santuÁrios 2

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Cultura, Arte, Romarias, Peregrinações, Paisagens e Pessoas

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Revista Santuários Cultura, Arte, Romarias, Peregrinações, Paisagens e PessoasVolume 1, Número 2, julho–dezembro 2014, ISSN 2183-3184

Apoio:Organizadores:

Cadernos Vox Musei

Revista Internacional com comissão científica e revisão por pares (sistema de double blind review)

Periodicidade: SemestralRevisão de submissões: arbitragem duplamente cega por pares académicosDireção: Luís Jorge Gonçalves, Mila Simões de Abreu, Ana Paula Fitas, João Paulo Queiroz, Moisés Espírito Santo, Jorge do Reis, Cláudia Matos Pereira, Leonardo Caravana Guelman, Manuel CaladoRelações Públicas: Isabel NunesLogística: Lurdes SantosGestão financeira: Cristina Fernandes, Isabel Pereira, Andreia TavaresPropriedade: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Capa: Desenho em grafite sobre papel, baseado em cabeça que pode representar o deus Endovélico, e o pedestal com parte da epígrafe dedicado a este deus.Ilustração: Cláudia Matos Pereira, 2014.Contracapa: Ara dedicada ao deus Endovélico (Original no Museu Nacional de Arqueologia, foto José Pessoa)Ante Rosto: Augusto Prima Porta (Museus do Vaticano). Por ocasião dos dois mil anos da morte de Augusto (19 de Agosto de 14) que promoveu a fusão entre romanos e indígenas e de que resultou o santuário ao deus EndovélicoLogo do Congresso: Jorge dos Reis Projeto Gráfico: Jorge dos ReisPaginação: Inês Chambel

Impressão: Editorial do Min. da Educação e CiênciaTiragem: 350 exemplaresDepósito legal: 379932/14PVP: 10€ISSN: 2183-3184ISBN: 978-989-8771-02-5

EdiçãoFaculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL) / Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA)

Instituto de Sociologia e Etnolgia das Religiões da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (ISER-FCSH-UNL)

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD)

Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS-UFF) Laboratório de Observação de Artes e Saberes (LOAS)

Centro de Estudos do Endovelico (CEE)

Câmara Municipal do Alandroal (CMA)/ Fórum Cultural Transfronteiriço

ApoioTurismo do Alentejo

+ informações:santuarios.fba.ul.pt

Page 5: SANTUÁRIOS 2

Apoio:

REVISTA

2

Page 6: SANTUÁRIOS 2

Comissão Executiva

Luís Jorge Gonçalves, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-ArtesMila Simões de Abreu, Portugal, Universidade de Trás-os--Montes e Alto Douro, Vila RealAna Paula Fitas, Portugal, Coordenadora do Centro de Estudos do Endovélico, AlandroalJoão Paulo Queiroz, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-ArtesMoisés Espírito Santo, Portugal, Faculdade de Ciências Socais e Humanas, Universidade Nova de LisboaJorge dos Reis, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-ArtesCláudia Matos Pereira, Brasil, Escola de Belas-Artes, Universidade Federal do Rio de JaneiroLeonardo Caravana Guelman, Brasil, Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal FluminenseManuel Calado, Brasil, IEPA — Instituto de Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado do AmapáPanayiotis Saraneopoulos, Grécia/Portugal, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes

Conselho Editorial/Comissão Científica

Ana Paula Fitas, Portugal, Coordenadora do Centro de Estudos do Endovélico, AlandroalAntónio Delgado, Portugal, Escola Superior de Arte e Design, Instituto Politécnico de LeiriaArtur Ramos, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-ArtesCláudia Matos Pereira, Brasil, Escola de Belas-Artes, Universidade Federal do Rio de JaneiroCristiane de Andrade Buco, Brasil, IPHAN-FortalezaFernando António Baptista Pereira, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-ArtesFederico Trolleti, Itália, Universidade de TrentoIlídio Salteiro, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-ArtesJavier Marcos Arévalo, Espanha, Universidade da EstremaduraJoão Brigola, Portugal, Universidade de ÉvoraJoão Paulo Queiroz, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-ArtesJorge do Reis, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-ArtesJosé Ignacio Homobono, Espanha, Universidade do País BascoJosé Júlio Garcia Arranz, Espanha, Universidade da EstremaduraLeonardo Caravana Guelman, Brasil, Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal FluminenseLuís Jorge Gonçalves, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-ArtesManuel Calado, Brasil, IEPA — Instituto de Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado do AmapáMaristela Salvatori, Brasil, Instituto de Artes, Universidade Federal de Rio Grande do SulMila Simões de Abreu, Portugal, Universidade de Trás-os--Montes e Alto Douro, Vila RealMirtes Barros, Brasil, Universidade Federal do MaranhãoMoisés Espírito Santo, Portugal, Faculdade de Ciências Socais e Humanas, Universidade Nova de LisboaNuno Sacramento, Reino Unido (Escócia), Scottish Sculpture Workshop, AberdeenPanayiotis Saraneopoulos, Grécia/Portugal, Centro de Investigação e Estudos em Belas-ArtesPaula Ramos, Brasil, Instituto de Artes, Universidade Federal de Rio Grande do SulPaulo Caetano, Portugal, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de LisboaRuy Ventura, Portugal, Investigador Salvador Rodríguez Becerra, Espanha, Universidade de Sevilha

Page 7: SANTUÁRIOS 2

Santuários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e PessoasLuís Jorge gonçaLves13-15

1. Artigos

Reflexão Teórica sobre os aspectos simbólico e ritual durante a interpretação dos processos de produção de manufatos obtidos de matéria dura de origem animalgiacoma PetruLLo & Jefferson

crescencio neri17-23

Emblemas y jeroglíficosen la azulejería religiosaportuguesa del siglo XVIII:un ejemplo en la iglesia deNossa Senhora da Conceição,en Vila Viçosa (Portugal)José JuLio garcía arranz24-33

Nuevas tradiciones en el ámbito festivo transmoderno de Bilbao: del Santuario a la Ría del NerviónJuan antónio rubio-ardanaz34-44

Museologia do cotidiano:a morada e o santuário.Entre a autoconsagraçãoe o dar-se ao outrona mediação do SagradoLeonardo caravana gueLman45-52

Santuários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e PessoasLuís Jorge gonçaLves13-15

1. Artigos

Theoretical reflection into the symbolic and ritual interpretation of production processes of artifacts from hard raw materials animalsgiacoma PetruLLo & Jefferson

crescencio neri17-23

Emblems and hieroglyphics in Portuguese religious tilework of the 18th century: an example in the Church of Nossa Senhorada Conceição, in Vila Viçosa (Portugal)José JuLio garcía arranz24-33

New Traditions in the Trans-modern Festive Field: From the Sanctuary to the Stuary of NervionJuan antónio rubio-ardanaz34-44

Museology of the everyday: the home and the sanctuary. Between self consecration and dedication to the other in the mediation of the sacredLeonardo caravana gueLman45-52

Page 8: SANTUÁRIOS 2

“Pé de Deus”, hoje gravura,ontem efeito das intempériesLuana camPos &

cristiane de andrade buco53-58

O culto e devoção à virgem mártir santa Eufémia no seu santuário em PenedonoLuciano moreira59-64

Uma Paisagem Sagrada:as cubas da “kûra” de BejaLuís ferro65-74

Santuário do Endovélico:espaço de encontro de indígenas e romanosLuís Jorge gonçaLves75-81

Tïhtakariwaïn:um santuário rupestre noTumucumaque brasileiromanueL caLado82-96

Romeiros de São Franciscodo Canindémaria das graças tavares siLva,

adriano de araúJo Lima, nagyLLa

dias oLiveira, maria esterLian

ferreira da siLva aLves &

cinthia moreira97-101

The “Pé-de-Deus” (“Foot-of-God”) engraving in Oeiras, Piauí, BrazilLuana camPos &

cristiane de andrade buco53-58

The worship and devotion to the holy virgin martyr Euphemia in his sanctuary in PenedonoLuciano moreira59-64

A Sacred Landscape: The Cubas from the Kûra of BejaLuís ferro65-74

Sanctuary of Endovelicus:meeting space for indigenous and RomanLuís Jorge gonçaLves75-81

Tïhtakariwaïn: rock art santuary in brazilien TumucumaquemanueL caLado82-96

Pilgrims from São Franciscodo Canindémaria das graças tavares siLva,

adriano de araúJo Lima, nagyLLa

dias oLiveira, maria esterLian

ferreira da siLva aLves &

cinthia moreira97-101

Page 9: SANTUÁRIOS 2

Comunidade Quilombola de São Sebastião dos Pretos: A religiosidade de um povo expressada nas batidas dos tambores da Umbandamaria esterLian aLves, eLane sousa,

cLeber Lima do nascimento, giLva

aLves Leitão & cintya moreira102-106

Uma visão prospectiva na paisagem do Vale do Tejomário monteiro benJamim107-113

Caminhos do sagrado nas artes visuais: algumas anotaçõesmaristeLa saLvatori &

bernard Paquet114-117

Alguns apontamentos sobre a imagem do javali e o “Berrão” de Carlão, Alijó, DouromiLa simões de abreu118-132

A natureza como Santuário na visão do caçador krikatimirtes barros

133-138

Descoberta de um santuário lusitano-fenício a partir da toponímia, em Aljubarrotamoisés esPírito santo139-144

O santuário de S. Pedro emPortel: um exemplo desincretismo religioso?natáLia maria LoPes nunes145-149

Quilombola community of São Sebastião dos Pretos: the religion of a people expressed in beats of drums of Umbandamaria esterLian aLves, eLane sousa,

cLeber Lima do nascimento, giLva

aLves Leitão & cintya moreira102-106

A prospective view of the landscape of the Tagus Valleymário monteiro benJamim107-113

Sacred Paths of the visual arts: some notesmaristeLa saLvatori &

bernard Paquet114-117

Some notes on the image of the boar and the “Berrão” of Carlão, Alijó, Vila Real, PortugalmiLa simões de abreu118-132

The nature as sanctuary in vision hunter krikatimirtes barros133-138

Discovery of a Sanctuary Lusitano-Phoenician from toponymy, in Aljubarrotamoisés esPírito santo139-144

The Sanctuary of Saint Peter in Portel, an example of religious syncretism?natáLia maria LoPes nunes145-149

Page 10: SANTUÁRIOS 2

Folia de Reis: Território sacrárioneide marinho150-155

Pragmatismo e Robustez:marca das igrejasluso-brasileiras no Rio Grande do Sul, BrasilPauLa ramos156-161

Um Santuário Suíço nos Açores:Dos lagos suíços para a lagoa das Furnas, a migração de uma paisagemPedro maurício de Loureiro

costa borges162-170

Uma imagem é uma imagem, mas…O processo de humanização das imagens da Senhora da SaúdePedro Pereira171-175

Religiosidade e espacialidade no Sertão da Bahia - Brasil: o exemplo do Santuário da Santa Cruz de Monte Santoraimundo Pinheiro venancio fiLho &

maria heLena ochi fLexor176-183

Tradição e cultura na escolhado lugar da cerimôniado casamentoraqueL Lage tuma, maria

eLisabeth aLves mesquita, carLos

eduardo santos maia184-188

Folia de Reis: Territory tabernacleneide marinho150-155

Pragmatism and Robustness (Strength): marks of Luso-Brazilian churches in Rio Grande do SulPauLa ramos156-161

A Swiss sanctuary in the Azores: From the Swiss lakes to Furna´s lagoon, the migrationof a lanscapePedro maurício de Loureiro

costa borges162-170

An image is an image, but…The process of humanization of images of Lady of HealthPedro Pereira171-175

Religiosity and spatiality in the backwoods of Bahia-Brazil: the example of the sanctuary of Santa Cruz de Monte Santoraimundo Pinheiro venancio fiLho &

maria heLena ochi fLexor176-183

Tradition and culture in choice of place of wedding ceremonyraqueL Lage tuma, maria

eLisabeth aLves mesquita, carLos

eduardo santos maia184-188

Page 11: SANTUÁRIOS 2

Sagres – o Promontorium Sacrum: uma petrificada paisagem sagradaricardo soares189-197

Salve Rainha: Maria entre a vida e o dogma através da arterodrigo PorteLLa198-208

A lenda do Senhor das Chagase a “construção” do santuário de Sesimbraruy ventura209-222

Santuarios y apariciones marianas en Andalucía (España)saLvador rodríguez becerra223-226

Desenho, Memória e Simplicidade Visual: O Painel de Desenhos de Siza Vieira sobre S. Pedro e S. Paulo, na Basílica da Santíssima Trindade do Santuário de FátimashakiL yussuf rahim & ana Leonor

madeira rodrigues227-235

A procissão de São Cristóvão em um local sui generissigrid hoPPe236-239

O Santuário de Frei Damião de Bozzano no Convento de São Félix da Cantalice, em Recife- Pernambuco-BrasilsyLvana brandão de aguiar240-244

Sagres – the Promontorium Sacrum: a petrified sacred landscapericardo soares189-197

Hail Queen: Mary between life and dogma through artrodrigo PorteLLa198-208

The legend of Senhor das Chagas and the built of Sesimbra’s santuaryruy ventura209-222

Shrines and Marian Apparitions in Andalusia (Spain)saLvador rodríguez becerra223-226

Drawing, Memory and Visual Simplicity: Drawings Panel of Siza Vieira about St. Peter and St. Paul, in the Basilica of the Most Holy Trinity of the Sanctuary of FátimashakiL yussuf rahim & ana Leonor

madeira rodrigues227-235

The procession of Saint Christopher in a sui generis sitesigrid hoPPe236-239

The Sanctuary of Fray Damian Bozzano in the Convent of St. Felix of Cantalice in Recife-Pernambuco-BrazilsyLvana brandão de aguiar240-244

Page 12: SANTUÁRIOS 2

Festas e ofícios, entre uma e outra romaria incelenças são entoadas afirmando identidadesvaLdir nunes dos santos245-249

Os Santuários como espaços de devoção: São José de Ribamar, no MaranhãoWherLyshe morais250-254

2. Estudos

Centro de Estudos do Endovélico. Classificação do vale sagrado do Lucefecit: Teatro de Santuários (Endovélico e Boa Nova)manueL LaPão256-257

3. Santuários, instruções aos autores Manual de estilo da Santuários — meta-artigo259-268

Chamada de trabalhos: II Congresso Santuários 2015269-272

Festivals and crafts, between one and another pilgrimage “incelenças” between are sung affirming identitiesvaLdir nunes dos santos245-249

The Sanctuaries as places of devotion: São José de Ribamar, no MaranhãoWherLyshe morais250-254

2. Estudos

Studies Center of Endovélico. Sacred valley Lucefecit classification: theatre of sanctuary (Endovélico and Boa Nova)manueL LaPão256-257

3. Santuários, instructions to authors

Style guide of Santuários — meta-paper259-268

Call for papers: II Santuários Congress 2015269-272

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Santuários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e Pessoas

Luís Jorge Gonçalves

É uma revista que procura explorar o universo dos Santuários em toda a sua pluralidade sagrada e hu-mana. Santuário, na língua portuguesa do latim sanctuarium, de sanctus, nas línguas latinas e no inglês (Santuario em italiano e castelhano, Santuari em catalão, Santuaire em francês e Sanctuary em inglês) incorpora a mesma origem e significado: lugar sagrado.

Quando começaram estes lugares sagrados? No Paleolítico Superior temos as primeiras evidências de santuários, como os definiu André Leroi-Gourhan algumas grutas como lugares de santuário. A geo-grafia de arte rupestre que hoje conhecemos por todo o planeta, onde chegou o homem, parece indicar a existência desses espaços, em que as artes se associavam às singularidades geográficas, como elevações, montes ou montanhas, cursos de água e vales, grutas e abrigos, entre outros espaços. A emergência da agricultura e das sociedades complexas levou o homem à construção de estruturas que se tornaram espa-ços centrais de devoção, em aglomerados urbanos e em lugares naturais. Construíram-se grandes infra--estruturas, mas também se veneraram pequenos locais.

Podemos afirmar que o santuário é comum a toda a humanidade, independentemente da religião ou do posicionalmente religioso. Cada cultura, cada sociedade constrói os seus santuários, porque re-flectem as preocupações humanas em cada momento. O Santuário é a diversidade da humanidade. Hoje o conceito de santuário utiliza-se numa pluralidade de situações e de espaços espelhando a complexidade e heterogeneidade desta fase da história humana, onde a globalização através da tecnologia da informa-ção nos tornou mais próximos, mas onde não deixamos de querer conhecer os nossos santuários mais próximos, que nos ligam a raízes locais.

Os Santuários são objectivos a alcançar, vencendo limites geográficos físicos e psicológicos. São desafios, mas também simbolizam o encontro com o que se considera sagrado, único.

Ao se iniciar o projecto da revista “Santuários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e Pessoas”, partiu-se da realidade concreta do Santuário dedicado ao Endovélico. Tratou-se de um im-portante santuário da época romana que significou a união de duas culturas, a indígena, pré-romana e a romana. O Endovélico funcionou como lugar de encontro, durante cerca de cinco séculos, onde fieis deixaram os seus ex-votos, num registo muito singular de histórias de vida e de devoção. As mudanças religiosas foram apagando a devoção, remetendo para o esquecimento, aquele que foi um dos maio-res santuários da época romana na Península Ibérica. Hoje é um espaço arqueológico no concelho do Alandroal. Por isso se propôs que com a revista se organizasse o I Congresso Internacional, “Santuários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e Pessoas”. Procurou-se que este congresso fosse, em primeiro lugar, aberto à heterogeneidade deste conceito. Do ponto de vista conceptual ultrapassou-se a fronteira do lugar sagrado, no sentido restrito, para entrarmos no lugar sagrado, no sentido lato.

O Lugar Sagrado é hoje um espaço de valores civilizacionais. O ambiente, a arte, a tecnologia, a

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religião (no sentido estrito), o nacionalismo, o universalismo, a cultura, o multiculturalismo, a alimenta-ção (com todas as suas variáveis), são causas que nos mobilizam e que têm os seus santuários. Significa o que há de mais sublime, espaço simbólico, de devoção, de culto.

Ao se propor Santuários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e Pessoas, olha-se para a imensa diversidade destes espaços. Numa visão restrita de Santuários, como espaços centrais religiosos, de devoção, pela ocorrência de um milagre, de uma aparição ou pela existência de relíquias, tornam-se lugar de encontro cultural, de diferentes proveniências. Os santuários são espaços artísticos de grande investimento por parte das comunidades humanas, desde o paleolítico superior e que continuaram em todas as épocas, quer pelo lado da cultura popular e como da erudita com áreas urbanizadas, dotados de estruturas arquitectónicas, com forte presença da pintura, da escultura e de outras artes. Os santuários são ainda espaços de Romarias, onde a festa é um fenómeno social total, com a música, a dança, a comida e as roupas a protagonizarem a dimensão popular na vivência dos santuários. Existe também a dimensão do santuário como espaço de Peregrinação em que o ritual religioso constitui a essência do santuário, o caminho e o sacrifício, as celebrações litúrgicas, a procissão e a bênção. Outra dimensão é o próprio espaço dos santuários, as suas Paisagens naturais envolventes, com geologias marcantes e singulares. Nos nossos dias os santuários naturais são centros singulares na geologia e biologia. Finalmente, os santuários como pontos de Pessoas, de diferentes origens sociais, territoriais, cada uma com a sua história pessoal que se motiva para o encontro com aquele lugar, onde o Sagrado está presente.

Os números 1 e 2 da Revista “Santuários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e Pes-soas”, reflectem a grande diversidade de leituras dos santuários. Trata-se de um espaço de reunião entre culturas e especialistas de diferentes países, sendo que existe no presente número um encontro entre investigadores de Portugal, Brasil, Espanha, Itália e Canadá. Abordam-se santuários artísticos, mas tam-bém santuários indianos, do período da pré-história e do paganismo pré-romano e romano, como é o caso do santuário do Endovélico, do cristianismo, desde as suas origens às atuais raízes populares, da imensa riqueza religiosa do Brasil, onde naturalmente se incluem das culturas indígenas.

As imagens escolhidas para a capa, contracapa e ante rosto, têm uma narrativa associada. No pri-meiro volume na capa temos a ilustração da imagem do deus Endovélico, com uma epigrafe do seu nome e na contracapa uma ara que constituiu um ex-voto, enquanto no ante rosto está a estátua Prima Porta de Augusto, porque nos dois mil anos da sua morte deve-se esta síntese em romanos e indígenas nas atuais terras do Alandroal. Hoje é um antigo santuário sem devoção. No segundo volume temos na capa uma escultura do Padre Cícero, que em Juazeiro do Norte, no Ceará criou um grande santuário, hoje objecto de imensas romarias que levam peregrinos de todo o Brasil. Na contracapa um pano bordado, pela mes-tra Griô Dona Franca (Francisca Mendes Marcelino), intitulado O Horto, onde se narra como o Padre Cícero estabeleceu os espaços sagrados deste santuário. No ante rosto, a ilustração da estátua do Padre Cícero, com 27 metros de altura e que domina a cidade de Juazeiro do Norte.

No santuário do Endovélico tivemos todos estes elementos, num período correspondente aos sécu-los I e V d.C. Foi o resultado da política de Augusto de colonizar os territórios do império romano e, ao mesmo tempo, de romanizar e promover a aproximação entre populações de origem romana e indígena. Por isso neste ano que se comemoram os dois anos da morte de Augusto, a 19 de Agosto, não se podia deixar de assinar essa data, porque Augusto é uma das personalidades que está na base da cultura dos povos, cujo idioma mantém uma origem latina. Ao princeps Augusto devemos juntar outra figura que nasceu durante o período do seu governo, Jesus Cristo, para olharmos para essa época tão longínqua, como a base da nossa cultura quotidiana.

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O santuário do Endovélico, fruto de grande devoção durante cinco séculos, foi também cristianiza-do, recebendo o nome de S. Miguel da Mota, mas o tempo retirou-o dos centros de culto a favor de ou-tros, mesmo na região. Hoje, procura-se que seja um lugar lembrado, que nos leve a evocar este conceito tão rico para a humanidade que é de Santuário. Também nas proximidades do Santuário ao Endovélico, o Rio Guadiana funcionou como espaço de santuário em tempos mais antigos, na pré-história, Neolítico e períodos subsequentes, como o provam as gravuras nas rochas das margens daquele rio. Também a Rocha da Mina, nas margens de um afluente do Rio Guadiana, o Rio Lucefécit, deve ter funcionado como espaço de devoção, cujos contornos nos escapam.

No Alandroal estavam reunidas as condições para se realizar o I Congresso Internacional, Santu-ários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e Pessoas, porque reúne espaços de santuários antigos de diferentes épocas que hoje são santuários naturais de grande beleza. Alandroal é ainda uma vila acolhedora, bem alentejana, onde as pedras reflectem a história intensa deste lugar e as pessoas são acolhedoras. Faz parte de um Portugal, longe dos grandes centros que é preciso conhecer.

Alandroal foi fundado em 1298 por D. Lourenço Afonso, Mestre de Avis, e, em 1486, recebeu foral atribuída por D. João II, com o objectivo de fomentar o povoamento da região de fronteira. Nas terras deste concelho crescem aloendros, ou alandros, cuja madeira é usada no artesanato local, e daí a origem do topónimo. Como acontecimento de destaque, merece referência a explosão de um armazém de pólvo-ra, ocorrida a 14 de janeiro de 1659, que causou vários mortos, na generalidade estudantes universitários de Évora, capitaneados pelo jesuíta Pe. Francisco Soares, e que estavam a substituir o exército que lutava pela vitória na Batalha das Linhas de Elvas.

No que se refere ao património histórico e monumental, salienta-se o Castelo de Alandroal, onde se destacam a porta flanqueada por torres e um arco em ferradura, de mármore da região; o Castelo de Terena, formado por recinto amuralhado, com cubelos, torre de menagem e duas portas, uma flanqueada por torres; e a Fortaleza de Juromenha, cujas obras abaluartadas foram construídas durante a Guerra da Restauração e fizeram descer as linhas defensivas até uma relativa proximidade do rio Guadiana, sendo uma linha fronteiriça natural. Das ruínas existentes destacam-se a antiga Câmara e a Casa do Senado.

O Santuário de Nossa Senhora da Assunção da Boa Nova tem um significado patriótico e religioso. Em 1340 os Mouros invadiram a Andaluzia, e a rainha, mulher de Afonso XI de Castela, mandou ali construir a actual igreja, pela ajuda que o rei prestou ao genro Afonso IV, na batalha do Salado. É um templo gótico do século XIV, ameado e com matacães. Está classificado como monumento nacional. Existe ainda uma ocupação pré-histórica muito rica em que se evidenciam os monumentos megalíticos. No concelho do Alandroal, próximo do Rio Guadiana encontra-se um singular povoado do Neolítica, por ter correspondido a um centro de produção de Placas de Xisto, um artefacto artístico utilizado em rituais funerários (segundo os dados que se dispõe) do Neolítico/Calcolítico (IV-III milénio a.C.).

É num Alandroal acolhedor, com o calor quente do Alentejo que se procura o encontro sobre santuários. A Revista “Santuários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e Pessoas”, com a continuação, pretende ser um espaço de encontro de diferentes formas de observar o “lugar sagrado”.

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Reflexão Teórica sobre os aspectos simbólico e ritual durante a interpretação dos processos de produção de manufatos obtidos de matéria dura de origem animal

Riflessione teorica sugli aspetti simbolici e rituali durante l’interpretazione dei processi di produzione di manufatti ottenuti da materie dure di origine animale

Theoretical reflection into the symbolic and ritual interpretation of production processes of artifacts from hard raw materials animals.

Giacoma Petrullo* & Jefferson Crescencio Neri**

*itália, doutoranda em arqueologia em regime de cotutela entre a università degli studi di roma “La sapienza” e a univesité Paris x de nanterre. e-mail: [email protected]**brasil, doutorando em quaternário, materiais e culturas da universidade de trás-os-montes e alto douro. e-mail: [email protected]

artigo completo e submetido a 1 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: A aplicação de um modelo processual para a interpretação da indústria óssea, sugere uma chave de lei-tura no paradigma da cultura material como adaptação extrasomática do homem ao seu ambiente, onde a dis-ponibilidade, praticidade e ductilidade condicionariam as escolhas de uma espécie animal como matéria-prima para fabricar um objeto ósseo ou de um instrumento lítico para o débitage. A relação do processo técnico ou do próprio objeto com o seu sgnificado tem sido influen-ciada por critérios interpretativos contemporâneos que, a partir do nosso senso estético, discriminam, na leitura duma coleção. Na verdade, a escolha simbólica no âmbito da indústria óssea pode ser teorizada em todas as fases da cadeia operatória: da seleção da matéria-prima, da espé-cie animal, da parte anatômica, ao método de fabricação. A Antropologia Cultural e a Etnologia acentuaram o fato de que o caráter estético que atribuímos a um objeto ar-tesanal, nem sempre tem relação com o modo deste ser percebido pelo grupo, pois as escolhas técnicas estão li-gadas à organização socio-econômica interna, podendo cada gesto da esfera quotidiana e cada elemento do siste-ma técnico ser acompanhado de um ritual e de um signi-ficado condividido e transmitido em uma dada tradição cultural. Isto pode explicar, em nível teórico, o porque da notável variedade de técno-complexos na Indústria Ós-sea no mesmo arco cronológico, da variedade tecnológica num grupo cultural, ou dinâmica de interação entre os grupos num mesmo território. Se, de um lado, o estudo tecnológico pode individuar escolhas técnicas precisas, que no seu conjunto isolam o grupo cultural quanto ao uso de dada matéria-prima e método de fabricação, de ou-tro, tais escolhas são interpretáveis multiplamente. Ado-tamos uma abordagem multidisciplinar para o estudo de coleções em osso, servindo-se não só de razões determi-nísticas e dos instrumentos de análise, mas também refle-tindo a partir dos modelos teóricos simbólico-cognitivos.Palavras chave: Indústria Óssea / Etnologia e Antropo-logia das Técnicas / Teoria Arqueológica.

Abstract: The adoption of the processual model for the interpretation of bone industry can suggest a first key of reading of the cultural material. The latter is considered the extrasomatic adaptation of the man inside him envi-ronment. The availability of resources can affect the tech-nical choices like the animal selection used to the mani-facture of the tools or the lithic tools used for the débitage. The interpretation of the sense of technical choice or the item during the analysis of a collection can be influenced by modern parameters like our aesthetic sense. Indeed, in the bone industry a symbolic choice can be theorized in all operational sequences: in the selection of the raw

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material, in the animal species, in the kind of the bone, in the method of manufacture. The Cultural Anthropology and the Ethnology prove how the aesthetic characteristics of an object not always is link to the way it is perceived by the group. Every technical choises can be related to the socio-economic organization, in the way that every daily act and each element of the technical system can be ac-companied by a ritual shared and transmitted within a certain cultural tradition. On the theoretical level this could justify the variability of bones techno-complexes in the same chronological span or the the dynamics of in-teraction between groups in the same territory. The tech-nological study can isolate technical choices codified that can found multiples interpretations. For the intereptation of bone collection we adopt a multidisciplinary approach in which we consider reasons strictly deterministic and cognitive symbolic too. Keywords: Bone Industry / Etnology and Anthropology of Techniques / Theoretical Archaeology.

1. Premessa teorica: catena operativa e tecnologia L’analisi che conduciamo per lo studio delle collezioni in materie dure di origine animale prevede la rico-struzione del concetto scientifico di chaîne opératoire così formulata da Leroi-Gourhan (1943-1964), in-tesa come una successione dinamica e ragionata delle operazioni che sono alla base di un sistema di pro-duzione. Quest’ultimo contempla una sequenza di processi che hanno origine nell’approvvigionamento della materia prima attraverso modalità quali caccia, raccolta o scambio, nei sistemi di fabbricazione e di utilizzazione degli oggetti, compresa la potenziale manutenzione o riciclaggio fino all’abbandono dell’oggetto (Tixier 1963; 1980). Creswell (2003) definisce la chaîne opératoire come lo strumento per analizzare il rapporto tra i gesti tecnici e le strutture sociali, in cui ogni sequenza operativa annovera un certo numero di descrittori, di elementi, di azioni e un risultato.

Una tradizione di studi in cui si inserisce il concetto di chaîne opératoire e di tecnologia è relativa all’antropologia culturale. Essa ha favorito lo sviluppo un’ampia letteratura che gravita intorno all’etno-logia o antropologia delle tecniche (Leroi-Gourhan 1943-1964; Creswell 1994; Lemonnier 1991; Pelegrin 1991; Roux 2010; Polanyi 1958 e 1966; Perlès 2010).

Mauss è stato il primo a sottolineare l’importanza delle tecniche e a definire la tecnologica come la scienza che studia le tecniche ispirando i successi lavori di Leroi-Gourhan (Mauss 1941; 1967). La tecnica è il mezzo che l’uomo ha di rapportarsi all’ambiente. L’insieme delle tecniche forma l’industria e la materia. L’insieme di tecniche, industrie e materie formano i sistemi tecnici di una società (Mauss 1967: 29). Le tendenze generali, corrispondenti agli orientamenti adottati da un gruppo nelle scelte tecnologiche, pos-sono favorire la nascita di tecniche identiche anche tra gruppi che occupano luoghi differenti o periodi cronologici diversi senza che vi sia un legame di parentela tra loro (Leroi-Gourhan 1943).

Le scelte tecniche adottate da un gruppo culturale sono il prodotto ultimo di una serie di sistemi pratici e cognitivi che hanno fatto si che lo stesso considerasse più conveniente adottare quella o quelle tecniche e combinarle tra loro secondo un metodo. Non è solo la tecnica a caratterizzare un gruppo, le

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tecniche sono gesti semplici, elementari, ma è la loro combinazione, ovvero il metodo o il procedimento che individualizzano un tecno-complesso (Leroi-Gourhan 1945).

Il modo o la maniera di fare entra a far parte di un sistema codificato di un dato gruppo culturale. L’artigiano si specializza, si appropria dei gesti, li fa suoi, la sua esperienza lo induce a calcolare varianti e problematiche, egli sviluppa abilità e manualità che nascono da una esperienza diretta e pratica sulla materia lavorata (Pelegrin 1991:3). Egli non è solo guidato dalla chiara idea di ciò che intende ottenere, il prodotto finito, ma anche dalla successione di forme geometriche intermediarie, immagini mentali o concetti, che lo indirizzeranno nel corso dei suoi passi (Pelegrin 1991).

Secondo Pelegrin nell’ambito delle attività tecniche vanno considerati due elementi: le conoscenze e il savoir-faire. Le conoscenze corrispondono alla rappresentazione mentale delle forme giudicate ideali (concetti) e delle modalità di azioni, intese come i gesti necessari alla loro realizzazione pratica (Pelegrin 1991: 3). Come si acquisiscono queste conoscenze?.

