade de ge-ração de novas formas concomitantemente com a geração regular das formas de cadaespécie.

Explicada a ocorrência individual desses organismos modificados, Mauper-tuis também as investiga ao longo das linhagens de organismos. Em outras palavras,estuda a conservação das variações hereditárias. Seu trabalho mais preciso nesse sentidofoi o estudo da hexadactilia ou ocorrência de seis dedos nas mãos e nos pés, apresen-tado na Carta XIV – Sobre a geração dos animais. Através do levantamento da genealogiade uma família na qual tal alteração ocorria, Maupertuis concluiu: “Vê-se, por estagenealogia, que segui com exatidão, que a hexadactilia se transmite igualmente pelopai e pela mãe: vê-se que se altera pela aliança com pentadáctilos. Por tais aliançasrepetidas deve manifestamente extinguir-se e perpetuar-se por alianças em que fosse

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comum aos dois sexos” (1965a, p. 308). Esses resultados mostram, pois, que oscruzamentos afetam decisivamente a freqüência com que formas alteradas são geradase que há, portanto, outros fatores, além do acaso, atuantes na geração de uma variaçãoquando sua ocorrência é considerada ao longo do tempo. Quanto a isso, diz Mauper-tuis: “Não creio que alguém tome a continuação da hexadactilia como efeito do puroacaso (...), mas se se quiser [assim considerá-la] é preciso saber qual a probabilidadedessa variedade acidental de um primeiro progenitor não se repetir nos seus descen-dentes” (1965a, p. 309). Maupertuis calcula em 20.000 para 1 tal probabilidade apósestimar em cinco o número de hexadáctilos em Berlim, na época com 100.000 habi-tantes. A probabilidade, então, dessa singularidade não continuar por três geraçõessucessivas, fato por ele verificado na genealogia que levantou, seria de 20.0003 ou8.000.000.000.000 para 1, números que, para ele, seriam “tão grandes que nem mes-mo a certeza das coisas mais demonstradas da Física se aproxima dessas probabilida-des” (Maupertuis, 1965a, p. 310).

Esses resultados, bem como o exame de outros fenômenos hereditários, levouMaupertuis a considerar que, para certos traços, somente o aparecimento da primeira

variação será acidental. A permanência de certos desvios numa mesma linhagem deorganismos poderá ser determinada por fatores que já não são mais fortuitos. Maupertuisexplica a recorrência desses traços alterados postulando uma diferença na tendênciade certas formas orgânicas ocorrerem. Segundo sua teoria, duas condições são funda-mentais na determinação de tal tendência: o número de vezes que uma dada forma égerada no tempo e a própria natureza estrutural dessa forma. A permanência temporalde uma dada estrutura geraria um hábito nos elementos e, assim, estaria garantida aestabilidade das formas e das espécies. Contudo, esse hábito pode ser casualmente rom-pido e, assim, uma nova configuração pode aparecer. Aqui entra o segundo elemento:em função da força ou tenacidade própria da nova estrutura, gerada inicialmente de ma-neira fortuita, ela poderá suplantar parcial ou totalmente um hábito anterior. Nos ter-mos de Maupertuis, “pode haver arranjos tão tenazes, que desde a primeira geraçãoeles dominam todos os arranjos precedentes, e apagam o hábito” (1965a, p. 164). Emresumo, isso implicaria na produção de novas formas ou espécies por um processo na-tural de mudanças nas partículas responsáveis pela geração. Maupertuis aceita, por-tanto, uma concepção transformista do mundo vivo e propõe um mecanismo para ex-plicar a produção e a fixação de novas formas ou espécies.

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V

Dos aspectos mais complexos da geração, nos quais está envolvida a produção de novasespécies, passaremos ao caso mais simples (pelo menos em termos materiais), ou seja,à geração espontânea. Os fenômenos gerativos tratados até aqui, sejam os regulares ouos produtores de variações, são exemplos do que atualmente designaríamos por re-produção sexuada – Maupertuis utiliza a expressão geração ordinária – no qual há a mis-tura dos licores masculino e feminino. A geração espontânea é tratada pelo autor jun-tamente com outros processos especiais de geração que poderíamos designar comoprocessos não-ordinários ou assexuados, a saber, a reprodução vegetativa e apartenogênese. Resumidamente, o autor considera a reprodução assexuada como uma“simplificação” do processo sexuado:

“Conhecem-se insetos nos quais cada indivíduo basta para a reprodução: desco-briram-se outros que se reproduzem pela seção das partes de seus corpos. Nemum nem outro desses fenômenos traz qualquer nova dificuldade para o nosso sis-tema. E se é verdade, como alguns dos mais famosos observadores pretendem,que há animais que, sem pai nem mãe, nascem de matéria na qual não suspeitáva-mos qualquer de suas sementes, o fato não será mais difícil de explicar: as verda-deiras sementes de um animal são os elementos próprios a unir-se de uma certamaneira: e esses elementos, embora encontrem-se, para a maior parte dos ani-mais, na quantidade suficiente ou nas circunstâncias próprias à sua união apenasna mistura dos licores que os dois sexos emitem, podem, entretanto, para a gera-ção de outras espécies, encontrar-se em apenas um indivíduo; enfim, [podemencontrar-se] noutra parte que não seja dentro do próprio indivíduo que eles de-vem produzir” (Maupertuis, 1965a, p. 165).

A mistura das sementes masculinas e femininas, que na Vênus física fora consi-derada como o grande princípio da geração, aparece no Sistema como caso mais freqüen-te, mas não universal. As partes ou elementos seminais ganham, portanto, uma auto-nomia muito maior e a dinâmica de suas interações passa a ser o processo maisfundamental da geração. Essas verdadeiras sementes dos animais podem entrar em açãono interior de um único animal (partenogênese), a partir de um fragmento retirado docorpo do animal (reprodução vegetativa) ou estando fora de qualquer organismo, as-sociada a outras matérias (geração espontânea).

Esses resultados levaram Maupertuis à mais ampla generalização de sua teoria,aplicando o mecanismo proposto aos corpos organizados não-vivos:

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“Mas o sistema que propusemos limitar-se-ia aos animais? E por que a eles selimitaria? Os vegetais, os minerais, os próprios metais, não possuem origens se-melhantes? Sua produção não nos conduz à produção dos outros corpos mais or-ganizados? Não vemos sob nossos olhos alguma coisa de semelhante ao que sepassa nos germes das plantas e nas matrizes dos animais, quando as partes maissutis de um sal, espalhadas em algum fluido que lhes permite mover-se e unir-se,com efeito unem-se e formam esses corpos regulares, cúbicos, piramidais etc.que pertencem à natureza de cada sal?” (Maupertuis, 1965a, p. 166).

Maupertuis retoma a comparação da geração dos corpos vivos com a dos corposcristalinos, já existente na Vênus física, mas que no Sistema ganha novos significados. Oautor vê uma analogia entre a formação de cristais de certas substâncias em solução,mesmo cristais simples, e a geração de organismos vivos a partir dos líquidos semi-nais: ambos são fluidos com partículas que se unem e restituem a forma de um corpoorganizado: “Triturai esses corpos, reduzi-os a pó, rompei a ligação que existe entresuas partes; essas partes divididas que nadam em um mesmo fluido cedo terão reto-mado seu primeiro arranjo, esses corpos regulares serão logo reproduzidos” (Mau-pertuis, 1965a, p. 167).

Pelo mesmo processo são produzidos corpos cristalinos mais complexos, as ár-

vores químicas, já mencionadas na Vênus física, e que no Sistema são novamente compa-radas à produção de organismos vivos:

“Mas se a figura muito simples desses corpos impede-vos de perceber a analogiaque se encontra entre sua produção e aquela das plantas e dos animais, misturaiconjuntamente partes de prata, de nitro e de mercúrio e vereis nascer essa plantamaravilhosa que os Químicos chamam árvore de Diana, cuja produção não diferetalvez daquela das árvores ordinárias a não ser que elas se fazem mais a desco-berto” (Maupertuis, 1965a, p. 167).

Maupertuis faz ainda uma última comparação com conseqüências teóricas degrande importância: as vegetações químicas são análogas aos animais produzidos porprocessos não-ordinários de geração, especialmente por geração espontânea:

“Essa espécie de árvore parece ser para as outras árvores aquilo que são para osoutros animais aqueles que se produzem fora das gerações ordinárias, como ospólipos, como talvez as tênias, os áscaris, as enguias da farinha dissolvida; se forverdade que esses últimos animais são apenas reuniões de partes que ainda nãopertencem a animais da mesma espécie” (Maupertuis, 1965a, p. 167).

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Cristais simples, árvores químicas e seres vivos simples são gerados essencial-mente da mesma maneira: pela agregação espontânea de partes materiais presentesem algum tipo de líquido que garantam um estado de fluidez a essas partes.

A geração dos animais que se formam espontaneamente conta fundamentalmentecom a percepção das partes seminais:

“Há elementos tão suscetíveis de arranjo, ou nos quais a lembrança é tão confusa,que eles se arranjam com maior facilidade: e talvez veremos animais produzirem-se por meios diferentes das gerações ordinárias; como essas maravilhosas enguiasque se pretende que se formem com a farinha dissolvida; e talvez tantos outrosanimálculos que pululam na maioria dos líquidos” (Maupertuis, 1965a, p. 161).

Nas gerações ordinárias, para que haja a produção repetida de uma mesma es-trutura, as partes seminais envolvidas devem retomar também de maneira constanteas posições ocupadas nos organismos; isso depende por sua vez da manutenção de umamesma memória associada a essa estrutura. Mas o contrário também é verdadeiro, se-gundo reza a citação anterior: elementos seminais que possuem uma memória confusa

não conseguem reter sempre a mesma posição orgânica e, assim, produzem diferentesanimais mais ou menos ao acaso, de forma irregular e de acordo com encontros fortui-tos em diversas substâncias. A intensidade de união de tais elementos também deveser maior, pois agregam-se de maneira menos seletiva, produzindo formas orgânicastão variadas como as citadas. Em uma palavra, a geração espontânea é tomada como oprocesso de base de todas as formas de geração.

VI

A teoria que expusemos até aqui explica como os corpos atuais são gerados segundosuas diversas modalidades e como ocorre a formação de novas espécies a partir de umadada linhagem de organismos. Vamos, por fim, abordar o problema das origens da vidae das espécies. Como dissemos inicialmente, Maupertuis apresenta, segundo nossainterpretação, dois quadros teóricos distintos para o tratamento do problema das ori-gens, um metafísico e outro físico. No interior do quadro metafísico, as propriedadespsíquicas presentes na matéria, base de toda a teoria de Maupertuis, possuem uma ori-gem sobrenatural:

“Se o Universo inteiro é uma prova tão forte de que uma Inteligência suprema oordenou e o preside, podemos dizer que cada corpo organizado apresenta-nos uma

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prova proporcional à inteligência necessária para produzi-lo (...). Deus dotou cadauma das pequenas partes de matéria com alguma propriedade semelhante àquiloque em nós chamamos desejo, aversão e memória; a formação dos primeirosindivíduos sendo milagrosa, aqueles que lhes sucederam não são mais do que osefeitos dessas propriedades” (Maupertuis, 1965a, p. 156).

Apesar das profundas discordâncias de Maupertuis com a teoria da preexistência,vemos aqui grande semelhança dessas idéias com as de Malebranche que apresenta-mos anteriormente. Maupertuis também separa os âmbitos sobrenatural e natural e apartir deles define igualmente o domínio de investigação próprio da física: “Por quaisleis este mundo, uma vez formado, se conserva? Quais são os meios que o Criador des-tinou para reproduzir os indivíduos que perecem? Aqui temos o campo livre e pode-mos propor nossas idéias” (Maupertuis, 1965a, p. 155). Maupertuis utiliza, portanto, omesmo recurso que criticou na Vênus física: os primeiros indivíduos foram geradosmilagrosamente por um ato de criação divina. Mas, junto dessa semelhança, há tam-bém uma diferença fundamental: apenas os primeiros indivíduos possuem uma ori-gem sobrenatural. Os demais organismos serão efetivamente gerados como descen-dentes desses indivíduos primordiais.

A maneira pela qual Maupertuis articula a ação sobrenatural aos fenômenosnaturais leva, no âmbito da geração orgânica, a conseqüências bem diferentes emrelação ao que aconteceu com a preexistência dos germes. Nesse sentido seria interes-sante examinarmos como essa mesma articulação ocorreu nos estudos de física e astro-nomia do autor que, ao lado de sua história natural, designaremos como sua cosmologia.

A prova de que uma Inteligência suprema ordena e preside o Universo é apre-sentada por Maupertuis como uma espécie de coroamento de sua cosmologia. Ao longode seu desenvolvimento, o autor vai inicialmente incorporar, desenvolver e criticarelementos da filosofia natural de Newton. Posteriormente procurará por um princípio

ainda mais geral que a atração, capaz de reduzir todas as leis físicas até então conside-radas como mais fundamentais. Tal princípio vincula-se metafisicamente a uma con-cepção de Deus como produtor de leis capazes de garantir a estrutura do universo talcomo revelam os fenômenos, e fisicamente a uma lei de conservação das ações envolvi-das na produção desses mesmos fenômenos. Tal lei é o princípio da mínima ação: quan-

do ocorre alguma mudança na natureza, a quantidade de ação necessária para tal mudança

é a menor possível. Com tal princípio, Maupertuis pretendeu ter descoberto qual seria averdadeira grandeza física que é economicamente despendida na natureza, a saber, aquantidade de ação, definida como o produto da massa dos corpos por sua velocidade e pelo

espaço que percorrem. Com a expressão matemática desse princípio Maupertuis deduziuas leis da óptica, do repouso e do movimento dos corpos. Assim, uma vez que o princí-

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pio se mostrou cientificamente impecável, o autor tentou “derivar da mesma fonte ver-dades de um gênero superior e mais importantes” (Maupertuis, 1985, p. 103), a saber,buscar a prova da existência de Deus nas leis gerais da natureza.

A noção metafísica que fundamenta o princípio físico da mínima ação e que es-tabelece a relação de Deus com a natureza é, resumidamente, a seguinte: “todas as coi-sas estariam de um tal modo ordenadas que uma Matemática cega e necessária executaaquilo que a inteligência mais esclarecida e mais livre prescreveria” (Maupertuis, 1751,p. 66). Tal concepção permitiria privilegiar conjuntamente a sabedoria e o poder divi-nos e, mais importante, garantiria uma certa autonomia da natureza que está, porém,ao mesmo tempo, subordinada à vontade de Deus. Para Maupertuis, “não se pode du-vidar que todas as coisas não sejam reguladas por um Ser supremo que, enquanto im-primiu na matéria forças que denotam sua potência, destinou-a a executar efeitos quemarcam sua sabedoria” (1965b, p. 21). A regularidade dos fenômenos revelada nas leisé, em última análise, um efeito da ação de Deus sobre a natureza. Tal ação respeita umprincípio metafísico de simplicidade cuja expressão fenomênica seria a economia daquantidade de ação despendida na produção dos fenômenos. Uma vez que a partir doprincípio que expressa essa economia Maupertuis pode deduzir as principais leis físi-cas exigidas pela experiência, o autor conclui pela existência de um Ser Supremo res-ponsável pelo estabelecimento desse princípio.

Acreditamos que esse procedimento metodológico utilizado na cosmologia tam-bém foi aplicado por Maupertuis, de maneira mais sintética, em sua história natural.Nela, o psiquismo, associável à vontade, ao instinto, à inteligência e à percepção, foiatribuído à matéria da mesma maneira que as forças que Deus imprimiu nos corpos.Tal psiquismo implica alguma forma de finalidade, mas que, em princípio, poderia seruma finalidade natural, uma vez que é concebido como mais uma das propriedades doscorpos. Por outro lado, a origem desse psiquismo dos corpos, capaz de regular a gera-ção, também possui uma finalidade transcendente, mas que atua apenas como princí-pio ou “lei biológica” geral. No detalhe dos fenômenos, a matéria pode exibir amplaautonomia e estar sujeita a uma série de contingências representadas por eventos for-tuitos diversos, como vimos o autor afirmar em várias ocasiões. A mesma finalidade,que determina uma rígida lei de economia da ação para os fenômenos físicos mais ge-rais, permite uma concepção bem mais dinâmica e histórica da natureza no âmbito dosfenômenos biológicos.

Podemos, então, propor uma primeira conclusão mais geral, dentro desse qua-dro metafísico das origens. Se definirmos o problema da origem da vida, como fre-qüentemente se entende a partir das teorias científicas mais atuais, como o estudo sobbases exclusivamente físicas e materiais do aparecimento das primeiras formas de vidana Terra, podemos afirmar que Maupertuis não possui um tal projeto de investigação

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e, assim, não poderíamos dizer que ele chega a investigar propriamente a “origem davida”, fenômeno que permanece no âmbito sobrenatural dos milagres. Por outro lado,a teoria de Maupertuis trouxe a geração dos organismos para o domínio físico e natu-ral, ao contrário do que fazia a teoria da preexistência, que incluía todas as gerações noâmbito sobrenatural.

