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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO BÁSICA O CUIDADO COMO CRIAÇÃO DE CANTOS NO TERRITÓRIO Solange Santana Vieira Orientadora: Profª. Dra. Claudia Elizabeth Abbes Baeta Neves Niterói-RJ 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO BÁSICA

O CUIDADO COMO CRIAÇÃO DE CANTOS NO TERRITÓRIO

Solange Santana Vieira

Orientadora: Profª. Dra. Claudia Elizabeth Abbes Baeta Neves

Niterói-RJ

2009

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Solange Santana Vieira

SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO BÁSICA

O CUIDADO COMO CRIAÇÃO DE CANTOS NO TERRITÓRIO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Profª. Dra. Claudia Elizabeth Abbês Baeta Neves

Niterói-RJ

2009

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Solange Santana Vieira

Saúde Mental e Atenção Básica O cuidado como criação de cantos no território

Aprovada em 16 de Setembro de 2009.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________ Profª. Drª. Claudia Elizabeth Abbês Baeta Neves

Universidade Federal Fluminense

_____________________________________________________

Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira

Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Duarte de Carvalho Amarante

Fundação Oswaldo Cruz – Escola Nacional de Saúde Pública

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DEDICATÓRIA

Naquele dia, o nascer do sol inaugurava a mais linda das estações do

ano. A primavera chegava por entre todas as flores colorindo e dando

asas a inquietude de seu coração. Lançou-se como pássaro e partiu para

outra viagem.

Naquela cidadezinha de Mimoso do Sul, o pássaro havia feito pouso nos

dedos de uma mulher rendeira. Seu canto encontrava viço e alegria no

tecer daquelas mãos. Pareciam tecer sentidos para o próprio viver

quando tomados pelo cultivo desta relação doce e amorosa. As mãos

desenham pequenos bordados na colcha amarela emoldurada pelos fios

melódicos das canções do pássaro. Juntos fiavam o tempo, a memória.

Teciam no coração daquela cidade uma vida de companheirismo,

solidariedade e partilha.

No abrir sereno de suas asas no vácuo, o pássaro aproveitava para dar

sentido e força às coisas da terra e da natureza. No vôo daquela manhã,

deixava entre o bater de suas asas a eternidade em um simples instante e

toda a liberdade para amar perto e distante. A saudade era embalada

pela memória viva de suas canções.

A cidade emprestava-se em retalhos para a feitura de mais uma colcha

daquela mulher rendeira. Pouco tempo depois, aquela mulher também se

despede. Ficamos nós tecidos por este amor torcendo para que mulher e

pássaro se encontrem novamente.

Aos meus avós, Geraldo e Euzi Bruzzi, pássaro e mulher rendeira, que teciam com suas

vidas uma aposta amorosa de cuidado de si e do outro insistindo no cultivo de relações

de partilha, solidariedade e companheirismo. Nossa despedida nestes dois anos de

mestrado traz uma saudade que insiste como marca, a ressoar e ativar em mim o gosto

por experimentar esta prática de cultivo de nós mesmos, do mundo, da vida.

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AGRADECIMENTOS

A Claudinei, amor companheiro e cúmplice desta jornada e de tantas outras ainda por

viver. Seu apoio e cuidado foram fundamentais para a realização deste trabalho.

Aos meus amados pais, Geraldo e Fátima e meus queridos irmãos Fabio e Rafael. Pela

vida que podemos partilhar juntos. Pela família que construímos tecendo nossas vidas

com laços de afeto e solidariedade. Amo muito vocês!

A minha orientadora Claudia Abbês por embarcar comigo nesta viagem interferindo

com sua força e coragem naquilo que sustentou não só o trabalho, mas também nossa

viagem: a de fazê-la na habitação dos paradoxos com os quais constituímos nossa

existência e nossas lutas.

A Eduardo Passos e Paulo Amarante pelas contribuições preciosas durante o processo

de qualificação. Sem dúvida, viver este processo de modo coletivo nos ajudou no tom

de aposta que fazemos em todo o texto.

A Julio Cesar Pinto pela disponibilidade e gosto de fazer-se junto. Encontrarmo-nos

nesta viagem trouxe vida e sustento aos percursos da pesquisa.

A Helder Muniz pela escuta e delicadeza de suas contribuições que sempre me

lembravam que não estamos sós em nossas viagens.

A todos os trabalhadores da Saúde Mental e Estratégia de Saúde da Família do

município de Macaé que vêm experimentando em sua prática cotidiana o gosto desta

intercessão. Meu agradecimento especial à, Angela, Cristiane e Janaína (equipe de

Saúde Mental) e a toda equipe da ESF de Nova Holanda pela acolhida e disposição

generosa em participar da pesquisa.

Aos amigos do mestrado com os quais pude aprender e compartilhar intensamente o

gosto de nossas apostas. Em especial a Cristiane Knijnik, Beatriz Adura e Ariadna.

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A Patrícia Campagnoli pela generosidade ao abrir as portas de sua casa e acolher-me em

Niterói neste tempo. Tenho certeza que as portas se abriram também para uma amizade

que vamos levar conosco para outras tantas viagens.

A todos os professores que participaram de minha formação em psicologia na

Universidade Federal do Espírito Santo, em especial à Sonia Pinto, Beth Barros e

Cristina Lavrador. Suas interferências intensivas continuam a reverberar ainda hoje em

minha vida trazendo força e coragem diante dos desafios.

Aos amigos da Clinica de Reabilitação Social pelo incentivo e pela compreensão da

necessidade de meu maior afastamento neste tempo.

A Luciana e Marcos, amigos fiéis e zelosos que se tornaram família em Macaé

ajudando-me a tecer sentidos para a vida nesta cidade.

Aos amigos de Vitória que sempre queriam saber como tudo andava e como eu estava.

A Priscilla, Anne, Elisangela, Léia, Erika e Rosana, obrigada por toda torcida!

A Michele, querida amiga de Macaé, que interferiu afetuosamente nos momentos de

cansaço trazendo alegria e renovo do ânimo para caminhar ainda mais.

A Secretaria Municipal de Saúde de Macaé.

A Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa.

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RESUMO

Neste trabalho, problematizamos a produção de práticas de cuidado que têm privilegiado o trabalho no território e o definido como prioritário em nosso contemporâneo, dedicando-nos a pensar na importância da articulação Saúde Mental e Atenção Básica na constituição de nossas práticas no campo da saúde. Para pensarmos esta interface, utilizamos como metodologia de pesquisa, a cartografia, que marca uma afirmação da produção da pesquisa como método processual criado em sintonia com o domínio igualmente processual que ele abarca. A cartografia foi realizada na rede de saúde do Município de Macaé fazendo-se junto a uma equipe de Saúde Mental e uma equipe da Estratégia de Saúde da Família que se pretendem construtoras desta articulação. Com elas participamos de visitas domiciliares, capacitações, oficinas terapêuticas e interconsultas. Para tanto, compreendemos e apostamos em um certo modo de operar o processo de construção de conhecimento afirmando seu caráter de produção e invenção de nós e do mundo. Assim, trazemos como tema de pesquisa, pensar o que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica tomando esta articulação em suas interferências e ressonâncias, na aposta de que sua experimentação possa ampliar nossa visão a fim de vivermos a dimensão coletiva de todo processo de produção de saúde, de nós e daquilo que fazemos juntos. Fazemos isso na companhia de Foucault, Deleuze, Guattari e tantos outros autores que nos auxiliaram na feitura da escrita e da própria pesquisa como uma prática ética de cultivo e cuidado da vida. Buscamos acentuar as memórias intensivas dos encontros e das lutas que atravessam e constituem a saúde pública, quando entendemos que pensar o encontro entre Saúde Mental e Atenção Básica, é também fazê-lo na dimensão do encontro entre a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica. Compreendemos que as políticas no campo da saúde não envolvem apenas as ações formuladas pelo Estado, mas, sobretudo, as lutas cotidianas que intervêm nessas ações, como marca da exigência dos movimentos instituintes que fazem emergir novos problemas e engendram processos de autonomia e exercícios de resistência. Isto nos convoca à construção de uma prática ética de cultivo da dimensão pública de todo processo de saúde quando pensamos o público na inseparabilidade de três processos de produção: produção de saúde, produção de subjetividade e produção de territórios existenciais. Palavras Chaves: Saúde Mental. Atenção Primária à saúde. Território. Cuidados de saúde.

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ABSTRACT

In this work, we discuss the production of care practices that have focused on work in the territory and defined as a priority in our contemporary, dedicating ourselves to think about the importance of the joint Mental Health and Primary Care in the constitution of our practices in the health field. To think this interface, used as research methodology, cartography, marking a statement of research production as a method of procedure established in line with the rule of procedure that he also embraces. The cartography was performed in the health of the municipality of Macaé is doing with a team of Mental Health and a team from the Health Strategy for the Family that intends to build on this joint. With them participate in home visits, therapeutic workshops and consultation-liaison. For this, we understand and are investing in a certain way of operating the process of knowledge construction affirming his character of production and invention of us and the world. So bring as research subject, think what is happening between Mental Health and Primary Care taking this interference in their articulation and resonance, on the bet that his trial can broaden our vision in order to live the collective dimension of the whole production process health, and what we do together. We do this in the company of Foucault, Deleuze, Guattari and many other authors who assisted us in making and writing own research as an ethical practice of cultivation and care of life. We intended to highlight intensive memories of the meetings and fights that occurred in the public health think when we understand that the encounter between Mental Health and Primary Care, is also doing it in the dimension of the encounter between the Health Sector Reform and Psychiatric Reform. We understand that the policies in the health Field does not involve only actions made out by State but it involves also the daily fights that come along with those actions as a mark of the movement institutive demand bringing up new problems and producing autonomy processes and resistance exercises. This calls us to build an ethical practice of cultivating the public dimension of the whole process of health when the public think the inseparability of three processes: production of health, production of subjectivity and the production of existential territories. Keywords: Mental Health. Primary Care. Territory. Health care.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: um convite .......................................................................................11

CAPÍTULO I

Respiração, Vida, Escrita: Encarnando o verbo pesquisar.......................................18

1.1 Campo problemático: Por quais terras viajamos?.....................................................19

1.2 Provisões de viagem Kafkanianas: Um duplo exercício de desconstrução para o

caminho da (des)aprendizagem.......................................................................................25

1.3 Tecendo as condições do campo problemático.........................................................27

1.3.1 Produzindo Estranhamentos: a experiência de uma contratação coletiva..............32

1.3.2 Com que roupa eu vou? Ensaios das/nas provisões...............................................35

1.4 Encontros cartográficos: Quando ir a campo é ir ao território..................................40

1.5 Interferências: Um, Dois, Três - O incontável como oxigênio para a invenção do

presente............................................................................................................................48

1.6 Das Interferências: quando qualquer ‘entrada é boa desde que as saídas sejam

múltiplas’.........................................................................................................................50

1.6.1 Interferência Um: Fiando a Formação Acadêmica.................................................53

1.6.2 Interferência Dois: (Desa)Fiando a Experiência Profissional................................63

1.6.3 Interferência Três: Fiando a Experiência com /na Cidade.....................................65

1.6.3.1. Um pouco mais da cidade: Tecendo entradas na rede de Saúde de

Macaé...............................................................................................................................70

CAPÍTULO II

Habitando o plano paradoxal de constituição do SUS...............................................74

2.1 Estado Moderno na composição do plano de poder: As artes de governar ou o

governo ‘das coisas’........................................................................................................79

2.2 Desafios da Construção do SUS em tempos de biopolítica.......................................86

2.3 A construção do SUS no Encontro: Reforma Psiquiátrica e Reforma

Sanitária...........................................................................................................................89

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2.3.1 Narrativas intensivas da experiência de Santos......................................................90

2.3.2 De quando as interferências se fazem na produção/experimentação de um novo

Ethos................................................................................................................................93

2.4 Atenção Primária: algumas modulações para a construção de uma rede básica de

saúde..............................................................................................................................100

2.4.1 Habitando um não-lugar: Experiência limiar da/na Atenção Básica....................104

2.4.2 Reverberações da experiência Santista na criação do Projeto Qualis/PSF:

Reinventando modos de fazer........................................................................................109

2.5. Saúde Mental e Atenção Básica: Que conversa é essa?.........................................114

2.5.1 Apoio Matricial? NASF’S? Como Pensar a interface Saúde Mental e Atenção

Básica?...........................................................................................................................117

2.5.2 Arando em outros solos: contribuições basaglianas frente à experiência norte-

americana.......................................................................................................................123

CAPÍTULO III

O cuidado como constituição de um Ethos................................................................130

3.1 O que em nós quer cuidar? Cuidando do cuidado...................................................146

3.2 De quando os modos de cuidar são modos de conhecer..........................................149

3.3 A experimentação da clínica como cuidado do/no território...................................160

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................174

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................179

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INTRODUÇÃO: um convite

Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou: - Para onde cavalga, senhor? - Não sei direito - eu disse - só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar: só assim posso atingir meu objetivo. - Conhece então seu objetivo? - perguntou ele. - Sim - respondi -. Eu já disse: "fora-daqui", é esse o meu objetivo. - O senhor não leva provisões - disse ele. - Não preciso de nenhuma - disse eu - A viagem é tão longa que tenho de morrer de fome se não receber nada no caminho. Nenhuma provisão pode me salvar. Por sorte esta viagem é realmente imensa. (A Partida in KAFKA, 2002)

Cavalgar para ‘fora daqui’ numa viagem tão longa onde não se leva provisões. Como

seria isso? O que nos inspiraria o conto Kafkaniano intitulado A Partida? Ao som da

trompa, o homem tem seu corpo estremecido. Ordena que o cavalo seja selado, pois

sabe que já é tempo de sair. O que a escuta faz em nós estremecer?

Parece-nos que embora organizemos a vida em direções precisas, com tantos objetivos e

metas pré-estabelecidas que nos digam de antemão o que fazer, há sempre um toque de

trompa que faz a vida escapar. Zonzo fica o criado que, com o corpo ainda intocado

pelo som, não entende como pode aquele homem não ter destino e provisões para sua

viagem. Mas, naquele instante, isto que parecia ser incompreensível, era exatamente, o

que aquele homem sentia como possibilidade de realizar o seu intento. Contaria com o

tempo, que por sorte era imenso; com os encontros pelas passagens no caminho, um

movimento de fazer-se com. A possibilidade de sobreviver seria inaugurada por uma

dimensão que constitui não só a viagem, o tempo ou aquele homem do conto, mas que

constitui a nossa própria existência: a dimensão coletiva, tecida por um plano impessoal

e relacional1.

No diálogo entre o senhor e o criado, Kafka nos faz ver um impasse. Para viajar, haveria

que se construir, ao longo do caminho, um modo de fazer a viagem. Haveria que se

construir o próprio caminho, sem apego a metas prévias ou provisões. Para tanto, o

caminho seria o da (des)aprendizagem. Um duplo exercício de desconstrução dos

1 Dimensão que trabalharemos ao longo deste trabalho.

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hábitos arraigados em nossos modos de vida atuais, para a construção de um modo de

fazer, de uma prática ética (ethos) onde o cuidado de nós mesmos e do que fazemos

juntos possa sustentar-nos nas lutas que travamos cotidianamente. Viver essa

experiência de viagem, neste trabalho, em nada nos aparta, do que já temos vivido

juntos historicamente2. O sentimento de cansaço com e nas lutas, de falta de fôlego, de

se estar só, é algo que em muitos momentos parece prevalecer. Todavia, afirmamos

serem as lutas sempre coletivas e que, de algum modo (quiçá pelo som de uma trompa,

do ruído que nos acossa o corpo todo), também temos intuído a necessidade de

acessarmos esta dimensão coletiva da vida e de nossa existência, em nossas práticas no

campo da saúde.

Neste trabalho, apostamos nesta dimensão coletiva, constituinte em nós, e que nos tem

movido, como prática de cultivo e cuidado de nós e do que fazemos juntos. Buscamos a

construção de um olhar, sobretudo, para a articulação que temos feito entre Saúde

Mental e Atenção Básica. E a pergunta com a qual seguimos nesta viagem é: O que se

passa entre Saúde Mental e Atenção Básica? Quais têm sido os sons, cheiros e gostos

diários que nos movem a selar nossos cavalos para uma partida que tece o seu caminho

nos encontros entre Saúde Mental e Atenção Básica? O que da força deste encontro já

temos podido provar?

As novas diretrizes produzidas na área da saúde, nos últimos anos, até mesmo pela

recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) têm convocado,

especialmente, os profissionais que atuam na atenção primária e outras áreas, a intervir

nos processos de reabilitação das pessoas em sofrimento, quer sejam eles: por

sofrimento mental, pelo uso de drogas de modo suicida, por angústias, violências ou

graves opressões (Lancetti; Amarante, 2006). Parece-nos, pois uma prática de cuidado

que tem privilegiado o trabalho na atenção primária e o definido como prioritário em

nosso contemporâneo. Mas qual seria a importância desta articulação Saúde Mental e

Atenção Básica? Dedicarmo-nos à reflexão desta questão tem para todos nós,

trabalhadores da saúde, extrema relevância, pois é nesta dedicação que construímos

nossas práticas, que emprestamos outros sentidos ao nosso contemporâneo. É neste

2 Não adianta só estarmos na mesma luta / o modo de fazer tem que estar presente, assim trazemos algumas experiências no texto para pensar este modo de fazer.

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cuidar do que fazemos juntos que podemos construir um entendimento de nossa prática

tendo maior clareza da relevância de trabalharmos nesta intercessão.

Na feitura da viagem, Kafka nos faz ver que embora tenhamos uma experiência de

individualidade, de sermos unos e separados uns dos outros também somos, ao mesmo

tempo, perturbados pela impossibilidade de sustentação dessa suposta unidade, por

estarmos sempre em relação com outros seres. A sobrevivência do homem daquele

conto era marcada pelos encontros tecidos na construção do próprio caminhar, este era o

seu alimento: habitar essa paradoxal experiência de constituição e sustento de si e da

própria viagem. Para a pesquisa, esta experiência ressoa como um convite quando

sentíamos que era na habitação deste paradoxo que também poderíamos construir

sentidos para o trabalho na intercessão Saúde Mental e Atenção Básica sem dicotomizar

o que somos e aquilo que fazemos em um binarismo.

De algum modo, viver essa experiência paradoxal implicou-nos também na

desconstrução de hábitos há tanto arraigados em nossos modos de conhecer atuais

marcando um compromisso ético-político com o próprio processo de produção de

conhecimento. O tom ensejado não só pela viagem do conto, mas também pelos

próprios percursos da pesquisa nos ajuda na construção de nosso primeiro capítulo

quando compreendemos que a possibilidade de sobrevivência da própria pesquisa

também seria dada pela abertura à experiência do encontro, pela constituição de uma

prática ética de cultivo da vida, no cuidado que fazemos da dimensão coletiva e co-

dependente de nossa existência. Já no primeiro capítulo podíamos experimentar as

interferências intensivas dos encontros que, não só gestavam as condições do

nascimento de nossa questão de pesquisa, mas também, a própria possibilidade de viver

o cultivo desta dimensão relacional e impessoal que nos move e nos constitui.

A aposta de afirmarmos a produção da pesquisa como método processual criado em

sintonia com o domínio igualmente processual que ele abarca nos ajuda a fazer uma

modulação para uma outra questão em nossa viagem. Compreendemos que na pergunta:

O que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica? podemos também nos interrogar:

O se passa entre Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária? Esta modulação nos dá um

tom precioso, quando percebemos que é na dimensão da relação, no que se passou, e no

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que ainda se passa entre as Reformas que vamos construindo nossas práticas de

cuidado.

No segundo capítulo de nossa dissertação, percorremos uma narrativa dos encontros

entre essas reformas em nosso país, chamando atenção para um ponto importante que a

modulação nos permite: o da construção. Ao ampliarmos nosso foco, compreendemos

que os encontros produzidos não se fazem de forma fortuita ou justaposta, mas são,

sobretudo, a construção (na prática concreta) de um modo de fazer o projeto de

democratização institucional que está na base do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse

projeto se construiu e ainda hoje busca se construir num campo de tensões entre este

caráter constituinte de abertura coletiva e o que é o SUS como constituição.

Na luta contra os ventos neoliberais e a privatização da assistência no campo da saúde, o

SUS têm se constituído como um lugar efetivo de experimentos e disputas de distintas

tendências. Para habitarmos este plano paradoxal de constituição do próprio SUS

oxigenando os movimentos instituintes que tinham - no desafio assumido a partir da

década de 70 por movimentos como a Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica – a

busca por mudanças nas práticas de atenção e gestão no campo da saúde, foi primordial,

em nosso trabalho, pensarmos a construção do SUS apostando na ativação e

revigoramento da dimensão pública de todo processo de produção de saúde.

Ao longo de todo o segundo capítulo, compreendemos nos estudos de Foucault acerca

da governamentalidade, que quando falamos de modos de fazer estamos às voltas com o

processo de construção de uma política pública que não pode se sustentar apenas como

propostas, programas e portarias ministeriais. O autor já nos mostra que da política de

governo à política pública não há uma passagem fácil e garantida. A construção de

políticas públicas na máquina de Estado exige em nós e de nós, como marca intensiva

dos movimentos instituintes no campo da saúde, todo um trabalho de conexão com as

forças do coletivo, com os movimentos sociais, com as práticas concretas no cotidiano

dos serviços de saúde. (Benevides; Passos, 2005a)

Nas narrativas intensivas de experiências concretas do SUS, tomamos nas experiências

de Santos (SP) e do Programa de Saúde Mental para o Projeto Qualis/PSF (SP) a

possibilidade de pensarmos a intercessão Saúde Mental e Atenção Básica. De algum

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modo, compreendemos que a marca dos movimentos instituintes de políticas públicas

no Brasil que se expressam nos encontros Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária,

também nos coloca como exigência pensarmos o público na inseparabilidade de três

processos de produção: produção de saúde, produção de subjetividade e produção de

territórios existenciais. Aprendíamos em nossas caminhadas que o modo de se operar

mudanças nos processos de produção de saúde exige também mudanças nos processos

de subjetivação, visto que os modos como fazemos a gestão e atenção de práticas de

cuidado no campo da saúde, também são os modos pelos quais construímos e cuidamos

de nossa própria existência.

O título deste trabalho – Saúde Mental e Atenção Básica: O cuidado como criação de

cantos no território, comporta para nós o sentido desta experiência de construção de nós

e nossas práticas, compreendendo, pois que o que se passa na intercessão Saúde Mental

e Atenção Básica, passa-se na forma deste movimento de produção de práticas de

cuidado aliançadas com a processualidade da vida em sua potência de invenção e

transformação de nós e do mundo.

Estarmos atentos a estes movimentos e suas teceduras e a como produzimos nossa

existência e nosso fazer é, pois o foco que queremos ressaltar nesta pesquisa. A aposta

de que nossas práticas e modos de existência se fazem neste movimento de tecedura,

produz desvios no olhar, “vesguices” que nos fazem ver outras paisagens como índices

de abertura ao movimento heterogêneo de (de)composição das redes, de nossas práticas

e de nós mesmos.

Entendemos que há uma dimensão fértil e produtiva na interface Saúde Mental e

Atenção Básica, sobretudo, quando temos a possibilidade de experimentar essa

articulação em suas interferências e ressonâncias no campo da saúde. Se por um lado,

temos demarcado nos princípios e diretrizes que oxigenam o movimento da Reforma

Psiquiátrica a busca por uma desinstitucionalização do cuidado que opere, sobretudo,

uma ruptura da cultura da tutela institucional e da lógica manicomial em nossas práticas

cotidianas também percebemos, por outro lado, os princípios do movimento da Reforma

Sanitária que têm privilegiado no campo da atenção básica, em algumas experiências

com a Estratégia de Saúde da Família (ESF), a sustentação e consolidação dos

princípios do SUS.

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Percebemos que esta interface marca-se fortemente nas iniciativas de se pensar a

produção de práticas de saúde mediante a construção de uma rede de cuidados de base

territorial, postulada tanto pela própria definição dos serviços substitutivos da Reforma

Psiquiátrica quanto pelos princípios norteadores do SUS e sua efetividade na Atenção

Básica. Neste trabalho, fazemos uma aposta para pensarmos o conceito de território,

tomando-o para além da composição técnica – simples e formal – dos ambientes. Neste

sentido, pensar a construção de uma rede de cuidados de base territorial é implicar-nos

com a produção do território em sua dimensão relacional, em sua potência de constituir-

se como território de encontros. Entendemos, pois que este território de encontros se faz

no cultivo de um modo de fazer o processo de produção de saúde que desestabilize os

limites identitários das disciplinas/saberes produzindo um atravessamento dos mesmos.

Marcamos ao longo de todo trabalho, os atravessamentos e caminhadas por este

território quando provávamos em uma experiência concreta do SUS na rede de saúde de

Macaé (RJ), a possibilidade de acompanhar esta interface junto aos trabalhadores da

saúde mental e da estratégia da saúde da família na atenção básica.

A radicalidade dessa discussão, quando nos propomos dentro de um mestrado de

psicologia falar de Saúde Mental e Atenção Básica, implica-nos em dissolver os

especialismos para de fato, ocupar-nos de uma questão que para nós não é mais de

especialismo, mas de saúde pública. Para tanto, nos vimos às voltas na última parte

deste trabalho a experimentarmos um exercício de dobras e desdobras de nossos modos

de existência. É que para avançarmos na discussão do que temos então chamado de

práticas de cuidado, haveríamos de construir com/na própria pesquisa uma prática de

cultivo refletindo sobre o que estamos fazendo de nós, como cuidamos de nós e do

outro e de que outras maneiras podemos nos cultivar.

Nesta aposta, afirmamos com os estudos de Foucault sobre os gregos, uma outra

qualidade de cuidado e de conhecimento quando podemos perceber que o modo como

cuidamos e como conhecemos modifica o que somos e o mundo que habitamos. Neste

estudo, temos a possibilidade de pensarmos uma ontologia crítica de nós mesmos como

possibilidade de reinvenção de nós mesmos como sujeitos éticos. Para tanto, podemos

questionar não somente com que forças nos aliamos nos movimentos de afirmação e

expansão da vida, mas sobretudo, nos perguntarmos: que vida queremos cultivar? O que

em nós queremos cuidar?

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Pensarmos a construção de práticas de cuidado na articulação Saúde Mental e Atenção

Básica nos parece ser uma boa oportunidade para experimentar a feitura de nós mesmos

na direção do outro, uma boa ocasião para vivermos outras relações, uma boa prática

para compreendermos que o que fazemos de nós mesmos é ainda uma aposta no que

podemos fazer juntos.

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CAPÍTULO I

Respiração, Vida, Escrita: Encarnando o verbo pesquisar

Estou respirando. Para cima e para baixo. Para cima e para baixo. Como é

que a ostra nua respira? Se respira não vejo. O que não vejo não existe? O

que mais me emociona é que o que não vejo contudo existe. Porque então

tenho aos meus pés todo um mundo desconhecido que existe pleno de rica

saliva. A verdade está enquanto parte: mas inútil pensar. Não descobrirei e

no entanto vivo dela.

Clarice Lispector

Respiração. Movimento incessante da própria vida. Em contínua variação. Ora ofegante.

Ora truncada. Imperceptível ou silenciosa... Que até parece não existir.

E não existe porque não vemos? Insiste Clarice em nós com a pergunta.

O que também nos emociona é que neste mesmo silêncio, onde as apostas de vida-

respiração já poderiam ser quase nulas, a vida segue trabalhando. Insiste. Encontra

forças para um fôlego, um possível de respiradouro.

A escrita aqui também se faz respiração a tecer os movimentos da vida. Pulsa no corpo-

pesquisador. Às vezes por movimentos leves, suaves, lânguidos. Por outras, sentindo o

peso dos dias endurecidos das andanças em nosso caminho-campo de pesquisa. Clarice

nos instiga a andar com os pés descalços por este caminho, ao falar de um mundo

desconhecido pleno de saliva, que temos aos nossos pés. O que mais parece nos

importar, neste momento, é essa inquietude-companheira, que está sempre a interferir e

tensionar o corpo do pesquisador. Concentra, expande, desliza e desloca a própria

escrita dando a ela contornos provisórios. Estes contornos provisórios emprestam

textura às questões de nossa pesquisa. Seguimos com a inquietação-companheira que ao

insistir com suas interferências em nosso corpo nos fizerem apostar no encontro com o

mestrado.

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1.1 Campo problemático: Por quais terras viajamos?

Nossa pesquisa foi realizada no município de Macaé localizado no estado brasileiro do

Rio de Janeiro. Pertencente à Região Norte Fluminense do estado, Macaé possui uma

área total de 1.215,904 km², correspondentes a 12,5% da área da Região Norte

Fluminense que também abrange os municípios de Campos dos Goytacazes, Carapebus,

Cardoso Moreira, Conceição de Macabu, Quissamã, São Fidélis, São Francisco de

Itabapoana e São João da Barra.

Dividido em seis distritos – Sede, Cachoeiros de Macaé, Córrego do Ouro, Glicério,

Frade e Sana, o município de Macaé, conta atualmente com uma população de 188.787

habitantes3.

De acordo com os dados repassados pela Coordenadoria de Saúde Coletiva do

Município4, a Rede de Saúde de Macaé, conta atualmente em seus serviços no campo da

atenção terciária com: 03 hospitais (Hospital do Trapiche, Hospital São João Batista e

Hospital Público Municipal), 05 Prontos Socorros (sendo um destes especificado como

Infantil e o outro como Emergência Psiquiátrica) e 03 unidades de saúde, denominadas

Unidades Mistas, que embora operem no funcionamento da rede no campo da atenção

primária como unidades básicas de saúde, também estão descritas na atenção terciária

por serem caracterizadas como unidades de emergência que funcionam 24 horas

(Unidades Mistas de: Glicério, Sana e Córrego do Ouro). Ainda para os atendimentos de

emergência são descritos também o Serviço de Hemoterapia (com atendimento a

emergências transfusionais) e um Centro de especialidade Odontológico.

No campo da atenção secundária, o município conta com uma série de Divisões e

Programas vinculados à Coordenação de Saúde Coletiva. As divisões destacadas são a:

3 Estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2008. Site: www.ibge.gov.br/home/estatística/população/estimativas2008/POP2008_DOU.pdf Acesso em: 05/09/2008. 4 Nosso acesso aos dados de composição da atual rede de saúde do município de Macaé foram disponibilizados pela Coordenadora da Saúde Coletiva Dra. Laila Aparecida de Souza Nunes em nossa ida à Secretaria Municipal de Saúde. Cabe ressaltar que a maioria das informações das quais dispomos são referentes a uma Cartilha intitulada: Cartilha SUS Macaé “Serviço de Saúde: Rede de Saúde e Rede Social” que nos foi entregue neste encontro, todavia, em todo o período do mestrado setembro/07 até a presente data - junho/09, estes dados não aparecem divulgados no site oficial da prefeitura municipal de Macaé.

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Divisão de Vigilância Ambiental responsável pelos Programas de: Controle de

Zoonoses e de Roedores; Divisão de Educação em Saúde responsável pelo Programa de

Educação Permanente em Saúde que conta também com o Grupo de Teatro e Arte em

Saúde (GRUTAS), Divisão de Vigilância Epidemiológica, Divisão de Informação e

Análise de Dados, Divisão de Laboratório responsável pelo Laboratório Municipal de

Saúde Pública e Divisão de Programas de Saúde.

Os serviços, em sua maioria, são referentes a atendimentos especializados considerados

de média complexidade. Atualmente, o município dispõe de 03 núcleos de atenção à

criança e à mulher (sendo um destes, específico à mulher e o outro à criança), 02

Centros de Especialidades (com atendimento ambulatorial) sendo um destes, sede de

funcionamento de alguns programas vinculados à coordenação de saúde coletiva, a

saber: Programa de Dermatologia Sanitária (com ênfase em hanseníase), Programa de

Pneumologia Sanitária (com ênfase na tuberculose), Programa de Hipertensão e

Diabetes (HIPERDIA), Programa de Imunização e Programa de Anemia Falciforme.

Vinculados ainda à coordenação de saúde coletiva pela Divisão de Programas de Saúde

a rede é formada pelos programas de: Assistência Domiciliar Terapêutica (P.A.D.T.),

Atenção Integral à Saúde do Idoso (P.A.I.S.I.), Assistência Integral à Saúde da Mulher e

o Centro de Referência ao Adolescente (CRA). Todavia, cabe aqui ressaltar que os

programas de: Imunização (Vacinação) Assistência Integral à Saúde da Mulher,

Hipertensão e de Diabetes (embora este último também conte com um Centro de

Referência ao Diabético – CRD) são caracterizados por suas ações descentralizadas com

atendimento realizado nas Unidades Básicas de Saúde valorizando o acompanhamento e

supervisão a estas unidades.

O Programa de Saúde Mental do município faz parte da Divisão de Programas de Saúde

vinculados à Coordenação de Saúde Coletiva. Os serviços que compõem a atual rede de

saúde mental no município são constituídos por 01 Núcleo de Saúde Mental

(atendimento ambulatorial), 01 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS Betinho), 01

Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi Oficina da Vida), 01 Centro de Atenção

Psicossocial em Álcool e outras drogas (CAPS ad PORTO), 01 Comissão de Apoio à

Desinstitucionalização e a Saúde Mental na Atenção Básica.

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No campo da atenção básica, destacam-se no município de Macaé a existência de 06

Unidades Básicas de Saúde e 29 Equipes do Programa Saúde da Família (PSF). Embora

exploremos de modo mais detalhado, no segundo capítulo de nosso trabalho, os

diversos modelos de organização e ofertas de serviços de saúde que utilizam a

denominação de Atenção Primária à Saúde destacando suas diferenças quanto aos

modos de fazer a gestão e a atenção dos processos de cuidado no campo da saúde;

avaliamos a importância de já trazermos aqui, algumas considerações acerca do PSF,

para entendermos de modo mais claro o campo circunscrito na efetivação de nossa

pesquisa.

O tema da rede básica de saúde tem sido colocado como um ponto estratégico para a

constituição de novas práticas que operem uma ruptura com um certo modelo de

conhecimento no campo da saúde que produz tanto um modelo assistencial médico

hegemônico, quanto um modelo de organização social voltado para o conceito de

doença.

Em documento propositivo para a organização do PSF no Brasil, publicado sob

responsabilidade do Ministério da Saúde, afirma-se que o objetivo do PSF é “a

reorganização da prática assistencial em novas bases e critérios, em substituição ao

modelo tradicional de assistência, orientado para a cura de doenças e no hospital. A

atenção está centrada na família, entendida e percebida a partir do seu ambiente físico e

social, o que vem possibilitando às equipes de trabalhadores uma compreensão

ampliada do processo saúde/doença e da necessidade de intervenções que vão além de

práticas curativas” (Brasil, 1996, p.2).

Por esse programa inicial ser considerado potente para a universalização do atendimento

à saúde e para a implementação dos preceitos da Reforma Sanitária Brasileira, passou a

haver um esforço e um incentivo para que se transformasse em Estratégia de um projeto

único do sistema da saúde e responsável pela Atenção Primária à Saúde. Neste contexto,

a Estratégia de Saúde da Família tem sido a possibilidade de um novo modo de operar o

trabalho em saúde com uma inversão da lógica de cuidados que procura sustentar-se

muito mais por seu caráter relacional do que por seus aspectos técnicos, tanto entre

equipe-usuário, quanto entre equipe-equipe. Composta por médico, enfermeiro, técnico

de enfermagem e agentes comunitários (trabalhadores fundamentais dentro desta lógica

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por serem também moradores das comunidades onde atuam) as equipes da Estratégia de

Saúde da Família são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de

famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada, atuando com ações de

promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais

freqüentes, e na manutenção da saúde desta comunidade. O trabalho com a comunidade

mediante a adscrição dos usuários/famílias tem sido um modo de priorizar o vínculo

entre equipes-usuários bem como a construção de compromisso e co-responsabilidade

dos trabalhadores com a comunidade em uma relação onde o caráter de continuidade do

cuidado possa ser assegurado.

Se há no intuito de operação da práxis da Estratégia de Saúde da família, a busca por

problematizar e romper com o paradigma racionalista baseado no problema-

solução/causa-efeito é importante ressaltar que, a construção de uma outra prática de

cuidado faz-se de fato com/na intercessão dos diversos processos que marcam os

modos de ser e de viver das pessoas no território5. A trama tecida pela organização

sanitária torna-se também espaço fundamental para a construção de um processo de

cuidado que produza saúde mental. A interface Saúde Mental e Estratégia de Saúde da

Família faz-se, sobretudo, quando percebemos que a convocação de um novo fazer na

atenção primária, nos exige também a construção de uma intervenção com/nos

processos de reabilitação das pessoas em sofrimento (Lancetti; Amarante, 2006) quer

sejam eles por sofrimento mental, por angústias, pelo uso de drogas de modo suicida,

violências ou graves opressões. Trabalhar, pois com esta interface torna-se fundamental

para a reorganização da atenção à saúde quando, também, se faz urgente em nossa

realidade a ruptura com dicotomias tais como saúde/saúde mental, exigindo-nos a

produção de práticas de cuidado não-fragmentadas/não-parcializadas no campo da

saúde.

Para percorrermos nossa viagem-pesquisa seguindo com a pergunta: O que se passa

entre Saúde Mental e Atenção Básica? - circunscrevemos como campo de nosso

trabalho os processos e práticas de produção de cuidado operadas conjuntamente na

atenção básica pelas equipes da Estratégia da Saúde da Família e pelas equipes de

Saúde Mental.

5 Conceito que trabalharemos com maior dedicação mais adiante.

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Termos então contextualizado o modo de trabalho como a Estratégia de Saúde da

Família pretende desenvolver suas ações junto à comunidade é, para nós, extremamente

importante, para entendermos a inserção das ações de saúde mental na atenção básica,

bem como suas interferências e ressonâncias.

No município de Macaé, as primeiras tentativas de organização das ações de Saúde

Mental na Estratégia de Saúde da Família ocorreram no ano de 2001 através de uma

Capacitação em Saúde Mental para os profissionais do PSF6. Somado à capacitação foi

disponibilizado pela equipe de Saúde Mental atendimento aos pacientes encaminhados

pelos módulos do PSF. Os atendimentos eram realizados em conjunto por um psiquiatra

e uma assistente social, ao passo que os agentes comunitários compareciam juntamente

com os familiares dos pacientes. Dentre os avanços e limitações destas ações iniciais, as

equipes puderam apontar como favorável uma aproximação do Programa de Saúde

Mental com o PSF, passando este último, a conhecer melhor tanto o próprio programa

de saúde mental no município quanto seus serviços na rede de saúde em suas

possibilidades de referência e contra-referência. Apontam que o suporte no tratamento

de alguns pacientes que se encontravam sem uma orientação adequada possibilitou aos

profissionais dos Módulos do PSF maior segurança para lidar com os pacientes. Versam

inclusive, sobre a ação dos Agentes Comunitários de Saúde que, percebendo este

suporte da Saúde Mental, aproximaram-se de alguns pacientes estando mais atentos às

suas situações familiares e sociais. Todavia, a distância da própria equipe de saúde

mental em relação à vida concreta das pessoas e famílias atendidas; o grande intervalo

entre as reuniões de capacitação, fato que impedia por vezes a continuidade das

discussões e até mesmo a ausência de profissionais de saúde mental na comunidade via

módulos do PSF; acabaram por dificultar a potencialização de ações que concorrem

para o trabalho integrado e de capacitação mútua entre as equipes com vistas à

superação do modelo de referência e contra-referência.7

6 Fazemos referência aqui ao texto “A Entrada da Saúde Mental no Programa de Saúde da Família de Macaé” cedido pela Coordenadora da Saúde Mental na Atenção Básica cuja produção pela equipe de Saúde Mental em agosto de 2003, versa sobre essas primeiras tentativas em seus limites e possibilidades. 7 Neste sentido, discute-se a necessidade de romper com a superespecialização no campo da saúde que marca a produção de práticas dentro de uma lógica fragmentária e objetificante.

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Os desdobramentos destas primeiras experimentações acabaram por afirmar a

importância de trabalho nesta articulação Saúde Mental e Estratégia de Saúde da

Família. Os investimentos para que este modo de operar na atenção básica pudesse se

sustentar foram intensificados em 2002, com a formação de uma equipe de saúde mental

formada por trabalhadores que prestaram o concurso público municipal de Macaé em

dezembro/2001. A composição da equipe foi marcada pela presença de 01 psicólogo, 01

psiquiatra, 01 assistente social e 01 terapeuta ocupacional. Com o decorrer do trabalho a

equipe avaliou a necessidade da entrada de um fisioterapeuta. Para o desenvolvimento

do trabalho, houve a implantação de uma experiência piloto, passando esta equipe de

saúde mental a trabalhar conjuntamente com uma equipe da Estratégia de Saúde da

Família em uma comunidade do município. A implantação das ações de saúde mental

em outros módulos de PSF seguiu nos anos posteriores.

Atualmente, a equipe de saúde mental que atua na atenção básica constitui-se de um

grupo de 17 profissionais, dentre eles: 04 psicólogos, 01 psiquiatra, 02 assistentes

sociais, 06 terapeutas ocupacionais, 03 fonoaudiólogos e 01 técnico de enfermagem.

Dos seis distritos que constituem o município de Macaé, apenas um (Córrego do Ouro)

ainda não existe a inserção da Saúde Mental junto à Saúde da Família. Das 29 equipes

da Estratégia de Saúde da Família existentes atualmente na rede de atenção básica do

município, 18 possuem articulação com a saúde mental que mantém sua inserção na

atenção básica desenvolvendo: Capacitação em Saúde Mental às equipes da Estratégia

de Saúde da Família (quinzenalmente), Oficinas Terapêuticas para crianças, adultos e

famílias (quinzenalmente), Visitas domiciliares (realizadas conjuntamente pelas duas

equipes) e Interconsulta (consulta conjunta do psiquiatra da equipe de saúde mental com

o médico do PSF. Dela também participa o profissional da equipe de saúde mental

vinculado àquela comunidade).

A equipe de saúde mental, atualmente composta por 17 profissionais, é dividida em

subgrupos de duas ou três pessoas (exceto as regiões de Trapiche, Frade e Bicuda que

contam com apenas um profissional de saúde mental para a equipe de Saúde da

Família), havendo previsão de futura inserção em mais 09 equipes da Saúde da Família.

Para o campo de nossa pesquisa, estivemos presente durante 07 meses acompanhando

um subgrupo desta equipe de saúde mental composta por 01 psicóloga, 01 terapeuta

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ocupacional e 01 assistente social em seu trabalho conjunto com 02 equipes de Saúde da

Família, sendo estas últimas, lotadas em um mesmo módulo do PSF. A comunidade na

qual este trabalho é realizado atende pelo nome de Nova Holanda. Nossas idas a esta

comunidade foram realizadas, dentro deste período de 07 meses (junho/08 a

dezembro/08), todas as quintas no horário da tarde e nas sextas pela manhã. Neste

período, participamos de um grande número de atividades que se pretendem

construtoras desta articulação - Saúde Mental e Estratégia de Saúde da Família - como:

visitas domiciliares, capacitações, oficinas terapêuticas e interconsultas, mas aqui

destacamos também como parte integrante de nossa pesquisa, os acontecimentos que

marcam o ir e vir no território durante as visitas domiciliares, as festas e

confraternizações, o bate-papo nos cafezinhos, as conversas na recepção, no corredor ou

salas do módulo do PSF e nas reflexões que fazíamos nas chegadas e partidas de Nova

Holanda quando já estávamos no carro de Amanda8 (profissional da equipe de saúde

mental). Pactuamos também com a equipe de saúde mental, nossa participação 01 vez

por mês, em sua reunião de equipe juntamente com os demais integrantes que compõem

a Saúde Mental na Atenção Básica e que trabalham em outras comunidades.

1.2 Provisões de viagem Kafkanianas: Um duplo exercício de desconstrução para o

caminho da (des)aprendizagem

O toque de uma proposição de Deleuze (1991, p.53) ao falar sobre a escrita ressoava em

nós ao afirmar que: “escrever é lutar, resistir; escrever é devir; escrever é cartografar.”

Estudar sobre a articulação entre Saúde Mental e Atenção Básica: que conseqüências

poderíamos extrair desta proposição de Deleuze para nosso trabalho? Como escrever

sobre o que se passa no encontro Saúde Mental e Atenção Básica quando, na verdade,

percebíamo-nos em alguma medida, enclausurados em uma impossibilidade de fazê-lo?

A experimentação em nós, dos efeitos deste enclausuramento, faz a escrita arranjar-se,

incialmente, em blocos. Ao (re)lermos o texto produzido para o encontro de

8 Os nomes utilizados nas narrativas de nossa experimentação de viagem-pesquisa são fictícios.

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qualificação9 percebemos o quanto em nosso endurecimento distanciávamo-nos do que

realmente fazia pulsar em nossa questão: o de habitar o paradoxo com/no/pelo qual

constituímos a nós e nossas práticas, sem transformá-lo em dualidade: uno x múltiplo,

indivíduo x grupo, saúde mental x atenção básica, reforma psiquiátrica x reforma

sanitária.

No processo de experimentação no campo de pesquisa éramos, a todo o tempo,

perturbados pela impossibilidade de sustentarmos essa suposta dualidade: equipe de

saúde mental-equipe de Saúde da Família, trabalhador-usuário, pesquisador-trabalhador,

sujeito/pesquisador-objeto/pesquisado e de vê-los apenas como unidades separadas

umas das outras. César (2008) nos ajuda no desafio de permanecermos nesta

‘perturbação/desestabilização’ ao afirmar que, embora tenhamos uma experiência de

individualidade, de unidade, e de estarmos separados uns dos outros, estamos também,

ao mesmo tempo, sempre em relação com outros seres. Neste sentido, a autora nos

sinaliza para uma dimensão de grupalidade em nossa existência afirmando ser esta uma

dimensão coletiva e co-dependente que nos constitui. Se de algum modo, parecemos por

vezes ignorar essa dimensão relacional e interdependente de nossa existência é,

sobretudo, na prática de acesso a esta dimensão que nossas possibilidades tanto de

saúde como de alegria residem. O desafio de sustentarmos um processo de viagem-

pesquisa problematizando o que temos feito juntos na intercessão - Saúde Mental e

Atenção Básica - nos inspira, sobretudo, a nos perguntarmos como cultivamos essa

dimensão coletiva em nossas práticas de cuidado.

Pensar na constituição de nós e de nossas práticas, nesta relação Saúde Mental e

Atenção Básica, requer que habitemos este funcionamento paradoxal com/no/pelo qual

constituímos a nós e nossas práticas, sem transformá-lo em dualidade, sem dicotomizar

o que somos e aquilo que fazemos em um binarismo.

Mas o que estaríamos chamando de relação? Se de algum modo a interface Saúde

Mental e Estratégia de Saúde da Família tem sido priorizada como um modo de se

9 Processo de qualificação do mestrado que tiveram como convidados da banca os professores Drs.: Eduardo Henrique Passos Pereira, Paulo Duarte de Carvalho Amarante, minha orientadora Claudia Elizabeth Abbês Baeta Neves e Julio César Silveira Gomes Pinto, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense.

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operar no campo da saúde, precisamos nos perguntar: como a temos feito? É que

sabemos que por mais que estejamos ‘juntos’, reunidos em ‘grupo’, trabalhando em

‘conjunto’, é necessário construirmos sentidos para este estar com/fazer-se com, para

este relacionar-se. Isto implica em empenhar-se na construção desta relação, pois

estarmos reunidos não é garantia para uma preciosa experiência que se abre neste plano

relacional: a experiência do encontro.

De algum modo, é nesta experiência que segue também a aposta de nossa viagem-

pesquisa. Por certo, o homem de nosso conto intui a potência da experimentação de uma

viagem para ‘fora daqui’, quando compreende que nenhuma provisão poderá salvá-lo, e

que tem, portanto, que receber no caminho para não morrer de fome. Aprendíamos,

pois, que a prática de cultivo da vida reside no cultivo de nossas relações, no cuidado

que fazemos da dimensão coletiva de nossa existência.

Nos movimentos de aproximação com o campo de pesquisa, já intuíamos a necessidade

deste cultivo quando compreendíamos que é na habitação deste paradoxo, deste “espaço

intervalar do entre-domínios, do que não é totalmente isto ou aquilo, do que está nesta

operação da conjução ‘e’, lá onde proliferam encontros e composições” (Passos;

Benevides, 2006, p.89) que haveríamos de receber alimento.

1.3 Tecendo as condições do campo problemático

O empenho na construção desta relação também é algo que nos move em nosso

processo de pactuação, entrada e permanência no campo de pesquisa. É que interrogar

sobre os modos como temos construído práticas de cuidado na articulação Saúde Mental

e Atenção Básica implica em colocar em análise os modos de feitura da própria

pesquisa.

Nas primeiras reuniões com a equipe de Saúde Mental fomos ‘inquiridos’ com algumas

perguntas importantes: “O que quer desse grupo? Em que momentos estaria conosco?

É só observar? Observar o que? Como estar acompanhando a equipe sem interferir?

Como vai manter uma ‘neutralidade’? Estamos diante de um momento de muito

trabalho, não sabemos se poderemos gastar nosso tempo.”