Leroi-Gourhan (1965) chiarisce come ciascun uomo alla nascita tenda gradualmente ad acquisire le conoscenze insite alla cultura presso cui cresce e vive. In questa fase l’individuo forma la sua identità sociale. La conoscenza tecnica è il prodotto dell’apprendimento e della memorizzazione culturale. L’uo-mo forma continuamente la sua memoria culturale in modo implicito o esplicito nel fare, nel dire e nel sentire: osservando e dunque per imitazione; ascoltando e dunque per trasmissione verbale attraverso il linguaggio; praticando, in altre parole con l’esperienza diretta.

Il processo di trasmissione del sapere avviene all’intero del gruppo sociale secondo ruoli sociali espres-sioni di tradizioni culturali (Lemonnier 1992). Questi ruoli possono variare da un gruppo all’altro secondo processi verticali oppure orizzontali, l’apprendimento ad esempio può avvenire raggiunta una certa età, prima e dopo il matrimonio etcc. In tutti i casi il processo di apprendimento riflette le tradizioni del gruppo dove le competenze sono acquisite, l’individuo dunque parteciperà direttamente al mantenimento e al perpetuare la tradizione mantenendo principalmente il modello originario con cui è stato formato (Roux 2009-2010).

Per la sfera tecnologica Roux (2009) distingue due livelli di apprendimento: quello in seno al grup-po di appartenenza e quello individuale. Alla fine del processo di apprendimento, che è di tipo cognitivo, l’individuo arriva a fabbricare i manufatti secondo la maniera di colui da cui ha appreso o ha imparato a fare. In questa prima fase si verifica dunque il processo di incorporazione del modello della tradizione culturale di appartenenza (Mauss 1941- 1967; Roux 2009-2010).

La conoscenza acquisita nel gruppo è affiancata dalla conoscenza sviluppata con l’attività pratica ed è questo aspetto che entra nella sfera dell’individuale (Mauss 1941-1967; Roux 2009-2010).

Contrariamente alla conoscenza, il savoir-faire si affina con l’esperienza pratica e la sperimentazione diretta dell’individuo. Questo tipo di conoscenza non è trasmissibile, essa si acquisisce attraverso un’attenta pratica che presuppone una capacità di valutazione e di interpretazione intelligente (Pelegrin 1991: 6).

In questa fase l’individuo singolarmente può acquisire nuove competenze e realizzare pur senza allontanarsi molto dal modello originario con cui è stato formato i manufatti secondo un altro metodo. Ne consegue che manufatti con le stesse caratteristiche morfologiche possono essere fabbricati secondo metodi differenti. Essi possono essere realizzati da individui che pur avendo la stessa la conoscenza della stessa tradizione sociale hanno sviluppato abilità diverse (Roux 2009:13).

Secondo Roux (2010: 6) le tradizioni sociali possono mutare nel tempo “la relation entre un trait technique et une entità sociologique est une relation dynamique et par conséquence évolutive”. Il cambia-mento può risultare endogeno quando si verifica un’innovazione in seno alla tradizione di origine; in questo caso si assiste ad un’evoluzione per selezione dei tratti tecnici secondo differenti modalità. Il cam-

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biamento può essere altresì esogeno, causato da un apporto esteriore e dunque dall’acquisizione e integra-zione di tratti tecnici estranei alla tradizione di origine (Roux 2010: 6).

Questi apporti si verificano secondo differenti meccanismi: per contatti diretti o indiretti, per mi-grazione, itineranza o altre forme di mobilità. Le modalità evolutive descritte possono essere applicate all’insieme degli stadi operativi secondo differenti tempi e dinamiche (Roux 2010: 6).

La circolazione di un bene tra gruppi sociali non richiede necessariamente la trasmissione dei processi tecnici o di una condivisione del valore attribuito all’oggetto in quel gruppo, infatti le tecniche necessitano di un lungo processo di apprendimento che richiede contatti continuativi e duraturi tra gli individui (Perlés 2010; Roux 2010).

2. Cultura materiale: livelli interpretativi. Aspetti simbolici e ritualiIl riferimento alla scuola processuale per l’interpretazione dell’industria su osso appare indubbiamente significativo suggerendo una prima e immediata chiave di lettura a cui spesse volte ricorre lo specialista che si appresta ad analizzare una collezione.

In questo ambito, la cultura materiale è considerata come il prodotto dell’adattamento extrasoma-tico dell’uomo al suo ambiente, in tale ottica è il contesto che condiziona in modo significativo le scelte culturali dell’uomo. Queste ultime sono una rinnovata risposta ai vari cambiamenti esterni. La cultura materiale diviene il mezzo attraverso cui è possibile adattarsi e sopravvivere al continuo rinnovamento del reale, in tal caso, ad esempio, la scelta di selezionare una specie animale come materia prima per fabbricare un oggetto o di utilizzare uno strumento litico per praticare il débitage della matrice trovano la loro ragione d’essere nella disponibilità ambientale oppure nella loro praticità e duttilità.

L’interpretazione del senso di una scelta sul piano delle procedure tecnologiche o nelle caratteri-stiche stilistiche attribuite ad un oggetto è una questione delicata, spesso influenzata dai parametri della società contemporanea cui apparteniamo. Tra questi, il rapporto che intercorre tra quanto consideriamo essere rozzo e quindi opportunistico e quanto per caratteristiche estetiche o di apparente pregio con-sideriamo dotato di valore simbolico o cultuale, ovvero tra quanto consideriamo avere funzione attiva nell’ambito delle attività giornaliere condotte da un gruppo e quanto consideriamo avere funzione passiva e rivestire un valore eminentemente simbolico.

Il nostro modo di pensare al bello e al brutto, al semplice e al complesso, in pratica il nostro senso estetico, rappresenta spesso un immediato livello di discriminazione e lettura durante l’interpretazione di una collezione, tendenza che, in misura macroscopica puo avere inciso nelle prime ricerche di campo in Nord Africa spingendo molti autorevoli archeologi a ritenere più importante la raccolta e conservazione di prodotti litici piuttosto che di oggetti ricavati dalla lavorazione di materie dure di origine animale o vegetale, o ancora, più in generale, indirizzato i classicisti a recuperare statue in marmo piuttosto che i numerosi e più comuni frammenti ceramici (Gras 2000).

Le attestazioni etnografiche rivelano in modo inequivocabile come spesso il carattere estetico di un manufatto non abbia alcuna relazione con il suo modo di essere percepito dal gruppo e come ogni gesto poteva essere accompagnato da un rituale nella sfera del quotidiano e assumere un valore simbo-lico. Nell’ambito delle industrie su osso, una scelta simbolica potrebbe pertanto essere ipotizzata in tutte le fasi della sequenza operativa: nella selezione della materia prima o durante il procacciamento della specie animale, piuttosto che nella selezione di una parte anatomica dell’animale oppure nell’utilizzo di una precisa metodologia e sequenza di fabbricazione, e pensare pertanto alla cultura materiale come una metafora naturale di una istituzione sociale (Sidéra 2012).

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L’antropologia culturale e l’etnologia hanno evidenziato come le scelte tecniche, di certo connesse all’organizzazione socio-economica del gruppo umano che le produce e che implicano un’azione fisica sulla materia, siano delle produzioni sociali (Lemonnier 1991: 18). Gli uomini in ogni tempo hanno per-tanto attribuito un senso-significato alla loro produzione materiale e in questo ambito le azioni tecniche sono sempre il prodotto di un sapere condiviso e trasmesso socialmente. Il significato può essere ricer-cato non solo nei processi di produzione ma anche negli stessi oggetti o nella loro funzione “le choix d’un moyen particulier possède donc plusieurs significations sociologiques” (1991: 16; 1992).

La produzione materiale riflette una percezione del reale che può essere mutevole nelle società che si sono succedute nel tempo o in quelle tra loro coeve, in modo che un animale all’interno di un gruppo culturale poteva rivestire molteplici funzioni ed essere dunque considerato a seconda dei casi: una risorsa alimentare, oppure una fonte da cui ricavare beni secondari come: pelli, ossa e tendini o ancora, rivestire una qualche funzione simbolica (Averbouh 2000; Lolios 1999; Sidéra 2000-2012 ).

L’esaustiva caratterizzazione di industrie su osso in ogni parte del mondo, mostra in modo eviden-te quanto detto: per stessi archi cronologici abbiamo la possibilità di osservare una notevole varietà di tecno-complessi, spesso del tutto diversi l’uno dall’altro sul piano tecno-stilistico, e talvolta, con un’im-pressionante varietà al loro stesso interno.

In una procedura di fabbricazione, un significato di ordine simbolico può essere insito nella scel-ta negli strumenti adoperati, nelle tecniche così come nella stessa sequenza tecnica. Gli studi in Papua Nuova Guinea hanno rivelato come talune attività tecniche risultano essere prerogative esclusivamente maschile rientrando nella questione di genere. Altre scelte sono indirizzate da preconcetti, credenze o rituali. Negli stessi territori ad esempio la corteccia è utilizzata per fabbricare perizomi da donna e dun-que rappresenta un materiale contaminato dal mondo femminile per cui lo stesso materiale non è mai utilizzato per fabbricare un capo o perizoma maschile (Lemonnier 1991: 17). Un atto tecnico può essere surdéterminé ovvero compatibile con logiche sociali di diverso tipo (Lemonnier 1991: 17).

Quanto detto presuppone come alcuni meccanismi sociali siano insiti all’uomo considerato come essere sociale, dunque nel suo momento di aggregazione con altri individui. Fenomeni come la trasmis-sione della conoscenza all’interno o all’esterno del gruppo, della formazione della propria identità cultu-rale acquisendo precisi processi di produzione secondo determinate scelte, ma anche la separazione che ad un certo punto interviene tra la sfera collettiva e quella individuale sono tutti meccanismi che possono essere concettualmente applicati a società di ogni tempo.

Senza promuovere modelli stereotipati o normatizzati questi fenomeni possono di fatto essere presi in considerazione sul piano teorico per interpretare fattori come la variabilità tecnologica in seno allo stesso gruppo culturale o per ricostruire le dinamiche di interazione tra i gruppi in uno stesso territorio in senso sincronico o diacronico.

In questo contesto, lo studio tecnologico si propone proprio di individuare scelte tecnologiche pre-cise e ripetitive che consentono nell’insieme di isolare sul piano tradizionale un gruppo sociale. Lo sfrut-tamento di una data materia prima, la scelta del procedimento di partizione da applicare alla matrice, la combinazione delle tecniche secondo un preciso metodo di fabbricazione ed infine lo stesso tipo di tec-niche adoperate, sotto tutti fattori che definiscono un tecno-complesso. Quali motivazioni si celino poi dietro la scelta di una matrice piuttosto che l’altra, nell’adozione di una tecnica di fabbricazione piuttosto che un’altra, negli strumenti adoperati per la fabbricazione o nel valore attribuito al prodotto finale ot-tenuto dalla fabbricazione sono potenzialmente interpretabili secondo molteplici modelli che prendono in considerazioni ragioni più strettamente deterministiche o simboliche-cognitive e sociali. In proposi-

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to, Lemonnier chiarisce come l’archeologo contrariamente all’etnologo durante la fase interpretativa sia costretto a separare in modo arbitrario due ordini di realtà che sappiamo essere tra loro strettamente connessi: la scelta materiale e il senso della scelta, dovendo confrontarsi con realtà non più esistenti.

ConclusioniLe riflessioni brevemente descritte inducono a sviluppare una certa consapevolezza circa l’ampia varietà delle ragioni che potenzialmente indirizzano ogni scelta in tutti i livelli della sequenza operativa e dei nostri limiti interpretativi così come Lemonnier ha ben descritto. Crediamo di dover adottare per la sfera interpretativa delle collezioni fabbricate a partire da materie dure di origine animale un approccio multi-disciplinare che si servi nel limite del possibile dell’apporto di tutte le preziose riflessioni teoretiche e degli strumenti di analisi messi a disposizione dai vari paradigmi culturali succedutesi nel tempo.

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Emblemas y jeroglíficos en la azulejería religiosa portuguesa del siglo XVIII: un ejemplo en la iglesia de Nossa Senhora da Conceição, en Vila Viçosa (Portugal)1

Emblems and hieroglyphics in Portuguese religious tilework of the 18th century: an example in the Church of Nossa Senhora da Conceição, in Vila Viçosa (Portugal)

José Julio García Arranz*

*espanha, antropólogo, Professor da universidade de estremadura (uex). Par académico da revisão da comissão científica. e-mail: [email protected]

artigo completo submetido 20 de maio e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumen: En el presente trabajo vamos a aproximar-nos al empleo en la azulejería religiosa de Portugal du-rante el siglo XVIII de emblemas o jeroglíficos como recurso didáctico-dogmático destinado a completar o afianzar el significado simbólico de los programas ico-nográficos de los que forman parte, a través, en este caso, de las composiciones emblemáticas de la Capela do Santíssimo Nome de Jesus, en la iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa).Palabras clave: emblema / jeroglífico / azulejería / barroco / Vila Viçosa.

Abstract: In this paper we are going to approach the em-ployment in tile-making religious of Portugal during the 18th century of emblems or hieroglyphs as didactic-dog-matic resource to supplement or strengthen the symbolic significance of the iconographic programmes of which they are part, through, in this case, the emblematic com-positions of the Capela do Santissimo Nome de Jesus, in the Church of Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa). Keywords: Emblem / Hieroglyph / Tiling / Baroque / Vila Viçosa.

1. ¿Qué es un emblema? El empleo de emblemas y jeroglíficos como elemento de la decoración reli-giosa barroca.

Aunque por “emblema” puede entenderse, de forma genérica, cualquier elemento visual que es representación significativa de alguna otra cosa o idea, en los contextos artístico y literario suele aludir de modo más preciso a una figura, un conjunto de figuras o una escena, dotados de un carácter abiertamente alegórico o simbólico, que aparecen acompañados de una breve sentencia, generalmente en latín, des-tinada a clarificar el concepto o moralidad que encierra aquella imagen. Esta combinación expresiva de elemento visual y textual se encuentra enmarcada por un medallón o cartela, que responde a un diseño más o menos decorativo en función del momento artístico en que el emblema fue realizado.

Se considera de modo convencional que el emblema modermo nació con la primera edición del Emblematum liber, obra del jurista milanés Andrea Alciato, que vio la luz en el año 1531; sin embargo, estas asociaciones “emblemáticas” de imagen y texto ya resultaban frecuentes, al menos, desde el s. XIV, resultando muy polular su uso entre príncipes y nobles a través de las badges, devises o imprese, fórmulas que florecieron con la crisis de la heráldica tradicional durante los últimos siglos medievales, propicia-das por la moda cortesana de crear insignias de carácter estrictamente personal que sustituyeran a las familiares o dinásticas. Esas divisas particulares fueron empleadas frecuentemente por la nobleza como adorno en las prendas de vestir, en insignias de librea, como reverso de medallas, o bien como elemen-to distintivo incorporado a las escenografías ceremoniales o las edificaciones civiles o eclesiásticas que aquellos señores sufragaron (Pastoreau, 2003: 215-219; 2009: 213-218). Durante el s. XVI estos símbolos encontraron su principal cauce de expresión en los libros ilustrados, abundando las recopilaciones de

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emblemas con un sentido esencialmente didáctico-moral, en la línea trazada por Andrea Alciato, así como las colecciones de divisas o empresas personales pertenecientes a reyes, príncipes, altas dignidades nobiliarias y religiosas, o colectivos de académicos. Conforme nos acercamos al s. XVII, y se consolidan en Europa los regímenes absolutos, estos emblemas fueron adquiriendo un carácter cada vez más mar-cadamente propagándístico, ya sea en un contexto de adoctrinamiento político o dogmático-religioso, al servicio de los intereses de las élites de poder.

Pero, al mismo tiempo, estos emblemas irán poco a poco recuperando su espacio como elementos parlantes insertados en las construcciones edificatorias: en primer lugar, proliferan desde las últimas dé-cadas del quinientos en la arquitectura efímera –arcos triunfales en entradas reales o principescas, cons-trucciones conmemorativas, catafalcos de exequias funerarias...– (vid., para el caso portugués, Pereira, 2000), pasando progresivamente, conforme avanza el Barroco, a configurar decoraciones permanentes –pintadas al fresco o modeladas en estuco– en iglesias y palacios. En Portugal, si exceptuamos unos po-cos ejemplos pintados o en cerámica polícroma durante los ss. XVI y XVII, la práctica de la emblemática aplicada a la arquitectura se populariza, esencialmente, desde inicios del s. XVIII con la difusión de los monumentales revestimientos cerámicos en azul y blanco. En el caso de los emblemas o jeroglíficos (de-nominación esta última que suele aplicarse a los emblemas aplicados al ámbito arquitectónico) insertos en las construcciones religiosas, resultan frecuentes como atributos elocuentes de las virtudes de la Vir-gen María, de Cristo o de los santos, o bien como instrumentos didácticos de formación religiosa y moral al servicio de la retórica eclesiástica barroca.

2. La emblemática aplicada a la azulejería sacra portuguesa del s. XVIIIEl tránsito del s. XVII al XVIII supuso, en el terreno de la azulejería portuguesa, un proceso bien cono-cido de abandono gradual del padronagem polícromo y la lenta adopción de la figuración “azul y blanca” que caracterizará casi toda la producción del setecientos. Esta evolución tuvo como factor determinante el impacto que la importación de conjuntos cerámicos del norte de Europa a finales del seiscientos, es-pecialmente procedentes de las factorías holandesas, produjo en el contexto portugués. Junto a la fabri-cación de los típicos azulejos de figura avulsa, los artífices de los Países Bajos afrontaron de igual modo ciclos narrativos de gran porte como respuesta a las exigencias iconográficas particulares del mercado lusitano. El azulejo importado de Holanda, con sus vistosos diseños en tono azul de cobalto sobre fondo de esmalte blanco, estimuló muy pronto la producción portuguesa hacia sus novedosas propuestas téc-nicas y estéticas, hasta imponerse durante la primera mitad del s. XVIII. Se generaliza de este modo el recurso a una composición figurativa bícroma, de gran escala, con escenas delicadamente pintadas y una gradual profundidad en los paisajes, donde se exploran las nuevas posibilidades escénicas y se recurre a las características cercaduras continuas vegetales (Serrão 2003: 119).

Entre las grandes figuras de este panorama renovado de la azulejería lusa, generalmente conocido como Ciclo dos Grandes Mestres, ocupan un lugar dominante los pintores-ceramistas António de Oliveira Bernardes y su hijo Policarpo. El mestre António de Oliveira Bernardes (1662-1732), uno de los azule-jeros portugueses más fecundos e influyentes del primer tercio del s. XVIII, trabajó apoyado por una pujante oficina instalada en Lisboa desde 1694, donde se formarán los principales pintores de la genera-ción siguiente. Bernardes dirige el taller hasta 1725, año en que pasó a gestionarlo en colaboración con su hijo Policarpo (1695-1778) (Serrão, 2003: 212-218), quien sabrá mantener el nivel de perfección del acabado de los modelos del taller. Padre e hijo recurrieron con frecuencia en sus programas a personifica-ciones alegóricas y series emblemáticas que complementan y enfatizan el mensaje edificante o doctrinal

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Fig. 1. António de Oliveira Bernardes (1714), jeroglífico del obelisco y el sol (UMBRAM NESCIT) en el corredor de acceso a la sacristía de la iglesia parroquial de Nossa Senhora das Mercês (Lisboa, Portugal). Fuente: propia.Fig. 2. António de Oliveira Bernardes (c. 1710-15), jeroglífico del dragón huyendo de un cedro (ODORE FUGAT SUO), pechina de la cúpula de la Capilla de Nossa Senhora da Cabeça (Évora, Portugal). Fuente: propia.

Fig. 3. Firma de Policarpo de Oliveira Bernardes (1720), esquina inferior derecha del panel de azulejos del lado de la Epístola de la Capela do Santíssimo Nome de Jesus, iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa, Portugal). Fuente: propia.Fig. 4. Iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa, Portugal). Fachada y plaza abierta frente al santuario. Fuente: propia.

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Fig. 5. Capela do Santíssimo Nome de Jesus, iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa, Portugal). Vista general de la capilla. Fuente: propia.Fig. 6. Capela do Santíssimo Nome de Jesus, iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa, Portugal). Detalle del retablo y decoración de la bóveda. Fuente: propia.

Fig. 7. Capela do Santíssimo Nome de Jesus, iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa, Portugal). Estructura decorativa del lado del Evangelio, 1720. Fuente: propia.Fig. 8. Capela do Santíssimo Nome de Jesus, iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa, Portugal). Estructura decorativa del lado de la Epístola, 1720. Fuente: propia.

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que emana de los episodios narrativos. De hecho, el recurso a los emblemas o jeroglíficos como género simbólico-ornamental integrado en programas historiados y alegóricos cerámicos fue cultivado por An-tónio de Oliveira (Figuras 1 y 2) cuando aún no existían claros precedentes en Portugal, y retomado por Policarpo (Figura 3) en algunas de sus obras más destacadas. Ambos crearon por tanto una moda que contará con una amplísima repercusión en la azulejería portuguesa del setecientos (Amaral 2009: 16-19; García 2009: 133 y ss.).

3. Un ejemplo de emblemática aplicada: la decoración de la Capela do Santíssimo Nome de Jesus en la iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa)El templo de Nossa Senhora da Conceição constituye una edificación erigida en una cota dominante (c. 393 m.) del recinto intramuros de la localidad de Vila Viçosa (distrito de Évora), en plena plaza de armas del castillo –su primitiva advocación es Santa Maria do Castelo–. Construida a finales del s. XIV o inicios de la centuria siguiente, muy probablemente sobre los fundamentos de un santuario castrense más primitivo, es a partir de 1569, gracias a una renta anual concedida por el rey D. Sebastião, cuando se emprende una com-pleta remodelación de la fábrica medieval. Tales intervenciones fueron patrocinadas por la Ordem de Avis, a quien pertenecía el patronazgo de la iglesia, encontrándose finalizadas, al menos en lo esencial, en 1614.

Sin embargo, el estado de ruina e inminente colapso que parece acusar el edificio pocas décadas después obligó a emprender a partir de 1641, inmediatamente después de la Restauración portuguesa, otro profundo proceso de rehabilitación del edificio, en un temprano gesto del nuevo rey D. João IV para simbolizar, como parece probable, la continuidad de la vinculación de la dinastía a la sede del ducado de Braganza. Estas intervenciones parecen encuadrarse de igual modo dentro de una operación de le-gitimidad devocional que permitiese consolidar el carácter protector de Nossa Senhora da Conceição, elegida padroeira del reino en marzo de 1646, momento en que las nuevas reformas del edificio parecen encontrarse ya finalizadas (Soromenho 2007: 107-110).

La iglesia se nos presenta al exterior como un edificio de líneas severas, con fábrica de mampostería de piedra caliza y ladrillo rebocada con blanco de cal, y recerco de vanos, columnas, pilastras y cornisas en sillería vista de piedra caliza y mármol locales. Las ventanas, amplias y abocinadas, y la triple portada de los pies, con remates en frontón, son sencillos vanos rectangulares sin apenas concesiones ornamenta-les. Presenta una modesta torre-campanario con chapitel adosada al lado izquierdo de la fachada (Fig. 4).

El interior del templo se articula en tres naves de cinco tramos separadas por arquerías sobre recias columnas toscanas, todas ellas cubiertas con falsas bóvedas de cañón lanzadas a alturas similares. La cabecera es recta, con triple capilla en correspondencia con las naves, y sacristía dispuesta en el ángulo SE del edificio. La planta se completa con capelas de diferentes características situadas a ambos lados de las naves laterales que proporcionan a los flancos exteriores un aspecto escalonado e irregular. Los muros internos de las naves y de algunas capillas se encuentran revestidos de azulejos de padrón de la primera mitad del s. XVII, con motivos geométricos y vegetales en azul, amarillo y blanco, si bien el templo pre-senta igualmente algunos paneles figurados, encuadrados ya en el siglo XVIII, destacando los del Altar Mayor con representaciones referidas a la Vida de la Virgen (Correia 2003: 139-142).

En 1720 se encarga la decoración de la Capela do Santíssimo Nome de Jesus, situada en la cabecera de la nave lateral de la Epístola (Figura 5), interesante cámara barroca que ha llegado a nuestros días en un excelente estado de conservación (Correia 2007: 140-141). Este reducido espacio de planta cuadran-gular, muy probablemente constreñido a consecuencia de la construcción o ampliación de la sacristía principal, fue objeto de un programa decorativo unitario, concebido como parte constitutiva del espacio

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arquitectónico disponible, en el que se integraron distintas técnicas y materiales artísticos. La falsa bó-veda aparece cubierta con pinturas murales formadas por casetones poligonales con decoración de ca-bezas de querubines en cartelas de cueros recortados, y un panel octogonal central donde se representan las Cinco Llagas de Cristo. Al fondo de la capilla se dispone un retablo de talla dorada, en cuya única hornacina se desarrolla un panel de madera iluminado con una panorámica de Jerusalén, trasfondo de una imagen pintada de Cristo crucificado, hoy muy desvaída, sobre la que se ha instalado un modesto resplandor de talla dorada y algunas esculturas más recientes (Figura 6) (Instituto da Habitação, 2007). En ambos muros laterales sobresale el llamativo revestimiento azulejar encargado en Lisboa a Policarpo de Oliveira Bermardes, cuya firma figura en la base del lado de la Epístola (Figura 3), que funciona como elemento integrador de los diferentes elementos ornamentales e icónicos (Correia 2007: 140).

Combinando de manera muy efectista elementos decorativos y figurativos, este revestimento ce-rámico simula una rica estructura arquitectónica recubierta con guirnaldas de flores y frutos, máscaras, veneras y roleos vegetales, redefiniendo y dignificando así tan modesto espacio mediante esta escenogra-fía ilusoria. El recubrimiento de azulejos se organiza en dos niveles, separados por una cornisa que so-portan hermes y potentes volutas; en el nivel superior los ornamentos se disponen en bandas a candelieri, con más volutas y brotes vegetales, figuras infantiles aladas y motivos pasionales, que envuelven sendas pinturas sobre lienzo, obras coetáneas de discreta calidad de Domingos Gonçalves, con rico marco de madera tallada, todo ello realizado al mismo tiempo que los azulejos (Figuras 7 y 8) (Correia 2007: 140).

La parte inferior o zócalo de los muros esta ocupada en su casi totalidad por dos grandes emble-mas, envueltos por una recargada y movida cartela que es sustentada por ángeles-tenantes. La imagen del jeroglífico del lado del Evangelio representa a un lirio que brota ante un amplio paisaje, junto a un río caudaloso, con el mote SINE SEMINE GERMEN (“Vástago sin simiente”) (Figuras 9 y 10). Por su parte, en el lado de la Epístola podemos contemplar a un joven vestido con túnica y sandalias, grabando en el tronco de un árbol la palabra “JESSUS”, composición acompañada de la leyenda PULCHRUM PROPE-RAT PER VULNERA NOMEN (“Propaga un hermoso nombre por medio de las heridas”) (Figuras 11 y 12). Si bien el primero de estos símbolos ha sido interpretado como una alusión a la pureza virginal de la Virgen María (Correia 2007: 141), nosotros entendemos, sin embargo, que ambos emblemas poseen un significado claramente cristológico (García, 2009: 142-143), como trataremos de demostrar a continua-ción, en clara sintonía con la advocación y ornamento de la capilla.

Alusión frecuente a los conceptos de Pureza y Castidad, y habitual flor emblemática de la Virgen María, el motivo del lirio –o azucena– figura como lugar común en las representaciones plásticas de la Anunciación (García, 1991: I, 417-424); sin embargo, en el caso que aquí nos ocupa, su contexto simbó-lico –tanto la decoración general de la capilla, como el cuadro con el tema de la Natividad que se eleva sobre el panel de azulejos– y el mote del emblema, cuya fuente literaria no hemos conseguido identificar, nos permiten interpretar a este motivo floral como alegoría del nacimiento de Jesús. La identificación del lirio con Cristo procede esencialmente del versiculo bíblico de Ct 2, 1: “Yo soy [...] el lirio de los valles” –tal vez aparezca por ello la flor en medio de un paraje fluvial–, y su lema –Sine semine germen– alude a la característica de esta planta consistente en que sus tallos forman bulbos o rizomas subterráneos, lo que le permite sobrevivir durante el invierno, propiedad que produce la impresión de que brota por ge-neración espontánea, sin necesidad de semilla: por esta razón hace referencia al parto puro y virginal del Mesías (Valeriano, 1556: LV, 402-403). En la literatura patrística cristiana abundan las menciones al lilius como señal de Inocencia, Castidad y Pureza del Salvador (Barreyra, 1698: 339-341; García, 1991: I, 425). Tal vez la flor del lirio aparezca cerrada por un detalle que nos transmite el padre Barreyra (1698: 341),

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Fig. 9. Policarpo de Oliveira Bernardes (1720), jeroglífico del lirio en un paisaje fluvial (SINE SEMINE GERMEN), panel completo, Capela do Santíssimo Nome de Jesus, iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa, Portugal). Fuente: propia.Fig. 10. Policarpo de Oliveira Bernardes (1720), jeroglífico del lirio en un paisaje fluvial (SINE SEMINE GERMEN), detalle, Capela do Santíssimo Nome de Jesus, iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa, Portugal). Fuente: propia.

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Fig. 11. Policarpo de Oliveira Bernardes (1720), jeroglífico del niño grabando el nombre “Jessus” en la corteza de un árbol (PULCHRUM PROPERAT PER VULNERA NOMEN), panel completo, Capela do Santíssimo Nome de Jesus, iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa, Portugal). Fuente: propia.Fig. 12. Policarpo de Oliveira Bernardes (1720), jeroglífico del niño grabando el nombre “Jessus” en la corteza de un árbol (PULCHRUM PROPERAT PER VULNERA NOMEN), detalle, Capela do Santíssimo Nome de Jesus, iglesia de Nossa Senhora da Conceição (Vila Viçosa, Portugal). Fuente: propia.

Fig. 13. Henricum Engelgrave, Caeleste Pantheon (Coloniae Agrippinae, 1657), emblema 1. Fuente: Colección particular.

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al indicarnos que, de acuerdo con un texto de Eucherio, el lirio cerrado es alegoría de Cristo previa a la Pasión, abriéndose los pétalos después del acontecimiento de su Resurrección.

Por su parte, el jeroglífico situado frente al anterior está directamente inspirado en un emblema litera-rio del padre jesuita Henricum Engelgrave, con el que inicia su Caeleste pantheon (1657: 1) (Figura 13), sím-bolo dedicado a la festividad de la Circuncisíón del Señor, cuyo lema latino ya indicado –Pulchrum...– pro-cede de la Eneida de Virgilio, reinterpretando el verso original: pulchram properet per vulnera mortem (IX: 401). Este mismo emblema aparece referido en otras recopilaciones posteriores de tratadistas simbólicos, con el lema abreviado Pulchrum per vulnera nomen, como Filippo Picinelli (1680: IX, §407, 460), o Coeles-tinus Leuthner (1733: emb. 4). En su pictura un amorcillo o genio alado inscribe con un cálamo el nombre de Jesús en la corteza del tronco de un árbol, conmemorando así, como hemos señalado, el momento en que el Mesías es circuncidado y, al mismo tiempo, recibe su nombre revelado por el arcángel Gabriel (Lc 2, 21). La imagen y el concepto del emblema se inspiran en unos versos del poeta romano Virgilio (1990: 219):

Decidido estoy; prefiero sufrir en las selvas entre las cuevas de las fieras y grabar sobre los tiernos árboles mis amores. Crecerán aquéllos, vosotros, mis amores, creceréis (Ec. X, 52-54).

Del mismo modo, indica Engelgrave (1657: 5-6), el nombre de Jesús quedó grabado, no en la corteza, sino en la carne y corazón de sus discípulos, para que la cicatriz fuera creciendo en ellos y dilatando su fama y virtudes. De manera significativa, este jeroglífico se vincula al lienzo superior con la representación de La Piedad, o Planto sobre Cristo Muerto, de modo que se consolida la interpretación de la sangre vertida en la Circuncisión como prefiguración de la que Cristo derramará en la Pasión por todo el género humano.

La imagen del retablo de fondo con la imagen de la Crucifixión y las llagas sangrantes de la bóveda configuran, en consecuencia, un pasaje intermedio, a modo de expresiva síntesis de la Pasión, en el ciclo narrativo de la capilla que arranca con el Nacimiento, y culmina con la dramática muerte del Salvador.