VII

Passaremos, por fim, ao problema da origem das espécies, que discutiremos a partirdo quadro físico das origens. Retomando novamente a cosmologia de Maupertuis, aprova da existência de Deus a partir das leis gerais da natureza que o autor pretende terencontrado também foi sustentada a partir do exame e da crítica de outras provas al-ternativas que visavam obter o mesmo resultado. Maupertuis criticou particularmenteas provas oferecidas por Newton e seus seguidores, “tiradas da uniformidade e da con-veniência das diferentes partes do Universo” (Maupertuis, 1751, p. 32). Além de nãoaceitar como suficiente o argumento baseado na necessidade de uma escolha para oestabelecimento do movimento dos planetas, atacou duramente as provas oriundas daconveniência refletida nas partes dos animais. Nessas provas, cada detalhe da estrutu-ra dos organismos (sobretudo aqueles que a microscopia passou a revelar) é vinculadaa uma função vital específica e, assim, a perfeição com que todas as necessidades dosorganismos são satisfeitas provaria a ação da Providência divina nos mínimos detalhesda natureza. Cada novo conhecimento acerca da estrutura associada ao modo de vidados organismos seria uma prova adicional da existência de Deus. Mas Maupertuis con-sidera que a ingenuidade e mesmo o modo ridículo com que tais argumentos foramconstruídos poderiam antes encorajar o ateísmo do que proporcionar uma tal prova.Segundo o autor,

“Quase todos os Autores modernos que trataram da Física ou da História naturalnão fizeram outra coisa senão estender as provas que tiramos da organização dosAnimais e das Plantas e levá-las até os menores detalhes da Natureza. Para nãocitar exemplos muito indecentes, que seriam muito comuns, eu falo apenas da-quele que encontra Deus nas pregas da pele de um Rinoceronte, pois esse animalestando coberto de uma pele muito dura não poderia se mexer sem essas pregas.Não é prejudicar a maior das verdades querer prová-la com tais argumentos? Quediríamos daquele que negasse a Providência porque a carapaça da tartaruga nãopossui pregas nem articulações? O raciocínio daquele que a prova pela pele do

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Rinoceronte tem a mesma força: deixemos essas bagatelas àqueles que nelas nãopercebem a frivolidade” (Maupertuis, 1751, p. 27).

O argumento mais comum que se apresenta para refutar o emprego desse fina-lismo exagerado vai na direção totalmente oposta, ou seja, apelar para o acaso e para aausência total de finalidade na natureza. Maupertuis apresenta como exemplo de talposição uma passagem do livro IV do Rerum Natura de Lucrécio – que o autor designacomo “maior inimigo da Providência” – nos seguintes termos: “a utilidade não foi demodo algum o objetivo, (...) ela foi a conseqüência da construção das partes dos Ani-mais (...) o acaso, tendo formado os olhos, as orelhas, a língua, serviu-se deles paraver, para escutar e para falar” (Maupertuis, 1751, p. 24). Em resumo, temos aqui umdilema entre duas posições extremas associadas à relação entre forma e função dosorganismos. Segundo o atomismo, a forma, produzida casualmente, precede e deter-mina a função e, assim, não haveria sentido em atribuir quaisquer desígnios ou finali-dades aos seres vivos. Mas a conveniência generalizada observada na natureza entre asformas e as funções orgânicas reclama o oposto: a função ou utilidade é anterior à for-ma que lhe está associada.

A posição de Maupertuis frente a esse dilema já ultrapassa o problema cosmo-lógico da prova da existência de Deus e determina conseqüências em sua história natu-ral. Ele adota uma posição que acreditamos ser intermediária e que tenta aplicar, con-sistentemente com essa cosmologia, um finalismo restrito às produções naturais. Suaresposta, que introduz os primeiros elementos de seu quadro físico das origens, é aseguinte:

“Mas não podemos dizer que, na combinação fortuita das produções da Natureza,como havia apenas aquelas onde se encontrassem certas relações de conveniên-cia que pudessem subsistir, é maravilhoso que essa conveniência se encontre emtodas as espécies que atualmente existem? O acaso, diríamos, teria produzido umamultidão inumerável de indivíduos; um pequeno número encontrar-se-iaconstruído de maneira que as partes do animal pudessem satisfazer suas necessi-dades; em um outro número infinitamente maior, não havia nem conveniêncianem ordem: todos estes últimos pereceram: animais sem boca não podiam so-breviver, outros que careciam de órgãos para a geração não podiam perpetuar-se;os únicos que restaram são aqueles onde se encontravam a ordem e a conveniên-cia: e essas espécies que vemos hoje são apenas a mínima parte daquilo que umdestino cego havia produzido” (Maupertuis, 1751, p. 24).

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Aparentemente essa descrição da produção dos primeiros organismos é a mes-ma do esquema atomista, pois os organismos são produzidos pela combinação fortuitadas produções naturais. Mas acreditamos existir uma diferença sutil na conjectura deMaupertuis, capaz de garantir uma certa fidelidade à explicação atomista e, ao mesmotempo, evitar o apelo irrestrito ao acaso com comprometimento da validade de seu prin-cípio gerativo fundamental. É essa solução que introduz o que designamos como qua-dro físico das origens.

As estruturas produzidas de modo fortuito não satisfazem automaticamente asnecessidades orgânicas; a maioria delas não se fixa no tempo através da geração pornão exibir a combinação de partes ou de órgãos capaz de garantir o desempenho neces-sário à sobrevivência. O acaso pode produzir seres vivos, mas não é ele que estabelecequais serão as estruturas funcionalmente viáveis. Parece-nos que essa conjectura as-sume algum tipo de predeterminação com relação à composição conveniente de órgãosque engendraria um ser vivo. Tal predeterminação é explicada apenas no interior doquadro metafísico das origens, mas sua atuação no âmbito físico regula e seleciona ascombinações fortuitas e, desse modo, produz como resultado o fato de que os organis-mos pertencentes a todas as espécies existentes exibam uma perfeita combinação deforma e função que se realiza na construção de estruturas que atendam a necessidades.Esse fato maravilhoso e surpreendente pode, portanto, ser explicado a partir de umprincípio geral da natureza. Essa interpretação da conjectura de Maupertuis parece-nos capaz de garantir a combinação de acaso e necessidade exigida por uma soluçãoalternativa entre os modelos atomista e providencialista extremos. Ela também é con-sistente com a proposta, defendida por Maupertuis em sua cosmologia, de inclusão decausas finais nas explicações físicas. Como já mencionamos, a finalidade que reflete apresença de Deus na natureza deve ser buscada apenas nos fenômenos mais gerais e,assim, conclui finalmente Maupertuis, “Não é, portanto nos pequenos detalhes, nes-sas partes do Universo de que conhecemos muito pouco as ligações, que devemos pro-curar o Ser supremo; é nos Fenômenos cuja universalidade não sofre qualquer exceçãoe cuja simplicidade expõe-se inteiramente à nossa vista” (1751, p. 54).

Podemos tratar agora diretamente do problema da origens das espécies e, paratanto, sugerimos inicialmente uma distinção. Uma teoria sobre a “origem das espé-cies” pode ser entendida sob dois pontos de vista distintos: como uma explicação doprocesso pelo qual uma nova espécie é produzida a partir de uma outra preexistente oucomo uma explicação para o surgimento de todas as espécies existentes a partir de umaou várias espécies primordiais. A teoria da geração de Maupertuis inclui, como vimos,uma explicação para a origem de novas espécies no primeiro desses sentidos; a questãoque agora estará em foco diz respeito ao segundo.

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Como vimos anteriormente, mesmo que os primeiros indivíduos tenham surgi-do do encontro fortuito de partes materiais, havia uma finalidade a garantir que apenasaqueles bem adaptados poderiam estabelecer-se e, pela reprodução, formar a diversi-dade de espécies existentes na Terra – reprodução ocorrida tanto por processos ordi-nários como não-ordinários. Essa concepção atomista modificada, apresentada inici-almente como alternativa tanto ao finalismo como ao acaso extremos, aparece maisdesenvolvida no Sistema da natureza na forma de uma conjectura física mais explícitapara a possível origem dos primeiros “indivíduos”: “tudo nos faz conhecer que todasas matérias que vemos sobre a superfície de nossa Terra foram fluidas (...) [e] se en-contravam no mesmo caso que os licores no interior dos quais nadam os elementosque devem produzir os animais” (Maupertuis, 1965a, p. 169). À primeira vista, tería-mos aqui uma possível explicação totalmente naturalizada para a primeira origem dosseres vivos, em flagrante oposição àquela apresentada no interior do quadro metafísico:havia na superfície da Terra uma espécie de fluido seminal universal, análogo aos flui-dos seminais encontrados no interior dos organismos e, a partir dele, foram produzi-dos corpos organizados por geração espontânea: nesse estado de fluidez “os metais, osminerais, as pedras preciosas foram bem mais fáceis de formar-se que o inseto menosorganizado. As partes menos ativas da matéria teriam formado os metais e os mármo-res; as mais ativas, os animais e o homem” (Maupertuis, 1965a, p. 169).

Por razões que aqui não discutiremos em detalhe, não podemos concluir se essadescrição corresponderia com certeza a uma “primeira” origem dos organismos. NoEnsaio de cosmologia, parece ser esse o caso, mas aqui no Sistema da natureza ela apare-ce mais como o efeito de uma catástrofe que teria ocorrido com a Terra após a criação.A discussão dessa questão exigiria a inclusão de muitos outros elementos da teoria deMaupertuis (ligados sobretudo à história da Terra e à origem das raças humanas) queas atuais limitações de espaço não permitiriam. Em linhas gerais, essa descrição pode-ria referir-se tanto a uma condição natural, primordial em algum sentido, como a umacondição posterior à criação sobrenatural, produzida por catástrofes naturais envol-vendo todo o planeta (como a aproximação de um cometa). Mas, mesmo com esse pro-blema em mãos, a teoria de Maupertuis apresenta uma clara conjectura para um qua-dro físico e natural das origens, que, no entanto, não seria necessariamente o primeiro.

Há, por fim, um último elemento ligado a esse quadro físico das origens. Nocapítulo XLV do Sistema da natureza, Maupertuis faz uma conjectura aparentemente semqualquer relação com a questão das origens, mas que veremos estar profundamente re-lacionada com ela. O autor assume inequivocamente a possibilidade de que grandes gru-pos de organismos estejam unidos hereditariamente e que este vínculo se estabeleçapor meio da reprodução “ordinária” ou sexuada. Logo após explicar como certos novosarranjos orgânicos mais potentes podem dominar arranjos mais antigos, o autor diz:

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“Não se poderia explicar assim como de dois únicos indivíduos pôde surgir a mul-tiplicação das mais diferentes espécies? Elas deveriam sua primeira origem a al-gumas produções fortuitas, nas quais as partes elementares não teriam retido aordem que mantinham nos animais pai e mãe; cada grau de erro teria feito umanova espécie; e à força de sucessivos desvios constituir-se-ia a diversidade infi-nita dos animais que hoje vemos; que crescerá talvez ainda com o tempo, mas àqual a seqüência dos séculos não trará senão acréscimos imperceptíveis” (Mau-pertuis, 1965a, p. 164).

Desde a Vênus física, está estabelecido que a partir de um casal podem surgir vá-rias espécies, mas aqui parece haver algo mais: a partir de um casal poderia ter surgidoa diversidade infinita dos animais que vemos atualmente. Isso significa que, para Mau-pertuis, seria possível que todas as espécies animais se originassem a partir de um úni-co casal de animais? Temos aqui a mesma dificuldade de interpretação que anterior-mente encontramos para as origens a partir da geração espontânea. As mais diferentes

espécies poderiam surgir de um único casal, mas não todas; a diversidade infinita dos

animais que hoje vemos poderia ter surgido a partir de vários casais. De qualquer ma-neira, Maupertuis já apresenta a possibilidade de produção natural de gruposmonogenéticos de espécies, com um ancestral comum. Porém, muito provavelmente,essa comunidade de descendência não se estenderia a todas as espécies.

Diante dessas dificuldades, podemos oferecer apenas uma conjectura que, tal-vez, possa integrar em uma visão coerente esse quadro físico das origens. Houve umestado primitivo da Terra no qual todas as matérias e seus elementos estiveram em umestado de fluidez que reúne as condições básicas à geração dos corpos organizados. Or-ganismos de diferentes ordens de complexidade puderam ser produzidos a partir des-se líquido primordial. Inicialmente os corpos organizados poderiam ser produzidosda matéria em estado fluido a partir do mecanismo básico de geração espontânea, quan-do os elementos seminais encontram-se fora dos organismos. Alguns desses primei-ros corpos produzidos – os organismos vivos – puderam reproduzir-se pela manuten-ção do estado de fluidez das partes seminais internas, outros continuariam a ser geradosespontaneamente a partir de fluidos seminais externos. Já os corpos organizados mi-nerais não se reproduziriam devido à perda do estado de fluidez interna. O processo dedesagregação dos corpos causado por fatores externos pode ocorrer mais de uma vez enovas espécies poderão surgir espontaneamente, bem como organismos e espéciespreexistentes poderão extinguir-se. Os organismos vivos gerados a partir dos elemen-tos dissolvidos no ambiente terrestre primitivo são os primeiros ancestrais dos orga-nismos posteriormente existentes, pelo menos aqueles que se reproduzirãosexuadamente. É possível tomar esse quadro primitivo como uma descrição física da

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Origem da vida e origem das espécies no século xviii...

origem de organismos e de espécies sem necessariamente considerá-lo como uma pri-

meira origem dos seres.Até o presente, não pudemos decidir com segurança se tal conjectura estaria de

acordo com as idéias de Maupertuis ou se sua obra contém efetivas aporias decorrentesdas tensões entre cosmologia e história natural. Assim, não podemos decidir se na obrabiológica de Maupertuis comparece uma “origem das espécies” como origem de toda adiversidade a partir de uma ou várias espécies primordiais que sejam efetivamente asprimeiras formas de vida sobre a Terra.

Maurício de Carvalho Ramos

Pesquisador do Projeto Temático

“Estudos de filosofia e história da ciência” da FAPESP,

pós-doutorando do Departamento de Filosofia

da Universidade de São Paulo.

[email protected]

abstract

The work of Pierre-Louis Moreau de Maupertuis encompasses the fields of geometry, physics and as-tronomy, and it also inquires into a subject that is central to the 18th-century scientific agenda, namely,the problem of the generation of organisms. In his Système de la Nature (1752), Maupertuis presents acomprehensive theory that purports to explain, on the basis of a universal generative principle, how thecurrently existing organisms are generated, how the permanence of species in the course of time ispossible, and how the formation of new species from a given lineage of organisms takes place. Based onthese explanations, he advances some conjectures about the origin of the first organisms and the first spe-

cies that shall constitute the main subject of this paper. According to our interpretation, Maupertuis hasexplored the problems of the origin of life and the origin of species from the standpoint of two distincttheoretical frameworks, which we shall call the metaphysical and physical pictures of the origins. In thefirst picture, God’s action is decisive for the production of the first organisms and the first species,while in the second the same production is explained in a conjectural way through a natural, atomisticconception.

Keywords ● Generation. Origin of life. Origin of species. Epigenesis. Preformation. Transformism. Evo-lution. Mechanism. Maupertuis.

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Maurício de Carvalho Ramos

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Lógica , experiência e autoridade...

Lógica, experiência e autoridadena carta de 15 de setembro de 1640 de Galileu a Liceti

Pablo Rubén Mariconda

A carta, da qual publicamos aqui a tradução, faz parte da correspondência mantida en-tre Galileu Galilei e Fortunio Liceti durante 1639 e 1640, na qual se desenvolve umapolêmica acerca da luz secundária ou luz cinérea da Lua, observada quando esta se en-contra na fase crescente. Já em 1610, annus mirabilis, por ocasião do anúncio das pri-meiras observações telescópicas no Sidereus nuncius, Galileu adiantara sua explicaçãopara a ocorrência da iluminação secundária da Lua (cf. E. N., III, p. 72-5). Essa mesmaexplicação seria retomada no Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo,1 em [92]da Primeira Jornada, quando Galileu apresenta a sexta congruência entre a Terra e aLua, a saber, que elas se iluminam mutuamente refletindo a luz do Sol; e a seguir, de[112] a [124], onde Galileu discute e explica, com base nessa congruência, o problemada iluminação lunar, expondo claramente sua tese de que a luz secundária da Lua édevida ao reflexo dos raios solares pela superfície terrestre. Apesar da plausibilidade ecorreção da explicação dada por Galileu, os filósofos tradicionalistas continuaram ainventar os mais variados subterfúgios para contradizê-lo, como Fortunio Liceti, umperipatético declarado, que publica em 1639 um livro intitulado De lapide bononiense

(Sobre a pedra bolonhesa), no qual atribui a luz secundária da Lua a minerais fosfo-rescentes e a uma dispersão da luz solar pelo ar ambiente lunar, questionando ao mes-mo tempo a correção da explicação de Galileu. Instado pelo príncipe Leopoldo deMedici, na carta de 11 de março de 1640 (cf. E. N., XVIII, p. 165), a emitir seu parecer ea responder às críticas que lhe eram dirigidas por Liceti, Galileu responde, em 31 demarço de 1640, “do meu cárcere de Arcetri”, com uma longa carta de mais de 50 páginas,

1 Todas as referências ao Diálogo serão feitas usando o formato da edição brasileira de 2001, isto é, indicando entrecolchetes as páginas do volume VII da Edizione Nazionale delle opere di Galileo Galilei. O mesmo procedimento foiutilizado na tradução da carta, indicando entre colchetes as páginas do volume XVIII da Edizione Nazionale. Todas asdemais referências a passagens de outras obras de Galileu serão feitas à Edizione Nazionale por meio da abreviaçãoE.N. seguida do número do volume em algarismos romanos e do número das páginas.

scientiæ zudia, Vol. 1, No. 1, 2003, p. 63-73

documentos científicos

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endereçada ao príncipe Leopoldo. Essa carta fulgurante, conhecida sob o título de “Sopra

il candore della luna” (“Sobre o candor da Lua”) (cf. E. N., VIII, p. 489-542), ditada porGalileu a seu jovem assistente Vicenzo Viviani, seria seu último documento científico,no qual ele, então cego, reconstruía na memória o conjunto de suas observações lunares.