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Nossa respiração faz-se curta e acelerada. Muito respiro, mas ainda pouco oxigênio. A

aposta de afirmarmos a produção da pesquisa como método processual - criado em

sintonia com o domínio igualmente processual que ele abarca - só poderia ser construída

na habitação desta tensão: acolher as perguntas do grupo sem, contudo, respondê-las à

justa medida. Um compromisso ético-político, já que entendíamos que no modo de fazer

a pesquisa poderíamos ocupar um plano de resistência ao status quo da tradição

moderna em sua fundamentação cientificista que inscreve a produção de conhecimento

sob a chancela da objetividade, neutralidade e busca de uma verdade absoluta.

Parafraseando Deleuze, pesquisar é lutar, é resistir... Nesta aposta, seguimos com a

força das palavras de Benevides:

Talvez o maior de todos os desafios para nós, humanos, seja o de

desnaturalizar o mundo que nos cerca. Afinal, as condições de nossa gestação

– ou seja, a gestação do chamado sujeito moderno – nos puseram no centro

de tudo, fazendo-nos crer que acharíamos, em nós mesmos, as “chaves dos

mistérios”. Não é à toa que no final do século XIX os saberes já constituídos

se voltam para “explicar” nossos comportamentos, sentimentos, ações, além

de se constituírem novos saberes nesta direção. As respostas que o homem

passou a procurar o remetem à sua natureza ou a cultura em que vive.

Natureza de um lado, cultura de outro, as explicações oscilam de um pólo a

outro desta dicotomia solidamente implantada. Em ambos, entretanto, o que

se mantém é a crença de que os objetos existam por si mesmos e que ao

serem dados ao homem para serem conhecidos resta a ele a tarefa de dominá-

los. O reino humano acima de tudo. (BENEVIDES DE BARROS, 1994,

p.20)

A autora nos sinaliza para um modo de entender o processo de produção de

conhecimento centrado e interiorizado no sujeito e que se faz vigente até nossos dias

atuais, delineando um certo percurso das relações entre o sujeito que conhece e os

objetos a serem conhecidos. É importante pensarmos neste percurso e no que ele

produz: a polarização entre sujeito e objeto e a condição de que só podemos conhecer

por essa dissociação de um em relação ao outro; sujeito e objeto constituídos

previamente e separados em duas séries que ‘entram em relação’. Percebemos que neste

caso, a relação constrói-se a posteriori ‘entre’ duas unidades a priori havendo,

sobretudo, um primado do sujeito-da-razão que apreende os objetos do mundo, na

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crença de que estes existam por si mesmo, e seriam, portanto, naturais. Nesse

funcionamento, de acordo com Benevides:

Em primeiro lugar, processa-se uma descrição do objeto para que, a seguir,

ele seja inserido em uma determinada categoria definida a priori. O conjunto

de características ou de elementos que constitui uma categoria se assenta em

critérios que lhe asseguram identidade, algo que “permanece”, que “garante”

a existência daquela categoria e, conseqüentemente do próprio objeto.

Inserido numa categoria, o objeto está registrado, conhecido. Mas para que

permaneça nesta categoria, para que não perca sua identidade, ou seja, para

que seja reconhecido quando se apresenta ao sujeito, é necessário que outra

operação seja feita: a da exclusão. Assim, tudo que aparece como diferente

deve ser retirado ou “tratado” para que o objeto se enquadre na categoria. O

sistema de conhecimento que se monta é, por conseguinte, binário: a cada

categoria corresponde outra, oposta. Em cada situação de conhecimento, o

objeto é submetido a pares de categorias para que possa ser incluído em uma,

ou em outra. É como se houvesse uma sentença a ser proferida sobre o

objeto: “ou ele é isto ou é aquilo”. Caso o objeto não possa ser categorizado

em uma das duas opções, será excluído e ficará à margem, esperando que

outra dualidade seja estabelecida para que, novamente, possa ser submetido à

prova de identidade garantida pelas categorias. É de se notar que, neste

processo, os objetos são submetidos sistematicamente a categorias que se

definem pela oposição (BENEVIDES DE BARROS, 1994, p.133).

A importância de construirmos um entendimento acerca da lógica a imperar neste modo

de conhecer, reside no constante desafio de desnaturalizar o mundo que nos cerca. Neste

trabalho, esta nos parece ser uma discussão a ser feita, sobretudo, quando afirmamos

que não existem sujeitos e objetos a priori. Implica-nos pensar que o modo como os

objetos estão sendo vistos/apreendidos não se esgotam naquilo como se apresentam e

que estão configurados em um campo histórico específico havendo em torno deles todo

um campo de possíveis a ser efetuado, outras formas para se conectarem.

A viagem Kafkaniana do conto, A Partida, nos inspira a tecer as condições do campo

problemático onde a própria pesquisa está a se fazer. Neste sentido, começamos por

desnaturalizar as próprias perguntas do grupo em um exercício ético-político de

desmistificação das condições de produção de todo conhecimento e da própria pesquisa

a ser feita.

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O caráter participativo da pesquisa que realizamos dá a ela o sentido de pesquisa-

intervenção. Embora a palavra intervenção10 esteja comumente associada à intromissão

de um terceiro com objetivo de (re) estabelecer uma ordem já existente, o uso que dela

fazemos refere-se a um outro sentido que é o de vir entre, pôr-se como intercessor.

Neste caso,

não se trata de restabelecer nenhuma ordem, posto que a própria oposição

ordem/caos é colocada como falso problema. A intervenção toma aqui outro

rumo, já que procura se conectar aos movimentos do invisível, às

composições de fluxos que ainda não se atualizaram. (BENEVIDES DE

BARROS, 1994, p.162).

E para caminharmos com esta afirmação em toda a sua potência precisamos romper

com as certezas dogmáticas, das quais muitas vezes compartilhamos, de que a validade

de nossas percepções não deve ser posta em dúvida. Por isso não estaríamos como em

um sobrevôo distante do campo de pesquisa a observá-los. Estamos, pois interessados

na produção de outra relação entre sujeito e objeto, uma relação a ser feita não na ação

sobre, mas na ação de estar com. Neste modo de conhecer podemos extrair uma

conseqüência fundamental apontada por Benevides (1994): a de que não há uma

apreensão do objeto pelo sujeito, mas há sim uma ‘apreensão’ que constitui a ambos, de

tal maneira, que já podemos dizer que é a relação que os constitui. Afirmar um primado

da relação que faz desaparecer sujeitos e objetos como seres-em-si requer que

desloquemos nossas análises daquilo que é tornado natural e estático para apreender a

complexidade dos processos que aí se materializam. É compreender, pois o caráter

heterogêneo e histórico das práticas colocando sujeitos e objetos dados a ver como uma

dentre outras possibilidades num campo de acontecimentos que em muito os excede.

10 A palavra intervenção liga-se à pesquisa, ao final da década de 60 quando era proeminente às discussões sobre a relação que o pesquisador estabelece com seu campo de investigação. A Análise Institucional Socioanalítica, corrente desenvolvida na França durante as décadas de 60/70, formula a idéia de uma pesquisa-intervenção que interrogasse os diversos sentidos cristalizados nas instituições. Tratavam de produzir evidências que visibilizassem o jogo de interesses e de poder encontrados no campo de investigação. Aqui fazemos uso da pesquisa-intervenção entendendo que o processo de pesquisar nos remete a um processo de desnaturalização permanente das instituições, incluindo a própria instituição da análise e a da pesquisa. Utilizá-la como modo de aproximação com o campo, é afirmarmos que tanto pesquisador e pesquisado, isto é sujeito e objeto do conhecimento, se constituem no mesmo momento, no mesmo processo.

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De algum modo, é nesta ação de estar com, na relação, que reside a aposta de nosso

trabalho. Uma aposta que fazemos somente quando estamos na relação com os outros.

O modo de fazer a viagem pretendido pelo homem do conto nos enseja uma boa

imagem para fazermos os percursos da pesquisa: sem previsibilidades que estaquem o

movimento; sem respostas que nos sirvam como couraças a apartar-nos do que no

próprio movimento faz em nós outros, nossa capacidade de outramento.

A forma como lidamos com o campo exige de nós um outro olhar e inflexão sobre o

conceito e o uso que dele fazemos. Se afirmamos agora a pouco a indissociabilidade

entre sujeito e objeto e de que estes não se constituem a priori, mas na relação; também

a noção de campo começa a experimentar um deslocamento de seu sentido habitual

quando apontamos o engendramento dos termos que balizariam os seus limites.

Para o homem do conto, pouco importava o lugar de origem ou o destino a que fosse

chegar. Ele parecia estar mais interessado nos caminhos e trajetórias da viagem, na

experiência de saída para fora ‘daqui’. Não levando provisões ou buscando metas

prévias para a viagem aprendemos que para fazer este caminho temos que nos arriscar.

O conto já nos diz nas palavras do cavaleiro: “A viagem é tão longa que tenho de

morrer de fome se não receber nada no caminho”.

A cada cavalgada, a cada caminhada no campo, faz-se o processo de aprendizagem, pois

nele fazemos viver algo desconhecido até então. Parece-nos, pois que este constitui um

de nossos primeiros desafios: vencer o medo de perdermos a segurança das identidades

que construímos para nós, como territórios existenciais que nos dão a sensação-

segurança de estarmos em casa. Certamente, abrir mão de concepções apriorísticas e

essencialistas, bem como de maniqueísmos que fixam as práticas e os processos sociais

de forma dicotômica, exige de nós e em nós a criação de um modo de fazer os percursos

que nos permitam acolher os movimentos instituintes que emergem no campo. Do

contrário, nos veremos constantemente apavorados tentando nos segurar nestes

territórios, que por muitos momentos acreditamos dizer tudo sobre o que nós somos.

Procurando certezas absolutas, ancorados no/pelo medo, poderemos até escutar o som

da trompa, mas por vezes, não selaremos nossos cavalos para uma partida para fora

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destes territórios existenciais. O perigo encontra-se no enrijecimento identitário daquilo

que somos e do que fazemos (de nossas práticas). Veyne (1998), a partir de uma das

teses de Foucault, nos ajuda a entender o que estamos afirmando como prática. Para o

autor não sendo a prática uma resposta ao já dado, a um objeto ‘pré-existente’ não

estaríamos interessados em explicar ou entender o fazer tomando como ponto de partida

a análise do feito. Mas ao contrário, é o próprio fazer que pode explicar o feito. Neste

sentido, o autor nos propõe o desvio dos objetos naturais, a atenção às raridades, às

formas inusitadas tecidas neste fazer histórico, para percebermos que outras práticas são

possíveis. Esta nos parece ser uma boa indicação para a prática de nosso olhar nesta

viagem-pesquisa.

A intuição inicial de Foucault não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso:

é a raridade, no sentido latino dessa palavra; os fatos humanos são raros, não

estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para

outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser

diferente; os fatos humanos são arbitrários, no sentido de Mauss, não são

óbvios [...] (VEYNE, 1998, p. 239-240).

Enfrentar o medo, passo a passo, sem nos paralisarmos constitui-se uma das atitudes do

caminho da aprendizagem. É na possibilidade de caminhar, mesmo quando nos sabemos

sem provisões, sem coelhos na cartola mágica; arriscando-se no não sabido, no

desconhecido, é que podemos embarcar em mudanças que podem nos trazer outros

modos de viver.

1.3.1 Produzindo Estranhamentos: a experiência de uma contratação coletiva

De algum modo, é quando o não-saber é afirmado como lugar de possibilidade no

campo da experiência coletiva, quando não respondemos as perguntas do grupo à justa

medida, mas produzimos nelas um estranhamento - convidando-os a tecermos juntos a

própria pesquisa - que tentamos escapar dos perigos de ter na relação e na pesquisa um

caráter utilitário. E este risco parecia assombrar a nós todos quando emerge a seguinte

fala do grupo: “A concretude é muito difícil”. Pareciam falar das dificuldades de se

fazer o trabalho na lida diária, mas também de ver nesse fazer uma operacionalização da

teoria. Produzia-se na própria pesquisa a problematização entre teoria e prática. Os

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olhares do grupo, quando ouviam da possibilidade de ser a pesquisa tecida por todos

nós, pareciam suspeitar, por vezes, que teoria fosse uma coisa e prática outra. À

pesquisa parecia ser dado o lugar da teoria e ao que faziam o lugar da prática. Intuímos

nas falas que emergiam no grupo, um certo receio de que a pesquisa, em meio a uma

relação de teoria e prática dicotomizadas, se utilizasse do campo para nele constatar ou

não a presença de uma teoria. E de que esta, numa relação longínqua de onde a vida se

passa, produzisse apenas a abertura de feridas, expondo as mazelas do grupo e as

debilidades de suas práticas.

O medo parecia entranhar-se nos pedidos de preparação de um projeto de pesquisa

formalizado sob a chancela da Academia à qual o pesquisador pertencia bem como na

necessidade de aprovação do projeto pelo Secretário de Saúde do Município de Macaé.

Este percurso de solicitações foi feito, pois nos parecia ser uma via, embora endurecida,

de sustentarmos o desejo de estar com aqueles trabalhadores. Nas idas e vindas ao

grupo, para levar o projeto encontramos dificuldades de horário, de espaço e de

acolhimento para estarmos juntos. Mas não seria este estar junto a matéria constituinte

da experimentação da pesquisa? Não seria nessa relação que deveríamos nos empenhar

e nos cultivar? Seis meses se passaram. O tempo de espera fez-se como tempo de

gestação também das durezas que se passavam a um só tempo em nós. De algum modo,

em meio às durezas, o grupo parecia resistir a um modo de relação, de pesquisar, que os

objetificasse. Mas seria a prática uma simples representação dos conceitos? Poderiam

ser os conceitos desencarnados do que se passa na vida?

Uma conversa entre Deleuze e Foucault no texto “Os intelectuais e o poder” nos ajuda a

pensar uma inseparabilidade entre teoria e prática, ao apontarem para um revezamento

entre essas duas dimensões sem conceber suas relações como um processo de

totalização, em um sentido ou em outro. Afirmam, portanto, pensá-las como dimensões

da realidade que co-emergem localmente.

Talvez para nós a questão se coloque de outra maneira. As relações entre

teoria e prática são muito mais parciais e fragmentárias. Por um lado, uma

teoria é sempre local, relativa a um pequeno domínio e pode se aplicar a um

outro domínio, mais ou menos afastado. A relação de aplicação nunca é de

semelhança. Por outro lado, desde que uma teoria penetre em seu próprio

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domínio encontra obstáculos que tornam necessário que seja revezada por

outro tipo de discurso (é este outro tipo que permite eventualmente passar a

um domínio diferente). A prática é o conjunto de revezamentos de uma teoria

a outra e a teoria um revezamento de uma prática a outra (FOUCAULT,

1999, p. 69-70)

Colocar em questão a tradicional separação entre teoria e prática, entre pensar e fazer é

não só pensarmos a relação teoria-prática, sujeito-objeto como também a relação

homem-mundo. Se habitualmente concebemos a relação teoria-prática pelo domínio de

um dos termos sobre o outro, pensando a prática como uma aplicação da teoria, uma

conseqüência, ou fonte inspiradora da teoria; percebemos que o que se coloca para este

tipo de análise, é que estas relações estão configuradas num campo onde o

conhecimento é algo a ser totalizado. Neste contexto, a teoria deverá servir para

domínios amplos, expressar práticas diversas, afirmar sentidos universais e gerais.

Descolar-nos das visões totalizantes, planificadas e burocratizadas de pesquisa requer de

nós pesquisadores e de todos aqueles que trabalham com a produção da subjetividade

acossar-se com o som das trompas, inquietar-se com as respostas tranqüilizadoras e

universalizantes, afirmar a diferença em um compromisso ético e político de resistência

às unificações e totalizações. Para tanto a produção de conhecimento, o entendimento

daquilo que fazemos de nós mesmos, de como produzimos a nós mesmos nas práticas

de cuidado que pomos a funcionar dia a dia não passa pela mumificação das teorias que,

como já vimos, são práticas. De algum modo parece-nos ser na abertura das teorias a

outras conexões, onde o critério não seja a Verdade, ou um retorno à origem,

interrogando sobre o modo como as teorias estão sendo utilizadas, a que estão servindo

e quais os seus efeitos, é que poderemos produzir movimentos de ruptura e afirmação da

vida.

A aposta de que alguns conceitos possam ser disparadores de processos de mudança,

não se faz estéril quando podemos afirmar que há uma experiência concreta dos

conceitos, em sua potência vibrátil, naquilo em que ele faz-se de passagem para outras

composições das linhas da vida, de outros arranjos. Um movimento de fazer aparecer as

visibilidades e dizibilidades que têm constituído nossas formas de existência, bem

como, às experiências e modos pelos quais temos nos produzido coletivamente.

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1.3.2 Com que roupa eu vou? Ensaios das/nas provisões

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a

forma do nosso corpo e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre

aos mesmos lugares. É tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la,

teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

Fernando Pessoa

Tênis, jaleco, roupa confortável, jaleco, carro com vidros abertos, jaleco. Dentre todas

as recomendações feitas pela equipe da saúde mental para a entrada na comunidade de

Nova Holanda, o uso do Jaleco parecia saltar aos ouvidos como condição para a entrada.

O esquecimento marcava um modo de resistir ao Jaleco como quem resistisse a todos os

modos instituídos de seu uso. Algumas vezes o esquecia e tinha de correr às pressas em

casa para pegá-lo. Noutras, quando o tempo fora impiedoso com o esquecimento,

Amanda (da equipe de Saúde Mental) e uma amiga da clínica que trabalho me

socorreram com seus jalecos sobressalentes.

De algum modo, o incômodo era tamanho que não comprara nenhum jaleco para fazer a

pesquisa, embora ele tenha sido colocado como condição para a entrada na comunidade.

Tomei de empréstimo um jaleco de minha amiga dos tempos em que ela fizera

residência em um hospital de São Paulo. LUCIANA: era esse o nome bordado no bolso

direito da roupa. A cor verde das letras contrastava com o branco da veste. As tentativas

de colar uma fita crepe sobre o nome esvaíram-se quando comecei a perceber que o

mais importante era estar atenta ao que os trocadilhos dos nomes e do jaleco punham a

funcionar. Com Lourau (1993) percebíamos que a pesquisa é uma criação permanente

necessitando de dúvidas e não de certezas prévias. Interrogávamos, pois o que o jaleco

fazia falar para além dos sentidos já instituídos. Para onde o jaleco nos levava? Que

outros caminhos podíamos percorrer que não mais os corredores e alas de hospitais,

ambulatórios e espaços de reclusão convencionais? Como sair da suposta permanência

dos lugares de saber-poder instituídos, em uma desestabilização dos especialismos,

quando não estávamos mais cercados pelas quatro paredes do consultório?

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Como nos diz o poeta, mais do que esquecer o jaleco em si, percebíamos a necessidade

de esquecer ‘os caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares’. O tempo de

travessia faz-se como tempo de uma experiência de passagem. É que caminhar pelo

campo acompanhando os movimentos que fazem pulsar nossa questão de pesquisa: O

que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica, requer que privilegiemos como

questão aquilo que se passa na pesquisa, aquilo que se faz no interstício de uma

passagem. É estarmos atentos a uma experiência de acompanhamento que se faz no

entre-dois, onde algo se passa, uma experiência de passagem. Um exercício cartográfico

de

dar língua para afetos que pedem passagem, dele [do cartógrafo] se espera

basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que,

atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos

possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias.

(ROLNIK, 2007, p.23).

Esta nos parece ser uma indicação preciosa para a constituição de um pesquisar que se

faça como intercessor potencializando as experiências de cuidado e expansão da vida

em seu fazer-se, já que nos interessa problematizar os modos pelos quais temos

construído práticas de cuidado no campo da saúde na interface Saúde Mental/Atenção

Básica.

***

De Jaleco às mãos, ou melhor, aos corpos; fomos realizar uma visita

domiciliar à casa de um paciente acompanhado pelas equipes de Saúde

Mental e do PSF/Nova Holanda há bastante tempo. As lembranças de

uma fala de um profissional da equipe de saúde mental saltam ao corpo

na caminhada daquela manhã de sexta feira: “o jaleco é nossa

armadura, nossa proteção”. Quando passávamos em umas das ruas para

chegar à casa de Joaquim, éramos também levados a transitar entre a

miséria das ruas esburacadas com esgotos correndo a céu aberto e a

violência que assola a vida da comunidade com o tráfico de drogas.

Muitos meninos de 12, 13 e 14 anos estavam armados e dispostos em

situação estratégica. Com rádios às mãos e mochilas às costas pareciam

preparar-se para qualquer movimento de entrada da polícia. Deixavam-

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nos passar sem qualquer interdição. Com pistolas às mãos e nós com

jalecos aos corpos. Armas. Armaduras. Amarras-duras ou nós?

Trocamos olhares-corpo-a-corpo. Estranhamentos quando o medo já

não fazia parte dos afetos a nos perpassar. Das armas, poucos da equipe

de saúde podiam falar, porque poucos viram. Cegueira? Silêncio? O

cinza das pistolas parecia já não emoldurar seus formatos. O branco dos

jalecos desfazia seus sentidos instituídos naquela pausa tensa. Podíamos

até dizer que o branco se transformava em paz.

Na volta, já podíamos ver os comboios de meninos se formarem a passos

rápidos e de repente se dispersarem em um corre-corre só. A ACS

cuidava de si e da equipe quando nos indicava um certo andar

estratégico que construíra na aprendizagem das andanças como modo de

resistir e poder continuar realizando o seu trabalho.

***

Naquela visita à casa de Joaquim percebíamos um certo definhamento

de seu corpo, de sua vida. Se há tanto estivera até andando pelas ruas de

Nova Holanda sentindo com os pés aquilo que a cegueira dos olhos lhe

retirava, havia emagrecido bastante e dormia o tempo todo em um

cômodo escuro da casa. Mudara de cuidadora. Dona Dirce falava

apressadamente, por vezes envergonhada durante a visita. Estimulada a

sair com Joaquim (o que para ela era difícil porque Joaquim gostava de

ficar todo o tempo nu), a ajudá-lo a participar de algumas atividades da

casa, Dona Dirce espanta-se e estranha uma certa dimensão do cuidado

que aparecia naquela intervenção que era a dimensão relacional.

Acostumada a deixá-lo só e por vezes fazê-lo dormir e permanecer o

tempo todo deitado e enrolado nas colchas, Joaquim parecia já não mais

sentir a diferença entre um dia de frio e um dia de sol, como aquele de

nossa visita. A pele precisava ser tocada, acossada. A ACS contribui

preciosamente para a intervenção quando indicava à equipe de saúde

mental que Dona Dirce não estava se sentindo bem. Parecia viver uma

experiência de deixar-se só, muito próxima daquela de Joaquim. Tinha

também a pele sedada pelo uso e dependência de ansiolíticos a um longo

tempo, todavia, sabia esta senhora que a sedação parecia não anestesiá-

la para os acontecimentos vívidos da vida. Impaciente e irritadiça (como

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ela dizia se sentir) parecia não encontrar em sua atual forma de vida

lugar para todos os sentimentos que compareciam e insistiam em não

serem anestesiados. A cuidadora precisava de cuidado.

***

No traçado das intensidades que compareciam na experiência, também

desestabilizavam-se os lugares daquele que cuida e daquele que é

cuidado. No deâmbulo pelo/no território, haveríamos de pensar em como

cultivar a dimensão relacional e coletiva de nossa existência em meio a

territórios existenciais de pele-sedada, às voltas em como produzir redes

de produção de cultivo e expansão da vida em territórios também

constituídos pela violência vivida por muitas famílias, crianças e

adolescentes emaranhadas às redes mortíferas do tráfico.

Desenhávamos cartografias traçando mapas provisórios de nossos

percursos.

(Diário de Bordo, 11 de setembro de 2008)

Para o desenho das cartografias que vão sendo descobertas/inventadas ao longo de

nosso percurso de viagem fazemos uso de um diário de bordo como instrumento-escrita

de passagem das intensidades que buscam expressão. As questões que por ele

perpassam não são mais as de falso ou verdadeiro, mas exatamente aquelas que nos

acossam a pele, que desestabilizam as formas instituídas, que abrem as formas da

realidade fazendo-nos ver seu processo de fabricação. A escrita opera cartograficamente

acompanhando as linhas que se traçam, marcando os pontos de ruptura e de

enrijecimento, analisando a composição e decomposição dos territórios existenciais na

impermanência de seus arranjos.

De algum modo, o diário nos é uma preciosa ferramenta metodológica e com a qual

contamos em nossa provisão de viagem quando percorremos as modulações de nossa

questão: O que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica? Experimentamos no

fluxo da narrativa do diário o acompanhamento do fluxo da experiência, o que por vezes

produz uma espécie de estranhamento para os leitores acostumados a uma linearidade

da narrativa como representação do vivido em um enquadre organizado do texto. A

escrita faz-se em sintonia com o próprio movimento do viver e dos tensionamentos de

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nossa questão de pesquisa quando convocada a habitar o plano paradoxal com/no/pelo

qual constituímos nossa existência e nosso fazer.

Ao afirmarmos um modo de fazer os percursos de nossa pesquisa sem previsibilidades

que estaquem o movimento, sem respostas que nos sirvam como couraças a apartar-nos

do que no próprio movimento faz em nós outros, chamamos atenção também para um

outro modo de ‘coletar dados’.

Se tradicionalmente a coleta de dados é conhecida como uma fase inicial da pesquisa,

Kastrup (2007) nos ajuda a pensar que na perspectiva cartográfica o que há é uma

produção de dados de pesquisa. Para seguirmos nesta afirmação com autora, a pista que

aqui tomamos diz respeito ao funcionamento da atenção do cartógrafo durante o

trabalho de campo. Não se trata aqui, de buscar uma teoria geral da atenção, mas de

compreender e apostar em um certo modo de operar o processo de produção de

conhecimento afirmando seu caráter de produção e invenção de si e do mundo. Para a

autora tomar o mundo, e aqui poderíamos dizer o próprio campo de pesquisa, como

fornecendo informações prontas para serem apreendidas é uma política

cognitiva realista; tomá-lo como invenção, como engendrado conjuntamente

com o agente do conhecimento, é um outro tipo de política, que

denominamos construtivista. (KASTRUP, 2007, p.16).

Destacamos, então, no que diz respeito ao funcionamento da atenção no trabalho do

cartógrafo, a complexidade deste processo, entendendo que sua função não diz respeito

a uma simples seleção de informações. Nas palavras da autora:

seu funcionamento não se identifica a atos de focalização para preparar a

representação das formas de objetos, mas se faz através da detecção de signos

e forças circulantes, ou seja, de pontas do processo em curso. (KASTRUP,

2007, p.15).

Uma mudança da qualidade da atenção do cartógrafo se faz quando deixa-se de buscar

informações para acolher o que lhe acomete. “A atenção não busca algo definido, mas

torna-se aberta ao encontro.” (Kastrup, 2007, p. 17)

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1.4 Encontros cartográficos: Quando ir a campo é ir ao território

Na partida para o campo de pesquisa, Kafka nos faz ver um impasse. No diálogo do

conto entre o senhor e o criado, percebemos que na feitura da viagem-pesquisa

haveríamos de construir não só um modo de fazer a viagem – sem apego a metas

prévias ou provisões – mas também o próprio caminho. Há aqui uma experiência de

produção dos caminhos da pesquisa no próprio modo de fazê-lo: desenhando

cartografias, traçando mapas provisórios de nossos percursos. Esta feitura nos fala de

uma produção de um relevo diferente da geografia.

Embora tomemos o termo cartografia emprestado da ciência geográfica, operamos nele

uma inflexão com a ajuda de alguns autores11. Diferentemente de um geógrafo que se

interessa pelas formações estáveis e pela produção de mapas topográficos, o cartógrafo

está comprometido em acompanhar a produção de territórios existenciais, seus

contornos e arranjos, tendo em vista que seus movimentos são sempre provisórios e

estão sempre em transformação. Por certo, podemos dizer que com a produção de

mapas na prática cartográfica começamos a experimentar uma problematização do

conceito de território. Parece-nos importante então, interrogarmos: o que entendemos

como mapa? Como pensar o conceito de território?

Girardi (2006) nos indica que no dicionário cartográfico do IBGE, o mapa é definido

como uma representação gráfica das características naturais e artificiais, terrestres ou

subterrâneas, ou ainda das características de outro planeta, feita geralmente numa

superfície plana e em determinada escala. Nesta definição, os acidentes são

representados dentro da mais rigorosa localização possível, relacionados, em geral, a um

sistema de referência de coordenadas. Podemos aqui perceber uma necessidade de

representação do espaço que busca, por muitos momentos, uma localização. Isto nos faz

pensar que há, na preocupação de muitos que trabalham com a noção de território, uma

pergunta pelo lugar.

11 Esta inflexão é operada por DELEUZE G.; GUATTARI, F. (1995) e GUATTARI, F.; ROLNIK, S. (2005) e com ela afirmamos uma certa direção metodológica que coloca em questão o status quo da tradição moderna e sua fundamentação cientificista de que a produção de conhecimento se faz pela busca de purificação dos fatos, neutralidade e sustentação do lugar da verdade.

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Para Girardi (2006, p.65) transformou-se lugar comum na geografia a expressão: ‘mapa

é a representação do espaço’. Cabe aqui, questionarmos um certo entendimento do mapa

àqueles que o tomam como figura estática pressupondo-o capaz de representar uma

realidade pré-existente. Isto nos exige pensar em como construímos os mapas bem

como o uso que fazemos deles. Por hora, podemos pensar que um certo traçado do mapa

nos permite constituir contornos, limites territoriais que nos sirvam como referência,

como guia. Ter um mapa significaria aqui, ter visibilidade do território e, portanto,

‘segurança’ no trânsito por esse território. Aqui, uma outra questão nos parece ser

produzida nas tentativas de definição do território que não se faz somente por uma

pergunta pelo lugar, mas também a de como transitar no território. Se podemos falar que

vivemos na experiência de construção de mapas-territórios uma experiência de

‘localização’ já podemos dizer que aqui também se faz presente uma experiência de

trânsito, de movimento.

O geógrafo Milton Santos (2008), nos ajuda a produzirmos algumas reflexões até

mesmo dentro do campo das ciências geográficas, quando questiona as definições

clássicas da geografia que entendem o espaço como resultado de uma interação entre o

homem e a natureza bruta e, até mesmo, o mapa como uma representação estática do

território. Em seu livro Metamorfoses do Espaço Habitado, o autor marca a importância

de considerarmos os três modos pelos quais o espaço tem sido conceitualizado.

Em primeiro lugar, o espaço pode ser visto num sentido absoluto, como uma

coisa em si, com uma existência específica, determinada de maneira única.

(...) identificado mediante um quadro de referências convencional;

especialmente nas latitudes e as longitudes. Em segundo lugar, há o espaço

relativo, que põe em relevo as relações entre os objetos e que existe somente

pelo fato de esses objetos existirem e estarem em relação uns com os outros.

Assim, se tivermos três localidades A, B, C, estando os dois primeiros

fisicamente próximos, ao passo que C está longe mas dispõe de melhores

meios de transporte para A, é possível dizer, em termos relativos espaciais,

que as localidades A e C estão mais próximas entre si do que A e B. Em

terceiro lugar, há o espaço relacional, onde o espaço é percebido como

conteúdo12 e representando no interior de si mesmo outros tipos de relação

12 Para o autor a noção de conteúdo refere-se à sociedade em andamento, em movimento, na construção de suas formas de existência. “o espaço, por conseguinte é isto: um conjunto de formas contendo cada qual frações da sociedade em movimento” (SANTOS, 2008, p.28)

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que existem entre objetos. (MABOGUNJE, 1980 apud SANTOS, 2008, p.

38. grifo nosso)

O autor evidencia uma aposta no entendimento da noção de território como espaço

relacional quando afirma que o espaço não é

nem uma coisa em si, nem um sistema de coisas, mas uma realidade

relacional: coisas e relações juntas. O espaço deve ser considerado um

conjunto indissociável, de que participam, de um lado, certo arranjo de

objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que

os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em movimento. (SANTOS,

2008, p.27-28).

Entendemos o sentido precioso das contribuições deste autor para o nosso estudo, pois

embora saibamos da importância da dimensão espacial concreta para pensarmos o

conceito de território, também sabemos que ela não se sustenta por si própria. Há que se

pensar, sobretudo, na produção de uma outra territorialidade construída nas relações,

nos indagando sobre o modo como habitamos o território e como, de fato, o

produzimos.

Perlongher (1993) nos sinaliza que essa territorialidade é, em seu modo de operar,

itinerante, isto é, privilegia “os espaços intermediários da existência social, percursos,

trajetórias, devires” (p.54). Numa certa perambulação, o autor nos sinaliza a força de

um caminhar itinerante, que para ele “não se fixa aos trajetos por onde circula” (p.56). É

que embora tenhamos uma experiência de seguir trajetos costumeiros, indo de um ponto

ao outro, isto é, não ignorando os pontos, Perlongher afirma que operar no território

atento à sua dimensão itinerante é não sucumbir a uma fixitude monótona dos trajetos.

“A perambulação entre pontos não é princípio, senão consequência, da deixa nômade13

ainda quando se transite entre pontos; esses pontos são consequência dos trajetos”

(Perlongher, 1993, p.56).

13 Para Perlongher a territorialidade itinerante, entendida como uma não fixação do próprio caminhar aos trajetos por onde circula, traz a experimentação de um novo traço na constituição do território. Inspirado na obra de DELEUZE G.,GUATTARI, F., Mil Platôs (1995), contrasta a localização peculiar do espaço sedentário (onde os pontos do território são os que impõem uma fixitude monótona dos trajetos, condensando uma palavra de ordem) ao espaço nômade. Este, embora tenha uma experiência de localização, não é delimitado.

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Percebemos aqui, uma experiência itinerante vivida com/nos traçados dos territórios,

muito próxima do que temos até então chamado de prática cartográfica. Se, não estamos

interessados pelas formações estáveis nem pela produção de mapas topográficos,

afirmamos a cartografia como

um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de

transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são

cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo

tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a

formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos

contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes se tornaram

obsoletos”. (ROLNIK, 2007, p. 23).

Experimentamos uma outra qualidade na construção do relevo e da própria noção de

território quando podemos ampliar nossa visão para além dos sentidos produzidos pela

etologia, etnologia ou até mesmo a geografia. Neste sentido, Guattari e Rolnik (2005)

contribuem com essa ampliação quando nos indicam que

(...) o território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um

sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território

é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o

conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar,

pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos

tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. (GUATTARI;

ROLNIK, 2005, p.388)

A ampliação de nossa visão acerca da noção de território formulada por esses autores

nos é preciosa, quando com ela já podemos falar de um outro modo de operar com/no

território: acompanhar os contornos e arranjos da produção de territórios é estarmos

atentos aos processos de territorialização e desterritorialização dos modos pelos quais

construímos nossos modos de existência e nossas práticas. É que se entendemos que

um território é fabricado por segmentações, por cortes e recortes, que parecem distintos

entre si, mas que ao mesmo tempo, referenciam-se uns aos outros produzindo um

sistema fechado em si mesmo, uma espécie de identidade; também sabemos que todo

território tem a possibilidade de se desarrumar, de se desterritorializar. A possibilidade

de desfazimento de territórios, as brechas que neles se fazem - quando estes já o são

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obsoletos para fazer passar os afetos que pedem expressão - podem também promover

aberturas para a construção de outros jeitos de se relacionar, de se estar junto e de viver

a vida.

Mergulharmos na processualidade da formação destes arranjos, entendendo-os sempre

como provisórios, requer que recusemos um suposto lugar ‘protegido’ da neutralidade,

apostando na mistura dos corpos14, do caos que não se consegue classificar e controlar,

nos riscos de inventar. Esta nos parece ser uma indicação preciosa a nos mover nos

percursos de nossa viagem ao campo de pesquisa. Se já dizíamos que para uma viagem

tão longa - quanto a do homem de nosso conto - sua sobrevivência seria dada por um

movimento de fazer-se com, afirmamos que o próprio movimento de (des) construção

de territórios, de nossa própria vida, também é sustentada por um cuidado das forças

geradas no encontro. A possibilidade de nos alimentarmos, quando sabemos que

nenhuma provisão pode nos salvar, é produzida no quanto nos abrimos para os

encontros, afetando e se deixando afetar. Há, sobretudo, nesta experiência do encontro

uma aposta de cultivo de nossa existência em sua dimensão relacional e coletiva.

Podemos apontar no modo de fazer os percursos e suas cartografias, uma reversão

metodológica quando resistimos ao assujeitamento do caminhar (e daquele que

caminha) ao primado da meta e operamos uma subversão metodológica onde o rigor é

de um hodos-meta, de uma experiência coletiva de caminhar na construção de metas,

onde o caminho se torna um ato de produção de si e de mundo em um processo

gerúndico do caminhando. Aqui, podemos fazer uma aposta não só nos modos de se

fazer a pesquisa quando vamos ao campo interessados em acompanhar a articulação

entre Saúde Mental e Atenção Básica, mas, sobretudo, nos modos como temos

construído esta intercessão com/no território.

Ao caminharmos em nosso campo de pesquisa interessados nos processos e práticas de

cuidado realizadas na atenção básica conjuntamente pelas equipes da Estratégia de

Saúde da Família e pelas equipes de Saúde Mental, operamos um inflexão em nossos

percursos quando entendemos que ir a campo é ir ao território.

14 E aqui consideramos o corpo em seu potencial expressivo, em sua invisível vibração, suas singularidades afetivas. Podemos até afirmar que a própria natureza do corpo é dada pelos agenciamentos que fazemos. (ROLNIK, 2007).

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Nesta inflexão, entendemos também que o nosso fazer em saúde se dá na afirmação da

processualidade do plano de produção de nossa existência. Compreendemos aqui que os

modos pelos quais buscamos operar uma mudança na atenção e gestão em saúde são

indissociáveis dos modos pelos quais produzimos a nós mesmos. A aposta que fazemos

para pensar o conceito de território é entendê-lo, sobretudo, como território de

encontros. E para nós, é neste território de encontros que produzimos, de fato, políticas

públicas: encontros da Saúde Mental e Atenção Básica, encontros das Reformas

Psiquiátrica e Sanitária.

Se o desafio assumido pelos movimentos das Reformas Psiquiátrica e Sanitária, já na

década de 70, buscava uma mudança nos modos de se fazer a atenção e gestão nas

práticas de saúde, afirmamos que o caráter instituinte destes movimentos marca, em

nosso contemporâneo, a exigência de pensarmos a inseparabilidade entre produção de

saúde, produção de subjetividade e produção de territórios afetivos. O revigoramento do

movimento instituinte de constituição de políticas públicas no Brasil, requer pensarmos

a dimensão pública dessa construção pressupondo uma inseparabilidade desses três

processos de produção: produção de saúde, produção de subjetividade, produção de

territórios afetivos.

Neste sentido, adotamos o conceito de Ambiência da Política Nacional de

Humanização15, como modo de re-significar o que até então temos entendido como

território sanitário. Para a arquitetura dos espaços da saúde, a ambiência refere-se ao

tratamento dado ao espaço físico entendido como espaço social, profissional e de

relações interpessoais e que deve proporcionar uma atenção acolhedora, resolutiva e

humana. Operar no território com o conceito de ambiência é então tomá-lo para além da

composição técnica - simples e formal - dos ambientes e apreendê-lo em sua dimensão

15 A Política Nacional de Humanização (PNH) vista não como programa, mas como política que atravessa as diferentes ações e instâncias gestoras do SUS, implica-se com a construção deste território de encontros do SUS ao operar com o princípio da transversalidade, apostando nesta dimensão coletiva e relacional como produtora de nossa existência. Entendendo por humanização a valorização dos diferentes atores sociais implicados no processo de produção de saúde (usuários, trabalhadores e gestores) e, portanto, o cultivo desta dimensão relacional, a PNH afirma a processualidade de nossos modos de produção de saúde e de subjetividade, apontando para a constituição de valores nos modos de operar a organização da atenção e gestão norteadas pela produção de: autonomia, protagonismo, co-responsabilidade, participação coletiva e construção de vínculos solidários.

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relacional. Podemos afirmar que é neste plano coletivo e relacional que se dá,

efetivamente, a produção de territórios afetivos/existenciais.

No campo da atenção básica, a produção de um certo mapa do território sanitário

utilizado como referencial para a estruturação da Estratégia de Saúde da Família têm

sido marcado pela territorialização e adscrição da população a uma área de abrangência

definida. Há nesta adscrição a recomendação de que uma equipe da Estratégia de Saúde

da Família seja responsável pelo acompanhamento de, no máximo 4.500 pessoas. A

produção de uma localização do espaço territorial que delimita a área de

responsabilização de uma determinada equipe torna-se o lócus operacional do

programa. Com a adscrição de 600 a 1.000 famílias à uma equipe de Saúde da Família

preconiza-se como diretriz para este trabalho a longitudinalidade entendida como o

acompanhamento das famílias ao longo do tempo independente da presença de

patologia articulando assim a idéia de vínculo que tem como princípio a constituição de

referências dos usuários para com os profissionais responsáveis pela sua área. Uma

outra diretriz norteadora do trabalho no território sanitário é constituída pelo

planejamento ascendente que tem como proposta definir as ações de saúde a partir das

necessidades identificadas no território vivo.

Se de algum modo, percebemos, no campo da atenção básica um certo delineamento do

próprio território sanitário com seus princípios e diretrizes de territorialização,

adscrição, longitudinalidade e planejamento ascendente; sabemos que estes não

garantem por si só a construção de uma política pública compromissada com a produção

da vida. Se as iniciativas para a constituição de um trabalho territorial têm sido

apontadas na atenção básica como modo de operar o trabalho em saúde, entendemos

que aqui, este modo se faz na contra-mão da normatização rígida dos processos de

organização dos serviços de saúde que definem modalidades de acesso; modos de cuidar

centrados na doença, na queixa e nos especialismos; bem como modos de trabalhar que

destituem a capacidade de construção de autonomia e protagonismo dos trabalhadores e

usuários. Sabemos que a produção do próprio território sanitário, se passa na aposta de

um exercício ético, estético e político a ser feito cotidianamente na potencialização da

capacidade de criação que nos constitui, no cultivo de nossa dimensão coletiva e

relacional.

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Lembro de Dona Maria José. Senhora de 74 anos, que havia acabado de

receber a notícia de que a nora, a quem amava como uma filha acabara

de falecer em um acidente trágico de automóvel. O neto que também

estava no acidente, encontrava-se muito mal no hospital. O irmão desta

nora havia falecido no local do acidente também. Ao encontramos com

ela em sua casa, dizia ter muita vontade de correr pela rua. O corpo

debatia-se em meio à dor e desespero de não ver mais a nora querida.

Ao ver o médico do PSF adianta-se em dizer que não queria calmante

algum. “Minha cabeça está boa. É meu corpo que está todo quebrado.

Tá machucado”. Todos ficam receosos de D. Maria José sair correndo

pela rua. Não só pela sua idade... a rua também estava toda quebrada!

Em vésperas de eleição, a prefeitura tentava mascarar a falta de água e

saneamento no bairro. Não havia, pedra (...), ou melhor, paralelepípedo

sobre paralelepípedo. Em meio a dor, D. Maria José, não queria

calmantes. Não esses calmantes que tiram a possibilidade de, mesmo

“quebrada” (como D. Maria José referia-se a si mesma), passar com e

pela experiência paradoxal de morte e vida. Vida que insistia, por vezes,

tão lucidamente à insanidade da miséria e precariedade daquele bairro,

todo quebrado!

A casa cheia de amigos. Os filhos, modo como D. Maria José se referia

aos vizinhos mais próximos, também estavam lá. Se pudéssemos falar em

“calmante” neste momento, este seria o carinho destes filhos-vizinhos, o

cuidado dos amigos, do enfermeiro atento à pressão de D. Maria José

(que havia subido bastante).

Quantos anos a Sra. tem? – pergunta a psicóloga para anotar em seu

caderno.

Tenho 74. Mas pode anotar 47! – responde faceiramente Maria José.

Gostei! Vou começar a fazer isso também! – corresponde a psicóloga

O riso do trocadilho produz alegria nas duas mulheres que se olhavam

como cúmplices. Embaralham-se os lugares de quem dá apoio e de quem

é apoiado. Em meio ao trocadilho, produz-se troca e acolhimento.

O que faz suportar as dificuldades parece ser uma aposta nas redes de

solidariedade tecidas no cotidiano.

(Diário de Campo, 08 de agosto de 2008).

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A aposta que temos feito no território como espaço de proliferação de encontros e

composições, em muito tem apontado para a complexidade da vida que nele e com ele

se passa. Afirmarmos com Rolnik (2007) que nossos modos de subjetividade são

compostos de materiais diversos, de muitas histórias entremeadas, de aspectos sociais,

econômicos, políticos, familiares, afetivos, etc, também afirmamos que nossa existência

é produzida coletivamente, porque essa é sua matéria. Se em nossa ida ao campo-

território apostamos que é transformando que se conhece, afirmamos também que nas

cartografias que aqui traçamos não há sentidos para serem revelados, mas para serem

criados. De algum modo, compreendemos que é na provisoriedade e parcialidade das

cartografias que reside também sua multiplicidade. As cartografias são multiplicidades

que não formam um todo e se algum todo é formado é o das partes ao lado. Parece-nos

que a pesquisa vive os cruzamentos desta cartografia como partes ao lado ao pensarmos

em algumas interferências que se comporam como forças a encarnar-se em cheiros,

ritmos, cores e jeitos para a construção de um corpo-pesquisador.

1.5. Interferências: Um, Dois, Três - O incontável como oxigênio para a invenção

do presente

A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que

tortuosamente ainda se faz.

Clarice Lispector

Uma questão de pesquisa. Como ela nasce?

Ao percorrer nossa memória para buscar os fatos que constituíram o nascimento de

nossa questão de pesquisa, nos é inevitável falarmos de uma outra memória16: não a dos

16 Fazemos referência também à tese de doutorado de Ana Heckert (2004) ao trabalhar com a importância dos restos, detritos, dos detalhes insignificantes em Benjamim afirmando uma outra dimensão da história. A autora nos mostra que para Benjamim articular historicamente a história não significa conhecê-la como ela foi de fato. A história não é, portanto, compreendida como acabada, encerrada em um definitivo “era uma vez”. A história é construção. Não há aí diversidade do tempo sendo recolhida na síntese de um processo progressivo em direção a uma destinação que recuperaria a origem, não há finalismo em sua marcha, há, em contrapartida, apropriações estratégicas de descontinuidades, não recuperação de identidades, mas sim construção de sentidos que se entrecruzam com as urgências do presente. Com efeito, como a história genealógica, a história em Benjamin, na quebra do tempo homogêneo, faz emergir a diferença. Ver em: GAGNEBIN, J. M.; GARBER, K. Por que um mundo todo nos detalhes do cotidiano. Revista USP - Dossiê Walter Benjamin, São Paulo, n. 15, p. 39-47, set./out./nov., 1992

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fatos lógicos e lineares, mas a dos afetos que produziam em nosso corpo inquietações e

buscavam passagem que os dessem sentido.

A memória que aqui chamamos de afetiva, Rolnik (1993) nomeia como memória do

invisível. A autora propõe considerarmos que, os ambientes de toda espécie nos quais

vivemos mergulhados, compõem-se não apenas de um plano visível e mais óbvio à

nossa percepção a olho nu, mas igualmente, de um plano invisível. Neste plano, ela diz:

“o que há é uma textura (ontológica) que vai se fazendo dos fluxos que constituem

nossa composição atual, conectando-se com outros fluxos, somando-se e esboçando

outras composições. Tais composições, a partir de um certo limiar geram em nós

estados inéditos, inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência

subjetiva de nossa atual figura. Rompe-se assim o equilíbrio desta nossa atual figura,

tremem seus contornos.” (Rolnik, 1993, p.242).

A partir das composições que vamos vivendo, nossos modos de sentir, pensar e agir

(nossa figura atual), são inaugurados por estados inéditos. Em nosso corpo produz-se

uma marca, uma diferença. Neste momento, somos convocados pelo desassossego, pelo

desequilíbrio de nossa atual figura/forma que necessita criar um novo corpo, novos

contornos para nossos modos de sentir, pensar e agir que possam acolher esta

inquietação, este estado inédito que se fez em nós. Uma marca se faz em nós. “E a cada

vez que respondemos à exigência imposta por um destes estados, nos tornamos outros.”

(Rolnik, 1993, p.242).

As marcas, matéria constituinte desta memória invisível, não são apenas lembrança do

que nos aconteceu. As escolhas que fazemos em nossas vidas já sinalizam para o vívido

das marcas. É que muitas de nossas escolhas se fazem quando, mergulhados em um

ambiente, alguma marca encontra ressonância e volta a reverberar. Ela atrai e é atraída

por ambiência17, (re)atualiza-se por uma nova conexão. Produz-se então uma nova

17 Na construção da própria pesquisa operamos com este conceito de ambiência, entendendo que, nos fragmentos desta memória afetiva, o que dá o tom de nossas escritas é, precisamente, a aposta na dimensão coletiva vivida em algumas experiências. Nelas, nos interrogamos sobre esse território dos encontros, sobre o lugar, os cheiros, as cores e gostos que desestabilizam e potencializam a construção de outros sentidos para nossas existência, nosso próprio fazer. Falaremos delas como interferências e destacamos para isso: nossa formação acadêmica, o exercício profissional e a cidade. (Fonte: http://www.saude.rr.gov.br/humanizasus/cartilha_ambiencia_2007). Acesso: 04/03/09.