A modo de conclusión, los dos jeroglíficos azulejares conservados en la Capela do Santíssimo Nome de Jesus constituyen otro ilustrativo ejemplo del recurso a los emblemas como elementos que potencian de manera didáctica los conceptos doctrinales e instrucciones morales que la iconografía religiosa o el sacerdote, a través de sus sermones, ofrecía a unos fieles mayoritariamente iletrados. Los jeroglíficos, habi-tualmente complemento significativo o enfático del mensaje edificante que emana de los paneles o cuadros narrativos de temática evangélica o hagiográfica –como en el caso que aquí hemos analizado, donde el significado de los azulejos emblemáticos se imbrica en la narración cristológica que nos relatan los cuadros pintados–, presentan unas imágenes enigmáticas cuyo sentido sólo puede clarificarse con el auxilio del lema latino, proponiendo así un erudito juego de ingenio, de dificultad calculada, cuya recompensa será el desciframiento de su significado oculto. El mecanismo formativo consiste, por tanto, en atraer previamente la atención del fiel por medio del reclamo de su componente visual, y fijarlo en su memoria a través del misterio transitorio que se abre con la identificación de las figuras, y se cierra con la traducción del mote.

Notas1 El presente trabajo se inscribe en el proyecto de investigación  Biblioteca digital Siglo de Oro  IV (código FFI2012-3436),

dirigido por la profesora Nieves Pena Sueiro y financiado por el Ministerio de Economía y Competitividad del Gobier-no de España, en el marco del VI Plan Nacional de I+D+i 2008-2011. De igual modo, su realización y presentación han contado con ayudas procedentes del Gobierno de Extremadura y los Fondos FEDER a través del Grupo de Investigación

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“Patrimonio&ARTE. Unidad de Conservación del Patrimonio Artístico”, dirigido por la Dra. Pilar Mogollón Cano-Cortés, del que formo parte. Quiero agradecer muy especialmente a D. Pe Francisco Couto, párroco de la iglesia de Nossa Senhora da Conceição, su gentileza, y las enormes facilidades que nos concedió a la hora de obtener las fotografías del Santuario incluidas en este artículo.

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Nuevas tradiciones en el ámbito festivo transmoderno de Bilbao: del Santuario a la Ría del Nervión

New Traditions in the Trans-modern Festive Field: From the Sanctuary to the Stuary of Nervion

Juan António Rubio-Ardanaz*

*espanha, antropólogo, Professor, universidade da estremadura. e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 3 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumen: Este artículo trata sobre la pérdida de in-fluencia del santuario local y el cambio en el contexto festivo de la ciudad de Bilbao. Un nuevo personaje simbólico, Mari Jaia, protagoniza la fiesta y desplaza a los anteriores. Una parte fundamental del ritual festivo se realiza sobre las viejas instalaciones portuarias. Al mismo tiempo se manifiesta una nueva maritimidad.Palabras clave: Santuario / ritual marítimo / mitología transmoderna / transfolklorización / nueva maritimidad

Abstract: This article is about the loss of influence of the provincial sanctuary and the change in the festive context of Bilbao. A symbolic actor, Mari Jaia is the new protago-nist of the festive celebration, and it moves to the previous.An important part of the festive ritual heldin the old sea-port. A new maritime dimension manifests. Keywords: Sanctuary / maritime ritual / trans-modern mythology / trans-folklorization / new maritime dimension.

IntroducciónEn el contexto sociocultural fraguado en la ciudad de Bilbao durante la primera década del siglo XXI y que nos está permitiendo argumentar la presencia de una nueva maritimidad, nos interesamos por determinadas expresiones festivas que toman como escenario físico la ría de Bilbao. En este sentido nos preocupamos por la acelerada proliferación de imágenes y de nuevas prácticas y condiciones de acercamiento al ámbito marítimo que han venido a replantear y profundizar en torno al concepto de maritimidad (Peron, Rieucau, 1996: 14 y ss.). Una de ellas toma forma en la celebración de la Semana Grande o Aste Nagusia de la ciudad, donde cobra especial relevancia la representación figurativa de un personaje simbólico de creación reciente, Mari Jaia, en torno al cual adquieren sentido un conjunto de manifestaciones incluidas en la programación festiva.

Tomamos como objetivo, mostrar la traslación simbólico-representativa, en un itinerario que com-porta rasgos de procedencia tradicional campesina (materializados folklóricamente en la figura de aldea-na vasca), apropiados, trasladados y venerados popularmente en el contexto cristiano católico (plasma-dos en la imagen de Andra Mari o Madre de Dios), pero que derivarán hacia otro modelo (creación de Mari Jaia), más propio de un marco cultural transmoderno (Rodríguez Magda, 1989). Si anteriormente, la base ideológica de la fiesta se mostraba estrechamente ligada a un determinado “culto de santuario” mariano, comenzará un proceso que desembocará en una celebración festiva de carácter propiamente urbano y secular cada vez más desvinculado del marco religioso anterior.

Algunos de los eventos y simbolizaciones de la fiesta, con sus componentes, materiales e inmate-riales, patrocinados y apoyados desde instituciones públicas y privadas de amplia influencia y capacidad económica, pasan a conformar parte de las “nuevas tradiciones”. En este caso, propias de una cultura urbana de nueva generación, que supuestamente interesa apoyar y mantener desde instancias diferentes. Y donde es interesante considerar el proceso patrimonial y la estrecha relación en la que aparecen sobre la escena sociocultural tanto objetos precisos, como sujetos e ideas (Marcos Arévalo, 2008).

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En esta nueva puesta en escena festiva se presenta una característica fundamental. Se trata de la im-plicación masiva y directa de un alto número de participantes, convertidos, más o menos conscientemen-te, en actores guiados por medio de programaciones y protocolos elaborados a conciencia (programas de fiestas, planificaciones festivas, etcétera), ampliamente difundidos a través de las nuevas tecnologías.

En este contexto se constata una tendencia de connotación simbólica, en la que se comparten pú-blicamente una serie de mensajes, comportamientos e ideas a seguir, en algún grado, basados e inspira-dos en un pasado reciente, pero sobre todo de nueva creación, eficacia y actualidad para la vida social (Rubio-Ardanaz, 2009). Presentan un pronunciamiento de cariz marítimo que puede recordar tiempos anteriores, pero que son claramente un producto de nueva construcción, con connotaciones e inten-ciones muy novedosas. En este sentido, se recrean y reconstruyen paisajes, frentes de agua, mobiliario y todo un conjunto de manifestaciones patrimoniales que entran en una esfera compuesta por “nuevas cualidades” en un espacio colectivo en este caso abierto a la celebración festiva y a una nueva mitología (Vivas Ziarrusta, 2011).

1. Marco popular y participativo para una nueva manifestación festiva y patrimonialSiguiendo una iniciativa del Bureau Internacional de Capitales Internacionales, IBOCC, inspirándose y si-guiendo la filosofía de la Convención para la Protección del Patrimonio Inmaterial de la UNESCO, en 2009 se elegía la Aste Nagusia o Fiestas de la Semana Grande de Bilbao, como “Tesoro del Patrimonio Cultural Inmaterial de España”. Desde esta consideración, se hacían confluir fiesta y patrimonio en este aconte-cimiento de primer orden para la ciudad, desde intereses turísticos y de oportunidad de negocio. No en vano se trata de un momento central del año que transcurre durante nueve días pero que sin embargo, incluye una programación fundamentalmente de pretendida proyección popular. Independientemente de la intencionalidad económica referida, dicha proyección se muestra promovida y organizada por las “comparsas” con el apoyo y en comisión con el ayuntamiento.

Las comparsas se agrupan en torno a la Federación Bilboko Konpartsak , confluyendo en un objetivo básico que se resume en “vivir y hacer vivir la fiesta” fundamentalmente en la calle. La federación toma cuerpo en 2002 sustituyendo a la anterior Coordinadora de Comparsas de Bilbao y además de la Aste Na-gusia, apuesta por trabajar también en la organización popular de los carnavales, la fiesta de Santo Tomás (21 de diciembre), las fiestas de los barrios de Bilbao y otras celebraciones de carácter muy puntual.

Cada comparsa, se puede decir que es una agrupación de carácter social festivo con una clara raíz popular. Gracias a ellas la celebración adquiere un ritmo continuo y muy especial, polarizando, animando y motivando la participación ciudadana, principalmente en los espacios públicos, ejerciendo un prota-gonismo fundamental. A pesar de la diversidad de procedencias, según los barrios, las orientaciones políticas y las pretensiones y expectativas cívicas y sociales, los miembros de las comparsas coinciden en admitir que “la convivencia es posible a pesar de la diferencia de opiniones”. Con esta postura se expresa el rechazo a un modelo festivo únicamente institucional en clara referencia al equipo consistorial de la ciudad, donde también encuentran ubicación intereses económicos propios del sector hostelero, espec-táculos y deporte entre otros.

1.1. Rechazo del modelo festivo “impuesto desde arriba”No obstante, a pesar de la diferencia de intereses y también de las distintas orientaciones sociopolíticas y sociales en general, entre las comparsas, se constata una tendencia hacia una filosofía común. Promueve y se basa en la participación y en la pluralidad, planteamiento opuesto a la pasividad y según el cual

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“participar en las fiestas va más allá de ser un mero espectador”. Tomar parte activa es primordial, idea que fundamentalmente gira en torno a las actividades y presencia de las comparsas, vehículo ideal para que todos y todas puedan ver cumplido ese deseo. Esta orientación se complementa con una actitud militante de rechazo a un modelo festivo “impuesto desde arriba”, principio que se viene manteniendo desde la primera celebración popular en 1978, fecha coincidente con la reciente inaugurada época democrática postfranquista .

Las asociaciones vecinales que comienzan a surgir y la celebración de las primeras elecciones de-mocráticas en junio de 1977, son punto de inflexión para la superación de la dinámica, marcada hasta en-tonces por los ayuntamientos franquistas, totalmente temerosos y opuestos a la participación popular. En 1978, asociaciones y movimientos de barrio, toman su protagonismo; se propone un concurso de ideas y se crea la primera Comisión Popular de Fiestas. Se da paso a un nuevo modelo tras el concurso de ideas convocado por el ayuntamiento, siendo ganador el proyecto de la comparsa Txomin Barullo. Se acepta una organización con la presencia del ayuntamiento, comparsas y otros grupos culturales de barrio.

A partir de aquel momento las afamadas corridas de toros de Bilbao, la ópera y la “llegada a pro-vincias” de las compañías de teatro procedentes de Madrid, comparativamente y en relación al tipo de participación, pasan a un segundo plano. Por otro lado los fuegos artificiales, el circo, las “barracas” o atracciones de feria (tómbolas, tiovivos, autos de choque, etcétera), los bailes y danzas tradicionales en los espacios públicos, la actuación de la banda de música municipal, todo ello ubicado en espacios bien delimitados, serán testigos de una avalancha popular inusual hasta la fecha. Para ello se dota a la fiesta de otros espacios e intervenciones inexistentes hasta el momento, confirmándose así la manifestación de un nuevo modelo festivo.

Aquel abanico de eventos, propio de una programación dirigida, calculadamente formal y a me-nudo poco accesible para los barrios periféricos y las clases más populares, en realidad no desaparece, pero se reubica en otro contexto. A partir de ahora la propuesta consistirá principalmente en “vivir la fiesta abiertamente y a poder ser en la calle”. Aparecen así en el escenario, las txoznas (lugar de encuentro, bebida, comida y pequeños espectáculos y concursos), gestionadas por las comparsas. Estas transfor-man definitivamente el escenario público y el ambiente, instalándose en un lugar céntrico y accesible, junto al paseo y antiguos muelles del Arenal y sus aledaños, parte del antiguo recinto portuario de la ciudad (Figura 1). Y con ellas cobra lugar un nuevo ingrediente festivo, caracterizado por una crítica y reivindicación social y política, vehiculizadas a través del mobiliario y la decoración, pinturas, dibujos y representaciones alusivas a temas sociales de actualidad.

1.2. Tiempo para la celebración, creatividad y toma de concienciaLa fiesta se muestra como momento creativo y de toma de conciencia en función de intereses sociales y políticos, donde entran en juego posiciones, pronunciamientos, acciones y mensajes, más o menos explícitos. Encontraremos actos al respecto que independientemente de su transcendencia social, se en-marcan en el tiempo liminal de la celebración, ocasión y tiempo de transgresión, diferenciado del que transcurre en el día a día de la vida cotidiana de la ciudad y al que se volverá, aunque probablemente con otra actitud, gracias a la eficacia propia de algunos momentos de la celebración.

Nuestra labor etnográfica nos ha llevado a participar en espectáculos reivindicativos y antisistema, actos simbólicos partidarios del cambio institucional y a constatar mensajes de contenido, considerado “políticamente incorrecto” desde la ideología propia del orden establecido. Es así como hemos encon-trado actuaciones musicales de carácter pacifista, pantallas de votación en referéndum sobre el futuro

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Fig. 1. Fotografía de J.A. Rubio Ardanaz. Txoznas, sobre los muelles del Arenal, parte de las antiguas instalaciones portuarias de Bilbao (20 de agosto de 2013).Fig. 2. Fotografía de J.A. Rubio Ardanaz. Mural antigubernamental en el recinto festivo (19 de agosto de 2013).Fig. 3. Fotografía de J.A. Rubio Ardanaz. Txozna de la comparsa Moskotarrak. Participación nocturna (24 de agosto de 2013).

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de la monarquía (con cuatro alternativas a la hora de votar: INEM o Instituto Nacional de Empleo, aizkora, gillotina y garrotea) y enunciados sobre murales entre otros, antigubernamentales que rezaban: “¿Bobo?... ¿Quién es bobo?... ¿Quién?... ¿Uh!?” y “Señor gobernador usted es bobo” (en denuncia y desacuerdo con las últimas actuaciones de cariz político ejercidas desde el Gobierno Civil); a favor de la desobediencia civil: “Feudalismorik ez! Desobedienteak basoan”; o de los presos y exiliados: “Preso eta iheslariak etxera”; e incluso de la misma Semana Grande bilbaina y su carácter popular: “Aste nagusia defendatuz!! (Figura 2).

Al mismo tiempo se programan otras actividades como las traineras en la ría, el cine de calle, los conciertos al aire libre desplegados por parques y plazas de la ciudad, los juegos infantiles o txikigune, los concursos gastronómicos, el deporte rural, las bilbainadas (interpretación de canciones populares), los pasacalles, los gigantes y cabezudos, desfiles-espectáculo, etcétera. Las tabernas, bares y restaurantes así como los hoteles y pensiones ven aumentar su actividad y la fiesta en su conjunto, se masifica y toma un colorido que había estado totalmente ausente y acallado durante la época política dictatorial anterior (Figura 3). Las comparsas seguirán año tras año, trabajando por sostener este modelo, tendente a la par-ticipación abierta, a pesar de aquellas injerencias políticas municipales, menos tendentes a seguir mante-niendo “eventos gratuitos, accesibles a todos y todas” y partidarias de la privatización y subcontratación de algunas actividades.

1.3. Personajes de nueva creaciónA nivel simbólico, en este nuevo entramado participativo que estamos describiendo, ejercerán un papel destacable tres personajes de nueva creación, cada uno de ellos con funciones, presencias y cometidos puntuales a lo largo del tiempo festivo (Figura 4). Se trata del pregonero o pregonera, elegido por una comisión mixta compuesta por representantes del ayuntamiento y comparsas. A él se suma la txupinera, comparsera encargada de lanzar el txupin o cohete anunciador del inicio de las fiestas. Su elección corre a cargo de la Federación Bilboko Konpartsak . Tanto el pregonero como la txupinera, cuando aparecen en público lo hacen uniformados, vistiendo trajes de inspiración y antiguo aire militarizante de remarcable colorido. Junto a estos dos, el tercero, Mari Jaia, muñeco emblemático de gran tamaño que personifica y representa la fiesta, ocupa un lugar primordial.

A partir de 1986, el pregonero toma un mayor protagonismo; más allá de la sola lectura del pregón, intervendrá en multitud de actos, tanto de carácter institucional como popular, directamente relaciona-dos con la fiesta. El carácter público de esta figura se muestra en su elección, realizada entre personas conocidas por sus éxitos o méritos personales, en este mismo sentido también incluye representantes de grupos, asociaciones e instituciones. En ocasiones se escoge en virtud de momentos sociales críticos, remarcables e importantes para la población. Han sido pregoneros, miembros de las comparsas y de las comisiones de fiestas, el alcalde, exconcejales, futbolistas, ciclistas, judokas, baloncestistas, montañeros, presidentes del Athletic Club de Bilbao, bertsolaris, txistularis y otros músicos y cantantes, actrices, artis-tas, representantes de grupos de danzas vascas, humoristas, euskaltzainas, cocineros, escritores y poetisas, periodistas y presentadores de radio y televisión como por ejemplo, Joseba Solozabal (Radio Nervión y Tele Bilbao), destacado promotor y militante festivo de la Aste Nagusia.

En 2003 ejerce como pregonero Benito Fernández, Benitín, presidente de la cofradía de pescadores de Santurtzi. Es nombrado en representación de los arrantzales (pescadores) que esa temporada sufren las consecuencias de la marea negra causada un año antes por el Prestige.

Las funciones de la txupinera son amplias, acudiendo también a un vasto número de actos institu-cionales y festivos; además, cada día a las siete de la mañana, debe lanzar el cohete anunciador de la nueva

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jornada festiva. Todos los años y en señal de su representatividad, recibe la makila o bastón de mando de manos de su antecesora. Para su nombramiento, se elige por sorteo la comparsa que se aportará la txupinera de ese año, solamente entre aquellas que todavía no lo han hecho en ninguna ocasión anterior.

2. Mari Jaia, la dama transmoderna de la fiestaEl tercer personaje de nueva creación, no es personal sino que toma cuerpo en un muñeco construido para la ocasión. Se trata de Mari Jaia, creación de Mari Puri Herrero, grabadora y pintora bilbaina. Al respecto distinguimos la creación material y artística originaria, de la creación sociocultural, constructo en el que toman parte los propios participantes en la fiesta. Esta artista realizaba esta figura en 1978, por encargo de la primera comisión de las fiestas de Bilbao, autoría que no obstante transciende el ámbito personal de su creadora para convertirse en símbolo asumido totalmente de manera popular.

Independientemente de las pretensiones de la artista encargada de dar luz este personaje, Mari Jaia supone una ruptura a dos niveles. Por una parte ya no es el arquetipo de la mujer procedente del ámbito rural y por lo tanto, no viste a la usanza de la aldeana vizcaina tradicional (la inspiración de su ropaje difiere del del porte de los pregoneros y txupineras). Ya no se trata de mantener una semblanza, folklorizante, equi-librada, sobria y en cierta forma imperturbable y anclada en la tradición, sino de recuperar la desmesura para los participantes que acuden a una fiesta que ha despertado después de dormir durante todo el año.

En el sentido indicado, Mari Jaia procede de un tiempo inventado, transfolklorizado, construido culturalmente para tomar vida y hacerse realidad durante un tiempo especial, excepcional, real pero que rompe con la “realidad de lo cotidiano” a lo largo de la Semana Grande. No pertenece a la historia, se pierde en ella; personaje neomitológico que tomará vida cada Aste Nagusia para durar nueve días, antes de volver a sus pretendidos orígenes y ser inmolada en la ría, entrando así en el mundo del recuerdo.

Con su rostro exageradamente maquillado y vestimenta de colores vivos y llamativos parece invitar a la participación, a la alegría y a la juerga, en un intento de contagiar vitalidad, espontaneidad y bullicio, respondiendo de este modo al nuevo modelo festivo descrito al inicio. En este nuevo contexto, toma un protagonismo muy especial como personaje transmitológico que toma forma como figura renovada, rompedora del anterior equilibrio arquetípico de la mujer campesina (Figura 5). Prueba de ello, es por ejemplo la sustitución del pañuelo tradicional y antiguamente propio de la aldea, (buruzapi), sujeto y anudado de forma típica, por una desmesurada pañoleta que ahora permite la presencia y porte de un pelo alborotado, suelto, muy acorde con un semblante sonriente y alegre.

3. Veneración cristiana versus celebración urbana, secular y transmodernaEsta ruptura con un mundo de inspiración rural, comporta otra vertiente que responde a un modelo festivo, ahora patentemente secularizado y cada vez más desligado del anterior. La fiesta religiosa que conmemora la Asunción de la Virgen María (15 de agosto) y que había sido momento y fecha para el inicio de las fiestas, cederá parte de su protagonismo. El santuario o Basílica de Nuestra Señora de Begoña (Figura 6) alberga la imagen de la Virgen María en su versión local vasconizada. Acoge y es centro de peregrinación y veneración de la Madre de Dios o Andra Mari de Begoña, popularmente conocida como Amatxo (enunciado cariñoso o cercano del término madre, ama), patrona del territorio histórico o pro-vincia vasca de Bizkaia. Este santuario o basílica está adscrito a la Santa Basílica de San Juan de Letrán, aspecto que nos muestra su categoría (correspondiente al baremo católico en el que todos los templos no ostentan el mismo nivel o rango) y potestades según las cuales, en él se pueden adquirir los beneficios espirituales, correspondientes a la “indulgencia plenaria” concedida por la Iglesia Católica (Figura 7).

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Fig. 4. Fotografía de J.A. Rubio Ardanaz. Pregonera y anterior y actual txupinera el día del inicio de la Semana Grande - Aste Nagusia (17 de agosto de 2013).Fig. 5. Fotografía de J.A. Rubio Ardanaz. Mari Jaiaa (24 de agosto de 2013).Fig. 6. Fotografía de J.A. Rubio Ardanaz. Basilica - Santuario de la Madere de Dios de Begoña - Begoñako Andra Mari (22 de junio de 2014).

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Junto a la celebración del 15 de agosto indicada, la más importante en torno al santuario corresponde al 11 de octubre, fiesta litúrgica de la Madre de Dios de Begoña, fecha durante la cual los fieles peregrinan hasta el templo en el contexto de una romería popular.

La figura de la Virgen, dama vasca cristianizada, toma su forma en una escultura de estilo gótico (ss. XIII-XIV) en la que aparece entronizada y adornada con joyas y vestida de rico ropaje, con el Niño Jesús sentado sobre sus rodillas (Figura 8). Según la tradición la encuentra un pastor sobre un espino, o en el hueco de una encina, en el monte Artagan, lugar donde se construiría una pequeña ermita. Con el paso del tiempo se decide trasladarla a un sitio más amplio y adecuado, ante lo cual la imagen se arraiga al suelo, pronunciando en ese momento las palabras en lengua vasca bego oña (traducidas como “éste es el sitio”, o “quieto el pie”), alocución escrita en la base de la talla y con la que la Virgen indica que ese es el lugar en el que debe ser venerada. Con el paso del tiempo, tras distintas ampliaciones, vicisitudes bélicas y restauraciones, dará lugar al actual santuario.

Previamente a la Semana Grande, la basílica sigue siendo punto para una ofrenda floral a la Virgen por parte de la alcaldía, acto de simbiosis entre la esfera civil y religiosa. En este momento también se inaugura el recinto ferial (barracas y circo). No obstante, es solamente un prolegómeno, aunque lleno del colorido de ele-mentos y actos rituales y festivos, como el homenaje al alcalde ante quien se baila en señal de respeto y honor el aurresku, la intervención de los gigantes y cabezudos, los bailes tradicionales y la intervención de la banda municipal de txistularis. Oficialmente, la Semana Grande arrancará el primer sábado después del 15 de agosto, dando lugar a la primera aparición en público de Mari Jaia, lectura del pregón y lanzamiento del txupin.

En síntesis, por un lado aquella otra “dama campesina” (en tiempo de fiesta, representada por ejemplo en los trajes de inspiración folklórica) junto a ésta otra “dama cristianizada” y entronizada en Begoña, dejarán su espacio o buena parte de él, a una nueva “dama de la fiesta”. Aunque se siguen com-partiendo bailes, interpretaciones y escenificaciones usuales o inspiradas en el modelo anterior, además del culto religioso con sus cánticos, ofrenda floral y oraciones, será Mari Jaia quien aparezca y se muestre y pronuncie ante todos y todas, en una ciudad secularizada y asomada a la transmodernidad. Todo ello en el nuevo marco expresivo que hemos descrito, reforzado con su propio himno, Badator Marijaia, extendidamente conocido e interpretado masivamente el día del txupin.

Considerada canción o himno oficial de las fiestas, Badator Marijaia (Ya viene Mari Jaia), da la bienvenida a la nueva dama de la fiesta (mari), cuya letra original en euskera, fue compuesta por Edorta Jiménez, adaptada musicalmente principalmente por un reputado músicio, Kepa Junkera (1997). La can-ción, originalmente escrita en euskera podemos traducirla de la manera siguiente:

La Semana Grande, única, durante diez noches, en el mundo./En agosto en Bilbao, todos y todas a la calle, hasta los gatos están en fiesta./ Mari, Mari, Marijaia viene, Mari Mari, Marijaia viene./ Nadando, nadando. En aguas de Bilbao. Mari, Mari, Marijaia viene./ Todos y todas en agosto, viejos y jóvenes, hombres y muje-res, en fiesta./ Con el pañuelo al cuello, todos unidos, todos los colores, bailando/. El gozo y reloj, al parecer no caminan juntos, el uno o el otro, se ha vuelto loco./ hara, hara, hara, mira quién viene, hara, hara, hara, nuestra Marijaia,/ Ene, ene, ene, oi ai ene bada, cuando pase esta semana, de nuevo se volverá a marchar./ La misma Marijaia, nuestra Marijaia, ha venido a Bilbao, a la Semana Grande./ Semana Grande, única en el mundo, única en el mundo, Maijaia./

3.1. Presencias e intervenciones fundamentales de Mari JaiaEl protagonismo de Mari Jaia se concreta en tres partes precisas. El primero con el arranque oficial,

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Fig. 7. Fotografía de J.A. Rubio Ardanaz. Basilica “Agregada a Sn Juan de Letran in perpetvvm”. Debajo representación de la Prvdencya, virtud cardinal que nos hace conocer y practicar los medios más conducentes para obrar bien (22 de junio de 2014).Fig. 8. Fotografía de J.A. Rubio Ardanaz. Imagen de la Virgen de Begoña - Begoñako Andra Mari (22 de junio de 2014).

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momento en el que sale al balcón de la fachada de un edificio emblemáticamente escogido, el teatro Arriaga, para ser testigo del pregón y del txupin y presentarse ante una multitud que espera su aparición en un encuentro masivo y abiertamente expresivo en el que se baila, canta y bebe. Posteriormente, inter-vendrá en distintos actos en la calle a lo largo de los días que dura la Semana Grande, momentos durante los cuales, en sentido figurado y como reza en su himno, se le encontrará “nadando, nadando, en aguas de Bilbao”. Sus últimos momentos como “dama de la fiesta”, tercera parte de su protagonismo, corresponde al acto de clausura de las fiestas en el que cómo vamos a ver, será quemada en un ritual en el que es devuelta, envuelta en llamas, a su imaginario lugar de origen (Figura 9).

Para que todo esto tenga lugar Mari Jaia, ha tenido que ser ensalzada y recreada como nueva “dama” (mari) de la “fiesta” (jaia). Solamente así, cobrarán sentido todas sus intervenciones, incluida esta última en la que se vuelve a escoger como escenario las aguas de la Ría de Bilbao, lugar emblemático y escenario pri-mordial de una intensa actividad marítima portuaria, actualmente trasladada y ubicada en un espacio cos-tero exterior. En este sentido integra y hace parte a nivel simbólico y patrimonial de la nueva maritimidad, configurada a lo largo de las poblaciones ribereñas de la ría y abra de Bilbao. Su última singladura se inicia en el puente de la Merced, acompañada por dos traineras, a estribor y babor respectivamente de la embarca-ción que le transporta. En 2013 son remeros pertenecientes a Deusto Arraun Taldea - Club de Remo Deusto, vestidos con uniforme blanco de gala y ataviados con el “pañuelo de fiestas” color azul, atado al cuello.

Esta comitiva marítima llega hasta el ayuntamiento, con Mari Jaia constantemente iluminada con un intenso foco de luz. Mientras tanto, potentes torres de sonido dejan oír el Txori txori de Mikel Laboa, en una adaptación expresamente solemne, mientras la lluvia sin tregua, cae y cae intensamente. Al mismo tiempo su figura se ve envuelta en una traca de constantes fuegos artificiales, lanzados gracias a un mecanismo

Fig. 9. Fotografía de J.A. Rubio-Ardanaz. Quema de Mari Jaia en la ría, durante la clausura de la Semana Grande - Aste Nagusia de Bilbao (25 de agosto de 2013).

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pirotécnico programado e instalado en la misma embarcación que le transporta. El espectáculo musical y luminoso, siempre en los márgenes y aguas de la ría, va cobrando intensidad, creando a pesar de la lluvia un halo especial de magia y expectación. Por fin, llega el momento en el que irremisiblemente empieza a arder en llamas. El ritual dejará paso al último lanzamiento de fuegos artificiales incluido en el programa festivo, ya desde el monte Artxanda, visibles en la ciudad.

ConclusiónMari Jaia viene a integrar y a dar forma a una “nueva mitología vasca”, funcionalmente en vigor en el ámbito urbano de Bilbao. Como hemos visto el ritual cobra vida y sentido en medio del reconocimiento público, en un escenario repleto de participantes. La mitología vasca con sus creencias en desuso ya en el momento en que las estudia J. M. Barandiaran (1996: 15-18), nos llega como vestigio de una cultura cam-pesina en la que por ejemplo, la vieja “dama de Anboto” no era más que la muestra de una estela cultural del pasado (al que pertenecieron supuestamente las campesinas, también representadas simbólicamente en la fiesta). Consciente del cambio, puso en marcha un conciso y arduo trabajo de investigación, reco-nociendo las limitaciones que suponía la pérdida de muchos elementos de la vida tradicional que ya se habían perdido o desfigurado.

Por otro lado, la idealización de la campesina vizcaina y de la cultura rural y arrantzale en general, ocuparán un lugar compartido que encuentra su apoyo ideológico en personajes del santoral cristiano, en uso todavía en una sociedad altamente modernizada en la que se inscribe actualmente el santuario de Begoña. Sin embargo, modernidad y postmodernidad desembocarán en una transculturización, coinci-dente con una nueva etapa de transmodernidad, en la que han dejado de preocupar las rupturas con las formas anteriores para vivir intensamente un modelo festivo como el que hemos descrito aquí.

El cambio de valores y propuestas socioeconómicas a nivel festivo, hallan su apoyo en nuevas con-figuraciones simbólicas entre las que destaca esta nueva dama, Mari Jaia. Han aparecido claramente otras maneras de vivir la fiesta, comportando la creación de nuevas figuras en virtud de expectativas diferentes. Esta dinámica está llevando a las anteriores expresiones, con sus discursos, rituales, celebraciones, valores y propuestas sociales y creenciales, a posiciones cada vez más marginales y desplazadas.

ReferenciasBarandiaran, José Miguel (1996). Mitología vasca. San

Sebastián: Editorial Txertoa. San Sebastián. ISBN 84-7148-117-0.

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Museologia do cotidiano: a morada e o santuário.Entre a autoconsagração e o dar-se ao outro na mediação do Sagrado

Museology of the everyday: the home and the sanctuary. Between self consecration and dedication to the other in the mediation of the sacred

Leonardo Caravana Guelman*

*brasil, arquiteto, artista Plástico, Professor, instituto de artes e comunicação social (iacs), universidade federal fluminense (uff). Par académico da revisão da comissão científica. e-mail: [email protected]

artigo completo submetido 2 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Nas regiões interiores do Brasil, notadamen-te nos espaços abrangidos pelo Sertão, se apresentam formas vivas de consagração da vida no espaço das moradas ou nos grandes santuários. Este artigo exami-na aspectos fundamentais da produção estética dessas simbolizações a partir do amplo ethos que as inscreve, seja na forma do habitar ou do devotar, ambos com-preendidos como dimensões indissociáveis. Palavras chave: Narrativa / imagem e cultura / ética e religião.

Abstract: In the interior regions of Brazil, notably in the territories of Sertão, one finds various forms of sacred spa-ces in homes or in important sanctuaries. This article exa-mines fundamental aspects of the aesthetic production of these symbolic gestures, drawing on the rich ethos that in-scribes them,  either as a form of inhabiting or of devotion, both understood as inseparable dimensions.Keywords: Narrative / image and culture / ethics and religion.

IntroduçãoO presente artigo enfoca as narrativas visuais produzidas por habitantes sertanejos como testemunho do próprio curso de suas vidas. A noção de narrativa é explorada enquanto testemunho imagético em fotos exibidas como quadros, tanto em suas moradas quanto em espaços consagrados em templos e santuários em períodos de romarias.

O argumento inicial a ser desenvolvido desdobra a noção de “identidade narrativa” de Paul Ricoeur (1990), na qual, mais do que pensar a narrativas das identidades, o autor se propõe a examinar a própria identidade como uma narrativa. Nas fotos-testemunhos exibidas nos interiores das moradas brasileiras, cada indivíduo consagra a si mesmo e a seus grupos de familiares como um exercício de devoção que atravessa tempos distintos: são entretextos visuais que atravessam a vida familiar. Como sugere Ricouer (1990: 150) é justamente a “temporalidade” que estabelece o problema e o desafio da permanência da identidade. Nesse sentido, mais do que pensar uma “identidade idem” o autor nos coloca a perspectiva de se pensar a “identidade ipse” como algo que converge continuamente para a pergunta de si, que não pode ser expressa pelas noções de “mesmo” ou “idêntico”. Nas paredes dos interiores das moradas, os sertanejos contemplam a própria transmutação da vida em identidades marcadas pelo abismo da tempo-ralidade ou pela pergunta recorrente de quem ainda somos?, ou do que nos conecta com o que temos sido?