Contudo, a carta a Liceti de 15 de setembro de 1640 é relativamente indepen-dente do conteúdo da polêmica sobre o candor lunar, embora não lhe seja quanto aofundo metodológico ou a uma certa “perspectiva disciplinar” que Galileu opõe à filo-sofia peripatética tradicional então praticada nas universidades, da qual Liceti é umrepresentante declarado e destacado. Naquela polêmica, esta carta constitui, por as-sim dizer, o epílogo metodológico. Seu assunto é, portanto, de ordem geral, de modoque tem uma relevância em si, independentemente do resultado da polêmica acerca dailuminação secundária da Lua. A carta constitui fundamentalmente um pronunciamentometodológico sucinto de Galileu, no qual ele resume sua crítica ao princípio de autori-dade na filosofia natural, em particular, suas restrições à autoridade de Aristóteles.Enquanto documento em que se expõe a visão galileana do método (dos procedimen-tos científicos), a carta a Liceti, na qual se opera a crítica à autoridade na filosofia natu-ral, pode ser comparada com a carta a Benedetto Castelli de 21 de dezembro de 1613, naqual se opera a crítica à autoridade teológica. Ambas se inserem no conjunto de docu-mentos de Galileu contra o princípio de autoridade e a favor da liberdade de pesquisacientífica (cf. Mariconda & Lacey, 2001).

A luz secundária da Lua em desenho de

Leonardo da Vinci ilustrativo de suas

observações desse fenômeno.

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Mas o que motiva Galileu a fazer esse pronunciamento a respeito da autoridadede Aristóteles na filosofia natural? Ou, mais precisamente, dado o teor do documentoque estamos analisando, qual é o motivo do pronunciamento avaliativo da contribui-ção de Aristóteles para a ciência? O que leva Galileu a avaliar a contribuição do próprioAristóteles, o inventor da lógica e da exigência empirista de confronto das conclusõesdemonstrativas com a experiência?

Tendo enviado ao príncipe Leopoldo sua carta sobre o candor da Lua, esta passa acircular em cópias manuscritas, de abril a junho, divulgando a resposta de Galileu àscríticas formuladas por Liceti. Este reclama, na carta de 8 de junho de 1640, de não terrecebido uma cópia diretamente enviada por Galileu, que providencia então para queLiceti receba uma cópia autorizada. Finalmente, após ter tomado conhecimento do teorda resposta a suas críticas, Liceti reclama de Galileu em 3 de agosto de 1640, mostran-do-se ofendido pelo ataque movido à sua reconhecida profissão peripatética, acusan-do-o de adesão cega à autoridade de Aristóteles e de servir-se erradamente de seuspreceitos dialéticos. Nos termos cordiais de Liceti:

Desenho representando a luz secundária da Lua, também chamada de

“luz da Terra” ou “luz cinérea”, que só pode ser vista quando a Lua está

no início da fase crescente ou no final da minguante.

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“Tampouco me conduz a desviar-me da amizade sincera e cordial, que sempreprofessou ter comigo, aquela última estocada, na qual diz sua justificação proce-der contra quem se serviu erradamente da filosofia peripatética, pois não queroque por quatro palavras pungentes se extinga o tesouro de uma antiga amizade,fundada sobre a base da virtude” (E.N., XVIII, p. 222).

Evidentemente, Liceti conhece a posição de Galileu com relação à filosofia uni-versitária oficial e não concorda ser classificado como pertencente àquilo que Galileudenomina em O ensaiador (1623) de “o bando de estorninhos” (E.N., VI, p. 236-7), quesão aqueles seguidores que se submetem cegamente à autoridade de Aristóteles, pois,ao contrário, ele é um peripatético sério que não pretende estar distorcendo a doutrinade Aristóteles. De certo modo, Liceti se ofende com a crítica e a acusação de Galileuporque as considera como externas, feitas por quem é alheio à profissão peripatéticaou não é especialista de Aristóteles, não estando, por isso, habilitado a julgar a adequa-ção à doutrina de Aristóteles das posições por ele defendidas. Ao fazer isso, isto é, aodeixar subentendida a noção de especialista, distinguindo a abordagem externa e a abor-dagem interna, Liceti, sem o perceber, deixa o flanco aberto para o ataque, que aconte-ce na resposta de Galileu de 25 de agosto:

“Quanto à outra, que V.Sa. chama estocada, de ter eu escrito estar respondendo aquem erradamente usou a doutrina peripatética, isto me é dito porque, contra to-das as razões do mundo, sou imputado como impugnador da doutrina peripatética,enquanto professo e estou seguro de observar mais religiosamente os ensinamen-tos peripatéticos, ou para dizer melhor, aristotélicos, que muitos outros que medespacham indignamente como averso à boa filosofia peripatética; e porque aquiloacerca do bem discorrer, argumentar, e das premissas deduzir a necessária con-clusão é um dos ensinamentos que nos foi admiravelmente dado por Aristótelesna sua Dialética, enquanto eu veja das premissas deduzir conclusões que com es-sas não têm conexão e que, por isso, afastam-se da doutrina aristotélica, se eu asemendar e reindereçar, penso poder com mérito estimar-me melhor peripatético,e que mais destramente se utiliza daquela doutrina da qual outros se tenham erra-damente servido” (E.N., XVIII, p. 234).

O velho Galileu continuava com o mesmo espírito ágil e perspicaz de sempre.Retoricamente, a resposta de Galileu é perfeita. Aproveita a distinção suposta por Licetie o flanco deixado em aberto para passar da crítica externa, que é como Liceti a toma,para a crítica interna, isto é, operada do ponto de vista dos próprios preceitos aris-totélicos. Com efeito, Liceti se ofende porque como diz Galileu “sou imputado como

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impugnador da doutrina peripatética” e, portanto, mostra entender a crítica como ex-terna; mas Galileu, num movimento inesperado para Liceti, considera-se aristotélicopor ser um seguidor dos preceitos lógicos de Aristóteles concernentes, como diz signi-ficativamente, ao “bem discorrer, argumentar, e das premissas deduzir a necessáriaconclusão”. Portanto, sua crítica é agora interna, ou antes, sempre o fôra, embora Licetinão o percebesse, e a questão muda repentinamente de caráter ou põe às claras o cará-ter que sempre teve, pondo em discussão o que significa ser aristotélico. É melhor se-guidor de Aristóteles aquele que segue seus preceitos de método ou aquele que se afer-ra a todos e a cada um de seus ditos, mesmo quando estes estão em flagrante conflitocom os procedimentos dialéticos?

A resposta de Liceti de 7 de setembro é significativa. Ela mostra que ele acusa ogolpe. Primeiramente, pede moderação e respeito na condução do debate, de modoque a disputa científica entre ambos não seja amargada pelas mordacidades e invectivasde Galileu, tal como a presente de acusá-lo de servir-se erradamente da lógica de Aris-tóteles, sem ter, segundo Liceti, o direito de fazê-lo.

“E assim como nas suas oposições eu não quero reconhecer espécie alguma deamargura, mas aquela doçura de doutrina que nas contradições de Sócrates soíamprovar seus discípulos, assim também desejaria que V.Sa. nas minhas não puses-

Frontispício do Sidereus Nuncius de 1610, obra na

qual Galileu anuncia as descobertas feitas com o uso

do telescópio.

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se com sua imaginação nada de amargo, não tendo eu posto aí outra coisa que odoce de um puro desejo de descobrir a verdade, para manutenção da qual me ensi-nou Aristóteles dever-se contradizer não apenas os amigos, mas refutar até mesmoas próprias opiniões, anteriormente abraçadas e tidas em apreço. Ao empregarsempre termos de veneração, devidos não menos à nossa antiga amizade que à suaclara fama de um dos maiores matemáticos de nosso século, procurarei não medeixar vencer: na doutrina, pois, ser-me-á caro ser recolocado na reta via do verda-deiro, quanto me pudesse agradar não me ter jamais dela desviado; acerca do quedeixarei o julgamento à ingenuidade dos especialistas” (E.N., XVIII, p.244-5).

Como se vê, Liceti entendeu a questão endereçada por Galileu em sua carta ante-rior e, por isso, opta por declarar-se seguidor de Aristóteles quanto ao procedimentometódico, porque isto é o que faz dele um seguidor inteligente de Aristóteles, isto é,alguém capaz de usar criticamente os ensinamentos lógicos aristotélicos; o que é enfa-ticamente expresso por Liceti como tendo aprendido de Aristóteles, para satisfazer “opuro desejo de descobrir a verdade”, “dever-se contradizer não apenas os amigos, masrefutar até mesmo as próprias opiniões, anteriormente abraçadas e tidas em apreço”.Ao mesmo tempo, Liceti acaba revelando o que estava por trás do sentir-se inicial-mente ofendido, pois após reconhecer que se pode ter inadvertidamente afastado da“reta via do verdadeiro”, remete o julgamento aos especialistas. Como se isso não bas-tasse, mostra-se, no parágrafo imediatamente seguinte, surpreso com a resposta deGalileu, como se fingisse não ter acabado de responder à questão sobre o sentido deser seguidor de Aristóteles ou não ter percebido que Galileu, ao declarar-se aristotélico,movia-lhe uma crítica interna.

“Que V. Sa. professe não contradizer a doutrina de Aristóteles, é-me muito grato,assim como (para dizê-lo com liberdade) é-me muito novo, parecendo-me de-correr de seus escritos o contrário; mas pode acontecer que neste particular eume engane, com muitos outros que têm o mesmo parecer” (E.N., XVIII, p. 245).

Não poderíamos talvez pensar, em benefício de Liceti, que sua surpresa fossetambém a expressão da convicção de que Galileu falava apenas retoricamente? Não se-ria a reinvindicação de ser discípulo de Aristóteles uma simples posição taticamenteassumida num debate? Não era a obra de Galileu claramente anti-aristotélica?

A carta que aqui publicamos contém a resposta de Galileu. O principal assuntonela desenvolvido é claro: avaliar a contribuição de Aristóteles para a constituição dométodo científico e caracterizar com precisão o sentido em que se pode afirmar ser seuseguidor, garantindo, por assim dizer, o direito de ter endereçado a Liceti a crítica de

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2 Cf. a nota 6 da Segunda Jornada do Diálogo, para uma organização da estrutura da crítica de Galileu ao princípio deautoridade; cf. também Mariconda, 2001.3 Drake reconhece esse lugar singular, não apenas para nossa carta, mas para toda a correspondência com Liceti:“de qualquer modo, a correspondência entre Galileu e Liceti permanece uma espécie de testamento de Gali-leu concernente às relações entre a ciência como ele a concebia e a filosofia tal como era professada, e merece serestudada como nenhuma outra parte da correspondência” (Drake, 1988, p. 531). Ele, sem dúvida, exagera na singu-laridade e importância da correspondência de Galileu com Liceti. A correspondência do período 1613-1616, com,entre outras, as cartas a Castelli e a Cristina de Lorena, é mais importante e tem um significado intelectual na esferaeclesiástica de decisão. Ainda assim, concordo com a idéia de que a polêmica e correspondência com Liceti é umaespécie de testamento científico de Galileu, no qual a carta que estamos publicando corresponde à parte metodoló-gica do testamento. Esse mesmo parecer é reiterado por Geymonat que dedica um lugar de destaque à carta a Licetiem seu apêndice sobre o método (cf. Geymonat, 1984).4 Para as referências, cf. as notas 4 a 7 da carta.

servir-se erradamente dos preceitos de Aristóteles, os quais são, na visão de Galileu,exatamente aquilo em virtude do qual se pode julgar a pertinência ou não do epíteto de“aristotélico”. A resposta de Galileu, como uma leitura da carta comprova, amplia ostermos do debate, dando a Liceti uma simples, porém contundente, lição sobre o mé-todo científico.

Em virtude do pronunciamento metodológico nela contido, a carta a Liceti inse-re-se no âmbito da crítica de Galileu ao princípio de autoridade, a qual é recorrente emsua obra, encontrando-se, de início, no plano da polêmica teológico-cosmológica de1613-1616, dirigida para a limitação da esfera de competência e de atuação da teologiasobre todas as demais disciplinas científicas. Depois da condenação de Copérnico, em1616, a crítica ao princípio de autoridade passa do plano teológico para o científico,que era então o da filosofia natural, combatendo na esfera da filosofia universitáriaoficial, seja em O ensaiador (1623), seja no Diálogo (1632), a autoridade da qual Aristó-teles é investido pelos seus seguidores chamados peripatéticos.2 Nosso documentoencontra-se inserido neste último plano, onde ocupa um lugar singular.3 Avaliada nessecontexto, a carta de Galileu repete posições e argumentos já empregados por ele emoutras obras4 com maior elaboração e precisão, com a única exceção, entretanto im-portante, de um novo argumento anti-autoritário, que é responsável pela singularida-de acima apontada e da qual trataremos no devido tempo.

Então, no que assenta a autoridade de Aristóteles? Em uma formulação simplese direta: em seguir a lógica e a experiência na construção do conhecimento científico;em seguir um método racional para a avaliação dos argumentos científicos. Isso seriaproceder aristotelicamente. Ou, em outros termos, a autoridade de Aristóteles assen-ta, de uma parte, no fato de ter sido o inventor da lógica; em particular, de ter chegadoa uma caracterização precisa da dedução, ou seja, ao conjunto de preceitos lógicos que

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permitem avaliar se um argumento procede concludentemente, de modo a poder serdito dedutivo ou, na expressão característica de Galileu: de suas premissas seguir-senecessariamente a conclusão. De outra parte, Aristóteles também é o proponente doprincípio empirista de comprovação do conhecimento científico pela experiência edisso também decorre sua autoridade. Por isso, para Galileu, ser aristotélico significa“filosofar em conformidade com os ensinamentos aristotélicos, procedendo com aque-les métodos e com aquelas suposições e princípios verdadeiros nos quais assenta o dis-curso científico”.

Ora, Galileu de maneira constante, sem variação de nomenclatura, afirma que ométodo científico, que é acessível à razão natural (sentidos, discurso e intelecto), estáconstituído por demonstrações necessárias (matemáticas) e experiências sensíveis; eé significativo que os dois aspectos acima apontados como característicos da contri-buição de Aristóteles coincidam com o que Galileu considera serem os dois compo-nentes fundamentais do método: a matemática e a experiência.

Detenhamo-nos em cada um desses componentes tal como apresentados na cartaa Liceti, para deixar explícito seu caráter metodológico e seu alcance anti-autoritário.

O primeiro componente tratado por Galileu, após caracterizar o sentido meto-dológico de “seguidor de Aristóteles”, é a lógica. A posição, nesse caso, é inequívoca.Galileu concede a Aristóteles a invenção da lógica, que é tomada como uma doutrinaque trata da “forma do corretamente argumentar”. Essa forma é caracterizada na mes-ma linha da carta anterior, como “deduzir das premissas concedidas a necessária con-clusão”. A lógica é, então, entendida por Galileu como uma teoria da argumentaçãodedutiva. Tanto é assim que Galileu afirma a seguir “ter aprendido das inumeráveisdemonstrações matemáticas puras” segurança no demonstrar, usando este último con-ceito no sentido claro de dedução. Entretanto, ao mesmo tempo em que Galileu conce-de a lógica a Aristóteles, nega ter aprendido com ele a demonstrar ou, se se preferir,afirma ter aprendido a deduzir nas demonstrações matemáticas. As duas afirmaçõesde Galileu encerram, portanto, um contraponto, sob o qual fica subentendida a crítica.Galileu distingue entre a teoria lógica da dedução e a prática dedutiva matemática: alógica é uma teoria da dedução, na qual se formulam os preceitos que devem ser satis-feitos por todo argumento que se pretenda dedutivo; a matemática é uma prática dadedução, na qual se faz uso efetivo de argumentos dedutivos. Isso significa, por umlado, que as demonstrações matemáticas devem conformar-se aos cânones lógicos es-tabelecidos por Aristóteles, os quais são, por outro lado, impotentes para determinarcomo se chega às demonstrações matemáticas. Em suma, Galileu delimita muito estri-tamente a lógica aristotélica ao estabelecimento das condições de dedutibilidade quedevem ser satisfeitas por todo argumento que se pretenda dedutivo, mesmo os argu-mentos matemáticos.

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Lógica , experiência e autoridade...

O contraponto serve, portanto, ao propósito de estabelecer sucintamente, numacrítica subentendida, o limite da silogística e do método científico aristotélico. Comodiz Galileu no Discorsi:

“a lógica ensina a conhecer se os argumentos e as demonstrações já feitas e encon-tradas procedem concludentemente; mas que ela ensine a encontrar os argumen-tos e as demonstrações, nisso verdadeiramente eu não acredito” (E.N., VIII, p. 175).

Ao restringir os procedimentos da inferência científica a uma teoria da argu-mentação dedutiva, Galileu se afasta da idéia cara ao círculo aristotélico paduano deque a Dialética de Aristóteles não se limita à lógica dedutiva, que fornece os princípiospelos quais se sistematiza ou se expõe o conhecimento, mas contém também o conjun-to de procedimentos (não-dedutivos) que permitiriam chegar ao estabelecimento dosprimeiros princípios das disciplinas científicas particulares. Afasta-se também da ten-dência dominante no século XVII, com Bacon e Descartes, de reformar o Organon; re-forma que mantinha, entretanto, a acepção ampla da lógica como um método de in-venção ou descoberta. O vínculo que Galileu estabelece entre lógica e matemática combase na teoria da dedução tornar-se-á dominante na ciência moderna, mostrando-semais profícuo do que as tentativas na direção de um método de invenção.

Passemos agora ao segundo componente ou, como diz Galileu em nossa carta, ao“preceito estimadíssimo de Aristóteles”, a saber, o preceito de “antepor a experiênciaa todo discurso humano”. É evidente que o preceito corresponde a um princípioempirista, pois é interpretado como uma exigência de confirmação pela experiênciadas teorias e explicações científicas. Trata-se, em um sentido claro, de uma exigênciade controle pela experiência das concepções matemáticas alcançadas pela razão natural.

Esse mesmo preceito é introduzido, em [57] da Primeira Jornada do Diálogo, porSimplício e discutido, em [75]-[76], por Salviati. Em geral, Galileu insiste reiterada-mente na instância observacional genericamente proposta pelos seguidores de Aris-tóteles, usando o princípio do empirismo para voltar, de certo modo, contra os aris-totélicos suas próprias armas. As descobertas astronômicas, em particular, produziamtoda uma série de fatos da experiência que o próprio Aristóteles, se estivesse vivo, nãoteria podido deixar de levar em conta. Entretanto, em nenhuma das várias passagensem que Galileu move sua crítica, seja em O ensaiador, seja no Diálogo, ele expressa comtanta clareza, como aqui, o papel de antídoto que o princípio empirista possui no limi-tar a autoridade.