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diferença, e mais uma vez somos convocados a criar um novo corpo que permita a

existencialização desta diferença. Uma marca continua viva como exigência de criação,

pois mesmo que consigamos criar um plano de consistência para os afetos - gerados no

encontro de nosso corpo com outro corpo – novos afetos estarão surgindo e nos

convocando a este plano de criação.

Assim poderíamos contar a história de nossa gênese, do modo como vamos criando a

nós mesmos e nossas questões. A diferença que se produz, como efeito das composições

que vão se formando, está sempre nos arrastando para outro lugar, nos dessubjetivando,

nos desensimesmando, nos tornando outros. Ela é disparadora de um devir, daquilo que

se produz em nós nas incessantes conexões que vamos fazendo.

Ao acessarmos e sermos acessados por esta memória afetiva experimentamos alguns

fios que esboçam as intensidades das questões que movem nossa pesquisa, podemos

dizer que também experimentamos uma outra temporalidade. Estamos distantes da

memória das coisas/representações ou de uma memória de passado como existido. Os

fios de memória quando contados, exigem-nos uma atitude de criação. Cria em nós a

ação de fiar a história em suas descontinuidades, em seu não-sentido, em sua

complexidade, suas lutas e contradições. O passado que ainda pulsa nas mãos dos

acontecimentos que tecem a vida.

1.6 Das Interferências: quando qualquer ‘entrada é boa desde que as saídas sejam

múltiplas’ 18

Parece-nos, pois que neste trabalho temos tomado as interferências como oxigênio para

a invenção de nosso presente, de nós mesmos e nossas questões. Mas o que estaríamos

chamando de interferências? Como pensá-las quando nos propomos a ação de fiar a

história em suas descontinuidades, em seu não sentido e sua complexidade? Como

pensar a articulação que temos feito entre Saúde Mental e Atenção Básica em meio a

história em suas lutas e contradições?

18 Deleuze, G; Parnet, C. Diálogos. Tradução Eloísa A. Ribeiro. São Paulo: Escuta. 1998. p.119.

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Uma pista: seguirmos viagem com a pergunta - O que se passa entre Saúde Mental e

Atenção Básica? - requer que tomemos esta articulação em suas ressonâncias, suas

interferências, seu encontros.

Seguindo em nossa questão com as pistas de Neves (2002) parece-nos que o desafio que

nos atrai e que move de certo modo este trabalho é pensar em interferências do ponto de

vista da produção social de nossa existência, de como produzimos a nós, nossas

questões, nosso fazer. Muitas vezes parece-nos comum limitar a idéia de interferência a

uma espécie de ação de um termo sobre outro, “poderíamos afirmar que um algo

qualquer pode interferir em outro sendo ele o que for, seja para transformar, seja para

ratificar um funcionamento, ou simplesmente para perturbar uma recepção de sinais,

caso em que interferência e ruído chegam a virar sinônimos”. (Idem, p.134).

O homem de nosso conto apressa-se por selar o cavalo quando o criado ainda zonzo não

entendia como poderia aquele homem viajar sem destino e provisões. Seu corpo fora

todo estremecido por um som de trompa. Parece-nos que há a produção de uma

interferência que inaugura em seu sentir, pensar e agir um estado inédito e é neste

momento que em seu corpo produz-se uma marca, uma diferença. É neste desassossego

que o homem faz-se outro, que a vida insiste em si mesma, em ir ‘para fora daqui’.

Não estaríamos aqui, supondo que a perturbação provocada pelo som da trompa seria

um problema de ‘recepção de sinais’ ou uma mera ação de algo qualquer sobre um

outro como efeito de uma sobreposição, afirmamos aqui, o caráter intensivo das

interferências em seus aspectos qualitativos e invisíveis e seus efeitos de contágio.

Compartilhamos aqui do conceito de interferência apontado por Neves quando afirma

ser esta:

(...) uma relação ou um conjunto de relações que incidem, de maneira casual

ou intencional, sobre outra relação ou outro conjunto de forças. Isto quer

dizer, nos termos de certas filosofias contemporâneas da diferença, que

interferir é estar presente num jogo de forças e, portanto, num complexo jogo

de poderes, entendendo que poder implica sempre correlações plurais de

forças. (NEVES, 2002, p.134)

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Pensarmos em interferências19 onde os movimentos não se fazem apenas como

sobreposição de algo qualquer sobre outrem, mas como um jogo de forças é estarmos

atento a um outro movimento produzido na relação, no encontro20. Com Rolnik (1993)

experimentávamos um outro modo de contar a história de nossa gênese e do modo

como vamos criando a nós mesmos e nossas questões percebemos, sobretudo, que a

construção de nossa existência é produzida no plano dos encontros, pois é nele que

efetuamos nossa potência de afetar e ser afetado, de interferir e sofrer interferências. É

neste plano que se produz uma diferença, como efeito das interferências em suas

relações de forças e das composições que vão se formando; diferença esta que está

sempre nos dessubjetivando, nos tornando outros, nos arrastando para outro lugar (para

‘fora daqui’ como o homem do conto).

Já dizíamos, em um momento anterior, que a experimentação da feitura da própria

pesquisa, nos faz acessar e sermos acessados por uma memória afetiva. Constituída por

marcas vívidas, estas se atualizam por ressonâncias e nos convocam a todo o tempo à

criação de um novo corpo que nos permita a existencialização da diferença que se

produz em nós nos incessantes encontros que fazemos. Se por vezes, construímos

pausas, territórios que nos possibilitam dar contornos aos nossos modos de existir, ao

19 Neves (2002) destaca que a realidade, na qual vivemos imersos, é produzida numa multiplicidade de interferências extensivas e intensivas que, ‘em suas afirmações diferenciais, produzem ressonâncias tanto inibitórias quanto favorecedoras de proliferações de sentidos e modos de vida como imantações do desejo numa linha de fuga’ (p.138). Os aspectos extensivos (molares/visíveis) e intensivos (moleculares/ invisíveis) da interferência são coexistentes em um mesmo movimento e, portanto, não podem ser pensadas como opostas, mas devem, sobretudo, ser pensadas nas relações e nos processos que as constituem ao avaliarmos os movimentos que promovem ou estacam. 20 Com a ajuda do professor de física Marcio Pudenzi da Universidade de Campinas, Neves nos chama atenção para esta perspectiva de análise da interferência onde os movimentos de ressonância e contágio se dão por interação. Transcrevemos a explicação do professor Pudenzi retirada da tese de doutorado de Neves para evidenciarmos que no encontro de uma onda com a outra, de um movimento com outro, de um corpo com outro, o que está presentemente marcado é a idéia da produção de uma diferença. "Temos vários tipos de ondas, mas, para simplificar, vamos visualizar as ondas geradas em um lago calmo, quando jogo uma pedra nele. Observando estas ondas, podemos notar, entre outras particularidades, aquelas mencionadas na definição de Houaiss: amplitude, que é a altura máxima que um ponto na superfície da água atinge, quando a onda passa por ele, em relação à superfície calma do lago (a crista da onda); freqüência, que é a taxa com que a perturbação se repete (por exemplo, quantas vezes por segundo um determinado ponto do lago atingiu a amplitude). Agora, resolvemos jogar juntos uma pedra cada um, gerando ondas com mesma freqüência e amplitude (que coincidência feliz!). Aí, notamos que, em determinados pontos, na região em que sua onda se encontra com a minha, as amplitudes delas se somam, e em outros se subtraem. Isto é a interferência. Ela ocorreu porque nossas ondas tinham a mesma freqüência e amplitude, mas foram geradas em locais diferentes. O mesmo efeito poderia ocorrer se nossas ondas fossem geradas no mesmo local, mas em tempos diferentes. Esta diferença (espacial e/ou temporal) nas ondas é o que chamamos de diferença de fase". (Neves, 2002, p.135)

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nosso fazer, há, todavia, que estarmos atentos ao caráter sempre contingente e

provisório destes arranjos. A pausa, como nos indica Neves (2002), necessita manter

seu caráter de tensão, naquilo que se constitui de abertura e porosidade ‘às potências de

virtualização que estes movimentos portam’ (p.140).

Pensar, pois as interferências na ação de fiar a história em suas descontinuidades, em

seu não sentido, sua complexidade, lutas e contradições exige de nós a ativação desta

dimensão intensiva da interferência. E é quando somos tomados por essa intensividade

que nos propomos a fiar algumas marcas de nossa memória afetiva que estão a interferir

no processo de gestação de nossa questão de pesquisa e na construção de um corpo-

pesquisador. Trazemos então a Formação Acadêmica, o Exercício Profissional e a

Cidade como interferências: Fiemos um pouco cada uma delas.

1.6.1 Interferência Um: Fiando a Formação Acadêmica

A escolha por retornar à academia no programa de Pós Graduação de Psicologia da

Universidade Federal Fluminense faz-se como o reverberar de uma marca. Marca de um

tempo em que éramos convocados a repensar nossas práticas em um hospital

psiquiátrico.

Ano de 1999. Entrara para um projeto de extensão21 intitulado

“Intervenção no Hospital Adauto Botelho - A desnaturalização da noção

de doença mental: produção de outras formas de espaço-tempo”. Tempo

de luta e embates. Tempo de movimento. Nosso país, assim como outros

tantos cantos e meios do mundo, já iniciara ao final da década de 1970,

uma intensa crítica ao modelo psiquiátrico clássico e a busca pela

criação de novos serviços que extinguissem o sistema asilar.

Neste projeto, éramos estimulados em um clima de estudos,

questionamentos e de busca por movimentos que pudessem quebrar com

a dura frieza daquele hospital psiquiátrico que alisava as paredes, o

21 Trata-se de um Projeto de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo, onde cursara minha graduação em Psicologia. Nosso grupo formado por estudantes de diversos períodos do curso de psicologia era orientado pela Professora Maria Cristina Campello Lavrador.

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chão, as grades das enfermarias e os corpos semi nus indiferenciados no

pátio de “banho de sol”.

***

Nas nossas leituras tínhamos em Michel Foucault, um intercessor fundamental, para a

construção de nossas questões e de nossas intervenções naquele hospital psiquiátrico.

Aprendíamos com este autor a desnaturalizar a noção de doença mental. Seu projeto

metodológico de estudar os saberes sobre a loucura em diferentes épocas e sem se

limitar a nenhuma disciplina, marca decisivamente uma postura ético-política deste

pesquisador a reverberar em nosso grupo. Pretendeu Foucault, neste estudo, estabelecer

o momento e as condições de possibilidade do nascimento da psiquiatria. Ao analisar a

relação entre os saberes não se limitando às fronteiras espaciais e temporais da

disciplina psiquiátrica racha as formas da história naquilo que se supõe linear, contínuo

e natural tomando-a em suas descontinuidades, contradições e rupturas. A história da

loucura deixava de se fazer em nós a história da psiquiatria.

Em Historia da Loucura, Foucault (1978) desenvolve um estudo do nascimento da

psiquiatria e das práticas médicas de intervenção sobre a loucura. Segundo o autor,

antes do século XVIII, a loucura não era sistematicamente internada; ela era

essencialmente considerada como uma forma de erro ou da ilusão. Ainda no começo da

Idade Clássica a loucura era percebida como pertencente às quimeras do mundo; podia-

se viver no meio delas, e não tinha de ser separada, a não ser quando tomava formas

extremas ou perigosas.

Compreende-se nessas condições, que a percepção da loucura, na época clássica,

encontra-se com uma idéia de alteridade pura, inscrita no universo de diferenças

simbólicas que permite à loucura um lugar social reconhecido. Nesse contexto, os

hospitais surgem como instituições religiosas e filantrópicas de cuidados aos

necessitados, remontando a características de algumas ordens religiosas que prestavam

assistência humanitária a mendigos e miseráveis. Os muitos problemas de doenças

evidentes nesta população, também se associavam às condições de pobreza e carência

econômica e social da mesma. A assistência prestada não tinha caráter terapêutico/de

tratamento do doente, e sim, o de uma obra de caridade aos pobres que deveriam morrer

assistidos material e espiritualmente. Com este tipo de assistência, era mantida também

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a função de separação e exclusão dos indivíduos considerados perigosos para a ordem e

saúde da população, pois além dos pobres e necessitados, também se misturam doentes,

loucos, prostitutas, devassos, etc. Em geral, eram grandes instituições que funcionavam

como depósitos de centenas ou milhares de pessoas, amontoadas nos pátios e pavilhões.

A experiência hospitalar não fazia parte da formação do médico. A idéia de uma longa

série de observações no interior do hospital estava excluída da prática médica. A

formação se dava pela transmissão de receitas mais ou menos sigilosas e o

conhecimento de textos. A intervenção era organizada em torno da noção de crise. O

médico observava o doente e a doença desde seus primeiros sinais tentando prever a

evolução, descobrir o seu momento de crise, e favorecer a vitória da natureza sadia do

indivíduo sobre a doença.

***

Nosso fazer era movido pela disponibilidade de estar com aquelas

pessoas, de construir vínculos e de possibilitar ‘saídas’, ou melhor,

dizendo, ‘entradas na cidade’. Muitos estavam internados há mais de

vinte cinco anos, sem qualquer contato com as ruas. A localização e

arquitetura daquele hospital já marcavam os traços de violência e

exclusão social da institucionalização. As conexões com a cidade-

sociedade eram encerradas naquele lugar tão distante e ermo do

município de Cariacica-ES. Encontrávamos dificuldades com transporte,

com a estrada, tudo parecia conspirar para que não chegássemos perto.

Como essa distância aconteceu? O que a tornou legítima? Como poderia

a vida encerrar-se naquelas paredes? Como poderíamos afirmar que o

que se fazia ali eram práticas de saúde?O que estaríamos tratando?

***

Os muros do manicômio erguem-se para isolar a loucura para que ela não invada

‘nosso’ espaço. Desta forma eles surgem habitualmente na periferia das cidades, em

zonas isoladas, cercadas por muros. Marca-se precisamente o sentido de separação. A

figura do doente mental como uma expressão daquilo que rompe com a norma,

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constitui-se em uma imagem a ser mantida à distancia. O ‘doente mental’ apresentava-

se como um problema social, mas este deveria ser resolvido fora da sociedade.

Se durante a época clássica, o critério que marcava a exclusão e o enclausuramento

estava referido à figura da desrazão, não estando a loucura diferenciada das outras

categorias marginais; a partir da segunda metade do século XVIII, a desrazão,

gradativamente, vai perdendo espaço e a alienação ocupa o lugar como o critério de

distinção do louco ante a ordem social. Este percurso prático/discursivo tem na

instituição da doença mental o objetivo fundante do saber e prática psiquiátrica. Assim,

a psiquiatria aparece como a primeira medicina especial, o primeiro campo de

especialidade do saber médico. Desse modo, o nascimento da psiquiatria está

fundamentalmente apoiado sob a responsabilidade de lidar e dar conta da loucura.

***

Passávamos pelo portão central do hospital. Nosso caminhar era

cortado pelas divisões e segmentações regulamentadas daquele espaço.

O andar de cima era reservado aos pacientes com “quadro-agudo”, no

térreo ficavam os pacientes ‘crônicos’. Para a esquerda segue-se até

outro portão gradeado. É a ala masculina. Para a direita a ala feminina.

Percorríamos um longo corredor que margeava todo o pátio-de-banho-

de-sol para mais longe encontramos as enfermarias classificadas por

números. Parecia haver uma ordenação que permitisse a vigilância

permanente. O que podíamos para além e aquém daquele caminhar

cortado que direcionava nossa visão e simplificava nossos trajetos?

Chegávamos à 13ª Enfermaria Feminina.

***

O movimento de volta às condutas regulares inscritas no eixo paixão-vontade-liberdade

delineia o papel do asilo já no fim do século XVIII. Neste eixo paixão-vontade-

liberdade, mais que um lugar de desmascaramento para descoberta da verdade da

doença mental, o hospital torna-se um lugar de afrontamento. A loucura, vontade

perturbada/paixão pervertida, deve encontrar aí, uma vontade reta e paixões ortodoxas.

Desse modo, a luta que se estabelece a partir da vontade do doente e da vontade reta do

médico, se for bem conduzida, deverá levar à vitória da vontade reta, à submissão, à

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renúncia da vontade perturbada. Um processo, portanto, de oposição, de luta e de

dominação.

O momento que a loucura passa a ser percebida - mais como desordem de condutas e

menos como erro ou desrazão - coincide com a prática de internamento. O hospital

passa a ser concebido como um instrumento de cura. A distribuição do espaço torna-se

um ‘instrumento terapêutico’. A disciplinarização do espaço e o deslocamento da

intervenção médica marcam a emergência do hospital médico.

Em seu texto “O Nascimento do Hospital”, Foucault (1979a) nos mostra que a

reorganização do hospital imbuída de uma função disciplinar teve seu ponto de partida

nos hospitais marítimos e militares. A introdução de mecanismos disciplinares para a

anulação das desordens às quais estes hospitais eram portadores ocorre como resposta:

ao maior rigor das regulamentações econômicas no mercantilismo, à tentativa de se

evitar que as doenças epidêmicas se espalhassem, e, também, às mutações nas táticas de

guerra tanto da marinha, como do exército com o surgimento do fuzil. O valor da vida

de um soldado treinado torna-se cada vez mais elevado, principalmente, pelos gastos

que sua formação implicava.

Os hospitais são, portanto, submetidos a um esquadrinhamento disciplinar. A isto

implica a vigilância, a classificação, o registro contínuo, e distribuição dos indivíduos

para julgá-los, medi-los, localizá-los e utilizá-los ao máximo. Neste sentido, o autor

apontará também um deslocamento da intervenção médica. Em seu texto “A Casa dos

Loucos”, Foucault (1979b) nos mostra este deslocamento ao apontar que a botânica

torna-se o modelo de inteligibilidade no sistema epistemológico da medicina do século

XVIII. Neste modelo, a doença é compreendida como um fenômeno natural, com tipos,

características e desenvolvimento à semelhança das plantas. O meio participa desta

noção, à medida que se entende que a doença (seu tipo, característica e

desenvolvimento) se dá conforme a ação do meio sobre o indivíduo. A medicina passa a

intervir não mais na doença, propriamente dita, como a medicina da crise; mas no meio

que circunda a doença. Uma medicina do meio, que pretende transformar as condições

do meio em que os indivíduos são colocados. Neste sentido, o hospital é constituído

como lugar de eclosão da “verdadeira” doença.

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Supunha-se, com efeito, que o doente deixado em liberdade, no seu meio, na

sua família, naquilo que o cercava, com o seu regime, seus hábitos, seus

preconceitos, suas ilusões, só poderia ser afetado por uma doença complexa,

opaca, emaranhada, uma espécie de doença contra a natureza, que era ao

mesmo tempo a mistura de várias doenças e o empecilho para que a

verdadeira doença pudesse se produzir na autenticidade de sua natureza.

(FOUCAULT, 1979b, p.118)

A prática e a teoria da hospitalização bem como a concepção da doença, são tomadas

pela dupla função do hospital: lugar ambíguo de constatação para uma verdade

escondida e de prova para uma verdade a ser produzida. A função de produção de

verdade da doença ocorre em torno da instituição médica. Um jogo no qual o que está

em questão é o sobre-poder médico que encontra suas garantias e justificativas nos

privilégios do conhecimento.

Todas as técnicas ou procedimentos praticados nos hospícios do século XIX

― o isolamento, o interrogatório privado ou público, os tratamentos-punições

como a ducha, as entrevistas de cunho moral (encorajamentos ou sermões), a

disciplina rigorosa, o trabalho obrigatório, as recompensas, as relações

preferenciais entre os médicos e alguns de seus doentes, as relações de

vassalidade, de posse, de domesticidade, por vezes de servidão, que ligavam

o doente ao médico ― tudo isso tinha por função fazer do personagem

médico o “mestre da loucura”: aquele que a faz aparecer na sua verdade

(quando ela se esconde, quando permanece escondida e silenciosa) e aquele

que o domina, a apazigua e a faz desaparecer, depois de tê-la sabiamente

desencadeado. (FOUCAULT, 1997, p.82).

É nesse contexto, que a obra de Pinel representa o mais importante passo histórico para

a medicalização do hospital, transformando-o em instituição médica ― e não mais

social e filantrópica ― para a apropriação da loucura pelo discurso e prática médicos.

Este percurso marca, a partir da assunção de Pinel à direção de uma instituição pública

de beneficência, a primeira reforma da instituição hospitalar, com fundação da

psiquiatria e do hospital psiquiátrico. As práticas de separação dos doentes e

classificação das enfermidades definiam não só as novas funções do hospital

psiquiátrico, mas, sobretudo, o próprio processo de construção do paradigma

psiquiátrico que acorrenta o louco como objeto de saber de seus discursos e práticas

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atualizadas na instituição da doença mental. Nesta perspectiva, a psiquiatria seguirá a

orientação das demais ciências naturais. Assumindo uma postura eminentemente

positivista, constrói uma relação objetivante com o homem doente, a expressão de um

pensamento normativo e totalizante.

Tal é a ação paradoxal de uma ciência e de uma instituição que, nascidas para

tratar de uma doença cuja etiologia e patogênese resultaram desconhecidas,

fabricaram um doente à sua imagem e semelhança, de modo a justificar, e ao

mesmo tempo garantir, os métodos sobre os quais baseavam sua ação

terapêutica. Desta forma, a doença se transforma gradualmente, naquilo que a

instituição psiquiátrica é, e a instituição psiquiátrica encontra no doente,

moldado segundo seus parâmetros, a confirmação para a validade dos seus

princípios. (BASAGLIA, 2005, p.76).

***

Os raios do sol incidiam em um pequeno pátio descoberto da 13ª

enfermaria chegando até nossos olhos após caminharmos por um

corredor escuro. Corre para o nosso encontro Lourdes Maria. Ah

Lourdes! Enigma que jamais tivemos a pretensão de desvendar, pois a

complexidade de seus movimentos, sua voz-gargalhada e olhar

zombeteiros eram o que nos deixava zonzos. E era disso que

precisávamos! Desta zonzeira que nos impelia à vivência de uma

experiência de deslocalização. As teorias desarrumavam-se, não tinham

lugar nesta experiência com Lourdes.

É que a vida naquela instituição asilar, em muito simplificada pelos

mecanismos disciplinares que produziam o que Goffman chamou de

carreira moral do institucionalizado22, ainda resistia em Lourdes. Vida

que tentava ser contida para garantir a ordem e hierarquia da

instituição. Em uma dessas contenções, Lourdes teve amputado seu

22 Trajetória do institucionalizado marcado por um processo gradual de desintegração e despersonalização. Em nome da ordem e da eficiência mantêm-se uma relação hierárquica e autoritária. Determinadas atitudes dos internados que muitas vezes são confundidas com sintomas de doença são produzidas por essa lenta e artificial adaptação do paciente por uma ação despótica e arbitrária que o transforma em um corpo coisificado. “A apatia, o desinteresse e o lento e monótono caminhar de cabeça baixa, sem rumo, pelos corredores ou pelos pátios fechados; certos impulsos imotivados (com demasiada freqüência reportados à doença); um comportamento submisso de animal domesticado; as lamúrias estereotipadas; o olhar perdido, desprovido de um ponto de apoio; a mente vazia porque não tem uma meta para a qual voltar-se – esses são apenas alguns aspectos(..)”. (BASAGLIA, 2005, p.50).

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antebraço direito. Ficou tanto tempo amarrada que o braço gangrenou.

Seu nome estava na boca de toda a equipe médica. Um incômodo para

profissionais que se mantinham em uma inércia teórico-prática e que

preferiam seguir no curso do “bom funcionamento” do asilo tendo seus

diagnósticos validados, fazendo visitas esporádicas às enfermarias,

mantendo-se à distância em suas salas abarrotadas de prontuários,

sancionando as mesmas sentenças.

Lourdes desorganizava aquela ordem. Insistia em fazer desviar o curso

das regras e estrutura daquela instituição psiquiátrica. Lourdes fazia-se

resistência. Fazia-se em nós quando, em luta, percebíamos que nossa

existência como profissionais de saúde nos implicava a um

posicionamento e embate cotidianos entre a manutenção de modos de

viver e trabalhar massacrados pela desassistência, e a aposta em outros

modos possíveis de viver e trabalhar. Internos, pareciam todos: loucos e

profissionais - presos à lógica manicomial. Mas como implodir as

prisões que construímos para nós mesmos? Como romper os muros

concretos e invisíveis que encerram e encarceram a vida? O manicômio

concretiza a metáfora da exclusão que a modernidade produz na relação

com a diferença.

***

No que pese o suposto compromisso ‘terapêutico’ de Pinel, à época de criação do

hospital psiquiátrico, este não se tornou um lugar de tratamento e cuidados das pessoas

em sofrimento mental. Inúmeras foram as denúncias de violência e maus tratos sofridos

pelos pacientes nestes lugares que passaram à condição de lócus de degradação e

produção da própria doença mental.

Para Foucault (1979b), todos os grandes abalos sofridos pela psiquiatria desde o fim do

século XIX, foram aqueles que colocaram em questão o poder médico e os efeitos deste

sobre o doente, visto serem essas relações de poder que constituíam o a priori da prática

psiquiátrica. A priori que condicionava o funcionamento da instituição asilar e regiam

as formas de intervenção médica.

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Todas as grandes reformas, não só da prática psiquiátrica, mas do

pensamento psiquiátrico, se situam em torno desta relação de poder; são

tentativas de deslocar a relação, mascará-la, eliminá-la e anulá-la.

(FOUCAULT, 1979b, p. 124)

***

Saímos do hospício. Caminhávamos até os carros estacionados embaixo

das castanheiras. O sol forte batia em nossas moleiras como que a nos

deixar prontos para um estalar de ovos. Idalina seguia um pouco à frente

com seu andar empinado, mas tropeçado de uma mesura exagerada. O

batom forte nos lábios entrava em descompasso com o rouge rosa-shock

a escorrer pelo rosto em suor. Parecia saudar a vida com tropeços de

reverência. Durante a acomodação das pessoas nos carros estacionados,

meu olhar e o de Idalina se procuram como dois cúmplices. Convidamo-

nos, sem palavras, a estarmos juntas neste passeio. Seguíamos no mesmo

carro. Sua atenção pousa na cidade que corria pela janela. Seu olhar

parecia mais um modo de escutar. O que seria que ela retirava da

cidade? Nossa chegada à praia foi acompanhada de um andar sôfrego

de Idalina pelas areias. Ávida para encontrar-se com o mar. Separada

até então do que podia na experiência do corpo, era taxada como

paciente crônica. Por certo o crônico, palavra com origem no latim,

Kronikós23, refere-se a uma relação com o tempo inveterado. Tempo que

dura demais, enraizado pela idade. Entranhado. Idalina tivera sido, ao

longo dos 30 anos de internação naquele hospício, marcada por um

corpo que não era seu. Habituada a estar pronta para a vida da

instituição, assusta-se com o abraço das ondas caudalosas por todo o

seu corpo. No movimento múltiplo do mar que lhe remexia toda, luta

para subir por entre as espumas da imensa onda desfeita. E quando

enfim, respira. Transpira o coração em cada gesto. Olha-me com raiva,

com dor, mas com brilho nos olhos. Já não era mais aquela mulher com

quem eu, tantas vezes, conversara ao pé da cama tamanha era a entrega

de seu corpo à desassistência da vida. A vida pulsava mar, pulsava

Idalina. Não conseguimos retornar no mesmo carro tamanha era a raiva

23 Dicionário Priberam (http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx)

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que, naquele momento, Idalina demonstrava por mim. Acusava-me de ter

lhe afogado. Não poderia discordar dela, pois não seria mesmo um caldo

tudo o que aquela experiência entoava? Como poderia sentir tantas

outras coisas, sentir que estava viva, e ter que retornar para aquele

hospício? Construir sentido de volta àquela vida? Vida de um corpo que

funciona com uma alma quase morta?Jamais...

***

É nesse momento que o internado, com uma agressividade que transcende

sua própria doença, descobre seu direito de viver uma vida humana.

(BASAGLIA, 2005, p.110)

Na experiência de saída com aquelas pessoas do Hospital sentíamos que não era apenas

a vida delas que se alterava. A cidade - que corria na janela emoldurada pelas esquadrias

do carro - era interrogada enquanto voltávamos do passeio. Interrogados eram também

os modos de estar na cidade que construímos.

Apressada em esclarecer a estranheza que eu também recolhera naquele caldo do mar,

percebia que muito além de encontrar respostas que adequassem tal estranheza à

normalidade vigente para aí incluí-la, havia que se colocar em análise essa normalidade

e os muros que ela ergue cotidianamente. A estranheza leva-nos a interrogar sobre os

muros de concreto, mas também, sobre os muros invisíveis há tanto naturalizados e

erguidos cotidianamente apartando-nos da cidade e esvaziando a vida de tudo aquilo

que ela pode na experiência.

Experimentávamos, com a proposta deste projeto fundamentalmente agenciada com o

movimento antimanicomial no Brasil, a construção de uma prática extra-muros que

colocava em questão o manicômio, mas, sobretudo, a loucura. Se percebíamos a

importância da saída daquelas pessoas para fora dos muros do hospital, sentíamos na

pele que fundamental era a saída para fora da cultura manicomial em nós.

Ora, aquilo que estava logo de início implicado nestas relações de poder, era

o direito absoluto da não loucura sobre a loucura. Direito transcrito em

termos de competência exercendo-se sobre uma ignorância, de bom senso no

acesso à realidade corrigindo erros (ilusões, alucinações, fantasmas), de

normalidade se impondo à desordem e ao desvio. (FOUCAULT, 1979b,

p.127)

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1.6.2 Interferência Dois: (Desa)Fiando a Experiência Profissional:

De algum modo sabemos que as interferências imbricam-se umas nas outras formando

complexos arranjos que se por ora parecem manter uma forma consistente e duradoura,

por outras se desmancham ao sabor das impermanências da própria processualidade em

que a vida e nossas questões se constituem. Parece-nos que habitar essa dimensão

processual de nossas práticas é uma direção importante a se fazer nos acompanhamentos

desta pesquisa. Como interferência potente, a Formação Acadêmica em nada estaria

apartada do que aqui escolhemos chamar de Experiência Profissional. (Desa)fiar a

experiência profissional requer que forcemos os limites das tradicionais separações

entre teoria e prática, entre formação e trabalho, compreendendo que é operando entre-

dois, onde algo se passa, que podemos produzir intercessões potentes capazes de

desestabilizar práticas/formações instituídas em nós.

A formação, entendida por Heckert e Neves (2007) como um processo que extrapola o

sentido clássico da aquisição de conhecimentos técnico-científicos a serem aplicados em

uma dada realidade, também já era vivenciada de outro modo em nossas práticas de

formação acadêmica. Tais autoras ao fazerem uma distinção dos processos de formação

analisando-os em seus diferentes e distintos vetores, nos trazem um vetor precioso para

pensarmos as experiências vividas no dentro e fora dos muros daquele hospício: a

formação como força. Este vetor nos sinaliza a potencialidade da formação ao conferir-

lhe o caráter de produção de realidade. Nela e com ela constituímos modos de

existência, que não estão dissociados da criação de modos de cuidado no processo de

trabalho. Com a formação e o trabalho entendíamos que há uma indissociabilidade entre

os modos de formar, de gerir e de cuidar; entre os modos de produzirmos a nós e nossas

práticas. E é sobre o efeito dessas práticas nos processos de subjetivação, de criação de

modos de existência e vida que há algum tempo seguíamos nos questionando.

Trabalhando como profissional de psicologia em uma clínica particular e atendendo

crianças e adolescentes de baixa renda através de um convênio do Programa Rede SAC

(antiga Legião Brasileira de Assistência – LBA) com o Governo Federal, interrogava-

me quanto aos encaminhamentos que recebia dos mais diversificados

órgãos/estabelecimentos como: Conselho Tutelar, Escolas Municipais e Estaduais,

Lares Abrigados e alguns Serviços de Saúde. O que pretendem da atuação/intervenção

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do psicólogo? Que demandas e dispositivos estavam sendo explicitados a cada

encaminhamento? Em muitos casos, os encaminhamentos constituíam-se como um fim,

como o objetivo-meta da prática de muitos desses profissionais. Encaminhar torna-se

um modo de “resolver” (de passar) o “problema”.

A (re)produção de um empobrecimento nas relações de trabalho e de um esvaziamento

dos espaços de produção coletivos são percebidos com a falta de interlocução entre os

próprios profissionais e de um questionamento de sua prática frente aos projetos do

Estado e da inoperância das políticas públicas em vigor no município. Encaminhar se

desresponsabilizando não só despotencializava a construção de espaços coletivos de

conversação e de produção de redes de atenção como também fortalecia uma

individualização/psicologização das questões. A realidade social, política e econômica

do município bem como as ações e projetos da política municipal junto à população

eram excluídas dos processos de análise dos casos.

Afirmar assim como Heckert e Neves (2007, p.148) o trabalho como ‘exercício de

potência de criação do humano’ é colocarmos à prova experiências, saberes e

prescrições sem estancar o movimento de variabilidade e imprevisibilidade que sustenta

a vida. De algum modo na relação com os pacientes esta variabilidade da vida

comparecia e insistia a uma convocação na criação de novos modos de estar com o

outro, de cuidar. Por certo, que inúmeras vezes, neste exercício de acolhimento da

imprevisibilidade, sem encaixá-las nos registros e códigos prévios de nossos

especialismos, na tentativa de nos sentirmos mais ‘seguros’, percebíamos que também

éramos cuidados.

A insistência da urgente necessidade de desviarmo-nos da prática de encaminhamentos

faz-se questão importante nesta pesquisa. Neste desvio, entendemos que é no entre os

saberes, nas bordas e limites de seus poderes que os saberes têm realmente como

contribuir para a invenção de uma outra saúde e mundo possíveis. Acompanhar os

modos pelos quais temos produzido práticas de cuidado na intercessão Saúde Mental e

Atenção Básica é também estarmos atento ao que estamos fazendo de nós mesmos, de

nossa saúde e do mundo. O que temos chamado de práticas de cuidado? Quando

falamos em práticas de saúde, estamos falando em práticas de cuidado? Quais modos de

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ser, viver e estar no mundo temos produzido com elas e em meio a elas? Que tipo de

vida temos cultivado? Como a temos afirmado?

Se de algum modo percebíamos que a prática de cultivo da vida residia no cultivo de

nossas relações, parece-nos importante explorar a dimensão coletiva de nossa

existência, rompendo com práticas que esvaziam os espaços coletivos e empobrecem a

tessitura de redes de conversação. Desa(fiar) a experiência profissional parece-nos, pois

habitar este plano do entre construindo uma experiência de passagem.

Uma passagem das experiências no campo da formação vividas em Vitória na

Universidade Federal do Espírito Santo, por certo se abria quando de minha chegada na

cidade de Macaé. Sentia-me uma novata a respirar outros ares, outros cheiros, outros

gingados que fulguravam paisagens naquela cidade do norte fluminense. Por vezes

tinham cor de cinza, de saudade entristecida das terras capixabas, por outras pareciam se

abrir para um novo cenário de cores. Como tecer redes com/na cidade? O trabalho de

construção de vínculos de amizade, de trabalho, de compartilhar a vida e experiências

também teria que ser feito à época de minha chegada. Lembro-me aqui de uma linda

mensagem de uma amiga com quem tecia redes poiéticas de amizade no mestrado que

não só indicam a dimensão da feitura do trabalho de pesquisa como do próprio inventar

morada e rede na cidade de Macaé.

querida (...) polvilhar açúcar de baunilha no bolo da vida, suave, levemente

doce, fazendo a sutil diferença que o distingue de um bolo qualquer do

mercado. O nosso, artesanal, sem separar o sabor da feitura do sabor final

(...) 04/11/2008- email eletrônico.

1.6.3 Interferência Três: Fiando a Experiência com/na Cidade

Seguindo as pistas daquela interferência-amiga nos pusemos ao feitio do

bolo. Era mês de maio/08 quando enfim começamos a acompanhar uma das

equipes de saúde mental24 em suas idas e vindas à Comunidade de Nova

Holanda. No primeiro dia participara de uma das atividades que constituem

ferramenta no modo com que as equipes operam no território. Era uma 24 Esta equipe realizando um trabalho conjunto a duas equipes de referência do programa saúde da família era composta por uma psicóloga, uma terapeuta ocupacional e uma assistente social.

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oficina. Crianças e familiares estavam à espera. Pareciam ansiosos com a

chegada dos profissionais. Maíra, fonaudióloga, que fazia parte da equipe

havia se despedido de muitos deles dias antes. Estava saindo do programa

de saúde mental para fazer morada noutro lugar. Em meio a um certo

entristecimento, Marta parecia não ver mais sentido para suas idas ao

grupo. Achava que o filho caçula que a acompanhava, necessitava de uma

fono e era somente por esse motivo que se punha a ir ao anexo do posto de

saúde na rua 03 com Gilberto (seu caçula) e outros dois filhos. A saída de

Maíra mexia com os contornos da oficina, com os sentidos atribuídos a ela,

e com os contornos da própria equipe de saúde mental. É que

costumeiramente dividiam crianças e familiares em dois grupos e, por

conseguinte, dividiam-se profissionais também. Dois para lá, dois para cá...

Ops! Mas como fazer as divisões agora?Tomada pela força dos

acontecimentos pônho-me à invenção de um corpo pesquisador-trabalhador

nessa equipe. Entro na divisão dos dois. E já não estamos mais divididos

pela dicotomia: pesquisador de um lado, trabalhador de outro. Vou com

Laura para o grupo das crianças. A respiração de todos parece mais

aliviada quando escuto de alguém: “Nem bem chegou e já está colocando a

mão na massa!” Surpreendidos parecíamos todos pelo rico

embaralhamento que o ‘fazer com’ nos provocava, pois uma certa divisão

que os próprios participantes fazem das ‘especialidades’ dos profissionais

comparecia na fala de Marta.Ela continua a vir mesmo dizendo que não

voltaria mais. Talvez porque outros sentidos comecem a ser construídos

quando se questiona sobre os motivos que a levam às oficinas. Fico atenta a

este movimento. Marta que de costume vinha muito desarrumada, com os

cabelos desalinhados e sem ânimo, chega de outro jeito. Parecia estar

dando outros tons à sua vida. Tingindo os cabelos e arrumando-se toda, ela

aproveitara o tempo naquele anexo para marcar consulta com o dentista.

Queria cuidar dos dentes. Queria cuidar de si. Já era junho/08. Época de

festa de São João. Sem divisão de dois já éramos muitos em uma oficina de

bandeirinhas. Cuidando de si, Marta parecia abrir-se para o cuidado dos

filhos. Já coloriam juntos os cordões emaranhados nas pilastras do posto.

Dava gosto de provar. Bolo com gosto de alegria. Marta fala da felicidade

em estar mais próxima dos filhos e de que sente que pode viver isso em casa

com eles. Em meio às brincadeiras, comes e bebes do dia da festa, chega

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com os cabelos escovados. Sorrindo afirmava:”Daqui pra frente vai ser

sempre assim”. A oficina fazia-se como lugar de passagem para outras

Martas possíveis.

(Diário de Bordo, 20 de Junho de 2008)

***

Julho/08. Época de festa da cidade de Macaé. Continuávamos o feitio do

bolo. De algum modo já experimentávamos sabores no próprio fazer-

artesanal. Em nossas idas à Comunidade de Nova Holanda

costumávamos nos encontrar em um lugar, que poderíamos dizer,

estratégico. Usamos esta palavra, porque em muito ela nos fala das

múltiplas imagens que teciam a paisagem de nosso ponto de encontro,

apontando para uma certa leitura da cidade de Macaé.

Onde nos encontramos? No Braille. Este nome, dado ao nosso ponto de

encontro, surgira em função de uma estátua de bronze que,

homenageando Louis Braille25, fora construída à época de inauguração

do novo prédio da prefeitura. O prédio, com suas linhas retas que

formavam vários quadrantes verticais de vidros fumês dando a

impressão de um estilo moderno, contrastava com a paisagem que se

seguia por trás daquela estátua. As imagens eram animadas pelo porto

dos pescadores. Nos momentos em que esperava algumas pessoas da

equipe para partirmos, percebia que o que até então parecia uma

imagem estática da paisagem, sempre igual, não era bem assim. A

paisagem ganhava vida. Animada pelo porto dos pescadores os

movimentos teciam novas e infinitas composições naquela área de foz. O

rio desembocando no mar era agitado pela mudança na posição do

25 Louis Braille é inventor do Alfabeto de leitura com o tato para cegos, conhecido mundialmente como Braille. Após perder a visão aos três anos de idade em um acidente com uma sovela na oficina de seu pai, ingressa quatro anos depois, no Instituto de Cegos de Paris. Em 1827, então com dezoito anos, tornou-se professor desse instituto e reinventa um método de leitura para cegos a partir de um sistema de pontos em relevo. Nesta ocasião ouvira falar de um sistema de pontos e buracos inventado por um oficial para ler mensagens durante a noite em lugares onde seria perigoso acender a luz. Em 1829, publicou o seu método. O sistema Braille é um alfabeto convencional cujos caracteres se indicam por pontos em relevo, o deficiente visual distingue por meio do tato. A partir dos seis pontos salientes, é possível fazer 63 combinações que podem representar letras simples e acentuadas, pontuações, algarismos, sinais algébricos e notas musicais. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Braille. Acesso em 04/04/09.

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vento, do cruzar dos barcos, das altas e baixas da maré que faziam

aparecer e esconder as pedras de pouso das gaivotas e albatrozes. À

beira do cais víamos um símbolo BR nas cores verde, amarelo e branco,

indicando a presença de um posto de abastecimento da Petrobrás.

(Diário de Bordo, 17 de julho de 2008)

Inserido no processo de reestruturação econômica nacional, o estado do Rio de Janeiro,

nas últimas décadas, vem passando por transformações em sua estrutura política,

econômica, demográfica e territorial. Nesse contexto, o Norte Fluminense vem

despontando como região privilegiada, condição essa garantida pela atividade

petrolífera da Bacia de Campos.

A crise na atividade canavieira, a partir dos anos 1970, gera a estagnação do

desenvolvimento econômico dessa Região. A partir das primeiras descobertas de poços

de petróleo na Bacia de Campos, a Petrobras instala, na cidade de Macaé, uma base de

operações, fazendo com que essa cidade passe a sediar também inúmeras outras

empresas. Até então, Macaé tinha na pesca sua principal atividade sócio-econômica.

Com a instalação da base petroleira no município, no entanto, a cidade inicia um

processo de intensas transformações, tanto em termos populacionais como de tecido

urbano. As embarcações, já não mais pesqueiras, que cruzam a foz do Rio Macaé em

direção às plataformas da Petrobrás não constituem a única mudança produzida pela

atividade petrolífera na paisagem da região Norte do Estado do Rio de Janeiro.

O município tornou-se referência na produção petrolífera, e passou a ser conhecido

como uma espécie de novo “Eldorado” rótulo que em suas implicações, passou a atrair

um grande número de migrantes em busca de trabalho. Aqueles migrantes com

formação especializada para trabalhar no ramo do petróleo ou nas atividades

diretamente ligadas a ele conseguem emprego, recebem altos salários e estimulam um

processo de especulação imobiliária no vetor de expansão sul do município; enquanto

aqueles migrantes tecnicamente desqualificados, em sua maioria, ficam subempregados

e engrossam os bolsões de pobreza que crescem em ritmo acelerado no setor de

expansão norte, principalmente. (Paganoto, F. 2008).

O crescimento da malha urbana da cidade, baseada na expansão destes dois vetores

principais, norte e sul, evidencia um processo de segregação espacial e de crescente

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favelização, violência e tráfico de drogas; que têm trazido uma dimensão sócio-política

significativa na intervenção dos processos de promoção de saúde.

A chegada na cidade, para muitos que vinham transferidos pela Petrobrás, era

desanimadora. A experiência da mudança tem, por vezes, seu movimento cristalizado

em uma forma de vivência desconfortável e de certo modo raivosa por parte dos

trabalhadores e de suas famílias no próprio processo de desfazer-se de vínculos

familiares, profissionais, de amizade e conectividade com as cidades de origem. Muitos,

mesmo depois de anos, não conseguem construir laços com a cidade. Apesar de uma

grande maioria de moradores serem de outros estados há uma imensa dificuldade de

construção de laços afetivos entre eles mesmos. Os macaenses vivem uma certa

nostalgia falando da vida tranqüila que perderam, sentem-se até violentados pelas

mudanças radicais no que tange a aspectos sociais, políticos, econômicos, estruturais e

culturais pelos quais o município passa com a chegada da Petrobrás. Segundo Paganoto

(2008) as piores perspectivas em suas cidades de origem, fazem com que os migrantes

sem qualificação profissional específica, permaneçam em Macaé, fato incentivado, por

uma rede assistencialista que se torna mais visível nos períodos eleitorais26.

A cidade aqui, não mais corria emoldurada pela janela do carro, quando de nosso

passeio com Idalina na saída daquele hospital psiquiátrico. Mas uma experiência de

interrogá-la quanto aos modos como a construimos ainda se fazia presente em Macaé.

Ao acessarmos e sermos acessados pelas intensidades de nossa memória afetiva na

construção deste trabalho percebíamos que o exercício de fiá-lo produzia-se, sobretudo,

quando o experimentávamos em suas interferências, suas ressonâncias. De algum modo,

a trama dessa tecedura tinha sua feitura nos sons da voz gargalhada de Lourdes e seu

olhar zombeteiro desconcertante, na força dos inúmeros caldos de mar que tomávamos

com Idalina, na vida tingida de cores nos cabelos de Marta, no vôo das gaivotas à beira

do cais, no encontro de rio e mar.

26 Uma reportagem do jornal do Brasil de 08/02/2006 com o título – Macaé: Um poço de desigualdade - traz o relato de um Líder de uma comunidade de baixa renda, Jorge Luiz de Almeida. Este conta que, em 2004, às vésperas da última eleição para prefeito, um mutirão que incluiu vereadores e representantes da própria administração municipal garantiu não só títulos de propriedade para moradores irregulares de uma área de manguezal, mas também uma farta – porém, temporária – distribuição de cestas básicas. Neste processo, cerca de um mês depois, já se via contornos mais consistentes da favela Nova Esperança (erguida em uma área de manguezal) vizinha à Nova Holanda.

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De certa maneira, já apostávamos naquilo que nos sustenta em nossa tecedura de redes,

de relações: a dimensão coletiva que nos move como prática de cultivo e cuidado de nós

e do que fazemos juntos. Podíamos experimentar nestas interferências sons, cheiros e

gostos que nos moviam a selar nossos cavalos para uma partida que tece seus caminhos

nos encontros entre Saúde Mental e Atenção Básica.

1.6.3.1 Um pouco mais da cidade: Tecendo entradas na rede de saúde de Macaé

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre

as coisas, inter-ser, intermezzo. (...) o rizoma é aliança, unicamente

aliança. (...) Entre as coisas não designa uma correlação localizável que

vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular,

um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início

nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio.

Gilles Deleuze e Félix Guattari

As viagens de nosso percurso de pesquisa imbricavam-se a tantas outras feitas a Niterói.

Cursando o mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF), foi através dele que

um agenciamento com/na rede de saúde de Macaé pode ser operado. Conhecíamos,

então, o Coordenador do Programa de Saúde Mental de Macaé que também fizera o

mestrado em Psicologia da UFF. Pensar outros espaços-tempo para esta conexão foi

primordial para produzir alianças que possibilitassem uma entrada na rede. Para nós este

fazer rede-conexão estava agenciado com uma proposta de trabalho que desse um tom

metodológico (modo de fazer) à nossa dissertação, posto que é por uma

problematização do como fazer que construíamos cartografias do que se passa entre

Saúde Mental e Atenção Básica.

Começamos a participar de algumas ‘reuniões de rede’ (nome dado pelos próprios

trabalhadores) das quais participavam os diversos dispositivos de saúde mental como

CAPS, CAPSad, CAPSi), o grupo da saúde mental atuante na atenção básica, a atenção

Básica com o PSF, dentre outros. Os debates acalorados do grupo repercutem como

interferências para pensarmos a produção de tessituras da/na rede de atenção à saúde.

Ficamos atentos aos movimentos do debate que trazem em seu bojo uma discussão

sobre a forma-lidade e a informa-lidade da rede. Algumas falas que emergem no grupo

marcam essa discussão:

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“Porque a rede formal não funciona?” “Se eu ligar lá (serviço de outro programa) pelos trâmites normais nada funciona. Não

consigo encaminhar o paciente, não consigo nem informação direito. Quando ligo para

algum serviço em que conheço os profissionais é diferente.”

“Isso é um absurdo! As coisas deveriam acontecer independentemente de conhecermos

alguém ou não nos outros lugares”.

(Diário de Bordo, 27 de fevereiro de 2008)

Os trabalhadores parecem referir-se à rede formal como uma relação de suporte que

deve ocorrer entre os demais serviços/dispositivos de saúde e destes com outros

programas. O debate sobre a formalidade e informalidade da/na rede é tensionado pelo

grupo discutindo-se a importância do estabelecimento de vínculos informais para que a

rede funcione. Os sentidos atribuídos à informalidade perpassam desde a construção de

vínculos afetivos e efetivos até o questionamento quanto à forma de organização dos

processos de referência e contra-referência.

“Os programas se burrocratizam”, mas “a gente cria um sistema molecular, é... manda

o moleque chamar”.

“É o vínculo que faz a rede funcionar”. “É na informalidade que a rede funciona”

(Diário de Bordo, 27 de fevereiro de 2008)

Nesta discussão, seguimos as pistas de Kastrup (2003) quando a autora nos aponta que a

rede, cujo conceito é oriundo da topologia27, tem como único elemento constitutivo o

nó.