Nesse quadro inicial, as moradas já se revelam como uma primeira modalidade de Santuário. Entre patriarcas e matriarcas, quadros de casais, quadros dos filhos, dos avós e parentes remotos, se conjugam as imagens das muitas Nossas Senhoras Sertanejas - como na prece e devoção de um Riobaldo Tatarana no “Grande Sertão: Veredas” - , e os muitos santos padroeiros num verdadeiro templo rústico que traz

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Deus para dentro de casa. Consideremos ainda o fato de estas moradas, muitas vezes, aparecerem isola-das no grande espaço do sertão, em que o humano se lança ao desafio da existência entre o bem e o mal na terra do sol.

Dessa primeira dimensão de autoconsagração em sua própria morada, o sertanejo se desloca para um segundo exercício de narrativa visual: a consagração de ex-votos em templos e santuários. Ali se impri-me outra tessitura, outro arranjo intersemiótico, entre figuras de santos, quadros religiosos, e as múltiplas modalidades de ex-votos que consagram as graças recebidas e o desejo continuado de renovação destas. Ali se mesclam as gentes em retratos 3x4 que embaralham histórias e criam conexões inusitadas de existências que se desconhecem, mas se fundem numa narrativa mais ampla. Nessa segunda expressão pretende-se demonstrar o quanto a exposição da intimidade dá lugar a um desejo de dar-se ao outro (e com o outro) numa forma de consagração que tudo religa: espaços, pessoas, devoções, ritualizações, territórios.

1. A Morada como Santuário:o Espaço da Auto-ConsagraçãoAs práticas contemporâneas, em sua funcionalidade, escondem, mas não extinguem, relações arcaicas da constituição da morada como espaço sagrado. Uma primeira dimensão dessa morada-santuário se revela na sua constituição como ambiente interior devocional. Adentrar uma casa é reconhecer o cosmos interior que permeia representações estéticas e culturais comuns. E há muito que se examinar e desdo-brar nessas estruturações simbólicas, verdadeiras semióticas construídas num bricolage sobre paredes de taipa. Nesse primeiro âmbito de referências é preciso reconhecer o lugar sagrado da morada como um arcabouço de proteção que envolve a corporeidade e a espiritualidade de seus viventes.

A cultura devocional nesses espaços, assim como a religiosidade do sertão, não se revela jamais como dimensão unicamente transcendental; ao contrário, toda a expressão devocional está ancorada nos objetos sagrados que se enredam nos interiores das moradas e estabelecem a conexão com uma dimensão trans-cendental da espiritualidade religiosa. Os interiores das moradas, com todas as suas variações, são arranjos textuais dessas estruturas que conectam também as forças transcendentes da religiosidade às narrativas pessoais e identitárias de grupos familiais. As imagens e figuras do Sagrado Coração de Jesus, de São José, de Santa Luzia, de Nossa Senhora das Dores, de São Sebastião e do Divino Espírito Santo, dentre tantas outras possíveis representações, estão imbricadas às histórias de vida nas formas de habitar nos interiores do País.

A precariedade dessas moradas se traduz em exuberância estética. É o corpo-casa, o corpo-casca invólucro de crenças, que se desfolha em paredes de reboco, expondo esse alcance do religioso imbricado à constituição das histórias pessoais. Essa morada se revela, então, como um primeiro Santuário, uma espécie de capela incrustada nas pequenas salas que lhes servem de entrada.

A morada-casa-capela é a expressão mais evidente de um universo estético barroco traduzido nos lu-gares remotos do Brasil, justamente por conciliar sua exuberância rústica material com a força de símbolos universais transcendentais (O Cristo, o Bom Jesus, o Rosário, a Cruz, o Sagrado Coração,..), que poderíamos aproximar funcionalmente da noção de “fontes extrínsecas de informação” expressa por Geertz (1989: 68), a estabelecer e regular “padrões culturais”, disposições” e “motivações” no interior de um sistema religioso.

Nesse ponto, cada morada, em seu arranjo e acervo interior, dá acesso a um texto, a uma escritura na qual seus moradores contam e expõem sua histórias permeadas por simbolizações universais. E eles o fazem não como uma forma de exposição de suas vidas, mas, antes, como uma demonstração daquilo que os constituem, suas identidades em processo. Mais do que textos individuais, o que recolhemos é uma escrita sempre perpassada por histórias comuns compartilhadas.

Os mais velhos são os detentores dos acervos que se transmitem e se renovam nesse corpo-casa,

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verdadeiro campo de imantação de referencias. Se, em muitas casas, os traços geracionais presentes em retratos e imagens tendem a desaparecer, assim como a memória das antigas gerações, em outras habi-tações despontam os emblemas dessas simbolizações que as convertem em modalidades ou espécies de museus da vida cotidiana familiar.

A coexistência dessas narrativas pode se realizar num mesmo ambiente ou em espaços contíguos. Em grande parte, a sala dos santos ou quarto dos santos (quando este não é o cômodo de acesso à casa) aparece como lugar de consagração constituído em torno de um altar, que se conjuga a todo ambiente, no qual se ar-ticulam diferentes níveis de representações religiosas. Em sua grande maioria, despontam nesses pequenos santuários as imagens do sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria e, a partir dessas, os santos que sempre revelam uma propriedade de graça e proteção àqueles que o consagram.

Um encontro singular com essa forma de coexistência estética se mostra na casa de Dona Zulmira em Catingueira, Vale do Piancó, Paraíba, em que aparecem muito vivas as expressões do museu familial contíguo à capela barroco-sertaneja, ambos estabelecendo a conformação de um santuário interior.

Seguindo por outros lugares mais remotos, no chão batido das veredas, podemos reconhecer a in-terseção das duas dimensões num só cômodo ou ambiente rústico, revelando também a condição de um mesmo santuário. Nessa interpenetração de estruturas religiosas e narrativas familiais outros elementos se conjugam ao bricolage: calendários ou folhinhas que consagram santos, imagens da Sagrada Família, os santos não oficiais brasileiros como Padre Cícero e Frei Damião, contas por pagar, endereços dos filhos ou parentes que estão distantes, retratos de falecidos, em especial do antigo cônjuge no culto à viuvez, os santos de preferência que remontam a devoções de antigos entes queridos, e ainda, ‘heranças’ de peças que integravam altares de outras famílias, que passam a ser integradas e resguardadas em nova morada. Há também imagens de pessoas conhecidas que não integram a família, mas que, por força de algum acontecimento, traduzem sentimentos e expressões que se conjugam ao arranjo em processo.

Esses murais cotidianos guardam histórias e ficções dos lugares. Recentemente, numa casa na subi-da do Horto em Juazeiro do Norte, atentei para um conjunto de fotos na qual um retrato emoldurado de um padre se mesclava a imagens de pessoas desconhecidas. Sua morte, ‘conta-se’, por não querer celebrar casamento de homem já casado, que o teria então assassinado, motivara sua permanência depois de dé-cadas naquele arranjo de imagens na casa de dona Rosinha.

Esses pequenos casos, como retalhos, conjugam uma compreensão do interior das moradas ser-tanejas como textos inscritos num imaginário maior, como escrituras sempre reconfiguradas a partir de um amplo espectro de narrativas e histórias cotidianas.

Uma vez examinados esses primeiros índices das narrativas visuais nas moradas sertanejas, segui-remos para o enfoque de outro espaço textual, Santuários propriamente ditos, constituídos pelas devo-ções e peregrinações que ali se cumprem, estendendo, em nosso ver, o campo das narrativas que exami-namos nesse primeiro contexto.

2. O Dar-se ao Outro na Mediação do Sagrado: as imagens de ex-Votos.

“É nesses dramas plásticos que os homens atingem sua fé, na medida em que a retratam”(GEERTZ, 1989: 83)

Todo grande Santuário é um espaço de convergência de desejos, aspirações, projeções, afetos e dispo-sições existenciais. O religioso está inscrito em todas essas dimensões na forma de reinscrição de cada

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Fig. 1. Morada na subida do Horto em Juazeiro do Norte. Fig. 2. Padrão estético-religioso recriado no interior de outra morada no mesmo logradouro.

Fonte: fotos do autor

Fig. 3. Dona Zulmira, o entre-espaço das identidades e o museu familial.Fig. 4. O Quarto dos Santos que atravessa gerações.

Fonte: fotos do autor

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Fig. 5. Dona Rosinha, hoje com 94 anos, e o abismo da temporalidade. Na foto, com 24 anos.Fig. 6. O padreFig. 7. Desconhecida

Fonte: fotos do autor

Fig. 8. A subida do sacro-monte.Fig. 9. Fiéis em período de romaria

Fonte: fotos do autorR

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indivíduo num sistema da totalidade. O ponto que nos interessa agora sublinhar é a compreensão dos espaços Santuários como lugares de reinscrição das narrativas singulares configurando algo que poderí-amos descrever como uma escritura múltipla colaborativa, que não deixa de indicar um forte sentido de unidade discursiva. Trata-se de arranjos de ex-votos como imensos bricolages construídos pelas tessituras singulares no complexo das multidões.

Esse grande tecido colaborativo expõe ainda outro componente: o deslocamento de uma reserva de intimidade para um procedimento de dar-se ao outro, com o outro, nas imagens de ex-votos. Desde os retratos 3x4 que tecem imensos mosaicos, até as fotos de famílias inteiras, de casamentos, batizados, viagens, romarias, todos contornados por objetos pessoais, bilhetes e fitas, o que se constata é a inscrição daquele coletivo de indivíduos numa estrutura de proteção inscrita nos Santuários.

Se, no caso das moradas, verificamos a dimensão visual de um narrar a si mesmo, como a querer dar conta do quadro de uma vida inteira, nos Santuários, nos arranjos simbólicos de ex-votos, reconhecemos o quanto cada imagem, enquanto índice narrativo, se inscreve, e, ao mesmo tempo, quase se dissolve, numa textualidade maior, num sistema que a precede e a subordina. No primeiro caso, colhemos as narrativas como textos biográficos articulados às imagens de santos e símbolos extrasensíveis; no segundo caso, o protagonismo é exercido pelo texto que submete as narrativas singulares à sua ampla estrutura de sentido.

Todo o país é pontuado por pequenos e grandes Santuários que abrigam esses arranjos de textos devocionais. Dentre os mais expressivos, no Nordeste do país, destacam-se os de Juazeiro do Norte e Canindé, no Ceará, e os de Bom Jesus da Lapa e Monte Santo, na Bahia.

Em Monte Santo, verdadeiro território mítico sertanejo, formam-se imensas tessituras de ex-votos nas naves laterais da capela do alto da Santa Cruz. No período da Páscoa, em outra recente incursão, acompanhei mais de perto essas simbolizações recolhendo narrativas e expressões individuais que se costuram ao “todo”. Uma destas, em especial, cumpria a devoção a São Jorge e dizia:

Eu, ( ) , andarei vestida e armada com as armas de São Jorge para que meus inimigos tenham pés, mas não me alcancem, tenham mãos mas não me peguem, e que nem em pensamento possam me fazer mal. (...) Andarei protegida com a força e coragem de São Jor (sic) guerreiro. Com a fé nada é impossível. Oração

O bilhete afixado a um colete ortopédico nos indica que a armadura mencionada pela narrativa – a revestir a Oração de São Jorge - caracteriza um grave problema de coluna enfrentado por uma devota guerreira adolescente. Correndo o olhar pela extensão dos signos devocionais, reconhecemos tantos ou-tros escritos em forma de bilhetes: - “obrigado senhor por ter me dado essa graça. Te peço pela saúde da minha família, que a cura a meu pai... só tenho que te agradecer”.

Se examinássemos apenas essas estruturas de textos-bilhetes, já reconheceríamos uma série dentre tantas outras a integrar a unidade maior de um grande texto. Mas há outros índices, como já aludimos – retratos, santos, fitas, vestimentas, casinholas – todos, de algum modo, objetos consagrados que se mesclam nesses construtos a invocar a proteção divina naqueles espaços-santuários.

Todo esse composto de imagens e escritos é lido e reconhecido pelos romeiros e passantes que adentram esses espaços. É nesse momento que o dar-se à expectação do outro pela mediação do sagrado se revela como uma comunhão de votos, de olhares e reciprocidades, pois, em alguns casos, aquele que lê é também aquele que deposita sua promessa, seu pedido, seu agradecimento na forma de uma expo-sição e demonstração de sua própria intimidade. Nessa condição, estes mesmos fiéis, aportando objetos os mais corriqueiros, então revestidos de uma dimensão mágica e aurética, passam cuidadosamente a

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percorrer o local, como a querer escolher o entre-espaço mais adequado para que seu índice devocional e narrativo (inscrito naquele ex-voto) se concilie à estrutura maior do texto sempre em (re)construção. E então, silenciosamente, ali depositam seus ex-votos.

Há, também, em muitos desses espaços, arrumadores de ex-votos, pessoas que se encarregam de ar-rumar e dispor esses objetos ao modo de curadores informais de instalações religiosas. Entretanto, mesmo sob um maior imperativo de ordenação e classificação dessa mediação estética, a força do texto não deixa de exercer seu predomínio estrutural sobre qualquer particularidade.

O pesquisador que adentra esses Santuários e percorre essas estruturas de sentido, toma-se também pelo ethos que envolve essas devoções. Em certa medida torna-se também um romeiro, senão daquelas crenças, ao menos dos afetos que ali se enredam, pois, como não se deixar tomar pelo contágio emocional naqueles contextos? Há um compartilhar de experiências naquela fenomenologia dos encontros que nos chega como sinal de respeito e cuidado diante das estruturas de simbolização que deparamos. Por isso, não há o que se vasculhar naqueles espaços, não há propriamente intimidades a devassar, mas, de outro modo, o fruir de uma experiência de deixar-se reescrever pelos “textos” que recolhemos como traços impressos na humana travessia do existir.

ConclusãoÉ fato que o sertão se transmuta ou se modifica, mas, ao mesmo tempo, suas condições de expressão estão aí sempre manifestas no próprio curso das tradições e na forma viva da linguagem. O filósofo Gadamer (2012: 504) nos auxilia a tratar essa questão quando distingue a noção de tradição das ideias de “resíduo” ou de “vestígio do passado”.

Desse modo, o sertão que nos chega e nos conduz a este ensaio não é o resíduo de um espaço ou de um tempo extintos, mas, ao contrário, o desdobrar de modos de viver que expõem o campo de visões e sentidos da realidade: em uma palavra, a conformação ampliada e dinâmica de um ethos.

Nas configurações que tratamos, examinamos uma dimensão fundamental de um ethos a envolver a vida sertaneja: o espaço entre o habitar e o devotar, inteiramente entrelaçados nas relações entre mo-rada e santuário. O habitar é a primeira dimensão desse ethos que, curiosamente, nos devolve à própria

Fig. 10. Ex-votos tomam o espaço das naves da Capela da Santa Cruz (Monte Santo).Figs. 11 e 12. Detalhes de imagens ex-votosFonte: fotos do autor

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etimologia do ethos grego – o modo como nos situamos ou nos constituímos no mundo a partir do que somos, enquanto “morada”. É nesse espaço que as identidades se mostram naquilo que os moradores nar-ram deles mesmos nas imagens dispostas nas paredes, entrelaçando traços biográficos às formas devoção dos símbolos universais.

Os traços identitários que envolvem a morada se projetam então nos santuários como extensão das narrativas biográficas na conformação de um imenso texto. Nesse outro âmbito da devoção, a exposição das imagens se opera de outra forma, pois, a princípio, imagens-objetos livremente lançados nesses es-paços implicariam numa inequívoca exposição da intimidade. Que componentes nos indicariam outra forma de referenciação para aquelas imagens?

Imagens ex-votos não aparecem isoladas, mas cumprem a função de estender e prolongar a estru-tura devocional daqueles arranjos simbólicos. É justamente a mediação ou conexão do Sagrado, o fato de os objetos se consagrarem a um pedido ou a uma aliança pelo seu atendimento divino, que retira deles, em especial as inúmeras variações de fotos em que se distinguem as pessoas, seu caráter de exposição de intimidade, principalmente à vista do outro, daquele que se depara com as imagens-objetos ali expostas. Fora daquele contexto específico não seria cabível a suspenção desse sentido de exposição.

Para além de uma dimensão estritamente religiosa, o que vemos nessas estruturas simbólicas é o prolongamento do ethos como inscrição de uma casa comum entremeada de desejos, histórias e sonhos, continuamente a reeditar o senso prático-religioso de uma coletividade.

Descrevemos neste artigo dois modos de estruturação simbólica e duas formas de referenciação de si: um primeiro termo em que as identidades se fixam no narrar-se a si mesmas no interior das moradas, e um segundo, que expõe o caráter amplo e provisório das histórias visuais que se conectam no interior de grandes Santuários do país.

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“Pé de Deus”, hoje gravura, ontem efeito das intempéries

The “Pé-de-Deus” (“Foot-of-God”) engraving in Oeiras, Piauí, Brazil

Luana Campos* & Cristiane de Andrade Buco**

*brasil, doutoranda da universidade de trás-os-montes e alto douro (utad), unidade de arqueologia - utad. grupo de quaternário e Pré-história do centro de geociências - coimbra. granteholder of caPes (brazil). e-mail: [email protected]

**brasil, doutora em arqueologia universidade de trás-os-montes e alto douro (utad)/universidade de s. Paulo (usP), investigadora da fumdham (brasil) e da unidade de arqueologia da utad (Portugal), arqueóloga do iPhan (superintendência do ceará).e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 03 de junhoe aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Conhecida localmente pela inspiração religio-sa que leva a devoção na sua forma mais sincera, a gra-vura localizada na cidade de Oeiras, Piauí, denominada “Pé-de-Deus” (acompanhada do pé do cão, ou capeta) não é o único símbolo atribuído às comunidades indíge-nas ou pré-históricas que, dentro das comunidades atu-ais, ganham novos sentidos e valoração por parte da co-munidade na qual se insere. Repletas de lendas e contos religiosos, estes locais tomam uma proporção cultural na forma de expressão religiosa que vai além do seu va-lor material ou científico.O que por um lado fortifica a expressividade cultural deste grupo, por outro dificulta uma abordagem científica do objeto. Mas até onde a ci-ência tem o direito de intervir na fé e na cultura popular?Palavras chave: Cultura popular / Património / Arte rupestre / Intemperismo.

Abstract: Known locally for religious inspiration that leads to devotion in its sincerest form, the picture located in Oeiras, Piauí, called “Foot-of-God” (accompanied by the dog leg, or devil) is not the only symbol assigned to indigenous and pre-historic communities, within current communities, acquired new meanings and valuation by the community in which it operates. Full of legends and religious tales, these sites take a cultural proportion as religious expression that goes beyond its material value or scientific value. One hand strengthens the cultural expression of this group, on the other hinders a scientific approach to the object. But how far science has the right to intervene in faith and popular culture?Keywords: Popular Culture / Heritage / Rock Art /Weathering.

Do Que Se Trata?Cada vez mais, observamos a preocupação de uma visão alargada das questões que relacionam o homem e seu meio. Tornando-se indissolúvel a necessidade de uma abordagem do conhecimento científico associado à cultura. Neste sentido este presente artigo demonstra a relação de complemento que o estudo da geoquí-mica pode dar à contextualização cultural do fenómeno conhecido como Pé-de-Deus (ou Pegada de Deus).

O objeto de análise localiza-se na cidade de Oeiras no estado do Piauí, Nordeste do Brasil. E, trata--se de uma local considerado como religioso pela população local que realiza anualmente, durante a semana Santa, uma procissão onde se encontra uma gravura em forma de um pé, segundo a devoção local: “Acredita-se que quando Cristo veio ao mundo, aqui deixou o rastro petrificado de seus passos. O Tinhoso, sempre em seu encalce, também deixou, ao lado, sua marca redonda.” Carlos Rubem Campos Reis (Presidente da FNT - Fundação Noqueira Tapety)

O Tinhoso, capeta ou o cão, denominações populares para diabo, também deixou a sua marca, mas ninguém pode vê-la, pois são jogadas pedras sobre o mesmo e a cada dia, o monte de pedras cresce. Em frente ao Pé de Deus, levantou-se uma cruz de pedra, onde são depositadas flores e acendem-se velas.

As imagens localizam-se no bairro Rosário, num enorme lajedo, “o qual nem beijos piedosos, nem as

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chuvas do inverno conseguiram apagar”, na descrição poética do escritor O. G. Rego de Carvalho (1987). O local é apontado como um dos pontos turístico da cidade de Oeiras, uma das cidades mais re-

ligiosas do estado do Piauí. É um dos pontos de peregrinação de fiéis em função das festas religiosas da Semana Santa, Festejos do Divino Espirito Santo, Festejos de N.S Da vitoria e as Festas Juninas que são realizadas anualmente na cidade.

O comercio, por sua vez aproveita-se destas atrações turísticas para se desenvolver em torno do mesmo com a realização de feiras tradicionais e a venda de produtos artesanais.

A importância dada pela comunidade à imagem esculpida no “lajedo” levou a visita de diferentes pesquisadores na tentativa de compreender as diferentes vertentes que envolve esta manifestação religiosa.

1. A Proteção LegalDo ponto de vista legal a proteção do local de peregrinação conhecido com Pé-de-Deus encontra-se numa margem singular. Pois, segundo a legislação brasileira pode decorrer nos seguintes âmbitos:

– Municipal, onde a preservação é feita pelo governo municipal a partir de lei promulgada pela legis-lação municipal, na grande maioria das vezes, voltada aos interesses desse órgão;

– Estadual, que, em se tratando do estado do Piauí, o tombamento fica sobre a responsabilidade da FUNDAC - Fundação Cultural do Piauí, nos critérios da Lei Nº 4.515 de 09 de novembro de 1992, que se aplica a bens históricos, arquitetônicos, ambientais, naturais, paisagísticos, arqueológicos, museológicos, etnográficos, arquivísticos, bibliográficos, documentais ou quaisquer outros de inte-resse das demais artes ou ciências;

– Federal, havendo elementos que permitam identificar como vestígios da cultura material, o mesmo pode ser classificado como sítio arqueológico, passando a ser imediatamente considerado patri-mônio da nação brasileira através da   Lei nº 3.924/61 e, qualquer ato contra ele pode ser visto como crime respaldado pela legislação. Ou, como expoente da cultura imaterial, onde se enquadra quatro categorias: Saberes, forma de expressão, celebração e lugares. (Decreto nº 3551/00) [Neste último caso, seria necessário o tombamento do bem, que coloca o mesmo sobre a tutela pública, sendo efetivado por meio de ato administrativo, cuja competência no Brasil é atribuída pelo

Fig. 1. Monte de pedras cobrindo a pegada do Cão, Riacho Pouca Vergonha, Oeiras – PI (Fonte: Própria)

Fig. 2. Pé de Deus, gravura em forma de pegada, Riacho Pouca Vergonha, Oeiras – PI (Fonte: Própria)

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Decreto Nº. 25, de 30 de novembro de 1937, com o registro instituído Decreto 3.551/2000 (MINC./IPHAN:2006)].

Visto as diferentes potencialidades de meio legais de proteção deste património, cabe compreender em qual destas categorias pertence o Pé-de-Deus.

2. Ontem IntemperismoO caso do “Pé-de-Deus” é um caso emblemático para o estudo da atribuição cientifica versus a apropria-ção da comunidade, uma vez que questiona a veracidade deste quanto obra humana, podendo ser uma forma natural, porém hoje é uma gravura rupestre inserida num contexto religioso.

Segundo relatos locais, ela é constantemente alterada devido o fato de que os fiéis raspam o interior do pé para fazer remédio.

A análise do local, dentro de uma possibilidade de gravura natural, parte do entendimento quanto resultado do intemperismo desta figura, que pode ser observado a partir do suporte da mesma, identifi-cado como arenítico, como veremos a frente.

Num análise geológica, o município de Oeiras localiza-se sobre rochas da Era Paleozóica definida como (Dep2p) do período Devónico classificado como Formação Pimenteiras e caracterizada pela exis-tência de arenito, siltitos e folhelhos.

A primeira consideração para uma análise do suporte desta “gravura” é que as tafocenoses da For-mação Pimenteira têm sido caracterizadas como erráticas e relacionadas principalmente aos arenitos. (Oliveira Ponciano et al, 2011)

“Hoje em dia, é consenso que os processos tafonômicos modificam de diversas formas a composição e a distribuição espacial e temporal das comunidades, dificultando correlações diretas entre as tafocenoses e o paleoambiente habitado pelas biocenoses que as originaram, como é o caso dos depósitos da Formação Pimenteira. “ (Oliveira Ponciano et al, 2011)

Porém, o processo observado no local não é atribuído exclusivamente as ações tafonómicas ca-racterísticas do intemperismo, trata-se também da atuação conjunta entre a formação intempérica e a ação antrópica, resultado da Seleção do “olhar” que alterou uma forma amorfa para algo compreensível.

Se, a referida gravura fosse abordada apenas na sua forma natural teríamos diversos indícios para afir-mar que os processos tafónicos implicaram significativamente na formação da mesma. Pois, o seu suporte é composto por grãos de quartzo, com quantidades variáveis de pequenos fragmento líticos, feldspatos e argilas que propicia a desagregação do acumulado em pequenos blocos que se alteram com o processo de abrasão.

O quartzo, por exemplo, é altamente resistente ao intemperismo químico, assim o ataque químico fica restrito no cimento da rocha (Spoladore, 2009), facilitando a formação de erosão com formas que, por vezes, são reconhecidas pela mente humana.

Na tentativa de atribuir os processos sofridos pelo suporte podemos classificar dois tipos principais de intemperismo: a desintegração mecânica e a decomposição química.

Quando aos processos mecânicos, os estudos geológicos apontam o congelamento (expansão do gelo) como um dos tipo mais importante de intemperismo (Caetano, 2012). Contudo, considerando a posição geográfica do local de estudo, está hipótese é descartada, sendo no contexto a sazonalidade de precipitação um dos fatores mais relevantes.

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Em se tratando do intemperismo químico, apontamos: a oxidação, a dissolução e a hidrólise, como principais agentes.

É preciso considerar também, que os fatores físicos influenciam diretamente o grau de atuação dos processos químicos, pois as juntas ou fraturas facilitam o intemperismo, permitindo que a água e gases da atmosfera ataquem as rochas em profundidades consideráveis. As diáclases também aumentam a área superficial onde ocorrerá o ataque químico.

O produto final do intemperismo seria o solo, caso não houvesse as intervenções de impermeabi-lizantes sobre o suporte, que no caso da gravura “Pé de Deus” pode ser atribuída a cera derretida sobre o local, advindo das velas oferecidas no local.

Além da relações físico-químicas para a atribuição das ações de intemperismo, o clima também aparece como um fator de influencia ao tipo e taxa de intemperismo. Os dois fatores principais que controlam o clima são a temperatura e a precipitação. Que, em se tratando da região nordeste do Brasil com seu clima tropical semi-árido colabora no processo de desplacamento das rochas sedimentares. Ou seja, A contração e expansão termal da rocha causada pela variação diária ou sazonal da temperatura é um processo bastante efetivo (Spoladore, 2009).

Finalizando está breve análise geoquímica do suporte da rocha onde se encontra a gravura e os pro-cessos que seriam responsáveis pela atribuição inicial da forma que é hoje conhecida como Pé-de-Deus, podemos afirmar que a alta taxa de alteração intempérica é calculada pela razão entre:

– o clima predominante; – os componentes minerais da rocha; – a quantidade de superfície de rocha exposta à atmosfera.

3. Hoje Monumento de Fé (contexto cultural)O Pé de Deus e Pé do Diabo, segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís da Camara Cascudo (2002: 500) são definidos da seguinte maneira: “em Oeiras, Piauí, há uma laje com a impressão de um pé, direito e perfeito, e próximo, uma pegada torta e feia. Dizem que a primeira é o pé de Deus, e cobrem-na de flores. A outra é o pé do diabo, e depositam espinhos (Informação do folclorista cearense Neri Amelo, em 30 de agosto de 1949)”. Esse caso é único em todo o Brasil em que aparece lado a lado os dois pés.

Sabe-se da existência dos sítios arqueológicos no Brasil desde o século XVI. O padre jesuíta Manuel da Nóbrega, informou em duas cartas escritas em 1549 para o seu superior e para os padres da província de Coimbra, em Portugal, conhecer a representação de pegadas (gravuras rupestres) na costa brasileira. Essas pegadas foram identificadas em dois locais, na Bahia e em São Vicente, litoral de São Paulo, e, se-gundo os indígenas, eram atribuídas a Zomé, interpretado como São Tomé, o Santo Peregrino, que havia passado por cima das pedras deixando assinaladas as suas pegadas (Vasconcellos, 1865).

Essas gravuras serviam como estratégia para a propagação da fé, por exemplo, quando gravuras com a forma de pequenos pés eram vistas passavam a ser pegadas do menino Jesus. Ao atribuir novos significados, independente do significado conhecido de quem as fez (ou não), o imaginário mitológico das comunidades indígenas, na ótica de uma nova cultura, oriunda do “homem civilizado”, ganha novos sentidos e valoração por parte da comunidade a qual se insere. Repletas de lendas e contos religiosos, estes locais tomam uma proporção cultural na forma de expressão religiosa que vai muito além do seu valor material ou científico. O que por um lado fortifica a expressividade cultural deste grupo, por outro dificulta uma abordagem científica do objecto.

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Por exemplo, qual seria a reação dessa comunidade se resolvessemos retirar todas as pedras que cobrem o pé do cão para averiguar sua forma, sua natureza, enfim sua veracidade?

Considerações finais Como dissemos anteriormente, cada vez mais, observamos a preocupação de uma visão alargada das questões que relacionam o homem e seu meio, tornando-se indissolúvel a necessidade de uma aborda-gem do conhecimento científico associado à cultura. Resta saber, qual a predisposição dos pesquisadores de abrirem mão das suas certezas em prol do respeito e da liberdade de expressão de cada indivíduo, independente do grupo cultural ao qual pertence.

Enfim, até onde a ciência tem o direito de intervir na fé e na cultura popular?

Fig. 3. Em detalhe a “Pegada de Deus”, Riacho Pouca Vergonha, Oeiras – PI. Fonte: CORREIA 1992:94 apud CAVALCANTE 2002:134.

Referências BibliográficasBuco, C. A. (2012). Arqueologia do Movimento. Relações

entre Arte Rupestre, Arqueologia e Meio Ambiente, da Pré-história aos dias atuais, no Vale da Serra Branca. Parque Nacional Serra da Capivara, Piauí, Brasil (Tese de Doutoramento). 587p. Vila Real: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, UTAD.

Caetano, D. (2012) Intemperismo: processos que mol-dam a superfície. In: Geologia para Engenharia Civil. <http://www.caetano.eng.br/aulas/2012a/gec/gec_aula10.pdf> consultado em 09/03/13.

Cascudo, L.da C. (2002). Dicionário do Folclore Brasilei-ro. 768p. São Paulo: Global Editora.

Cavalcante, T. L. V. (2008). As pegadas de São Tomé: Ressignificações de Sítios Rupestres. Revista de Arqueologia, 21(2): 121-137.

MINC./IPHAN (2006) Patrimônio Imaterial: O registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das ativida-des da Comissão e do Grupo de Trabalho Patri-mônio Imaterial. Brasília: Ministério da Cultura /Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 4 ed.

Oliveira Ponciano, L. C. M.; Ferreira de Castro, A. R. S.;

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Rego de Carvalho, O. G. (1987) Rio Subterrânio. Rio de Janeiro: Editora Vozes.

Spoladore, A. (2009) Fundamentos de Geologia. DGEO/ UEL. consultado em 04/03/13 http://www.ooci-ties.org/fundamentos_geologia/.

Vasconcellos, S. de. (1865). CHRONICA da Companhia de Jesu do Estado do Brasil. E do que obraram seus filhos nesta parte do Novo Mundo. Em que se trata da entrada da Companhia de Jesu nas partes do Brasil, dos fundamentos que n’ellas lançaram e continuaram seus religiosos, e algumas noticias antecedentes, Curiosas e necessarias das cousas d’aquelle estado. 339p. [Segunda edição correcta e augumentada]. Lisboa: Casa do Editôr A. J. Fernandes Lopes

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O culto e devoção à virgem mártir santa Eufémia no seu santuário em Penedono

The worship and devotion to the holy virgin martyr Euphemia in his sanctuary in Penedono

Luciano Moreira*

*Portugal, Licenciado em teologia pela universidade católica de Lisboa, Licenciado em história na faculdade de Letras da universidade de coimbra e mestrando em história na faculdade de Letras da universidade de coimbra, reitor do santuário da virgem mártir santa eufémia de Penedono e pároco de Penedono. e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 28 de maio e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Este artigo pretende apresentar o culto e de-voção à virgem mártir santa Eufémia pelos milhares de devotos que a visitam no seu santuário em Penedono e a sua evolução ao longo dos séculos.Palavras chave: Santa Eufémia / Penedono / culto / devoção / peregrinações / pagamento de promessas.