Esse aspecto é responsável pela singularidade já apontada de nosso documento.Nele, Galileu se apropria da formulação tímida de Liceti na carta de 7 de setembro paratransformá-la em um efetivo argumento anti-autoritário. No Diálogo, por exemplo, o

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papel das experiências sensíveis está articulado em torno do princípio empirista deAristóteles, o qual recebe a formulação: “a experiência sensível deve ser anteposta aqualquer discurso fabricado pelo engenho humano”. Aqui, na carta a Liceti, o aspectocrítico do princípio, tal como interpretado por Galileu, é ressaltado, pois “antepor aexperiência a qualquer discurso” é tomado como um preceito

“há muito tempo anteposto ao valor e à força da autoridade de todos os homens domundo, da qual V. Sa. mesma admite que não só não devemos ceder à autoridadedos outros, mas devemos negá-la a nós mesmos, toda vez que encontramos que osentido nos mostra o contrário”.

Fica evidente que a parte do método referente às experiências sensíveis, expres-sa pelo preceito de “antepor a experiência a todo discurso”, serve para limitar o recur-so à autoridade por parte da escola peripatética. É o escrutínio crítico pela experiênciaque torna o método científico livre de toda e qualquer autoridade, até mesmo daquelado autor do método que permite tal escrutínio. Além disso, a carta a Liceti deixa claroque a oposição de Galileu a Aristóteles é antes cosmológica e física do que propria-mente metodológica. Por isso, aqueles que aderem ao princípio de autoridade, pre-tendendo “que o bem filosofar seja receber e sustentar qualquer que se queira das afir-mações e proposições escritas por Aristóteles, afastam-se da interpretação correta deseus preceitos lógicos e empíricos, abandonando-os em proveito de pontos doutrinaisque muitas vezes mostram-se contrários àqueles mesmos preceitos de método.

A autoridade de Aristóteles não está, portanto, baseada em nenhum ponto dou-trinário, seja cosmológico, como a centralidade e imobilidade da Terra, seja físico, comoa teoria do movimento ou a teoria da causalidade, mas na estipulação de um método, deum procedimento racional de certificação da concludência dedutiva dos argumentos ede comprovação das conclusões dedutivas pela experiência. Ser aristotélico significaentão proceder de acordo com os preceitos lógicos e empíricos propostos por Aristó-teles e não erradamente, como fazem os que se dizem peripatéticos, aferrando-se apontos doutrinais do Filósofo, porque então prestam cegamente assentimento a mui-tas conclusões que se mostram falsas, segundo seus próprios procedimentos metódi-cos. A autoridade de Aristóteles é, portanto, inócua, porque ele é o inventor daquelesprocedimentos de método que tornam o juízo científico imparcial e, portanto, autôno-mo com relação à autoridade de todos os homens do mundo, mesmo a do próprio in-ventor do procedimento.

Liceti se surpreendera porque, de certo modo, considerara retórica a posição deGalileu. Nós não a consideramos retórica; mas, nesse caso, ela não concederia muito aAristóteles? Não lhe concederia surpreendentemente o método científico ou, pelo

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menos para Galileu, seus preceitos mais fundamentais? Por que a surpresa? Afinal,Galileu concede a Aristóteles exatamente aquilo que o afasta de Platão, a saber, anecessidade de uma fundamentação lógica da matemática, com a delimitação precisado conceito de dedução, subtraindo-a do contexto místico em que o neoplatonismo acolocara; e o método empírico, com a admissão de que a realidade é inerente ousubjacente ao que nos é revelado pela experiência, e não transcendente e pertencentea um mundo ideal como no platonismo que relega a experiência ao mundo cambiantedas opiniões.

Pablo Rubén Mariconda

Professor Associado do Departamento de Filosofia

da Universidade de São Paulo,

coordenador do Projeto Temático “Estudos de filosofia

e história da ciência” da FAPESP.

[email protected]

referências bibliográficas

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Galilei, G. Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei. 19 vols. Ed. de A. Favaro. Florença, BarbèraEditore, 1933. (E.N.)

_______. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Trad., introd. e notas deP. R. Mariconda. São Paulo, Discurso Editorial/FAPESP, 2001. (Diálogo)

2. Secundária

DRAKE, S. Galileo. Una biografia scientifica. Bolonha, Il Mulino, 1988.GEYMONAT, L. Galileo Galilei. Turim, Einaudi, 1984.MARICONDA, P. R. “O Diálogo e a condenação”. In: GALILEI, Galileu. Diálogo sobre os dois máximos

sistemas do mundo. Trad., introd. e notas de P. R. Mariconda. São Paulo, Discurso Editorial/FAPESP,2001, p. 15-70.

MARICONDA, P. R. & LACEY, H. “A águia e os estorninhos: Galileu e a autonomia da ciência”. In: Tempo

social, 13, 1, 2001, p. 49-65.ROGER, J. Les sciences de la vie dans la pensée française au XVIIIe siècle. Paris, Albin Michel, 1993.

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Carta de Galileu Galilei a Fortunio Licete em Pádua

Carta de Galileu Galilei a Fortunio Liceti1 em Pádua

[247] Muito Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

A gratíssima de V. Sa. muito Ilma. e Exma. de 7 do corrente mês, repleta de ter-mos corteses e afetuosíssimos, foi-me entregue hoje; [248] e, não tendo eu outro tempopara responder além das poucas horas que restam até a noite, para não adiar a respostapor mais uma semana, procuro satisfazer a esta obrigação, ainda que sucintamente,mas com puras e simples palavras.

Quanto àquilo que V. Sa. Exma. deseja enormemente junto comigo, a saber, quenas disputas da ciência sejam observados aqueles termos mais corteses e modestosque convêm a matéria tão veneranda, qual é a sagrada filosofia, dou-lhe minha palavrade não me afastar nem mesmo um dedo de seu estilo ingênuo e honrado; e para fazê-

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Galileu Galilei

lo, usarei os mesmos títulos, atributos e louvores de honradez para com sua pessoa,que ela emprega humanamente para comigo; ainda que muito mais para sua pessoaque para comigo, e muito mais excelentes, seriam necessários; mas sua singular corte-sia não me permitiu usar maiores.

É-me grato saber que V. Sa. Exma. juntamente com muitos outros, segundo afir-ma, tenham-me como averso à filosofia peripatética, porque isto me dá a ocasião deliberar-me de tal pecha (pois assim a considero) e de mostrar quanto eu sou no íntimoadmirador de um tão grande homem, como o é Aristóteles. Contentar-me-ei com opouco tempo de que disponho para acenar com brevidade aquilo que penso com maistempo poder mais ampla e manifestamente declarar e confirmar.

Estimo (e creio que V. Sa. também estime) que ser verdadeiramente peripatético,isto é, filósofo aristotélico, consista principalíssimamente em filosofar em conformi-dade com os ensinamentos aristotélicos, procedendo com aqueles métodos e com aque-las suposições e princípios verdadeiros nos quais assenta o discurso científico, supon-do aquelas informações gerais, das quais desviar-se seria um grandíssimo defeito.Dentre essas suposições está tudo aquilo que Aristóteles nos ensina em sua Dialética,2

concernente ao tornar-nos precavidos no evitar as falácias do discurso,33333 dirigindo-o eadestrando-o a bem silogizar e deduzir das premissas concedidas a necessária conclu-são; e tal doutrina refere-se à forma do corretamente argumentar. Quanto a esta parte,creio ter aprendido das inumeráveis demonstrações44444 matemáticas puras, nunca fala-zes, tal segurança no demonstrar, que, se não jamais, pelo menos raríssimas vezes eutenha no meu argumentar caído em equívocos. Até aqui, portanto, eu sou peripatético.

[249] Dentre as maneiras seguras de conseguir a verdade está a de antepor aexperiência a qualquer discurso, assegurando-nos que nele, pelo menos ocultamente,não esteja contida a falácia, não sendo possível que uma experiência sensível seja con-trária ao verdadeiro; e este é também um preceito estimadíssimo por Aristóteles,55555 e hámuito anteposto ao valor e à força da autoridade de todos os homens do mundo,66666 daqual V. Sa. mesma admite que não só não devemos ceder à autoridade dos outros, masdevemos negá-la a nós mesmos, toda vez que encontramos que o sentido nos mostra ocontrário. Ora, Exmo. Sr., seja dito aqui com sua boa paz, que me parece que estousendo julgado como contrário ao filosofar peripatético por aqueles que se servem er-radamente do acima referido preceito, puríssimo e seguríssimo, isto é, que preten-dem que o bem filosofar seja o receber e sustentar qualquer que se queira das afirma-ções e proposições escritas por Aristóteles, a cuja absoluta autoridade submetem-se, epara a manutenção da qual se induzem a negar experiências sensíveis, ou a dar estra-nhas interpretações aos textos de Aristóteles, para esclarecimento e limitação dos quaismuito freqüentemente farão dizer ao próprio filósofo outras coisas não menos extra-vagantes, e certamente distanciadas da sua imaginação. Não é absurdo que um grande

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Carta de Galileu Galilei a Fortunio Licete em Pádua

artífice tenha preceitos seguríssimos e perfeitíssimos na sua arte, e que por vezes aooperar erre em algum particular; como, por exemplo, que um músico ou um pintor,possuindo os verdadeiros preceitos da arte, produza na prática alguma dissonância ouinadvertidamente algum erro de perspectiva. Eu, portanto, porque sei que tais artífi-ces não apenas possuíam os verdadeiros preceitos, mas eles próprios haviam sido seusinventores, vendo qualquer falha em alguma de suas obras, devo considerá-la comobem feita e digna de ser sustentada e imitada, em virtude da autoridade de seus auto-res?77777 A isto certamente não prestarei meu assentimento. Quero acrescentar por oraapenas isto: que estou certo de que, se Aristóteles retornasse ao mundo, receber-me-ia entre seus seguidores, em virtude de minhas poucas contradições,88888 embora bastan-te concludentes, muito mais que muitíssimos outros que, para sustentar cada um deseus ditos como verdadeiro, vão ciscando em seus textos conceitos que jamais lhe te-riam passado pela mente. E quando Aristóteles visse as novidades descobertas recen-temente no céu, onde afirmou ser ele inalterável e imutável, porque nenhuma altera-ção havia ali sido vista até agora, [250] indubitavelmente ele, mudando de opinião,diria agora o contrário: que bem se percebe que, enquanto diz ser o céu inalterávelporque aí não haviam sido vistas alterações, diria agora ser alterável, porque alteraçõesaí se percebem.99999 A hora se faz avançada, e entraria num pélago imenso, se quisesseproduzir tudo aquilo que em tal ocasião passou-me muitas vezes pela mente; por isso,deixá-lo-ei para outra ocasião.

Quanto ao ter-me V. Sa. Exma. atribuído opiniões que não são minhas, isso podeter acontecido tendo tomado algumas que me são atribuídas por outros, mas nuncaescritas por mim: como, por exemplo, que, por afirmação do filósofo Lagalla,1010101010 eu con-sidere ser a luz corpórea; enquanto nesse mesmo autor e no mesmo lugar escreve-seque eu sempre confessei ingenuamente não saber que coisa seja a luz; e também o to-mar como resoluta e primariamente meus alguns dos pensamentos relatados pelo Sr.Mário Guiducci,1111111111 quando poderia acontecer que eu não tivesse neles parte alguma,ainda que me considere honrado de que se acredite que tais conceitos são meus, poisestimo-os verdadeiros e nobres.

Quanto a ter porventura parecido prolixo no responder a suas objeções, não lheatribuo um mínimo senão, nem por sombra de indignação em V. Sa. Exma., nem tam-pouco de imperfeição em mim, a não ser enquanto com menor tédio do leitor teriapodido exprimir os meus sentidos; mas minha natural rudeza ao declarar-me faz queàs vezes eu transborde onde não queria; além de que, pela nossa combinada liberdadefilosófica e amigável, seja lícito dizer amavelmente, quando ela se comparasse à multi-plicidade e prolixidade das oposições que V. Sa. faz a minha única proposição do candorlunar expressa em pouquíssimas frases; quando se comparasse, digo, ao comprimentode minhas respostas; talvez não encontrasse que a proporção entre as suas afirmações

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Galileu Galilei

e as minhas seja menor que a proporção entre as frases de minha carta e as frases quesuas afirmações contêm. Mas isso são miuçalhas que não devem ser tomadas senãocomo brincadeira.

Compraz-me enormemente que aplauda meu pensamento de colocar em outratextura1212121212 as minhas respostas, enviando-as a V. Sa.; onde terei oportunidade de nãoexagerar utilizando termos de reverência ao seu nome, ainda que eu esteja certo dedever ser amplamente superado em doutrina pelo seu elevado engenho. Poderia per-feitamente acontecer que o meu [251] infortúnio, de ter que servir-me dos olhos e dapena de outros,1313131313 para muito tédio do escritor, prolongasse por mais dias aquilo queem outros tempos por mim mesmo teria terminado em poucos dias, e V. Sa., em virtu-de da rapidez e vivacidade de seu engenho, em poucas horas.

Vive feliz e concede-me sua boa graça, por mim estimada e prezada como fortu-na favorável; e que o Senhor lhe dê prosperidade.

Arcetri, 15 de setembro de 1640

Traduzido do original em italiano por Pablo Rubén Mariconda

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Carta de Galileu a Fortunio Licete em Pádua

Notas

1 Fortunio Liceti nasceu em Rapallo em 1577; estudou medicina e filosofia em Bolonha. Iniciou sua carreira univer-sitária, ensinando dialética (lógica) em Pisa e depois passou a professor extraordinário de filosofia e, portanto, aprofessor de medicina. Em 1609, foi nomeado novamente como professor extaordinário de filosofia para a Univer-sidade de Pádua, onde encontrou Galileu um ano antes que este partisse para Florença. Em 1637, deixou Pádua epassou a lecionar em Bolonha, retornando a Pádua logo depois para tornar-se professor de medicina teórica a partirde 1645. Morreu em Pádua em 1657. Liceti interessou-se pelos mais diferentes assuntos da filosofia natural, hajavista sua polêmica com Galileu a propósito da luz secundária da Lua; polêmica em que se insere a presente carta.Entretanto, a contribuição mais significativa de Liceti se deu no campo da medicina, particularmente nos estudosembriológicos, em que Liceti combina elementos aristotélicos e hipocráticos para formular pela primeira vez a idéiade que a verdadeira geração do organismo ocorre quando os progenitores produzem seus líquidos seminais e não apartir da mistura dos semens masculino e feminino. Segundo Roger, essa idéia possui uma importância históricafundamental, já que, com ela, passa-se a conceber que a verdadeira geração ocorre antes da concepção, ou seja, quehá uma preformação. A noção de preformação do germe será posteriormente associada à idéia de preexistência –todos os embriões, além de preformados, preexistem desde a criação do mundo – e ambas comporão a teoria dageração oficial e dominante até o século XIX (cf. Roger, 1993, Cap. 3). Dentre suas obras, destacam-se De monstrorum

causis, natura et differentiis libri duo (1616 – cf. frontispício), De perfecta constitutione hominis in utero liber unus (1616)e De spontaneo viventium ortu libri quattuor (1618).

2 Dialética, ou seja, o conjunto dos livros da lógica, que foi chamado pelos comentadores antigos de Aristóteles deOrganon, sendo a lógica o instrumento (órgão) para a procura da verdade. Cf. a nota 48 da Primeira Jornada doDiálogo.

3 O termo italiano empregado por Galileu é “discorso” e tem aqui basicamente o sentido de argumento, mas tambémé empregado em certos contextos em sua acepção psicológica de raciocínio. Para uma discussão mais detida do cará-ter polissêmico desse termo, cf. a nota 66 da Primeira Jornada do Diálogo.

4 “progressi”: procedimentos, demonstrações. A avaliação aqui contida da contribuição lógica de Aristóteles é simi-lar àquela que comparece em [59]-[60] da Primeira Jornada do Diálogo – cf. a nota 50 dessa mesma jornada – e noDiscorsi (E.N., VIII, p. 175-176).

5 Trata-se do princípio do empirismo do qual tratamos na Introdução. Uma passagem de igual teor encontra-se em[57] da Primeira Jornada do Diálogo. A referência a Aristóteles, em ambos os casos, parece ser ao De Generatione

Animalium III, 10, 750b, 27. Outras passagens que tratam desse assunto são [75] e [81] da Primeira Jornada do Diá-

logo. Cf. também a esse propósito as notas 39, 66 e 82 da Primeira Jornada do Diálogo.

6 A crítica de Galileu ao princípio de autoridade é, como vimos na Introdução, recorrente em sua obra. Pode-seencontrá-la, por exemplo, em [133]-[139], no início da Segunda Jornada do Diálogo, em um contexto similar ao dapresente carta, isto é, que diz respeito à autoridade de Aristóteles no domínio da filosofia natural. Cf. as notas 6, 15e 19 da Segunda Jornada do Diálogo, para uma discussão mais detida da crítica de Galileu à autoridade de Aristóte-les. Convém lembrar, entretanto, que em nenhuma das passagens citadas Galileu expressa, com tanta clareza comoaqui, o papel de antídoto que o princípio do empirismo tem com relação à limitação da autoridade dos própriosautores.

7 Esta passagem segue a mesma linha de argumentação adotada em [59]-[60] da Primeira Jornada do Diálogo, dis-tinguindo a teoria da argumentação (o conjunto de preceitos que regulam o corretamente argumentar) da práticamatemática da argumentação.