Pouco importam suas dimensões. Pode-se aumentá-la ou diminuí-la sem que

perca suas características de rede, pois ela não é definida por sua forma, por

27 Ao contrário da geometria, a topologia focaliza-se no objeto estudado desconsiderando uma série de fatores como: medidas de largura, altura ou profundidade. Atendo-se às propriedades mais simples e como Kastrup (2003) nos coloca, mais dramáticas, a topologia não necessita recorrer à álgebra como o faz a geometria. Seus objetos são ditos de geometria variável. Podemos tomar, segundo a autora, a rede como um desses objetos.

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seus limites extremos, mas por suas conexões, por seus pontos de

convergência e de bifurcação. Por isso a rede deve ser entendida com base

numa lógica das conexões. (KASTRUP, 2003, p.53)

Atentarmos para essa lógica requer percebermos que as redes não podem ser

caracterizadas como uma totalidade fechada, dotada de superfície e contornos definidos,

mas sim como um todo aberto, sempre capaz de crescer e inventar-se através de seus

nós, por todos os lados e em todas as direções.

Essa movimentação do debate parece colocar em questão não só a

formalidade/informalidade da rede, mas os arranjos que vão sendo configurados quando

podemos pensar a rede instituída indissociada daquilo que nela e através dela produz

movimento. E parece-nos que aí falamos da tessitura de uma rede instituinte aquecida

nos/pelos encontros-agenciamentos que fazemos.

Se entre as figuras topológicas a rede destaca-se por ser vazada, composta de linhas e

não de formas espaciais, podemos então afirmar este movimento instituinte com o

primado das linhas sobre a forma. Pensar que o aquecimento da rede se dá por suas

conexões é afirmar uma prática ética de trabalho de contágio mútuo, de aliança. Talvez

a isso devemos nos questionar sobre os processos de referência e contra referência que

fazemos estando atentos ao modo como os fazemos.

As conexões e agenciamentos provocam modificações nas linhas conectadas,

imprimindo-lhe novas direções, condicionando, sem determinar conexões

futuras. É um princípio que se ergue contra o princípio de causalidade, contra

o determinismo e a previsibilidade. (KASTRUP, 2003, p. 54).

Rompendo com uma relação de causa-efeito e um regime temporal que se baseia apenas

em um tempo cronológico, podemos afirmar uma relação de conexão que se estabelece

em uma tensão permanente entre o movimento de criação de formas e organizações e de

desmanchamento dessas mesmas formas, entendendo-as em seu caráter contingente e

temporário. Talvez nisso resida nossos sofrimentos e questionamentos de uma ‘rede

formal que não funciona’, quando nos prendemos a um regime identitário das formas,

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sem atentar-nos para um plano ontológico, pré-subjetivo e pré-objetivo da rede como

multiplicidade e anterior ao plano das formas e das conexões efetivas que fazemos.

As discussões suscitadas produzem interferências na pesquisa que, inicia seus percursos

de viagem interessada neste movimento de construção e aquecimento de redes. Nesta

direção buscamos pensar os paradoxos do SUS e suas experimentações na construção

de um fazer em rede/em tessitura, quando sabemos que este se constitui também como

um de nossos maiores desafios.

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CAPÍTULO II

Habitando o plano paradoxal de constituição do SUS: Reforma Psiquiátrica e

Reforma Sanitária no Brasil

As décadas de 60, 70 e 80 marcam a emergência de diversos movimentos políticos e

sociais, no Brasil, que combatendo o Estado autoritário – característica do período da

ditadura militar -, lutam pela democratização de nosso país. Diferentes movimentos

marcam essas décadas, não somente no Brasil, mas na América Latina, que tinham

como caráter predominante a resistência ao autoritarismo de Estado e seus efeitos

deletérios nos modos e condições de existência, e foram conhecidos mundo afora como

contracultura. Embora nosso foco maior seja dado aos movimentos de reforma no

campo da saúde, não podemos negligenciar a potência que os Movimentos: Feminista,

Gay, Hippie, o Tropicalismo e outros Movimentos organizados de luta contra a ditadura

militar trouxeram para a composição de um ‘experimentalismo político’ (Benevides de

Barros; Passos, 2005a, p. 562) dinamizado por forças de invenção e contestação da

ordem instituída.

No campo da saúde, podemos destacar dois movimentos que produziam suas críticas

com base na ineficiência da assistência pública e no caráter privatista das políticas do

governo central, sendo eles: o Movimento da Reforma Sanitária e da Reforma

Psiquiátrica. Ao tentar compreender o período que marca a emergência do movimento

sanitarista brasileiro, Campos (2007) destaca alguns fenômenos históricos relevantes

que nos permitem percebê-lo como um processo de indução e construção de uma outra

relação entre as políticas públicas e o Estado, em seu papel regulamentador.

O período da ditadura militar intensificou a separação entre o campo da assistência

médica e o da saúde pública bem como um sucateamento do setor público associado às

ações sanitárias. Nesta configuração, são eleitos pelo Estado os setores privados -

nacional e internacional - como grandes prestadores de serviços: assistenciais curativos

e de insumos; e de equipamentos e medicamentos, respectivamente. Segundo Mendes

(1995) o modelo denominado médico assistencial privatista28 que possui, entre algumas

28 Os anos 1950 têm como característica a industrialização e com ela o início da “teoria do bolo”: primeiro o desenvolvimento econômico para o grande salto social. A ambigüidade entre contenção e

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de suas características: a cobertura da assistência previdenciária e o privilégio de uma

prática curativa, médica, individual, especializada e assistencialista; ganha força durante

os governos militares. A expansão do setor privado29 favorece a criação de um grande

complexo médico-industrial que tem o hospital como ponto de apoio privilegiado.

Dentre os efeitos dessa política, podemos citar a produção de uma “indústria da

loucura” - na qual a ‘doença mental’ é transformada em objeto de lucro -, a precarização

dos serviços públicos de assistência, a proliferação de hospitais psiquiátricos regionais,

a cronificação da clientela internada, entre outros (Amarante, 1995a; Resende, 2001).

Dentro dessa lógica privatista a saúde constituía-se como um bem de consumo com

“valor de troca” e as intervenções médicas assumiam caráter de mercadoria.

Caminhar por uma política de saúde que apontava uma dicotomia

institucional entre assistência médica e saúde pública (desde o final de 40 já

era evidente uma inversão dos gastos públicos, favorecendo a primeira como

uma mercantilização da assistência médica) e que apresentava uma ação

pontual e desordenada das instituições de saúde pública – em contraste por

gerar, opostamente, uma contundente crítica ao modelo adotado30.(Merhy,

1997, p. 211).

concessão é a marca dos governantes do período – de Getúlio Vargas a Juscelino Kubitschek. Dentre as características de ambos, esteve a criação, organização e extensão da assistência médica previdenciária – apenas aos trabalhadores e seus dependentes, empregados de empresas públicas ou privadas, mas cada vez mais às custas do Estado e não dos empregadores. Isto nos mostra, claramente, a dicotomia da medicina e saúde pública, uma para quem paga ou é empregado e outra apenas para manter a capacidade produtiva, e então para todos os sem posses. Neste período ainda não existia no Brasil uma estrutura sanitária permanente e descentralizada. Segundo Merhy (1997), a saúde pública era caracterizada pelo modelo do “sanitarismo-campanhista”, que teve na polícia sanitária e nas campanhas de saúde seus principais meios de efetivação, dirigindo-se, prioritariamente, ao combate às doenças de massa – pestilenciais (caracterizadas por epidemias de tifo, varíola, febre amarela etc). Esse modelo foi marcado pelo saneamento dos espaços urbanos e de circulação de mercadorias, pelo estilo repressivo das decisões e pela divisão entre saúde pública (direcionada às ações coletivas) e atenção médica (direcionada aos indivíduos trabalhadores isoladamente). 29 Entre 1965 e 1970 saltou de 14 mil para 30 mil a clientela das instituições privadas remuneradas pelo poder público, não havendo nenhum aumento da população internada diretamente nos hospitais públicos (Resende 1987 apud Tenório 2002). 30 As ações, no campo da saúde pública, adotadas pelo modelo do sanitarismo-campanhista eram alvo de críticas na 3ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1963. Ficam expressos os problemas em relação à concentração política, administrativa e geográfica dos dispositivos assistenciais, deixando grandes contingentes populacionais desassistidos. Discutia-se a necessidade de expansão da cobertura assistencial. A palavra “rede” é mencionada nesta CNS – rede hospitalar nacional, rede de ambulatórios, rede nosocomial, rede básica – todavia, ainda referia-se a um conjunto de serviços com características comuns. (Brasil, 1992). Sua concepção é marcada como um meio de organização do espaço-tempo, de uma melhor disposição dos recursos sobre o espaço territorial que, aliada a necessidade de contenção de gastos, traz para a proposição de expansão da cobertura, o entendimento de uma rede básica como

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Durante a década de 1970, com o fim do ‘milagre econômico’, evidenciou-se que o

modelo de desenvolvimento adotado pelo país, pautado na concentração de renda, trazia

enorme malefício e mostrava claramente a desassistência à saúde da população. Com a

diminuição do ritmo de obras, que empregavam um grande contingente de assalariados,

constatou-se que o modelo de assistência à saúde, além de ineficiente, era também

excludente, ao contemplar apenas os trabalhadores de “carteira assinada”, por meio do

INAMPS - Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social. (Luz,

1991).

Alguns autores31 apontam para o desenvolvimento de projetos com um sentido contra-

hegemônico face aos interesses mercantilistas e corporativos do modelo neoliberal. A

importância do movimento sanitário, em suas articulações com outros movimentos

sociais nas décadas de 60, 70 e 80, produz interferências na reconfiguração do padrão de

intervenção estatal brasileiro no campo dos direitos humanos e na saúde. As lutas pela

democratização da sociedade brasileira que aconteciam em meio a movimentos de

resistência à ditadura militar exprimem-se, no campo da saúde, sobretudo, no

Movimento da Reforma Sanitária, a partir do qual foram formulados os princípios de

universalidade, equidade e integralidade da saúde presentes no texto da Constituição de

198832 que culmina com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Essas décadas

são marcadas por lutas que impunham não somente a recolocação das funções e deveres

do Estado, como também dos ‘direitos dos homens’ (Benevides de Barros; Passos,

2005a), haja vista a busca pela construção de uma política universal que seja garantida

pelo Estado e de direito de todo cidadão.

atenção mínima e de baixo custo. Apesar das discussões levantadas nessa conferência, a política de saúde acaba tomando outros rumos, uma vez que, com o golpe militar de 1964, os governos priorizam a expansão da assistência com a compra de leitos em hospitais privados. 31 Ler Merhy, E. E.;Queiroz, M. Saúde pública, rede básica e o sistema de saúde brasileiro. Cadernos de Saúde Pública. 1993. p.177-184 e Campos, G. W. S. Reforma da reforma: repensando a saúde. São Paulo: Hucitec.1997. 32 O relatório produzido na VIII Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em março de 1986, serviu de referência para os constituintes que elaboraram a Constituição de 1988. Nesta conferência composta pela participação de diversos setores organizados da sociedade e na qual houve um consenso de que para o setor da saúde no Brasil não era suficiente uma mera reforma administrativa e financeira, mas sim uma mudança em todo o arcabouço jurídico-institucional vigente, que contemplasse a ampliação do conceito de saúde segundo os preceitos da reforma sanitária.

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Campos (2007) ressalta que a constituição e implementação deste sistema acontecem

em anos marcados por uma crise global das políticas públicas do sistema de bem-estar

em países capitalistas e à derrocada do comunismo face ao crescimento e fortalecimento

mundial do neoliberalismo. Embora muitos estudiosos acreditem que o SUS tem sido

uma política favorável à construção da justiça social e do bem-estar entre os brasileiros,

também apontam para os problemas e impasses dessa política designando-a como uma

reforma “incompleta”, haja vista, a heterogeneidade de sua implantação, a desigualdade

no atendimento às necessidades e na utilização de serviços de saúde, problemas de

financiamento, da gestão do sistema de trabalho, entre outros33. O sentido de reforma

incompleta, muitas vezes, parece-nos fazer crer em um SUS como obra mal acabada.

Todavia, aqui destacamos o sentido positivo de pensarmos o SUS como uma obra

aberta, entendendo que é em sua dimensão de abertura, de conjugação e intercessão com

distintos movimentos e atores sociais que podemos não só colocar em questão os

dispositivos que inventamos, mas, sobretudo, potencializarmos o SUS em sua radical

vinculação com o movimento social.

Se nas décadas de 70 e 80, nosso país vivia uma crise do modelo desenvolvimentista e

do regime militar, sofrendo todas as conseqüências administrativas, financeiras e sociais

do mesmo; Neves (2009) sinaliza para mais um agravante: “a eleição de um novo

presidente, Fernando Collor de Mello (1990/92), que assume com um programa de

orientação claramente neoliberal” (p.505). Insistindo com o pensamento da autora, de

fato, percebemos que o processo de construção do SUS como Política de Estado foi, e

ainda é, produzido no contra-fluxo da história.

Em uma análise dos fragmentos de discursos34 de lideranças do governo do presidente

Fernando Henrique Cardoso (FHC), Merhy (et al.1997), apontam como cerne da

reforma do Estado brasileiro um processo que procura seguir os ditames neoliberais de

um “Estado Mínimo” para as questões sociais e um “Estado Máximo” para o livre fluxo

do capital financeiro globalizado, esvaziando a lógica de um Estado prestador para a de

33 Ver mais em Vasconcelos, Cipriano M. Paradoxos da mudança no SUS. Campinas/SP, (tese de doutorado apresentada ao Departamento de Medicina Preventiva e Social/FCM/UNICAMP); 2005. 34 Mapeados a partir das propostas do Ministério da Reforma Administrativa do Governo Federal (MARE) e da Norma Operacional Básica NOB-96, através das quais o Ministério da Saúde tem procurado regulamentar o funcionamento do setor.

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um Estado regulador. Como os autores evidenciam, embora o significado da

privatização do setor saúde não acompanhe a desestatização que os setores empresariais

imprimem no parque industrial ou de infra-estrutura35, é importante ressaltar, o impacto

de propostas intermediárias produzidas pelo governo federal no nível do imaginário e da

operacionalização de um certo modo de se produzir saúde, que procura mostrar como

‘necessária e inevitável’ a desmontagem do Estado que garante os direitos sociais. Para

tanto, argumentam que não seria possível considerar todos os brasileiros como cidadãos

idênticos.

Assim, encarar, os brasileiros como cidadãos de diferentes níveis e matizes

tem permitido ao Governo Federal propor uma reforma no setor saúde que

procura combinar estratégias estatizantes com privatizantes, dentro de uma

mistura de conveniência de acesso aos serviços por direito e/ou compra no

mercado. Aliás, situação totalmente coerente com o que as Agências

Internacionais (por exemplo o Banco Mundial) têm proposto aos países da

América Latina. Argumentam que, já não dá para tratar todas as pessoas de

maneira igual, temos de garantir nos serviços públicos, portanto, uma cesta

mínima de serviços de saúde, coerente com o nível dos brasileiros tipo ‘uma

estrela’. Aos brasileiros tipo “três estrelas” ou mais, ofertam-se outros

produtos que se compram no mercado, tanto em alguns serviços públicos

quanto privados. (MERHY et al 1997, p.13)

Dialogando com Campos (2007), em um de seus ensaios36, seguimos as pistas do autor

ao problematizar os modos de se fazer o processo de saúde no campo das políticas

públicas quando nos interroga: “Como decifrar a polissemia política do sistema de

35 O governo de Fernando Henrique Cardoso foi marcado pela privatização de empresas estatais, como: Embraer, Telebrás, Vale do Rio Doce e outras estatais. Na elaboração de um Plano Diretor da Reforma do Estado, um acordo que priorizaria o investimento em carreiras estratégicas para a gestão do setor público residia na aprovação de emendas que facilitaram a entrada de empresas estrangeiras no Brasil e a flexibilização do monopólio de várias empresas, como a Petrobrás, Telebrás e etc. Evidencia-se também que a ausência de inovação no modo de se enfrentar a questão social no Brasil continua sendo determinada pelo traço característico do país, herança da era desenvolvimentista que se afirma atualmente buscar superar, de contrapor política econômica à política social. Vale dizer, continua ainda prevalecendo o ditame absoluto da economia sobre as formas de o país gerir a questão da pobreza e das desigualdades sociais. Ver em: COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999. (editado em fev. 2000). 36 Campos, Gastão Wagner de Souza. O SUS entre a tradição dos Sistemas Nacionais e o modo liberal-privado para organizar o cuidado à saúde. Cienc. Saúde coletiva. 2007, v. 12, suppl., pp.1865-1874.

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saúde brasileiro realmente existente e, a partir desta compreensão reconstruir o bloco

histórico em defesa do SUS?”.

Neves (2009) nos ajuda a pensar que um dos mais importantes e difíceis desafios seja o

de habitar o plano paradoxal de constituição do próprio SUS, problematizando: o que

nos modos de funcionamento do SUS se hibridiza com uma ‘ordem liberal-privatista a

se manifestar como resistência permanente ao SUS, estando dentro do SUS e, ao mesmo

tempo, dentro do imaginário dominante dessa nossa época de globalização do

capitalismo.” (Campos, 2007, p.1870). De algum modo, Neves nos ajuda a perceber que

a habitação deste plano paradoxal não se constitui em uma suposta busca pelo

‘deciframento’ da polissemia política do SUS que nos trouxesse a possibilidade de

‘refundá-lo’. Afirmarmos o SUS como obra aberta implica-nos a apreender dessa

polissemia os movimentos instituintes que oxigenam o SUS como potência de

transformação e invenção.

Campos (2007) nos alerta que a resistência permanente ao SUS feita pela oposição

liberal-conservadora desloca-se da “discussão de seus princípios, em torno de grandes

diretrizes, para elementos pragmáticos” (pg.1869) de nossos modos de fazer e implantar

o acesso universal a uma rede que sustente a integralidade da assistência. Neste

deslocamento buscam operar no cotidiano dos serviços – a cada programa, projeto,

modelo de gestão ou de atenção - meios de “atender” a estes princípios segundo

interesses corporativos e valores capitalistas de mercado.

Como nos indica Neves (2009), é necessário tanto pensarmos a construção do SUS em

sua tensa relação com a máquina de Estado/governo, como também, a consolidação de

seus princípios de universalidade, equidade e integralidade das práticas de atenção e

gestão no campo da saúde em meio a um contexto contemporâneo marcado por uma

nova relação entre poder e vida.

2.1 O Estado Moderno na composição do plano de poder: As artes de governar ou

o governo ‘das coisas’

Foucault (1979c) nos ajuda a interrogar acerca dessa nova relação entre poder e vida e

seus desdobramentos no campo da saúde quando pensamos a construção do SUS em sua

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tensa relação com a máquina de Estado/governo. Neste sentido, o autor irá nos apontar

para uma importante construção da arte de governar que desenhará e sustentará o Estado

moderno entre o século XVI e o início do século XIX. Evidencia em suas análises, não

só o contraste entre duas tecnologias distintas do poder no século XVI que se rivalizam,

mas, sobretudo, uma modulação de uma sociedade tradicional marcada por um modo de

governar soberano para uma sociedade moderna dita disciplinar. Para tanto, marca uma

diferença entre os modos de existência produzidos nestas sociedades, isto é, entre o

governo do soberano e uma ‘arte de governar’ que não se apresenta mais sob um regime

do Príncipe37, mas se dá, principalmente, sobre o que se exerce e como se exerce o

poder.

Os cursos que o autor apresenta no Collège de France, na década de 70, nos indica uma

torção da teoria política tradicional que coloca o Estado como o lócus de emanação do

poder ao propor o conceito de governamentalidade38. Ressalta o desenvolvimento de

uma série de tratados a partir do século XVI até o final do século XVIII que não se

apresentam mais como “conselhos ao príncipe como modo de se comportar, exercer o

poder, de ser aceito e respeitado pelos súditos; conselhos para amar e obedecer a Deus,

introduzir na cidade dos homens a lei de Deus, etc”. (Foucault, 1979d, p.277), mas sim

como arte de governar. O problema de como ser governado, até que ponto, por quem,

com que método e objetivo são questões intensificadas no encontro de dois

movimentos39. Por um lado um movimento de concentração estatal em um contexto de

instauração dos grandes Estados territoriais (processo de superação da estrutura feudal)

e por outro lado, um movimento de dispersão e dissidência religiosa com a Reforma e a

37Para Foucault (1979c) a teoria da soberania está vinculada a uma forma de poder que se exerce muito mais sobre a terra e seus produtos do que sobre os corpos e seus atos, estando sua extração e apropriação ligadas ao poder dos bens e riquezas e não do trabalho. Fato que possibilita fundamentar o poder na existência física do soberano, cuja ação é de exterioridade e descendente; transcendente e descontínua (p.188) 38 Aula de 1 de fevereiro de 1978. Foucault M. 1979d. A Governamentalidade, p. 277-293. In R Machado (org). Microfísica do Poder. Ed. Graal, Rio de Janeiro. 39 A construção da arte de governar se produz na combinação da razão de Estado e do poder pastoral. O Estado de Governo apropria-se de uma antiga técnica cristã: o poder pastoral redirecionando a meta da salvação para que esta passe a ser neste mundo. Isto envolve uma luta por prosperidade, realização e segurança. O Cristianismo já havia indicado no desenvolvimento desta técnica uma direção individualizante através de rituais de exame de consciência, confissão e arrependimento dos pecados. Todavia, com a formação do Estado moderno o poder pastoral transforma-se em técnica política com a finalidade de reforçar o poderio do Estado.

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Contra-Reforma, que questiona os modos de como ser espiritualmente para se alcançar

a salvação.

A arte que governa sob um regime que não é mais o do Príncipe começa a tomar como

alvo não mais um território com seus súditos, mas um conjunto heterogêneo de ‘coisas’.

Foucault empreende uma análise dos dispositivos de poder que produzem determinadas

formas de viver na formação das sociedades. Para tanto, privilegia em sua analítica do

poder um jogo de luz que compõe um novo diagrama da modernidade. Ao invés de

considerar o poder como propriedade do estado, de uma classe social ou de alguém, o

poder é afirmado como exercício de forças, que cria, incita, normatiza e,

fundamentalmente produz formas de vida. Neste novo diagrama, o exercício do poder se

faz de um modo microfísico, capilar, espalhado pelo tecido social de modo a garantir-

lhe invisibilidade. O que ganha foco (visibilidade) são os objetos sobre os quais o poder

incide. Mas qual é a qualidade da mudança indicada por Foucault nos mecanismos de

poder/saber que nos ajuda a pensar as práticas de atenção e gestão no campo da saúde?

Uma indicação importante parece-nos ser a de uma nova relação entre poder e vida.

A partir de suas pesquisas sobre a história da penalidade, Foucault (1987) percebe a

produção de uma relação específica de poder que incide sobre os corpos daqueles que

estão enclausurados. Se antes, no escravismo e feudalismo, os dispositivos voltavam-se

para uma sociedade de soberania, no capitalismo passam a funcionar a partir de dois

regimes: sociedades disciplinares e sociedades de regulamentação (de controle). Dois

pólos interligados que, embora se distingam, são inseparáveis.

Em suas análises, o autor aponta para a existência de uma tecnologia disciplinar que

chama atenção por não ser exclusiva da prisão, podendo ser encontrada também nas

fábricas, hospitais, exército e escolas. Este regime preconiza a vigilância constante dos

indivíduos através de práticas disciplinares ligando-os a aparelhos cuja função e centro

comum é o de produção, formação e correção para o bom funcionamento da lógica do

capital. Nas sociedades disciplinares, o poder centra-se em um corpo individual onde o

que se tenta é ampliar ou mesmo sugar até o limite as forças úteis para o trabalho. No

espaço fechado, individualizado, os corpos recebem as marcas da classificação,

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combinação e vigilância. O modelo produtivo desenvolvido por Taylor40ao fim do séc.

XIX e início do séc. XX torna evidentes os avanços e utilização desta tecnologia.

Em Microfísica do poder (1979), Roberto Machado nos ajuda a compreender o que a

utilização desta tecnologia objetiva política e economicamente: uma docilização dos

corpos.

tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica

máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de

insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contra-

poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente (p.XVI).

O avanço das técnicas de poder e a ampliação do poder disciplinar fazem surgir uma

nova tecnologia. As instituições que asseguravam a atualização do poder disciplinar e os

modelos, que formatavam o corpo e o espírito dos homens, antes tão claros, tornam-se

difíceis de identificar, já que o controle se exerce em uma modulação rápida e contínua.

Esta nova tecnologia, fundamentada na regulamentação, em práticas de controle,

decretam a crise dos dispositivos de normalização, operando por um controle ao ‘ar

livre’. Já não se precisa, necessariamente, da demarcação de sistemas fechados para a

produção de efeitos individualizantes. O alcance desses efeitos expande-se não mais à

vida de cada homem (em seu corpo e atos), mas para a Vida. As sociedades de controle,

termo utilizado por Deleuze (1996) para designar a lógica de dominação que se

configura na atualidade - produzida no contexto do capitalismo contemporâneo - têm

como alvo a Vida dos homens, o homem enquanto ser vivo.

As tecnologias de regulamentação que se formam em meados do séc. XVIII, não

excluem as tecnologias disciplinares, mas como nos aponta Foucault (1999),

implantam-se nela, integrando-a, e modificando-a parcialmente, para com ela efetivar-

se. Ao contrário de uma extrema individualização, como já descrevemos nos

mecanismos da tecnologia disciplinar; as técnicas de controle produzirão uma

massificação que Foucault (1999) denominará de uma ‘biopolítica da espécie humana’

40 No Taylorismo os investimentos de saber/poder se dão a fim de produzir o homem necessário ao funcionamento da sociedade capitalista. Experimenta-se o controle racional de cada gesto e movimento a ser utilizado na execução de uma tarefa, para estabelecer o tempo ideal a ser perseguido como forma de aumentar a produtividade. As disciplinas aumentariam a força econômica diminuindo, ao mesmo tempo, os perigos políticos. Colocamos aqui que o que está em questão é o tipo de relação de poder que incide sobre o corpo.

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(p.289). Para o autor, não se trata de considerar o indivíduo no detalhe, mas segundo

mecanismos globais que busquem estados globais de equilíbrio e regularidade. Portanto,

podemos chamar essa nova tecnologia de biopolítica ou biopoder e que estará,

principalmente com o nascimento das cidades, voltada para a espécie humana e suas

relações. Todas as condições41 relacionadas à vida dos homens, vistos agora como seres

vivos, são constitutivas do campo de intervenção e controle das relações de poder.

Há toda uma engenhosidade e produção de inteligências diversas na modulação das

tecnologias de poder para construir formas de controle cada vez menos localizáveis,

sutis e perspicazes. Neves (1997) nos fala do auge desse complexo funcionamento

capitalista que trabalha no paradoxo produzindo modelos que estão a todo o momento

em mudança.

Uma engenhosidade das sociedades de controle é operar por um tipo de

controle que nunca destrói as coisas completamente, mas ao contrário não as

deixa jamais terminar. (...) nas sociedades de controle os moldes não chegam

nunca a se constituir totalmente. Transformam-se continuamente e

rapidamente em outros moldes, impedindo a identificação dos modelos de

moldagem. (NEVES, 1997, p. 86)

Rolnik (2003) nos aponta que a operação investida pelo capitalismo contemporâneo de

extrair fórmulas de criação da vida em suas diferentes manifestações não é realizada

somente na vida biológica, mas igualmente, na vida subjetiva. Vida na qual se produz o

sentimento de si e de um território de existência, configurado por jeitos de ser, amar,

sentir, cuidar, etc. A autora nos alerta que nesta exploração invisível o estatuto de

potência criadora é intrinsecamente marcado por uma ambigüidade, e torna-se a

principal matéria prima do modo de produção neocapitalista. A fabricação de modos de

subjetivação singulares não se sustenta efetivamente como modo de expandir a vida,

mas sim de expandir o capital que cria modos de existência

41 Percebemos que o desenvolvimento desta nova tecnologia é marcado por problemáticas de ordem econômica e política bem como por um conjunto de problemas relacionados à natalidade, mortalidade, fecundidade, reprodução, longevidade, incapacidade biológica, efeitos dos meios geográfico e hidrográfico, etc. Se o séc. XVIII traz como desafios as endemias (doenças de maior dificuldade de extirpação) cujos os efeitos recaem sobre a produção com a diminuição das forças e do tempo de trabalho e redução dos lucros; o sec. XIX - cujo campo de atuação do biopoder encontra-se relacionado ao início do processo de industrialização – terá como alvo a população como uma das maiores preocupações do sistema capitalista.

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para serem reproduzidos, separados de sua relação com a vida, reificados e

transformados em mercadoria: clones fabricados em massa, comercializados

como ‘identidades prêt-à-porter’(...) Na reinvenção contemporânea do

capitalismo, a distância entre produção e consumo desaparece: o próprio

consumidor torna-se a matéria-prima e o produto de sua maquinação”.

(ROLNIK, 2003, p.208)

Seguindo as pistas de Benevides e Passos (2005a), nos indagamos: por que destacarmos

o lugar do Estado moderno na composição do plano de poder quando já não pensamos

mais em uma centralidade e sim em uma dispersão do poder, no plano das ‘artes de

governar’?

Diferente da descontinuidade do exercício do poder soberano, não há mais uma

distância entre quem exerce o poder e quem o sofre. Por certo, o Estado não possui mais

o lócus de centro do poder, todavia ainda permanece como um dos pontos de referência

na constituição da governamentalidade.

As formas de governo, nas quais Foucault destaca: o governo de si mesmo (que diz

respeito à moral); o governo da família (que diz respeito à economia) e a ciência de bem

governar o Estado (que diz respeito à política) se cruzam e imbricam-se umas às outras

produzindo um plano multifocalizado, complexo e contínuo. No entanto, Deleuze, em

uma leitura de Foucault, nos indica que o que ocorreu no Ocidente foi a

governamentalização do Estado, ou seja, a captura dentro da máquina do Estado das

práticas de governo exteriores a ela.

O que Foucault exprime dizendo que o governo tem primazia em relação ao

Estado, se entendermos por “governo” o poder de afetar sobre todos os

aspectos (governar as crianças, as almas, os doentes, uma família...). Se

procurarmos, a partir daí, definir o caráter mais geral da instituição, seja o

Estado ou outra, tenderíamos a concluir que ele consiste em organizar as

supostas relações poder-governo, que são relações moleculares ou

“microfísicas”, em torno de uma instância molar: “o” Soberano, ou “a” Lei,

no Estado, o Pai, na família, o Dinheiro, o Ouro ou o Dólar no mercado, Deus

na religião, “o” Sexo na instituição sexual. (DELEUZE, 1998, p.84, grifos

seus).

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Para o governo político, Benevides e Passos (2005a) nos apontam que, em um regime

moderno das ‘artes de governar’, temos uma inversão da série que partia da centralidade

do Estado. Neste sentido,

o governo político se faz na referência ao Estado em sua relação com a

dimensão pública das políticas. Na máquina do Estado encontramos este

intricado do poder moderno que nela se expressa como programas, projetos,

burocracias, instâncias e esferas de governo político, numa complexidade tal

que faz do interior desta máquina um mundo que tende a nos atrair e capturar

em sua interioridade complexa. (BENEVIDES DE BARROS; PASSOS,

2005a, p.566 grifos nosso)

Como então pensarmos o processo de construção e fortalecimento do SUS em sua tensa

relação com a série governo-Estado-políticas públicas?

O desafio assumido a partir da década de 70 por movimentos como a Reforma Sanitária

e Reforma Psiquiátrica Brasileira – que buscam uma mudança da atenção e gestão nas

práticas de saúde produziu, sem dúvida, um revigoramento da dimensão pública para a

construção de políticas de saúde, que aqui, não mais identificamos à estatal. Se de

algum modo podemos experimentar nestas lutas fôlego para inventar e contestar modos

de cuidar e produzir nossa existência já dados/instituídos sabemos que só o fizemos por

uma ativação e aposta desta dimensão pública, que para nós se constitui no plano do

coletivo. Benevides e Passos (2005a) nos ajudam a compreender a potência desta

dimensão ao apontarem que as mesmas linhas de capilarização do poder sobre as quais

o Estado tende a absorver e interiorizar não têm seu movimento de dobra só para dentro.

Diante dos perigos da totalização e da individualização veremos que as resistências já se

fazem em nosso cotidiano, que a própria vida resiste à sua modelização.

Há algo que resiste a esta interiorização das linhas de capilarização, algo que

insiste em sua exterioridade fazendo com que a máquina do Estado se abra

para o que é o seu fora. Chamamos este fora de plano coletivo, aí onde se

constroem, de fato, políticas públicas (BENEVIDES DE BARROS;

PASSOS, 2005a, p.566)

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Afirmarmos, pois o fortalecimento do SUS como uma política pública, implica-nos com

a produção deste plano coletivo, reativando o movimento instituinte que nos anos 70/80

possibilitou a constituição do próprio SUS. Nosso desafio consiste em colocar em

análise os processos de institucionalização vividos no campo da saúde. O movimento

institucionalista nos traz uma potente contribuição para pensar este desafio quando nos

convoca a permanecer nesta tensão entre instituído e instituinte, entendendo o instituído

como constitutivo de um sistema de regras e normatizações que incide sobre a vida dos

indivíduos, dos grupos sociais e seus modos de agir, se relacionar, enfim, suas formas

sociais organizadas. Conforme destaca Lourau (2004)42

Hoje em dia já não é possível conceber as instituições como um estrato, uma

instância ou um nível de uma formação social determinada. Pelo contrário é

necessário definir instituição como um cruzamento de instâncias

(econômicas, políticas, ideológicas e desejantes) e afirmar além do mais,

empregando a linguagem da análise institucional: se é certo que toda

instituição é atravessada por todos os níveis de uma formação social, a

instituição deve ser definida necessariamente pela transversalidade

(LOURAU, 2004, p.76)

2.2 Desafios da Construção do SUS em tempos de biopolítica

No âmbito da criação de temáticas para projetos de reforma na saúde, Merhry (2007a)

nos chama a atenção para a presença do ideário da Atenção Gerenciada (A.G.)

produzida e disseminada, principalmente, nos países da América Latina, a partir do

processo de disputa entre o modelo médico hegemônico - que predominou na

organização do sistema de saúde norte-americano - e o da Atenção Gerenciada regida

pelo capital financeiro vinculado aos seguros de saúde.

O autor realiza uma breve digressão histórica para mostrar como a aparição da Atenção

Gerenciada nos Estados Unidos (E.U.A) refere-se à construção de propostas que, diante

dos planos de ação do período da Guerra do Vietnã, estavam interessadas em criar

critérios que contribuíssem para o direcionamento das decisões governamentais tendo

como base o cálculo entre custos de ações de guerra e resultados obtidos de forma a

42 Ver em: Altoé, S. (org.) René Lourau Analista Institucional em Tempo Integral, São Paulo, ed. Hucitec, 2004.

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otimizar esta díade. Esta metodologia, introduzida de modo semelhante, nos anos 70, na

elaboração de projetos no campo da saúde tinha como estratégia vital para equacionar a

relação custo-benefício do sistema, a possibilidade de transferência do processo de

decisão sobre as ações de saúde do campo das corporações médicas para o dos

administradores.

Os efeitos paradoxais desta proposta têm trazido novos contornos ao cenário da

organização dos modelos de atenção e gestão. As críticas deste modelo às práticas de

atenção medicocêntricas conectam-se aos próprios processos do trabalho vivo impondo

uma nova forma tecnológica de constituir o próprio ato de cuidar e de se operar a sua

gestão. O autor aponta que, na saúde, os processos de cuidado e sua gestão têm sido

privilegiados como campo de ação da lógica de reestruturação produtiva que expressa a

ótica acumulativa do capital financeiro.

Segundo Merhy (2007a) mesmo que os benefícios pretendidos pela Atenção Gerenciada

referente a custos, qualidade e satisfação não tivessem sido passíveis de investigações

mais precisas que, demonstrassem e comprovassem a viabilidade de suas propostas de

reforma, a perspectiva de implementá-las difunde-se rapidamente, e em particular, sob

influência das grandes empresas de seguros. Evidencia-se, portanto, que as bases de seu

compromisso se fazem aliadas muito mais às propostas de incentivo à competição no/e

do mercado, do que com os resultados a serem obtidos em saúde.

Paradoxalmente, percebemos que este campo de ação, no qual se agencia o capital

financeiro, quando se vincula ao território das tecnologias leves e leves-duras,43 também

se faz como plano de luta dos projetos anti-hegemônicos de todos aqueles que lutam

pela saúde como bem público comprometidos com a criação de outros modos de

existência e cuidado que busquem a expansão da vida.

43 O conceito de tecnologia de trabalho é proposto por Merhy ao afirmar a existência de uma micropolítica do trabalho vivo em ato nos processos de produção de saúde que não podem ser esgotados em equipamentos ou nos saberes estruturados. Para o autor há então um desdobramento deste conceito em três tipos de tecnologias. As tecnologias leves seriam as tecnologias de relações nas quais há a produção de vínculo, autonomização, acolhimento, e da gestão como uma forma de gerir/governar os processos de trabalho cotidianamente. As leve-duras seriam os saberes estruturados que operam no processo de trabalho em saúde como a clínica médica, a epidemiologia, o taylorismo, etc. As duras seriam os equipamentos tecnológicos como máquinas, normas e estruturas organizacionais. Ver em: Merhy, E.E. et al. Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em saúde: a informação e o dia a dia de um serviço, interrogando e gerindo trabalho em saúde. In: Merhy, E.E. e Onocko, R. Agir em Saúde: um desafio para o público. Editora Hucitec. 2ªed. 1997.p. 113-150.

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No Brasil, Merhy (2007a) indica a aparição de propostas semelhantes cujo ideário tem

se fortalecido entre prestadores de serviços de saúde, vinculados aos seguros privados e,

também, difundindo-se muito rapidamente pelos veículos de comunicação44 como

solução para “a crise da saúde, sua inoperância e seu alto custo para o Estado brasileiro”

(Neves, 2009, p.505). Esta difusão, evidencia-se também nos aparatos de poder

midiáticos, numa tentativa de invisibilizar as experiências concretas de um ‘Sus que dá

certo”45.

Como já nos apontaram Benevides e Passos (2005a), na série governo-Estado-políticas

públicas, são as políticas públicas que devem explicar os sentidos dos processos de

capilarização das linhas do poder. Para os autores, malgrado o movimento de

interiorização da máquina do Estado, o que nos anima nas experiências concretas do

SUS que se mostra possível a cada dia, são as lutas e invenções que fazemos

coletivamente. Sustentarmos o movimento instituinte que nos anos 70/80 possibilitou a

constituição do próprio SUS em sua força emancipatória, implica de nós, que

avancemos na discussão, no campo da saúde coletiva, da relação entre produção de

saúde e produção de sujeitos, entre gestão e subjetividade. (Campos, 2000).

Se pensávamos em um tempo em que as lutas e resistências a um determinado regime

de produção capitalista pudesse ser feita estando-se de fora dele e em oposição a ele,

44 Uma reportagem exibida em rede nacional pelo Jornal Nacional do dia 04/03/09, relata a dificuldade que idosos enfrentam para efetuar sua adesão a planos de saúde. Para nós, a operação entre seguradoras e empresas de planos de saúde evidencia traços característicos das proposições feitas pela Atenção Gerenciada. Nesta reportagem, a denúncia era feita por este grupo da população indicando a impossibilidade de serem aceitos em qualquer plano de saúde quanto maior fossem suas idades. Os mecanismos de exclusão desta parcela da população são evidenciados por medidas das empresas como, o pedido de inúmeras avaliações periciais e, das seguradoras, pelo desestímulo das vendas de planos para pessoas maiores de 60 anos. Corretores mostram algumas tabelas fornecidas pelas operadoras de saúde indicando que 09 das 13 empresas que aparecem na lista não pagam comissão a corretores que vendam planos a clientes a partir de certa idade, algumas a restrição já começa aos 58 anos. Para um sistema como o da A.G. baseado na capacidade dos administradores de planos captar recursos financeiros de certos grupos compradores (empresas, pessoas) e definirem uma clientela alvo bem adscrita, o acesso é marcado por uma lógica de exclusão de qualquer grupo que possa implicar maior custo para o sistema para além da possibilidade de equilíbrio contábil entre preço final dos atos e seu pagamento. A aposta na adscrição de clientela é feita pela seleção de grupos sadios que não sejam custosos ao sistema. Fonte: http://www.g1.globo/notícias/economia_negocios/planodesaude Acessado em: 04/03/09. 45 Referimo-nos aqui às experiências que acolhem os desafios como matéria de invenção do próprio SUS. Neste trabalho exploramos as experiências de Santos, na tessitura da relação entre as reformas sanitária e psiquiátrica, e do Projeto Qualis entrelaçando as possibilidades de pensar esta relação entre saúde mental e atenção básica, para afirmar esta marca motora de reinvenção nos processos de gestão e atenção no campo da saúde.

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percebemos que de algum modo este regime se exerce em meio aos processos materiais

e imateriais nos quais se afirma a Vida, buscando regular a todo tempo uma certa forma

de agir, de pensar, de sentir, de criar e, principalmente, de viver que se torne

combustível para a sua sobrevivência. Foucault já nos indicará que as funções políticas

dos dispositivos de saber/poder seriam passageiras se não estivessem integradas

também por uma produção de subjetividade. Somos então tomados do ponto de vista da

produção de subjetividade.

O delineamento que temos feito até o momento nos permite traçar não somente o campo

problemático de nossa pesquisa, como também a aposta que nele/e com ele queremos

fazer: a experimentação de práticas que possibilitem fazer aparecer visibilidades de

experiências de cuidado que apostam na dimensão pública e coletiva das políticas de

saúde.

Como vimos no item anterior, percebemos que, nas lutas contra a onda dos ventos

neoliberais e a privatização da assistência no campo da saúde, o SUS tem se constituído

como um lugar efetivo de experimentos e disputas de distintas tendências. Um embate

de forças que por um lado têm decretado a ‘ineficácia’ do SUS e, por outro, tentado

afirmá-lo em seu compromisso ético-político com a vida e a democracia através de

experiências concretas do “SUS que dá certo”.

2.3 A construção do SUS no Encontro: Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária

Sabemos que realizar uma viagem para ‘fora daqui’ é para o homem de nosso conto não

contar com provisões ou metas prévias que garantam de antemão o que fazer. Há

inaugurado no modo de fazer a viagem sua possibilidade de sobrevivência: contar com o

tempo, com os encontros pelas passagens no caminho, um exercício de fazer-se com que

aposta no cultivo de uma dimensão coletiva que constitui não só a viagem ou o homem

daquele conto, mas que também têm nos constituído e sustentado nas lutas que

travamos cotidianamente. Por certo, a experiência de viagem também nos lança a uma

saída para ‘fora daqui’ quando sabemos que a afirmação do SUS em seu compromisso

ético-político com a vida e a democracia também só se faz quando cultivamos essa

dimensão coletiva constituinte em nós e em nossas práticas. Se na década de 70/80

experimentávamos com os movimentos da Reforma Sanitária e Psiquiátrica, fôlego para

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lutar por mudanças nas práticas de atenção e gestão no campo da saúde,

compreendemos também que nosso sustento se fazia por uma aposta na ativação e

revigoramento da dimensão pública de todo processo de construção de saúde.

Se nesta viagem nos perguntamos daquilo que podemos provar nos encontros Saúde

Mental e Atenção Básica, por certo entendemos que é na dimensão da relação, no que se

passa nesta intercessão, que podemos construir nossas práticas de cuidado. Cultivarmos

essa relação, permite-nos não só aliançarmo-nos com seu caráter processual e múltiplo,

mas, também ampliarmos o nosso olhar entendendo que os encontros que

experimentamos são, sobretudo, um modo de fazer o projeto de democratização

institucional que está na base do SUS. Operamos, pois em nossa viagem, uma

importante modulação de nossa questão, quando compreendemos que na pergunta: O

que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica? - podemos nos interrogar acerca do

que se passa entre Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária.

Tomamos aqui as experiências de Santos (SP) e Programa de Saúde Mental para o

Projeto Qualis/PSF (SP) para pensarmos o encontro Saúde Mental e Atenção Básica.

Acreditamos ser uma modulação importante de nossa questão pensar esta interface

naquilo que se passa entre a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica. As narrativas

intensivas dessas experiências sustentam-se pela aposta ético-política que nela e com ela

fazemos: a de que a reverberação destas marcas operem passagem para a construção de

outros sentidos da/na intercessão Saúde Mental e Atenção Básica em nosso

contemporâneo. Fazemos esta aposta não somente pela possibilidade de fiarmos o que

se passou entre as reformas – em suas heterogêneses - mas aquilo que em nós e em

nossas práticas continua a se passar.

2.3.1 Narrativas intensivas da experiência de Santos

Pólo da região metropolitana da Baixada Santista, a cidade de Santos, com cerca de

42546 mil habitantes foi duramente castigada pela ditadura militar, com a perda de sua

autonomia política e administrativa, em função de seu enquadramento como Área de

46 Fonte Consultada: Fundação Sistema Estadual de Análise Dados (SEADE) - 2008. http://www.seade.sp.gov.br . Acesso em 07.03.09.

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Segurança Nacional. Governada, durante décadas, por interventores47 que traduziam os

interesses da elite local apoiada no autoritarismo político; a cidade integra-se em 1989, à

luta pela construção do Sistema Único de Saúde. Este processo é marcado por muito

trabalho e muita luta, visto que, até 1988, os serviços de saúde do município tinham,

praticamente, a mesma abrangência que a dos anos 40. Mas, para nós, não basta

dizermos que Santos, ‘cumpriu’ com as leis48 8.080 e 8.142 que definem a organização

do SUS e suas formas de controle pela sociedade. O que queremos aqui é refletir

ativamente sobre os fundamentos desse esforço e no que ele operou de invenção de um

sistema público de saúde local que se transformou em referência nacional e

internacional, em um período de radical predomínio do pensamento neoliberal.

A partilha de inúmeras experiências comprometidas com a defesa da vida e da saúde ,

bem como de sua reinvenção, fizeram de Santos, terra fértil para a proliferação de

práticas coletivas. O avanço da democratização da saúde marcava a um só momento,

que o fortalecimento do SUS exigia mudanças nas relações de poder que estabelecemos

cotidianamente com nossos parceiros de trabalho e com os usuários. A Constituição de

47 O general Clóvis Bandeira Brasil que, em 1964, teve uma atuação destacada - na crise da renúncia de Jânio Quadros e na preparação do golpe militar comandando em Santos (SP) a Artilharia de Costa e a Artilharia Antiaérea - foi nomeado o 1º Interventor do Governo Federal no município de Santos (SP) conforme determinação do Ato Institucional Número Sete (AI-7). Caracterizados por decretos emitidos durante os anos após o Golpe Militar de 64, no Brasil, os Atos Institucionais funcionaram como mecanismos de legitimação e legalização das ações políticas dos militares, estabelecendo para eles próprios diversos poderes extra-constitucionais. O AI-7, decretado em 1969, configurou-se como uma complementação do AI-6 (este estabeleceu que os crimes contra a segurança nacional seriam julgados pela Justiça Militar e não pelo Supremo Tribunal Federal), tratando, pois da suspensão de todas as eleições parciais para cargos executivos ou legislativos da União, dos Estados e dos Municípios, até novembro de 1970. Seus incisos § 1º e § 2º sancionavam, respectivamente: o decreto de intervenção federal nos municípios pelo Presidente da República em caso de renúncia, morte, perda ou extinção dos respectivos titulares; e o exercício pelo Interventor das atribuições da Lei Organica dos Municípios caso a vacância do cargo de Prefeito municipal coincida com o término do mandato. Na articulação política entre o término do mandato do então prefeito de Santos (SP), Sílvio Fernandes Lopes; a emissão de cassação do prefeito eleito Esmeraldo Tarquínio e a renúncia do vice-prefeito Oswaldo Justo é que Santos (SP) foi durante décadas, governada por interventores. Fontes consultadas: http://www.novomilenio.inf.br/santos e http://pt.wikipedia.org/wiki/Ato_Institucional Acesso: 07.03.09. 48 Preconiza que as ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, tomando como princípios e diretrizes principais a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; a integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; a participação da comunidade e a descentralização dos serviços para os municípios com ênfase na regionalização e hierarquização dos serviços. Ver em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/LEI8080.pdf . Acesso em 30/04/08.

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1988 confere novos sentidos quanto ao papel dos municípios como ente federativo

quando assume o processo de descentralização como um dos pilares da implantação do

Sistema Único de Saúde. A dimensão das mudanças permitia ao município de Santos,

não apenas assumir mais tarefas, mas interrogar-se sobre suas próprias atribuições. É

que se após a Constituinte o município passava a ter maior autonomia,

responsabilidades, recursos e novas competências, abria-se também um espaço para que

as prefeituras deixassem de se preocupar apenas com a “zeladoria das cidades para

transformarem-se de fato em governos locais, autônomos e intimamente ligados ao

tecido social.” (Capistrano, 1996, p.15).