Abstract: This article aims to present the cult and de-votion to the holy virgin martyr Euphemia by thousands of devotees who visit the shrine in his Penedono and its evolution over the centuries.Keywords: St. Euphemia / Penedono / worship / devotion / pilgrimages / pay promises.

1. IntroduçãoA primitiva capela dedicada a santa Eufémia, virgem e mártir em Penedono foi construída nos inícios do século XVI. O seu culto rapidamente se estendeu pelas gentes da Beira e do Douro, de modo que em 1758, segundo o relato das memórias paroquiais era já “esta sagrada imagem de uma das maiores devoções que há nestas vizinhanças, por quanto em todo o circuito do ano há muita concorrência de romagem de freguesias muito distantes e remotas, aonde todo o género de males por virtude da mesma santa se extin-guem… servindo de terno brasão de toda esta vila ou para melhor dizer de toda esta província e bispado”. …” (Memórias Paroquiais Volume 28, nº 114ª: 767).

A capela teve vários aumentos até à sua construção definitiva em meados do século XIX. A sua ad-ministração sempre esteve ligada à paróquia de São Salvador de Penedono, tendo passado em 1912 para a Junta de Paróquia de Penedono, mais tarde Junta de Freguesia, até que em 1938 voltou para a posse da Fábrica da Igreja Paroquial de Penedono. Em 1955, o bispo de Lamego D. João da Silva Campos Neves, promulga um decreto de ereção de santuário, à capela de santa Eufémia e ao seu espaço envolvente, sendo em Portugal, um dos 3 santuários dedicados a esta virgem mártir (Moreira 2012: 17-29).

1.1 – O culto e devoção e o pagamento das promessasJá desde meados do século XVII, que o culto a santa Eufémia em Penedono, está enraizado nos cristãos sen-do já conhecido a nível nacional (Cardoso 1657: 548). É certo que os tempos mudam, mas podemos afirmar que o culto a santa Eufémia continua a estar presente no coração e na devoção das gentes da Beira-Douro.

O “pagamento da promessa” é uma das razões que traz tantos peregrinos ao santuário não só nos dias de romaria, mas ao longo de todo o ano. Ela expressa a gratidão que o devoto de santa Eufémia tem para com ela, pela graça ou graças recebidas por seu intermédio.

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O pagamento da promessa é a primeira ação realizada ao chegar ao santuário, pelos peregrinos de santa Eufémia. Normalmente consiste em fazer romaria em volta da capela (a pé ou de joelhos), por norma 3 ou mais voltas conforme a promessa, numa atitude de oração, muitas vezes rezando o terço e só no fim é que entra na capela. Algumas vezes, os devotos de santa Eufémia fazem o percurso da romaria com uma réplica na mão em cera representativa de algum órgão do corpo humano que esteve doente. Até há bem pouco tempo também eram usadas réplicas feitas em tecido, que eram enchidas com cereais e oferecidas a santa Eufémia.

A romaria termina com as chamadas “3 voltas por dentro”, ou seja, passar por detrás do altar-mor da capela e, por fim pagar a promessa, seja em dinheiro, cera, cereais, cravos ou doutra forma. O pagamento da promessa implica quase sempre um esforço físico (vir a pé da sua povoação, fazer romaria de joelhos, etc.) e uma dávida material (oferta de dinheiro, ouro, flores, cera, etc.).

As promessas ou pedidos a santa Eufémia podem ser feitas pelos próprios devotos em prol de si mesmos ou feitos em favor de outros, pedindo auxílio para um familiar ou amigo. Da mesma forma, as promessas são cumpridas individualmente ou em conjunto, por norma em família.

As promessas, também podem incluir a participação na eucaristia na capela do santuário ou o pedido para celebrar eucaristias a santa Eufémia em ação de graças, agradecendo os benefícios recebidos por seu in-termédio. Outras promessas podem incluir, uma participação ativa nas procissões das romarias, carregando o andor de santa Eufémia, ou percorrendo o itinerário ao lado do andor, muitas vezes com os pés descalços.

No passado recente, algumas das promessas que eram feitas incluíam deixar na capela as “mortalhas … como troféus memoráveis da morte, em tantos conflitos destroçada, testemunham-no tantas muletas pen-duradas, como padrões imortais do movimento em tantos aleijados e paralíticos restituídos; comprovam-no os inumeráveis enfermos de todos os achaques.” (Memórias Paroquiais Volume 28, nº 114a, p. 767-768). Até meados do século XX havia ainda a tradição de vir à romaria de santa Eufémia trazendo vestido a roupa que estava destinada para o funeral como forma de pagar as promessas. Eram as chamadas mortalhas, mas as pessoas que tendo recorrido a santa Eufémia tinham encontrado a perfeita saúde, vinham entregar essas mesmas mortalhas na capela. Quando estas promessas eram feitas por intenções de crianças, estas vinham por norma vestidas de anjinhos. Outra forma de pagar essas promessas era mandar pintar em tabuinhas a narração das graças recebidas por intermédio de santa Eufémia, gravando para a posteridade esses milagres. Na capela de santa Eufémia, ainda podem ser encontrados cerca de 7 ex-votos.

Num passado recente, o culto a santa Eufémia também remetia para o ciclo agrícola. Em quinta--feira da Ascensão os rebanhos eram benzidos, os pastores ofereciam cordeiros e os agricultores cereais, em tributo à “Santa” pelas graças por ela alcançadas. Santa Eufémia, sendo invocada como protetora para doenças de pele, normalmente os “cravos” que nascem nas mãos, era também invocada em momentos de aflição nas mais diversas situações negativas da vida, quer dos homens, quer dos animais, como o provam a serie dos ex-votos expostos na capela. O declínio do cultivo dos cereais e da criação de animais fez mudar certas características do culto.

O culto hoje está mais vocacionado para a manutenção da saúde física e psíquica do corpo. Damos conta desta mudança, pela natureza das promessas feitas na atualidade a santa Eufémia pelos seus devo-tos, que a ela recorrem e se aclamam, procurando sobretudo amparo nas doenças cancerosas e de pele.

Outra transformação que se deu foi a monetarização das ofertas no cumprimento das promessas em detrimento dos pagamentos em dor e das ofertas em géneros agrícolas, como trigo e centeio ou até mesmo linho, no caso de serem devotos mais abastados, embora ainda sejam ofertadas as chamadas “luvas de trigo”, quando a promessa é feita a pedir o desaparecimento dos “cravos” nas mãos. Atualmente, o devoto de

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santa Eufémia prefere oferecer em cera a parte ou partes do corpo que estava doente e que por seu inter-médio foi curada ou fazer a sua oferta em dinheiro. A oferta de objetos em ouro, como pulseiras, brincos, cordões, ou outros objetos, muito popular na segunda metade do século XX, tem caído em desuso. Hoje está também em uso a oferta de flores, seja para os arranjos dos altares da capela seja para o andor de santa Eufémia em dias de festa.

Outro foco de atracão, dos peregrinos ao santuário de santa Eufémia, é a feira anual que se faz nos dias 15 e 16 de Setembro. Ela representa a união que existe entre o sagrado e o profano.

Ficando Penedono na zona de transição entre as regiões do Douro e da Beira-Alta, a feira de santa Eufémia, foi durante séculos, lugar de troca de produtos agrícolas por parte dos agricultores das duas regiões. Temos de realçar, que ela se realiza numa época em que terminam as colheitas e os trabalhos de Verão e se iniciam as colheitas e os trabalhos de Outono. Atualmente, a feira já não serve tanto para a troca destes produtos, dada a crise em que vive a nossa agricultura.

Outro fator importante para a feira ser tão popular era o facto, de que por norma a abertura do ano escolar, isto já durante o século XX, se iniciar depois dos dias 15 ou 16 de Setembro. A feira de santa Eufémia era onde muitos pais vinham comprar as roupas novas para os seus filhos levarem para a escola. Este ritual tem-se perdido dada a baixa natalidade da nossa região e a substituição das compras escolares feitas na feira pelos grandes centros comerciais e do uso generalizado das roupas de marca.

Os frequentadores da feira de santa Eufémia dos tempos atuais, já não vêm à feira com o intuito de comprarem utensílios agrícolas para a época das vindimas que se aproxima ou sementes para as se-menteiras de Outono e de Inverno. Vêm pela tradição de à noite comerem as fêveras ou da “marrã” nas barracas de comes e bebes, pela súcia que se faz com a família e os amigos, para verem o fogo-de-artifício e escutarem as bandas filarmónicas, e claro, pela fé e crença em santa Eufémia.

A feira de santa Eufémia em Penedono, tal como acontece noutros locais em Portugal onde à romaria se junta a feira, tem por tradição, os romeiros comerem carne de porco. Tal tradição compreende-se, visto que em tempos mais longínquos, era apenas nos meses de inverno que as famílias faziam a “matança” do porco. Comer carne fresca em Setembro era um privilégio quase único da feira de santa Eufémia. Por detrás deste costume, florescia um incentivo económico para muitas famílias, que apesar de não serem feirantes a tempo inteiro, nos dias da feira de santa Eufémia montavam as suas barracas e nela vendiam a famosa mar-rã, a que se juntava o vinho, os doces, o café e o chá, ganhando assim um extra para o sustento da família.

1.2 – As peregrinações e romarias É nos dias 15 e 16 de Setembro que a romaria da virgem mártir santa Eufémia atrai mais devotos ao santuário, vindos dos quatros cantos da diocese de Lamego e das dioceses vizinhas. Podemos afirmar que esta é a romaria das gentes do Douro e da Serra, uma vez que o santuário fica muito perto da transição da Beira com o Douro. Vêm peregrinos sobretudo dos concelhos de São João da Pesqueira, Vila Nova de Foz Côa, Mêda, Carrazeda de Ansiães, Alijó (Douro), Sernancelhe, Trancoso, Pinhel, Aguiar da Beira e Moimenta da Beira (Beira).

A grande romaria dos dias 15 e 16 de Setembro tem sido precedida nas últimas 3 décadas de uma novena na capela do santuário, que se inicia no dia 7 e termina dia 15 de Setembro, e que consta da cele-bração da eucaristia com sermão, oração das vésperas dos mártires, meditação da via-sacra ou do terço.

O dia 15 começa com a chegada dos feirantes, que se instalam no largo da feira com as suas barracas. Ao início da noite é celebrada eucaristia campal com pregação no palco do grande patamar inferior à capela, acompanhada por uma banda filarmónica. Esta no final da eucaristia, depois da imagem de santa Eufémia ter recolhido à capela do santuário, onde os peregrinos fazem a sua romaria em volta do

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Fig. 1. Fotografia de Luciano Augusto Moreira, Vista geral da capela do Santuário de Santa Eufémia, Penedono. (2013)Fig. 2. Fotografia de Luciano Augusto Moreira, Vista do interior da capela do Santuário de Santa Eufémia, Penedono. (2014)Fig. 3. Fotografia de Luciano Augusto Moreira, Ex-voto à Virgem Mártir Santa Eufémia – Capela de Santa Eufémia, Penedono (2014)

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altar da mártir e pagam as suas promessas, dá sempre um grande concerto, para os milhares de romeiros presentes na esplanada.

Até alguns anos atrás, o concerto da noite era sempre feito com duas bandas, que tocavam até altas horas da noite, sucessivamente numa constante disputa, para verem qual era a que agradava mais aos romeiros, que esperavam ansiosamente pelo fogo-de-artifício.

O resto da noite é passado numa constante animação, na zona da feira, onde se vai comendo e bebendo ao som das concertinas e dos cantares ao desafio.

O dia 16 inicia-se bem cedo; uma salva de morteiros anuncia a chegada dos peregrinos vindos a pé e das gentes que vêm pagar as suas promessas e fazer as compras na feira, preparando-se assim para as épocas de trabalho que se aproximam; as vindimas, a apanha da castanha e as sementeiras de inverno.

No começo da manhã, celebra-se novamente eucaristia campal com pregação no palco do grande patamar e no final, enquanto a banda oferece um concerto aos peregrinos na esplanada, os sacerdotes atendem em confissão os peregrinos na capela e na casa do ermitão.

Ao início da tarde, volta a celebrar-se eucaristia campal, no grande patamar, sendo esta normal-mente presidida pelo bispo da diocese de Lamego. Terminada a eucaristia, inicia-se a triunfal procissão com o andor da milagrosa santa Eufémia e outras imagens em volta do santuário.

É um dos momentos mais esperados pelos romeiros, que a acompanham com muita fé e devoção, até entrar novamente na capela. Grande parte das imagens dos santos, que se encontram na matriz e capelas da vila de Penedono, integram também a procissão com os seus andores enfeitados a preceito com flores naturais. Santa Eufémia, no seu andor, é a última da procissão, seguindo-se os sacerdotes e a banda filarmónica que a soleniza.

Todos os anos na segunda-feira de Páscoa e no domingo da Ascensão, faz-se romaria no santuário, com celebração da eucaristia e procissão.

Num passado bem recente, a romaria de segunda-feira de Páscoa e de quinta-feira da Ascensão era marcada com a visita dos pastores ao santuário, que com os seus rebanhos faziam romaria em volta da

Fig. 4. Fotografia de Diana Palheiro, Pagamento das promessas à Virgem Mártir Santa Eufémia - Capela de Santa Eufémia, Penedono (2013)

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capela, como já foi referido. Esta tradição infelizmente perdeu-se com o desaparecimento dos rebanhos. Ultimamente, tem-se feito uma peregrinação no mês de Agosto para os emigrantes, uma vez que

normalmente estes já não podem estar nos dias 15 e 16 de Setembro.Durante o ano são várias as atividades que se fazem no santuário, desde a meditação da via-sacra

durante a quaresma, à celebração de casamentos e batizados, tal como retiros ou encontros dos mais diversos movimentos ou associações.

Diariamente, encontramos peregrinos no santuário, sejam as gentes de Penedono ou do concelho, ou vindas de todo o país, em grupos ou individualmente, seja para rezarem e pedirem graças e auxilio à virgem mártir, seja para pagarem as suas promessas e agradeceram as graças recebidas, seja para descan-sarem e comerem nos parques à sombra das majestosas árvores ou até levarem para suas casas a límpida e sempre fresca água que jorra nas fontes do santuário (Moreira, 2012: 52-60).

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Uma Paisagem Sagrada: as cubas da “kûra” de Beja

A Sacred Landscape: The Cubas from the Kûra of Beja

Luís Ferro*

*Portugal, arquitecto, universidade do Porto, faculdade de arquitectura, Programa de doutoramento em arquitectura (Pda|fauP). universidade de évora, centro de história da arte e investigação artística (chaia|ué). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 31 de maio e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Esta investigação tem por objectos de estudo as pequenas contruções fúnebres com cúpulas cor de car, comummente denominadas por cubas, que se lo-calizam na “kûra” de Beja. Apesar de se estimar a exis-tência de cerca de uma centena de cubas na “kûra” de Beja, pouco se sabe sobre estes edifícios, sobre os quais persistem as seguintes questões: qual era a utilização das cubas? Quando foram construídas? De onde pro-vem a origem da sua tipologia arquitectónica?Palavras chave: Cubas / Arquitectura Religiosa Is-lâmica / Arquitectura Funerária / Paisagem do Sul da Península Ibérica.

Abstract: The purpose of this paper is to study the cubas – small constructions known for their domes painted with whitewash – specifically those located in the “kûra” of Beja in Portugal. Although we can pinpoint the existence of many of these buildings in the Beja territorial area, many questions remain about them, such as: What was the purpose of the cubas? When were they built? What is their origin?Keywords: Cubas / Religious Islamic architecture / Funer-ary architecture / South Iberian landscape.

IntroduçãoA cúpula é o elemento que atribui singularidade e identidade às cubas. Por ironia do destino, em língua portuguesa, a palavra “cuba” resulta da evolução semântica da palavra árabe “qubbâ” e da palavra latina “cupa”, que significam “cúpula” (Gonçalves 1964: 13; Goulart 1985: 200; Carreteiro 1997: 7; Martos 1994: 13; Rei 2000: 202, Corriente 1986: 604), o que demonstra que a utilização da cúpula corresponde a uma profunda questão identitária e não apenas à mera necessidade de encerrar estas construções ao céu. To-davia, do ponto de vista arquitectónico, a principal característica das cubas é a sobreposição da cúpula com um cubo, por outras palavras: de um círculo sobre um quadrado.

De modo a desenvolver um tratamento pormenorizado do tema e dos monumentos referenciados, esta investigação centra-se no estudo da arquitectura das cubas localizadas na “kûra” de Beja, que corres-ponde ao perímetro administrativo da cidade durante o período de domínio muçulmano (Macías 2005; Rei 2003). Os critérios de selecção do campo de trabalho seleccionado devem-se à escassez de informa-ção que existe relativamente às cubas que inclui dentro dos seus limites e à necessidade de encontrar um limite geográfico que não comprometa a harmoniosa continuidade que as cubas estabeleceram com a paisagem envolvente.

O número exacto de cubas localizadas na “kûra” de Beja é uma incógnita, visto que nunca foi realizada qualquer inventariação precisa, porém calculamos cerca de uma centena de exemplares (Goulart, 1985: 200).

A maioria dos investigadores afirma que as cubas são santuários que perpetuam a presença de um santo muçulmano através da guarida dos seus despojos ascéticos (Gonçalves 1964: 12). No entanto, a cumplicidade que as cubas estabelecem com a paisagem em que se inserem, suscita inúmeras questões e tem despoletado diversas conclusões precipitadas. Por exemplo, o historiador Artur Goulart interpreta a localização das cubas no topo dos mais elevados cumes do Sul de Portugal como uma aliança entre as funções de oração e as de

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Fig. 1. Fotografia de São Brás, Serpa, Portugal. Fonte: própria (2012).

vigilância militar (Goulart 1985: 199-200). Sobre isto pronunciou-se também Jorge Feio, que constatou que a localização de algumas cubas coincide com os limites administrativos do concelho de Alvito, levando-o à conclusão de que as cubas associam a função religiosa com a de marco territorial. Por fim, José Pires Gonçalves afirma que uma cuba era erguida no recinto de uma necrópole islâmica (Gonçalves 1964: 27).

As dúvidas estendem-se também para a origem da tipologia arquitectónica e a data de construção destes edifícios. Pires Gonçalves enuncia a seguinte questão: terão sido as cubas uma tipologia importada do Norte de África e construídas durante a ocupação islâmica de Portugal que decorreu entre os anos de 711 e 1191 d.C.? Ou seriam a expressão de um tipo de arquitectura fúnebre muito corrente na Península Ibérica durante o período que precedeu a Reconquista Cristã, tendo sido transplantado para o Magrebe pelos alarifes mouriscos expulsos da Estremadura e da Andaluzia em 1502 e, mais tarde, em 1610? (Gonçalves 1964, p.12; Gabrieli 1965, p.105).

Atendendo à manifesta falta de informação e existência de dúvidas acerca das cubas localizadas na “kûra” de Beja, a presente investigação tem os seguintes objectivos:

1. Mostrar a relevância que a Paisagem exerce sobre o imaginário religioso popular, tendo como su-porte um mapa da “kûra” de Beja, no qual iremos introduzir informação de natureza histórica (tal como a localização de fortificações e vias romanas, de necrópoles, de ribats e azóias muçulmanas, de atalaias e de conventos medievais); geográfica (topografia e relevo, afloramentos rochosos, vegetação, cursos de água, ribeiras e rios, antigos caminhos de transumância e rotas de peregrinação); e, por fim, a localização das cubas que são objecto de estudo. Deste modo pretendemos contribuir para o esclarecimento da utilização original das cubas, que se encontram dentro do campo de trabalho eleito por esta investigação, visto que as hipóteses lançadas pelos vários autores resultam de interpretações distintas sobre a localização das cubas e do modo como estas se relacionam com o espaço que lhes é envolvente.

2. Realizar, pela primeira vez, a inventariação e o levantamento tanto arquitectónico como fotográfico das cubas da “kûra” de Beja, ampliando o trabalho iniciado por Rui Miguel Carreteiro no sul do Distrito de Évora. Cabe referir que o trabalho de Carreteiro não deu a ênfase exigida ao levantamento da articulação do edifício com a envolvente imediata, nem aos aspectos morfológicos, construtivos e métricos das cubas, facto que esta investi-gação ostensivamente faz, uma vez que a análise destas características tem a capacidade de denunciar o período de construção destes edifícios, o que será decisivo para concluir, ou pelo menos clarificar, o sentido migratório desta tipologia arquitectónica através da comparação com as cubas localizadas no Norte de África.

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Fig. 2. Fotografia de São Lourenço dos Olivais, Portel, Portugal. Fonte: própria (2013).Fig. 3. Fotografia de São Sixto, Cuba, Portugal. Fonte: Diogo Pina Manique (2012).

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1. Estado da ArteA maioria das cubas abrangidas por este estudo nunca foram sujeitas a qualquer investigação, não havendo precedente para o estudo da arquitectura das cubas centrado na análise da cumplicidade que estas estabelecem com a paisagem. O trabalho académico «“Cubas” no Alentejo» (1997), de Rui Miguel Carreteiro, corporiza a melhor aproximação a este tema através da realização de levantamentos arquitectónicos e fotográficos que revelaram a existência de uma ligação intrínseca entre a geografia e as cubas localizadas a sul do Distrito de Évora (Carreteiro, 1997). Porém este tema fica por explorar na bibliografia existente actualmente.

Conforme mencionámos anteriormente, sobre as cubas localizadas em território português, do ponto de vista histórico, é pertinente referir dois artigos: «A Cuba de Monsaraz» (1964) de José Pires Gonçalves e «As “Kubbas” Alentejanas: Monumentos de Origem ou Influência Muçulmana no Distrito de Évora» (1985) de Artur Goulart, uma vez que ambos os trabalhos apresentam as questões ainda em aberto sobre a utilização original, data de construção e sentido migratório das cubas.

No panorama internacional, temos a referir que em Espanha existe maior produção científica sobre as cubas. Destacamos os artigos de Torres Balbás na revista Al-Andaluz, nomeadamente «Rábitas His-panomusulmanos» (1948) e «Cementerios Hispanomusulmanos» (1957), trabalhos pioneiros no trato das cubas ibéricas. Sobre as cubas localizadas no Norte de África mencionamos os números das revistas «Hespéris» – com destaque para a produção científica da dupla Henri Basset e Henri Terrasse.

Em suma, o conhecimento que existe sobre as cubas localizadas na “kûra” de Beja é escasso e centra-se exclusivamente no âmbito da História.

2. Análise da localização das cubas na paisagem da “kûra” de BejaPara atingir o primeiro objectivo a que nos propusemos, iremos colocar a localização das cubas sobre um mapa da “kûra” de Beja, e, em seguida, adicionaremos informação de natureza geográfica e histórica. Esta sobreposição aproxima esta investigação de um projecto de arqueologia do espaço, visto que procuramos vestígios de elementos inexistentes com os quais as cubas mantinham uma forte ligação, como se tudo estivesse unido num mesmo desenho, num antigo projecto grande e único (Grassi 1983: 38), em que a ar-quitectura estabelece com o mundo natural um sistema de relações, do qual as próprias regras de proporção e dimensão dos edifícios parecem ser um prolongamento (Rabaça 2011: 156).

No estudo da localização das cubas, importa referir que o historiador Artur Goulart formulou três tipologias (Goulart 1985: 200-201):

Tipo 1a Situação estratégica em altitude mais ou menos pronunciada, permitindo abranger vasta panorâmica e isolamento.

Tipo 1b Situação estratégica como no tipo 1a e localização na periferia dos Povoados.

Tipo 1c Situação estratégica como no tipo 1a e localização nos povoados.

Tipo 2 Situação estratégica já não em altitude mas sim com ligações evidentes com estradas, rios ou atalaias e isolamento.

Tipo 3a Sem uma situação estratégica aparente e localização na periferia dos Povoados.

Tipo 3b Sem situação estratégica aparente e localização nos povoados.

Table 1. Tipologias formuladas por Artur Goulart.

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O destaque atribuído ao Tipo 1 ilustra o protagonismo geralmente atribuído às cubas localizadas em lugares altos, em detrimento daquelas que estabelecem ligações evidentes a caminhos, cursos de água, afloramentos rochosos, árvores ou possíveis vestígios arqueológicos, todas indiscriminadamente incluídas por Artur Goulart no Tipo 2. Esta excepcionalidade concedida aos lugares altos é a causa de tantas dúvidas e controvérsia, uma vez que os lugares altos são, em primeiro lugar, pontos em que a Terra está mais próxima do Céu, em segundo lugar, sítios de limites geográficos e cadastrais, em terceiro lugar, miradouros da paisagem envolvente. A nosso ver, para compreender a localização das cubas inseridas nos cumes alentejanos, é necessário analisar as restantes construções deste tipo. Uma análise atenta à lo-calização das cubas que não se encontram em pontos elevados demonstra que se instalam junto a rochas ou bosques, nas imediações de caminhos de transumância ou de comunicação entre povoados, perto de cursos de água que cortam os vales para chegar ao mar (Espírito Santo 1990: 11-12), ou seja, em lugares onde a natureza é sublime ou risonha (Espírito Santo 1990: 3).

Uma vez que este trabalho ainda se encontra em desenvolvimento, não nos é possível determinar con-clusões definitivas, no entanto os trinta e dois exemplos mapeados até ao momento, permitem-nos observar uma estreita cumplicidade com a natureza. Verificamos dois centros de gravidade: os povoamentos e os cursos de água. Vinte e seis dos trinta e dois casos de estudo analisados, localizam-se nas imediações de um núcleo urbano; quatro casos separam-se dos povoamentos e seguem um curso de água; por fim, dois casos têm uma localização incerta, que, provavelmente, será desvendada após uma cuidadosa análise histórica.

Visto isto, em função do modo como as cubas se relacionam com a paisagem envolvente, propomos as seguintes tipologias:

Tipologias propostas em função da relação das cubas com a envolvente.

Tipo 1.A Proximidade de um povoamento e altitude.

Tipo 1.B Proximidade de um povoamento e ligação a nascente de água.

Tipo 1.C Proximidade de um povoamento e ligação a um caminho.

Tipo 1.D Proximidade de um povoamento e ligação a rochas.

Tipo 1.E Proximidade de um povoamento e ligação a árvores.

Tipo 2 Proximidade de um curso de água.

Tipo 3 Critério de localização desconhecido.

3. Cubos alentejanos, cúpulas árabesPara atingir o segundo objectivo a que nos propusemos, temos de proceder à análise pormenorizada e individual de cada um destes edifícios. Tem especial relevância a realização de um inventário que con-tabilize e localize todas as cubas inseridas do perímetro designado para esta investigação, assim como a realização de levantamentos arquitectónicos e fotográficos detalhados que fornecem informação cons-trutiva e métrica que possibilite a determinação do período de construção das cubas da “kûra” de Beja. Posteriormente, de modo a esclarecer o sentido migratório da tipologia arquitectónica, procederemos ao confronto da informação com as cubas que se localizam no Norte de África.

A documentação produzida sobre os trinta e dois exemplares inventariados até ao momento de-monstra que as cubas têm planta centralizada – de configuração quadrada, circular ou octogonal, que

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varia geralmente entre os 5,00 e os 5,50 metros de lado ou diâmetro –, com cobertura em cúpula de tijoleira hemisférica ou cónica, simples ou lobulada (Gonçalves 1964: 13).

Do ponto de vista construtivo as cubas inventariadas têm as seguintes características:Caracteristicas constructivas das cubas da “kûra” de Beja.

ExteriorAs paredes da base (cubo) são pesadas e robustas. Consoante a região em que se inserem, a descarga do peso da cúpula para o solo é, ora efectuada por intermédio de quatro arcos embutidos nas pare-des do cubo, ora através de paredes autoportantes, construídas em alvenaria de pedra ou taipa.

A cobertura consiste numa cúpula de tijoleira disposta de gume em fiada curvilínea. O formato é geralmente hemisférico.

A cúpula pode ter vários revestimentos exteriores, sendo nuns casos rebocada, noutros caos reves-tida por telhas que podem ou não ser caiadas (exemplo de São Brás, Serpa).

A drenagem de águas pluviais pode ser efectuado directamente (exemplo de Santa Luzia, Alvito) ou por intermédio de uma platibanda que recolhe a água e a expulsa por gárgulas (São Vicente, Ferreira do Alentejo).

Têm um vão predominantemente a sul, de orientação vertical, variando entre os 5 e os 10 cen-tímetros de largura por 50 ou 60 de altura, e com as esquinas, tanto interiores como exteriores, chanfradas a 45º, como uma seteira, sem vidro.

Verifica-se a utilização de cantarias de pedra, maioritáriamente mármore, a definir a soleira, ombreiras e verga da porta de entrada, que por sua vez é de tábuas de madeira dispostas na vertical, com abertura em duas folhas.

Em alguns casos existem quatro merlões decorativos nos cantos superiores do cubo, ao nível da base da cúpula.

Interior A transição da cúpula para o quadrado do cubo é efectuada por quatro trompas simples ou angulares.

A cúpula e paredes laterais são pintadas com frescos. As representações são geralmente geometrias.

O altar é habitualmente apenas num nicho.

O pavimento é em baldosas (tijoleira) de barro seco ao sol com a medida de 30 por 30 centímetros.

No decurso desta investigação descobrimos que no Alentejo, os espaços que resultam da combinação de uma planta quadrada com uma cúpula são designados por construções “tipo à cuba”. É interessante notar que esta expressão não só remete literalmente para a ideia tipológica associada às cubas árabes, como também de-monstra que a construção de espaços “tipo à cuba” era usual e, aparentemente, uma referência arquitectónica que todos os construtores reconheciam, tendo-se perpetuado até aos dias de hoje. Actualmente verificamos que as cubas da “kûra” de Beja, ao contrário das que se localizam no Norte de África, não se encontram no seu estado original, ou seja, não mantêm a estrutura cubo-cúpula de modo independente. Na maioria dos ca-sos, ermidas foram construídas sobre Qubbas (Gomes 2001, p.50), tendo estas sido progressivamente integradas noutros conjuntos arquitectónicos mais vastos, fazendo-se assim não só o seu aproveitamento arquitectónico, mas também a reconversão sagrada ou religiosa do espaço (Carreteiro 1997: 12). A operação mais usual foi o ajuste da construção da cuba ao espaço da capela-mor – por intermédio do rasgo do paramento nascente –, seguido da adição dos espaços da nave – para os fiéis assistirem à celebração – e do nártex de entrada.

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Fig. 4. Fotografia de São Brás, Serpa, Portugal. Fonte: própria (2012).Fig. 5. Fotografia de Sidi Meer, Zarzis, Tunisia. Fonte: desconhecida.Fig. 6. Fotografia de São Vicente, Ferreira do Alentejo, Portugal. Fonte: própria (2012).

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O reaproveitamento das cubas para espaços cristãos provocou a sua inclusão na cultura arquitectó-nica alentejana advindo daí as construções “tipo à cuba”. Isto explica o caso dos Calvários e de inúmeras capelas de planta quadrada ou circular, coroadas por uma cúpula e com pedras de xisto negro cravadas na alvenaria, “ecos” do oriente, em tonalidade mesopotâmica, em felizes e misteriosos cruzamentos ti-pológicos. Visto isto, como se distinguem as cubas das construções “tipo à cuba”? O estudo das caracte-rísticas métricas pode contribuir para esclarecer esta questão, uma vez que as construções muçulmanas eram executadas segundo a medida do “côvado andalusi”, que em Portugal equivalia a 55,5 centímetros. Vejam-se os exemplos da tabela 4.

Dados métricos de dez cubas da “kûra” de Beja.Nota: PR abrevia Pé-romano, CAP côvado andalusi português e CM côvado manuelino.