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Galileu Galieli

8 Na verdade não são poucas as “contradições” a Aristóteles por parte de Galileu, que demoliu a física e a cosmologiado estagirita; entretanto essas contradições são doutrinárias e não deixa de ser significativo que quanto à concepçãode demonstração e de experiência, ou seja, quanto ao método, ele se considere aristotélico e, com efeito,retoricamente até mais aristotélico que os peripatéticos; em sentido estrito, portanto, Galileu se diz, nesta carta,aristotélico enquanto seguidor de seu método, não de sua doutrina.

9 Refere-se às manchas solares, à rugosidade da Lua, às estrelas novas etc.; em suma, a todas as novidades desco-bertas por Galileu com o uso do telescópio e anunciadas no Sidereus nuncius (1610).

10 Giulio Cesare Lagalla nasceu próximo de Nápoles em 1576; estudou filosofia e medicina e ainda jovem tornou-seprofessor de lógica, lecionando por 21 anos na Sapienza de Roma, onde também foi diretor do instituto médicopontifício. O ataque que Lagalla move às conclusões extraídas por Galileu de suas observações telescópicas da Luailustra a visão acadêmica tradicional com relação ao método científico, tal como visto pelos professores universitá-rios de lógica. Galileu anotou precisamente a obra em que Lagalla move seu ataque, a saber: De phoenomenis in orbe

lunae novi telescopii usu a D. Gallileo Gallilei etc, Veneza, Baglioni, 1612 (Cf. E.N., III, p. 313-393, para o tratado deLagalla; p. 393-399, para as anotações de Galileu). Lagalla morreu em Roma em 1624.

11 Galileu refere-se aqui ao Discurso dos cometas (1619), escrito em resposta ao Disputatio astronomica de tribus cometis

anni MDCXVIII de Orazio Grassi e lido por seu discípulo e assistente Mario Guiducci (1585-1642) na AcademiaFlorentina. Cabe lembrar que esse debate acontece dois anos depois da condenação da obra de Copérnico (1473-1543) e da admoestação de Galileu por Bellarmino; o que em parte justifica a intervenção de Galileu por meio de umterceiro. A segunda intervenção de Galileu, agora direta, no debate contra Grassi a propósito dos cometas resulta napublicação de O ensaiador (1623). Para maiores detalhes, cf. a nota 73 da Primeira Jornada do Diálogo.

12 “outra textura”, ou seja, uma nova forma para a carta sobre o candor da Lua, que atenuasse o que Galileu chamaaqui de “natural rudeza” no expressar-se, substituindo-a por uma cortesia filosófica que, segundo Liceti, deveriaser mantida nas polêmicas científicas e que Galileu, não sem ironia, toma como cerimoniosa.

13 Como está explicado na carta sobre o candor da Lua, Galileu, cego, ditava. Também esta carta foi escrita, como dizFavaro, pela mão juvenil de Vincenzo Viviani, que a partir de outubro de 1639 era hóspede e assistente de Galileu ecom ele permanecerá até a morte, sendo dos poucos que o acompanhará até o último suspiro; por isso, podiareinvindicar, como de fato o fez, o título de o “último discípulo de Galileu”, ao qual, depois da morte de EvangelistaTorricelli, sucederá no encargo de matemático do Grão-duque de Toscana. Viviani foi o primeiro biógrafo de Galileu,escrevendo a pedido do príncipe Leopoldo de Medici o Racconto istorico della vita di Galileo em forma de carta envia-da ao príncipe em 29 de abril de 1654.

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“Conarius” e memória na carta de Descartes a Mersenne

Conarius e memóriana carta de 1 de abril de 1640 de Descartes a Mersenne

Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli

A carta, cuja tradução é aqui apresentada, situa-se no corpo da volumosa correspon-dência mantida entre Descartes e Mersenne que se inicia em 1629. Nesse mesmo ano,Descartes, instalado na Holanda, manifesta interesse pelo estudo da medicina. Suaprimeira referência ao início dos estudos em anatomia pode ser encontrada na carta aMersenne de 18 de dezembro de 1629. No ano seguinte, o filósofo mostra-se particu-larmente preocupado com a doença de Mersenne e declara a sua intenção de construiruma medicina “fundada em demonstrações infalíveis” (AT, I, p. 105-6). Esse projeto,à medida que Descartes avançava em seus estudos, foi sendo alterado, de forma aestruturar uma medicina que considerasse o homem como um composto corpo-alma,e não como puro mecanismo. Nessa concepção de medicina, questões concernentes àglândula pineal têm extrema importância, uma vez que, por meio dela, como será vistomais adiante, Descartes explica como nos movemos e como sentimos.

Na carta de 1 de abril de 1640, Descartes reporta-se a três cartas enviadas porMersenne, sendo que a primeira trata das declinações magnéticas, a segunda da glân-dula pineal, da memória e da formação das marcas de nascença, e a terceira refere-se aassuntos variados. O ponto central da carta traduzida é a explicação sobre a glândulapineal e a memória que Descartes dá em resposta a uma carta de Meyssonnier, médicode Lyon, enviada por Mersenne, e que, por sua vez, é uma resposta à carta de Descartesde 29 de janeiro de 1640, na qual o filósofo faz uma série de esclarecimentos a respeitoda glândula pineal como sede da alma.

O aspecto mais conhecido das posições defendidas por Descartes diz respeito àsua concepção de homem como um composto corpo-alma. Em outras palavras, o ho-mem é considerado como um conjunto de interações entre o corpo (funções fisiológi-cas) e a mente (funções psíquicas). Nesse contexto, um importante objeto de estudo,na prática da dissecação, é o cérebro. O estudo da estrutura do cérebro é fundamentalpara Descartes, uma vez que em seu interior está situada “a sede do senso comum, istoé, do pensamento, e, por conseqüência, da alma”, como ele afirma em carta a Mersen-ne de 24 de dezembro de 1640. Essa sede é identificada à glândula pineal (conarium):

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assim, essa glândula atuaria na intermediação entre as informações vindas do corpo e aalma, provocando as reações adequadas às situações, às quais cada uma dessas reaçõesremete. Essa identificação da glândula pineal com a sede do senso comum está ligada aum assunto muito em voga nos tratados médicos da época: a localização das faculdadesmentais num centro único do cérebro (cf. Donatelli, 1999).

Na teoria cartesiana, a glândula pineal está no centro da explicação dos movi-mentos e das sensações, que são explicados a partir do movimento dos espíritos ani-mais e dos nervos que os transportam. Os movimentos dos músculos são explicadospor meio da inserção dos espíritos nos nervos; tais movimentos são variáveis de acor-do com a quantidade de espíritos que aí entram. A origem do movimento dos espíritose do sangue encontra-se na ação do coração, em outras palavras, o princípio corporaldos movimentos de nossos membros consiste no fogo cardíaco que, segundo a con-cepção cartesiana, é mantido pelo sangue das veias1. Os nervos podem ser considera-dos o eixo da teoria do movimento, pois funcionam como condutores. A respeito deles,Descartes faz três considerações. A primeira, referente à medula, que é a substânciainterna que se estende em forma de pequenos filetes, a partir do cérebro, de onde seorigina, até as extremidades dos membros; a segunda diz respeito às membranas queenvolvem esses filetes, contíguas às do cérebro, que são como condutos nos quais es-ses filetes estão encerrados; e a terceira concerne aos espíritos animais que são leva-dos por esses condutos do cérebro para os músculos. Os filetes permanecem estendi-dos, de forma que se algo move uma parte de qualquer um deles, esse movimento serácomunicado à parte do cérebro de onde vem.

Os objetos excitam movimentos nos nervos que os transmitem ao cérebro e daíretornam ao ponto afetado, provocando as sensações. Esses movimentos sãoinvoluntários, dependentes, portanto, somente dos espíritos animais nas ramifica-ções nervosas que inflarão um músculo, enquanto o outro permanece desinflado. As-sim, quando um corpo é afetado por um objeto qualquer, os pequenos filetes dos ner-vos, provenientes do interior do cérebro, são movidos por ele, e esse movimento écomunicado ao cérebro, isto é, esses filetes comunicam o movimento à parte do cére-bro da qual procedem e, dessa forma, abrem as entradas de certos poros da superfícieinterna do cérebro; por esses poros os espíritos animais, que estão nas concavidades,vão para os nervos e músculos, fazendo com que o corpo se mova de alguma maneira. Édessa forma que Descartes nos fornece uma explicação dos estímulos exteriores queprovocam os diferentes movimentos dos membros e compõem o mecanismo das per-cepções sensoriais.

1 Descartes, Les passions de l’âme, art. VIII (AT, XI, p. 333).

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“Conarius” e memória na carta de Descartes a Mersenne

Na base de todo o processo de locomoção e percepção do homem estão os espíri-tos animais, partículas produzidas por um processo de filtragem entre as partes maissutis do sangue que são transportadas pelas carótidas. Por esse processo, somente aspartes mais agitadas e mais sutis do sangue chegam às concavidades do cérebro. Dessaforma, os espíritos são produzidos no cérebro e daí vão para os nervos, que são consi-derados pequenos condutos por meio dos quais os espíritos escoam, possibilitandotanto a locomoção como a sensação.

A localização da glândula pineal é um ponto importante para a compreensão dopapel preponderante que ela ocupa na fisiologia mecanicista cartesiana. Situada nocentro do cérebro (como já é afirmado desde o Tratado do homem (1632?), passandopela Dióptrica, discurso V (1637), pela correspondência – principalmente a partir de1640 –, chegando às Paixões da alma de 1649) e sustentada por artérias2, o que possi-bilita sua mobilidade, Descartes afirma que essa localização anatômica a torna muitoespecial, uma vez que ela dá as condições de unificar as sensações que chegam duplicadasdos órgãos do sentidos até a superfície do cérebro.

Quanto à memória,3 Descartes constrói uma teoria fisiológica, na qual a teoriamecânica da percepção desempenha papel fundamental. Os objetos, ao excitarem ocorpo, conforme foi afirmado, deixam vestígios na superfície do cérebro4 compará-veis às dobras que podem ser feitas no papel (a Meyssonier, 29.1.1640). Desta forma,são traçadas figuras na superfície do cérebro que se relacionam com os objetos, comintensidade variável. Os espíritos animais transportam a informação, depositando-ana substância do cérebro, e estão na base dos traços deixados na parte interna do cére-bro que constitui a sede da memória para Descartes (AT, XI, p. 177). Esse processo de

2 L’homme (AT, XI, p. 179); carta a Meyssonnier, 29.1.1640 (AT, III, p. 20).3 Esse assunto é tratado em vários textos, tais como L’homme, Description du corps humain e Méditations métaphysiques

(cf. Draaisma, 1999, p. 220-3).4 Cf.; L’homme (AT, XI, p.177-9); carta a Meyssonier, 29.1.1640 (AT, III, p.19-20).

Desenho representando a conarius ou

glândula pineal (H na figura). Descartes

atribui a essa glândula, que corresponde

à hipófise da anatomia moderna, o pa-

pel de intermediar a união entre a alma

e todas as partes do corpo.

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formação das imagens na superfície pode ser pensada da seguinte maneira: a glândulatem a superfície convexa e o cérebro tem a superfície côncava. Assim como num espe-lho, os espíritos são refletidos da imagem formada na glândula; imagem que possuiuma estrutura geométrica traçada pelos poros (pequenos canais) que compõem a su-perfície do cérebro. Os raios incidem na superfície côncava do cérebro e passampara a superfície convexa da glândula, onde a imagem é defletida, dirigindo a respostados espíritos, como num processo de refração. Dessa forma, os espíritos “têm força(...) de dobrar e dispor diferentemente os pequenos filetes” (AT, XI, p. 177), que cons-tituem essa parte do cérebro, “e as diferentes aberturas dos tubos por onde passam, demodo que traçam, assim, figuras que se relacionam às dos objetos” e, dessa forma,deixam traços que se conservam de tal modo que as figuras podem ser formadas denovo, sem a necessidade da presença do objeto (AT, XI, p. 178). A referência às espé-cies encontrada nessa carta a Mersenne, segundo a qual a memória contém espécies,aparecerá mais tarde nas Meditações (1642), mais precisamente nas Quartas Respostas(AT, VII, p. 246; AT, IX, p. 191; cf. Aucante, 2000, p. 263-4), mas em nenhum dos doistextos há algum esclarecimento que ultrapasse o que se encontra no texto aqui traduzi-do, ou seja, a afirmação segundo a qual não há necessidade de relação de semelhançaentre as espécies e as coisas que são o objeto da lembrança, como a tradição escolásticadefendia, uma vez que elas passam a integrar a explicação mecânica que remete ao Dis-curso Quarto da Dióptrica. Essa abordagem leva ao distanciamento entre a concepçãocartesiana de memória e aquela defendida pela tradição escolástica. Além dessa memó-ria material, da qual os animais também são dotados, Descartes defende a existênciade uma memória intelectual nos homens, que se volta para os conceitos. A questão damemória será abordada, de forma mais detalhada, na carta a Mesland de 2 de maio de1644 (AT, IV, p. 110-20). Nessa carta, Descartes estabelece a distinção entre as duasmodalidades de memória, associando a memória intelectual a vestígios deixados nopensamento e que independem das coisas materiais. Na explicação desse tipo de memó-ria, não há como sustentar uma redução mecanicista, uma vez que os vestígios não sãomais deixados no cérebro, como ocorre com as coisas materiais, mas no pensamento5.

Um outro assunto, mencionado na carta a Mersenne, recorrente na obra carte-siana e muito comum no século XVII, diz respeito à formação dos sinais de nascença(marques d´envie). Segundo a explicação vigente, e que se encontra em vários textos deDescartes,6 o sangue que alimenta o feto pode estar impregnado das idéias que estão

5 Cartas a Mersenne, 11.6.1640/6.8.1640 (AT, III, p. 84-5; p. 143).6 Carta a Mersenne, 27.5.1630 (AT, I, p. 153); Generatio animalium (AT, X, p. 518); Partes similares, Excrementa et

Morbi (AT, XI, p. 606); carta a Mersenne, 30.7.1640 (AT, III, p. 120); Dioptrique – discours V (AT, VI, p. 129).

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na imaginação da mãe, formando os sinais no corpo do feto, ou, ainda, como é men-cionado na Generatio animalium, a imaginação conturbada da mãe pode fazer com queo feto receba membros monstruosos, uma vez que, de acordo com a embriologia carte-siana, o movimento do coração é o responsável pela formação dos membros exterio-res. Descartes menciona esse assunto como forma de estabelecer um paralelo com aurina dos hidrófobos. Segundo ele, não passa de invenção o relato segundo o qual aurina de pessoas mordidas por cães raivosos apresenta figuras de pequenos cachorros,porém se isso for confirmado, e desde que Meyssonnier informe que as tenha obser-vado bem distintamente, esse caso pode ser comparado às marcas que as crianças re-cebem dos desejos das mães.

Em 1640, com o Discurso do método e os Ensaios publicados, com o tratado L’homme

inacabado, e com as Meditações sendo impressas, Descartes já possui todos os elemen-tos estruturantes de sua teoria médica, que será tema de muitas cartas até o final de suavida. A defesa que Descartes faz, no Discurso, de uma filosofia prática que seja útil àvida, encontra sua última elaboração na definição da filosofia por meio da imagem daárvore que consta da carta-prefácio dos Princípios da filosofia. A utilidade está ligadaaos ramos da árvore que constituem as ciências que se voltam para a vida. É assim quese caracteriza a medicina já afirmada no Discurso como o objetivo dessa filosofia práti-ca, uma vez que a partir dos princípios da física chega-se a um conhecimento daquiloque é útil à vida, sendo que

“a conservação da saúde (...) é, sem dúvida, o primeiro bem e o fundamento de todos os

outros bens desta vida” (AT, VI, p. 62).

Isso significa afirmar a primazia da medicina nessa busca por um aperfeiçoa-mento das práticas humanas. Para Descartes, a verdade teórica só tem valor à medidaque se volta para a prática, ou seja, ela se apresenta com a finalidade de trazer benefíciopara o homem. A metafísica, dessa forma, aponta para uma prática, passando pela ela-boração da física que mostra a sua aplicabilidade no desenvolvimento da mecânica, damoral e da medicina, isto é, no desenvolvimento de áreas ligadas à ação humana.

Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli

Professora doutora do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas

da Universidade Estadual de Santa Cruz.

[email protected]

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Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli

referências bibliográficas

1. Primária

DESCARTES, R. Oeuvres de Descartes. 12 vols. Ed. de C. Adam & P. Tannery. Paris, Vrin /Centre Nationaldu Livre, 1996. (AT)

_______. Opere scientifiche de René Descartes. Ed. de G. Micheli. Turim, UTET, 1988.

2. Secundária

AUCANTE, V. Descartes: écrits physiologiques et médicaux. Paris, PUF, 2000.DONATELLI, M. C. de O. F. “A fisiologia e as paixões em Descartes”. In: Cadernos de História e Filosofia

da Ciência, 9, 1-2, 1999, p. 7-31.DRAAISMA, D. Die Metaphermaschine: eine Geschichte des Gedächtnisses. Darmstadt, Wissenschaftliche

Buchgesellschaft, 1999.

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Carta de René Descartes a Marin Mersenne

Carta de René Descartes a Marin Mersenne1

[46] Reverendo Padre,

Apesar de ter recebido três de vossas cartas desde a minha última, não encontroaí matéria suficiente para preencher esta folha. Pois a primeira, de quatro de março,contém apenas a observação das declinações do ímã, que variam na Inglaterra, com oraciocínio que um matemático, que vós não nomeais,2 fez a respeito desse assunto;raciocínio este que é muito bom para descobrir a causa daqui para frente. Mas se vósesperais que eu vos diga, provisoriamente, minha conjectura, como eu não creio que asdeclinações do ímã venham de outro lugar que não das desigualdades da Terra, tam-bém não creio de forma alguma que a variação dessas declinações tenha uma outra causaque não sejam as alterações que ocorrem na massa da Terra: seja porque o mar ganha

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René Descartes

de um lado e perde de outro, da mesma forma que vemos claramente o que ele faz comeste país; seja porque de um lado se formam minas de ferro ou porque esgotam-se deoutro; ou seja, somente, porque foi transportada alguma quantidade de ferro ou de ti-jolo ou de argila de um lado da cidade de Londres para outro. Pois eu me lembro que,querendo ver a hora no quadrante onde havia uma agulha imantada, e estando próximode uma casa na qual havia grandes grades de ferro nas janelas, encontrei muita varia-ção na agulha, mesmo distanciando-me mais de cem passos dessa construção, e pas-sando de sua parte ocidental para a oriental, para melhor observar a diferença. Para océu, não é crível que tenha advindo tanta mudança em tão poucos anos para causar essa[47] variação, pois os astrônomos a teriam observado.