Em um período de radical predomínio do pensamento neoliberal os municípios

enfrentam grandes dificuldades para financiar seus investimentos, pois os recursos da

área social que deveriam ser destinados para sustentar os processos de produção das

políticas de interesse público giram no sistema financeiro como se fosse este um fim em

si mesmo, alimentado pelas altíssimas taxas de juros da dívida externa, a subsidiação de

usineiros e bancos falidos pelo governo federal, que prejudicando a saúde pública,

apostavam na sua privatização tentando implantar reformas que iam contra direitos já

constituídos, piorando as condições de aposentadoria e desprezando um enorme

contingente de trabalhadores informais. Neste cenário, é fundamental percebermos que

Santos remava contra a maré neoliberal da política econômica federal e de quase todos

os estados brasileiros, cuja fórmula baseia-se no ‘estado mínimo’, no ‘enxugamento’

das funções sociais do Estado e no corte dos serviços e direitos públicos, abrindo-nos

em sua experiência para um outro sentido de municipalização.

Se podemos dizer que, a história do SUS em Santos coincidia com a história do SUS no

país, dela se desviava radicalmente para garantir avanços no processo de

descentralização com: a destinação de recursos financeiros do orçamento municipal para

a saúde; na compreensão de que o município deve assumir integralmente a gestão do

sistema local; na vontade política de enfrentar e vencer os obstáculos que garantam a

saúde como direito do cidadão; e no esforço permanente em formar equipes de saúde

aliançadas com os movimentos de expansão da vida no território, entendendo que a

viabilidade do SUS está diretamente relacionada com a criação de canais efetivos de

controle social e participação popular.

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A fertilidade destas terras banhadas, em grande parte de sua extensão, pelo oceano

atlântico, faz desta cidade sede de muitas lutas libertárias quando resistia ao golpe de 64

que implantou a ditadura militar,49 e também, terra de refúgio nos tempos da escravidão.

É que muitos escravos que fugiam das fazendas de café do planalto paulista iam

refugiar-se nos quilombos criados nos morros da cidade de Santos. Nela também, os

refugiados encontravam acolhimento da população santista com a ajuda de alimentos,

roupas e remédios. Na luta pela abolição da escravatura, a cidade abrigou milhares de

escravos em quilombos na área continental, fugidos das fazendas de café do planalto

paulista. O trabalho foi tão intenso que, três meses antes de a Lei Áurea ser promulgada,

já não havia escravos na cidade. Posteriormente, a população participou da campanha

pela República, organizando listas de assinaturas, comícios, movimentos.

A potencialidade desta cidade e de todas as experiências que nela puderam germinar

ressoam como memórias intensivas de suas batalhas50 marcando, a um só tempo, a

positividade do encontro entre as Reformas Sanitária e Psiquiátrica. Nossa intenção ao

fiarmos um pouco da história do SUS em Santos, se faz junto com a aposta feita por

sujeitos que puderam experimentar protagonismo e exercício de autonomia naquela

cidade: trabalhadores, gestores e usuários dos serviços de saúde que teciam no concreto

da experiência da saúde pública a dimensão coletiva de todo processo de produção de

saúde. A marca que esta experiência produz toca-nos, desassossega-nos, e nos faz

aprender que o próprio processo de construção dos modos de gerir e cuidar, são os

modos pelos quais produzimos a nós mesmos.

49 Agitava-se naquela cidade à beira mar todo um movimento efervescente contra a maré das ondas neoliberais de mercantilização da saúde e da vida e que configura a expressão do livro que compila as experiências do SUS em Santos: Contra Maré À Beira Mar. Ver em: Campos, F e Henriques, C. (org.) Contra A Maré À Beira Mar : A experiência do SUS em Santos, São Paulo, ed. Scritta, 1996. 50 Ver tese de Doutorado em Educação de Heckert, A.L.C. Narrativas e Resistências: Educação e Políticas. Universidade Federal Fluminense, Niterói – RJ, 2004. No primeiro plano de seu trabalho, a autora intitula-o de Os roncos surdos da batalha, para pensar as noções de resistência e narrativa que tecem seus percursos e que tem como compromisso ético político acentuar as batalhas cotidianas que engendram outros possíveis no campo das lutas travadas na escola pública. Tal noção nos é preciosa para pensarmos em nosso trabalho as narrativas que tecem práticas de resistência no campo da saúde, ao nos indicar em sua aliança com Foucault “a (..) a ouvir o ronco surdo da batalha” (Foucault, 1983 apud Heckert 2004). E para captar este 'ronco surdo das batalhas' que pode estar nas entre−linhas das propostas oficiais e, sobretudo, no fazer cotidiano

dos trabalhadores da saúde que, neste fazer, reinventam modos de cuidar e gerir, é necessário uma atenção redobrada ao modo de produção das práticas de saúde.

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2.3.2 De quando as interferências se fazem na produção/experimentação de um

novo Ethos51

A intervenção na Casa de Saúde Anchieta, um hospício privado que contava com mais

de 500 internos, e a criação do Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS) em 1989 são

dois acontecimentos que marcam a trajetória do encontro entre as reformas. Segundo

Mesquita e Silveira (1996) durante o processo de construção da rede pública de saúde

de Santos, apenas o programa de saúde mental teve, desde o início, um referencial

teórico definido; os demais programas eram criados, em sua maioria, dentro do modelo

tradicional, centrado na consulta e/ou no saber médico, atribuindo aos serviços

especializados o papel de retaguarda técnica e de exames auxiliares de diagnose e

terapia que fragmentavam o sujeito. Esta nos parece ser uma importante indicação feita

pelos autores com a qual queremos seguir: se de fato não houve, por parte do

movimento sanitário, uma preocupação central com as práticas cotidianas de gestão do

cuidado em saúde, bem como, seus efeitos/produções, foi com o contágio e

reverberação de um outro movimento, e aqui destacamos o da reforma psiquiátrica, que

Santos pode se interrogar quanto a construção desta nova rede de saúde pública. A

intervenção na Casa de Saúde Anchieta, marca a diferença deste novo fazer, que não

poderia simplesmente passar pela construção de mais serviços à população, mas

sobretudo, por uma mudança na lógica de funcionamento dos mesmos.

A década de 1980 foi preciosa ao Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental

(MTSM) por ser um período de amadurecimento da crítica ao modelo privatista-asilar.

Para a Reforma Psiquiátrica, o MTSM, efetiva-se como ator social estratégico pelas

reformas no campo da saúde mental. Buscando compreender a função social da

psiquiatria e suas instituições para além de seu papel explicitamente médico-terapêutico,

51 Foucault (2006, p. 290) lendo os textos gregos levanta algumas das variações da palavra êthos. Desdobra-se como: substantivo, verbo e adjetivo. Ethopoieîn: produzir o êthos, “transformar o êthos, a maneira de ser, o modo de existência de um indivíduo”. Ethopoiía: formação do êthos. Ethopoiós: “aquilo que tem a qualidade de transformar o modo de ser de um indivíduo”. O êthos, portanto, aparece como algo produzido e não como uma regra a priori a ser seguida. É algo que se constitui no decorrer da vida de um indivíduo, através de uma prática de si. É ainda aquilo que, ao longo da prática, traz a possibilidade de uma transformação no ser. Foucault (2004, p.270) define como “a maneira de ser e a maneira de se conduzir” de um sujeito ou de um coletivo. Para dar força aos nossos percursos que estão engajados com a produção de uma ética nas/das práticas de produção de cuidado/saúde, com um certo modo de operar no campo da saúde, traremos mais à frente o estudo de Foucault referentes à antiguidade (gregos) e que nos ajuda na construção desta ética.

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este movimento, constrói um pensamento crítico ao modelo psiquiátrico clássico e sua

falência constatada na prática em instituições psiquiátricas. Nesta década, marca-se

também a importância dentro do próprio movimento da Reforma Psiquiátrica quanto a

necessidade de ampliar sua participação como protagonista no Movimento da Reforma

Sanitária Brasileira.

A I Conferência de Saúde Mental em 1987 evidencia a necessidade desta ampliação ao

constatar que, muitas das dificuldades vivenciadas pela perspectiva sanitarista quanto a

incorporação de suas propostas reformistas nas políticas oficiais, “vinha sendo anulada

pela resistência passiva ou ativa da iniciativa privada, da estrutura manicomial, da

burocracia estatal e do conservadorismo psiquiátrico” (Bezerra Jr. 1994 apud Tenório

2002, p.35). Aliada ao II Encontro Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental que

teve como lema: “Por uma Sociedade sem Manicômios”, a I Conferência de Saúde

Mental traz novos rumos e tensionamentos à trajetória sanitarista que tinha como foco

uma transformação apenas do sistema de saúde. Vemos neste momento uma crítica

radical, de clara inspiração basagliana, que produz como nova e fundamental estratégia

a ampliação do próprio MTSM no sentido de ultrapassar sua natureza exclusivamente

técnico-científica. Neste sentido, aponta-se para a necessidade do envolvimento da

sociedade na discussão e encaminhamentos das questões relacionadas à loucura e à

assistência psiquiátrica. Temos então a incorporação dos usuários e seus familiares

como agentes críticos dos processos a serem transformados discutindo-se a invenção de

novos dispositivos e tecnologias de cuidado diversificados que rompam com o modelo

asilar e suas práticas de exclusão e violência.

Na Casa de Saúde Anchieta, em Santos, muitas foram as denúncias de hiperlotação,

falta de funcionários, maus tratos e mortes violentas sofridas pelos pacientes sendo a

intervenção neste hospital psiquiátrico possibilitada pelo processo de municipalização

do sistema de saúde. O fechamento deste hospício e a substituição do modelo

assistencial, com a criação dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) são a um só

tempo, um modo de fazer - a organização e gestão das práticas de cuidado no cotidiano

dos serviços - calcadas no projeto de desinstitucionalização.

Operar com o conceito da desinstitucionalização que incide como processo prático-

crítico de problematização dos serviços, dos saberes e estratégias; implicou para esta

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intervenção uma série de discussões a respeito de uma suposta ‘periculosidade’ do

louco, trazendo à cena não somente a violência dos pacientes como também dos

funcionários e, primordialmente, da instituição saúde mental. A mobilização dos

profissionais em um processo de (de)formação que transitava nos liâmes das fronteiras,

no entre o saber e o fazer também inspirou as bases desta IN-ter-VENÇÃO. Era

necessária uma aposta coletiva para que se pudesse defrontar com os limites das antigas

concepções, crenças e valores de todo trabalho, forçando-as em um exercício ético-

estético e político que partisse para novas experimentações. A ousadia de novas

práticas, um reaprendendo a aprender. Neste sentido a discussão em torno da perda de

cidadania e dignidade que vitimava os pacientes possibilitou a abertura para novas

relações entre profissionais e usuários, como também, para a construção de estradas

entre o hospital e a cidade.

Traça-se um mapa. As alas e enfermarias são organizadas segundo uma correspondente

divisão da cidade em regiões.

Reativar as subjetividades’, isto é, estimular a comunicação interna, suprimir

a violência institucionalizada, reconstruir identidades, coletivizar as pessoas,

melhorar as condições materiais do hospital, redistribuir tempo e espaço...

todas essas modificações não teriam sentido caso não estivessem

direcionadas para um projeto mais amplo. Interferir no ‘espaço social’, na

comunidade. Em realidade, essas ações encontram sua maior barreira

exatamente na precisa separação entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ do hospital.

(TYKANORI, 1996, p.42)

A ‘reativação de subjetividades’, apontada pelo autor desdobra-se em uma necessidade

de ativação de recursos da comunidade. Neste mapa,52 e em todos os infinitos traçados e

52 Os pacientes eram agregados nas alas e enfermarias segundo uma área determinada. Isto permitiu que as equipes pudessem conhecer os habitats de origem dos pacientes e tomar como tarefa a busca de recursos e a construção de projetos no próprio território de pertença dos pacientes. Segundo Tykanori (1996), a delimitação de um território não seria dada apenas pelos aspectos geográficos em si. Para os serviços seria a área sobre a qual este deve assumir a responsabilidade sobre as questões de saúde mental. Amplia-se para tanto, o setting terapêutico dos profissionais que não mais se limitam à sua unidade, mas saem em busca de conhecer e atuar no território de cada paciente, “nos espaços e percursos que compõem a vida cotidiana dos pacientes, visando enriquecê-lo e expandí-lo.” (p.45). Em Santos, o termo território foi utilizado para operar a regionalização dos serviços de saúde mental. A cidade foi dividida em cinco áreas sendo cada qual referida a um serviço, todavia, os limites entre os territórios foram sendo modificados a partir da prática e das possibilidades efetivas de se exercer sua função. Termo que será utilizado, como veremos mais adiante, para as áreas adscritas das Equipes de Referência da Estratégia de Saúde da Família.

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movimentos que ele possibilitou, o NAPS delineia-se como força para a superação do

antigo modelo manicomial que tem o hospital psiquiátrico como núcleo operacional.

O projeto de Saúde de Santos tratou de combinar diretrizes aparentemente contraditórias

como, por exemplo, o papel dos indivíduos e das coletividades na história. Inverter a

lógica dominante do modelo médico-centrado nos serviços especializados tornou-se um

dos grandes desafios quando a necessidade incide sobre a modificação da escassa

responsabilidade destes com relação ao processo de saúde-adoecimento, na falta de

vínculos com o paciente e nas relações burocráticas com os demais serviços.

Aprendemos nesta experiência que a tessitura das redes de novos serviços se constituía

com/nos modos de fazê-los operar cotidianamente. Neste sentido, um rico movimento

de reformulação das práticas clínicas, que priorizavam o trabalho em equipe, a

aproximação com o território, a ampliação dos settings terapêuticos e do significado de

responsabilizar-se pela saúde de um paciente ou de uma comunidade pôde ser

construído em ato ao tecer as redes de cuidado.

Rotelli (1990) nos afirma em seu texto - A Instituição Inventada - que o paradigma

clínico foi o verdadeiro objeto do projeto de desinstitucionalização, visto que, implodir

com a lógica manicomial e com os manicômios, implica a ruptura da relação mecânica

causa-efeito abrindo para a complexidade do cuidado em saúde. Tomamos aqui, a noção

de complexidade trabalhada por Passos e Benevides (2003), na tentativa de afirmá-la

para além e aquém do sentido atribuído pelo senso comum. Para estes autores, o

complexo não seria apenas o complicado ou o que ainda não foi explicado, mas ao

contrário, “é a propriedade de certos fenômenos cuja explicação exige de nós o esforço

de evitarmos simplificações reducionistas” (p.81).

De algum modo podemos dizer que a experiência de aprendizagem gerada no encontro

da Saúde Mental com a Saúde Coletiva em Santos, trouxe-nos uma discussão

importante acerca da clínica e sua prática no ato de cuidar. A intercessão do movimento

sanitarista, com a perspectiva teórico-prática da desinstitucionalização do movimento

antimanicomial, vivida na construção dos modos de se operar em saúde, transforma a

trajetória santista.

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A intervenção na Casa Anchieta que instaurava um processo de ruptura da cultura da

tutela institucional como resposta única e absoluta à diversidade, fez emergir o desafio

de produzir uma outra relação onde a autonomia e a cidadania fossem modos mais

possíveis de existência. A relação de tutela, marcada na prática asilar, por estabelecer-se

como relação de opressão/repressão, fundada na competência do tutor sobre a

‘incapacidade’ do tutelado instaura um paradoxo na prática asilar, pois a ‘proteção’

baseia-se na incapacidade, redução e anulação da liberdade do tutelado. Neste caso

a proteção não responde a uma necessidade pautada por uma diferença ou

particularidade mas identifica o sujeito globalmente pela negatividade,

invalidando-o, absorvendo-o na instituição. (NICÁCIO E KINKER, 1996,

p.121)

Se uma preocupação em desprender-se de modelos pré-definidos que tendem a tornar-se

limitadores para a ação prática constitui-se uma forte característica da construção do

SUS local em Santos, é porque de algum modo uma operação de transversalização, já

podia ser experimentada53. Segundo Guattari (1981) a transversalidade constitui-se pelo

grau de abertura que garante às práticas de saúde a possibilidade de diferenciação ou

invenção, a partir de uma tomada de posição que faz dos vários atores sujeitos do

processo de produção da realidade em que estão envolvidos. Aumentar os graus de

transversalidade é superar a organização do campo assentada em códigos de

comunicação e de trocas circulantes nos eixos da verticalidade e horizontalidade: um

eixo vertical que hierarquiza os gestores, trabalhadores e usuários e um eixo horizontal

que cria comunicações por estames/corporações. Ampliar o grau de transversalidade é

53 A produção de subjetividades autônomas e protagonistas implicava uma nova forma de agir e pensar. A construção de cidadania das pessoas com sofrimento psíquico não se limitava a uma declaração de direitos, mas deveria ser efetivada no trabalho cotidiano e artesanal de tecer as condições que possibilitem o ‘viver fora’ das instituições totais. Para tanto, novos problemas com relação à reabilitação, ao trabalho e a saúde também tiveram que ser construídos. Uma desestabilização do lugar que o trabalho em muito ocupa nas intervenções reabilitadoras teve que ser pensado. Na experiência de Santos enfrentava-se cotidianamente as concepções e uso do trabalho como ideal normativo da reabilitação, como resultado ou indicador de cura. As ações de reabilitação não deveriam configurar-se como fase final e/ou posterior ao tratamento. Um (re)dimensionamento destas se fazia, uma vez que, propunham permear todas as trajetórias do processo de cuidar, produzindo e ampliando a rede relacional e o poder contratual dos usuários. Neste âmbito, os projetos de inserção no trabalho como: Lixo limpo, Cantina Paratodos, Serigrafia, Limpeza e Desinfecção de Caixas D’água, Marcenaria, dentre outros, acompanham o percurso da saúde mental em Santos, partindo das necessidades dos usuários que emergem com/na desconstrução das instituições e da cultura manicomial em nós. Há que se lembrar neste processo a superação da prática laborterápica vivida por muitos pacientes no interior da Casa de Saúde Anchieta ainda no período inicial da intervenção.

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produzir uma comunicação multivetorializada construída na intercessão dos eixos

vertical e horizontal.

Esta operação nos convoca a um outro modo de operar54 sobre/com as práticas,

afirmando mais a dimensão processual de nosso fazer em saúde do que as formas. Neste

sentido a operação de transversalização impõe-nos um processo de desestabilização

inclusive daquilo que até então era nomeado como o campo da clínica. Como nos alerta

Passos e Benevides (2003), não perdemos com isso a preocupação com as questões

estratégias, mas estas não se definem mais como puramente técnicas. Uma dimensão do

fazer muito “menos como inventário de procedimentos e formas de ação e mais como

um processo constante de invenção de estratégias de intervenção em sintonia com os

novos problemas constituídos” (p.85).

Se o SUS fazia-se conquista expressa como proposição geral e abstrata na forma de lei,

de suas portarias e normativas em todo o Brasil; fazia-se em Santos como modo

possível de existência quando remetido ao plano das experiências concretas que

apostavam em uma mudança nas práticas de saúde. A construção de um plano comum,

que conecta diferentes atores no processo de produção de saúde nos dá o tom de como

se implanta efetivamente a idéia de ‘único’ encontrada no SUS. Processo que se fez na e

com as reverberações do encontro entre as reformas: psiquiátrica e sanitária. Com a

saúde mental aprendíamos que o modo de se operar mudanças nos processos de

produção de saúde exigia também mudanças nos processos de subjetivação.

Aprendíamos também que é a transformação de sujeitos concretos em sintonia com as

mudanças das próprias práticas de saúde que dá cheiro, cor e vida aos princípios do

SUS quando encarnados na experiência concreta do fazer. (Benevides; Passos, 2005b).

54 Um modo de fazer operar que produza a saída do circuito psiquiátrico foi pensado com a multiplicação de parceiros/atores envolvidos nestes projetos, haja vista, a participação de inúmeras outras pessoas como instrutores, clientes, gerentes, etc. E também, a busca de agenciamentos com atores cujo interesse comum por realizar intervenções urbanas e culturais na cidade eram articulados a um conjunto de ações (políticas públicas, associações não-governamentais e cidadãos). O processo de transformação cultural do lugar de desvalor que a loucura ocupa no imaginário social requer o envolvimento, a prática conjunta como meio indispensável de conhecer e comunicar de forma não abstrata para encontrar outras formas de compreensão da loucura. A potencialização e a ‘reconversão de recursos’ (Nicácio e Kinker, 1996, pg.129) materiais, humanos e sociais para a criação de frentes de trabalho e ampliação da contratualidade social e não para a exclusão e cronificação dos sujeitos foi uma das estratégias centrais para fazer operar a desinstitucionalização das instituições.

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Com a criação de redes de atendimento que buscassem uma efetiva mudança dos

modelos assistenciais de saúde percebemos que a transversalidade e a inseparabilidade

entre atenção e gestão são indicações importantes do ‘como fazer’. De algum modo é

quando experimentamos essas indicações que percebemos que a criação de uma rede de

saúde em Santos privilegiou, sobretudo, a transformação de nossos modos de relação,

formando coletivos que pudessem apostar e sustentar a produção de vínculos, de

acolhimento, produzindo-se a si e suas práticas em um exercício de transversalização,

aumentando os graus de comunicação, de conectividade e de intercessão intra e

intergrupos. (Deleuze, 1996).

2.4 Atenção Primária: algumas modulações para a construção de uma rede básica

de saúde

A discussão de como operar mudanças nos modelos de atendimento que visem a uma

maior extensão de cobertura e maior efetividade no conjunto de ações em saúde, tem

colocado o tema da rede básica como um ponto estratégico na constituição dessas novas

práticas. Analisando historicamente os processos de constituição deste espaço, o autor

nos indica o quanto suas configurações e dimensões tecno-assistenciais devem ser

entendidas no contexto das políticas sociais, constituídas nas relações: Estado e Classes

Sociais.

Durante a década de 1970, Merhy (1997) destaca o aparecimento de posições que se

organizaram em torno da disputa por um novo modelo de política social de saúde, a

saber: as Conservadoras, as Reformadoras e as Transformadoras; ressaltando as

distintas conformações tecno-assistenciais que as mesmas imbuíam na constituição da

rede básica. Se as posições mais Conservadoras tinham pouco a dizer sobre a

organização tecnológica da rede básica, pois marcavam a defesa de uma ordenação dos

serviços de saúde a partir da lógica de mercado capitalista; as Reformadoras

associavam-se ao mote da racionalização do funcionamento da máquina estatal, que

preconizando a rede básica como porta de entrada dos serviços, tentou responder ao

processo dicotômico construído historicamente entre medicina e saúde pública sem

discutir de fato o que esta rede precisaria efetivar para cumprir o seu papel de porta de

entrada nem tão pouco o que a diferenciaria do modelo de rede da perspectiva médico-

sanitária. Neste sentido, não há nesta concepção o enfoque na unificação efetiva das

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ações, mas sim, uma redução medicalizante do conjunto dessas ações que não

potencializa/inclui como projeto de saúde a autonomia dos usuários.

Ao propor uma reflexão sobre o lugar estratégico que a rede básica vem ocupando na

construção do Sistema Único de Saúde, Merhy (1997) nos ajuda a avançar nas

discussões dos sentidos que têm constituído a rede de atenção básica. Para o autor este

entendimento não deve ser confundido, necessariamente, com um espaço físico, mas

como um espaço de trabalho em saúde.

Internacionalmente, há muito já vinham sendo realizadas discussões do conceito de

Atenção Primária à Saúde (APS). Muitas experiências de países desenvolvidos e em

desenvolvimento apontavam para o fato de que a APS apresentava impactos positivos

nos indicadores de saúde da população, bem como influência efetiva no acesso a

serviços essenciais preventivos e promocionais de saúde. (Andrade, Barreto e Bezerra,

2006).

Starfield (2002) aponta para a APS como uma tendência, relativamente recente, de se

inverter a priorização das ações de saúde de uma abordagem curativa, desintegrada e

centrada no papel hegemônico do médico para uma abordagem preventiva e

promocional, integrada com outros níveis de atenção e construída de forma coletiva

com outros profissionais de saúde. Ilustra no quadro a seguir as dissimilaridades

essenciais entre Atenção Primária à Saúde e Atenção Médica Convencional.

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102

CONVENCIONAL ATENÇÃO PRIMÁRIA

ENFOQUE

Doença Saúde

Cura Prevenção, atenção e cura

CONTEÚDO

Tratamento Promoção da saúde

Atenção por Episódio Atenção Continuada

Problemas específicos Atenção Abrangente

ORGANIZAÇÃO

Especialistas Clínicos Gerais

Médicos Grupos de outros profissionais

Consultório Individual Equipe

RESPONSABILIDADE

Apenas setor de saúde Colaboração intersetorial

Domínio pelo profissional Participação da comunidade

Recepção passiva Auto-responsabilidade

Fonte: Starfield. Atenção Primária: Equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia.

Brasileira: Unesco-Ministério da Saúde, 2002, p.33.

As diferenças dos dois enfoques parecem nos indicar uma diferença no modo de fazer a

gestão e a atenção dos processos de cuidado no campo da saúde. A Atenção Primária

busca romper com um certo modelo de conhecimento no campo da saúde que produz

tanto um modelo assistencial médico hegemônico, quanto um modelo de organização

social voltado para o conceito de doença. Franco e Merhy (2006) nos sinalizam que

mesmo no contexto de pós guerra, onde o crescimento econômico elevado pelos

avanços tecnológicos da indústria possibilitavam, especialmente aos países

desenvolvidos na Europa, financiarem a implantação de políticas sociais amplas o

modelo tecnoassistencial utilizado caracterizou-se pelo Médico Hegemônico.

Na caracterização deste Modelo Médico Hegemônico, Starfield (2002) nos mostra em

seu quadro, os problemas de uma orientação de trabalho voltada para a cura que

corroboram para uma visão da doença como desvio, como anormalidade, e que em

muito significou a objetificação de um sujeito hospitalizado, institucionalizado,

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reprimido e passivo. Neste sentido, percebemos o desenvolvimento na Atenção Médica

Convencional, tanto de uma organização dos serviços voltada para uma atenção por

episódios - quer seja, em momentos de crise em uma psicose, emergência e/ou

internação, quanto para a formação de profissionais centrada em uma super-

especialização do conhecimento desenvolvida, em sua maioria, pelo uso de tecnologias

duras55 - equipamentos/máquinas e fármacos.

Franco e Merhy (2006) evidenciam que a dinâmica do capitalismo no campo econômico

geral também é (re)produzida no campo da saúde quando “um sistema de saúde

centrado em procedimentos, corrobora com os processos de acumulação do capital, ou

seja, a dinâmica de produção de serviços é estruturada e comandada por interesses desta

ordem”. (pg. 68)

Nesta discussão é importante salientar que diversos foram os modelos de organização e

ofertas de serviços de saúde que utilizavam a denominação APS. Numa tentativa de

descrever e diferenciar os diversos modelos, Vuori (1985 apud Andrade; Barreto;

Bezerra, 2006), propôs uma classificação para os enfoques de APS então existentes

explicitados no quadro a seguir.

55 Para repensar a clínica e o trabalho na saúde desde uma perspectiva que valoriza a dimensão micropolítica do cuidado e os processos de regulação aos quais esta se encontra imbricada, Merhy realiza uma crítica ao modelo médico hegemônico produzindo um novo conceito de tecnologia. O autor problematiza uma clínica fundamentada em uma tecnologia dura e leve dura e sua produção de diagnósticos e tratamentos que em muitas vezes têm pouco a contribuir para a construção de um cuidado que produza ganhos a abertura de graus de autonomia nas vidas dos usuários. Ressalta, sobretudo, que o uso destas tecnologias é inclusive uma das grandes causas do aumento dos custos na saúde, pela forte tendência de agregar tecnologias duras não substitutivas, com uma questionável eficiência. Em sua distinção as tecnologias duras são aquelas que tradicionalmente se usa para designar os equipamentos tecnológicos tipo máquinas, normas e estruturas organizacionais. As leves-duras são os conhecimentos/saberes sistematizados e estruturados (clínica, epidemiologia) que se expressam nas práticas clínicas dos médicos, dentistas, psicólogos, enfermeiros, etc.

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ENFOQUE DEFINIÇÃO OU CONCEITO DE

ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE ÊNFASE

APS Seletiva Orienta-se a um número limitado de serviços de alto impacto para enfrentar alguns desafios de saúde mais prevalentes dos países em desenvolvimento. Um dos principais programas que incluiu este tipo de serviços foi conhecido por sua sigla em inglês Gobi (controle do crescimento, técnicas de reidratação oral, aleitamento materno e imunização) e também foi conhecida como Gobi-FFF quando adicionou alimentos suplementares, alfabetização da mulher e planejamento.

Conjunto limitado de

atividades dos serviços de

saúde para os pobres.

Atenção Primária

A maioria das vezes refere-se a à porta de entrada do sistema de saúde e ao local para a atenção contínua da saúde da maioria da população. Esta é a concepção de APS mais comum na Europa e em outros países industrializados. Já a partir da definição mais restrita, este enfoque está diretamente relacionado com a disponibilidade de médicos especializados em medicina geral ou familiar.

Alma-Atá “APS

Ampliada”

A Declaração de Alma-Atá define APS como um primeiro nível amplo e integrado, que inclui elementos como participação comunitária, coordenação intersetorial, e descansa em uma variedade de trabalhadores da saúde e praticantes das medicinas tradicionais. Inclui os seguintes princípios: respostas aos principais determinantes da saúde; cobertura e acessibilidade universal segundo a necessidade; autocuidado e participação individual e comunitária; ação intersetorial pela saúde; tecnologia apropriada e custo-efetividade em relação aos recursos disponíveis.

Uma estratégia para organizar os sistemas de

atenção à saúde e a sociedade para promover

a saúde.

Enfoque de Saúde e Direitos

Humanos

Concebe a saúde como direito humano e prioriza a necessidade de responder aos seus determinantes sociais e políticos mais amplos. Difere por sua maior ênfase nas implicações sociais e políticas da Declaração de Alma-Atá que em seus princípios defende que, se há um objetivo de que o conteúdo social e político de Alma-Atá logre melhoras na equidade em saúde, este deve orientar-se mais para o desenvolvimento de políticas “inclusivas, dinâmicas, transparentes e apoiadas por compromissos legislativos e financeiros” que está atrás de aspectos específicos da doença.

Uma filosofia que atravessa a

saúde e os setores sociais.

Neste quadro, percebemos a importância de realizarmos uma discussão sobre a própria

Atenção Primária, os sentidos que as diferentes práticas põem em funcionamento,

estando atentos às propostas que surgem no Brasil.

2.4.1 Habitando um não-lugar: Experiência limiar da/na Atenção Básica

Nos anos 1990, a atenção básica se torna a área de concentração de programas e

investimentos do Ministério da Saúde (MS). As mudanças do Modelo Assistencial em

Saúde são iniciadas em 1991 com a implantação do Programa de Agentes Comunitários

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de Saúde (PACS) e, posteriormente, em 1994, com a criação do Programa de Saúde da

Família (PSF). Este tem se tornado a principal resposta oferecida, no âmbito da

assistência, pelos órgãos governamentais, à crise do modelo assistencial.

As ações do PSF foram, inicialmente, implantadas em regiões de escassa assistência à

população, com os objetivos de atender às minorias sem acesso a serviços de saúde e de

responder a uma tendência mundial de redução de custos, de desmedicalização da

medicina e humanização dos serviços (Vasconcellos, 1998).

Por esse programa inicial ser considerado potente para a universalização do atendimento

à saúde e para a implementação dos preceitos da Reforma Sanitária Brasileira, passou a

haver um esforço e um incentivo para que se transformasse em Estratégia de um projeto

único do sistema da saúde e responsável pela Atenção Primária à Saúde (APS) com o

objetivo de:

colaborar decisivamente na organização do Sistema Único de Saúde e na

municipalização, implementando os princípios fundamentais de

universalização, descentralização, integralidade e participação comunitária

(...). O PSF prioriza as ações de proteção, promoção à saúde dos indivíduos e

da família, tanto adultos quanto crianças, sadios ou doentes, de forma integral

e contínua. (BRASIL, 1994, p.10-1)

Em documento propositivo para a organização do PSF no Brasil, publicado sob

responsabilidade do Ministério da Saúde em outubro de 1998, afirma-se que o objetivo

do PSF é “a reorganização da prática assistencial em novas bases e critérios, em

substituição ao modelo tradicional de assistência, orientado para a cura de doenças e no

hospital. A atenção está centrada na família, entendida e percebida a partir do seu

ambiente físico e social, o que vem possibilitando às equipes de trabalhadores uma

compreensão ampliada do processo saúde/doença e da necessidade de intervenções que

vão além de práticas curativas56”

Para avançarmos um pouco mais nas discussões em torno da Atenção Primária e das

diferentes propostas que embasam seus modelos tecnoassistenciais no campo da saúde,

acreditamos ser importante mencionar o estudo comparativo realizado por Franco e

56 “Saúde da Família: Uma Estratégia de Organização dos Serviços de Saúde”. MS. Brasília; março/1996; pág. 2.

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Merhy (2006) do PSF com a Medicina Comunitária e as Ações Primárias de Saúde

(Alma Ata, 1978). Nele, o autor mostra similaridades entre as três propostas, que se

organizam a partir de um ideal racionalizador e operam através do núcleo teórico da

epidemiologia e da vigilância à saúde.

Apontando para alguns dos desafios a incorrer no trabalho da Estratégia de Saúde da

Família, Franco e Merhy (2006) nos sinalizam para: as normatizações do programa

inspirados nos cuidados à saúde com características bastante higienistas, bem como,

para a necessidade de ampliação do conjunto de práticas clínicas que se produzam na

contra-mão do modelo médico hegemônico. Para o autor, a Medicina Comunitária e os

Cuidados Primários não se disporam a atuar na direção de uma ampliação da clínica por

basearem-se em uma prática de cuidado centrada no território e normatizada em função

de concepções desenvolvidas pela Organização Pan-Americana de Saúde. Nesta prática

o território é entendido apenas como espaço físico e os cuidados a serem oferecidos

constituem-se por ações no ambiente. Neste sentido, o autor aponta para o risco do PSF

agir como linha auxiliar do Modelo Médico Hegemônico.

É como se o PSF estivesse delimitando os terrenos de competência entre ele e

a corporação médica: ‘da saúde coletiva cuidamos nós; da saúde individual

cuidam vocês, a corporação médica’. E nada é melhor para o projeto

neoliberal privatista, do que isso, pois deixa-se um dos cenários vitais para a

conformação dos modelos de atenção sem disputa anti-hegemônica.

(FRANCO e MERHY, 2006, p.102).

Embora, os autores evidenciem que o PSF traz em sua concepção teórica a tradição

herdada da vigilância, por outro lado, é importante salientarmos que pretendê-lo como

uma mudança do modelo assistencial no campo da saúde é compreender que as

transformações são produzidas quando apostamos em uma reorganização dos modos de

atenção e gestão do processo de trabalho e de cuidado ativadas no plano dos encontros,

das relações.

***

Chegávamos a mais uma ‘reunião de rede’ em Macaé. As poucas

cadeiras existentes na sala funcionavam como um analisador para

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pensarmos a experiência de construção de nossas práticas no campo da

atenção básica quando emerge no grupo uma fala:

“É... nós somos Atenção Básica”, “precisamos do básico”, “a gente não

precisa de cadeiras”.

Afetos, corpos e entre-olhares produzidos naquela cena multiplicam os

sentidos de ser atenção básica. O que estar sem cadeiras produz? O que

o campo da saúde vem produzindo como atenção básica?

(Diário de Bordo, 03 de agosto de 2008)

***

Se por vezes o estar sem cadeiras parece ao grupo, emprestar sentidos a um fazer

entendido como um básico de ‘menor importância’ ou um básico plugado na idéia de

falta, percebíamos que a ausência de cadeiras como marcadoras dos especialismos

também sinalizam para muitos o embaralhamento dos lugares e saberes instituídos e o

quanto os mesmos por si só não respondem à variabilidade da vida e dos problemas com

os quais os trabalhadores se deparam. Habitar o plano de constituição da atenção básica

parece-nos, pois uma convocação a reinvenção da lógica do processo de trabalho.

Mergulhados na complexidade do território onde se desdobra a clínica praticada

em/com o movimento, fora dos espaços de reclusão convencionais, inauguram-se outras

formas de agenciamento terapêutico, outras possibilidades de conexão com os fluxos da

cidade e da cultura. Na clínica que aí se insinua, percebemos a possibilidade de

construção de um modo de fazer com o qual temos neste trabalho afirmado o próprio

processo de pesquisar. A experiência de acompanhamento vivida marca-se, muito mais,

pelos percursos do caminhar do que pelos lugares de partida ou de chegada. Atenta às

articulações com o fora, às conexões possíveis e aos planos de consistência que se

conquistam, estas nos parecem ser as pistas para viver este processo de experimentação

e acompanhamento que é sempre de aprendizagem. Como nos indica Benevides (1994)

Desnaturalizar os especialismos é, portanto, questão central para aqueles que

repensam a produção do conhecimento, que problematizam as dicotomias.

Não se trata, entretanto, de negar o poder do saber do especialista, isto seria

uma farsa. Farsa liberal. Cabe-nos pensar sobre seu funcionamento, sobre as

práticas que tem implementado e sobre o desmonte daquelas que em seu

próprio nome desqualificam as demais. Eis o nosso desafio: ocupar o lugar

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do especialista, desmontando-o a cada momento (BENEVIDES DE

BARROS, 1994, p. 160)

Os percursos produzidos no trânsito, na deambulação provisória do ir e vir no território

são marcados pela lógica de uma zona que Lancetti (2006) denomina de ‘autonomia

temporária’ afirmando o caráter provisório e inacabado de todo percurso. Nesta direção,

o autor questiona o modelo piramidal utilizado para representar uma certa

racionalização do atendimento em saúde, ao propor o conceito de complexidade

invertida.

No sistema de saúde existe uma hierarquização que pode ser descrita da

seguinte forma: os processos simples como programas de aleitamento

materno, programas para diabéticos e hipertensos, enfim todas aquelas ações

desenvolvidas em unidades básicas de saúde, situadas no bairro em que as

pessoas moram, são procedimentos simples, de baixa complexidade. Os

procedimentos realizados em centros cirúrgicos e hospitais de grande porte

como cirurgias de transplante de órgãos, cirurgias cardíacas, etc. são

procedimentos de alta complexidade. Na saúde mental ocorre exatamente o

contrário: os procedimentos realizados do outro lado do muro do hospital

psiquiátrico, nas enfermarias ou nos pátios; as atividades desenvolvidas nas

clínicas de drogados são procedimentos simples e que tendem à

simplificação. [...] As ações de saúde mental que ocorrem no território

geográfico e existencial, onde o sujeito vive, em combinação com os diversos

componentes da subjetividade, sejam eles universos culturais locais, de

culturas originárias, mídias, religiões, etc., são ações complexas

(LANCETTI, 2006, p. 107-108).

De algum modo o encontro Saúde Mental e Atenção Básica com seu plano de tessitura

com/no território chama-nos atenção justamente pelo movimento transversal que opera,

ao entrecruzar as mais variadas interfaces políticas, econômicas, sociais, culturais,

sexuais, etc., desestabilizando os limites identitários das disciplinas e produzindo

diferenciações no próprio conceito de clínica. Neste sentido problematiza o paradigma

racionalista: problema-solução/causa-efeito afirmando-se mais na força das próprias

experiências e os efeitos terapêuticos que produzem.

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2.4.2 Reverberações da experiência Santista na criação do Projeto Qualis/PSF:

Reinventando modos de fazer

De algum modo, uma das mudanças substanciais que vieram potencializar a Estratégia

de Saúde da Família com a implantação de um programa de saúde mental no Projeto

Qualis/PSF (SP), também recolhe no tempo algumas reverberações importantes da

experiência de Santos. Se o trabalho de desconstrução manicomial nos mostrava que o

cenário do hospício e da organização dos espaços-tempos eram promotores de

identidades cronificadas; também aprendíamos que a clínica é imanente ao processo de

desmontagem manicomial. Lancetti (2006) nos ajuda a entender este processo de

imanência com a vivacidade dos tempos em que construíam práticas de cuidado onde a

marca da ousadia, da invenção e de uma potência de transformação estava sempre a se

fazer. As experimentações57 vividas tornaram-se referência para a Reforma Psiquiátrica

Brasileira, e também fundamento para a invenção de diversas outras ocorridas em áreas

como educação, assistência social, segurança e saúde.

À medida que se desmontava os espaços-tempos manicomiais se ativava a

relação do coletivo (pacientes, trabalhadores de saúde mental, dirigentes)

com a sociedade, inventávamos cada dia empreendimentos que produzissem

desejo de viver fora do hospício. Clinicávamos para pôr de pé os cidadãos

psiquiatrizados e para promover uma intensa interação com a cidade, com

pessoas e movimentos de diversas partes do Brasil e de outras partes do

mundo.” (LANCETTI, 2006, p.22)

57 Lancetti (2006) destaca o agenciamento que produziam ao levarem um grupo de meninos e meninas de rua para passar um período na Casa de Saúde Anchieta. Nesta aposta, acreditavam que a conexão entre sedentários (pacientes crônicos) e nômades (moradores de rua) poderia produzir novas subjetividades. O trabalho com meninos de ruas, meninas prostituídas, de redução de danos ou com toxicômanos também se gestou inspirado na experiência de transformação da psiquiatria. O autor relata a experiência da chamada Casa de Inverno que constitui-se em meio a uma campanha emergencial realizada pela prefeitura de Santos no inverno de 1993 para acolher a população de rua da cidade. A montagem de um método de trabalho e de intervenção baseados no que se denominou de pedagogia da surpresa conduzia a direção de uma prática afetiva de combate à chegada do crack à cidade de Santos e às inúmeras mortes por overdoses de meninos e meninas que moravam nas ruas. O entusiasmo com os êxitos dessa intervenção inspirou o desenvolvimento de uma outra experiência com meninos e meninas de rua chamada de internação invertida. Nesta experiência, os educadores é quem eram internados junto com estes adolescentes com a saída da cidade para sítios, casas de praia ou acampamento. Nela, a idéia de desterritorialização do contexto pedagógico é que estava presente, tendo-se em conta que a assistência do modo como vinha sendo prestada estava fracassando. Nesta intervenção buscava-se fazer funcionar a criação de vínculos inéditos de afeto e transferência em uma relação entre educadores e meninos até então saturada e estereotipada, sem potência pedagógica ou terapêutica.

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A prática de acompanhamento terapêutico que consiste em transitar pela cidade com

pacientes psicóticos ou com alterações psíquicas graves também era gestada em meio a

muitas dessas experimentações. Santos, criou o primeiro concurso público para

acompanhantes terapêuticos58, de modo que o NAPS de Santos têm esses profissionais

em seu quadro de funcionários. A potencialidade destas experiências nos ajuda na

discussão do fazer clínico quando desafiamos um certo consenso moralista onde o

‘cuidar’ encobre um imperativo de higiene social.

A clínica praticada em movimento, fora dos espaços de reclusão convencionais,

inaugura outras formas de agenciamento terapêutico bem como, outras possibilidades de

conexão com os fluxos da cidade e da cultura. A nomadização da clínica não é

independente da própria falência das instituições de reclusão, e de algum modo já o

sinalizamos, quando junto com Deleuze analisamos a passagem de uma sociedade

disciplinar – baseada no confinamento – para uma sociedade de controle – calcada no

monitoramento dos fluxos em espaço aberto. Pelbart (2006) evidencia a possibilidade

da reinvidicação/construção de uma clínica peripatética ou cartográfica59, visto que,

precisamos construir outros modos de combate face a mutação histórica caracterizada

pela nomadização atual dos fluxos de toda ordem, e da própria subjetividade.

Ao lutar contra a produção maciça da impotência subjetiva, num contexto de

desterritorialização generalizada, trata-se de inventar as linhas de fuga aptas a

relançarem o movimento na direção de outras possibilidades de subjetivação.

(PELBART, 2006, p. 13)

Insistir na importância do trânsito na relação terapêutica e na problematização do

próprio percurso, do ir e vir, para que essa práxis não se reduza à de um auxiliar

psiquiátrico nos parece ser uma direção importante apontada por Lancetti (2001) ao ser

58 Ver mais em BENEVIDES, L. L. M. G. A função de publicização do acompanhamento terapêutico na clínica: O contexto, o texto e o foratexto do AT. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Universidade Federal Fluminense. 2007. 59 No sentido comum do adjetivo e na etimologia da palavra, peripatético provém de: peripatéo que significa: Passear, ir e vir conversando. Lancetti utiliza este termo muito próximo ao que Deleuze e Guattari trazem como a construção de uma clínica cartográfica, fundamentalmente, por entender que há uma fazer clínico que acompanha as linhas de constituição da vida. É trabalhando no acompanhamento dessas linhas, aliançando-se com o lado de fora das formas, com sua impermanência nos arranjos, que outros modos de subjetivação podem ser criados. Uma aposta insistente de busca e produção das poiéticas que pulsam nos percursos de afirmação da vida, tecidos coletivamente, sempre plural e cooperativo.

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convocado, em maio de 1998, para a construção de um programa de saúde mental para

o Projeto Qualis/PSF em São Paulo. Tal projeto se constitui como experiência piloto, e

neste trabalho, marcamos sua importância para pensar não só a interface experimentada

entre saúde mental e atenção básica, mas sobretudo, o desafio de construção e

sustentação do SUS. À época de implantação do projeto Qualis/PSF em São Paulo,

também coexistiam o Plano de Assistência à Saúde (PAS) baseado na privatização e em

motivações eleitoreiras e uma pobre rede de saúde básica gerenciada pelo estado60.

Uma das características peculiares deste desafio, é que o PSF tratava-se de um programa

que nunca havia sido testado em megalópolis de altíssima complexidade como São

Paulo. Até então, o PSF, tinha manifestado eficácia em diversos municípios brasileiros

de pequeno porte, a maioria situados no Nordeste e Norte do país. A prevalência do

mapa epidemiológico de São Paulo não era a desidratação como ocorre em pequenos

municípios do sertão, mas a violência e uma série de doenças de complexidade diversas.

Se em uma de suas indicações, Franco e Merhy (2006) nos alertam sobre o risco de

dicotomizações no PSF entre a saúde coletiva e a saúde dos indivíduos, Campos (2007)

corrobora com este autor ao considerar que no funcionamento do próprio SUS se

hibridiza uma ordem liberal privatista que se manifesta tanto dentro do SUS como

resistência permanente a ele, como dentro do imaginário dominante em tempos de

globalização capitalista. Um dos riscos de não enfrentarmos estes constantes

tensionamentos, visto que se fazem dentro do próprio SUS, incorre em

despotencializarmos tanto os movimentos instituintes do SUS, e neste sentido, da

Estratégia de Saúde da Família, caindo na enunciação de suas configurações como uma

60 Enfatizamos a importância da experiência Santista e suas reverberações na construção do Projeto Qualis/PSF em São Paulo, uma vez que temos a participação de grandes expoentes desta experiência como Davi Capistrano e Antônio Lancetti. Todavia, queremos também ressaltar a fertilidade de inúmeras experimentações de movimentos sociais, com destaque para o campo da educação, vividas em São Paulo no governo da prefeita Luíza Erundina de 1989 -1992 e que foram extremamente minadas pelo governo posterior do prefeito Paulo Maluf e seu sucessor Celso Pitta, haja vista, todo o investimento desta gestão em processos que corroboravam para o fortalecimento de uma lógica neoliberal. De acordo com estudos de Yamamoto e Carvalho (2002), o PAS (Plano de Atendimento à Saúde) tido como uma destas propostas de cunho neoliberal, só se tronou possível após três anos de deliberado sucateamento e desmonte da rede de serviços, ainda na gestão de Maluf, seguidos de um só golpe, pelo violento afastamento da grande maioria dos trabalhadores da rede. Segundo os autores, neste processo, foram afastados de suas funções originais 35.035 servidores, 88,30% dos existentes, que se negaram a ingressar neste esquema, apesar das pretensas "vantagens", dos quais 17.705 "exilaram-se" em outras Secretarias, muitos se demitiram e os demais foram para espaços remanescentes da Secretaria Municipal de Saúde não repassados para o PAS. Ver em YAMAMOTO, O. H. ; CARVALHO, D. B. . Psicologia e políticas públicas de saúde: anotações para uma análise da experiência brasileira. Psicologia para América Latina, México, v. 1, n. 1. 2002. p. 1-12

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política de saúde “(...)‘para pobres’, com baixa capacidade resolutiva, cuja função seria

gerir sobrevidas” (Neves, 2009, p. 505).

No Projeto Qualis/PSF, optou-se pela criação de duas equipes volantes de saúde mental

acreditando que o modus operandis do PSF, bem como, o trânsito e as possibilidades de

conexões com os recursos da comunidade deveriam ser ativadas em primeiro lugar.

É que a trama tecida pela organização sanitária torna-se uma “esteira fundamental de

onde deveria emanar um processo que viesse a produzir saúde mental” (Lancetti, 2001,

pg. 18). Ao analisar as novidades importantes que o modo de trabalho (o como fazer)

proposto pelo PSF traz para a produção e cuidado em saúde, Lancetti ressalta o

deslocamento da dinâmica de trabalho centrada no médico para uma equipe de saúde

como núcleo profissional (composta por cinco agentes comunitários de saúde, dois

auxiliares de enfermagem, um enfermeiro e um médico responsáveis por mil e duzentas

famílias). O autor destaca, sobretudo, a existência de um membro da equipe (Agente

Comunitário de Saúde) ser membro da equipe e morador do mesmo território atendido,

o número limitado de famílias atendidas por cada equipe e a dinâmica de funcionamento

favorecendo o vínculo, a responsabilização, coletivização das ações de saúde e a

continuidade no cuidado pela Equipe de Referência.