IdentificaçãoMedida emPlanta (cm)

PR(1=29,57cm)

CAP(1 = 55,5cm)

CM(1 = 66cm)

Santa Luzia (Alvito) 612,9 x 610 20,7 x 20,6 11 x 11 9,3 x 9,2

São Vicente (Ferreira) 502,7 x 552,4 17 x 18,7 9 x 10 7,6 x 8,3

São Sixto (Cuba) 552,4 x 502,1 18,7 x 17 10 x 10 7,6 x 8,4

São Sebastião (Monsaraz) 446,1 x 445,1 15 x 15,1 8 x 8 6,7 x 6,7

São João Bap. (Monsaraz) 545,8 x 614,4 18,5 x 20,8 9,8 x 11 8,3 x 9,3

Nª Sª Natividade(Ferreira) 529 x 545,2 17,9 x 18,4 9,5 x 9,8 8 x 8,26

São Bento (Monsaraz) 488,7 x 513,6 16,5 x 17,3 8,8 x 9,3 7,4 x 7,8

São Brás (Serpa) 427,4 x 425,2 14,5 x 14,4 7,7 x 7,7 6,5 x 6,4

São Pedro (Alvito) 378,6 x 398,6 12,8 x 13,5 6,8 x 7,2 5,7 x 6

São Pedro (V. N. Baronia) 379,6 x 405,5 12,8 x 13,7 6,8 x 7,3 5,7 x 6,1

As plantas de Santa Luzia, São Vicente, São Sixto e São Sebastião inscrevem-se em quadrados que cumprem rigorosamente as medidas do côvado andalusi português, o que nos permite afirmar que estes exemplos foram erguidos por muçulmanos ou alarifes mouriscos, provavelmente entre o séc. XI e o séc. XII.

Os restantes exemplos têm uma medida indefinida, que não cumpre os parâmetros do pé romano, nem dos côvados andalusi português e manuelino.

Todavia, para além das informações métricas, há também informação ao nível dos materiais de construção e da localização espacial que nos poderão ajudar a situar historicamente estes edifícios. Esta informação está por realizar, contudo mencionamos os artigos intitulados «O Castelo de Valongo: Estu-dos Métrico-Construtivo e Histórico-Espacial» (2000) da autoria de António Rei, e «The Mausoleum of Muhammad Bosharo» (1990) de Sergei Chmelnizkij (Chmelnizkij, 1990), que realizam uma operação em tudo semelhante ao que pretendemos. Estes dois trabalhos são referências essenciais para o desenvol-vimento da presente investigação.

ConclusõesApós a análise de trinta e duas cubas da “kûra” de Beja – mesmo tratando-se de um trabalho em desen-volvimento – estamos aptos a avançar com algumas conclusões preliminares.

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Em primeiro lugar, a análise das cubas anteriormente identificadas demonstrou que se localizam em sítios em que a natureza é mais expressiva e invocativa. A próximidade a limites administrativos e estruturas arqueológicas parece ser uma consequência e não um factor que possa ter influenciado a destas construções.

Em segundo lugar, parece-nos evidente que os povoamentos e os cursos de água, em conjunto com os lugares altos, rochas, árvores, caminhos e nascentes de água, correspondem à estrutura fundamental que definiu não só a localização das cubas como também o imaginário religioso popular. Este fenómeno demonstra que a paisagem desempenha uma função crucial na representação do sagrado, da relação entre o Homem e Deus.

Em terceiro lugar, através dos levantamentos arquitectónicos, conduzidos no âmbito desta inves-tigação, conseguimos perceber que as cubas se tratam de um tipo de arquitectura que foi continuado no tempo até se fundir intrinsecamente na cultura alentejana, tendo originado tipologias morfológicamente semelhantes porém temporalmente muito distantes do período de construção das cubas.

Em suma gostaria de apresentar uma última nota: o estudo da arquitectura islâmica é fundamental para reescrever a História e a identidade cultural da Península Ibérica. Como seria a cultura e a paisagem da Hispânia antes do dia 30 de Abril de 711 d.C., data em que as embarcações comandadas por Tariq ibn Ziyad desembarcaram e conquistaram a Península? Será possível imaginar a Península Ibérica sem vestí-gios dos oito séculos responsáveis pela construção do Al-Andalus, que ainda hoje é sinónimo de prospe-ridade e riqueza cultural no mundo? A divida da cultura ibérica aos reinados muçulmanos é incalculável.

Apesar de se estimar a existência de cerca de três centenas de cubas no Sul de Portugal, nada se sabe sobre estes edifícios que representam a evidência mais expressiva do Islão na arquitectura Ibérica e na cultura Andalusa. Este trabalho apresenta-se como um ponto de partida para a sensibilização da aca-demia e dos decisores políticos, podendo vir a contribuir para a criação de políticas de salvaguarda que impeçam o desaparecimento deste vasto património histórico e paisagístico. Hoje mais do que nunca, é urgente a inventariação e análise das cubas pois o afastamento que mantêm dos povoamentos conduziu--as ao esquecimento e abandono. Muitas das cubas que são objecto de estudo desta investigação estão já em ruína, deixando gradualmente os seus escombros aliarem-se à terra e contribuírem para a subida dos montes que outrora albergavam a presença de uma cúpula cor de cal.

Fig. 7. Fotografia de São Pedro, Serpa. Fonte: Diogo Pina Manique (2013).

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Santuário do Endovélico: espaço de encontro de indígenas e romanos

Sanctuary of Endovelicus: meeting space for indigenous and roman

Luís Jorge Gonçalves*

*Portugal, arqueólogo, Professor, faculdade de belas-artes da universidade de Lisboa (fbauL), centro de estudos e investigação em belas-artes (cieba). Par académico da revisão da comissão científica.e-mail: [email protected]; [email protected]

artigo submetido a 02 de junho e aprovado a 14 de junho 2014

Resumo: O Santuário do Endovélico foi o resultado da simbiose das culturas indígenas e romana. Durante cer-ca de cinco séculos foi um centro religioso de uma região que tinha nas proximidades, as principais cidades das Lusitânia. Mas a emergência do cristianismo não signi-ficou o fim daquele espaço como centro religioso, já que no local foi construída a capela de S. Miguel da Mota. Palavras chave: Endovélico / santuário / indígenas / romanização.

Abstract: The Endovelico Sanctuary was the result of sym-biosis of indigenous and Roman cultures. For five centuries were a religious center of a region that had nearby major cit-ies of Lusitania. But the emergence of Christianity was not the end of the space as a religious center since the place was built the chapel of S. Miguel Mota.Keywords: Endovelico / sanctuary / indigenous / romanization

IntroduçãoNeste ano de 2014, a 19 de Agosto, comemoram-se os 2000 anos da morte de Augusto, personagem central da história do mundo mediterrânico, pela revolução tranquila que empreendeu em Roma, após a batalha de Accio (31 a.C). Desde logo alterou o modelo de domínio que Roma exercia sobre os territórios que dominava, que já se tinha iniciado com César, passando de colonias de exploração, para colonias de colonização. A estrutura administrativa foi alterada, levando à criação de novas províncias, entre as quais se encontra a Hispania Ulterior Lusitania e a Hispania Ulterior Baetica (Martín Bravo 1999; Pérez Vilatela 2000), que surgiu do desmembramento na antiga província da Hispania Ulterior.

Esta nova realidade administrativa levou à criação de novas cidades, ou à refundação de antigos povoados indígenas em cidades. A cidade tornou-se o eixo central do modelo de organização dos novos territórios que urgia colonizar, com colonos e indígenas, que importava serem integrados. Desse ponto de vista era importante dar uma nova vida aos imensos exércitos de homens, em que grande parte das suas vidas tinha sido a combater, nas intermináveis guerras civis. Havia homens das legiões de César, de Pompeu, de Cássio e de Brutus, de Marco António e do próprio Augusto, com grande potencial bélico que exigia desmobilizar e dar uma nova vida. Roma era ainda uma cidade com um imenso proletariado que podia complicar a vida urbana, pelo seu modo de vida ocioso.

1.Romanos e populações indígenas: síntese para uma nova culturaEm 25 a.C., dois anos depois de assumir o nome de Augusto, fundou a cidade de Emerita Augusta, no país dos Turdúlios (Estrabão II, 15), com os veteranos (eméritos) das legiões V Alaudae e X Gemina, que combateram nas guerras contra os Cântaros e que teve a supervisão de Marcos Agripa, genro e amigo de Augusto (Nogales Basarrate 2003). Para criar um contexto de unidade, chegou de Roma o retrato oficial

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de Augusto Velado, produzido com mármore de Carrara (Nogales Basarrate 1999 c: 562, n.º 85). Era uma cidade ex-novo, num território de pioneiros que necessitavam de manter os seus vínculos culturais com a metrópole.

Ainda na Lusitânia foram fundadas as coloniae de Scallabis Praesidium Iullium (Santarém) e de Pax Iulia (Beja), onde se cunhou moedas de Octávio, pelo que pode ser uma fundação da época de Júlio César, no seguimento da guerra civil, sendo provavelmente do fim da República (Faria 1989; Alarcão 1992; Lopes 2003), foi concedido o estatuto municipal romano a Olisipo Felicitas Iulia (Lisboa), o latino a Ebora Liberalitas Iulia (Évora) e a Urbs Imperatoria Salacia (Alcácer do Sal) (Faria 1992; Le Roux 1995: 81-82), aplicando-se a frase de Aulo Gélio, referindo que as coloniae instaladas por Roma, em todo o mundo, foram praticamente reflexo ou cópias em tamanho reduzido da metrópole. Disse-o no sentido administrativo e jurídico referindo-se à constituição das coloniae (Trillmich 1999: 183).

Reflexo da preocupação administrativa de organização do território é o texto de Plínio, com uma descrição pormenorizada, nessa perspectiva, mas pobre no que se refere à paisagem e às populações locais denotando ainda o pouco conhecimento do território português, em meados do século I d.C. Este período corresponde ao período da história em que mais cidades foram fundadas na Lusitânia, bem como em todo o ocidente do império. Era um ato político no contexto da Pax Romana (Zunker 1992: 152). As cidades fundadas e refundadas tinham o nome de Augusto ou da sua família (Koch 1997: 87-91), sendo atos de propaganda imperial, para atrair colonos romanos e itálicos. Fomentou-se o casamento das elites locais com cidadãos romanos e foram enquadrados na ordem jurídica romana os filhos de legioná-rios com mulheres hispânicas (Torelli 1997: 99-106) e das elites locais. Houve uma política deliberada de mistura com as elites indígenas (Curchin 1996: 141) e de as levar a aceitar o conforto romano-helenístico (Roldan Hervás 1976: 125-145). Esta política fundacional, com a vinda de colonos implicava a chegada das suas crenças, dos seus modos de vida, das suas ambições, mas sobretudo da necessidade de começar uma vida nova que lhes trouxesse o conforto, a tranquilidade e a melhoria da sua qualidade de vida, apesar de longe das suas terras de origem.

A imagem criada desta terra desde tempos antigos, ainda na época grega, é que a Ibéria e o ter-ritório da margem do mar exterior (Oceano Atlântico), era um lugar longínquo e misterioso (Gómez Espelosín, Pérez Largacha e Vellejo Girvés 1995: 39) baseada mais na imaginação do que na experiência (Jabouille 2002: 277). Homero refere que os Campos Elísios se encontravam no fim do mundo, refres-cados pelo vento ocidental procedente do grande oceano (Homero 4.563-9). Também em Hesíodo as terras próximas do Oceano estão nos confins da terra (Hesido I, 167-173). No século I a.C., Possidónio de Apamea escreveu que era um país tão rico em metais, que quando ardia um bosque, o ouro e prata saiam do solo (Richardson 1997: 67- 68) e para Plínio, as pepitas e as placas visíveis denunciavam grande riqueza de ouro (Jabouille 2002: 277).

Transparece dos relatos de Estrabão um ainda maior desconhecimento do território a Ocidente do Anas (na actualidade, o rio Guadiana). Da paisagem, das cidades e dos seus habitantes pouco nos fala Estrabão, que apresenta o Hieron Akroterion (na actualidade, o Cabo de S. Vicente) como o ponto mais ocidental da Oikoumene (designava para os gregos a parte da terra que se sabia habitada), o lugar onde os mortais não podem ir de noite, porque os deuses o ocupam naquelas horas (Estrabão III, 1, 4). Aquele promontório foi um marco forte no imaginário do Homem na Antiguidade (Arruda e Gonçalves 1993: 456). A costa ocidental da Península era, por conseguinte, uma terra misteriosa e de difícil navegação, a partir do Cabo de S. Vicente (Arruda e Gonçalves 1993: 457).

As narrações têm um sabor de lenda, mas a partir delas podemos criar a imagem de como a Penín-

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sula Ibérica era lida na Antiguidade, ou seja, uma terra nos confins do mundo: “Esta visão do Ocidente hispânico que a literatura transmite é já a exemplificação de uma forma de mitologização. Face ao Orien-te helenizado, culto e requintado, o Ocidente afirma-se como uma abstracção mítica do estranho, do fantástico, do exótico, do fabuloso, da riqueza, do abnormis” (Jabouille 2002: 277).

A primeira geração de colonos, nas palavras de Walter Trillmich, foi a pioneira que procurou co-nhecer o território, nos aspectos geográficos e humanos. Não se tratavam de terras desabitadas. As po-pulações indígenas já contactavam com elementos da cultura romana, desde há cerca de dois séculos, particularmente com a sua componente militar e comercial. Somente a partir de Augusto é que se vão familiarizar intensamente com populações civis, ou seja, colonos. São homens e mulheres que chegam de Roma e da Itália, prontos a começar uma vida nova em paz e que em Emerita Augusta deixaram mui-tos dos seus retratos em mármore (Nogales Basarrate 1997; Nogales Basarrate1999 a: 483-497; Nogales Basarrate 1999 b: 351-358). Este contacto foi crucial para colonos e indígenas, havendo uma influência mútua que moldou novas formas de vida. Estrabão, a este propósito, escreveu mesmo que estes assenta-mentos manifestam a mudança dos povos indígenas aos modos de vida civil e todos aqueles Ibéricos que se romanizam são chamados de“Togati” (Estrabão II, 15).

2. Santuário do EndóvelicoA simbiose que foi nascendo entre as duas culturas, manifestou-se, naturalmente, na religião. É conhe-cida a abertura religiosa dos romanos, ao mesmo tempo que trouxeram as suas divindades, também não deixaram de olhar para as divindades locais e para os seus espaços sagrados. Estávamos no mesmo fundo cultural e religioso indo-europeu. São conhecidos alguns exemplos de espaços sagrados de populações indígenas que foram adoptados durante o período romano. O Cerro de los Santos na Hispania é um san-tuário com génese indígena, que na época republicana sofreu a influência romana. Sobre a cronologia do santuário não existem dados seguros, mas parece que o culto ocorreu entre o século IV a.C. e a época de Teodósio, no século V d.C. (Ruiz Bremón 1986: 66-67). O santuário situava-se num promontório plano no topo, de forma larga, designado de “Cañada de Yecla”. Nas proximidades existe uma fonte de água minero-medicinal, que pode estar relacionada com o culto curativo, embora não se tenham determinado ex-votos. É ainda conhecido um amplo conjunto de estruturas arquitectónicas ligadas a espaços de culto (Ramallo 1997: 256). Os ex-votos de escultura estão balizados entre a época republicana e a época flávia (Blech, Hauschild e Hertel 1993: 40). Destaca-se o conjunto de togados, ainda da segunda metade do século I a.C., executados em calcário local, como as estruturas arquitectónicas, e que seriam revestidos de estuque (Ruiz Bremón 1986; Id. 1989; Trillmich 1993: 265, n.º 27 a; Trillmich 1997: 395, n.º 188).

Na Gália, no Santuário de Douix, foram encontrados cerca de 40 ex-votos constituídos, na sua maioria, por bustos simples de calcário com faces similares num estilo que se afasta dos cânones clássicos (Coudrot 2002: 67). O santuário d’Essarois (Deyts 2002: 98-101) era de uma divindade local, assimilada a Apolo, um uso frequente na Gália Romana, sendo conhecido como Apolo Moritasgus. Foi venerado so-bretudo por uma população de camponeses que deixaram no templo oferendas em forma de esculturas. Estão recenseadas 200 estátuas, onde se realça uma estátua com um panejamento indígena.

Na Lusitânia o caso mais conhecido é do Endovélico. Podemos estar perante um culto pré-romano que não deixou vestígios? Que culto foi este? Que vestígios deixaram os romanos? Qual o período de vigência do culto? Os dados arqueológicos parecem apontar para uma devoção que deixou vestígios materiais a partir do início da época imperial, embora não seja possível determinar um período final, mesmo tendo em conta a existência de materiais datados do século V, que não são prova da existência

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da devoção. A natureza do culto coloca ainda muitas questões e também hipóteses. Pela documentação epigráfica chegamos a diversas variantes do nome como Endovelicus e Endovollicus, duas vezes, Indovelli-cus, três vezes, Indovelicus ou Enobolicus, uma vez (Lambrino 1951 a: 107). Quanto ao seu significado, José Leite de Vasconcelos considerou que a palavra Endovellicus pode ser de origem Andevellicos que em gaulês e bretão significa “melhor” ou “bom” (Vasconcelos 1905: 125). Tovar (Tovar e Navascués 1950: 187-188) questionou se o termo Endouellicus não foi uma deformação de Endobelicus, adjectivo sobre Endo-beles (Indibilis) que significava “muito negro”, uma divindade infernal, talvez como Ataecina--Prosérpina (Lambrino 1951 a: 135-136).

São quatro as hipóteses de interpretação associadas a Endovélico. A primeira, de José Leite de Vasconcelos, é que foi uma divindade curandeira, assimilável a Asclépio, deus da Medicina. Isso explica a epigrafia e a escultura que representa um doente (Vasconcelos 1905: 128). No entanto, para Scarlat Lambrino, o conhecimento de Asclépio coloca em dúvida a existência de duas divindades médicas tão poderosas (Lambrino 1951 a: 116-117). A segunda hipótese a que a epigrafia parece levar a crer é que o santuário estava associado a um oráculo, onde sacerdotes interpretavam os sonhos (Vasconcelos 1905: 142 e 144; Guerra 1994: 144-145), mas Scarlat Lambrino afirma que nada parece indicar que o oráculo seja de natureza médica (Lambrino 1951 a: 117). A terceira hipótese é que Endovélico era uma divindade tópica, protetora da região, localizada no outeiro mais alto da área (Vasconcelos 1905: 125-126). Final-mente, a quarta hipótese, histórica-linguística, que José Leite de Vasconcelos já aventava, mas que foi mais desenvolvida por Tovar e posteriormente apoiada por Scarlat Lambrino (Lambrino 1951a: 125) e José de Encarnação (Encarnação 1975: 185), é de um carácter infernal, talvez condutor de almas (Guerra 1994: 144-145).

Seja qual for o seu carácter existem, no entanto, três aspectos interessantes. O primeiro é da loca-lização do santuário, correspondendo ao centro de um triângulo entre as três maiores cidades da região: Augusta Emerita, Ebora e Pax Iulia. A distância a Scallabis e Olisipo, também era relativamente próxima. Devemos ainda contar com uma importante rede de villae que existia nesta região. O segundo é o lugar, um monte de onde se tem um vasto horizonte observável, próximo do rio Lucefecit, um afluente do rio Gua-diana. O terceiro é a quantidade de vestígios encontrados, dos quais se destacam cerca de cinquenta e sete esculturas e cerca de oitenta e três conjuntos de textos dedicados a Endovélico, em pedestais (cerca de oito que correspondem a estátuas), em aras e árulas votivas, em colunas, em placas de mármore embutidas e em esculturas. As inscrições são um testemunho na primeira pessoa, referem-nos tanto servvs, libertvs ou eqves romanvs. O quarto corresponde aos padrões clássicos das esculturas, nomeadamente, as cabeças atribuídas a Endovélico, de acordo com a tipologia das divindades da terceira geração, o protótipo do Dorífero, a está-tua Schulterbauschtypus, os togados, as figuras femininas com manto, os ofertantes, as estátuas de militares e, num dos monumentos epigráficos, os génios alados (Gonçalves 2007, 2013a e 2013b).

3. Lugar de peregrinação e de promessasA sua localização central, entre as três cidades, Augusta Emerita, Ebora e Pax Iulia, fazia do Santuário do Endovélico um ponto central, a cerca de um ou dois dias de distância. Esta localização, ligada a uma tradição pré-romana, deve ter desencadeado um processo de peregrinação ao lugar, como espaço reli-gioso fulcral de toda uma região. Infelizmente não temos qualquer relato sobre o processo de culto, mas podemos deduzir que o monte estaria povoado de ex-votos, uns em materiais efémeros, como a madeira, outros em mármore, a par de outros aspectos que nos escapam como: cor de tintas, lumes e fumos dei-xados pelos devotos, como será hoje em muitos santuários. O ritual podia incluir ainda percursos entre

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o outeiro e o rio Lucefecit. Há ainda a Rocha da Mina, uma imponente formação geológica sobre o rio Lucefecit e as gravuras das margens do rio Guadiana, descobertas por Manuel Calado (Calado 1993 e Calado e Roque 2013), que revelam uma continuação sagrada do lugar e de toda a área. Não se pretende entrar aqui no carácter do Endovélico, mas o facto de somente na época romana termos uma imagem da divindade, pode revelar a sua associação anterior ao período romano, a elementos naturais, ao monte, a uma árvore, a um caminho do sacrifício para o rio Lucefecit, no lugar da Rocha da Mina, e mesmo para o rio Guadiana. A sua natureza permanece ainda um mistério, mas a epigrafia leva a crer que existia um grupo de sacerdotes que procedia a sacrifícios de animais, particularmente o porco/javali, o animal mais presente nas esculturas (Vasconcelos 1905: 143) e talvez os pássaros.

Os vestígios materiais, como as cerâmicas recolhidas (terra sigillata e fragmentos de ânforas), apon-tam o início da romanização deste culto para a época de Cláudio, ou mesmo anterior, condizendo com uma época em que as cidades mais próximas estão numa enorme fase construtiva, correspondendo à segunda e terceira geração de colonos, que já acumularam riqueza para mandar erguer centros cívicos, como o fórum e o templo, com a dignidade que queriam para as suas cidades. No século III d.C. o culto ainda era muito popular, como revela a quantidade de epígrafes. Para o século IV d.C., os vestígios são mais escassos (Fabião, Guerra, Schattner, Almeida 2003). No século V d.C., José Leite de Vasconcelos aventou a hipótese de o culto ter sido objecto de destruição pelos cristãos: “Aos Christãos se deve attribuir a mutilação das estatuas e de muitas inscripções. Os monumentos grandes escaparam em parte, por cau-sa do seu volume. É notório o furor que os primeiros Christãos destruíram os ídolos e os monumentos attinentes a elles” (Vasconcelos 1905: 145).

No espaço foi construída a capela dedicada a S. Miguel, arcanjo tutelar da medicina para os pri-meiros cristãos (Vasconcelos 1905: 145). No entanto, Cardim Ribeiro não considerou esta passagem tão líquida porque S. Miguel é o arcanjo guerreiro que trespassa e aniquila com a sua lança o temível demó-nio, sendo por conseguinte um longínquo eco da presença diabólica naquele lugar de hidrónimo, rio Lucefecit como alusivo a Lúcifer (Ribeiro 2002: 82). Chamou a atenção para um hiato de vários séculos entre os vestígios devocionais mais recentes a Endovellicvs, século III, talvez até ao século IV, e a consa-gração a S. Miguel da Mota, culto cuja introdução na Península Ibérica não é anterior à segunda metade do século VII, circunscrito então a Toledo tendo-se somente generalizado na época islâmica. A própria capela parece indiciar uma construção que se pode situar, segundo Cardim Ribeiro, no final do século VIII ou inícios do IX.

O Santuário do Endovélico continuou. A sacralidade do espaço perdurou até aos nossos dias, mes-mo tendo perdido o seu lugar como centro de fé. Estavam reunidos todos os ingredientes para que aquele lugar fosse um centro religioso, o outeiro, o rio, a centralidade face aos principais centros urbanos da região. O topónimo actual de S. Miguel da Mota parece corresponder às características do lugar, um outeiro, ou seja uma mota, mas também à necessidade de sacralidade do sítio.

Conclusão Nestes 2000 anos da morte de Augusto, o Santuário do Endovélico, hoje S. Miguel da Mota, representa muito do que chamamos fusão cultural, pretendida pelo Princeps (Augusto). Foi um espaço religioso com origem indígena, mas adoptado pelas populações romanas e romanizadas, onde durante cinco séculos peregrinos duma vasta região se deslocavam para expressar a sua fé. Deve ter sido um lugar muito movi-mentado em que os vestígios materiais que nos chegaram são um pequeno reflexo. Ficaram-nos os ele-mentos mais duradouros, particularmente os ex-votos e as imagens da divindade em mármore. A própria

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imagem do deus é o resultado da cultura romana. Não estava na tradição indígena a criação de imagens da divindade que deviam cultuar. Provavelmente cultuavam elementos naturais, logo a tradição romana trouxe uma imagem para a divindade. Depois há os ex-votos que têm neste local uma forte expressividade e mesmo uma grande qualidade, face a outros santuários, pressupondo a existência de oficinas específi-cas, tirando partido da proximidade das pedreiras de mármore de Estremoz.

Este local no seu apogeu devia ser um espaço muito frequentado, cuja visão devemos reconstruir no processo de investigação. Devia existir uma romaria anual, um caminho, ou procissões, rituais, inú-meras celebrações pelo, possível, corpo de sacerdotes. Ao santuário ocorriam, legionários, pais e crianças, agricultores, que faziam as suas preces em momentos de intensa fé.

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Tïhtakariwaïn: um santuário rupestre no Tumucumaque brasileiro

Tïhtakariwaïn: rock art santuary inbrazilien Tumucumaque

Manuel Calado*

*brasil/Portugal, arqueólogo, instituto de Pesquisa científica e tecnológica do estado do amapá (iePa). Par académico da revisão da comissão científica. e-mail: [email protected].

artigo completo submetido a 31 de maio e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Neste artigo apresentam-se e discutem-se dois painéis de arte rupestre, localizados numa caverna granítica, em plena Terra Indígena Parque do Tumucu-maque (Brasil). Trata-se de um projeto colaborativo que envolveu um grupo de índios Tiriyó e Kachuyana (po-vos de língua karib) e em que, a par de uma comparação com outros sítios de arte rupestre na região amazónica--guianense, se procuram sentidos interpretativos em articulação com a língua e a literatura oral destes povos, no quadro do pensamento ameríndio, em geral. Palavras chave: Arte rupestre / Amazónia / Etno--arqueologia / Chamanismo / Perspetivismo ameríndio

Abstract: This paper presents and discusses two panels of rock art, located in a granite cave in the Parque do Tu-mucumaque Indigenous Land (Brazil. This is a collaborative project involving a group of Trio and Kachuyana Indians (Carib language) and that, along with a comparison with other rock art sites in the Amazonian-Guyanese region, is seeking interpretative senses in conjunction with language and oral literature of these peoples, in the frame of the Amer-indian thought in general.Keywords: rock art / Amazonia / ethnoarchaeology /shamanism / amerindian perspectivism.

IntroduçãoTïhtakariwain é uma caverna formada por um caos de blocos graníticos, definindo sobretudo dois corre-dores ortogonais, cujas paredes se encontram parcialmente cobertas por gravuras rupestres, com temas figurativos e geométricos (e figurativos/geométricos).

Localiza-se numa plataforma, a meia altura de uma das primeiras elevações das montanhas do Tu-mucumaque, cobertas por floresta tropical, sobranceira à extensa área de savana, de relevo relativamente aplanado, onde se implanta, hoje em dia, a maioria das aldeias Tiriyó. O sítio dista, aliás, menos de um quilómetro de uma aldeia atual, denominada Ponoto.

Segundo a tradição dos Tiriyó (os Kachuyana e outros grupos menores instalaram-se recentemente na região), a caverna foi palco privilegiado das guerras com os vizinhos Wayana e o topónimo remete para um xamã (pïyai, em Tiriyó) com as pernas tortas, cuja figura se destaca na iconografia do sítio (Fig.5, nº5). Etimologicamente, o nome Tïhtakariwain parece incorporar o verbo tïhta (morrer ou estar em perigo de morte) e kariwa, cabaça ou, alternativamente, kariwaja (planta com usos mágicos);

Os Tiriyó, autodesignados como Tarëno, são um povo de língua caribe que habita, junto com outros grupos minoritários, as margens dos rios, numa extensa área de savana, enquadrada por floresta tropical, de um e outro lado da fronteira entre o Brasil e o Suriname.

No lado brasileiro, foi criado, adjacente às Terras Indígenas, o Parque do Tumucumaque, conside-rado o maior parque de floresta tropical do mundo.

O Tumucumaque foi, sobretudo por razões de ordem geográfica (a dificuldade de acesso), uma das últimas fronteiras da literatura colonialista de viagens, gerando mitos românticos que só tardiamente foram ultrapassados.

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Fig. 1. A vista para a savana, a partir da entrada da caverna (foto de Mariana Cabral).Fig. 2. A entrada da caverna de Tïhtakariwaïn (foto de Mariana Cabral).Fig. 3. Explicando aos jovens Tiriyó a técnica do decalque sobre plástico cristal.

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Tive oportunidade de visitar a Terra Indígena Parque do Tumucumaque, por duas ocasiões, no Ve-rão de 2009, no contexto de um curso de capacitação científica, dirigido aos professores indígenas. Com os alunos desse curso, organizado pelo IEPÉ (Organização Não Governamental ligada à USP), visitei, juntamente com Mariana Cabral, a caverna de Tïhtakariwaïn.

O levantamento das gravuras limitou-se, por falta de condições logísticas, a dois painéis, um no corredor de entrada e outro no corredor transversal, num total de cerca de 12 m2; a seleção e o decalque desses painéis foram executados, após uma formação expedita, pelos professores indígenas.

O resultado agora apresentado corresponde, na verdade, a um work in progress, em que, sobre a versão original gravada nas paredes da gruta, em época indeterminada, foi produzida uma primeira interpretação, pelos indígenas, em plástico cristal, que foi posteriormente interpretada em gabinete e digitalizada. Falta um retorno ao sítio para completar o levantamento e confirmar detalhes, nomeadamente sobreposições ou imprecisões de traços, nas partes já desenhadas; falta um novo diálogo com os donos do lugar: os Tarëno.

Na verdade, pretende-se apresentar aqui apenas alguns elementos de um esboço interpretativo, ainda em construção, e centrado, para já, nos únicos dois painéis desenhados.

Foram, dentro do possível, tidos em conta os vários modelos teóricos, em debate no estudo da Arte Rupestre, como fenómeno global; privilegiou-se, porém, uma focagem específica nas realidades arqueo-lógicas e etnográficas ameríndias.

Nessa interpretação, foram convocados especificamente alguns elementos da literatura oral dos Tiriyó (Koelewijn e Rivière 1987), contrastados com aspetos específicos da sua cultura (Grupioni 2009) e, em particular, da sua língua. Neste último âmbito, a excelente obra (dicionário e gramática) de Sérgio Meira (1999), ainda inédita, foi uma ferramenta inestimável.

A gruta do Tïhtakariwaïn foi referida, pela primeira vez, por Protásio Frikel, missionário, etnógrafo e arqueólogo (Frikel 1963), que estudou os Tiriyó e visitou o local; esses dados foram, mais recentemente, republicados numa obra de referência sobre a arte rupestre da Amazónia, no Pará (Pereira, 2003).

Frikel, descrevendo as suas observações, afirma que “’os sapos’ aí representados foram identifica-dos pelos índios como ‘a velha que, nos mitos, era a dona do fogo e que, na sua incarnação zoomorfa, se manifesta como sapo cururu” (Frikel 1963: 489). Este personagem existe igualmente entre os Wayana.

Porém, o sapo ficou fora do levantamento agora apresentado.Segundo esse autor, os seus informantes Tiriyó atribuíram as gravuras aos antepassados dos Waya-

na (Frikel 1963: 481); os meus informantes, por outro lado, sem esclarecerem diretamente a autoria das gravuras, atribuíram a ocupação da gruta aos antepassados dos Tiriyó, que aí teriam buscado refúgio dos ataques dos antepassados dos Wayana.

Como seria de esperar, as versões sobre o desfecho da guerra entre Tiriyó e Wayana são diametralmente opostas, conforme o ponto de vista. De um lado e de outro da “barricada” tudo acabou com a aniquilação total dos inimigos.

Em última análise, essa disjuntiva tem pouca substância, uma vez que as guerras em causa certa-mente remetem para uma situação anterior à etnogénese “definitiva” destes grupos, enquanto tal. Tiriyó e Wayana são conceitos que englobam povos de línguas aparentadas, ocupando tradicionalmente as mes-mas áreas geográficas, em cuja génese a colonização teve, aparentemente, um papel importante.

Este quadro de partida, levou-me, naturalmente, a incluir, no roteiro da documentação a testar para a interpretação dos painéis, o extenso material recolhido no trabalho de Jean Chapuis e Hervé Rivière (1987), uma obra bilingue, profusamente anotada, assim como o trabalho, mais recente e mais problema-tizador, de Renzo Duin (2006).

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1. Tïhtakariwaïn no quadro da arte rupestre guyano-amazônica A primeira impressão, quando comparamos os motivos presentes na caverna de Tïhtakariwaïn, com o que se conhece, em termos regionais, é a de que não existe nenhum paralelo direto. É certo que permane-cem muitas lacunas de prospecção e existem, previsivelmente, outros sítios ainda não registados.