Eu vos agradeço, pela segunda vez, pela semente da sensitiva (l´herbe sentitive),3

que encontrei nesta carta, depois de tê-la recebido, oito dias antes, numa outra. Eurecebi, também, o ensaio a respeito das cônicas, do filho de senhor Pascal4 e, antes deter lido a metade, julguei que ele havia aprendido com o senhor des-Argues,

5 o que mefoi confirmado, imediatamente depois, pela confissão que ele mesmo fez.

Vossa segunda carta, de dez de março, continha uma outra do senhor M(eysson-nier),

6 à qual responderei, se pensar que esta vos deve ainda encontrar em Paris; masse deve ser enviada para mais longe, não há necessidade de carregá-la tanto, e eu possocolocar aqui, em poucas palavras, tudo o que tenho para fazê-lo saber, e isso será, sevos agrada, para quando vós lhe escreverdes. E (depois de meus agradecimentos pelabenevolência que ele me testemunha) no que diz respeito às espécies7 que servem àmemória, eu não nego absolutamente que elas não possam estar em parte na glânduladenominada conarium, principalmente nos animais e naqueles que têm o espírito gros-seiro; pois, quanto aos outros, não teriam, parece-me, tanta facilidade em imaginaruma infinidade de coisas que eles nunca viram, se [48] a alma deles não estivesse jun-ta a alguma parte do cérebro que fosse muito própria para receber todo tipo de novasimpressões, e, por conseqüência, muito imprópria para conservá-las. Ora, só há essaglândula à qual a alma possa estar assim tão junta, pois não há senão ela, em toda acabeça, que não seja dupla. Mas eu creio que é todo o resto do cérebro que serve mais àmemória,

8 principalmente suas partes internas e, ainda, que todos os nervos e múscu-los podem servir para isso; de forma que, por exemplo, um tocador de alaúde tem umaparte de sua memória em suas mãos, pois a facilidade de dobrar e de dispor seus dedosde diversas maneiras, que ele adquiriu pelo hábito, ajuda a fazê-lo lembrar de passa-gens para a execução das quais ele deve assim dispô-los. Vós acreditareis facilmentenisso, se vos dispuserdes a considerar que tudo aquilo a que se chama memória localestá fora de nós; de forma que, quando lemos algum livro, todas as espécies que podemservir a nos fazer lembrar daquilo que está dentro não estão em nosso cérebro, mas hátambém várias no papel do exemplar que nós lemos. E não importa que essas espécies

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Carta de René Descartes a Marin Mersenne

não tenham semelhança com as coisas das quais elas nos fazem lembrar, pois muitasvezes aquelas que estão no cérebro não a têm mais, como eu disse no quarto Discursode minha Diópt(rica).9 Mas, além dessa memória, que depende do corpo, eu reconheçouma outra, totalmente intelectual, que só depende da alma.10

Não estranharia que a Glândula [49] Conarium se encontrasse corrompida nadissecação dos letárgicos, pois ela se corrompe tão prontamente em todos os outros; equerendo vê-la, em Leiden, há três anos, em uma mulher que estava sendo anatomizada,ainda que eu a procurasse com muita curiosidade, e soubesse muito bem onde ela de-via estar, como estando acostumado a encontrá-la nos animais recém abatidos semnenhuma dificuldade, todavia me foi impossível reconhecê-la. E um velho professorque fazia essa anatomia, chamado Valcher,

11 confessou-me que jamais havia podidovê-la em nenhum corpo humano; creio que isso vem do fato de serem consumidos,comumente, alguns dias para ver os intestinos e outras partes, antes de abrir a cabeça.12

No que diz respeito à mobilidade dessa glândula, não quero outra prova além desua localização: pois estando sustentada apenas por pequenas artérias que a cercam, écerto que é preciso pouca coisa para movê-la, mas eu não creio, por isso, que possa seafastar muito, nem daqui nem de lá.

Quanto aos sinais de nascença (marques d´envie),13 o que faz com que vós acreditais

que eles se assemelham tão perfeitamente aos objetos vem do fato de que estranhaisque eles se possam assemelhar tanto quanto se assemelham, mas se os comparardescom os retratos dos piores pintores, vós os encontrareis ainda muito mais defeituosos.Quanto à urina dos hidrófobos é uma questão de fato, na qual nada vejo de impossível;não mais do que naquilo que me haveis escrito sobre a fecundidade de um grão de ce-real, depois de haver sido imerso [50] em sangue ou em esterco. No que diz respeitoàquilo que o senhor N.14 vos disse sobre o magneto, basta que tenhais nomeado vossoautor para me impedir de dar crédito a isso.

Chego à vossa última [carta], de vinte de março, na qual vós me fizestes saber quereenviastes o pequeno Catálogo de Plantas que vos enviei, e que, no entanto, não en-contro com essa carta; mas também não me preocupei com isso, não mais do que comaquele das plantas do Jardim Real que tivestes o cuidado de enviar-me, sem que eu otenha ainda recebido, mas fui informado que eles estão em Leiden.15

Nada ouvi dizer a respeito do que me avisastes que vos escreveram da Inglaterrainformando que eu estava a ponto de ir para lá; mas eu vos direi, cá entre nós, que setrata de um país no qual eu preferiria morar a muitos outros países; e quanto à religião,dizem que o rei é católico por vontade: por isso, eu vos peço para não desviar suas boasintenções.16

Eu não saberia , agora, remeter às matemáticas para procurar o corpo sólido daroldana,

17 mas não o creio impossível.

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René Descartes

Eu vos mandei, em minha [carta] precedente,18 a única razão que eu saiba que

possa impedir que um mosquete tenha tanto efeito próximo quanto de um pouco lon-ge, e não há [51] nenhuma aparência de verdade naquilo que vós me enviastes do se-nhor Myd(orge).

19 Eu sou.

1 de abril de 1640

Traduzido do original em francês por Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli

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Carta de René Descartes a Marin Mersenne

Notas

1 Tradução do texto extraído da edição de Charles Adam & Paul Tannery (AT), vol. III, p. 46-51. As páginas dessaedição estão indicadas entre colchetes.

Marin Mersenne (1588-1648) conheceu Descartes provavelmente em 1623. Dedicado ao estudo da matemática,física, música, filosofia e teologia, Mersenne publicou vários livros e exerceu uma importante função no meio letra-do: reuniu ao seu redor importantes personagens (Huyghens, Fermat, Peiresc, Gassendi, Étienne e Blaise Pascal,Galileu e Beeckman, dentre outros) e possibilitava o contato entre todos por meio de cartas, que serviam como meiode divulgação e discussão no campo da ciência. Em 1635, funda a Académia parisiensis, uma versão prévia da Acade-mia de ciências de Paris. A correspondência mantida com Descartes apresenta-se revestida de importância, umavez que por meio dela estão registradas as reações que provocaram as idéias de Descartes no meio científico e odesenvolvimento dessas idéias por meio das discussões registradas nas cartas.

2 Trata-se do matemático inglês John Pell de quem, segundo consta na edição AT, há três cartas escritas para Mersennea respeito desse assunto: 21.11.1639; 24.1.1640; 29.3.1640. Cf. AT, III, p. 51-3.

3 Em carta de 11 de março de 1640, Descartes agradece a Mersenne pelo envio da semente. Em 16.10.1639, Descar-tes escreve a Mersenne a respeito dessa erva e afirma que está desenvolvendo um estudo sobre as plantas. Em no-vembro (13.11.1639), agradece a oferta de Mersenne em enviar a semente, uma vez que o exemplar que havia noJardim de Leiden não conseguiu se desenvolver.

4 Refere-se a Blaise Pascal.

5 Girard Desargues de Lyon (1591-1661), matemático que freqüentava o círculo de matemáticos formado ao redorde Mersenne, composto por Descartes, Etienne e Blaise Pascal, dentre outros. Desargues destacou-se com seustrabalhos voltados para a geometria. Cf. AT, III, p. 53-6.

6 Trata-se de uma resposta de Meyssonnier à carta de 29.1.1640 enviada por Descartes; carta a respeito da glândulapineal, da memória e da urina dos hidrófobos. Lazare Meyssonnier (1602-1672) estudou medicina em Montpelliere exerceu a profissão em Lyon. Sua obra é permeada de referências à magia e à astrologia renascentistas. (Cf. Des-cartes, 1988, p. 327, n. 47).

7 Descartes vale-se desse termo extraído da escolástica, mas sem manter o sentido original, qual seja, o de umaentidade que engendra as percepções sensíveis, ao penetrar em nosso corpo por meio de nossos órgãos dos senti-dos. Para Descartes, os espíritos animais estão na base de nossas percepções sensíveis.

8 Sobre a memória cf. Traité de l’homme, Quinta parte. (AT, XI).

9 AT, VII, p. 109-14.

10 A respeito dessa memória que é própria dos homens, Descartes desenvolverá, anos depois, maiores considera-ções. Cf., por exemplo, a correspondência com Arnault de 1648, e a carta a Burman, 16.4.1648. (AT, V)

11 Adrien van Falkenburg, anatomista em Leiden, dedicou-se ao estudo do cérebro (Descartes, 1988, p. 339).

12 O começo da observação anatômica se dava pelas partes que estavam sujeitas a um rápido processo de putrefação,ficando as mais resistentes para o final, dentre as quais está a cabeça.

13 Cf. Discurso V da Dioptrique, AT, VI, p. 129.

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René Descartes

14 Trata-se de Pierre Petit, conforme indica a edição AT. Em carta a Huygens de 12.3.1640, Descartes externa o seudescaso com relação a tudo o que Petit alega.

15 Em carta de 13.11.1639, Descartes solicitou a Mersenne enviar um catálogo de plantas raras do Jardim Real, emcontrapartida ele enviaria um catálogo do Jardim de Leiden. Até 11 de junho, Descartes não havia recebido o catálo-go (AT, III, p. 73).

16 A respeito desse assunto, cf. carta a Mersenne, 11.6.1640, em especial, a nota 87 da edição AT (AT, III).

17 Cartas a Mersenne referentes a esse problema: 11.10.1638, (AT, II, p. 395) e 29.1.1640 (AT, III, p. 8).

18 Carta de 11.3.1640. (AT, III, p. 33).

19 Claude Mydorge (1585-1647) dedicou-se aos estudos de matemática e de física, tendo publicado livros voltadospara as seções cônicas e para o sistema ótico. Muito amigo de Descartes, chegou a construir instrumentos óticospara o filósofo.

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Clonagem humana e ética: o caso Clonaid-Raelianos

Clonagem humana e ética: o caso Clonaid-Raelianos

Maurício de Carvalho Ramos

Sabemos pelos noticiários que a Clonaid, empresa de biotecnologia, divulgou ter rea-lizado, até agora, a produção (ou reprodução – difícil decidir neste caso) de três cloneshumanos. Nenhuma prova isenta foi oferecida e a comunidade científica permanececética quanto à realidade do feito. O leitor pode facilmente encontrar mais detalhessobre o assunto no amplo material jornalístico acessível na rede, sobretudo após o anún-cio do primeiro clone em 26 de dezembro de 2002.

A atual presidente da Clonaid, a química Brigitte Boisselier, é também “bispa”da seita raeliana, cujo líder é o ex-jornalista Claude Vorilhon, que passou a usar o epítetode Raël desde que teve contatos com alienígenas – os Elohims – na década de 70. Osraelianos pregam, entre outras coisas, uma espécie de religião atéia que pretende subs-tituir as primitivas religiões tradicionais pela ciência e acreditam que poderemos atin-gir a vida eterna por meio da clonagem. Também ensina a ciência raeliana – revelada aRaël pelos ET’s – qual é a nossa verdadeira origem: toda a vida na Terra foi produzidaartificialmente pelos Elohims e, assim, tanto a explicação da origem da vida por cria-ção especial divina como por evolução biológica estariam erradas – seriam mitos dian-te da força da verdade raeliana. Apesar de Raël insistir que sua seita nada tem a ver coma Clonaid, há muitas ligações entre ambas, conforme veremos mais adiante.

O trabalho de pesquisa que atualmente desenvolvo situa-se nas fronteiras entrebiologia, filosofia e história e, conhecendo esses fatos, senti que deveria refletir sobreo assunto e escrever algo a respeito. Mas, apesar desse sentimento, será que realmentese justificaria algum esforço reflexivo diante do que parece ser o “caso Clonaid-Rae-lianos”, uma típica forma contemporânea de embuste místico ambiguamente apoiadapor ciência suspeita? Por um lado, se a Clonaid produziu ou não clones humanos é umproblema de cunho técnico e científico que se decide com testes controlados. Já o con-teúdo do que Raël e sua seita afirmam não apresenta muita novidade comparativamen-te aos absurdos generalizados que oferecem tantas outras fontes alternativas de saber“esotérico” que vemos surgir a todo o momento e por toda parte. Dessa perspectiva,cheguei a pensar que, apesar do assunto ser instigante, não haveria nada a dizer derelevante sobre ele. Melhor ainda, nada deveria ser dito, já que todo pronunciamentopoderia ser facilmente transformado em nova peça de publicidade que alimentaria o

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notas e críticas

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espetáculo promovido pela seita ao mesmo tempo em que, mais ou menos indire-tamente, promoveria os produtos oferecidos pela Clonaid, suposto braço científicoda seita.

Desenvolvendo já um pouco esta última questão, pode-se dizer que, assim comoa Clonaid, os raelianos e organizações do gênero, a ciência oficial também se utilizaamplamente da publicidade para promover suas atividades e suas realizações. Essaquestão nos remete a um intenso debate filosófico acerca do papel da retórica na ciên-cia que tem Paul Feyrebend como uma das figuras centrais. Mas, mesmo sem entrarnos detalhes dessa polêmica, parece-me que seria injusto aproximar a publicidadeimplicada no caso Clonaid-Raelianos daquela que se vê cotidianamente na ciência.Os produtos da atividade científica tornam-se públicos – mesmo que para o restritopúblico da comunidade científica – para que sejam, em princípio, testados, examina-dos e criticados. Criar as condições para o teste é algo implícito na atividade científica.Já na esfera comercial e “midiática” em geral, parece que se pretende produzir o efeitooposto: a publicidade serve não para testar, mas para dar maior realidade ao fato. Nocaso particular da Clonaid, o caráter científico da publicidade de suas supostas realiza-ções técnicas e científicas já está comprometido. Uma polêmica que ainda deve duraralgum tempo está em curso sobre os procedimentos utilizados até agora para confir-mar se, de fato, a empresa realizou as clonagens humanas. A empresa alega estar pro-tegendo as crianças e as famílias envolvidas, mas se assim fosse o mais coerente seriater mantido tudo em segredo. Por que, então, tanto alarde com algo que se quer prote-ger da publicidade?

Junto do aspecto “esotérico” corriqueiro da questão, que poderia ser simples-mente ignorado, o caso sugere também um possível envolvimento com fraude cientí-fica, propaganda enganosa e exploração da boa fé das pessoas. Estes sim poderiam sermotivos que justificassem uma crítica, apesar dos riscos envolvidos. Contudo, abordartodas essas questões de maneira séria exigiria explorar problemas relativos a domíni-os bastante amplos do conhecimento, pertencentes a igualmente amplas esferas decompetência acadêmica. Isto, por sua vez, sugere ao pesquisador que pretende ser sé-rio uma certa prudência que me pareceu como um segundo motivo para não escrever.Porém, pensando melhor no assunto, reparei que aqui talvez estivesse presente umapossível armadilha. Essa prudência poderia estar sustentada por uma certa “ideologiada especialização” que constrange o pesquisador profissional a não se aventurar muitoalém de sua área específica de investigação. Não seria essa mesma ideologia que, dealguma forma, garantiria aos cientistas e técnicos científicos profissionais (como tal-vez seja o caso de Boissilier e dos funcionários da Clonaid) realizar seu trabalho des-preocupados com os complicados problemas éticos e sociais que estariam fora de suaesfera de competência? Diante disso decidi que seria necessário enfrentar a questão,

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mesmo sob o risco de cometer inconsistências e imprecisões. Farei algumas brevesconsiderações acerca da ética e da responsabilidade envolvida na atividade científicaprocurando nelas situar o caso Clonaid-Raelianos.

Que a atividade científica não pode ser orientada exclusivamente por valores ine-rentes à ciência tem sido defendido por muitos autores e, apesar de ainda haver muitadiscussão sobre o assunto, considero como bastante questionável a opinião de que aatividade científica deve ser completamente livre de valores extracientíficos. Mas esse“amolecimento” do quadro duro das ciências abre o flanco no lado oposto: interpreta-ções relativistas extremadas podem de tal forma diluir as fronteiras entre ciência e mitoque não mais podemos separar a ciência justamente daquelas atividades sectárias eirracionais que estamos criticando. O problema dos valores liga-se por sua vez direta-mente à questão das metas da ciência: como articular os interesses de cientistas e não-cientistas quando a ciência modifica a natureza de um modo significativo para o ho-mem e afeta pessoas que estão bastante distantes da própria atividade científica? Emoutras palavras, que tipo de responsabilidade pode ser exigida da ciência e dos cientis-tas em seu processo de intervenção da natureza, principalmente quando se trata daprópria natureza humana?