A criação de um dispositivo articulado à rede tecida pela organização de saúde

possibilitou, de fato, um encontro intercessor entre Saúde Mental e Atenção Básica. De

algum modo podemos dizer que novamente as reformas se encontram construindo

ressonâncias significativas nos movimentos instituintes de oxigenação e sustentação do

SUS. Este encontro potencializa não somente a produção de saúde e construção de redes

de cuidado integral, como também, um processo de diferenciação no interior das

próprias práticas de saúde.

Para a saúde mental, a possibilidade de trabalhar efetivamente no território, tem

significado uma estratégia radical da desinstititucionalização. De acordo com Pinto

(2007) nesta interface Saúde Mental/PSF, tem se constatado uma imensa faixa de

desassistência. “São pessoas em cárcere privado, trancadas em cômodos, isoladas em

partes das casas ou terrenos, onde moram as famílias ou mesmo perambulando a esmo,

em más condições, pelas comunidades” (p.189). Muitos CAPS, ainda, mantêm o bojo

de suas ações centradas nos usuários-pacientes sendo as abordagens familiares e

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comunitárias pontos cruciais a serem operados mais efetivamente. Muitas dessas

abordagens são dificultadas pelas próprias faltas concretas vividas pelas famílias em

suas comunidades, haja vista, a distância, preço de passagens, complicações de quem

acompanhe regularmente o usuário, irregularidades do transporte oferecido pelos

municípios quando da dificuldade de locomoção do usuário, etc. Dificuldades sobre as

quais precisamos nos interrogar, levando em consideração, que muitas delas, acabam

por interferir na adesão ao tratamento do próprio usuário.

Para a ESF tem sido a possibilidade de um novo modo de operar o trabalho em saúde,

uma inversão da lógica de cuidados – menos técnico e mais relacional – tanto entre

equipe-usuário como entre equipe-equipe. As equipes da Estratégia de Saúde da Família

(ESF) são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias,

localizadas em uma área geográfica delimitada, atuando com ações de promoção da

saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais freqüentes, e na

manutenção da saúde desta comunidade. Mediante a adstrição de clientela, as equipes

de Saúde da Família estabelecem vínculo com a população, possibilitando o

compromisso e a co-responsabilidade destes profissionais com os usuários e a

comunidade. Seu desafio é o de ampliar suas fronteiras de atuação visando uma maior

resolubilidade da atenção, onde a Saúde da Família é compreendida como a estratégia

principal para mudança deste modelo, que deverá sempre se integrar a todo o contexto

de reorganização do sistema de saúde. (Brasil, Departamento de Atenção Básica, 2004).

Neste sentido, a idéia de porta de entrada61 visa ser não somente o primeiro acesso da

população ao serviço, mas também um dispositivo de responsabilização institucional e

61 As propostas veiculadas pelas posições Reformadoras tornam como estratégico em sua concepção, a conceituação de uma rede de saúde, que funcionasse como porta de entrada dos serviços e estaria organizada na base de uma hierarquia piramidal e tecnológica de assistência à saúde estabelecendo-se como nível primário. Haja visto, o modelo lançado em 1982 pelo CONASP – Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária – cujas as diretrizes para a implantação da Atenção Primária postulavam a hierarquização dos serviços em formato piramidal em função dos níveis crescentes de complexidade tecnológica, a saber: a prevenção e os cuidados básicos em saúde para o nível primário como porta de entrada ao sistema; a assistência especializada em ambulatórios para o nível secundário; e as ações mais complexas na rede hospitalar para o nível terciário. A rede básica, entendida como o nível primário encarregado por atos “simples” e de “baixa” complexidade evidencia uma organização de um novo modelo assistencial que possuía todas as prerrogativas para efetivar “uma rede básica que seja lugar de uma verdadeira triagem dos problemas de saúde, comportando plenamente um eixo tecno-assistencial do tipo ‘queixa/procedimento’, ou variante, descaracterizando a articulação da dimensão individual e coletiva dos processos saúde/doença, acabando por realizar uma ‘deslavada’ medicalização-medicamentosa e produtora de procedimentos como fins em si mesmos” (Merhy, 2007, p.222).

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sanitária no processo do cuidado com a saúde articulado a toda a rede de serviços.

(Brasil, 2003a)

A ênfase no cuidado em saúde no território pressupõe um entendimento deste não

apenas como espaço geofísico, mas, sobretudo como espaço cultural, relacional onde o

estabelecimento de vínculos e a criação de laços de compromisso e de co-

responsabilidade entre profissionais da saúde e comunidade são pontos fundamentais

para a ruptura da perspectiva tecnicista em saúde e o fortalecimento do envolvimento

dos diversos atores sociais no processo saúde-doença-cuidado. Algumas diretrizes da

ESF como, a longitudinalidade e o planejamento ascendente, são colocadas em curso,

no intuito de operar esse novo modelo de assistência à saúde. A longitudinalidade é

definida como o segmento do usuário e de sua família no tempo, com a formação de

vínculo, independente da presença de patologia. O planejamento ascendente é definido

como o delineamento de estratégias de intervenção nas famílias, de acordo com as

necessidades da comunidade que reside no território. (Brasil, 1997)

2.5 Saúde Mental e Atenção Básica: Que conversa é essa?

As novas diretrizes que ocorreram na área da saúde, nos últimos anos, até mesmo pela

recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) têm convocado,

especialmente, os profissionais que atuam na atenção primária e outras áreas, a intervir

nos processos de reabilitação das pessoas em sofrimento quer sejam eles: por

sofrimento mental, pelo uso de drogas de modo suicida, por angústias, violências ou

graves opressões. (Lancetti; Amarante, 2006). Os processos de descentralização na

saúde ocorridos para formação de uma rede de cuidados com recursos assistenciais,

políticos, culturais e sociais, têm aproximado os usuários/famílias, de seus territórios.

Ao mesmo tempo, o trabalho efetivo com as pessoas em seu território tem enunciado

diversas formas de sofrimento, desassistência e processos que transformam as

diferenças em desigualdade e exclusão social. A incorporação das dimensões subjetiva e

social na prática clínica das equipes da atenção básica e o modus operandis de trabalho

da Estratégia de Saúde da Família faz com que os profissionais da Saúde da Família se

deparem cotidianamente com problemas de saúde mental.

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Após o monitoramento realizado pelo Ministério da Saúde em 2001 e 2002 para

avaliação da Estratégia de Saúde da Família em todo o país, a discussão quanto a

elaboração de uma proposta de ação conjunta tendo como base a metodologia de

trabalho de equipes matriciais tornou-se premente, visto que, a realidade das equipes de

atenção básica demonstra que, cotidianamente, elas se deparam com problemas de

“saúde mental”: 56% das equipes de saúde da família referiram realizar “alguma ação

de saúde mental”.62 Estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2001),

revelam que 12% dos problemas da carga mundial de doenças correspondam a

problemas de saúde mental. Destes, o Ministério de Saúde avalia que, no Brasil, 3% da

população (5 milhões de pessoas) apresentem transtornos mentais severos e persistentes

necessitando de cuidados contínuos - específicos dos CAPS -, e 9% apresentem

transtornos mentais “leves” - pelos quais a Atenção Básica deve se responsabilizar. Para

o Ministério há também dados de que 6 a 8% (embora existam estimativas ainda mais

elevadas) das pessoas com necessidade regular de tratamento apresentam transtornos

decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas, demanda esta que se insere

como parte das práticas de cunho preventivo e assistencial da rede básica. (Brasil,

2003b)

Trabalhando com a classificação feita pelo Ministério de Saúde, Figueiredo (2006)

dispõe como transtornos psíquicos ‘leves’: a prevalência de queixas somáticas e

‘nervosas’, transtornos de ansiedade, quadros depressivos relacionados a problemas

sociais e familiares decorrentes do uso e abuso de psicotrópicos. Todavia, questionamos

o que viria a ser essa divisão de transtornos metais em ‘leves e severos’ feita pelo

Ministério e as conseqüências desta divisão para o próprio processo de trabalho, na

medida em que entendemos os riscos de naturalizarmos o CAPS como local único e

específico para o tratamento de psicóticos.

Se o percentual levantado pelas pesquisas da OMS indicam que 56% das equipes de

saúde da família referiram realizar “alguma ação de saúde mental”, podemos aqui tomar

este índice não somente como um sensível dado estatístico, mas, sobretudo, como um

analisador da urgente necessidade de se operar na transversalidade. Pensarmos a

intercessão Saúde Mental e Atenção Básica no território é também a possibilidade de

62 Levantamento do departamento de Atenção Básica, apresentado em Seminário Internacional sobre Saúde Mental na Atenção Primária – Opas/MS/Universidade de Harvard/UFRJ, abril de 2002.

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operarmos mudanças nas relações no campo da saúde quando experimentamos a

inseparabilidade entre as práticas de cuidado e de gestão do cuidado aumentando os

graus de comunicação, de conectividade e de intercessão na organização dos processos

de trabalho.

Uma operação de transversalização de nossas práticas implica-nos necessariamente a

ultrapassar as fronteiras, muitas vezes rígidas, dos diferentes núcleos de saber/poder que

se ocupam da produção da vida fomentando em nosso dia a dia um processo contínuo

de contratação e pactuação que só pode se efetivar a partir do aquecimento das redes e

fortalecimento dos coletivos garantindo o caráter questionador das verticalidades pelas

quais estamos, na saúde, sempre em risco de nos ver capturados. (Passos; Benevides de

Barros, 2004).

***

Na escrita do diário, parecia por vezes que esta ganhava vida própria.

Desajeitando o jeito de nossos entendimentos, parecia não querer

comparecer à velha caderneta como forma de representação daquilo que

é dito ou visto. E foi numa dessas incursões com o diário que a escrita

tropeça em si mesma e se reinventa. Nair, ACS do PSF de Nova

Holanda, narrava histórias das lidas no/com o território quando avista

Dona Gertrudes sentada na sala de recepção do posto. Animada pela

visita dessa senhora conta que com a ida das equipes de saúde mental

para o trabalho conjunto com o PSF muitas pessoas começaram a se

encontrar. Os encontros não pareciam ser de um eu consigo mesmo, mas

com acontecimentos que faziam disparar outros modos de andar a vida,

uma transformação de modos de existência. “Muitos, dizia ela, saem da

depressão, saem de casa. Sabe o que é isso? Vão à farmácia, à padaria,

já vem à unidade (de saúde), estão vendo o mundo de outra forma, de

outro jeito”.

Dona Gertrudes compunha-se com os tempos intensivos das narrativas

de Nair quando a ACS lembra-se que esta senhora vivia dizendo que

estava doente. “Ela ia a todos os médicos de Macaé (oftalmo, otorrino,

gastro, etc...), pois achava que tinha todas as doenças do mundo.

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Tomava todos os tipos de remédio que você puder imaginar, desde o

xarope até remédio controlado.”

A escrita tropeça escrevendo-se: tomava todos os tipos de conversa que

você puder imaginar”

“Com a vinda da saúde mental começamos a ter mais paciência com ela,

ela sempre foi receptiva, mas ficávamos irritados porque ela achava que

a gente não dava jeito, saía daqui para fazer terapia lá no Barracão

(ambulatório de Macaé). Hoje o hábito de dizer que está doente diminui

muito, parou de tomar aquele montão de remédios, vem aqui no posto,

faz seus tratamentos conosco, confia na gente, temos um vínculo”.

(Diário de Bordo, 06 de outubro de 2008)

***

O que os tropeços da escrita poderiam nos indicar? Tomar remédios? Tomar conversas?

Dona Gertrudes parecia abrir-se ao mundo construindo uma certa porosidade de

abertura através do remédio. Parecia ter sede de vida, de saúde quando sabia-se tão

doente (como ela mesma insistia em afirmar tantas vezes), mas parecia insistir em tomar

não só remédios, mas conversas quando produzia a si e ao mundo nos percursos ‘de ir a

todos os médicos de Macaé’. Parece-nos que a insistência pelos remédios, são a

insistência em estar com o outro, em relacionar-se, e quiçá, de cutucar um certo modo

de relação dicotômica e distanciada pela qual nos produzimos. Sua insistência em tomar

remédios tomando conversas, pedia um outro modo de relacionar-se. Não bastava dar-

lhe remédios. Parece-nos que o que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica,

passa-se nos modos pelos quais nos constituíamos e nos relacionamos. Demorar-se

naquilo que nos inquieta, ‘ter paciência’, pôde produzir uma outra escuta, não só para

Dona Gertrudes, mas para a própria equipe em seus modos de fazer. Nesta construção

de vínculo e cuidado, há produção de mundo sem que aquela senhora precise ir a ‘todos

os lugares de Macaé’.

Se para as equipes de saúde mental a práxis operada no território evidencia-se por sua

complexidade e oposição à simplificação que faz funcionar um manicômio (Lancetti,

2006), percebíamos também que esta complexidade também se estendia às equipes da

Estratégia de Saúde da Família e seus modos de operar no/com o território. Nesta

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118

direção, parece-nos ser com/na intercessão dos diversos processos que marcam os

modos de ser e de viver das pessoas que podemos construir uma prática de cuidado.

2.5.1 Apoio Matricial? NASF’S? Como Pensar a interface Saúde Mental e Atenção

Básica?

No campo da saúde, tem sido freqüente a organização de oficinas de planejamento,

treinamentos e cursos, grupos de sensibilização e de discussões de problemas em

ocasiões nas quais se almejem mudanças na realidade cotidiana dos serviços. Todavia,

como nos aponta Campos (1999) estes espaços têm se constituído de forma bastante

transitória, visto que, não se efetivam como um plano consistente que altere a lógica de

funcionamento das organizações quer seja em sua dimensão gerencial, quer seja em

seus aspectos assistenciais.

Entendendo, em consonância às contribuições do pensamento de Guattari (1981), que

tanto a subjetividade quanto a cultura de uma instituição são produzidos socialmente e

que resultam também da estrutura e do funcionamento e ordenação específica dos

processos de trabalho, Campos (1999), propõe o investimento também na estrutura

gerencial e assistencial dos serviços de saúde. No que pese a importância do uso regular

de alguns dispositivos de caráter episódico, para o autor, estes “são regras para uma boa

gerência”; mas há, sobretudo, a necessidade de se inventar novos arranjos para o

funcionamento cotidiano dos serviços de saúde que operem na construção de outra

cultura profissional, na produção de outras linhas de subjetivação; que rompam com as

práticas de trabalho fragmentado, centrados no corporativismo e na alienação do

trabalhador do resultado de seu trabalho.

Os conceitos de equipe de referência e de organização matricial do trabalho vêm sendo

discutidos e ampliados propondo a adoção de um novo sistema de referência entre

profissionais e usuários onde cada serviço de saúde seria organizado pela composição

de equipes básicas de referência, recortadas segundo o objetivo de cada unidade de

saúde.

Um novo arranjo que estimulasse, cotidianamente, a produção de novos

padrões de inter-relação entre equipe e usuários, ampliasse o compromisso

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dos profissionais com a produção de saúde e quebrasse obstáculos

organizacionais à comunicação. (CAMPOS, 1999, p.398).

Para Campos e Domiti (2007), a Equipe de Referência constitui-se como um rearranjo

organizacional que busca reforçar o poder de gestão da equipe interdisciplinar

deslocando-o das profissões e corporações de especialistas. A construção de um

funcionamento dialógico e integrado da equipe de referência pressupõe tomá-la como

um espaço coletivo de discussão e análise dos processos de gestão e atenção construídos

na prática cotidiana dos serviços. A gestão deste trabalho interdisciplinar tem como

dispositivo operacional a definição de responsabilidade sanitária valendo-se da

adscrição de clientela de modo que se ampliem as possibilidades de construção de

vínculo e de cuidado continuado mantida por uma relação longitudinal no tempo com

esse conjunto de usuários adscritos.

O termo, Apoio Matricial, incorporado pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2003b) como

estratégia de gestão para a construção de uma rede ampla de cuidados em saúde mental,

surge em Campinas (SP) como um instrumento que se insere em um conjunto de

estratégias fundamentais no processo de construção do programa Paidéia de Saúde da

Família63 e da transformação da assistência em saúde mental, em especial, na atenção

básica.

Segundo Campos e Domiti (2007), o Apoio Matricial da Saúde Mental opera como uma

metodologia de trabalho complementar à organização dos profissionais em Equipes de

Referência (PSF). Neste sentido, o arranjo matricial constitui-se como ferramenta

especial para a consolidação de práticas em saúde que contemplem a complexidade da

vida que se passa no território. Pretende operar uma desconstrução na lógica do

encaminhamento, da especialização e do trabalho fragmentado; destinando-se a criação

de uma rede de atenção integrada, onde os projetos terapêuticos dos usuários sejam

construídos de forma singular e acompanhados conjuntamente.

63 O nome Paidéia tem sua noção originária da Grécia Clássica e faz referência à abordagem ampliada das questões de saúde. Para além do biológico, a saúde é entendida como fruto da sociabilidade, da afetividade, da organização da vida cotidiana, das relações com o território e com o meio ambiente. Este programa é uma adaptação do PSF do MS ajustado ao contexto sanitário de Campinas e tem como pressuposto que a produção de saúde se opera também com a intervenção nessas dimensões. (Campos, 2003).

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A responsabilização compartilhada dos casos pelas equipes de Saúde da Família

(Referência) e Equipes de Saúde Mental (Matriciamento) implica sempre na construção

de um projeto terapêutico integrado, todavia, Campos e Domiti (2007) ressaltam que

esta articulação pode ser desenvolvida em três planos fundamentais, a saber:

• Atendimentos e intervenções conjuntas (em atividades como: visitas

domiciliares, interconsultas, oficinas);

• Atendimentos e intervenções especializadas feitas pelo apoiador (mantendo

sempre contato com a equipe de referência). Esta por sua vez, não se

descomprometeria, procurando redefinir seu plano de cuidados ao paciente, à

família ou à comunidade complementar e compatível ao cuidado oferecido pelo

apoiador; e

• Troca de conhecimento e de orientações na avaliação do caso entre equipe de

referência e apoiadores (em capacitações, reuniões, grupos de discussão),

mantendo o diálogo sobre alterações do caso e reorientações de condutas em

função dos impasses e dificuldades vivenciados.

É importante salientar que dados da OMS e do Ministério da Saúde estimam que quase

80% dos usuários encaminhados aos profissionais de saúde mental não trazem, a priori,

uma demanda específica que justifique a presença destes especialistas. Segundo Braga

Campos e Nascimento (2007), a observação de várias experiências em curso nos mostra

que não é pequena a porcentagem de usuários que, embora encaminhados, não

conseguem ter acesso ao atendimento especializado e por vezes, quando atendidos, a

espera é tão longa que acaba por comprometer a ‘adesão’ do usuário ao atendimento.

No que pese a importância do olhar e tecnologia do especialista em saúde mental,

percebe-se que determinadas necessidades expressas por parte significativa da

população encaminhada não podem ser satisfeitas com base apenas em tecnologias

utilizadas por essa ou aquela especialidade. Em muitos casos, o empreendimento de

longos processos psicoterápicos e a administração de psicotrópicos são insuficientes

como únicas respostas. O melhor acompanhamento de muitas dessas demandas se faz

na integralidade e esforços conjuntos dos profissionais envolvidos, mobilizando outros

dispositivos da rede, recursos da própria comunidade (materiais e subjetivos) a serem

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pactuados com o usuário ou rede social em questão. (Figueiredo, 2006; Braga Campos e

Nascimento, 2007)

Baseando-se nesta compreensão, o Ministério da Saúde (Brasil, 2004) tem ‘estimulado’

a inserção da saúde mental na rede básica, através de redes de cuidado e da atuação

transversal com outras políticas. Propõe, neste sentido, a ‘ampliação da clínica’ das

equipes de Saúde da Família, sendo necessária às mesmas, a incorporação de outras

dimensões dos usuários além de sua faceta biológica. A construção de uma relação

longitudinal no tempo entre a Equipe de Referência e usuário mediante a definição da

responsabilidade sanitária com a adscrição de clientela é apontada por Lancetti (2001)

como um nó precioso do programa de Saúde da Família. O estabelecimento de vínculo

continuado, mesmo em condições onde o paciente necessite ser referenciado a outro

serviço ou quando a própria equipe necessite de suporte, mantém a responsabilidade de

seu cuidado na Equipe de Referência. Um modo de operar a atenção que permite

contrapor-se aos mecanismos tradicionais de referência e contra-referência que tendem

à descontinuidade e a fragmentação do cuidado.

Mesmo quando se indica uma internação, uma cirurgia ou tratamento de

maior complexidade, o paciente continua a ser da equipe, enquanto morar no

mesmo bairro. O vínculo e a continuidade exigem lidar com o sofrimento

humano, processo para o qual os técnicos não estão preparados (LANCETTI,

2001, p. 39).

Todavia, é importante realizarmos algumas discussões tanto sobre quais têm sido os

estímulos do Ministério da Saúde para que essa inserção da saúde mental na atenção

básica de fato aconteça, bem como, do que temos proposto como ampliação da clínica.

É que embora houvesse uma preocupação com a necessidade de inserção da saúde

mental na atenção básica, de fato, não existia nenhum tipo de repasse financeiro que

garantisse a implementação dessas propostas. Trabalhadores da Saúde Mental do

município de Macaé conseguiram garantir a implantação desta proposta de

matriciamento desde 2002, com recursos do próprio município, todavia, não podemos

dizer que esta prática se desenvolvia amplamente em outros lugares do país, visto que,

não havia nenhuma ajuda financeira do Ministério da Saúde.

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A aprovação da Política Nacional de Atenção Básica na forma da portaria N° 648/GM

de 28 de março de 2006 (Brasil, 2006), estabelece a revisão de diretrizes e normas para

a organização da Atenção Básica para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o

Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Todavia é somente em 2008 com a

Portaria N°15464 que há o estabelecimento formal de uma política de financiamento

com a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família/NASF (Brasil, 2008). Como

modo de ampliar a abrangência e o escopo das ações de atenção básica melhorando a

qualidade e a resolutividade da atenção à saúde, o NASF constitui-se por equipes

compostas por profissionais de diferentes áreas de conhecimento65 que atuarão em

parceria com os profissionais das equipes de Saúde da Família. Neste sentido, é

reafirmado o apoio às equipes de referência dos PSF’S/Unidades Básicas nas quais o

NASF esteja vinculado, ressaltando a direção de um trabalho e responsabilização

compartilhados que atente para uma revisão da prática do encaminhamento com base

nos processos de referência e contra-referência, ampliando-a para um processo de

acompanhamento longitudinal de responsabilidade da equipe de Atenção Básica/Saúde

da Família.

Ressaltamos que a constituição de um modelo assistencial de saúde, que subverta a

lógica e paradigma biomédico, tanto por parte da Atenção Básica, com a Estratégia de

Saúde da Família, quanto por parte da Saúde Mental (inserida com essa portaria nos

NASF’S) deve ser interrogada continuamente, no intuito de que a intenção de mudança

não se resuma a expansão de “ambulatórios melhorados”, riscos concernentes tanto às

64 Nesta portaria os NASF’S foram classificados em duas modalidades, sendo vedada a implantação concomitante das duas modalidades em um mesmo município. O NASF 1 com financiamento de R$ 20 mil a cada mês, será composto, no mínimo, por cinco profissionais de nível superior como médicos de diversas especialidades, Assistentes Sociais, profissionais de Educação Física, Farmacêuticos, Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos, Nutricionistas, Psicólogos e Terapeutas Ocupacionais, que deverão realizar suas atividades com o mínimo 8 e o máximo 20 equipes de saúde da família. Poderão implantar o NASF 2 somente os municípios que tenham densidade populacional abaixo de dez habitantes por metro quadrado. Ele será composto por pelo menos três profissionais de nível superior, que podem ser assistente social, professor de educação física, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, psicólogo e terapeuta ocupacional. Cada NASF 2 deve realizar suas atividades com no mínimo três equipes de saúde da família seu financiamento será de R$ 6 mil a cada mês, repassados diretamente do Fundo Nacional de Saúde aos fundos municipais de saúde. 65 Os núcleos multiprofissionais são compostos por no mínimo cinco profissionais, definidos pelos gestores municipais, dentre as seguintes ocupações: Médico Acupunturista, Assistente Social, Professor de Educação Física, Farmacêutico, Fisioterapeuta, Fonoaudiólogo, Médico Ginecologista, Médico Homeopata, Nutricionista, Médico Pediatra, Psicólogo, Médico Psiquiatra e Terapeuta Ocupacional.

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práticas de saúde mental como a própria proposta do PSF. Como nos sinaliza Silva

Júnior (2006) “... sob o nome de programa de saúde da família encontram-se desde as

piores práticas de pronto atendimento simplificado, passando por atendimento médico

tradicional, até experiências realmente inovadoras na assistência”. (p.64)

Como então pensarmos a produção desta interface Saúde Mental e Atenção Básica?

Como construí-la aliançando-nos com as forças dos movimentos instituintes produzidos

neste encontro? De algum modo, acreditamos que mais do que a produção de respostas

para nossas questões há que se estar atento para os novos problemas que temos

construído em nossa prática cotidiana. Nesta direção, acreditamos que a análise das

experiências de ‘expansão’ da saúde mental nos Estados Unidos da América (E.U.A) na

década de 1960 e, por conseguinte, para a análise do papel dos ‘desviantes’ neste país,

permite-nos tirar algumas indicações tanto para os sentidos que queremos afirmar

com/na intercessão saúde mental e atenção básica, quanto para a reestruturação do

modelo assistencial viabilizado pela Estratégia de Saúde da Família.

2.5.2 Arando em outros solos – contribuições basaglianas frente à experiência

norte-americana

De acordo com Amarante (1995b) um dos argumentos comumente utilizados por

setores66 que se mostram contrários ao processo da reforma psiquiátrica no Brasil,

utilizam a experiência dos E.U.A para dizer sobre as tentativas e fracassos da reforma

em saúde mental.

Passando ao largo da experiência americana, a Reforma Psiquiátrica Brasileira se

inspira claramente na crítica radical ao paradigma psiquiátrico clássico na tradição

66 Dos setores que resistem às reformas no campo da saúde mental, o autor evidencia grupos de empresários ligados ao intenso processo de privatização da assistência psiquiátrica no Brasil consolidada a partir do Plano de Pronta Ação do Ministro Leonel Miranda, que servia não somente ao esquadrinhamento do espaço público, mas à constituição de uma verdadeira ‘indústria da loucura’. Amarante ressalta o financiamento por parte destes grupos de uma entidade de familiares para se oporem às reformas ao deturparem aterradoramente os princípios da reforma. Neste sentido, o autor também destaca parte do setor acadêmico que se baseando no paradigma da psiquiatria clássica constroem e veiculam no campo da reformas, um falso argumento às idéias de Basaglia. Contrapondo-se a esses setores, sabemos das influências do movimento da psiquiatria democrática italiana, tendo como expoente Franco Basaglia, na constituição do movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, e que em muito, significou o questionamento e ruptura com todo o processo de objetivação do homem. Ver em: Amarante, P. Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cad.Saúde Públ.,Rio de Janeiro,11 (3):491-494,jul/set,1995.

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iniciada por Franco Basaglia e continuada pelo movimento da psiquiatria democrática

italiana. Afirmando a urgência de revisão das relações, a partir das quais o saber médico

funda sua práxis, a tradição Basagliana vem matizada com cores múltiplas; traz em seu

interior a necessidade de uma análise histórico-crítica a respeito da sociedade e da

forma como esta se relaciona com o sofrimento e a diferença. É, antes de tudo, um

movimento político: traz a polis e a organização das relações econômicas e sociais ao

lugar da centralidade e atribui aos movimentos sociais um lugar nuclear, como atores

sociais concretos, em um confronto com o cenário institucional onde o que está em jogo

é o questionamento da construção de nossas práticas e de nossas relações e no quanto

estas perpetuam ou reinventam outras práxis.

A experiência de Trieste, na Itália, proposta por Basaglia como um empreendimento de

demolição do aparato manicomial, marca decisivamente uma crítica à natureza da

instituição psiquiátrica e a inviabilidade de se operar em uma lógica de reforma que se

pretendesse apenas uma mera reorganização técnica, humanizadora, administrativa ou

política. Com esta experiência, Basaglia propunha não somente a extinção dos

tratamentos violentos e destruição dos muros manicomiais como também a constituição

de novos espaços e formas de lidar com a loucura.

O modelo de comunidade terapêutica ― idealizada por Maxwell Jones, na Inglaterra ―

é utilizado como ponto de referência para os primeiros passos da instauração de uma

crise interior ao dispositivo institucional. Crise que passava pela negação de quaisquer

classificações nosográficas que se mostrassem ideológicas quanto à condição real do

paciente. O nível de degradação, objetificação e aniquilação total que ele apresenta não

são a expressão pura de um estado mórbido, mas, sobretudo, o produto da ação

destrutiva de uma instituição cuja finalidade baseou-se em salvaguardar os sãos, da

loucura.

É importante ressaltarmos que Basaglia recusa-se a propor a Comunidade Terapêutica

como modelo institucional que seria vivenciado como uma proposta de uma nova

técnica resolutiva de conflitos ou ato reparatório. A partir dessa experiência, torna-se

possível refletir sobre os riscos inerentes ao modelo de comunidade terapêutica. Este

caráter ainda terapêutico matizava e deixava intacto um dos elementos constituintes do

dispositivo psiquiátrico: a relação terapêutica médico/paciente, lugar instituinte das

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relações de objeto e saber/poder. Este espaço produzia um mundo ainda à parte das

relações sociais complexas, ainda promovia uma redução da loucura à objeto de

intervenção e visibilidade exclusiva. A gestão comunitária que procurava apenas

humanizar o manicômio não colocava em discussão as relações de tutela e custódia e

nem questionava o fundamento de periculosidade social contido no saber psiquiátrico.

Em seu texto “Carta de Nova York O doente artificial” Basaglia (2005) analisa a

experiência norte americana de construção de pequenas unidades psiquiátricas como

projeto de reforma no campo da saúde mental. Ressalta que o nascimento dessas

unidades não se fazem como reversão do modelo psiquiátrico clássico adotado pelas

velhas instituições manicomiais, mas se traduzem como uma expressão direta de uma

nova legislação que pretende resolver tecnicamente as contradições da realidade sobre a

qual opera. Agindo de modo complementar às instituições da violência (uma vez que

estas ainda continuam a existir) e mostrando-se, aparentemente, mais abertas e não

discriminatórias buscam a readaptação cada vez mais de uma gama de ‘desviantes’ que

o próprio sistema sócio econômico produz. Examinando o fenômeno dos desvios nos

E.U.A, Basaglia ressalta o quanto este ‘problema’ racionalizado num terreno

multidisciplinar , vem apresentando-se como tema pertinente à sociologia em função de

uma necessidade de se garantir a totalização do controle. As novas organizações

psiquiátricas dispõem de uma capilaridade multidisciplinar conseguindo criar uma rede

de controle técnico-social muito mais penetrante e sutil, cuja barreira entre norma e

desvio torna-se cada vez mais frágil e discriminatória. Cria-se uma nova categoria de

doentes, restringindo o conceito de norma e englobando como patologia os ‘desvios’, as

‘marginalidades’ e as ‘desadaptações’. A ação das unidades psiquiátricas, em um

contexto, no qual continua a coexistir de forma ativa o Hospital Psiquiátrico, como o

lugar para onde devem ser enviados os doentes definidos como crônicos ou

‘transtornados’, traduz-se por um caráter preventivo que, neste caso, serve muito mais

para dilatar o campo da doença do que para reduzi-lo. De algum modo, percebemos com

as discussões apontadas por Basaglia, que a lei Kennedy de 1963 que instituía a criação

das unidades psiquiátricas nos E.U.A reconhecia o problema de saúde mental como

problema eminentemente social.

Se, na sociedade afluente, tende-se a romper o rígido vínculo entre a

ideologia médica e a lei, para criar um novo tipo de interdisciplinaridade com

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outras ciências humanas, a finalidade desse deslocamento não é a melhora

das condições de vida do homem, mas a descoberta de um novo tipo de

produtividade e de eficiência que consegue explorar o ineficiente e o

improdutivo ou encontrar um novo papel para eles. (BASAGLIA, 2005. p.

199-200)

O alargamento do conceito de doença usado para justificar as contradições do próprio

sistema capitalista, torna-se evidente dentro da lógica do capital no momento em que se

criam novos serviços encarregados de tratá-las. Como qualquer instituição inserida no

ciclo produtivo, os novos serviços orientam-se não para reduzir o fenômeno para o qual

foram criados, mas para produzi-lo em consonância às exigências de controle do capital.

Neste sentido devemos estar atentos a uma estreita relação feita entre clínica e política

quando percebemos que a ‘ampliação da clínica’ insere-se como alargamento dos

limites de norma definidos pela organização político-social. Desse modo,

compreendemos neste caso o quanto a definição de doença serviu para manter intactos

os valores da norma postos em discussão. Seguimos com as interrogações de Basaglia

(2005, p.202) “Como pretender estar cuidando de quem sai da norma, se nossa principal

preocupação é a adaptação à norma e a manutenção dos seus limites?” Para o autor:

O sentido do nosso trabalho só pode continuar a mover-se numa dimensão

negativa que é, em si, destruição e ao mesmo tempo superação. Destruição e

superação que ultrapassem o sistema coercitivo-carcerário das instituições

psiquiátricas, o sistema ideológico da psiquiatria enquanto ciência, para

entrar no terreno da violência e da exclusão do sistema sócio-político,

recusando-se a deixar-se instrumentalizar por aquilo que se deseja negar. (...)

O desviante como problema real (que evidencia a face perdedora do capital,

enquanto rejeição aos seus valores ou expressão de sua falência) torna-se o

problema do desviante como uma das faces do capitalismo vencedor, ao ser

assumido como problema técnico, para o qual estão prontas soluções técnicas

apropriadas (...) (BASAGLIA, 2005, p. 130; 204-205)

Basaglia nos aponta outros aspectos da vida norte americana - como o problema da

pobreza e dos negros67 - evidenciando o quanto o ‘fenômeno dos desviantes’ nos E.U.A.

67 A criação dos Community Mental Health Centers confirmam que a introdução de uma perspectiva ‘social’ serve apenas para formular uma racionalização ‘interdisciplinar’ para um fenômeno de origem socioeconômica. Os negros, os porto-riquenhos, judeus e italianos assistidos pelo Welfare por estarem às margens da produção, são privados de um projeto que vá além da sobrevivência assegurada pelas

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é transformado de um problema real para uma dimensão ideológica. Para o autor, a

difusão e explicitação dessas questões como ‘problemas a serem conhecidos e

enfrentados’ faz com que percam seu caráter ameaçador à dinâmica do capital, para

tornarem-se uma ideologia pela qual se buscam soluções. Com a norma aqui definida

em termos de produtividade, assim também se faz a definição de desvio.

Para Basaglia, o negro, o doente, o desviante, o pobre são faces diversas de um mesmo

problema, suas semelhanças se traduzem pela não participação na produção, isto é,

pessoas que de algum modo perderam ou nunca tiveram uma força contratual face às

fontes produtoras. A produção de modos de ‘sobrevida’ neste sistema aponta para uma

prática de ‘cuidado’ organizada e definida pela doença, que aqui, é entendida como todo

e qualquer desvio da norma, passível de ser tratado.

As influências do movimento da psiquiatria democrática italiana, no Brasil, dá às lutas

no campo das reformas em saúde mental, um outro tom. Uma tensão recíproca que

colocasse em jogo os papéis cristalizados foi a aposta de trabalho e invenção em uma

unidade do Hospital Psiquiátrico de Gorizia à época de Basaglia. E seria sobre essa

tensão que a organização interna começaria a se desenvolver tornando-se ela mesma um

ato terapêutico. Ao questionar todo o processo de objetivação do homem, questionamos

junto com Basaglia, os modos de cuidado que temos produzido com/na vida. O que em

nós quer cuidar? Com que forças nos aliamos nos movimentos de afirmação da vida?

Entender que os processos relacionais se constituem como centro da atenção no

processo do cuidado, e não mais o “diagnóstico”, levou as experiências da

desinstitucionalização em Trieste a esse desconstruir/construindo relações (doença e

ciência), à autogestão do processo de trabalho (da reabilitação, do tempo, do cotidiano

de um serviço e da vida) pela equipe de cuidadores e dos cuidados. Assim produziam-se

novas subjetividades68 com a aposta em um sujeito capaz de fazer andar a própria vida.

organizações assistenciais. Esses Centros de Saúde Mental funcionam como controle de uma faixa marginal produzida pelas contradições e desigualdades do próprio sistema capitalista que não consegue absorvê-las em instituições produtivas. O aumento progressivo da população em zonas subdesenvolvidas entra em conflito com “os desígnios imperativos dos grupos que, para sobreviver, devem manter regimes burgueses-latifundiários que impedem o desenvolvimento e a industrialização” (BASAGLIA, 2005, p. 211). 68 A noção de subjetividade é trabalhada por Guattari (1989) como um conjunto de componentes que são tanto da ordem extra-individual (sistemas econômicos, sociais, tecnológicos, ecológicos etc.), quanto da

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No que pese a importância de outras propostas de reforma69 que surgiram ao longo do

século XX, a crítica italiana opera uma ruptura radical às diversas experiências que

procuravam recuperar as funções de tratamento e cuidado no manicômio. Para além de

pensar a desinstitucionalização da psiquiatria enquanto saber normativo e totalizante,

Basaglia passa a pensar os funcionamentos do social e do coletivo no problema dos

internos dos hospitais psiquiátricos70. Sua preocupação, ao versar sobre o papel dos

trabalhadores de saúde mental após aprovação da lei 18071, focava-se na constituição de

práticas que assumam riscos, que vivam na experiência o não saber, sem incorrer

precipitadamente a provisões que dessem respostas aos distúrbios psíquicos.

Quais seriam então nossas questões? O que estaríamos colocando em jogo nesta luta?

Como manejar com o não saber, apostando na invenção e na construção de práticas que

não nos aprisionem ao terreno da normatização? Como não nos apartarmos de tudo

aquilo que podemos na experiência e no encontro com o outro?

De algum modo, fazemos uso das palavras de Rotelli (1990): para pensar que

O projeto de desisntitucionalização coincidia com a reconstrução da

complexidade do objeto que as antigas instituições haviam simplificado (e

não foi por acaso que tiveram que usar de violência para consegui-lo). Mas se

o objeto muda, se as antigas instituições são demolidas, as novas instituições

devem estar à altura do objeto, que não é mais um objeto em equilíbrio, mas

está, por definição (a existência-sofrimento de um corpo em relação com o

ordem infrapessoal (sistemas perceptivos, de afetos, de desejo, orgânicos etc.). Para o autor, a identificação da subjetividade à individualidade tem sido uma das estratégias de se reduzir os componentes múltiplos e heterogêneos dos modos possíveis de subjetivação a apenas uma de suas possibilidades a representação universalista e unificada do indivíduo. Ver em GUATTARI, F. As Três Ecologias. Campinas: Papirus, 1989.

69 De extrema importância uma vez que as iniciativas reformadoras que prosseguiram ao longo do século XX, pelas propostas de Comunidade Terapêutica e as conhecidas como Preventivistas ainda mantinham como eixo norteador de suas ações o modelo hospitalocêntrico, reforçando a existência do hospital como lugar privilegiado de tratamento. 70 Há nos textos de Basaglia a afirmativa que o poder normativo exercido pela psiquiatria não era exclusivo da prática de “cuidados aos doentes mentais”. Esse poder era encontrado nas fábricas, escolas, universidades, prisão. Tais instituições ele denominou instituições da violência. 71 Lei que determinava o fim dos manicômios em todo o território italiano.

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corpo social), em estado de não equilíbrio: esta é a base da instituição

inventada (e nunca dada). (ROTELLI, 1990, p.90)

Parece-nos que a radicalidade deste projeto toma força nos movimentos instituintes

operados nas experiências de constituição do SUS tanto em Santos quanto no Projeto

Qualis/PSF, mas, sobretudo, nos enseja a pensar nos modos como temos tomado as

forças destes movimentos reinventivos na construção de práticas de cuidado na interface

Saúde Mental e Atenção Básica.

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CAPÍTULO III

O cuidado como constituição de um Ethos

A construção de nosso percurso de viagem-pesquisa, até o momento, permite-nos

interrogar sobre as estratégias que podemos inventar diante dos perigos de totalização e

individualização. A experimentação de práticas que possibilitem fazer aparecer as

visibilidades de experiências de cuidado que apostam na dimensão coletiva e pública

das políticas de saúde, requer que avancemos na discussão do que temos chamado de

práticas de cuidado e, neste sentido, problematizarmos, em nosso contemporâneo, a

relação entre produção de saúde, produção de cuidado e produção de subjetividade.

Ao propor uma análise da produção do sujeito a partir do saber e do poder, Foucault,

percebe a necessidade de desenvolver, o que podemos chamar de uma terceira dimensão

de seus estudos, que é a da subjetividade. Essa necessidade, talvez resida no que

Deleuze (2005) apontará em seu estudo sobre o autor, em uma certa sensação de

sufocamento, de um impasse que o próprio poder nos coloca ‘tanto em nossa vida

quanto em nosso pensamento’ (p.103) quando nos debruçamos no estudo das relações

de poder em exercício nas nossas sociedades contemporâneas e em nossas vidas de

modo geral. Este impasse é percebido por Foucault ao apontar para o complexo

funcionamento capitalista na passagem da técnica de poder disciplinar para a de

regulamentação (controle), onde o poder se exerce na vida e é a própria vida que se quer

atingir - como já vimos anteriormente neste trabalho. Diante desse avanço do poder

sobre a vida, nos perguntamos junto com o autor: Não haveria nada para além do poder?

Como apostar em práticas de resistência quando o poder aparece como exercício de

forças, que cria, incita, normatiza e, fundamentalmente produz formas de vida? Como

afirmar a vida a partir de sua potência de resistência?

Foucault nos indica uma direção importante para pensar uma saída deste impasse ao

estudar o pensamento grego. Neste estudo, o autor observa uma outra possibilidade de

relação que não reside simplesmente na ação sobre o outro, mas em uma ação sobre si

mesmo. Ao analisar as relações de poder, Foucault percebe que as leis, normas ou

estruturas de governo não são os fatores primordiais que regulam as relações entre os

homens. O fenômeno que chama sua atenção e que se configura como o mais

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importante e determinante para uma acentuação da reflexão moral concerne às

mudanças que se pode observar nas condições de exercício do poder72. Foucault destaca

mudanças quanto ao aumento do número de senadores e cavaleiros no decorrer dos

primeiros séculos para governar como e quando convém frente às necessidades de uma

administração complexa e extensa; bem como mudanças quanto ao papel que estes são

levados a desempenhar e o lugar que ocupam no jogo político.

Às novas formas de jogo político e às dificuldades do próprio sujeito se

pensar como sujeito de atividade entre origem e funções, poderes e

obrigações, encargos e direitos, prerrogativas e subordinações, foi possível

responder com uma intensificação de todas as marcas reconhecíveis de status

ou pela procura de uma relação adequada consigo mesmo. (FOUCAULT,

2007, p.92)

Ao perceber que as novas condições da vida política modificavam as relações entre

status, encargos, poderes e deveres, Foucault atenta para dois fenômenos que puderam

se produzir neste período. Se por um lado nota-se uma acentuação de tudo aquilo que

permite ao indivíduo fixar sua identidade73, o que chama a atenção do autor é a

existência também de uma atitude que consiste, ao contrário, na intensificação e

desenvolvimento de uma relação consigo sem que por isso, e de modo necessário, os

valores do individualismo ou da vida privada encontrem-se reforçados.

(...) fixar o que se é, numa pura relação consigo: trata-se, então de constituir-

se e reconhecer-se enquanto sujeito de suas próprias ações, não através de

um sistema de signos marcando poder sobre os outros, mas através de uma

72 Foucault questiona uma certa análise sobre o declínio das cidades-Estado a partir do século III a. C. como entidades autônomas e da organização das monarquias helenísticas e, em seguida, do Império romano que acredite haver neste período uma redução ou anulação das atividades políticas pelos efeitos de um imperialismo centralizado. Para o autor, convém pensar muito mais na organização de um espaço complexo (mais vasto, mais descontínuo e mais flexível do que poderia ser o espaço das pequenas cidades-Estado). “É um espaço onde os focos de poder são múltiplos, onde as atividades, as tensões, os conflitos são numerosos, onde eles se desenvolvem de acordo com várias dimensões, e onde os equilíbrios são obtidos por meio de transações variadas” (FOUCAULT, 2007, p.89). Ressalta que as monarquias helenísticas procuraram muito menos reorganizar os poderes locais freando-os ou até mesmo suprimindo-os, e mais apoiar-se sobre eles como intermediários para recolhimento de tributos e impostos extraordinários necessários à manutenção dos exércitos. 73 Destaque para uma identidade fixada ao lado do próprio status e dos elementos que o manifestam de forma mais visível como comportamentos a partir dos quais o sujeito se afirmaria na superioridade manifestada sobre os outros. Procuravam adequar-se o tanto quanto fosse possível a “(...) todo um conjunto de signos e de marcas que dizem respeito à atitude corporal, ao vestuário e ao habitat, aos gestos de generosidade e de magnificência, às condutas de despesa, etc.” (FOUCAULT, 2007, p.92)

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relação tanto quanto possível independente do status e de suas formas

exteriores, já que ela se realiza na soberania que se exerce sobre si próprio.

(FOUCAULT, 2007, p.92)

Há nos gregos, uma preocupação com um cuidado de si, com um modo de trabalhar a si

mesmo, de se conduzir, como condição para governar os outros. Torna-se importante,

uma constituição do sujeito como sujeito moral. O que está em questão nesta

constituição de si como sujeito moral não são os códigos e regras que agem como

referência para determinadas condutas. Embora, estes não sejam negados o que se faz

fundamental são as diferentes maneiras para aquele que age de operar com esses

códigos, de criar regras facultativas, o que faz com que se constitua sujeito moral de

uma ação. “Moral no sentido amplo comporta os dois aspectos que acabo de indicar, ou

seja, o dos códigos de comportamento e o das formas de subjetivação” (Foucault, 1984,

p.29).

Os dois primeiros séculos da época imperial (séc. I e II de nossa era) são considerados

como a idade de ouro para o desenvolvimento e ápice do que Foucault chamou de uma

‘cultura de si’, na qual foram intensificadas as relações de si para consigo, tendo no

princípio do cuidado de si uma espécie de condição ética para constituir-se como um

bom governante. “Constituir-se como sujeito que governa implica que tenha se

constituído como sujeito que cuida de si” (Foucault, 1984, p.278).

Os gregos orientavam-se, pois em sua reflexão moral, não para construir um quadro de

prescrições, uma codificação dos atos, mas para constituir uma estética da existência.

Torna-se fundamental para a constituição das subjetividades uma dimensão ética que

aqui comparece e que implica os humanos em relações reflexivas de cada um consigo

mesmo. Afirmar a importância desta dimensão ética no que concerne à constituição

subjetiva dos indivíduos nos permite apontar uma outra qualidade de cuidado onde o

cuidado de si, surge a partir do cuidado do outro. Há, portanto, uma relação consigo que

começa a derivar-se da relação com os outros bem como uma constituição de si que não

está submetida a um código moral como regra de saber. César (2008) destaca a

importância desta derivação ao colocar que é a através dela que podemos afirmar uma

‘independência da relação da força consigo (...). Há o que podemos chamar de uma

autonomia da força’(p.48).

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Interessava a Foucault, no estudo da subjetividade, problematizar as práticas pelas quais

os homens foram levados ‘a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar’(1984, p.11).

Para tanto, empreenderá, a partir de uma ‘ontologia histórica’ das relações humanas com

a moral, um olhar para esta outra qualidade de cuidado que aparece na antiguidade e que

nos possibilita pensar uma ontologia crítica de nós mesmos como possibilidade de

reinvenção de nós mesmos como sujeitos éticos. Compreendemos nos gregos a

independência da relação da força consigo quando se percebe que não basta que uma

força exerça ação ou sofra a ação de outra força, mas que ela atue sobre si mesma. A

força curva-se sobre si mesma. Deleuze nos fala desta curvatura como uma espécie de

dobra da linha.

Os gregos inventam o modo de existência estético. É isso a subjetivação: dar

uma curvatura à linha, fazer com que ela retorne a si mesma, ou que a força

afete a si mesma. Teremos então os meios de viver o que de outra maneira

seria invivível. O que Foucault diz é que só podemos evitar a morte e a

loucura se fizermos da existência um ‘modo’, uma ‘arte’. (DELEUZE, 1996,

p.141)

Nos gregos percebemos que é na relação consigo orientada pelo preceito cuidado de si,

que os indivíduos são impelidos a realizar um trabalho sobre si mesmo de modo a se

transformar. É na inflexão da linha de força sobre ela mesma que se produz um si.

Parece ser esta a afirmação que Foucault traz para a superação do impasse vivido: a de

que os processos de subjetivação se produzem na ação da força sobre si mesma. De

algum modo, Foucault parece encontrar fôlego nesta afirmação quando ainda sentia-se

sufocado ao se debruçar sobre o estudo das relações de poder em exercício nas nossas

sociedades contemporâneas e em nossas vidas. Esta sensação de asfixia é percebida por

Deleuze (2005) nos estudos de Foucault, quando este autor nos aponta para o complexo

funcionamento capitalista na passagem da técnica de poder disciplinar para a de

regulamentação e o exercício do poder sobre a vida. Diante deste avanço do poder sobre

a vida, e numa espécie de impasse, Foucault se perguntaria: Não haveria nada para além

do poder?