Seja um caso isolado, produto do agenciamento humano, ou o representante de uma “família” ain-da não descoberta, Tïhtakariwaïn apresenta muitas especificidades, embora, ao mesmo tempo, partilea certos detalhes com outros conjuntos conhecidos.

O “parente” mais próximo, à primeira vista, localiza-se, já no Suriname, mas em “território” Tiriyó, perto da aldeia de Kuamalasamutu: trata-se da caverna de Werepai (http://home.wxs.nl/~vrstg/guianas/werehpai/werehpai-eng.pdf).

Porém, os grafismos, num e noutro sítio, diferem substancialmente, apesar de partilharem o mes-mo tipo de ambiente natural (caos de blocos graníticos) e, presumivelmente, a mesma área cultural (o suposto território dos antepassados dos Tiriyó e dos Wayana).

Werepai integra-se, quanto aos grafismos, razoavelmente bem no quadro daquilo que foi designado como “Tradição Amazônia” ou “Tradição Guyano-Amazônica” (Pereira 2003; Prous, 2002), cujo prin-cipal traço definidor é a preferência pelos temas antropomorfos/zoomorfos, em que a representação da face desempenha um papel preponderante ou mesmo exclusivo.

Na verdade, na sua versão mais esquemática, essas figuras resumem-se apenas ao esboço da cabeça (ou do cabelo) e aos olhos (Mazière 2008: 137, fig. 172). Essa tendência parece manifestar-se numa área delimitada, com bastante rigor, a Sul, pelo Amazonas, e estendendo-se por toda a região guiano-amazónica, da Guiana Francesa até à Colômbia; o limite Norte, porém, aparece, muito mal definido (Gomes 2012).

Neste aspeto, as gravuras do Tïhtakariwaïn destoam totalmente: a maioria dos motivos, em par-ticular aqueles que aludem à figura humana, apesar de terem a cabeça representada (numa escala que permitiria, sem dificuldade, traçar detalhes do rosto), não têm olhos, nem outras feições. Numas (Fig. 5, nº 4, 5), as feições (se alguma vez existiram) poderiam ter sido obliteradas por picotagem; noutras (Fig. 7, nº 1; e talvez Fig. 7, nº3), a face da figura parece estar oculta por uma máscara.

Em território Tiriyó, mas estendendo-se, para Sul, ao curso médio do Erepecuru, existe um conjun-to de gravuras com uma personalidade muito própria, embora também enquadrável na referida Tradição guiano-amazônica. Nesse conjunto, predominam as figuras antropomórficas estilizadas, que assentam num grafismo semicircular radiado, representando uma face humana emplumada. Os olhos são sempre representados, ou sugeridos, e o corpo é pouco detalhado, reduzido ou inexistente.

Para além desse núcleo central, existem exemplares avulsos, a Oeste, no Trombetas (em território Wai--wai) (Pereira 2003: 92), a Sul, em Prainha (Pereira, 2003: 185) e ainda, a Norte, na Guiana (Pereira 2003: 84).

Em plena cadeia montanhosa do Tumucumaque, num abrigo rochoso, aberto na encosta de um inselberg granítico, existe um outro sítio que, por várias razões, é único na região guiano-amazónica: Ma-milihpann (Mazière 2008: 111-118). Trata-se de um conjunto de painéis pintados, em que não existem representações de faces, sendo as figuras humanas geralmente representadas em corpo inteiro, de formas muito esquemáticas.

Igualmente muito singular é o sítio das Roches du Marouini (Mazière 2008: 99-110), também na Guiana francesa. As gravuras localizam-se a céu aberto, no cimo de uma montanha, e os temas são sobre-tudo zoomórficos, com alguns antropomórficos, quase todos de corpo inteiro, sem destaque para a face.

Estes dois últimos exemplares, note-se, dificilmente poderiam ser catalogados na Tradição Amazô-nia ou Guiano-Amazônica, tal como ela vem sendo definida.

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Uma última referência a outro sítio singular: a Pedra do Índio, em Ferreira Gomes, AP. Trata-se de um lajedo granítico em que os temas são sobretudo de natureza geométrica, sugerindo, muitos deles, jogos gráficos (alguns claramente figurativos) com elementos geométricos simples: círculos, espirais, estrelas, etc.

As diferenças entre os conjuntos mencionados (descontando as diferenças de suporte e de técnicas utilizadas) refletem certamente temporalidades diversas, identidades diversas, funcionalidades diversas.

Mais à frente, na análise detalhada dos dois painéis objeto deste trabalho, apontarei algumas seme-lhanças, marcas de uma eventual “estética ameríndia” (Gomes 2012; Grupioni 2009) iluminada por um eventual pensamento ameríndio (Viveiros de Castro 1996; 2002).

2. Ideias, métodos e inspirações O espaço deste artigo não permite discutir convenientemente todos os aspetos teóricos e metodoló-gicos envolvidos.

Fica claro que se trata aqui de um exercício interpretativo, no domínio da arte rupestre, a partir dos textos, da língua e da memória das pessoas.

Existem, é certo, problemas epistemológicos (e outros) a considerar (Echo-Hawk 2000; Harrison e Schofield 2009).

Porém, para encurtar caminho, presume-se a “existência de um fundo cosmológico comum pan ama-zônico, de longa duração temporal e em permanente mudança histórica, embora marcado por lacunas ou descontinuidades geográficas, que possui, além de um valor etnográfico, uma expressão estética” (Gomes 2012: 2).

Estamos pensando, claro, no perspetivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 1996, 2002, 2004), um dos pontos fortes da agenda antropológica americanista (ou amerindianista) atual.

Não é nova a ideia de pensar o perspetivismo ameríndio na perspetiva da arqueologia (Barreto 2009; Gomes, 2012). Esse exercício foi, sobretudo, aplicado ao universo da cerâmica pré-colonial ama-zónica. Enrico Comba (2014), invocou, recentemente, as eventuais vantagens de aplicar o perspetivismo ameríndio ao estudo da arte paleolítica europeia. Testar a sua aplicabilidade à arte rupestre amazónica é um primeiro passo, certamente mais curto, e, aparentemente, mais sustentável.

Pensando na interpretação da arte rupestre, salta a vista a importância, neste modelo, da relação entre os humanos e os animais, sobretudo (mas não apenas) quando se trata de interpretar os omnipre-sentes zooantropomorfos.

O perspetivismo ameríndio foi, na sua génese, o resultado de uma análise global das muitas e varia-das etnografias amazónicas que, apesar das distâncias geográficas e linguísticas, apresentam muitos mitos e crenças comuns (Viveiros de Castro 1996; Halbmayer 2012).

O autor do conceito, numa interessante reflexão sobre o mesmo (Viveiros de Castro 2002: 122, 123), conseguiu repetir, em apenas seis linhas de texto, oito vezes a mesma expressão: ponto de vista. O artifício literário não me parece inocente: do meu ponto de vista, ele sublinha a verdadeira importância do olhar e dos olhos, para o caçador amazónico.

Na língua Tiriyó, como notou Denise Grupioni (2009: 22), o olhar e o olho (ene, enu) estão na raíz de alguns conceitos fundamentais, como, por exemplo, empa (ensinar) e ëempa (aprender); para além destes, acrescente-se ainda enu(ru) (nascer), enta (acordar), enuta (lembrar), para além de outros casos análogos em Wayana (Chapuis e Rivière, 2003: 429), ou em Waiwai (Zea, 2010).

Porém, o exemplo mais interessante, quando pensamos na arte rupestre guiano-amazônica, é a palavra “face” que, em Tiriyó, se diz enpata. Isto é, à letra, “o lugar dos olhos”.

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Do meu ponto de vista, parece claro que o perspetivismo amazónico faz parte da própria estrutura das línguas indígenas. Orais ou “escritas”

Na verdade, no que diz respeito à relação homem/animal, a língua Tiriyó tem várias formas para expressar aquilo que Philippe Descola caracterizou como próprio de “sociedades pré-modernas, que, en-carando os animais não como sujeitos de direito tutelado, mas como pessoas morais e sociais plenamente autônomas” (Descola 1998: 25).

Por um lado, no emprego de pronomes, distinguindo-os entre animados e inanimados. Por exemplo, akï? “quem?” (animado) e atï? “que coisa?” (inanimado). Homens e animais estão na mesma categoria gramatical.

Por outro lado, os nomes, em Tiriyó, podem ser obrigatoriamente possuíveis, optativamente pos-suíveis, ou nunca possuíveis. Os animais, como seria de esperar, encontram-se nesta última categoria.

Segundo o linguista que estudou o Tiriyó, “while reading Tiriyó texts, one has the impression that animal names are not simple nouns, but really represent sometimes ‘animal tribes’, similar to, e.g., tarëno ‘Tiriyó’, waijana ‘Wayana’, etc., and sometimes individuals, like personal names” (Meira 1999: 244)

Ou ainda “in some stories, vocative terms for animals occurred (e.g., iwa ‘iguana-voc’, corresponding to iwana ‘iguana’); kinship terms are the only other group of nouns with vocative forms” (Meira 1999: 244)

Esta fossilização do perspetivismo na estrutura gramatical do Tiriyó, implica certamente, alguma pro-fundidade temporal. Espera-se, claro, que ela seja compatível com a idade das gravuras do Tïhtakariwaïn.

A relação entre as gravuras e a língua (e a literatura oral) é certamente mais problemática. Desde que foram pensadas e executadas, as gravuras mantiveram-se virtualmente inalteradas (Larsson 2004). As línguas e as narrativas, obviamente, não.

É interessante verificar que, entre os especialistas de arte rupestre (ou de arte indígena) é fácil en-contrar expressa, de forma mais ou menos metafórica, a ideia de uma certa identidade entre arte gráfica e escrita.

Limitando a pesquisa a investigadores trabalhando atualmente na região, em sentido amplo, e co-meçando pelos arqueólogos:

a) “La lente et complexe invention de l’écriture n’a été, ni la première ni la seule forme que l’homme a trouvé pour communiquer au moyen de signes tracés” (Mazière 2008: 141);

b) “essa forma de linguagem possui uma gramática gerativa e estrutural que pode ser estudada e compreendida.” (Schaan 2001: 8);

c) “the study of a native language present in paintings and engravings” (Muñoz 2010: 933); d) “ as tradições de pintura e gravura pré-históricas poderiam ser comparáveis a famílias linguís-

ticas, no interior das quais as línguas evoluem” (Pessis e Guidon 1992: 21).

Passando pelos antropólogos:a) “uma concepção de iconografia e de grafismos indígenas definidos como veículos de comuni-

cação visual estética.” (Vidal e Silva, 2007 : 283);b) “o kusiwa, arte gráfica que é aplicada sobre diferentes suportes (corpo, cerâmica, cabaça e, hoje

em dia, papel), pode ser traduzido como representação gráfica abstrata, e inclui outras formas de repre-sentação alheias à tradição do grupo, como a escrita”.(Gallois 2007: 210);

c) Os “Kayapó (…) possuem uma palavra para pintura, No’ok, e (…) esta palavra somada à pala-vra folha, Pi’ok, é que deu origem à palavra Pi`okno`ok, que poderíamos traduzir como escrita no papel.” (Ferreira 2010: 47).

Nos dois últimos exemplos, para além da opinião dos antropólogos, está sobretudo expresso, através

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da língua, o ponto de vista dos índios. De fato, a introdução da escrita, entre estes povos, foi conceptu-alizada como mais uma forma de desenho ou pintura. Ou, se preferirmos, mais uma forma de escrita.

Em Tiriyó, como seria de esperar, menuhte, significa desenhar, pintar ou escrever.Posto isto, é claro que a arte rupestre não se esgota nas suas eventuais funções enquanto forma de

comunicar e de arquivar memória.Há que pensar nas práticas e crenças xamanísticas, omnipresentes nas sociedades indígenas da

região e tidas como elemento-chave para a interpretação da arte indígena (Reichel-Dolmatoff 1975). Há que pensar, claro, na dimensão social e política. Há que pensar na criatividade individual e coletiva. Há que pensar nas limitações e possibilidades da própria expressão gráfica.

3. O lugar do Mito

Le Piyanakoto est déjà rentré dans la caverne. Kailawa est mortifié.Ils veulent casser le roc, ils ont bien vu par où il est reparti,mais il est (déjà) rentré dans la caverne.> (Kailawa et ses hommes) brisent pourtant (ce qui obstrue) l’entrée, en vain,ça ne cède pas parce que le rocher est épais.Comment (faire) ? Il y avait sans doute quelque chose qui permettait d’ouvrirde l’intérieur, et qui a été fabriqué autrefois !

> C’est pour ça que ça s’est relevé dès que (l’assassin) est entré, bien que ce soit épais et lourd ; ces choses-là ne peuvent être soulevées (comme ça) ! Des bois sont essayé en vain, les massues se fracassent, ça ne sert à rien !Dedans (la caverne, les Piyanakoto) font du vacarme. (Chapuis e Rivière, 2003: 711)

L’endroit est dégagé parce que c’est une colline.La montagne est ainsi, et parce que ça se passe dans la vallée,(Kailawa et ses hommes) le voient, à lui.(Sikëpuli) se pare: il attache ses jambières, sa ceinture,> accroche sa parure d’oreille, là et là.Son casse-tête est de ce côté-ci, sa parure d’oreille de ce côté-là,mais on ne sait pas comment il peut tenir (ses armes) quand il combat”

(…) ”Puis (Sikëpuli) danse comme cela et les parures d’oreille tintent…parce qu’il a déjà (mis) ses parures d’oreilles(Chapuis e Rivière 2003: 723)

Estes dois excertos fazem parte do conjunto de narrativas dos Wayanas focadas na guerra entre eles e os Tiriyó. O episódio evocado assinala o final do ciclo das guerras fraticidas e o início de uma nova era de paz (Chapuis e Rivière 2003: 729).

Segundo se conta, entre os Wayana, os Tiriyó (Piyanakoto) esconderam-se numa gruta e bloquea-ram a entrada. Kailawa, o herói Wayana, incapaz de resolver o problema, chamou para o efeito um outro demiurgo, Sikëpuli, que, antes de desfazer a rocha com a sua borduna mágica (que emite raios) e liquidar

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os refugiados, prepara a parafernália para a ação: cinto, perneiras, brincos, borduna.É sugestivo, como hipótese de trabalho, identificar o cenário desta história com a caverna de

Tïhtakariwaïn, aceitando, pelo menos até nova ordem, a interpretação dos próprios Tiriyó.Antes de mais, porque: a) é uma gruta suficientemente espaçosa para acolher um número razoável de pessoas;b) apresenta uma entrada estreita cujo bloqueio teria sido viávelc) se implanta na interface entre a montanha/floresta e a planície/savana).

Note-se que o informador de Jean Chapuis, Kuliyaman, indicou uma localização diferente, algures mais a Leste, junto à nascente do Mapahony, entre as nascentes do Litany e as do Jari (Chapuis e Rivière 2003: 729); este deslocamento geográfico pode, porém, dever-se ao fato de Tïhtakariwaïn ficar, atualmen-te, fora do território ocupado pelos Wayana. Na verdade, seria interessante testar se, junto às nascentes do Mapahoni, existe alguma outra caverna candidata ao título.

Convém anotar que o fato de ter eventualmente servido como cenário de guerra, não retira o cará-ter xamânico que os Tiriyó lhe atribuem e que o nome indiretamente pode evocar.

De resto, a guerra, nessas narrativas, era inseparável de práticas mágicas. De acordo com Jean Chapuis, “Kailawa est le maître des ‘hemït’ (…) Aucune expédition de guerre,

d’une façon générale, n’était envisageable sans ‘hemït’” (Chapuis e Rivière, 2003: 757) e “les chamanes étaient indispensables à la préparation de toute attaque, chez les Wayana comme dans la plupart des grou-pes Amérindiens” (Chapuis e Rivière, 2003: 769).

Os hemït eram, para os Wayana, unguentos, feitos sobretudo com plantas mágicas, que se passavam no corpo dos guerreiros, para estes adquirirem capacidades sobrenaturais.

A kariwaija, que, como referi, parece integrar o nome Tïhtakariwaïn, é uma “species of plant used by shamans for witchcraft” (Meira 1999). Num dos textos da literatura oral Tiriyó, o dos “Irmãos que viajaram para o céu”, a kariwaija aparece listada como um dos ingredientes do produto que permitiria aos protagonistas levantarem voo (Koelewijn e Rivière, 1987: 174).

Guerra e xamanismo (Fausto 2000). Tïhtakariwaïn.

4. Risco a RiscoInterpretar significa, entre outras coisas, correr riscos. É possível, com base nos argumentos acima ex-postos, que a caverna de Tïhtakariwaïn tenha sido cenário dos “fatos” descritos na literatura oral, ou até que os tenha inspirado.

Na verdade, costuma considerar-se que a epopeia de Kailawa, o herói fundador da “nação Wayana”, se reporta a uma época relativamente recente, eventualmente meados do sec. XIX, ou, de qualquer modo, a uma fase em que se supõe que já ninguém fazia arte rupestre; tendo isto em conta, mas mantendo al-gumas reservas, convém admitir que as gravuras podem ser anteriores ao mito ou que o mito possa ter fundido eventos de tempos diferentes.

Nas próximas linhas, vamos analisar e comparar alguns dos elementos que compõem os dois pai-néis em apreciação, elencando pistas para uma interpretação possível.

O Painel A representa uma cena complexa, da qual se destaca o próprio Tïhtakariwaïn, o “xamã das pernas tortas” (na expressão dos meus informantes) em baixo, à direita. Esta figura, à partida, pela sua proeminência, poderia corresponder ao Kailawa do mito Wayana, uma vez que ele era o modelo perfeito do xamã e do guerreiro.

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Segundo parece, entre os Wayana, “les chefs combattaient rarement et demeuraient à l’écart du lieu des affrontements.” (Chapuis e Rivière, 2003: 751, nota1836). Esta suposta atitude contemplativa e a posição descentrada em relação ao resto da cena, condiz razoavelmente com a imagem.

Porém, apesar de separado espacialmente, estabelece-se uma ligação, a partir do toucado de penas, com o resto da cena, como se o personagem a estivesse pensando ou sonhando. Na verdade, estaria pro-vavelmente “vendo”, uma vez que o líder guerreiro, em Wayana, era designado como “ënetën, ‘celui qui regarde’, ‘celui qui voit’ ” (Chapuis e Rivière 2003: 429)

Ao lado do personagem principal (Tïhtakariwaïn/Kailawa), destaca-se outra figura (Fig.5, nº 4), em plena ação. Tem ambos os braços levantados e, numa das mãos, um bastão longo que brande, aparentemente, contra o labirinto (Fig.5, nº 3). Seguindo o mito Wayana, seria Sikëpuli, o demiurgo amigo de Kailawa que o ajudou a vencer os Tiriyó, rompendo as rochas que bloqueavam a caverna, com o seu bastão mágico que expelia raios.

Esta figura tem algumas caraterísticas gráficas relativamente comuns no contexto amazónico-guianense.A cabeça triangular, por exemplo, é um elemento que percorre toda a região, a Norte do Ama-

zonas, em paralelo com as figurações de caras mais ou menos circulares. Na Guiana Francesa, o sítio de La Carapa (Mazière, 2008: 27), apresenta uma notável gama de variantes com antropomorfos de cabeça triangular.

Também o corpo lenticular segmentado longitudinalmente é relativamente frequente na arte ru-pestre amazónica e guianense, com paralelos na Guiana Francesa (Mazière 2008: 41) e em Monte Alegre (Pereira 2003: 140, 154), mas também a Sul do Amazonas, em Altamira (Pereira, 2003: 175); na Ilha dos Martírios, essa solução gráfica aparece usada num zoomorfo (jacaré) (Pereira, 2003: 112).

Este personagem parece agir diretamente com a figura do labirinto (Fig. 5, nº3) que poderíamos interpretar como uma simbolização da caverna: com dois corredores ortogonais, o maior deles ligado à entrada estreita, representada na parte superior do labirinto. Em volta da gruta, o caos de blocos. É pos-sível que a estrutura da gruta fosse comparável a uma cabaça (kariwa), metáfora que podia corresponder, graficamente, à parte central do labirinto.

Acima do labirinto parece desenrolar-se uma cena de luta (Fig.5, nº 2), envolvendo dois ou três antropomorfos. Esta cena poderia aludir ao extermínio dos sitiados.

Em baixo (Fig.5, nº 6), aparece uma cabeça triangular com apêndices auriculares, invertida e sem corpo. Poderia tratar-se também de uma alusão aos vencidos, um cadáver no campo de batalha.

Por último, no canto superior esquerdo da cena, fazendo pendant com o Tïhtakariwaïn, destaca-se um veado, de cabeça para baixo. Para esta figura, porventura a mais enigmática do conjunto, não encontrei parale-los na iconografia amazónica. Por outro lado, o veado também está ausente dos mitos dos Tiriyó e dos Wayana.

Porém, tanto para Norte, como para Sul, o veado é um grande tema da arte rupestre ameríndia (e, até certo ponto, global). Na Colômbia, por exemplo, os índios Tunebo, acreditam que quando um veado morre, a sua alma vai para as montanhas e transforma-se num humano (Marriner 2002: 33).

Segundo André Prous, “in central Brazil, the more praized animals for indian hunters are deer, pec-cari (wild american pigs) and tapir. But in the rock art of Minas Gerais state, deer are the dominant painted animals in Planalto tradition, while pecaris are quite completely absent and tapir cannot be seen;” (Prous 2002: 9).

A posição claramente superior desta figura parece relacioná-la com o céu (kapu). Na verdade, a sua posição invertida tanto pode implicar que está caindo do céu como que está subindo ao céu. Poderia tratar--se de um demiurgo (tal como o sapo registado por Frikel) eventualmente esquecido no mito Wayana? Ou as almas dos mortos subindo para Leste? Este é certamente um tema que exige futuros desenvolvimentos.

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Fig. 4. O Painel AFig. 5. Painel A: detalhes analisados no texto (realçados a negro).Fig. 6. Motivo com duas espirais duplas, na Pedra do Índio, Amapá.

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Por último, em volta das personagens identificadas, espalham-se várias figuras simples que parecem remeter para a parafernália guerreira: machados, bordunas, etc. Veja-se a importância atribuída, no mito Wayana acima apresentado, aos detalhes do aparato guerreiro e xamânico, antes de Sikëpuli entrar em ação.

Do ponto de vista exclusivamente gráfico, a figura do Tïhtakariwaïn destaca-se pela sua originalida-de, embora reproduzindo uma característica muito recorrente na chamada Tradição Amazônia, a par da já comentada representação das faces oculadas: trata-se do uso de formas geométricas básicas (círculos, triângulos e, sobretudo espirais) para construir graficamente figuras esquemáticas, mas reconhecíveis.

Essa tendência, com resultados análogos, verifica-se também nos motivos gráficos dos povos indí-genas atuais. Segundo Denise Grupioni:

Tanto entre os Tiriyó, quanto entre os Kaxuyana encontramos um padrão recorrente de desenho que se situa entre o grafismo e a figura, por ser formado a partir de traçados geométricos que acabam por compor uma imagem por inteiro de animais ou seres primevos. Esse padrão (…) se destaca tanto do repertório de motivos gráficos, quanto do repertório de motivos figurativos por mesclar duas categoriais num único desenho: ime-nu e ikuhtu grafismo e imagem. (Grupioni 2009: 45)

No caso concreto do Tïhtakariwaïn, a figura humana foi estruturada por um par de espirais du-plas, justapostas simetricamente. Encontramos variantes dessa solução gráfica, mas mais estilizadas, em alguns exemplares do Erepecuru, na Cachoeira do São Nicolau (Pereira 2003: 74) e, de uma forma ele-mentar, na Pedra do Índio, Amapá (Fig.6).

De resto, este mesmo tipo de jogo gráfico surge também, por exemplo, de várias formas, na cerâ-mica Marajoara (Shaan 2001).

Mais frequente ainda, na arte rupestre regional, são os jogos de espirais desenhando faces humanas ou, no limite, apenas pares de olhos. Vejam-se, por exemplo, os casos de Monte Alegre (Pereira 2003: 136; 150), Portel (Pereira 2003: 207), Trombetas (Pereira 2003: 97) ou Erepecuru (Pereira 2003: 77). Mais uma vez, na sua forma mais despojada, atente-se no exemplar da Pedra do Índio (Fig.7)

O Painel B tem igualmente um personagem central, presumivelmente um xamã guerreiro (Fig. 9, nº1), atendendo aos adereços: máscara (de bambu), borduna e maraca (Fig.9, nº2). À sua volta, são vá-rios os items que podem corresponder ao paramento dos guerreiros, nomeadamente machados e outros artefactos ainda não identificados.

A “couraça de bambu” aparece referida diretamente no texto Tiriyó que fala da guerra com os Wayana (Koelwijn e Rivière, 1987: 262). Por outro lado, na toponímia local, Pononpë, um local junto ao Paru de Oeste, onde existem gravuras rupestres (Pereira, 2003: 91), significa, segundo os Tiriyó, “máscara de guerreiro”.

Quanto aos machados de pedra (tïpkëtë), eles aparecem referidos, en passant, como fazendo parte do arsenal bélico wayana (Chapuis e Rivière 2003: 545). Nos textos Tiriyó, em contrapartida, existe uma história que envolve um machado de pedra mágico usado para a abertura da roça.

A importância simbólica do machado de pedra, nas antigas sociedades agrícolas, derivou inicial-mente da sua importância na preparação dos terrenos agrícolas. Como outros artefactos especiais, os machados ganharam, muitas vezes, um certo estatuto de gente (Pétrequin e Pétrequin, 2006).

Na arte rupestre regional, os machados e outras armas aparecem representados com alguma pro-fusão, nas Roches du Marouini (Mazière, 2008: 103, 104), um conjunto que, como já referi, tem uma personalidade muito própria.

O personagem-herói poderia ser outra vez Kailawa, aqui representado, eventualmente, na sua missão

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de pacificador dos povos, missão que, na lógica Wayana, foi o corolário da sua intensa atividade guerreira.Para além dos adereços da praxe (entre os quais, as armas, mas também os paramentos de orelhas

e a maraca), o herói contracena com três figuras que, apesar de apresentarem estruturas semelhantes, são bem distintas entre si. Estas figuras poderiam representar linhagens ou clãs (passe ao lado a discussão teórica sobre a propriedade destes conceitos).

Todas apresentam, de baixo para cima, a mesma sequência; uma base diferenciada, seguida de três elementos de recorte antropomórfico, mais ou menos em X, seguidos de um outro diferenciado e terminando todos eles com uma figura sobressaindo da sequência: um serpentiforme (Fig.9, nº 2), um arboriforme (Fig.9, nº4) e um antropomorfo (Fig. 9, nº5).

Cada um dos elementos em X contém, só por si, uma sugestão antropomórfica. Porém, as três figuras poderiam ser organizadas em função do caráter mais ou menos explícito de outro elemento com carga antropomórfica: os pares de espirais. Na Fig. 9, nº 4, os dois pares de espirais sugerem uma figura semelhante ao Tïhtakariwaïn; na figura 9, nº 5, existe apenas um par de espirais, mas na mesma posição relativa que na figura anterior; por último, na Fig. 9, nº 2, as espirais estão ausentes, mas o resto apresenta o mesmo tipo de sequência.

Segundo a literatura oral Wayana, a estratégia de Kailawa, para acabar com a guerra endémica entre os grupos, mais ou menos aparentados, foi exterminar todos os adultos e perfilhar as crianças, por forma a manter as diferentes linhagens ou clãs, eliminando os ciclos de vingança que perpetuavam os conflitos.

Numa leitura geopolítica atual, considerando que os processos de etnogénese, mesmo que estimu-lados pela pressão colonial, deram continuidade a um processo endógeno, poderíamos considerar que os três emblemas remetiam para as raízes daquilo que são hoje os Wayana, os Apalaí e os Tiriyó, todos eles com alguma identidade linguística e cultural.

Ou, numa perspetiva mais Wayana, poderiam eventualmente corresponder a outra tríade que pare-ce ter emergido na reorganização, após a fase mais conturbada. Na verdade, os Wayana estão, hoje em dia,

“unis au sein de fédérations qui occupent l’espace politique régional : Apalai sur le Parou de l’Est, Upu-lui sur le Jari, Vrais Wayana (…) sur le Litany et le Marouini, pour ne citer que les plus puissantes de celles qui nous concernente directement dans ce travail” (Chapuis e Rivière 2003: 779)

5. Concluir é precisoComo referi, no início, este é um trabalho em curso. Um primeiro olhar. Outros dados e outras leituras, atualmente em avaliação, ficaram de fora, como é manifestamente, o caso dos alinhamentos de pedra (Frikel, 1961; Calado, 2002, 2009; Scarre, 2004).

Warunao, significa, em Tiriyó, “o lugar escuro em que o xamã faz o seu trabalho” (Meira, 1999). O Tïhtakariwaïn é tipicamente, nesse sentido, um santuário.

Estes personagens sem rosto (e, sobretudo, sem olhos) parecem contradizer uma das propostas avançadas neste trabalho, isto é, de que o perspetivismo amazónico se refletiu na frequência com que as figuras oculadas ocorrem na arte rupestre regional.

Porém, na caverna de Tïhtakariwaïn, a opção foi a inversa. De uma forma que parece intencional, considerando os temas e a escala.

Este sítio parece encenar, embora pela negação, essa obsessão pelo olhar, tão típica do pensamento amazónico.

A interpretação produzida para os dois painéis parece encaixar, com muita verosimilhança, na narrativa da gesta de Kailawa. Recorde-se que, nesse registo, o evento do massacre dos Tiriyó não é um

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Fig. 7. Par de espirais da Pedra do índio.Fig. 8. O Painel B.Fig. 9. Painel B: detalhes analisados no texto (realçados a negro).

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episódio avulso, mas marca o momento em que, de forma trágica (para os vencidos) se encerra, por pro-cessos mágicos, um ciclo tenebroso de violência (painel A) e se inicia uma fase de convivência pacífica (painel B).

É claro que se trata apenas de dois painéis, apesar de ambos muito coerentes, num conjunto bastante mais vasto. É como se, de uma HQ, tivéssemos lido apenas duas vinhetas. Resta ver o que a análise dos restantes painéis nos reserva.

Metaforicamente, há muita pedra para quebrar.Ficam, porém, algumas sementes a desenvolver em próximas etapas: a relação entre as línguas

indígenas e a arte rupestre é um dos troncos a fazer crescer, assim como a dupla aproximação da arte rupestre, aos grafismos indígenas, por um lado, e à literatura oral, por outro.

Neste processo, os indígenas já estão participando: desde logo, através das memórias escritas e da própria língua. Participaram, de forma mais personalizada, na escolha dos painéis a decalcar e na forma de o fazer. Na transmissão de tradições. Foram eles, claro, que decidiram levar-me lá.

Concluo, agradecendo, primeiro, aos Tiriyó a oportunidade de os conhecer um pouco e partilhar com eles esse esforço de olhar atentamente para os vestígios dos antigos.

Agradecendo, e muito, ao IEPÉ, em particular às Professora Dominique Gallois e Denise Grupioni. E aos antropólogos que, de um modo geral, me têm, perspetivisticamente, ajudado a ver um mundo fascinante. Sem deixar, espero, de ser arqueólogo.

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Romeiros de São Francisco do Canindé

Pilgrims from São Francisco do Canindé

Maria das Graças Tavares Silva*, Adriano de Araújo Lima**, Nagylla Dias Oliveira***, Maria Esterlian Ferreira da Silva Alves**** & Cinthia Moreira*****

*brasil, Licenciatura em ciências humanas/ bolsista de extensão / Proext / mec, universidade federal do maranhão (ufma). e-mail: [email protected]**brasil, Licenciatura em ciências humanas/ bolsista escola da terra, universidade federal do maranhão (ufma). e-mail: [email protected]*** brasil, Licenciatura em ciências humanas/ bolsista escola da terra, universidade federal do maranhão (ufma). e-mail: [email protected]**** brasil, Licenciatura em ciências humanas/ bolsista Pibid, universidade federal do maranhão (ufma). e-mail: [email protected]*****brasil, doutoranda da universidade de trás-os-montes e alto douro (utad), universidade federal do maranhão (ufma). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido em 3 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: O presente trabalho propõe apresentar uma reflexão sobre a história do festejo de São Francisco das Chagas do Canindé/Ceará-Brasil, sob o ponto de vista religioso. Dentro desta perspectiva analisamos os fatos que levam os fiéis a depositar tanta fé nesse santo dito “milagroso”.São Francisco das chagas é um símbolo de fé e esperança para os romeiros.Palavras chave: Religião / Canindé / São Francisco das Chagas / Fé.