Acredito que essa responsabilidade do cientista está intimamente ligada a duasgrandes posições assumidas diante da ciência que estão em permanente conflito. Aprimeira, cuja origem, de um modo geral, pode ser encontrada na Antigüidade gregano próprio nascimento do saber teorético, associa a atividade científica a valores li-gados a uma certa necessidade intrínseca do homem por um conhecimento desin-teressado e “puro”, motivado exclusiva ou preponderantemente por sua curiosidadenatural ou desejo instintivo de conhecer. Esse conhecimento desinteressado é dito umconhecimento contemplativo e não possui outro valor associado que não seja o próprioconhecimento; ele não é movido por qualquer interesse nem é instrumento para atin-gir outra coisa que não ele próprio. Mas há a atitude oposta, aquela que entende que oconhecimento valioso é o conhecimento útil para o homem. Pode-se dizer que foi essavisão que esteve bastante presente no nascimento da ciência moderna e foi ela que inau-gurou de modo explícito a idéia de domínio e controle da natureza em função das ne-cessidades humanas – lembrando que o ideal lançado no século XVII viria a realizar-sena prática apenas no século XIX. A contemplação associada ao saber tradicional é ques-tionada ou rejeitada em prol da ação ligada ao novo saber dos tempos modernos. Saber

é poder.Acredito que ainda hoje convive na ciência a influência dessas duas atitudes ou

éticas. A primeira delas é evocada diante das pressões e dos controles externos a que ocientista se vê submetido. A pureza do conhecimento teórico não deve satisfação a nin-guém além do desejo inato pelo conhecimento. Já a segunda atitude aparece quando o

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trabalho científico é associado ao serviço à humanidade, à doação do cientista pela causade diminuir o sofrimento humano. Mas também a vejo assumindo formas menos “pu-ras” ao ligar-se a ideais de profissionalização, produtividade e eficiência do trabalhocientífico. O interesse humano aí envolvido é mais o do próprio cientista que constróiuma carreira e compete pelo lugar mais próximo possível do “primeiro time”. O pro-blema que estamos discutindo em particular, a clonagem humana, vincula-se mais di-retamente a essa segunda orientação ética em relação à ciência.

Penso que entre esses dois extremos ideais associados à ciência útil situa-se aresponsabilidade social do cientista: levar em consideração os interesses concretos daspessoas afetadas direta ou indiretamente pelas transformações que a ciência realiza nomundo em contraposição aos interesses abstratos da “humanidade” e aos interessesconcretos individualistas do próprio cientista. Uma ação eticamente responsável esta-ria fundada no reconhecimento de que qualquer tentativa de levar a sério os interessesda humanidade significa enfrentar uma pluralidade de interesses em conflito e emtransformação. Além disso, para que esse enfrentamento ocorra de forma legítima,deve-se reconhecer que as decisões sobre o que fazer com as ciências e seus produtostecnológicos – que riscos queremos ou não assumir diante das vantagens que eles pro-porcionam – não podem elas próprias ser tomadas em bases científicas. Isso porque,ao considerar essa pluralidade de interesses, a capacidade de conhecer as conseqüên-cias futuras pode estar, na maioria dos casos, muito além do limite de previsibilidadeque a ciência pode oferecer. Esse ponto de vista é defendido por Alan Chalmers em suaobra A fabricação da ciência. Nela, o autor diz que “ultrapassamos o legítimo domínio da

ciência quando introduzimos questões a respeito da conveniência e segurança das diversas

intervenções tecnológicas no mundo”. Desse modo, explica Chalmers, quando os proble-mas sociais e políticos são interpretados como se fossem científicos, as soluções ofe-recidas obscurecem as questões sociais e políticas em jogo. A capacidade de previsãocientífica é bastante precisa justamente por ser limitada e pode acontecer que o limiteda previsibilidade seja realmente pequeno em função do risco implicado. Desse modo,querer ou não correr o risco está envolvido com decisões pessoais e coletivas que nãopodem receber garantias científicas e, portanto, interesses bem amplos, de amplosgrupos humanos terão de ser levados em consideração.

A questão da clonagem humana me parece um caso especial no qual essa capaci-dade de previsão de riscos aliada à tomada de decisões etica e socialmente responsá-veis se manifesta de forma aguda. Basta pensarmos na questão da previsibilidade rela-tiva aos fenômenos biológicos: os clones são organismos cuja existência depende deforte intervenção tecnológica; são organismos que se originaram artificialmente, masque continuarão a existir biologicamente por meio da reprodução e da evolução. Sendoassim, o que se pode pensar de forma responsável sobre o futuro de tais organismos?

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E os interesses do próprio organismo clonado, o que é possível prever sobre sua exis-tência futura? O problema já é difícil por si só e, conforme argumentarei, agrava-seainda mais quando considerado da perspectiva do caso Clonaid-Raelianos.

Antes de tudo, um esclarecimento sobre o real vínculo existente entre a seita e aClonaid, já que tal vínculo foi negado mais de uma vez por seu líder. Como já dissemos,a seita prega a imortalidade pela clonagem, a substituição da religião pela ciência e negatanto a origem sobrenatural divina como a natural evolutiva da vida na Terra, já queafirma que ela foi produto de experiências realizadas por extraterrestres. Tudo isso éoriundo de uma revelação pessoal feita pelos alienígenas ao próprio Raël. A Clonaid,por sua vez, oferece comercialmente a clonagem reprodutiva como um de seus produ-tos. Raël afirma nada conhecer sobre a clonagem, mas a presidente da Clonaid,Boisselier, é uma cientista profissional que ocupa lugar de destaque especial na seitacomo “bispa”. Raël também diz que a clonagem humana é um dos passos para a reali-zação do projeto maior de atingir a imortalidade. Isso nos parece suficiente para acei-tar que um vínculo importante existe entre a empresa e a seita. As atividades da Clonaidpossuem portanto, no mínimo, uma “inspiração” das metas da seita raeliana. E é esteponto em particular que examinarei com algum detalhe.

A clonagem supostamente realizada pela Clonaid é um serviço oferecido em seusite a “casais estéreis sem quaisquer esperanças de ter a criança de seus sonhos”, a “casais

homossexuais com um profundo desejo de ter uma criança contendo seus próprios genes” e apessoas que queiram “ser clonadas sejam quais forem suas razões”. Aqui já teríamos bas-tante material para discutir acerca do confronto dos interesses individuais e coletivosa que aludimos anteriormente. Mas uma outra modalidade de serviço prestado tam-bém estaria disponível: trazer à vida parentes falecidos!. É o caso do suposto terceiroclone, anunciado com destaque na página de entrada do “site”: “Estamos muito conten-

tes por confirmar o sucesso do nascimento do terceiro bebê clonado! Após duas meninas (Eva

e a menina clonada a partir do casal de lésbicas alemãs), nasce agora o primeiro menino. Ele

é o filho de uma família japonesa que foi perdido em um acidente. O bebê recém-nascido é um

gêmeo idêntico de sua criança falecida. Os pais estão muito felizes e excitados pois finalmen-

te ‘tiveram sua criança de volta’ após a sofrida perda algum tempo atrás”. Como é possívelacreditar que um gêmeo idêntico seja a mesma pessoa que faleceu? Fico imaginandocomo seria o momento de dizer a pessoa “você morreu, mas nós o trouxemos de volta”.Mesmo que a clonagem artificial produza organismos bem mais idênticos do que o pro-cesso natural de formação de gêmeos univitelinos, parece algo muito evidente que umclone meu será sempre um outro. É um fato biológico ordinário que aquilo que um orga-nismo é, seu fenótipo, é sempre o produto da combinação do genótipo com fatores am-bientais. Do ponto do vista psicológico as diferenças serão ainda mais marcantes – cadacorpo sempre perceberá o mundo de coordenadas espaciais e temporais diferentes.

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Se as clonagens anunciadas pela Clonaid não forem uma fraude – o que é muitodifícil – parece que a empresa começa a oferecer a seus clientes, de maneira ainda im-plícita, essa forma de imortalidade pela clonagem. Se assim for, estará vendendo umenorme engodo. Mas essa forma de imortalidade é justamente parte das crençasraelianas. Segundo Rael, há três passos para atingir a vida eterna: “O primeiro passo ago-

ra é só criar um bebê. Se você quer ter uma criança por clonagem, você dá uma célula sua e em

18 anos você tem um clone adulto. Mas não é você, porque esse clone pode desenvolver perso-

nalidade bem diferente. A primeira parte do passo dois é a criação de um útero artificial.

Então, vamos descobrir como acelerar a multiplicação celular. Mas esse clone ainda não é

você, porque é só o hardware, só o corpo. Então atingiremos o passo três, que virá da ciência da

neurocomputação. Eles estão trabalhando em como ler e como decifrar tudo em seu cérebro:

sua memória, sua personalidade, tudo. Nós conectaremos o computador ao clone adulto, en-

tão você poderá descarregar, antes de morrer, sua memória e sua personalidade em um clone

mais jovem de si mesmo. E essa não é uma tecnologia que virá em um ou dois séculos. Tudo

deve vir em 15 a 25 anos”. Pura especulação que qualquer pessoa um pouco informadapoderia fazer, mas especulação que pode ganhar grande força quando aliada a toda apropaganda em torno da Clonaid. Com estas idéias Raël pretende “tentar inspirar cien-

tistas a criarem o jeito que eu vejo o futuro para a humanidade”. Boisselier parece ter sidocativada por esse projeto e acredito que o caso Clonaid-Raelianos possa ser caracteri-zado como uma ousada tentativa de colocar a ciência e a tecnologia contemporâneas aserviço de objetivos religiosos e comerciais bastante questionáveis.

Com estas considerações podemos agora retomar as duas éticas associadas à pes-quisa científica que apresentamos anteriormente. De tudo o que foi dito, não me pare-ce que qualquer ideal de pesquisa desinteressada esteja servindo de estímulo às açõesque estivemos analisando. Na verdade elas se parecem muito mais com a viabilizaçãotécnica de um projeto extra-humano que foi revelado pessoalmente a um escolhidocomo mensageiro da verdade. Seriam então essas pesquisas e realizações técnicascaracterizáveis como serviços úteis à humanidade? Parece que é nessa crença que sefundamenta todo entusiasmo com que estas pessoas têm se colocado diante do mundo.Se Raël não estiver simplesmente montando uma grande farsa, ele acredita que teveacesso a uma fonte especial de conhecimento sobre a origem da humanidade e, porisso, sente-se autorizado em propor-lhe o futuro que julga o melhor. Isso nada mais édo que se julgar capaz de falar para a própria humanidade a partir de uma posição espe-cial. Sua retórica pretende ter a força para enfrentar e dissolver o confronto secularentre evolução e criação. E a solução do dilema é dada por uma curiosa forma contem-porânea de misticismo: preencher o lugar vago deixado por Deus e pela Natureza comseres extraterrestres não-humanos. Nossas origens continuam sendo dependentes deatos especiais de seres superiores – não mais na forma de solenes uniões sexuais entre

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os deuses, mas como produtos de técnica alienígena. Diante dessa perspectiva, não háespaço para qualquer responsabilidade social genuína; nenhuma disposição de consi-derar a diversidade de interesses humanos em conflito. Nem ciência desinteressada,nem ciência útil.

Maurício de Carvalho Ramos

Pesquisador do Projeto Temático

“Estudos de filosofia e história da ciência” da FAPESP,

pós-doutorando do Departamento de Filosofia

da Universidade de São Paulo.

[email protected]

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“De humani corporis circus” de Gunther von Hagens

“De humani corporis circus” de Gunther von Hagens

Regina André Rebollo

Desde 1996, o médico anatomista alemão Gunther von Hagens vem promovendo a ex-posição “Os mundos do corpo – exibição anatômica do homem real” (“Body worlds –the anatomical exhibition of real human”) no Japão, Alemanha, Áustria, Bélgica, Lon-dres e Seul. O evento já foi visitado por pelo menos 8 milhões de pessoas e nele sãoapresentados 200 exemplares anatômicos (25 corpos e 175 partes) conservados a par-tir de uma nova técnica para a conservação de órgãos e estruturas do corpo humano,chamada por Hagens, seu idealizador, de plastinização (plastination).

Gunther von Hagens, doutor em medicina pelo Departamento de Anestésicos eMedicina de Emergência da Universidade de Heidelberg (1975), logo depois, teve suafama ligada a essa técnica de plastinização, que ele desenvolveu em 1978, quando tra-balhava no Instituto de Anatomia e Patologia da Universidade de Heidelberg. Desde1996, curiosamente, é professor visitante da Escola de Medicina de Dalian, na China ediretor do Centro de Plastinização da Academia Médica Estadual de Bishkek, na Repú-blica do Quirguistão. Autor de várias publicações, Hagens possui também uma empre-sa sediada em Heidelberg, a BIODURTM, que comercializa os equipamentos e ospolímeros utilizados na técnica de plastinização e também um Instituto onde põe emprática o trabalho de conservação e fixação das peças anatômicas.

A plastinização consiste basicamente no seguinte: durante um processo a vácuo,exemplares biológicos são preenchidos por um polímero desenvolvido especialmentepara esse fim. O tipo de polímero utilizado determina as propriedades mecânicas (fle-xibilidade e rigidez) e ópticas (transparência ou opacidade) da peça preservada. A plas-tinização tem a vantagem de ser uma técnica de conservação seca e inodora, mantendoo relevo natural das superfícies e a peça idêntica ao seu estado antes da fixação, permi-tindo o exame macro e microscópico com grande acuidade visual. A plastinização subs-titui os fluidos corporais e a gordura com polímeros reativos, tais como silicone, borra-cha, resinas de epóxi ou poliéster. Na primeira fase do processo, solventes substituemgradualmente os fluidos com um banho de solvente gelado (“substituição por congela-mento”); em seguida, a peça desidratada é colocada num banho de imersão de solventena temperatura ambiente, para a retirada da gordura. A peça, desidratada e sem gordura,é colocada numa solução de polímero. O solvente é, então, fervido a vácuo e continua-

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mente extraído. O solvente evaporado cria um vazio dentro da peça que será gradual-mente preenchido pelo polímero. Após o processo (chamado de “impregnação força-da”), a peça é curada com gás, luz, ou calor, dependendo do tipo de polímero utilizado.

A técnica de plastinização é também feita em fatias milimétricas do corpo, desuas partes, tecidos e órgãos. Ela consiste basicamente no seguinte: partes do corpo ouo corpo inteiro, em geral congelados, são cortados ou serrados (no caso dos ossos) emfatias de 2 a 8 mm de espessura. As fatias são em seguida colocadas numa malha de fiometálico, onde serão desidratadas, “desengorduradas” e saturadas a vácuo compolímeros, como descrito acima. Depois, são conservadas entre duas películas ou fun-didas com polímeros adicionais, num recipiente plano composto de lâminas de vidroque lhes darão uma superfície fina e lisa. Essa técnica permite a visualização transver-sal anatômica do corpo com um detalhamento jamais observado.

Hagens e sua equipe levam 1500 horas para preparar as peças inteiras e as ven-dem para escolas de medicina, museus, instituições e pessoas interessadas por no mí-nimo 15.000 libras esterlinas.

Todas as peças apresentadas na exposição “Os mundos do corpo” foram prepa-radas dessa maneira e elas pertenceram a pessoas que em vida doaram seus corpospara a ciência médica. No Instituto para a Plastinização de Hagens em Heidelberg, existeum programa de doação de corpos. O anatomista afirma que 4.500 pessoas já estãoinscritas. Embora sustente que os corpos foram obtidos legalmente, em 1999, uma re-vista alemã publicou uma reportagem que o acusava de ter, no Instituto de Plastinizaçãode Heidelberg, 56 corpos de indigentes e pacientes siberianos com problemas men-tais. De fato, Hagens possui um contrato com o Instituto de Anatomia da Universidadede Novossibirsk, autorizando-o a recolher os corpos não reclamados de moradores deasilos e instituições assistenciais.

No material de divulgação da exposição “Os mundos do corpo”, afirma-se que oobjetivo maior do evento é possibilitar uma visão única do corpo humano saudável e docorpo humano doente apresentando os órgãos e as partes de acordo com temas especí-ficos, tais como o sistema nervoso (“the body electric”), a respiração (“breath bybreath”), o sistema cardiovascular (“beat by beat”), e a estrutura óssea (“strong stuff”),entre outros. A intenção é aquela que vem sendo praticada nas escolas médicas desde oséculo XVI, ensinar a função das partes no sistema específico e mostrar as suas doen-ças típicas, bem como expor as estruturas anatômicas individuais.

A exposição, como é comum na Europa, conta ainda com uma loja na qual sãovendidos artefatos como relógios, pesos de mesa, “mousepads”, jogos infantis, cartõespostais e camisetas, especialmente estampados com os objetos exibidos no evento.

Hagens organiza os corpos plastinizados em posições dinâmicas que, emboracotidianas, produzem um efeito final bastante bizarro. O conjunto reúne 25 corpos,

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“De humani corporis circus” de Gunther von Hagens

entre eles um jogador de basquete, um jogador de xadrez, um cavaleiro montado emseu cavalo, este último também plastinizado, uma mulher grávida cujo ventre abertopermite a visão de um feto de oito meses, e um homem carregando a sua própria pele.As peças foram dissecadas, abertas, divididas e “desfolhadas” em camadas, ora dando-se ênfase aos músculos, ora à pele, ora ao sistema circulatório, ora ao sistema nervoso.A forma de apresentação lembra aquela de Vesálio e dos anatomistas dos séculos XVI eXVII, época do grande reflorescimento da investigação anatômica, quando as pranchasanatômicas mostravam a estrutura nervosa ou muscular de figuras humanas que, emposições elegantes, posavam tendo como pano de fundo belas paisagens campestres dePádua ou Florença.

A visão é de fato única. O “corpo humano real” que se observa é completamentediferente daquele que vemos usualmente. Cada exemplar preparado parece pertencera um protótipo humano que se diferencia muito da imagem que temos de nós mesmos.