Ao propor uma análise da produção do sujeito a partir do saber e do poder, Foucault

experimenta neste impasse, a necessidade de desenvolver uma terceira dimensão de seus

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estudos: a da subjetividade. De algum modo, com o estudo dos gregos, um novo

respiradouro pôde ser feito para a superação deste impasse, quando Foucault percebe

que os processos de subjetivação e os modos como produzimos nossa existência se

fazem na ação da força sobre si mesma. E é na possibilidade de nos transformarmos,

que podemos com Foucault afirmar que a subjetivação nos ajuda a pensar que não

estamos a mercê das tecnologias de poder/saber. Nesta direção, podemos pensar este

processo de cultivo, exploração e transformação sempre como inacabado, pois é nele

que nos constituímos eticamente e estamos sempre a nos fazer. Esta nos parece ser uma

indicação preciosa apontada pelo autor para afirmarmos a vida a partir de sua potência

de resistência. De algum modo, sabemos que nela e com ela podemos refletir sobre o

que estamos fazendo de nós, como cuidamos de nós e do outro e de que outras maneiras

podemos nos cultivar.

Se para Foucault a subjetivação diz respeito aos modos como nos governamos e como

governamos uns aos outros, em meio às relações de poder, precisamos ainda

problematizar a idéia de “relação consigo” que neste trabalho entendemos ser uma

forma de resistência, além de servir como parâmetro para as relações de cuidado e

governo entre os homens. É que sabemos que a possibilidade de existência e seus graus

de mudança ancoram-se nas relações de forças que compõem a vida.

Deleuze (2005) nos ajuda na problematização do que seria esta relação consigo ou o que

chamamos de Si quando percebemos que é a inflexão da linha de força sobre ela

mesma, sua dobra, que produz um Si.

Essas dobras são eminentemente variáveis, aliás em ritmos diferentes, e suas

variações constituem modos irredutíveis de subjetivação. Elas operam ‘por

sob códigos e regras’ do saber e do poder, arriscando-se a juntar a eles se

desdobrando, mas não sem que outras dobras se façam. (DELEUZE, 2005, p.

112)

Um exercício de experimentação de dobras e desdobras nos modos de existência.

Parece-nos serem estes os movimentos que o autor nos indica no cuidado de si.

Entretanto, Deleuze (2005) nos alerta que este trabalho não se faz em um binarismo

(dentro e fora). “As relações de forças móveis, evanescentes, difusas, não estão do lado

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de fora dos estratos, mas são o seu lado de fora” (p.91). Para tanto, César (2008), em

seus estudos, nos indica que se no lado de dentro podemos dar forma a modos de viver,

de amar, de querer produzindo referências para as nossas ações, bem sabemos que o

dentro faz-se como dobra de um lado de fora múltiplo e processual. “O que ganha

existência produz-se a partir desse fora, que continua a existir em tudo. (...) Nossa

matéria é multiplicidade, que não está em outro lugar senão em nós mesmos” (p.53).

Construirmos uma prática de cuidado que aposte na dimensão coletiva e pública das

políticas de saúde requer que compreendamos que o cultivo e a transformação de nós

mesmos só se faz possível na relação com este lado de fora. O si como dobra, é apenas

um artifício dentro de uma vastidão de possibilidades, entendendo que a dobra ou os

modos de existência que construímos não se separam de seu plano de constituição

múltiplo e processual. Cuidar de si e do outro nos parece ser cuidar da relação que se

constitui nos movimentos de dobrar e desdobrar como prática de cultivo da própria

vida.

As problemáticas do modo como vivemos e cultivamos a vida em nós e no outro, de

como construíamos práticas de cuidado, parece se instalar na cristalização das dobras

produzidas, em uma captura do movimento de dobrar-se. E por onde passam as nossas

lutas? Como construir práticas de cuidado que cultivem a vida em sua potência de

resistir? Como não cultivarmos vidas apartadas daquilo que nos faz enquanto potência

de outramento, de transformação? Como não produzirmos uma vida individualizada e

distanciada do outro?

Parece-nos que para nos demorarmos um pouco mais nestas questões, também é

necessário nos debruçarmos sobre o sofrimento produzido pelas maneiras como

vivemos e percebemos o mundo. E já podíamos colher na experimentação de nossa

cartografia, uma dentre as muitas formas de expressar e de viver esse sofrimento que é

por um certo entristecimento de perda de uma identidade sabida e conhecida. Para

muitos que trabalhavam nesta intercessão Saúde Mental e Atenção Básica, o “quem sou

eu?” parecia intensificar-se como pergunta a ser respondida. E percebemos que esta

questão desdobra-se a cada vez que nela se toca como um buraco sem fim. É que junto a

ela muitos se perguntavam: “O que devo fazer? Do que sou capaz? O que eu tenho?

Para que sirvo?”

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Tomávamos aí uma pista importante. A produção de um certo sofrimento nos modos de

existência de muitos trabalhadores, pareciam se instalar nas dobras produzidas por esses

questionamentos e em uma certa cristalização do próprio movimento de nos dobrar e

desdobrar nas práticas de cuidado que pomos a funcionar no dia a dia de trabalho. Por

certo, também nos perguntávamos em nossa cartografia, como essas questões tornam-se

tão importantes nos dias de hoje e quais os efeitos dessa necessidade de se saber com

segurança o que se é.

Certa feita, em uma das conversas no cafezinho, encontrava-me com Nair novamente.

Ao rever a Agente Comunitária de Saúde (ACS) lembrava-me de sua voz forte e suas

narrativas intensivas quando ela contava-me de seu trabalho e fitava com brilho nos

olhos uma senhorinha que estava sentada na recepção do posto. O registro de suas

palavras em minha pequena caderneta era transformado quando dava-me conta de que

Dona Gertrudes ao contrário de tomar ‘todos os remédios do mundo’ (como dizia a

ACS), tomava todas as conversas do mundo. Insistia aquela senhora com suas

constantes idas a várias médicos, inclusive àquela equipe de Saúde da Família, que sua

‘doença’ não seria curada com remédios. Ou que o próprio ‘remédio’ haveria de ser

construído na relação, nas conversas que tomava com todos os profissionais de saúde.

Com gosto de vida em sua boca, Nair parecia sentir-se mais potente com a melhora de

Dona Gertrudes.

Uma estranheza corta-me nas lembranças afetivas daquela narrativa de Nair, quando a

ACS em voz entristecida dizia:

Quando eu entrei na unidade eu era uma coisa, tinha uma vontade de

que eu ia ajudar todo mundo. Então pensava: “eu posso, tenho

condições, tenho meios pra isso. Não é o que imaginei. Gosto muito de

ser ACS, mas eu quero é sair, fazer uma nova coisa. Ser ACS hoje não

está dando mais certo... Estou estudando e pretendo ser Técnica de

Enfermagem porque assim vou ter o que fazer. A pessoa vai vir até a

mim e eu vou poder fazer curativo, dar vacina, remédio, aferir a pressão.

Vou dar orientação, mas não vou mais ter que ouvir o problema. Me

sinto abandonada, não tenho o que oferecer como ACS”.

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Parece que a solução encontrada pela ACS seria a de se transformar em Técnica de

Enfermagem. Mas o que ficaria resolvido nesta mudança? Conseguiria então saber o

que se é, ter uma identidade conhecida, sendo Técnica de Enfermagem? Não é que

desenvolver seu trabalho como Técnica de enfermagem seja um problema, mas o que se

quer resolver com essa mudança? Não haveria aí um modo de se relacionar em que o

outro é subsumido na relação? E então fatalmente nos sentimos sozinhos e

abandonados?

Acreditar que uma pratica de cuidado possa ser feita na objetificação de si e do outro e

do próprio cuidado e que este se transformaria em uma simples prescrição de

procedimentos, parece-nos falar da produção de uma vida individualizada e distanciada

do outro. De certo modo, Nair até nos faz parecer que seu sofrimento seria aliviado

neste tipo de relação. Mas será que de certa maneira já não comparecemos no

sofrimento do outro? Será que não cuidamos de nós mesmos quando cuidamos do

outro? Há mesmo uma independência entre mim e o outro?

É certo, que Dona Gertrudes, em sua insistência de ir a todos os médicos e tomar todos

os tipos de remédios cutucava a equipe daquele posto de PSF com suas idas e vindas

constantes e nos dá uma pista importante: a de que aquilo que somos não está separado

daquilo que fazemos. E de certo modo, é justamente na criação de uma outra relação de

vínculo da ACS com Dona Gertrudes que uma outra possibilidade de vida pôde ser

acessada tanto para uma quanto para outra. Parece-nos que não era somente Dona

Gertrudes que era cuidada quando por certo, havia parado de tomar todos aqueles

remédios e deixado de ir a tantos outros lugares. A relação de vínculo também tratava a

ACS quando esta podia se ver potente e feliz com o seu fazer na melhora de Dona

Gertrudes. O mesmo gesto de conexão da ACS em se demorar com Dona Gertrudes, em

desfazer-se de um tempo imediato e fugidio tão presente em nossos modos de vida

atuais, de cuidado de um e outro, trata aquelas duas mulheres. O cuidado é duplo, pois

acessa em uma aquilo que doía e a fazia prisioneira de tantos ‘remédios’ e traz na

partilha a possibilidade de acesso à dimensão de liberdade da relação de co-emergência

que advém: e é quando a ACS sente-se potente e capaz. Podemos dizer que no cultivo

desta relação, há uma relação consigo que começa a derivar-se da relação com os

outros.

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De algum modo, tomamos ainda como pista em nossas cartografias pensarmos este

sentimento de abandono e impotência que parece envolver a muitos trabalhadores. Em

uma capacitação da Saúde Mental com a equipe de Saúde da Família, muitos Agentes

Comunitários de Saúde já haviam pedido que o tema trabalhado fosse frustração. Por

certo me lembrava ainda da fala de Nair quando dizia

“Você vai na casa de uma pessoa e ela diz: ‘o que eu quero é que você

mande a prefeitura vir aqui’. Houve um surto de hepatite em função da

contaminação da água. A rede de rede de água que estava toda furada e

passava dentro da rede de esgoto. Como você vai falar de saúde?Tem

muita ACS sentada na cozinha do PSF por causa disso. Nem a

coordenação tem vindo mais aqui”.

Pensando junto com a equipe de saúde mental em como produzir a discussão deste tema

sobre frustração na capacitação, propomos uma dinâmica que dividira os profissionais

em duplas e estes trabalhariam juntos a partir da consigna:

“Cada dupla está em uma ilha deserta à espera de resgate após um

naufrágio. Enquanto isso, precisam ir criando meios para sobreviver.

Percebem que o tempo está se armando e que em breve irá chover.

Juntos, cada dupla deverá construir algo (objeto) que possa coletar a

água da chuva que é vital para a nossa sobrevivência. Antes, devem

conversar entre si e decidirem quem será cego e quem será maneta. As

mãos serão amarradas para trás e os olhos vendados”.

Durante a atividade, cada dupla vai construindo jeitos diferentes de se entenderem. Os

sentimentos que perpassam aquele momento são muitos. Alguns dizem que a

experiência foi muito ruim, horrível... Outros, o quanto se percebe que com o outro dá

para fazer coisas que sozinho não conseguiria.

“ O maneta precisa ser muito amigo do cego porque senão ele ferra sua

vida. É ele que está vendo tudo. Você faz o que ele diz que é para ser

feito”.

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“Tem que ser muito seguro, para estar passando as instruções ao

colega”.

“Não fomos criados para ter nenhuma deficiência”.

“É muito difícil acolher o jeito diferente do outro”.

“Tem que ter cumplicidade muito boa, parceria, porque senão não

anda”.

Um analisador irrompe durante a discussão quando pensavam sobre sua prática no dia a

dia na comunidade de Nova Holanda.

“O ACS hoje é igualzinho ao maneta. Vê tudo e não pode fazer nada. A

gente vê as pessoas com fome, mijado, aleijado e não pode fazer nada.

Vão ficar assim. Não tem material no PSF. Não tem mais como

conseguir cesta básica. Estamos empurrando com a barriga. A visita

domiciliar é um oi-tudo-bom-e-tchau.

Se a pessoa precisa de um remédio. Não tem. Não tem nem material para

fazer curativo aqui. Agora com as eleições, falaram com a gente que

senão fizermos campanha para os políticos vão mandar a gente embora.

Tamo com a faca no pescoço. Antes a equipe estava cheia. Hoje ninguém

tem animo pra fazer nada.

O povo tá com tanta dó da gente que já pedem pra assinar nosso papel.

(Refere-se a planilha de assinaturas que precisam apresentar e que

consta o número de vistas feitas). As visitas são falsas. É tudo na base da

amizade. Você entra na casa pra conversar e tomar um café, porque,

como você vai evitar escabiose se não tem saneamento no bairro? Como

você vai falar com a mãe que o menino precisa tomar banho de duas a

três vezes por dia se não tem água no bairro? Nosso trabalho que é a

prevenção não acontece”.

A pesquisa realizada em 2008 era atravessada pelo período de eleições municipais.

Muitos ACS sentiam-se coagidos a participar da prática de distribuição de ‘santinhos’

de políticos, receosos por perderem seus empregos. As capacitações e outras práticas

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coletivas que permitiam que as pessoas se encontrassem para discutir sobre seu trabalho

eram esvaziadas. E por vezes, esvaziados pareciam estar os sentidos de se trabalhar

como Agente Comunitário de Saúde. A falta de saneamento básico dentre outros

recursos essenciais para a realização do trabalho angustiavam em muito aqueles

profissionais.

“É complicado montar estratégias de prevenção quando você não pode

modificar a situação de falta de saneamento básico dessas famílias. A

gente previne de um lado, mas do outro a situação só piora”.

De algum modo perceber-se como maneta que tudo vê ao contrário do cego, mas

sentindo-se de mãos amarradas, coloca-nos uma importante discussão no campo da

saúde. Poderíamos pensar nos desdobramentos desta discussão na própria pesquisa

quando as tentativas de nosso fazer apostavam naquilo que se passa conosco em nossas

experiências de deslocalização. É que quando apostamos nesta experiência há,

sobretudo, uma afirmação de um não-lugar em nosso fazer que não estaria no lugar do

maneta: aquele que fica olhando e não toca em nada, apenas julga pelo olhar

desencarnado; nem tão pouco no lugar do cego: aquele que tem o seu fazer emoldurado

por um lugar e tarefas definidos a priori.

Cartografando um pouco mais, transpomos os espaços-tempos de nossas caminhadas na

comunidade de Nova Holanda para acompanhar a equipe de saúde mental em uma outra

comunidade intitulada Fronteira. No trabalho de grupo feito por essa equipe no módulo

do PSF, a maioria dos participantes eram Agentes Comunitários de Saúde. Uma certa

experiência de trabalho maneta parecia comparecer às discussões do grupo, mas por

vezes também se desfazia. As duras amarras das mãos se desfaziam quando se podia

viver uma experiência de produção de cuidado onde o toque já era de corpo inteiro.

Como equipe de referência aqui do posto nós somos o exemplo.

Fazíamos um bom trabalho na comunidade e sabemos da importância de

nosso trabalho aqui. Mas com a saída da médica que trabalhava aqui há

07 anos e da enfermeira que engravidou e está de licença, a rotatividade

de profissionais ficou muito grande. Atualmente, a médica que temos

aqui não nos dá brechas para propormos soluções. Acha que isso aqui

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deve funcionar em uma hierarquia, numa auto-suficiência não quer

saber o que o outro quer falar. Até sabemos o que precisamos fazer, mas

não temos autonomia. É horrível viver achando que precisa de uma

pessoa para tudo. Faço parte desta equipe há 05 anos. Sou nascida e

criada aqui na Fronteira. Eu não tenho medo não! Vai chegar um

momento que eu vou ter que lutar por isso. A gente tem que falar mais

disso. É muito bom poder estar neste grupo a gente se fortalece.

(fala de uma Agente Comunitária de Saúde)

***

“Fico contente quando posso fazer alguma coisa para as pessoas.

Ajudar aqueles que não têm condição. Fazer um bom trabalho.

Dona Isaura, nossa paciente, estava deprimida, com problemas com o

marido desempregado e com os netos que já estavam entrando no mundo

do tráfico. Quase não saía de casa e já estava com 120 kg. Tinha muita

dificuldade de andar e era hipertensa.

Começamos um trabalho nesta família com ela. Hoje ela já perdeu mais

de 50 kg, mudou a alimentação e está participando do grupo de

caminhada e exercícios físicos para a terceira idade. Já sai de casa, está

se gostando, gostando mais da vida.

Há pouco tempo ela veio à médica do posto queixando-se de uma dor na

perna e a médica lhe disse que sua hipertensão poderia lhe gerar uma

diabetes e ela iria perder a perna. Dona Isaura ficou apavorada, não

quis mais voltar a consulta e nem ao grupo. A médica não considerou

todo o trabalho que Dona Isaura já tinha feito consigo mesma para

perder 50 Kg! Estamos trabalhando para trazê-la de volta. Para

construir vínculo é um longo trabalho agora para desfazê-lo parece ser

muito rápido”.

(fala de uma Agente Comunitária de Saúde)

***

“Com a vinda da Saúde Mental para cá percebemos mudanças em

alguns casos. O Luizinho, por exemplo, saía daqui do bairro carregado

pelo corpo de bombeiros em uma camisa de força. Vivia internado.

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Agredia as pessoas nas ruas. Hoje não é mais assim, ninguém mais tá

chamando o corpo de bombeiros. A comunidade tem ajudado. A família

tem se envolvido mais. O Geraldo, por exemplo, teve a atenção da

família e foi fazer tratamento no CAPS, antes vivia jogado pelos cantos”.

(fala de uma Agente Comunitária de Saúde)

***

“Edilson era paciente aqui da Fronteira. Vivia trancado em casa, era

muito solitário. Começamos a tratá-lo em função de uma tuberculose.

Uma vez chegamos lá e ele estava cozinhando feijão com carne podre

para comer. Pedi que ele esperasse. Fui a minha casa, fiz uma comida e

trouxe para ele. Estávamos muito preocupados, pois a casa que Edilson

morava era muito precária e estava quase caindo. Tinha até medo de

olhar para as paredes. Além disso, a casa estava virando esconderijo

para bandido. Várias pessoas do tráfico utilizavam a casa de Edilson

como ponto de uso de drogas e para se esconder nos confrontos com a

polícia. Trabalhamos juntos com a equipe de Nova Holanda para

sensibilizar a irmã. Sabíamos que sua situação de vida era difícil, tinha

05 filhos pequenos para criar. Fizemos um mutirão de comida aqui na

comunidade, todo mundo ajudou. Combinamos com a irmã de ajudá-los

com o que pudéssemos na alimentação. Fizemos isso por alguns meses

até que Edilson pudesse encontrar seu espaço naquela família. A casa de

Edilson foi tombada pelos riscos de desabamento. Estamos pensando

com a irmã em como ajudá-la, ela quer futuramente construir dois

cômodos para Edilson, caso ele queira voltar para sua casa.

(fala de uma Agente Comunitária de Saúde)

Vecchia e Martins (2009) já discutem a relevante atenção que vem sendo concedida no

âmbito das políticas públicas de saúde brasileiras à articulação - Saúde Mental e

Atenção Básica. Para os autores, há nesta articulação uma dimensão fértil e produtiva

quando são demarcados por um lado os princípios da reforma psiquiátrica brasileira e,

por outro, os princípios do movimento da reforma sanitária. Destacam tanto a busca

pela construção de uma prática de cuidado que rompa com a lógica manicomial quanto

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uma ruptura com o modelo médico hegemônico centrado na doença e que em muito

significou a construção de um cuidado que objetifica o outro e retira da vida sua

potência de protagonismo, autonomia e invenção.

Por certo, podemos pensar nesta intercessão, no campo da saúde, na construção de

práticas de cuidado que assegurem a importância do incremento dos laços sociais, o

aumento de autonomia, e contratualidade ‘daqueles que cuidamos’. Entretanto, podemos

também pensar que, quando lutamos contra os processos de exclusão social, de

isolamento afetivo e da impossibilidade de se construir protagonismos na vida, há

também que se romper com uma certa dicotomia no campo da práticas de saúde,

daqueles que cuidam e daqueles que são cuidados. De algum modo, podemos dizer que

também precisamos construir um cuidado dos próprios processos e práticas de trabalho

que pomos a funcionar em nosso cotidiano. Estaríamos então apontando não somente

para um cuidado do cuidado, mas, sobretudo, para um cuidado da dimensão relacional

na qual nos constituíamos.

De certa maneira percebemos um enfraquecimento na potência de vida dos

trabalhadores e em especial, aqui destacamos o Agente Comunitário de Saúde, quando

se vêem sem recursos concretos para lidarem com os problemas que assolam os

territórios em suas ruas e vielas de um deambular cotidiano. Como trabalhador, mas

também como morador da comunidade na qual atua, podemos dizer que há na

experiência de sentir-se maneta, mas não cegos, a produção de um corpo que respira e

por vezes constata nas constantes caminhadas pelo território o capitalismo real. A

convivência com as condições de vida e com os territórios existenciais de muitas

famílias os põe diante da devastação subjetiva que o capitalismo produz.

As contribuições que trazemos de Basaglia (2005) em nosso trabalho, quando este autor

analisa a experiência de ‘expansão’ da saúde mental nos Estados Unidos (E.U.A) bem

como a análise do papel dos ‘desviantes’ neste país, nos ajudam a problematizar a

produção de práticas de cuidado no território quando percebemos que na experiência

norte americana produziu-se um alargamento do conceito de doença para justificar as

contradições do próprio sistema capitalista. Quando o autor nos mostra que os novos

serviços criados orientavam-se não para reduzir o fenômeno para o qual foram criados,

mas para produzi-lo em consonância às exigências do capital, cabe-nos refletir o quanto

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a produção de modos de ‘sobrevida’ neste sistema aponta para uma prática de cuidado

organizada e definida pela doença, que neste contexto, é entendida como todo e

qualquer desvio da norma, passível de ser tratado. De algum modo, podemos tomar nas

pistas trazidas pelos Agentes Comunitários de Saúde os perigos de estarmos produzindo

práticas mantenedoras de ‘sobrevidas’ geridas pela lógica do capital cujas práticas de

assistência focal e incipiente devem ser combatidas cotidianamente em nossas lutas

quando pensamos na produção de práticas de cuidado que expandam a vida e a saúde na

construção de políticas públicas de direitos. Parece-nos que de certo modo, a angústia

vivida por estes profissionais coloca em jogo não só os questionamentos quanto ao

modo concreto como produzimos o cuidado, mas também com que forças nos aliamos

nos movimentos de afirmação da vida. Que tipo de vida queremos cultivar?

A experiência de um fazer-maneta que comparecia nas falas dos trabalhadores, quando

diziam a tudo ver e nada poder fazer desfazia-se nos próprios percursos da cartografia.

Quando narravam tantas mudanças produzidas nos modos de viver de Dona Isaura,

Luizinho, Geraldo e Edilson já não pareciam estar falando de um fazer maneta. Mas

então, com as mãos desamarradas, o que podiam tocar? Se a experiência de sentir-se

maneta fosse tão sólida e acabada, porque então não desistimos? O que ainda nos move?

De certo modo, as lembranças da consigna usada para o trabalho na capacitação entre a

equipe de Saúde Mental e a equipe de Saúde da Família, nos ajudam a revê-la e

problematizar os sentidos do que ainda nos move. Era dito a cada dupla que estavam em

uma ilha deserta à espera de um resgate e que, enquanto isso, precisavam ir criando

meios para sobreviver. As gargalhadas eram ouvidas, quando a água era colocada nos

recipientes construídos pela dupla e quando esta era retida pela espécie de vasilhame ou

não. Na brincadeira, nos perguntávamos: será esse sentir-se abandonado uma espécie de

ilha deserta que construímos em nossos modos de nos relacionarmos? Mas o que será

mesmo o resgate dessa ilha? Algo exterior a nós mesmos?

Experimentávamos, pois que aquilo que nos resgata, aquilo que nos mantém vivos e nos

move fazia-se justamente quando chegávamos perto do outro, quando nos

disponibilizávamos e nos misturávamos àquela cena. Era aí que encontrávamos forças.

Forças que fazem Dona Isaura perder mais de 50 Kg, que sustenta a família de Geraldo

a construir uma outra relação que não a de ficar pelos cantos, que não deixa a equipe

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desistir de incentivar o vínculo de Edilson e sua irmã, mesmo sabendo das condições

adversas daquela mulher, mãe de cinco filhos. De algum modo, sabemos que o início da

construção de uma relação de afeto entre Edilson e sua irmã, não vem somente com o

alimento orgânico doado pela comunidade, mas com o alimento destas forças do fora,

advindas de uma dimensão impessoal e coletiva, sem nome próprio, sem lugar.

Foucault, já nos indica, no estudo dos gregos, que a transformação de nós mesmos, dos

nossos modos de existência só se faz possível na relação com este fora quando nos

afirma que o si como dobra é apenas um artifício dentro de uma vastidão de

possibilidades. As dobras ou os modos de ser, de viver e de nos relacionarmos que

construímos não se separam de seu plano de constituição múltiplo e processual. E

parece-nos que é quando experimentamos sobre nós mesmos, um trabalho de dobras e

desdobras de nossos modos de ser, quando tocamos esta dimensão múltipla e

processual, que encontramos forças para nos sustentarmos nas lutas pela construção de

políticas públicas de saúde. “Faz-se necessário, pois, um trabalho sobre si mesmo, o

cultivo de um cuidado consigo, com o outro e com o mundo, de onde um si desapegado

de si e aberto ao outro pode advir” (César, 2008, p. 123). Nos gregos percebemos que é

na relação consigo que os indivíduos são impelidos a realizar este trabalho sobre si

mesmo de modo a se transformar.

Deleuze, nos estudos sobre Foucault, indica que pensar a relação consigo é sabermos

que nossas lutas passam por uma resistência a duas formas atuais de sujeição

uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do

poder, e outra que consiste em prender cada indivíduo a uma identidade

sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela

subjetividade apresenta-se então como direito à diferença, e como direito à

variação, à metamorfose. (DELEUZE, 2005, p.113).

De algum modo, o que Foucault (1984) indica ao analisar como as relações de poder

são produzidas tanto na antiguidade como nas sociedades atuais parece ter como ponto

fundamental a questão da liberdade. Para o autor só há possibilidade de haver relações

de poder quando há liberdade, isto é, quando os sujeitos forem livres. “Se um dos dois

estiver completamente à disposição do outro e se tornar sua coisa, um objeto sobre o

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qual ele possa exercer uma violência infinita e ilimitada, não haverá relações de poder”

(p. 276). Para isto, é necessário que as relações de poder possam circular, se reverter,

que os indivíduos tenham a possibilidade de resistir, transformando-se, modificando-se.

Já dissemos neste trabalho que a governamentalidade é, exatamente, esse campo

estratégico de relações de poder móveis e reversíveis que envolvem tanto a relação para

consigo quanto a relação com os outros. Isto nos faz pensar que a questão do governo

de si e governo dos outros, constitui-se principalmente, a questão de como cultivar a

liberdade no cuidado consigo e com os outros. Assim, entendemos que a analítica do

poder foucaultiana, quando apresentada a partir da liberdade, permite pensar as relações

de poder em termos de cuidado consigo e governo dos outros numa perspectiva ao

mesmo tempo ética e política, uma vez que se trata de um duplo exercício efetuado em

relação a si e ao outro. As relações de poder são éticas quando se trata do domínio que o

sujeito, em sua liberdade, realiza sobre si, de modo a governar sua conduta, a se

transformar e são políticas, quando o exercício de poder que é direcionado para si

representa uma maneira de se conduzir, na relação com os outros sem assujeitamentos

mútuos. O retorno de Foucault à antiguidade é importante para compreendermos como

pensar a construção de práticas de cuidado em nossas sociedades atuais não como

assujeitamento de uns em relação aos outros, mas como uma prática ética de liberdade.

Como nos aponta Deleuze (1996):

o que interessa essencialmente a Foucault não é um retorno aos gregos, mas

nós hoje: quais são nossos modos de existência, nossas possibilidades de vida

ou nossos processos de subjetivação; será que temos maneiras de nos

constituirmos como ‘si’, e, como diria Nietzsche, maneiras suficientemente

‘artistas’, para além do saber e do poder? (DELEUZE, 1996, p.115)

3.1 O que em nós quer cuidar? Cuidando do cuidado No período greco-romano a ética como prática da liberdade esteve vinculada ao cuidado

de si, e se relaciona à noção, em grego de, epimeléia heoutôu que constituiu-se como

princípio fundamental para a produção de subjetividade. Neste sentido, o epimeléia

heoutôu congregava um movimento tanto de reflexão quanto de ação. Enquanto o

movimento de ação implicava ações para consigo de modo a transformar-se, o

movimento de reflexão consistia em estabelecer relações para consigo, com outros e

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com o mundo, refletindo sobre as coisas (um modo de estar no mundo). Implicava

também em conhecer-se, em grego, gnôthi seautón, que significava conduzir o olhar

para si mesmo estando atento ao que se passa no próprio pensamento a fim de se

perceber na ação.

O interesse de Foucault em seus estudos foi em perceber de que forma o cuidado de si

foi sendo reduzido ao longo dos séculos, na história do pensamento ocidental a apenas

um dos princípios, o gnôthi seautón ou o conhecer-te a ti mesmo. Foucault nos aponta

que a redução do epimeléia heoutôu à apenas um de seus princípios - a partir do modelo

cristão e pós-cristão e da apropriação destes pela razão de Estado - produz uma

mudança de perspectiva percebida da diminuição do cuidado de si para uma exaltação

de um conhecimento de si. Um dos perigos vividos em nossas sociedades modernas é a

produção de um olhar para si onde o ‘si’ se confunde com um sujeito individualizado.

Como já vimos em nosso trabalho nossas sociedades de controle investem na produção

de subjetividades solitárias, sendo o cultivo de si entendido e alimentado por uma

cultura de cuidado que por vezes, instala inúmeras técnicas de controle sobre o corpo e

sobre a vida. A relação consigo passa a ser interiorizada, codificada em um saber moral

que faz nascer o indivíduo, cuja noção é cada vez mais voltada para uma equivocada

interioridade. É quando passamos a fazer um cuidado de formas e identidades e

alimentamos um modo de subjetivação que se dá por um processo de objetificação do

mundo e de nós mesmos que busca determinar as regras das coisas e estabelecer a

normalidade humana por procedimentos de decifração.

Já percebemos que o que interessa a Foucault no estudo dos gregos não é um retorno

aos modos de existência criados por eles naquela época, mas a possibilidade de

modularmos o problema do cuidado em nosso contemporâneo nos questionando sobre

os nossos processos de subjetivação, sobre os modos de existência e possibilidades de

vida que construímos para nós mesmos na atualidade. Parece-nos importante a partir

desta perspectiva ética e política apontada por Foucault, das relações de poder, pensar as

práticas de cuidado e de governo em nosso contemporâneo.

A urgência desta questão faz-se quando percebemos que, na saúde, os processos de

cuidado e sua gestão têm sido privilegiados como campo de ação da lógica de

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reestruturação produtiva que expressa a ótica acumulativa do capital. Como permanecer

na luta pela produção de um cuidado comprometido com a criação de modos de

existência potentes que se afirmem nos processos de expansão da vida? Como inventar

modos de luta quando percebemos que o capital e sua lógica têm se agenciado

exatamente ao processo de criação das tecnologias relacionais?

Compreendermos que é no próprio processo de construção dos modos de cuidar e gerir

que produzimos a nós mesmos é perceber que o cuidado de si a que Foucault se refere é

o cuidar do próprio cuidado. Há aqui um cuidado que se faz no próprio cultivo do

processo de constituição, para que nossos modos de existência não sejam reduzidos e

aprisionados a apenas uma forma de viver. Como nos indica César (2008) “o que somos

deve sempre esvaziar-se do caráter sólido das identidades, para que não nos agarremos a

elas, possamos nos mover em meio a elas, criando no que somos espaços vazios de

passagem.” (p.65)

Na experiência vivida pelos trabalhadores na capacitação sobre frustração percebíamos

que não é possível ficarmos à espera de um ‘resgate’, de um milagre que nos tire do

desértico das ilhas que produzimos para nós mesmos, mas também compreendíamos

que não sairemos dessa ilha deserta sozinhos. Não é possível apostar em nossas próprias

forças, porque estas não são próprias, não são unicamente nossas. A aposta que fazemos

então, exige-nos trabalho, como Foucault tem nos apontado nos estudos dos processos

de subjetivação. Um trabalho de esvaziamento de si enquanto sujeito, para não

acreditarmos que as forças nos pertencem, que são nossas, e ao mesmo tempo, uma

prática de produção de um si esvaziado de si, esvaziado do caráter sólido das

identidades, de achar-se coisa já sabida, de fixar-se no lugar de cego ou de maneta, para

passearmos nas paisagens sem acreditarmos que estas são verdadeiramente reais, sólidas

e acabadas.

A fim de afirmar uma perspectiva ética de produção de subjetividade, podemos então,

afirmar um cuidado que problematize a mudança de perspectiva percebida por Foucault

em nosso contemporâneo, evidente na diminuição de um cuidado de si múltiplo e

processual, para a exaltação de um conhecimento de si como afirmação da

individualização do sujeito. Parece que há aí uma mudança de perspectiva não só do que

entendemos como Si, mas do modo como conhecemos.

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3.2 De quando os modos de cuidar são modos de conhecer

Merhy (2007b), inspirado pelos estudos de Maturana e Varela, nos ajuda a pensar em

uma reversão do cartesianismo presente nos modos hegemônicos de conhecer que

acreditam em uma realidade objetiva, dada e independente, lançando mão da noção de

autopoisese74. Para Merhy, há nos processos relacionais uma micropolítica dos

encontros, “expressa por vários mapas, ou melhor, por uma efervescente cartografia

daqueles processos relacionais, que os sujeitos do encontro operam” (p. 25). Para

trabalhar com a noção de autopoiese Merhy, utiliza destes autores, a imagem do

movimento de uma ameba para afirmar que há um movimento no caminhar de um vivo

que constrói o sentido de um viver, há um movimento da vida produzindo vida. A

autopoiese afirma que organismo e meio não pré-existem um ao outro, mas emergem

juntos por uma produção co-emergente que se faz através de perturbações recíprocas e

‘acoplamentos estruturais’. Entendendo que o acoplamento estrutural se realiza na busca

do organismo por encontrar respostas para os problemas com os quais se depara, é

necessário afirmar com esses autores que não há uma direção dada de antemão ou

resposta prévia para os problemas. O que há é um processo de invenção, de

transformação do organismo e do meio. As perturbações do equilíbrio são positivadas

por esses autores ao entenderem que é na experiência de perturbação do equilíbrio de

uma certa forma de funcionar que o sistema vivo pode se reinventar e se autoproduzir.

74 Para compreendermos o processo de autopoiese é necessário recorremos à crítica realizada por Maturana e Varela (1995) às teorias evolucionistas propostas por Darwin e Lamark. No Darwinismo, a fim de se combater a perspectiva criacionista, que postula o surgimento das espécies a partir da vontade divina, Darwin afirma o conceito de seleção natural em que há um engendramento das espécies umas pelas outras, onde os indivíduos com mais oportunidade de sobrevivência seriam aqueles cujas características fossem mais apropriadas para enfrentar as variações ambientais. Aqui há a idéia do organismo como fundamento da evolução. Já no Lamarkismo o meio faz o papel central na direção de mudança do organismo. Maturana e Varela criticam a idéia de um ponto de partida para a evolução sendo em Darwin o organismo e em Lamark o meio. Afirmam que organismo e meio são efeito de inúmeros processos disparados por uma deriva natural. Portanto, não preexistem um ao outro, mas emergem juntos. O processo de autopoiese faz-se como condição para a evolução de modo a garantir a contínua auto-criação dos seres e do mundo em que vivem. Maturana e Varela concebem, portanto, o processo de transformação do vivo de forma mais radical que a biologia, afirmando o sistema vivo não como auto-regulador, cujo trabalho diante das perturbações sofridas seria o de compensação tendendo a uma homeostase, de forma a manter ou resgatar o equilíbrio perturbado. Na autopoiese a experiência de perturbação do equilíbrio dado é positivada, visto que é na perturbação de uma certa forma de funcionar que o sistema vivo pode se reinventar e se auto-produzir na direção de uma deriva natural. Ver em MATURANA, H; VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Editorial Psy, 1995.

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Poder pensar a constituição de uma fazer ético no cuidado de si e dos outros é

afirmarmos com a noção de autopoiese uma outra qualidade de produção de

conhecimento. Problematizar a produção de práticas de cuidado em nosso

contemporâneo requer um deslocamento do que conhecemos para o modo como

conhecemos, pois como nos indica Merhy

não basta ser um ato produtor de cuidado, para estar necessariamente

implicado com processos terapêuticos construtores de mais vida. (...) há

modelos de organização tecno-assistencial, da produção dos atos cuidadores,

que podem não ter nada a ver com a finalidade de construção da recuperação

do viver, como seu eixo central. (MERHY, 2007b, p.31)

Como constituir práticas que ativem a dimensão coletiva de nossa constituição e de

nosso fazer? Como lutar contra práticas de violência onde o outro torna-se coisa,

objeto?

Nossa ida ao campo como cartógrafo já nos indicava que a produção de uma pesquisa

intercessora é feita não por um sobrevôo distante que de certo modo acredita em uma

relação objetificada e dicotômica em que sujeito e objeto estariam como pólos

separados e dados a priori. Afirmar um deslocamento do que conhecemos para o modo

como conhecemos implica-nos na produção de uma outra qualidade de conhecimento

entendendo que sujeito e objeto são co-emergentes. Se supomos que há alguma coisa

que venha primeiro, esta seria a relação. Neste plano relacional, as formas e tudo aquilo

que muitas vezes tomamos como natural e estático se desfazem, para enfim,

apreendermos a complexidade dos processos que se materializam. A afirmação de um

primado da relação que faz desaparecer sujeitos e objetos como seres-em-si se faz,

efetivamente, por uma aposta ética, estética e política interessada no cultivo desta

relação. Aqui já diríamos que este cultivo se faz não na ação sobre, mas na ação de

estar com.

Para uma pesquisa que não se supõem desencarnada de onde a vida se passa, a produção

de uma outra qualidade de conhecimento também é feita, quando compreendemos que

nossa ida ao território deve constituir-se neste fiar de relações, neste cultivo. Esta

indicação parece-nos preciosa para pensarmos a dimensão fértil e potente deste plano

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relacional e coletivo quando afirmamos com o princípio da autopoiese uma co-

emergência do organismo e do meio. Aqui, já poderíamos apostar que o cultivo de nós

mesmos, de nossa relação, também se faz no cultivo do território quando tomado em

sua capacidade de produzir-se como território de encontros.

A territorialização e adscrição da população têm sido usadas na atenção básica como um

modo de transitar pelo território e até mesmo de tomá-lo em sua capacidade produzir

um cuidado que construa vínculos potentes e esteja atento às reais necessidades de

saúde desta população. Mas aqui poderíamos nos perguntar: Quais os trajetos que o

delineamento deste mapa tem colocado em curso?

O trabalho intercessor da Saúde Mental e Estratégia de Saúde da Família trazia para

nossas cartografias a necessidade de discussão deste território e do modo como temos

operado nele e com ele.

Era sexta de manhã, quando nos aproximávamos da casa de Fabiano

para uma visita domiciliar. Daniela, ACS da área adscrita onde Fabiano

morava, parecia inquieta e relutante em fazer a visita. Dizia que em sua

área, até então, era tudo uma maravilha, mas que agora com a vinda de

Fabiano estava de cabeça quente. Já fazia 04 anos que a equipe de

saúde mental trabalhava junto às equipes de saúde da família na

comunidade de Nova Holanda e, neste tempo todo, Daniela nunca havia

solicitado a ajuda da equipe de saúde mental nos casos que atendia.

Quando a equipe de saúde mental se aproximava, Daniela parecia

querer se afastar dizendo que não tinha ‘problemas’ na área dela.

Fabiano e sua mãe Etelvina moravam anteriormente na comunidade da

Fronteira, mas a ‘casa muito pequena’ que habitavam naquele bairro,

fez a irmã de Fabiano procurar outro lugar para eles morarem. A irmã

morava no Rio de Janeiro, era casada e tinha um filho, e vinha uma vez

no mês para fazer compras para a mãe e o irmão e pagar as contas.

Antes de se mudarem para a comunidade de Nova Holanda, as equipes

de lá, tentaram contato com essa irmã para saber de suas possibilidades

de levá-los para morar com ela no Rio de Janeiro. A irmã respondia que

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todos daquela equipe eram verdadeiros anjos na vida dela, e que ela não

tinha a menor condição de levar o irmão porque senão iria enlouquecer.

A inquietação e relutância de Daniela pareciam comparecer também

naquela mulher.

Tamanha era minha surpresa ao chegar à casa daquela família. Dona

Etelvina era cega, mas já morando ali há 07 meses, construíra algumas

coordenadas importantes para si mesma. A casa muito limpa parecia

contar-nos do esmero e cuidado que Dona Etelvina tinha com seu

espaço. O fogão azul bebê reluzia como se tivesse sido lustrado muitas

vezes. Acolhedora, aquela senhora mostrava-nos como havia feito para

identificar os remédios que havia de dar a Fabiano todos os dias.

Retirava de uma cestinha os comprimidos que, enrolados por sacolinhas

diferentes, eram reconhecidos pelas mãos de Dona Etelvina. As

conversas pareciam girar em torno da medicação, no modo como

Fabiano estava tomando. Dona Etelvina reclamava muito de sua visão

dizendo que estava sentindo dores no olho. A cadeira higiênica de

Fabiano estava quebrada, dificultando muito suas idas ao banheiro. A

equipe se articulava para marcar uma consulta oftalmológica para Dona

Etelvina e conseguirem trocar a cadeira higiênica de Fabiano.

Naquela manhã, conhecia Fabiano também. Por entre as cobertas,

parecia relutante em conversar conosco, mas com um pouco mais de

tempo que estávamos ali, foi se interessando pela nossa presença.

Fabiano parecia estar saudoso do tempo em que vivera na Fronteira.

Um certo entristecimento em sua voz, era entrecortado pelo brilho de

seus olhos quando nos contava da praça daquela comunidade. Era do

que mais Fabiano sentia saudades. A praça: lugar onde a vida

comparecia com brilho. E quando falava dela, Fabiano que até então

estava deitado na cama entre as cobertas, já tinha no corpo um novo

viço, quando insistia em se sentar.

As visitas tornavam-se mais freqüentes, Dona Etelvina parecia sempre

ter muito a dizer em nossas idas. A ACS sentia-se até incomodada com a

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imensa necessidade daquela senhora em falar. Tentava apressar a visita,

quando muito, esperava na soleira da porta como quem já estivesse de

partida. Sempre que encontrava Daniela no módulo do posto, nas

capacitações ou nas andanças pela comunidade perguntava sobre

aquela família. Percebia que algumas vezes ela mudava a rota para não

se encontrar comigo, com aquelas perguntas. Com as nossas idas mais

constantes à casa de Dona Etelvina, as conversas na volta para o posto,

percebia uma certa mudança em Daniela, que já não desvia o olhar.

Certa vez, me disse que Fabiano estava mais calmo, mais tranqüilo, que

não estava mais xingando-a com palavrões, mas que estava se

mostrando muito resistente a realizar a fisioterapia nas pernas. Este era

o momento que mais o deixava nervoso.

Interessada por saber mais da praça, de Fabiano, por demorar-me mais

naquilo que trazia brilho à vida e viço ao corpo, fui até a Fronteira

encontrar-me com Dejair. Esta mulher era a antiga ACS daquela

família. Em nossa conversa, Dejair nos contava que Fabiano era uma

‘pessoa normal e saudável’(sic). Trabalhava na prefeitura e gostava de

andar nestas bicicletas bem altas. Dizia também que Fabiano sofrera um

espancamento em uma estrada quando ia a uma festa na região Serrana

do município com sua bicicleta. Acreditava ter sido uma briga, mas não

sabia ao certo dizer o que houve nem como Fabiano conseguira

sobreviver tamanha fora a violência sofrida. Após essa agressão, ficou

na cadeira de rodas sem poder andar. Dejair achava que seu nervosismo

veio depois de ter levado muita pancada na cabeça, por não conseguir

mais andar e por ter perdido a forma da vida que tinha antes.

Aqui na fronteira, começou a ir ao CAPS, mas depois ocorreram

problemas com transporte. Uma hora o carro não pegava, noutra não

tinha carro ou não tinha gasolina. Começaram a atendê-lo na

comunidade com a ajuda da equipe de saúde mental. ‘O nosso trabalho é

criar vínculo e ajudar a pessoa no que ela precisa. E Fabiano precisava

de carinho, de afeto’ (sic). Dejair passava na casa dele quase todos os

dias e levava-o para o trailler da pracinha. O vizinho sempre os ajudava

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na locomoção com a cadeira de rodas. A ACS ainda continuava a

narrar: ‘Ali na praça ele conversava com um, com outro. Via a

movimentação do bairro me pedia para chupar o geladinho (picolé de

sacolinha)... Quando tinha dinheiro comprava, quando não tinha dizia e

ele não se importava. Queria mesmo é ficar na praça. Às vezes deixava-o

ali e ia fazer outras visitas na minha área e depois passava para pegá-lo.

Nisso ele ia conhecendo as pessoas. Conheceu até um rapaz que o

pegava três vezes na semana junto com Dona Etelvina para irem à

igreja. Quando perguntava ao Fabiano como estava na igreja, ele dizia

que estava uma benção! Às vezes chegava na casa dele e ele estava com

a cabeça toda tapada pelo cobertor e não queria conversar. Quando

dizia que eu ia embora ele me gritava sorrindo. Ele não tinha vergonha

de mim. Cortava a unha dele e um outro vizinho sempre o ajudava a

fazer a barba. Ele tinha muitas vontades, e às vezes era agressivo com

Dona Etelvina. Se eu chegava e via alguma mancha vermelha na mãe

dele logo ia perguntando. Falava sério com ele e ele me ouvia. Não tinha

medo de quando ficava agitado, ele tinha vínculo com a gente e isso era

o principal para conseguirmos nos entender’.

A conversa com Dejair trazia novo alimento à própria pesquisa, interferia

intensivamente e nos fazia perguntar: como a vida comparecia em brilho e viço nos

olhos de Fabiano ao falar da Fronteira? O que podemos experimentar quando habitamos

a fronteira? O que haveria de fronteiriço neste habitar?

As inquietações de Daniela, ACS de Nova Holanda, e sua relutância em olhar para

aquela família nas inúmeras passagens pela sua área de atuação adscrita, nos indicam

que a adscrição por si só não garante o sustento de uma prática de cuidado onde o

vínculo se faça presente. Haveria que se fazer em Nova Holanda, na própria prática

daquela ACS e da equipe de saúde mental uma experiência de fronteira.

Procurando acerca dos diversos sentidos dados a esta palavra, podemos trazer alguns

que nos ajudem não só nesta discussão, mas também em fazermos aqui esta

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experimentação de estarmos na fronteira. Alguns sentidos da fronteira75 aparecem

como: ‘o limite entre duas partes distintas’, ‘representa muito mais do que uma mera

divisão e unificação de pontos diversos, determina a área territorial precisa de um

Estado’, ‘delimitações territoriais e políticas’, ‘representa a autonomia e a soberania

perante outros’, ‘faixa do território, situada em torno dos limites. No ponto preciso e

exato em que estes limites chegam ao seu fim é que se pode falar de fronteiras’.

Por muitos momentos, olhamos a fronteira como aquilo que nos separa, como aquilo

que nos dá ‘o ponto preciso e exato’ para nos sentirmos seguros e certos de nossos

limites e até mesmo daquilo que somos. Parece-nos que podemos problematizar aqui

certos modos de olhar hegemônicos através dos quais, muitas vezes, nos movemos em

nosso cotidiano numa espécie de visão bifocal. Nesta visão, ora enxergamos o que está

mais distante como uma realidade objetiva e independente de nossa capacidade

perceptiva; ora enxergamos o que está muito perto acreditando que toda a experiência

humana é justificada como uma construção da mente, e que portanto, todas as respostas

estão somente em nós mesmos. Sofremos com essa visão bifocal quando, aos nossos

olhos, acreditamos que nossas experiências se explicam por um mundo real separado ou

por um sujeito real separado. (Varela, Thompson, Roch, 2003)

O que vemos parece contornado e delimitado por essa visão bifocal. Focados, deixamos

de ver o que está no limite dessa visão, nas suas bordas. De certo modo, podemos dizer

que essa visão bifocal, também produz uma cegueira no modo como temos apreendido a

a fronteira. Quando acreditamos em nossa suposta unidade e independência do mundo, a

fronteira também é tomada como algo ameaçador de nossas identidades. Distanciamo-

nos dela acreditando que tudo que nela se movimenta, tudo que nela é gerado pode nos

fazer mal. Por outras, nos aproximamos, a espera de encontrar algo para além da

fronteira que irá prover nossas necessidades, acreditando-nos carentes. Nessa visão,

também produzimos uma vida, por vezes, impotente e separada de sua capacidade de

acontecer, de viver, de se misturar e de encontrar quando aquilo que nos acontece, que é

um efeito de um encontro, vira essência em nós.