As reações ao evento são as mais diversas. De uma maneira geral, é sucesso depúblico e motivo de inquietação para aqueles que se ocupam das questões éticas e ci-entíficas e que não poupam críticas ao caráter sensacionalista e de showbusiness do even-to. O site da exposição relata que a Universidade de Kassel, na Alemanha, fez um estudosobre a reação do público concluindo que nenhuma exposição anterior suscitara umdebate tão intenso. A pesquisa foi desenvolvida por Ernest D. Lantermann, professordo Instituto de Psicologia, e suas principais conclusões foram as seguintes: a maiorparte do público europeu considerou a exposição muito boa ou boa; aprovou a apre-sentação dos corpos e das partes plastinizadas, considerando-as bastante apropriadaspara o aprendizado; 83% afirmaram ter obtido um grande conhecimento sobre o corpohumano; 47% disseram que a exposição lhes ensinou sobre a vida e a morte; 80% sen-tiram profunda reverência pela maravilha dos corpos; 60% saíram da exposição deci-didos a levar uma vida mais saudável e 33% afirmaram que passaram a gostar mais docorpo humano do que antes. Estes últimos disseram que se empenhariam para deixarde beber álcool e fumar.

A demonstração anatômica em Londres

Em 20 de novembro de 2002, desafiando as autoridades inglesas, Hagens promove umaautópsia pública numa antiga cervejaria nos arredores de Londres. Tudo começou quan-do a exposição “Os mundos do corpo”, que já tivera, em março de 2002, dificuldadesiniciais para obter autorização do Departamento de Saúde Inglês, não obteve permis-são para ser prorrogada, após ter sido visitada por 550 mil pessoas.

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Regina André Rebollo

Hagens promoveu a autópsia diante de uma platéia de 500 pessoas e de câmerasde TV da emissora Chanel 4, que colocou no ar uma versão editada do evento. A pedidoda polícia, dois agentes da Scotland Yard e dois professores de anatomia estavam pre-sentes. O corpo necropsiado pertencera a um senhor de 72 anos, fumante e consumi-dor de álcool, segundo Hagens. Vestindo o tradicional avental cirúrgico azul e um cha-péu de feltro preto, sua marca registrada, Hagens abriu a performance sugerindo aopúblico que desviasse o olhar, se necessário. Em seguida, cortou o peito do cadáver eabriu o esterno com as duas mãos. Durante as três horas seguintes retirou todos osórgãos, separando o que sobrou do corpo de uma pilha de órgãos amontoados na ban-deja. Cada passo do procedimento foi descrito e explicado ao público, pois o objetivoinicial era “abrir o corpo real humano na presença de leigos estabelecendo a causa mortis

e as anormalidades”. Quando todos os órgãos foram retirados, Hagens os colocou no-vamente no lugar e costurou a abertura feita no tórax. Uma cópia da tela de Rembrandt,“Aula de anatomia do Dr. Nicholaes Tulp”, de 1632, foi estrategicamente pendurada naparede, atrás da mesa metálica onde o corpo foi colocado, diante da platéia.

A autópsia pública de Hagens deu-se após 170 anos da proibição desse tipo deevento pelas autoridades do Reino Unido, no intuito de impedir o roubo de cadáveres.No século XVI, as necropsias públicas tornaram-se muito populares na Europa, quan-do a Igreja Católica autorizou a dissecação para ajudar na compreensão do “milagre dacriação”. Em 1565, a rainha Elizabeth I forneceu ao Colégio Médico Londrino uma licençareal para dissecar corpos de criminosos condenados. Desde então, a atividade de in-vestigação anatômica será também praticada fora das universidades e escolas médicas,transformando-se em objeto de interesse e curiosidade para um público leigo.

Contra aqueles que o criticam, Hagens argumenta que sua atividade não deve sercondenada, pois serviria ao enlightenment geral e chega a traçar paralelos com o perío-do moderno. Ele afirma que é um continuador da tradição anatômica de Galeno e Vesálioe de uma época na qual as demonstrações públicas eram promovidas em teatrosanatômicos. Para ele, lamentavelmente, tais demonstrações estariam hoje confinadasa uma elite médica, privando o público leigo “do espetáculo e da maravilha do corpohumano”. Hagens acredita que o seu papel é o de lutar pela “democratização da anato-mia”. Diante de tais fatos farei alguns comentários que me parecem pertinentes.

Em primeiro lugar, a técnica de plastinização desenvolvida por Hagens é umainovação no campo técnico e por enquanto não trouxe novas informações significati-vas na área do conhecimento médico e científico. É sabido que o conhecimentoanatômico, pelo menos a macroanatomia humana, é um conhecimento descritivo queserve mais ao ensino e à formação do que à aquisição de novos conhecimentos. Essenão é o caso da anatomia microscópica e da anatomia comparada, por exemplo. O es-petáculo de Hagens deve, portanto, na minha opinião, ser analisado à luz do desenvol-

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vimento técnico e não científico, como se poderia pensar. Aqui, a técnica está a serviçoda divulgação científica. Quando Hagens afirma que a exposição contribui para oenlightenment geral é preciso dizer que o que ele faz localiza-se no campo da divulgaçãocientífica e não no da produção do conhecimento. Assim, os valores e julgamentos re-lacionados com o evento não podem ser deduzidos dos valores da ciência e dos cientis-tas, que nem sempre coincidem. Hagens não é um cientista e nem se comporta en-quanto tal. Por isso, ao se comparar aos grandes anatomistas do passado, como Galenoe Vesálio, Hagens ignora que tais anatomistas estavam estabelecendo um novo métodode observação e sistematização do corpo humano, que trouxe ao conhecimento médicoe científico novos resultados. Talvez Hagens devesse apenas dizer que muitas das suasfiguras humanas plastinizadas tiveram como inspiração o trabalho e as reproduções deVesálio, Juan Valverde, Leonardo da Vinci, Fabrício de Acquapendente, Júlio Cassério,Johan Remmelin e Albinus, por exemplo.

Em segundo lugar, as críticas ao caráter sensacionalista e de showbusiness do even-to são descabidas. É um espetáculo mesmo, onde Hagens é mentor, diretor e produtor.Cabe lembrar que o anatomista está reunindo uma pequena fortuna com seus eventos eperformances. O problema se coloca quando lembramos que os objetos da exposiçãosão seres humanos. Do ponto de vista ético, na minha opinião, a questão mais impor-tante a ser considerada é saber como os corpos e suas partes foram adquiridos. A for-ma, o arranjo e o contexto das peças são irrelevantes, uma vez que se trata de expor ocorpo assim como ele é. Ou melhor, assim como a tradição livresca e museológica orepresenta nos últimos 500 anos. Uma rápida consulta aos tratados de anatomia des-critiva e artística mostra que as peças de Hagens são tão magníficas, e ao mesmo tempohorripilantes, quanto aquelas representadas por esses manuais.

Com relação à necropsia do dia 20 de novembro, é preciso perguntar por que aAssociação Médica Britânica considerou o evento degradante e desrespeitoso, desejan-do que a experiência não se repetisse. Estaria a instituição preocupada com o crescenteinteresse mórbido pelo corpo humano por parte de pessoas exógenas ao meio acadê-mico e científico? Não sou especialista no assunto, mas nota-se, na primeira metadedo século que acaba de terminar, um reavivamento do interesse pelo corpo humanonos movimentos artísticos e culturais. Entre os artistas ingleses, o caso mais interes-sante é Anthony Noel Kelly, condenado a nove meses de prisão por ter utilizado cadá-veres roubados para fazer moldes de esculturas. Kelly era açougueiro, antes de optarpelo mundo das artes; Damien Hisrt, por sua vez, corta animais em pedaços e os colocadentro de um tanque com formol; Mark Quinn cria esculturas de si mesmo preenchi-das com o próprio sangue. O fenômeno não se restringe às galerias de arte. Um dosúltimos videoclips do popstar inglês, Robbie Williams, apresenta-o colocando em práti-ca uma nova forma de sedução: uma vez que vestido é completamente ignorado pelas

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garotas, faz um striptease de si mesmo, retirando a pele e os músculos, que são atiradosà platéia, expondo órgãos e vasos, desfolhando-se até chegar aos ossos e se transfor-mar num alegre esqueleto dançante. Com isso, obtém uma mórbida atenção. Por sinal,assim como Hagens. Caberia perguntar por que a exposição “Corpos espetaculares: aarte e a ciência do corpo humano de Leonardo até hoje” (“Spectacular bodies: the artand science of the human body from Leonardo to now”), apresentada na HaywardGallery (Londres) no inverno de 2000, não sofreu as críticas que Hagens está receben-do. Contrariamente, foi bastante elogiada. A resposta pode ser a chave para a compre-ensão do “fenômeno Hagens”. A exposição na Hayward Gallery procurou mostrar asrepresentações artísticas e médicas do corpo e da face nos últimos 500 anos acompa-nhadas de trabalhos de oito artistas contemporâneos que dão uma nova perspectiva aotema. A exposição foi acompanhada de eventos e discussões acadêmicas promovidaspor especialistas em história da medicina, conferindo-lhe um caráter que foi muitoalém do puro espetáculo. A interpretação histórica e filosófica do passado da anatomiadifere significativamente da perspectiva “futurista” de Hagens. Um dos seus projetosmais recentes merece um comentário à parte, pois elucida a natureza de seus traba-lhos. O anatomista está solicitando a pacientes terminais que doem seus corpos após amorte para que sejam dissecados e reconstruídos como um “super-homem”, cada passodo procedimento filmado por câmeras de TV. O objetivo do projeto é “identificar e cor-rigir as imperfeições do design da anatomia humana”. O corpo será redesenhado porHagens e uma equipe de biólogos, cirurgiões e engenheiros mecânicos, que darão umaforma “mais aperfeiçoada” à anatomia do homem. Algumas idéias já definidas inclu-em aumentar o número de costelas para proteger melhor os órgãos internos; criar joe-lhos que se dobrem para trás, diminuindo o desgaste das juntas; reposicionar a tra-quéia e o esôfago para impedir que a comida desça pela traquéia-artéria por engano;duplicar o coração ou reconstruir a artéria coronária e fabricar um pênis retrátil. ParaHagens, essa seria uma “maneira interessante de testar aquilo que a engenharia gené-tica poderá fazer no futuro”. A perspectiva de Hagens valoriza claramente a tecnologiasobre toda e qualquer outra forma de ação no mundo e suas implicações morais.

Para finalizar, embora as reações aos eventos citados acima tenham sido as maisdiversas, o sucesso de público não pode ser ignorado. Hagens recupera o espírito daciência-espetáculo, tão em voga nas cortes européias nos séculos XVI a XVIII. É sabidoque, nessa época, a ciência e os cientistas são um espetáculo à parte, entretendo a no-breza e a sua entourage com as “maravilhas científicas” recém descobertas, a pesquisaanatômica entre elas. Uma crescente curiosidade e atração pelas “coisas novas” farásurgir a cultura do colecionador particular e conseqüentemente um mercado de curio-sidades alimentado por nobres e eruditos. Surgem, então, os museus, os jardins botâ-nicos, as ménageries ou coleções de animais raros, vindos da América, da África e das

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Índias. Os espécimens naturais e humanos serviam de decoração ritual nas grandescerimônias. Foi dessa forma que, em 1550, Henrique II entrou na cidade de Rouenatravessando um cenário que reconstituía o Brasil, exatamente como hoje são feitas asalegorias carnavalescas. Nessa época, médicos, cirurgiões e boticários reais ocupavamtambém o papel de comentadores oficiais da “diversidade da natureza”. O caso maisinteressante é o de Ambroise Parré, primeiro cirurgião de Charles IX. Em Sobre os mons-

tros e os prodígios (Des monstres et prodiges) publicado em 1573, Paré, apoiando-se nasdescrições de André Thevet, na época “garde du cabinet des curiositez”, discorre sobreo novo mundo e as curiosidades médicas e naturais. De Tours, em 1569, um cirurgiãoenvia-lhe um cadáver seco e dissecado de uma criança recém-nascida com dois corpose uma cabeça. É obvio que a coleção reunida por Paré não desmerece o seu trabalhocientífico, pelo contrário, ela o enriquece. Da mesma maneira, não estou aqui criti-cando a técnica de plastinização em si, que pode ser muito útil ao ensino e à divulgaçãodo conhecimento médico anatômico. Se objeções devem ser feitas a Hagens, uma de-las é a de explorar apenas as conseqüências comerciais da técnica. Além disso, ao pre-tender que a técnica tenha o mesmo estatuto da ciência e ao confundir ciência comdivulgação científica, Hagens perde a oportunidade de associar a sua empreitada umareflexão histórica e filosófica mais profunda, tal como aquela explorada pela exposiçãofeita na Hayward Gallery.

(As informações colhidas para a elaboração desta nota crítica foram retiradas dosite oficial da exposição “Body worlds – the anatomical exhibition of real human”[www.koerperwelten.de/en] e [www.bodyworlds.com]; Os jornais “The GardianUnlimited”; “BBC News Online” e “Le Monde” também foram consultados.)

Regina André Rebollo

Pesquisadora do Projeto Temático “Estudos de filosofia

e história da ciência” da FAPESP,

pós-doutoranda do Departamento de Filosofia

da Universidade de São Paulo.

[email protected]

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Referências Iconográficas

Figura p. 64

Luz secundária da LuaCamile Flammarion, Astronomie populaire. Bibliothèque Nationale, Paris.

Figura p. 65

Luz secundária da LuaLeonardo da Vinci, Le codex Leicester. Paris, Musée du Luxembourg, 1977. Feuillet 2A, Folio 2r.

Figura p. 67

Frontispício do Sidereus Nuncius

Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei. Ed. de A. Favaro. Florença, Barbéra Editore, 1928-38,Vol. III, p. 53.

Figura p. 75

Retrato de GalileuDesenho de Mario Leoni. Sessão de desenhos, Musée du Louvre, Paris.

Figura p. 83

A glândula pineal (conarius)

René Descartes, Traité de l’homme. In: Oeuvres de Descartes. Ed. de Ch. Adam & P. Tannery. Paris, Librairiephilosophique J. Vrin, 1996, Vol. XI, p. 174.

Figura p. 87

Retrato de DescartesPintura anônima em óleo sobre tela. Musée du Louvre, Paris.

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Contents

articles

Science and the comings and goings of common sense ● 9Michel Paty

The modes of teleology in Cuvier, Darwin and Claude Bernard ● 27Gustavo Caponi

Origin of life and origin of species in 18th century: the viewpoints of Maupertius ● 43Maurício de Carvalho Ramos

scientific documents

Logic, experience and authorityin the letter from Galileo to Liceti on September 15, 1640 ● 63Pablo Rubén Mariconda

Letter from Galileo Galilei to Fortunio Liceti ● 75

Conarius and memory in the letter from Descartes to Mersenne on April 1, 1640 ● 81Marisa Carvalho de Oliveira Franco Donatelli

Letter from René Descartes to Marin Mersenne ● 87

notes and criticisms

Human cloning and ethics: the Clonaid-Raelians case ● 93Maurício de Carvalho Ramos

Gunther von Hagens’ “De humani corporis circus” ● 101Regina André Rebollo

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scientiæ zudiaé uma publicação trimestral do Departamento de Filosofia, que tem por objetivo dar visibilidadeà produção acadêmica nas áreas de filosofia e história da ciência sem descuidar das contribui-ções de áreas afins como a sociologia da ciência, a história da técnica e a filosofia da tecnologia.Dedica-se a publicar artigos acadêmicos; traduções de documentos científicos de valor histó-rico (principalmente correspondência científica); análises críticas das publicações correntesde divulgação cientifica; discussões sobre aspectos relevantes de política científica e tecnológica;bibliografias organizadas e comentadas e resenhas críticas de textos clássicos e recentes.Scientiæ zzzzzudia nasce do trabalho de uma equipe que vem atuando desde 1987 no âmbito doprograma de pós-graduação e do curso de graduação do Departamento de Filosofia da USP. Atu-almente, esse trabalho é financiado pela FAPESP, constituindo o Projeto Temático “Estudos defilosofia e história da ciência”.

I N S T R U Ç Õ E SI N S T R U Ç Õ E SI N S T R U Ç Õ E SI N S T R U Ç Õ E SI N S T R U Ç Õ E S AAAAA O SO SO SO SO S AAAAA U TU TU TU TU TO R E SO R E SO R E SO R E SO R E S

● os originais devem ser enviados com texto digitado em programas compatíveis com o ambiente

Windows, em formato RTF, em disquetes de 3 1/2" ou por e-mail, em arquivo anexado.● o texto deve ser digitado em corpo 12, fonte times new roman, com espaçamento de 1,5 linhas, em

laudas de até trinta linhas por cerca de setenta caracteres, preferencialmente até 40 laudas.● solicitamos que o arquivo contenha nome(s) do(s) autor(es), instituição(ões) a que pertence(m),

por extenso, endereço(s) completo(s) e até 4 linhas de informações profissionais, sobre cada autor.● pede-se que o(s) autor(es) destaque(m) termos ou expressões no texto por meio de itálico. Cita-

ções, transcrições ou epígrafes em língua estrangeira devem vir entre aspas.● figuras, gravuras, ilustrações e desenhos em geral devem ser apresentados em páginas separadas.

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cialmente até 200 palavras.● os autores devem apresentar de cinco a dez palavras-chave em português e de cinco a dez keywords

em inglês.● as notas de rodapé devem ser digitadas ao final do arquivo, utilizando-se os recursos para criação

automática de notas de final de texto dos programas de edição.● citações e menções a autores no correr do texto devem subordinar-se à forma (sobrenome do autor,

data) ou (sobrenome do autor, data, página).● as referências bibliográficas deverão ser listadas ao final do artigo, em ordem alfabética, de acordo

com o sobrenome do primeiro autor e obedecendo à data de publicação, ou seja, do trabalho mais

antigo para o mais recente. Não devem ser abreviados títulos de periódicos, livros, nomes de edito-

ras e de cidades.

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Esta revista foi composta em filosofia

e impressa em papel off-set 75 g/m2

na gráfica Cromosete

em março de 2003