75 Ver em http://pt.wikipedia.org/wiki/Fronteira. Acesso: 16.07.09

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Por certo, a irregularidade e complexidade de nossas vidas extrapolam esses focos,

exigindo-nos uma ampliação da visão, para que possamos ver a natureza de co-

dependência da realidade, do mundo e de nós mesmos. De algum modo, intuíamos que

era no cultivo desta natureza, de seu plano relacional e processual que uma outra

experiência de fronteira habitava os olhos irradiantes de Fabiano: nela já não se via

carente, nem fadado a ressentir-se ‘pela vida que perdera’.

Se afirmamos neste plano, a não solidez e impermanência da realidade e também o fato

de tanto o mundo como nós mesmos não possuirmos uma substancialidade inerente

poderíamos pensar que estaríamos aqui tentando negar toda a concretude daquilo que

vemos e vivemos, e das muitas formas de vida nas quais nos movimentamos. Ou então,

acreditarmos em uma segunda possibilidade onde o ponto não estaria mais na negação

do que quer que seja, mas na descoberta do processo que anima as formas, que anima o

que somos. Se de certo modo, percebemos aí a existência de ao menos dois caminhos

possíveis para nos movimentarmos e ficamos nos perguntando: ‘mas qual escolher? Por

onde ir?’, compreendemos que a resposta não é ter que escolher um ou outro caminho.

Quando ampliamos nossa visão, experimentamos a processualidade que gera a solidez

das identidades, das objetivações, que está nelas como princípio ativo de construção; e

também vemos na processualidade a emergência das formas. Aqui, o que nos interessa

de fato é entendermos que o acolhimento não faz escolhas: partimos de onde é possível,

começamos com o que temos à mão. Se o início de uma relação poderia ser construída

entre a equipe e esta família no cuidado com a medicação, com a viabilização de

consultas médicas para Dona Etelvina e da cadeira higiênica para Fabiano, que de fato,

o fizéssemos. Começamos por onde nos sentimos mais seguros, com a aparente solidez

daquilo que vemos e fazemos, para então trabalharmos nas identidades, nas formas já

muito cristalizadas, acolhendo e compreendendo que há dentro das formas seu lado de

fora, um fora no dentro, que as produz.

Construirmos práticas de cuidado que cultivem a vida em sua expansão, em sua

capacidade de produzir protagonismo, autonomia e reinvenção de si mesma, em nada

nos aparta do modo como temos tomado e operado no/com o território. As narrativas de

Dejair, já nos indicavam que haveríamos de fazer nesta viagem uma experiência de

fronteira compreendendo que o mundo não é independente de nós, não nos é dado de

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antemão, mas é algo que construímos juntos a partir do modo como respiramos, como

tocamos, como conhecemos.

***

A respiração um tanto quanto tensionada, seguia conosco nas passadas

pelas ruas de Nova Holanda. Estávamos indo à casa de Fabiano e Dona

Etelvina, mas estranhamente algo se fazia diferente para o cartógrafo. A

iniciativa da visita partira dele, o convite à ACS e a Terapeuta

Ocupacional da equipe de Saúde mental foi feito e acolhido por aquelas

mulheres. Se há tanto o cartógrafo fazia uma experiência de

acompanhamento, sentia já naquele momento que também era

acompanhado. Na chegada à casa daquela família, conversamos um

pouco mais com Dona Etelvina. Fabiano por debaixo das cobertas ainda

não tinha tomado seu café. Já passavam das 10:00 horas, mas Dona

Etelvina falara que ele não tinha fome. Com um desejo já há muito

cultivado nas idas àquela casa, convidei Fabiano para sairmos de casa.

Já me vinham aqui as lembranças do homem do conto Kafkaniano, que

tinha como intento em sua viagem ‘sair para fora daqui’. Fabiano aceita

prontamente o convite, mas Dona Etelvina mostra-se resistente. Dizia

que o sol estava muito quente, que já era tarde, que Fabiano poderia

criar problemas e não querer voltar... Uma situação nova para ela

também: a saída de Fabiano para fora dali. Por certo, como aquele

homem viajante de nosso conto, não tínhamos provisões, nem certezas

prévias de como seria nossa saída, do que iríamos encontrar. Para fazer

este caminho tínhamos de nos arriscar, mas era também aí que residia a

nossa aposta: de que seria naquela experiência que haveríamos de

encontrar o nosso sustento. Fabiano firmara-se com nossa ajuda para

sair pulando com a perna direita até a porta. É que havia uma pequena

suspensão de concreto que impedia o acesso livre à porta. Passávamos

por ela para que enfim, Fabiano se sentasse na cadeira de rodas. A casa

daquela família era nos fundos de um longo corredor no qual haviam

mais 3 casas. Passávamos também pelo corredor, para chegarmos ao

portão da rua. O sol convidava-nos a esta viagem contrastando com a

escuridão dos cômodos daquela casa de fundos. E quando parecia não

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haver nada a dizer, Fabiano em seu encontro com o sol nos diz: “Estou

com fome, quero comer”. Fui com Dona Etelvina à casa e juntas

prepramos o café da manhã de seu filho. Os vizinhos passavam

esboçando cumprimentos tímidos quando surpreendidos pelo bom dia

efusivo de Fabiano.

Ainda emocionada em como aquele encontro pudera despertar tamanha fome em

Fabiano, recolhíamos também como sustento de nosso fazer o cuidado de ‘Uma vida’.

Deleuze (1995) radicaliza a idéia de vida, afirmando-a paradoxalmente como ‘uma

vida’ que não encontra referência em uma pessoa ou em um fato que a transcende, mas

em si mesma como potência singular de ação e reinvenção. O autor marca a importância

do uso do artigo indefinido ‘uma vida’, numericamente uma, mas multiplicidade

substantiva afirmando-a em seu processo de conectividade intempestiva, em constante

estado de criação e recriação. Para Deleuze:

A vida do indivíduo é substituída por uma vida impessoal, embora singular,

que produz um puro acontecimento livre de acidentes da vida interior e

exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade que acontece. [...] Uma

vida está em todos os lugares, em todos os momentos que atravessa esse ou

aquele sujeito vivo e que mede tais objetos vividos: vida imanete levando

acontecimentos ou singularidades que só fazem se atualizar nos sujeitos e nos

objetos. (DELEUZE, 1995, p. 15-19)

Neves também nos ajuda nesta compreenção ao nos dizer desta Vida

como ‘povoamento’ de variações intensivas/dobras que se atualizam em nós

e nas coisas como ‘entre-tempos e entre-momentos’ que não marcam um

tempo entre dois instantes, mas coexiste com o instante em seu povir.

(NEVES, 2002, p.103)

De algum modo parece-nos que o cultivo de nossa existência e daquilo que fazemos

juntos também se dá no cultivo desta vida impessoal, que está em todos os lugares

sabendo que as individualizações, as segmentações que atravessam e produzem o corpo

orgânico são “imanetizados em virtualidades, em entre-tempos, intervalos, corpos

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informes, hecceidades, acontecimentos, singularidades em constante tessitura e devir”.

(Neves, 2002, p.105).

***

Enquanto Fabiano tomava seu café e apreciava a movimentação da rua,

tomamo-nos pelos braços – Dona Etelvina e Eu – e seguimos para um

passeio pela rua. O sol também podia ser experimentado por aquela

senhora que dizia não saber há quanto tempo não sentia as bochechas

da face corar. Na volta do passeio, Dona Etelvina contava fatos novos

que estavam ocorrendo em sua vida. A filha que morava no Rio estava

construindo uma casa para ela e Fabiano irem morar lá. Parecia estar

animada, pois lá haviam muitos parentes. A vida estava mais difícil com

a ida para Nova Holanda. Dizia ela: ‘Na fronteira a casa era pequena,

mas do que adianta ter uma casa maior e a vida ficar pequena?’ Dona

Etelvina parecia perceber que já não era a casa que havia ficado

pequena, mas o próprio viver.

Já era quase meio-dia e precisávamos partir. Fabiano resistia em voltar

para a casa. Por certo, me lembrara aqui de Idalina e de nosso passeio

pela praia quando tomamos aquele caldo do mar. O cheiro do mar que

nos invadia e nos embriagava fazia-se sol refletido naquela rua de Nova

Holanda. A saída para ‘fora dali’, parecia enfim explicar para que a

vida, as ruas e as praças haviam sido feitas. Mas o que voltar para casa

de fato seria?Nos havíamos então com um impasse: não poderíamos

ficar mais tempo com Fabiano lá fora, mas não podíamos obrigá-lo a

voltar. Não poderíamos também deixá-lo ali, porque isso seria um

descuido com Dona Etelvina, que não conseguiria ajudar Fabiano a

entrar na casa, e desde o início ela já demonstrara esse medo tentando

até impedir que Fabiano e ela própria experimentassem uma outra vida.

De certo, a saída deste impasse também não estava em uma ou outra

posição, mas no modo como juntos faríamos. Por certo, podemos pensar

que o não-saber como lidar com este impasse, pode em muito nos afastar

e nos impedir de habitarmos uma experiência de fronteira. Neste medo,

muitas vezes nos distanciamos do outro, distanciamo-nos de nós mesmos

quando nos separamos de nossa capacidade de encontrar, de outrar.

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Mas ali, algo se fazia diferente, quando não era incidido sobre ele uma

ação coercitiva, mas também quando não éramos tomados por uma mera

‘tolerância’. E é quando Fabiano começa a falar da perna atrofiada, e

da possibilidade de sua melhora. A terapeuta ocupacional se dispõe a

estar com Fabiano, a tocar em sua perna, a mesma que ele não deixava

a fisoterapeuta tocar. E é na possibilidade desse toque que Fabiano

entra em casa. Sabíamos que o que se dava, neste momento, não era um

certo ‘jeitinho’ para que Fabiano entrasse, mas a construção de um

sentido para esse voltar.

Parece que ao afirmarmos uma outra qualidade de cuidado e de conhecimento, podemos

perceber que o modo como cuidamos e como conhecemos modifica o que somos e o

mundo que habitamos. Compreender a natureza co-dependente de todas as coisas

produz um compromisso ético-político com a vida que construímos juntos. De algum

modo, é para nos empenharmos na construção desta vida que construímos juntos que

buscamos pensar a relação Saúde Mental e Atenção Básica em nosso contemporâneo.

Como temos construído nossas relações? Como tecer redes autopoiéticas de cuidado

que nos sustentem nas lutas cotidianas coletivamente? A aposta na produção de outros

modos de cuidado de nós e de nossas práticas requer de nós um cultivo de nossas

relações, deste plano do encontro no qual afirmamos a natureza co-dependente de todas

as coisas, da vida que construímos juntos. Compreender o primado deste plano coletivo

e relacional aliançando-nos com seu caráter processual e múltiplo de constituição

permite-nos uma ampliação de nosso olhar para as práticas de cuidado que temos

produzido entendendo que este fazer não está em um, nem em outro ponto, mas na

relação construída.

3.3 A experimentação da clínica como cuidado do/no território

De algum modo, tecermos redes entre a Saúde Mental e Atenção Básica na produção de

práticas de cuidado também nos permite construir o próprio olhar que temos de nós e do

que fazemos juntos. Neste fazer já podemos experimentar uma problematização da

própria pratica clínica.

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Em uma das reuniões de capacitação que participamos com a Saúde Mental e a equipe

do PSF podemos pensar uma certa relação da clínica com o território quando este

coloca-se como plano de complexidade onde a clínica se desdobra. Se podemos pensar

uma ação no território enquanto espaço vívido que inaugura outras formas de

agenciamento terapêutico bem como outras possibilidades de conexão com os fluxos da

cidade e da cultura, cabe-nos então nos interrogar sobre a clínica que aí se insinua. O

que afirmamos como clínica? Como não situarmos a clínica como uma atividade de

consultório ou de qualquer serviço/estabelecimento reduzindo-a ao que já está

objetivado?

Uma das falas que emerge no grupo tensiona essa discussão: “Infelizmente, às vezes a

gente na atenção básica tem que ficar como babá. A rede tá fraca.”

O que em nós e nos nós da rede enfraquece? O que diminui nossa potência quando nos

percebemos fracos? Será que podemos realmente apostar que o ser babá é uma

produção desta suposta fraqueza da rede, de nossas conexões? Que modos de se operar

a clínica com/no território podem ser problematizados quando acreditamos ser a função-

babá apenas um inconveniente?

Lancetti (2006) nos ajuda a pensar a experiência oficiosa do terapeuta em uma espécie

de função-bá trazendo outros sentidos para o ser babá. Bá, diz-nos o autor, ao invés de

babá, pois mais antigo em português, significa o mesmo que ama-de-leite, ama-seca,

preta velha76. Para o autor impera a necessidade de nos produzirmos em nossos modos

de cuidar através da clínica produzida no território nesta espécie de função-bá,

afirmando que é nela e através dela que se sustenta a continuidade de um tratamento, a

produção de vínculo e acolhimento, e a disposição em cuidar de nossas relações. Posto

que, esta experiência oficiosa constitui-se na “disposição para cuidar e nunca desistir”

(p.106)

Não seria a experiência-bá uma experiência do acompanhamento? Muitas vezes o “ficar

como babá” percebido pelos trabalhadores, refere-se ao acompanhamento dos processos

de intervenção ou de encaminhamento que dão sustentação à continuidade dos projetos

76 Ver em LANCETTI, A. Clínica peripatética. São Paulo. Editora: Hucitec, 2006.

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terapêuticos. O grupo fala da necessidade de se intensificar a função-bá quando se

percebe que a rede está “fraca”. Mas, em meio a insistência para se garantir a

continuidade dos projetos terapêuticos é produzido também a sensação de desconforto e

inconveniência desta função.

Podemos dizer que ao falarmos aqui da função-bá sinalizamos para a experiência de um

acompanhamento paradoxal naquilo em que tensiona em nossas práticas a produção do

cuidado e da tutela, da expansão e do constrangimento da vida. Devemos estar alertas há

alguns perigos que rondam aqueles que acreditam que o acompanhamento seja uma

simples tarefa. Alguns terapeutas, nos diz Lancetti (2006), “acompanham o ir e vir de

uma pessoa acreditando que o cumprimento de uma tarefa se resume a sua ação.

Espécie de ação de soma que iria compor magicamente a subjetividade ou o que é mais

grave, uma espécie piegas de adaptação”. (p.105)

Será somente a produção de um sentido de inconveniente do exercício da “função-babá”

que é compartilhado pelos trabalhadores? Ao operar uma prática de acompanhamento

dos processos de trabalho (encaminhamentos com garantia de atendimento,

compartilhamento dos casos) não estaríamos produzindo resistência aos “formalismos”

das redes frias? Não poderiam indicar a afirmação de outros modos de ação?

Passos e Benevides (2003) nos ajudam a recolocar o problema da clínica, uma vez que,

para instaurarmos processos disruptores com/nas práticas de cuidado orientando a

organização dos serviços em busca de transformações para a saúde e para a vida das

pessoas, temos como desafios não somente o enfrentamento de problemas concretos,

como também a criação de novas questões. Desse modo, os autores nos fazem pensar

que este duplo aspecto é, pois o que a clínica nos coloca.

De um lado, a clínica se apresenta como um campo de problemas a serem

resolvidos exigindo um esforço intelectual de construção de estratégias de

intervenção. De outro, ela se constitui como um plano problemático a ser

criado exigindo o esforço intuitivo de desmontagem dos problemas

estabelecidos e a invenção de novos problemas, de novos modos de

existência (PASSOS; BENEVIDES DE BARROS, 2003, p.84)

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Se não compreendemos a clínica como uma especialidade e sim como uma experiência

podemos então recolocar o problema da clínica perguntando-nos conforme os autores

mencionados ‘o que pode a clínica?’ ou o que nela se passa. O que se passa na

experiência do acompanhamento? Compreendermos a clínica como uma experiência,

traz à cena o paradoxo de ela mesmo ser confrontada em sua prática com a dimensão de

não-clínica. De algum modo, é nesta zona de indiscernibilidade onde saberes e objetos

são inseparáveis que o exercício clínico se faz, trabalhando nas formas, nos seus índices

ativos, intensificando as aberturas e produzindo-as em muitos momentos.

Forçando sempre os seus limites ou operando no limite, a clínica se apresenta

como uma experiência do entre-dois que não pode se realizar senão neste

plano onde os domínios do eu e do outro, do si e do mundo, do clínico e do

não clínico se transversalizam. (BENEVIDES DE BARROS; PASSOS,

2004, p. 279).

A construção de uma outra postura neste exercício clínico nos é exigida quando já não

bastam mais os recortes binarizantes e excludentes operados pelo paradigma da ciência

moderna que simplifica os problemas numa ação purificadora e deputariva. Colocamos

então o desafio de superarmos os antigos isolamentos entre as disciplinas/saberes

produzindo um atravessamento dos mesmos, não em seu interior, mas entre eles. Somos

forçados a pensar a complexidade como o problema das fronteiras dos objetos e dos

saberes.

Esta complexidade comparece na experiência limiar dos modos de se operar na atenção

básica quando percebemos que a clínica no território se exerce em uma condição

minoritária. Fora dos espaços fechados de reclusão e fora de uma lógica manicomial que

força os limites identitários das disciplinas e saberes, vivemos uma experiência preciosa

de deslocalização de uma suposta clínica objetivada, garantida pela previsilidade dos

saberes e resguardada por quatro paredes. Entendemos desta maneira que se há uma

localização para a experiência da clínica que queremos aqui afirmar, esta se dá sempre

no plano de imanência, de produção da existência, o que por sua vez continua a

deslocalizá-la, tendo em vista vivermos neste plano uma experiência de

indiscernibilidade, de inseparabilidade de sujeito e objeto, de mim e do outro.

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Muitas vezes confundimos a condição minoritária com a qual nos encontramos nesta

experiência com uma condição de menoridade, de uma ‘clínica menor’, e com isto

endurecemos nas passagens que essa experiência pode operar buscando um saber

supostamente capaz de emprestar-nos uma identidade.

Para Deleuze e Guattari (1997a) uma maioria é sempre numerável e supõe um estado de

dominação. A minoria, por sua vez, se define como um conjunto não numerável,

independente do número dos seus elementos. A minoria faz valer a potência do

inumerável, que não se mede por sua capacidade de se impor no sistema majoritário,

mas justamente de fazer valer uma força dos conjuntos não numeráveis. Ela é a fórmula

das multiplicidades, é devir de todo o mundo (Idem, 1997b). “No entanto, é preciso não

confundir ‘minoritário’ enquanto devir ou processo, e ‘minoria’ como conjunto ou

estado” (Deleuze e Guattari, 1997a, p. 88). O minoritário diz daquilo que foge ao padrão

dominante do socius: “todo devir é um devir minoritário” (Idem, p. 87).

Há que estarmos aqui, atentos a este mal estar da minoridade e uma desatenção com o

que esse modus operandi tem de devir-minoritário: constituir-se numa operação de

desinstitucionalização da própria clínica. Pensar uma micropolítica ativa e viva nos

processos de constituição do cuidado requer de nós uma reversão desta condição de

minoridade para uma potência minoritária.

A experiência de acompanhamento vivida marca-se, muito mais, pelos percursos do

caminhar do que pelos lugares de partida ou de chegada. Atenta às articulações com o

fora, às conexões possíveis e aos planos de consistência que se conquistam, estas nos

parecem ser as pistas para viver este processo de experimentação e acompanhamento

que é sempre de aprendizagem. A clínica trabalha com essa experiência de produção,

sendo ela mesma produtora. Trabalha em um plano de encontro, plano de produção da

vida, no entre-dois, fazendo-se ela mesma como potencializadora de novos encontros.

*** São incríveis os encontros que podem acontecer na experiência do

trânsito, do ir e vir por aquelas ruas, sem ter lugar de partida ou de

chegada. Nossas passadas se cruzaram em uma das andanças pelo

território. Intuíamos ali a feitura de um território que não se constituía

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apenas como a ‘Rua 02 do bairro de Nova Holanda’. Logo adiante havia

a mercearia de seu Juca, o som estava animado. A música alta e

dançante fazia parecer que era dia de festa. Olívia estava na rua, com

uma muda de saião77 em suas mãos. Alegrou-se logo em nos ver, com um

sorriso acolhedor e nos disse que estava se cuidando, pois o resfriado

era forte e estava atrapalhando-a a cantar. Explicando-nos o efeito

medicinal do saião demonstrava uma certa aprendizagem afetiva deste

cuidado quando lembrava-se que este ensinamento havia sido

transmitido por pessoas especiais em sua vida. Com a voz ainda rouca,

Olívia ensaiava pequenos versos melódicos. Contava das composições de

músicas que havia feito e que uma delas já até havia sido escolhida para

um carnaval de rua. O canto parecia trazer-lhe vida e produzir uma

experiência de cuidado consigo mesma. Sentia-se potente quando

cantava. A equipe de saúde mental lembrava-se de sua música em alguns

momentos que Olívia havia ido às oficinas e emprestado vida a todos

com seu canto.

***

Noutro dia, Olívia vai ao posto de saúde dizendo que estava muito mal e

que estava pensando em se matar. Pedia para ser internada. Era

paciente psiquiátrica e já tinha passado pela vivência de internação

outras vezes. Chegou naquela comunidade cerca de 04 anos atrás,

perambulava pelas ruas, quando pediu abrigo a Seu José e desde então

vive com ele como sua mulher. A equipe de Saúde Mental vai à casa de

Olívia junto com o médico do PSF e a Agente Comunitária. Olívia

convida todos a entrar. A casa limpa, bem cuidada. Os quadros que

havia pintado nas oficinas estavam expostos na parede. O marido estava

trabalhando, mas já havia dito à equipe que eles estavam muito tristes

desde o falecimento da netinha de 11 meses em maio, acometida por

meningite.

77 Planta com propriedades medicinais

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Olívia ainda não havia contado de sua netinha, mas chora achando que

‘sua doença de cabeça’ havia voltado. No choro lamenta-se dizendo ‘eu

estava tão boa... Não quero mais essa doença’. Estou me sentindo

abandonada. Não consigo escrever mais as letras das músicas, fazer

mais as coisas como antes. Até minha letra está ruim, antes era bonita.

Embora a casa de Olívia estivesse bem cuidada, ela insistia em nos levar

à cozinha, pois ali dizia ela, veríamos como ela está toda desarrumada.

Olívia é aconchegada nos braços de Amanda (profissional da saúde

mental) e depois de instantes começa a dizer que também está assim por

falta de sexo. Queixa-se que o marido já não dá mais ‘no couro’ como

antigamente. Que ela pensa em sexo o tempo todo.

A equipe preocupa-se se Olívia está tomando as medicações

corretamente. Olívia se queixa de alguns sintomas colaterais das

medicações, mas disse que parou de tomar porque o pastor de uma

igreja que estava freqüentando orou por ela e que Jesus ia lhe curar.

Que aquilo era uma bruxaria que tinham feito, mas que já podia parar.

Aí acabou piorando. Estava cantando no coral da igreja. Mas se

desentendeu com uma mulher de lá. Diz que essa mulher ficou com

inveja dela porque canta bem. Parou de ir à igreja, mas sente-se triste

porque gosta de cantar. Fica alegre quando canta.

A equipe pergunta sobre outro lugar onde possa cantar, Olívia fala dos

bailes da 3ª Idade. Quando a equipe fala do CAPS, Olívia diz ‘Não gosto

do CAPS. Volto mal humorada de lá. Não volto bem não. Só vejo gente

pateta, doente. Eu gosto de ver gente sã. Gosto de andar aqui na minha

comunidade. Gosto daqui’

(Diário de Bordo, 03 de outubro de 2008)

De algum modo, na experimentação dos encontros gerados com/no território colhíamos

algumas pistas para o enfrentamento dos desafios que temos vivido no campo da saúde

quando pensamos na produção de práticas de cuidado que inaugurem em nós e em

nosso fazer uma prática ética de cultivo e expansão da vida. Ao longo de nossa viagem,

percebemos que pensar aquilo que se passa na intercessão Saúde Mental e Atenção

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Básica é, não somente pensarmos a respeito da vida e da saúde que queremos cultivar,

mas em como experimentamos esse cultivo.

Neste como fazer, muitas perguntas acerca de nossa própria saúde nascem e se

desdobram em nós em nossos percursos do dia-a-dia. Quando encontrávamos com

Olívia de mãos entrelaçadas a uma muda de saião, também podíamos intuir que nestes

desdobramentos de nossas perguntas acerca de nossa saúde, de como cuidar de si, há,

sobretudo, uma pergunta pela

‘mistura’, pela melhor composição possível entre nossos corpos e os demais,

sejam estes grandes, pequenos ou minúsculos, sejam eles feitos desta ou

daquela matéria, estejam próximos ou distantes etc. E sabemos quantas vezes

repetimos diferentemente esse tipo de pergunta ao longo das nossas vidas,

pois é comum a experiência de passarmos por bons e maus encontros com

corpos que nos fizeram bem ou mau em diferentes circunstâncias, neste ou

naquele momento. (ORLANDI, 2009, p.02).

Para aquela mulher a mistura de seu corpo orgânico com a planta lhe trazia a confiança

de que a garganta melhoraria, de que a voz rouca e atrapalhada pelo resfriado se

recuperaria. Por certo, aparecia também a desconfiança da capacidade de obter

melhorias em sua saúde com o uso de psicotrópicos quando dizia que alguns deles lhe

causavam diversos efeitos colaterais. Nessa experiência do cuidar de si, como nos

aponta Orlandi (2009) somos, constantemente levados a nos perguntar a respeito do que

pode afetar nossa saúde corporal e mental impondo-se em nós uma espécie de estado de

alerta. Para nomear este estado de alerta ao qual nos vemos engajados quando nos

misturamos com outros corpos, Orlandi, empregando duas palavras usadas por Deleuze,

nos fala da confiança e da desconfiança

não apenas em relação à variabilidade das afecções que nos atingem, não

apenas em relação à potência vital que sentimos variar em nós, não apenas

em relação às forças que julgamos possuir a cada momento, mas também em

relação ao próprio “mundo”, em relação ao conjunto dos nossos encontros, ao

conjunto dos dispositivos, institucionais ou não, que enredam, cada qual a seu

modo, as possibilidades do nosso bem-estar e do nosso mal-estar (...) A

pergunta se impõe, justamente porque somos feitos dessas misturas

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disparatadas, somos feitos dos nossos bons e maus encontros. (ORLANDI,

2009, p.02)

Se por vezes parecemos estar condenados a experiência desse estado de alerta, a de

pensarmos em nossa constituição numa oscilação intermitente entre boas e más

expectativas e que, por vários momentos, se manifestam como ‘dilacerantes curtos-

circuitos’, Orlandi nos traz uma preciosa contribuição ao afirmar a possibilidade de

interferirmos nestas oscilações do confiar e do desconfiar

E para serenidade do nosso ânimo, geralmente preferimos procedimentos que

julgamos serem capazes de tornar mais duradoura a confiança, simplesmente

porque é muito enervante permanecermos em constante desconfiança.

(ORLANDI, 2009, p.06)

Marcados em nossos encontros pela problemática da saúde mental e corporal, como

então podemos tornar a confiança mais duradoura?

O caminho que viemos empreendendo até o momento juntamente com Foucault ao

estudar o pensamento grego, nos permite pensar que a preocupação com um cuidado de

si, com a maneira pela qual nos conduzimos, implica-nos também na constituição de

nós mesmos como sujeitos éticos. É possível, pois falarmos de práticas de si, de modos

de subjetivação quando, neste movimento de cuidado de si, nos constituímos como

sujeitos de uma prática. Nos gregos, Foucault nos aponta que esta prática não se orienta

para a constituição de um quadro de prescrições ou para uma codificação dos atos, mas

para uma “estilização da atitude e uma estética da existência”. (Foucault, 1984, p.85).

Se em todos os momentos da vida havia sempre um exercício que poderia ser realizado,

muitas vezes acompanhados de algumas recomendações, regras de prudência e

sugestões sobre a maneira como realizá-los, Foucault, também insiste em apontar que

essas referências não funcionam como regras prescritivas a serem seguidas. Havia uma

liberdade tanto na escolha das práticas quanto na regularidade, porque o que estava em

questão não era seguir uma regra de vida, mas constituir uma arte de viver.

Parece-nos que a saída também apontada por Orlandi (2009), a respeito de como tornar

a confiança mais duradoura, reside também na construção de uma estética da existência.

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Para o autor, promovemos neste movimento de transformar-se, a construção de uma

prudência, de uma postura ética que nos permite lidar com os acontecimentos da vida.

Neste caso

a prudência opera tanto na escolha de cuidados destinadas à vida mais

saudável, a um bem viver, quanto na sobreposição da confiança sobre a

desconfiança relativa a esses cuidados. Em conseqüência, intervalando-se

entre a confiança e a desconfiança no sentido de uma durável preponderância

daquela em relação a esta, a prudência ajuda a reduzir o tempo do nosso estar

à deriva dos curtos circuitos desse jogo que simplesmente nos adoece ainda

mais. (ORLANDI, 2009, p. 10)

De algum modo, quando nos havemos com a produção de práticas de cuidado no campo

da saúde e suas problemáticas, parece-nos que nossas perguntas necessitam passar pela

constituição de uma prudência que não se esgota no cuidado fisiológico de si ou de

nossa própria saúde atual. A prudência deve constituir-se como prática de acesso e

cuidado para além de nosso corpo orgânico, ligando-se ao que Orlandi (2009) denomina

como ‘algo forte demais’ que poderá potencializar a capacidade de reinvenção e criação

de um corpo que aqui chamamos de estético. Neste sentido, o autor nos indica que

o critério de seleção daquilo a que convém abrir meu corpo orgânico vem a ser sua

participação favorável no movimento pelo qual minha força de trabalho se compõe com

esse algo forte demais que sinto ser capaz de aliciar maximamente minha potência de

vida. É esse movimento em prol do meu envolvimento com algo forte demais que me

lança para além do princípio dos prazeres imediatos da minha vida, da minha saúde em

sua cotidiana atualidade. (ORLANDI, 2009, p.14)

De algum modo, podemos dizer que para o deslocamento de uma prudência, ao qual nos

referíamos do ponto de vista da vida em sua saudável imediatidade, é necessário ficar à

espreita deste algo forte demais, dos encontros que perturbam os contornos de nossos

modos de subjetivação atuais para a constituição de uma prudência que, enquanto arte,

está envolvida com as intensificações de uma vida. Nesta construção nos dedicamos à

produção de práticas de cuidado que não estejam simplesmente tomadas pela “forma

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organismo que ‘cola no corpo’” (Orlandi, 2009, p.17), mas, sobretudo, à espreita dos

encontros como prática de cultivo da relação que torna possível uma vida, relação esta

que se passa

entre intensificações e o plano (ou planos) em que elas ganham uma

consistência co-determinada por elas mesmas. [...] Os cuidados com essa

relação fazem da prudência a arte de nos agenciar com aquilo que intensifica

nossa participação criativa e consistente no enfrentamento do caos.

(ORLANDI, 2009, p. 20)

Compreendemos, portanto, que nosso campo de experiências com acontecimentos sofre

aberturas não apenas à vida orgânica, mas também à vida não orgânica, de tal modo,

que algo mais pode nos acontecer que não apenas vivermos a vida engendrada nos e

pelos estratos. Cabe-nos então o cultivo de uma prática à espreita “não de outra vida no

além, mas de encontros intensivos que povoam uma vida a que temos acesso de quando

em quando” (Orlandi, 2009, p. 20)

Parece-nos que a pergunta com a qual nos deparamos na construção de práticas de

cuidado no campo da saúde segue, pois a interferir nos encontros com Olívia pelo

trânsito deambulante no/com o território, quando nos indagamos: Que vida cultivamos?

O que em nós queremos cuidar? Do que Olívia parecia se ocupar quando, de mãos

entrelaçadas àquela muda de saião, insistia em cuidar de seu resfriado?

De algum modo, Olívia já nos dava algumas pistas da importância deste cuidado

quando dizia que o resfriado estava atrapalhando-a cantar. Mas, o que seria este canto?

Aqui tomamos nota78 de uma distinção feita por um músico de nosso tempo chamado

Olivier Messiaen79 entre quatro tipos de canto de pássaros. O músico percebe que na

78 Para maior aprofundamento das conexões que aqui fazemos das contribuições deste músico, indicamos ao leitor o estudo da aula – Corpo Orgânico e Corpo histérico – do filósofo e professor Claudio Ulpiano. Disponível em: http://www.claudioulpiano.org.br/aulas_040195.html. Acesso em 24.04.09. 79Compositor, organista e professor francês, Olivier Eugène Prosper Charles Messiaen nasceu a 10 de Dezembro de 1908, em Avignon, França. Apaixonado pelo canto dos pássaros e após um meticuloso estudo ornitológico criou obras musicais complexas inspiradas nas sonoridades das aves, como Le Réveil des Oiseaux (1953), Oiseaux Exotiques (1956) e Catalogue des Oiseaux (1959). Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$olivier-messiaen>. Acesso em 24.04.09.

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primavera, quase todos os pássaros fazem o canto do amor. Este canto, geralmente feito

pelos machos, é um tipo de canto de sedução que tem uma função específica: serve à

espécie porque o amor permite a reprodução; e isso acontece em todas as primaveras, é

realmente um canto da primavera. Um outro tipo de canto indicado por Messiaen, é o

grito de alarme, entendido por todo e qualquer pássaro através do gorjeio servindo à

preservação da espécie contra os perigos que ameaçam a sua existência.

O músico também nos fala de um terceiro canto que alguns pássaros fazem para o

crepúsculo - no anoitecer e na alvorada - quando uma claridade frouxa precede a

escuridão da noite ou o clarão do dia, quando o dia é marcado pela mistura de seu início

e de seu fim. Segundo o músico este é um canto gratuito de infinita beleza produzido

pelo pássaro, não importa os perigos que ele corra. Parece notar também, que quanto

mais forte for o crepúsculo, quanto mais se espalhar a cor violeta e quanto mais bonita

for a aurora; mais esplendoroso é o canto do pássaro.

Os diferentes cantos do Tordo80 nos ajudam a habitar uma certa experimentação no

encontro com Olívia quando temos tensionada uma importante discussão acerca da vida

que queremos cuidar e cultivar nas práticas de saúde que produzimos. O canto da

primavera e o grito de alarme marcam claramente a existência de um corpo orgânico,

que parece estar sempre a serviço da espécie e da conservação da vida. Estes cantos nos

aproximam das muitas práticas de cuidado que pomos a funcionar, quando também

entendemos que nos processos de produção de saúde há um corpo orgânico que

acessamos e que pretendemos conservar. Mas se afirmamos aqui a necessidade de

produzirmos um cuidado para além e aquém de nosso corpo orgânico, podemos

experimentar já no canto gratuito do pássaro a dimensão de constituição de um corpo

estético: um canto que não possui nenhum objetivo orgânico já que não presta nenhum

serviço ao organismo ou à espécie. Numa atitude de espreita, os pássaros têm a

construção de um corpo estético quando tocados, de tal forma, pelas luzes da claridade e

80 O nome do pássaro em português é TORDO e em francês “GRIVE”. Para nossa discussão trazemos os quatro tipos de canto: o da primavera, o grito de alarme, o canto territorializante e canto gratuito também conhecido como canto do crepúsculo.

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das cores que o crepúsculo e a aurora produzem que seu canto emite ondas rítmicas que

se encontram com as forças da natureza em suas luzes e coloridos.

Um quarto canto também estudado por Messiaen chamado de canto territorializante

também nos ajuda a pensar na constituição de práticas de cuidado no próprio território

quando entendemos que aquilo que constitui o que chamamos de território é também a

própria vida movente em nós e no outro. Para o músico, este canto está presente em

muitas óperas famosas e destina-se a marcar a construção de um território. Mais bonitos

e mais fortes do que os cantos do amor primaveril, acontecem em meio a uma espécie

de torneio dos pássaros não havendo críticos entre eles. O canto do território abre a

possibilidade dos pássaros cultivarem consigo e com o outro uma relação ética onde

aquele que canta com mais beleza fica com o território e ali faz seu ninho, sua morada.

Parece-nos que é do canto gratuito e do canto territorializante que Olívia nos fala

quando insiste em cuidar de sua voz. A vida parece ficar triste e sem sentido quando já

não consegue escrever suas músicas, quando até mesmo sua letra parece estar ficando

feia. De algum modo, percebemos com Olívia que aquilo que nos move na feitura de

nós mesmos, de nossa vida e dos modos como nos cultivamos na relação com o outro

não se passa apenas pelo prudente enfrentamento de um problema de resfriado imediato.

Aquilo que nos move, é também o que move o canto gratuito do pássaro mesmo que

ainda corra riscos. Aquilo que nos move na produção de um canto belo que cultive

nossa existência como construção de moradas. Aquilo que nos força a ocupar o tempo

que ganhamos, quando nos precavemos de ações prudentes que possam cuidar de nosso

corpo orgânico, mas que interroguem em nós o quanto produzimos em nossos cantos

uma vida tecida em sua complexidade como potência singular de ação e reinvenção de

nós mesmos. É que sabemos que uma prudência pouco preocupada com a constituição

de um corpo estético, de uma arte de viver é, muitas vezes,

capaz de mediocrizar a existência, de reduzir nossas forças vitais a uma

medíocre contenção do nosso desejo ou de promover nossa adequação a uma

esfera de prazeres duvidosos do ponto de vista de uma vida envolvida com a

complexidade de sua própria potência. [Há, portanto, que nos perguntarmos]

que possibilidades de escolhas e ações prudentes estão ou podem ser abertas

em meu campo de experiências? Que fazer do tempo porventura ganho ao

longo desses cuidados? (ORLANDI, 2009, p.11)

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***

Aceitara então, participar de uma oficina com a saúde mental no posto

anexo da Rua 03, logo ao lado de sua casa. Era tarde de quinta feira

quando Olívia aparece para compor o grupo que ali se construía com

outros moradores de Nova Holanda, trabalhadores daquele posto e a

equipe de saúde mental. Os flashs de sua casa toda arrumada e a

insistência de Olívia em nos mostrar a cozinha por ser o lugar

‘desorganizado’ de sua habitação, nos arrepia a pele. É que Olívia

trazia o corpo perfumado, enfeitado por batom e rouge avermelhados e

carregado de muita inquietação. Um descompasso sentido pelas pernas

que insistiam em balançar para todos os lados trazendo as marcas de

seu desassossego. Dividida entre ficar e partir, de arrumar e desarrumar

a casa e a si mesma, Olívia começa a cantar. O grupo a acompanha na

melodia e todos os que ali estavam, já não parecem divididos em seus

‘problemas’, suas funções... As divisões se desfazem e nesse movimento

também se dissolve o desassossego de Olívia. O corpo já podia ficar ali

quando experimenta no canto um sentido para sua existência, para fazer-

se como morada.

Na experimentação desta viagem percebemos que a construção de práticas de cuidado

que possam fazer da existência uma arte de viver, sustenta-se no cultivo de uma prática

ética onde o cuidado consigo, com o outro e com o mundo se faz quando cuidamos da

dimensão coletiva e relacional de nossa existência.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

"Nossos trilhos podem nos conduzir absolutamente por toda parte. E se encontramos, às vezes, uma velha ramificação do tempo de nossa avó, muito bem, a tomamos para ver onde ela nos levará. E, palavra de honra, entra ano sai ano nós acabaremos descendo o Mississipi de barco, há muito que tenho vontade. Já estamos cansados das estradas à nossa frente, para preencher o tempo de uma vida, e é justamente o tempo de uma vida que quero aproveitar para terminar minha viagem" (Bradbury apud Deleuze, G; Parnet, C. 1998, p. 119).

A epígrafe que escolhemos para abrir as últimas considerações deste trabalho nos parece

um bom tom para afirmar não somente o fim do texto, mas a aposta que nele e com ele

fazemos: como aproveitar o tempo de uma vida? Como cuidar da vida, de nós e do que

fazemos juntos? Como produzir práticas de cuidado que expandam à vida em sua

capacidade de invenção e transformação?

De algum modo, ao tomar nota deste texto de Bradbury em seu livro Diálogos, Deleuze

(1998) já trabalhava com a idéia de interferência acreditando que toda e qualquer

‘entrada é boa, desde que as saídas sejam múltiplas’. Por certo, as apostas e aspirações

que nos moveram nesta viagem, à tecedura dos encontros entre Saúde Mental e Atenção

Básica, puderam ser sustentadas na medida em que o próprio pensamento pôde ser

construído nas interferências e ressonâncias que este encontro opera em nós e em nossas

práticas.

Foucault também nos ajuda a pensar que aqui já se trata de uma aposta ético-política

quando pretendemos não só refletirmos sobre o que queremos cuidar em nós, mas já na

inseparabilidade da ação, também produzirmo-nos de outros modos. De alguma

maneira, já intuíamos que o sentimento de cansaço, falta de fôlego e de se estar só, com

os quais nos havemos constantemente em nossas inúmeras viagens, e aqui destacamos

as do campo da saúde, parecem ser mais intensos à medida que nos perdemos de uma

prática de cultivo ético da relação entre nós e os outros. Neste sentido, nos distanciamos

também de um cultivo da liberdade frente a tudo o que nos acontece sofrendo por uma

visão bifocal e presente nos modos hegemônicos de conhecimento na modernidade que

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ora acreditam na existência de um mundo real separado ou/e de um sujeito real

separado. De certo modo, isto nos leva a interrogar não só o modo como cuidamos, mas

também como conhecemos, quando nosso fazer perde-se do próprio movimento

processual e múltiplo no qual a vida se constitui. E é aí que também vivenciamos uma

prática de cuidado que em muito objetifica a nós e ao outro, produzindo uma vida

individualizada e distanciada de sua capacidade de invenção e transformação. Bem

sabemos que a produção de práticas de cuidado que apostem na construção de uma vida

compartilhada e solidária se faz no acesso e cultivo da dimensão coletiva e relacional

que constitui tanto nossa existência quando o mundo que construímos para nós. Esta

parece ser a aposta que também fazemos ao longo de todo o trabalho para pensarmos a

interface Saúde Mental e Atenção Básica em nosso contemporâneo.

Foucault já nos ajuda neste entendimento, quando percebemos que o autor busca na

antiguidade inspiração para os estudos da subjetivação e de uma outra relação com o

outro e com a vida que implique a liberdade. Ao notar que o cuidado de si é sempre

acompanhado de uma prática que possibilite, de forma cotidiana, uma desaprendizagem,

o abandono de hábitos há tanto arraigados em nossos modos de vida para uma

transformação do ser; Foucault também nos mostra a possibilidade de pensarmos que a

prática de si nos auxilia não somente na construção de um outro modo de ser, mas,

principalmente, a compreendermos o processo de produção do ser, a conhecermos

nossos funcionamentos.

O início de nossa viagem parece ser marcado por um impasse quando percebemos que

para fazê-la, haveríamos de construir, ao longo do caminho, um modo de fazer a

viagem. Já com o conto Kafkaniano intuíamos que o caminho seria o da

(des)aprendizagem cujo exercício de construção fazia-se duplo, quando marcado pelo

desapego de metas prévias ou provisões para a produção de um modo de fazer, de uma

prática ética (ethos) onde o cuidado de nós mesmos e do que fazemos juntos pudesse

nos sustentar nesta experiência. E parece-nos que é nesta prática de (des)aprendizagem

que também podemos construir um caminho ético para a feitura de um modo de fazer o

processo de produção de saúde na interface Saúde Mental e Atenção Básica, que assuma

riscos, que viva na experiência o não saber apostando na invenção e na construção de

práticas que não nos aprisionem ao terreno da normatização.

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Certamente, cabe-nos aí um exercício ético-estético e político de abrirmos mão de

concepções apriorísticas e essencialistas que fixam as práticas e os processos sociais de

forma dicotômica exigindo de nós e em nós, tanto nas cavalgadas pelo campo de

pesquisa como nas caminhadas pelo território da atenção básica com/no qual

trabalhamos; a criação de um modo de fazer os percursos que nos permitam acolher os

movimentos instituintes que emergem no campo. Afirmamos, pois, um ethos que coloca

como exigência dos/nos processos de produção de saúde o cultivo de nossas relações,

quando percebemos a necessidade de acessarmos esta dimensão coletiva da vida e de

nossa existência, em nossas práticas no campo da saúde. Parece-nos que é neste cultivo

que também reside o renovo de nosso fôlego, do ânimo e de uma maior leveza em

nossas lutas, quando experimentamos neste cuidado de si e do outro, o cuidado dos

próprios processos pelos quais somos constituídos.

De algum modo, sabemos que este modo de operar, implica-nos com a produção e

ativação deste plano coletivo, cujo desafio de colocar em análise os processos de

institucionalização vividos no próprio campo da saúde nos convoca, cotidianamente, a

habitarmos o plano paradoxal de constituição do próprio SUS. Ao vivermos esta

experimentação de viagem neste trabalho, buscando pensar o que se passa entre Saúde

Mental e Atenção Básica, não estaríamos buscando um transcendente como algo que

nos remetesse a coordenadas espaço-temporais ou pontos fixos de referência que

explicassem toda e qualquer variação de nossos percursos.

A convocação de um modo de fazer esta intercessão que oxigene o SUS em seus

movimentos instituintes e revigorem a dimensão pública de todo processo de saúde,

exige de nós e em nós, o desprendimento de modelos pré-definidos que tendem a se

tornar limitadores para a ação prática implicando-nos, necessariamente, em ultrapassar

as fronteiras, muitas vezes rígidas, dos diferentes núcleos de saber/poder que se ocupam

da produção da vida ativando em nosso dia a dia, um processo contínuo de contratação e

pactuação dos diversos atores envolvidos no processo de produção de saúde.

Falarmos deste processo contínuo de pactuação implica-nos em estarmos atentos ao

debate que neste trabalho também pudemos experimentar quando apostamos que a

produção do cuidado no campo da saúde efetiva-se com/na tessitura de redes instituintes

aquecidas nos/pelos encontros-agenciamentos que fazemos. Cabe-nos, pois, pensarmos

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em uma prática ética de produção de cuidado que nos coloca o desafio de aquecermos

as redes instituídas no campo da saúde, naquilo que nelas e através delas produz

movimentos de expansão e afirmação do cultivo de uma vida democrática e solidária.

De algum modo, na experimentação dos encontros gerados com/no território colhíamos

pistas para o enfrentamento dos desafios que temos vivido no campo da saúde, quando

também, reconhecemos a necessidade de respeitarmos e apoiarmos a existência de

outras redes que se constituem cotidianamente para além e aquém do campo da saúde.

Redes afetivas de solidariedade e partilha que sustentam a produção de uma vida no

território como potência de ação, reinvenção e luta frente aos processos de exclusão,

miséria e abandono produzidos pelo capitalismo, e contra os quais também estamos em

constante enfrentamento quando pensamos na produção de práticas de saúde. Neste

sentido, podemos também afirmar a necessidade de habitarmos o plano de constituição

da atenção básica realizando uma aposta protagonista da ação no território. De algum

modo, somos convocados nesta aposta, ao questionamento e reinvenção do modo de

organização do sistema de saúde e sua lógica de processo de trabalho; afirmando como

básico em nossas ações pensar a inseparabilidade entre produção de saúde, produção de

subjetividade e produção de territórios afetivos; entendendo, pois que a produção de

cuidado no território se faz na contra-mão dos processos de privatização da vida, de

autoritarismo e violação dos direitos humanos.

Se na interface Saúde Mental e Atenção Básica temos feito um aposta da ação no

território tomando-o em sua complexidade e capacidade de produzir-se como território

de encontros, entendemos que esta complexidade também se estende às equipes da

Estratégia de Saúde da Família e, de modo especial, ao Agente Comunitário de Saúde.

Neste sentido, afirmamos a importância de considerarmos o cuidado deste profissional

como um segmento privilegiado do processo de produção de saúde, e que nesta

interface – Saúde Mental e Atenção Básica – também precisamos cuidar.

Vivermos esta prática de cuidado implica-nos em uma experimentação da clínica como

uma atitude, como um êthos, já que percebemos que sua ampliação já não mais pertence

a um espaço determinado, a uma prática específica; mas nos exige que toquemos

naquilo que parece sem vida, que vejamos saídas onde ainda não parece haver. Há que

se trabalhar nesta intercessão e no próprio cuidado do ACS, acolhendo seus processos

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de institucionalização, suas objetivações, tentando, através de um cultivo ético, ampliar

nosso grau de visão a fim de acessar esse plano relacional, de co-emergência, dos

processos de subjetividade que nos produzem.

Pensarmos esta interface na articulação desenvolvida entre equipes de Saúde Mental e

da Estratégia da Saúde da Família no município de Macaé nos fez de fato entender que,

no que pese a importância da ESF nesta intercessão, esta deve ser tomada como um dos

dispositivos na constituição da atenção básica, mas que, de modo algum pode substituir

a própria atenção básica. A aposta, que então fazemos no cuidado do ACS deve se

manter sempre atenta aos perigos de estarmos engendrando práticas de cuidado que

apontem para a regulamentação e higienização da vida e da saúde. É que se sabemos

que o capital tem privilegiado os processos de cuidado e sua gestão, em sua dimensão

relacional, como campo de ação para sua lógica acumulativa; também compreendemos

que é neste paradoxo que se constitui nossa luta.

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