Abstract: This work approach the history of “São Fran-cisco das Chagas do Canidé’s fest/Ceará-Brazil”, under re-ligios’s standpoint. From this standpoint the facts analised were those induce the faithfull to deposit your Faith in this saint called “miraculous”. São Francisco das Chagas are a simbol of Faith and Hopefulness to pilgrins.Keywords: religion / São Francisco das Chagas / Canidé’s / Faith

IntroduçãoO presente trabalho propõe esboçar uma reflexão sobre a história do festejo de São Francisco das Chagas do Canindé no estado do Ceará, mostrando a fé dos romeiros que fazem peregrinação todos os anos em busca de pagar suas promessas pelo o milagre concedido em suas vidas. Para cumprir suas promessas os fieis enfrentam todos os tipos de dificuldades, e quando conseguem a bênção do Santo dão testemunho da sua fé.

O santuário encontra-se localizado no Sertão Central do Ceará, a 110 km da Capital do Estado, Fortaleza. Situando-se as margens do rio do mesmo nome, a cidade de Canindé é considerada um grande centro de romaria e de fé sendo considerado um dos maiores Santuários Franciscanos do mundo, onde recebe todo ano milhares de devotos, das diversas partes do país, em sua grande maioria da região Norte e Nordeste.

Segundo Willeke (1973) depois que o santuário de São Francisco das Chagas de Canindé foi oficia-lizado pela a autoridade eclesiástica, o culto ao Santo conquistou muitos devotos no Ceará que através da

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evangelização dos frades barbadinhos. Passando dos limites do estado do Ceará reunindo os emigrantes cearenses, que sofrem as terríveis secas, pessoas de todos os estados brasileiros adoram e invocam a São Francisco de Canindé em sinal de fé e santidade.

A origem do festejoA construção da igreja de São Francisco das Chagas de Canindé foi iniciada em 1775 sendo construída por Francisco Xavier de Medeiros sargento-mo Português. Durante a construção que foi logo interrom-pida pela seca e consequentemente houve um atraso nas obras. Esse santuário teve sua origem misteriosa como nos mostra a historia dos antigos que vivenciaram essa experiência segundo Oliveira:

Francisco Xavier de Medeiros ao erguer o templo para São Francisco, no local revelado pelo Santo, é impe-dido por três irmãos vindos do Jaguaribe14, que se diziam donos do terreno. Mas por querer contrariar os desejos do Santo, morrem dois irmãos vitimas de misteriosa moléstia, o último deles sentindo os mesmos sintomas dos anteriores, temendo morrer, oferece o local para construir (Oliveira 2005: 309)

De acordo com a história, esse santuário ficou conhecido pelos fatos miraculosos atribuído ao santo

São Francisco das Chagas que revelou-se vivo para os trabalhadores do templo, na ocasião de uma queda de um dos trabalhadores chamado Antônio Maciel “quando Francisco Xavier de Medeiros presenciando o incidente, bradou por São Francisco. E o estupendo milagre não se fez esperar; pois naquele vertiginoso trajeto, Maciel ficou pela camisa preso a uma tábua, pouco abaixo da janela da sineira” (Willeke 1973: 25), outro fato, foi quando o construtor da igreja chamado Medeiros foi atingido por uma tesoura (madeira de sustentação do telhado) que lhe caiu sobre a coxa, ficando gravemente machucado, milagrosamente no dia seguinte pôde dar continuidade ao seu serviço como se nada tivesse acontecido; a terceira situação foi a aparição de um ratinho dentro de um caixote junto com a escultura de São Francisco de Assis vindo de Lisboa, todos ficaram admirados, pois o pequeno rato não ofendeu a imagem e estava bastante nutrido.

Por meio da fé os romeiros buscam cicatrizar as chagas de suas vidas fazendo promessas e pere-grinações. De acordo Antônio um romeiro e organizador de excursões de Bacabal-Maranhão-Brasil, por conta de um câncer que sofreu, o mesmo fez uma promessa que passaria 8 anos sem cortar o cabelo pagando alimentação gratuita para todos os romeiros de sua excursão. Ainda segundo Antônio, o mesmo paga promessas também feitas por amigos e familiares com o mesmo objetivo, a fé de curá-lo, enfim, hoje já somam 12 anos de romaria e peregrinações. Depoimento cedido pelo romeiro Antônio dos Santos em abril de 2014.

A romaria é uma pratica religiosa que durante décadas impulsiona varias pessoas que busca um encontro com o sagrado. Esses romeiros que possuem uma fé inabalável, pois acreditam nesse santo e fazem as suas peregrinações todo ano em busca de fortalecimento espiritual e consolo para a sua alma, não importa o cansaço e a fatiga, a fome que passam durante a sua jornada até a cidade de Canindé, pois eles têm certeza que irão alcançar os seus objetivos no relato do devoto Antônio que durante esses 12 anos de romaria ele ainda paga promessas, pois não só ele fez promessa na fé da cura de sua doença, mas muitos amigos e familiares também fizeram.

Segundo Willeke (1973) não é só em Canindé que são Francisco é venerado por conta das suas chagas, pois ele é adorado em toda parte,destas eras passadas foi canonizado em 1228 depois de dois anos da sua morte, São Francisco teve o seu culto espalhado em todo o mundo onde ele estendeu e fundou as suas três ordens. E ainda de acordo com Willeke há três motivos da devoção franciscana ter conquistado tanto a simpatia dos devotos:

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Fig. 1. Romaria – Cidade de Canindé. Fonte: Albuquerque, 2013.

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1º o nascimento do patriarca assisiense a lenda tão parecido ao de Cristo – pois, teria nascido num estábulo – e as circunstâncias difíceis porque então a mãe do santo teria passado, de modo que as gestantes até o presente proclamam São Francisco seu advogado, usando muitas o cordão franciscano; 2º a estigmatização, fato historicamente provado que, antes do nosso santo, outro nenhum gozou, razão por que durante muito tempo mereceu uma festa particular na Igreja universal e desfruta o carinho filial das três Ordens seráficas, que a tornaram popularíssima no orbe cristão: 3º a morte invulgar do Poverello e a anual cerimônia comenorativa do “Trânsito” que constituíram o santo, guia das almas para o outro mundo e libertador do purgatório e tudo isto justamente pelos merecimento das sagradas chagas.(Wil-leke 1993: 19)

Como podemos perceber esses motivos acima elencados conquistaram vários devotos vendo no santo um refúgio para os seus problemas e um segundo Cristo. E esse festejo tem conquistado milhares de féis, pois eles acreditam que as suas orações serão ouvidas e suas doenças curadas. Esse santuário que atrai milhares de pessoas é carregado de um valor sagrado, os romeiros vêem a esse lugar na esperança da cura de suas chagas, essa motivação de fé buscando o transcendente os devotos não medem esforços em busca da sua vitória, pois enfrentam a distância, às vezes em precárias condições de transporte, como por exemplo, em pau-de-arara (tipo de transporte), a pessoas que fazem promessa de ir até a pé como foi o caso do Antônio, romeiro citado acima. Enfim, individual ou em grupo essas pessoas sacrificam seus corpos a fome e a sede, tudo isso para alcançar a benção celestial que esse lugar representa para eles segundo Duarte:

Caminhar, orar, pedir e agradecer são verbos importantes que norteiam e alentam o percurso de um devoto em romaria. Muitos são os sentidos de “orar com os pés”. As caminhadas de fé são enfrentamentos, feitos em direção a santuários ou para um lugar atribuido como sagrado, santificado em função de algum aconteci-mento miraculoso, um sinal, uma teofania. São para esses locais, sensibilizados por histórias prodigiosas, que os romeiros vão para cumprir um voto (agradecer) ou pedir uma graça especial (Duarte 2010: 2)

Nesse sentido, o santuário de São Francisco das Chagas desempenha um papel de fundamental importância na vida desses romeiros que fazem esse percurso todo ano em busca do sagrado. De acordo com Duarte, quem trouxe o costume das romarias para o Brasil foram os portugueses, sendo que as primeiras romarias aconteceram em 1743 e 1750, mas somente a partir de 1900 é que as romarias foram realizadas pelo o incentivo da igreja católica. Esses locais durante anos têm sidos divulgados pela mídia tornando-se muito atrativo para o turismo religioso.

Conclusão Em suma, as romarias representam um grande valor para os romeiros, pois é um encontro com o trans-cendente. Os costumes em volta das romarias como, por exemplo, o de caminhar, deslocando grandes distâncias a propagação dos milagres, tudo isso proporciona aos devotos uma fé inabalável e esperança de atingir os seus pedidos.

De acordo com o relato do romeiro Antônio, onde chega a nos dizer que houve uma vez em que subiu a escadaria da igreja de joelhos com um prato de velas na cabeça, outras vezes foi vestido de traje de São Francisco, enfim, quando as súplicas são para casos mais graves (doenças), os devotos não medem esforços quanto às promessas. Ainda de acordo com Antônio falta-lhe uma promessa a ser cumprida, ir a pé até o Canindé, ou seja, muitos quilômetros lhe aguardam nessa jornada de fé e peregrinação, mas

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que valerá muito apena, afinal foi curado de um câncer. Antônio diz em seu relato que se pudesse ficaria o festejo todo, mas as despesas são muito altas, por isso ele aproveita os últimos dias do festejo, ou seja, quando não é ano de eleição presidencial, eles saem no dia 1 de outubro e só retornam no dia 4 após o encerramento de festejo, já nos anos em que há eleição presidencial como é o caso deste, por exemplo, o festejo só ocorrerá após a eleição.

Referências

Duarte, Ana Helena da S. Delfino (2010). Romarias: Experiência De Fé E Circularidade Cultural Dis-ponível em<URL: http://www.anpuhsp.org.br/.../Ana%20Helena%20da%20S.%20Delfino%20Du

Oliveira, Marcelo João Soares ( 2005). O Símbolo

e o Ex-Voto em Canindé.Revista de Estudos da Religião. Nº 3, 2003, pp. 99-107. Dispo-nível em<URL: http://www.pucsp.br/rever/rv3_2003/p_oliveira.pdf

Willeke, V. (1993.) São Francisco das Chagas de Canin-dé, Petrópolis, Vozes.

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Comunidade Quilombola de São Sebastião dos Pretos: A religiosidade de um povo expressada nas batidas dos tambores da Umbanda

Quilombola community of São Sebastião dos Pretos: the religion of a people expressed in beats of drums of Umbanda

Maria Esterlian Alves*, Elane Sousa**, Cleber Lima do Nascimento***, Gilva Alves Leitão**** & Cintya Moreira*****

*brasil, Licenciatura em ciências humanas, bolsista Pibid, universidade federal do maranhão (ufma). e-mail: [email protected]**brasil, Licenciatura em ciências humanas, bolsista Proex-dae, universidade federal do maranhão (ufma). e-mail: [email protected]*** brasil, Licenciatura em ciências humanas, bolsista Proex/dae, universidade federal do maranhão (ufma)**** brasil, Licenciatura em ciências humanas, bolsista Proex/dae, universidade federal do maranhão (ufma)*****brasil, doutoranda da universidade de trás--os-montes e alto douro (utad), universidade federal do maranhão (ufma). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido em 3 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Este artigo busca abordar os aspectos histó-ricos e culturais da comunidade de São Sebastião dos Pretos, destacando e dando uma maior ênfase nas aná-lises, no que concerne a religiosidade e suas festividades afro-brasileiras expressadas nos festejos de Umbanda.Palavras chave: Quilombo / Comunidade / Religiosi-dade / Umbanda / Festejo.

Abstract: This article seeks to address the historical and cultural aspects of the community of São Sebastião dos Pretos, highlighting and giving a greater emphasis in the analysis, regarding the religiosity and their Afro-Brazilian Festival of us expressed festivities Umbanda.Keywords: Quilombo / Community / Religiosity / Umbanda / Celebrate.

IntroduçãoA Comunidade Quilombolas de São Sebastião dos Pretos, localiza-se no município de Bacabal (Mara-nhão/Brasil), a 12 km da sede. Tem como principal expoente da sua religiosidade a umbanda, que é pra-ticada pela grande maioria dos moradores da comunidade. No dia 20 de Janeiro é comemorado o dia de São Sebastião, que segundo a tradição histórica São Sebastião teria nascido na França 256D.C. a 280 D.C. Originário de Narbonne na cidade de Milão foi um mártir e santo cristão, morto durante a perseguição levado a cabo pelo imperador romano Diocleciano.

História da comunidade No município de Bacabal região centro-oeste do Estado maranhão estão localizados diversos povoados

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denominados de Comunidades Quilombolas. Dentre estas comunidades quilombolas destacaremos aqui em especial a comunidade quilombola de São Sebastião. Situada a 12 km da sede, esta comunidade é uma das que apesar das muitas transformações e mudanças pelas quais passa o mundo contemporâneo ainda sim procura preservar sua cultura local. Cultura esta que não está visível somente nas suas manifestações de religiosidade. Mas estas manifestações são visíveis e nítidas em outras formas de expressões cultu-rais como, por exemplo: as danças e suas peculiaridades (gingados, ritmos e maneiras de confeccionar seus instrumentos musicais bem como suas vestimentas) próprias daquela comunidade as quais daremos maior ênfase neste trabalho.

Sendo orientados pelo organismo social, os objetos existem condicionados por um sistema de prá-ticas capaz, também, de marcar as mudanças ocorridas no espaço geográfico. A morfologia desse siste-ma de objetos relacionada à sua funcionalidade distinguiriam as épocas ou períodos históricos (Santos 2004:96). A distinção entre a paisagem e o espaço ocorre na medida em que a paisagem seria a visuali-zação de um “sistema material” composto por elementos artificiais ou naturais, que se apresentam sob uma distribuição de formas-objetos, provindas de um conteúdo técnico específico (Santos 2004:103), enquanto o espaço seria “um sistema de valores” (Santos 2004: 104) em permanente transformação.

O povoado de São Sebastião dos Pretos tem uma população estimada em torno 90 moradores entre crianças, jovens, adultos e idosos. Sendo que aqueles que ali residem tem como principal fonte de renda a prática da agricultura de subsistência. Ou seja, os moradores daquele povoado ainda se uti-lizam de práticas agrícolas ainda bem rudimentares. Praticas estas ainda muito usadas no interior do Maranhão por famílias não quilombolas. Isso em pleno século XXI, o século da modernização. Naquela comunidade ainda usam as práticas de derrubar a mata e colocar fogo para limpar o terreno. Feito isto planta-se a chamada roça no pé do toco. As culturas agrícolas mais comuns são o cultivo do arroz, feijão e principalmente a mandioca. Esta utilizada largamente na produção de farinha denominada de farinha puba ou farinha branca. Sendo que aquela é produzida em maior quantidade que esta. O povoado conta com energia elétrica e poço artesiano com distribuição de água encanada e potável para quase todas as residências quilombolas.

Além disso, o povoado conta com uma igreja Católica (denominada de Capela) construção esta que aparenta ser bem antiga, uma associação de moradores construída mais recentemente (entre 2008 e 2009). Uma casa de farinha mecanizada e duas outras casas de farinha que se utilizam modos tradicionais de produção de farinha de mandioca. Uma escola de nível fundamental que funciona os três turnos (ma-tutino, vespertino e noturno) e na região central do povoado está localizada a famosa Tenda São Sebas-tião dos Pretos. Local este onde os moradores dali praticam sua fé afro-brasileira. Esta “tenda” desperta e chama a atenção de quem por ali passa ou visita. É muito comum a visita de pessoas de outros Estados e até mesmo estrangeiros na comunidade. Estes interessados em conhecer mais de sua história e cultura local. Na comunidade as festividades em comemoração ao dia de São Sebastião dos Pretos acontecem no prédio da associação de moradores e na Tenda São Sebastião dos Pretos.

A comunidade conta com o titulo de posse da terra. Sendo que ainda é uma das poucas no municí-pio de Bacabal que é de fato registrada como sendo uma comunidade quilombola. A expressão quilombo vem sendo sistematicamente usada desde o período colonial para definir estas comunidades, segundo Ney Lopes “quilombo é um conceito próprio dos africanos bantos que vem sendo modificado através dos séculos” (...) Quer dizer acampamento guerreiro na floresta, sendo entendido ainda em Angola como divisão administrativa” (Lopes, Siqueira e Nascimento 1987: 27-28). O Conselho Ultramarino Português de 1740 defi-niu quilombo como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despro- vida, ainda que

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não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. 10 Indica, também, uma reação guerreira a uma situação opressiva. David Birmigham (1974) sugere que o quilombo se origina na tradição mabun-da, através de organizações clânicas, e que suas linhagens chegam até o Brasil através dos portugueses.

Até os dias atuais ainda se percebe naquela comunidade traços e características históricas marcan-tes desses quilombolas antigos; por exemplo, ainda existe na comunidade um panelão todo de ferro que é um símbolo marcante do período da escravidão; além de pedaços de um grilhão que foi usado na época da escravidão para aprisionar os escravos.

A questão da mobilidade dos moradores da comunidade para a sede do município (Bacabal) é feita por uma estrada de chão (estrada carroçal) até a BR-316, em média 9 km do percurso não é pavimentado. Entre os anos de 2007 a 2009 a comunidade passou por uma grande transformação no que se refere à infraestrutura de suas moradias. O que outrora eram construções rusticas feitas de madeiras (forquilhas, barro, cipó, esteios, talos de babaçu bem como a palha do babaçu para a cobertura das casas e chão de terra batido). Atualmente estas construções tradicionais estão sendo substituídas em sua grande maioria por casas de alvenaria (casas construídas de tijolos e cimento e cobertas com telhas de cerâmicas). Um projeto feito em parceria a Caixa Econômica Federal e Prefeitura Municipal de Bacabal construíram 80 moradias na comunidade quilombola de São Sebastião dos Pretos. Mas apesar das transformações sofri-das na estrutura física dos do povoado como a construção de casas e associação dentre outras os morado-res deste quilombo lutam para manter e conservar vivas e intactas sua religiosidade e suas danças típica.

Segundo as tradições afro-brasileiras, o Orixá Oxossi na Umbanda é sincretizado como São Sebas-tião. Oxossi é o grande Orixá das florestas e das relações entre o reino animal e vegetal. Grande caçador, comumente é representado nas florestas caçando com arco e flechas.

Festejo de São Sebastião Na semana que antecede o dia de São Sebastião, a comunidade de São Sebastião dos Pretos reúne-se para festeja-lo, através de suas danças principalmente o tambor de crioula, dança esta muito marcante na co-munidade, onde homem e mulheres se reúnem e ao som animado dos tambores cultuam-se e ao mesmo tempo celebram ao Orixá Oxossi, representado pela figura de São Sebastião.

O teor religioso dessas festividades é expresso pelo respeito, pela união, pela solidariedade entre os membros daquela comunidade, que se preparam com antecedência para celebrar esta data tão memorá-vel e importante. E ao som marcante dos batuques de seus tambores e cantigas, preces e rezas, oferecidos ao santo padroeiro daquela comunidade, festejam e renovam sua fé.

O festejo se São Sebastião tem duração de uma semana de festividade no culto afro-brasileiro. Ou seja, começa com missa realizada na pequena igreja Católica da comunidade e segue com uma procissão pela comunidade. O tradicional festejo reúne pessoas de muitas outras comunidades quilombolas como: Catucá, Piratininga, Guaraciaba e comunidades não quilombolas como; Bom Princípio, Encruzilhada da Taboca, Pe-dra do Rumo e Lusiana do Bubu. Além de pessoas vindas da sede (Bacabal) e de outros municípios vizinhos bem como da capital do Estado (São Luís). Logo ao amanhecer do dia os moradores começam os preparativos. Estes fazem uma fogueira para aquecer os tambores que serão utilizados para animar o festejo. Estes tambores usados pelos brincantes são confeccionados pelos próprios moradores que utilizam na sua confecção toras de madeira oca. Esse trabalho de confecção dos tambores é totalmente artesanal. Em seguida a madeira oca é trabalhada, ou seja, é feito os cortes necessários e os revestimentos com couro de boi cru e enfim ganham o formato e o som desejado. Os brincantes utilizam três tipos de tambores, um pequeno, um médio e um grande. Ambos são colocados próximos a uma fogueira para serem aquecidos antes serem usados.

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Fig. 1. Batida dos tambores na comunidade São Sebastião, Bacabal, Maranhão, Brasil. Fonte: Própria.Fig. 2. Dança dos Tambores de criola na comunidade São Sebastião, Bacabal, Maranhão, Brasil. Fonte: Própria.

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Quanto às vestimentas e ornamentos usados pelos brincantes durante o festejo são em geral saias brancas e longas para as mulheres e para homens calças em geral branca. As danças acontecem na sede da associação de moradores da comunidade. Onde as mulheres com saias longas rodopiam pelo centro salão ao som dos tambores de crioula. Ao passo que os homens as cortejam (ou as congar no dizer local). E durante o dia são feitas oferendas na tenda São Sebastião. São entoadas cantigas e rezas bem como acendem velas e levam oferendas aos orixás. A tenda de São Sebastião fica bem ao centro da comunidade e uma construção feita de taipa e coberta de telhas. Uma tenda bem simples, mas que tem uma significa-ção muito grande para aquela comunidade. Pois esta expressa à crença e a tradição dos seus antepassados afro-brasileiros.

O festejo realizado naquela comunidade é um grande momento, onde se percebe que a alegria estampada nos rostos de cada um, faz com que aquela festividade fique cada vez mais fortalecida. Uma mistura de religiosidade, de cultura, pois observa-se que a valorização da cultura negra a todo momento é exposta através das danças afrodescendente; a culinária é bastante diversificada, mas os traços culturais dos antepassados também são notados na riquíssima culinária que com um sabor especial de temperos fortes e coloridos dão um charme e uma beleza a mais nas festividades dessa comunidade. A riqueza desse festejo se expressa principalmente na fé de um povo que acredita e respeita indiscutivelmente no orixá oxosi, que é representado por São Sebastião, e os ensinamentos passados as crianças demonstra a importância de preservar as tradições dos antepassados, que viveram como escravos, mas lutaram para manter vivas até hoje suas tradições.

ConclusãoAtravés da realização anual do festejo de São Sebastião, nota-se entre os membros da comunidade qui-lombola de São Sebastião dos Pretos um forte laço que os unem em torno desta festividade e que os faz preservar e manter viva e acesa as suas raízes.

Referências Lopes, Helena Theodoro; Siqueira, José Jorge;

Nascimento, Beatriz (1987). Negro e

Cultura Negra no Brasil. Rio de Janeiro: UNIBRADE/UNESCO.

Santos, M. (2004). Pensando o espaço do Homem. São Paulo: Edusp.

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Uma visão prospectiva na paisagem do Vale do Tejo

A prospective view of the landscape of the Tagus Valley

Mário Monteiro Benjamim*

*Portugal, arquitecto, doutorando na universidade de évora (ue), centro de história da arte e investigação artística da universidade de évora (chaia), Profissional Liberal.e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 2 de Junho e aceite a 14 de junho de 2014

Resumo: O vale do Médio Tejo foi um testemunho cru-cial no processo de hominização na Península Ibérica. O extraordinário complexo de arte rupestre aí existen-te  constituiu, durante milênios, o centro de um territó-rio sagrado , hoje parcialmente submerso. A investiga-ção que desenvolvemos propõe introduzir um modelo de intervenção, que defina uma nova leitura do territó-rio, tomando como base estruturante a recuperação da visibilidade deste  património rupestre.Palavras chave: Arte Esquemática / Médio Tejo / Pro-jecto / Identidade / Heterotopias.

Abstract: The Middle Tagus Valley was a crucial testimony in the humanization process in the Iberian Peninsula. The extraordinary complex of rock art exists there constituted, for millenniums, center of a sacred territory, now partially submerged. The research we developed has the purpose to introduce a model of intervention, defining a new reading of the territory, taking as basis the recovery of the visibility the open air rock art.Keywords: Schematic Art / Middle Tagus / Project /Identity / Heterotopias.

Introdução A arte rupestre do Vale do Tejo abundantemente produzida numa extensão de 40km em ambas as mar-gens do rio Tejo, descoberta em 1971 e imersa pela edificação da barragem do Fratel três anos depois, constitui um dos mais importantes ciclos artísticos pré-históricos da Europa, (Varela, 2013). As gravuras agrupam-se em diferentes núcleos ou zonas, integrando-se num conjunto de pequenos santuários. Tes-temunho da interacção do homem com a paisagem, particularmente na forma como este estabeleceu e caracterizou o lugar.

A intervenção artificial na paisagem, como a imersão de uma extensa área por uma albufeira, além de implicar a alteração do uso de um recurso, pode afectar dramaticamente esse lugar, ocultando um legado, humano, paisagístico e patrimonial todavia determinante para a compreensão da sua construção histórica.

Perante uma realidade que é factual e inevitável e se repete nos cursos de água mais significativos propomo-nos encontrar um modelo de intervenção coabitante, e conceber estratégias que tornem visível a arte rupestre do Vale do Tejo. Estas estratégias inserem-se num âmbito de intervenção mais extenso, no qual as gravuras passam a fazer parte de um modo coeso com a paisagem actual, criando novas formas de utilização e oportunidades de desenvolvimento regional.

É através da interpretação do lugar e da leitura da identidade cultural do seu território que estabele-cemos os nossos objectivos, com a intenção clara de despertar consciências e de estimular uma mudança de paradigmas.

1. Objectos de EstudoO complexo de arte rupestre do vale do Tejo, destaca-se pela profusão e qualidade das suas gravuras que

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abrangem todo o comprimento da albufeira do Fratel e a foz do rio Ocresa, encontrando-se hoje acessí-veis apenas 20 % da sua totalidade. Como objectos de estudo serão consideradas as estações classificadas e em vias de classificação (Figura 2): S. Simão, Cachão do Algarve, Cachão do Boi e Gardete a montante da barragem do Fratel.

1.1 Núcleo de São Simão O sector arqueológico mais a montante, ocupa algumas centenas de metros da margem esquerda do Tejo, sensivelmente entre a barragem de Cedillo e a foz do Ribeirão onde foram identificadas mais de três centenas de rochas gravadas.

1.2 Núcleo de Cachão do Algarve Sito numa ampla bacia da margem direita, rasgada pelo rio num dos sectores montantes do complexo inscultórico do Tejo, é o núcleo que contém as maiores concentrações de figuras geométricas por painel, que se agrupam em conjuntos no sector médio desta estação. Destaca-se no local (Figura 4), a existência de uma ensecadeira, que controlava o leito do rio e caudal que alimentaria as azenhas aqui situadas delimitando o núcleo principal das gravuras.

1.3 Núcleo de Cachão do BoiÉ um dos principais núcleos da arte do Tejo (Figura 5), com cerca de 300 rochas registadas na margem direita. O sítio desdobrava-se, á semelhança do Cachão do Algarve, por uma bacia pontilhada por alguns terraços e afloramentos, muitos deles gravados. Com uma expressiva gramática figurativa, merece desta-que a rocha F-155, como algumas das mais originais e antigas gravuras do Tejo.

1.4 Núcleo de Gardete Localizado na margem direita, pouco antes da foz do Ocresa (Figura 6), é o sítio mais a jusante do complexo de arte rupestre do Tejo. Concentra na margem direita, pouco mais de duas dezenas de rochas gravadas, enquadrando-se no último período cronológico da arte do Tejo caracterizado por representações maioritariamente geométricas e abstractas, a realçar na paisagem os muros de sirga ainda percorríveis.

Das estações arqueológicas indicadas apenas os sítios de Gardete e de São Simão, permitem o con-tato com algumas gravuras, situando-se os restantes painéis a pouca profundidade acessíveis em épocas de estio. As estações de Cachão do Algarve e Cachão de Boi encontram-se submersas e cobertas por sedimentos, variando as cotas de profundidade entre os dois e os dez metros respectivamente.

Se analisarmos a concentração dos núcleos de gravuras rupestres, verifica-se que se agrupam em zonas onde a densidade de rochas é maior, quer para montante quer para jusante numa distância equi-distante do acidente natural denominado Portas de Ródão. A monumental falha na crista quartizítica considerada como centro ou sítio onde se estabelece o contacto entre as três grandes zonas cósmicas, que sendo eminentemente sagradas, comunicariam com o céu, organizando o espaço e o território ao seu redor. A relação cosmológica entre os três elementos (céu-montanha-água) é evidente nas Portas de Ródão, e constitui um cenário privilegiado para o desenvolvimento de actividades de culto e ligação do homem com o mundo transcendental e sobrenatural.

Além de referência geográfica, cénica e simbólica que sustentou a fundação de habitats e a concentração de núcleos arqueológicos, as Portas de Ródão foram o elemento organizador de sucessivas comunidades o

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Fig. 1. Localização do Complexo Rupestre do Vale do Tejo no mapa hipsométrico de Portugal ContinentalFig. 2. Localização dos principais núcleos arqueológicos, fonte Centro de Interpretação de Arte Rupestre do Vale do Tejo (CIARVT)Fig. 3. Vista jusante do sítio arqueológico de S. Simão, actualidade. Fonte: CIARVTFig. 4. Vista geral do sítio arqueológico do Cachão do Algarve, (Baptista, 1972)

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que permite ainda hoje criar mapas mentais baseados nas relações espaciais, nos processos de movimen-tação e de reconhecimento da paisagem.

2. Interpretar o TerritórioSobrepor a leitura arquitectónica á interpretação cognitiva do território, permite-nos identificar matrizes e ramificações comuns que quando estabilizadas clarificam as incertezas com que se lida.

Uma possível interpretação pode ser proporcionada pela “análise arquetípica”, que permite olhar o território pelo conjunto de referências de ordem antropológica, sociais ou simbólicas. Será o caso dos textos de cariz histórico ou geográfico que, apesar de focalizarem uma leitura circunscrita, clarificam e reafirmam as características próprias do território.

Outra leitura pode ser efectuada pela análise da toponímia dos lugares. No caso de sítio arqueológico de São Simão é evidente a relação com o culto solar, pela exposição da enseada situada na margem direi-ta do rio e pelas diversas gravuras representadas: repetição de imagens do sol e de antropomorfos com motivos de culto com orientações deliberadamente posicionadas a poente.

Ao analisarmos a concentração dos núcleos mais representativos, verificamos que se localizam em zonas de abertura de vale de fácil acesso, onde os afloramentos de xistos permitiam a gravação, No entanto todos os sítios referenciados constituíam Cachões onde o “borbulhar” da água era mais intenso, hoje imperceptível devido a uniformização do leito do rio. Será um exercício interessante reconstituir mentalmente a sonoridade do movimento do “deus Rio” no seu percurso acidental, acompanhado pelo eco da pancada incisiva do artista Tagano que se propagaria por estes vales encaixados.

A sobreposição das vias ancestrais e dos “caminhos de pé posto” na cartografia militar, permite simular e entender o uso do território. Território que devido ao abandono actual resultado das trans-formações sociais e económicas verificadas no século XX, começa a ser lentamente conquistado pelas espécimes autóctones, esta expansão é verificável nas margens abruptas do rio e nos muros de socalcos de olival, retomando a paisagem a sua leitura mais elementar.

3. Projectar sobre o TerritórioAo considerarmos a “ Paisagem como Palimpsesto”, questionamo-nos como intervir perante a singulari-dade do lugar, quais os instrumentos de composição e qual a perenidade da solução a introduzir. Qual-quer proposta de intervenção num território com esta complexidade, terá necessariamente de passar por compreender e sintetizar as suas diversas tipologias.

Para que a arquitectura assuma um valor de ligação é preciso que interiorize a consciência presente do passado projectando-a no futuro.

A possível redução do caudal do rio em períodos estivais, coordenada com visitas organizadas aos núcleos arqueológicos seria mais um processo de reconhecimento e de valorização deste vasto patrimó-nio, uma oportunidade de desenvolvimento económico para a região. Esta redução seria possível através de uma coordenação entre os diversos operadores, calculando-se a duração necessária e a capacidade de descarga que teria de ser efectuada.

A descida da cota de nível da albufeira, que estimamos ter cerca de 2 metros com este procedimento, seria insuficiente para aceder a alguns dos núcleo arqueológicos devido á profundidade dos painéis: é o caso de Cachão do Boi, o mais representativo do complexo. Neste local, onde foram descobertas as primeiras gra-vuras do complexo, propomos através de uma instalação temporária á superfície de água reconstituir os pai-néis em Látex, utilizados no processo de moldagem e registo das gravuras antes do enchimento da albufeira.

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Fig. 5. Vista de plano de água do Cachão do Boi. Fonte: própriaFig. 6. Painéis Gravados , estação arqueológica de Gardete, actualidade. Fonte: CIARVTFig. 7. Esquematização gráfica da Instalação do Cachão do BoiFig. 8. Esquematização gráfica de reintrodução de ensecadeiras

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Processo de registo que constitui um marco histórico e metodológico da arqueologia portuguesa, fornecendo um conjunto vastíssimo de documentação, fotografia, desenhos e moldes em borracha. A exposição deste legado no edificado da estação de comboios do Fratel em simultâneo com a intercomu-nicabilidade que este trecho da linha férrea oferece sobre o espelho de água (Figura 5), permitia além da percepção da dimensão do lugar proporcionar um momento reflectivo do seu valor intrínseco.

Tirar partido da pré-existência da ensecadeira do Cachão do Algarve, parece-nos uma oportuni-dade real de submergir sazonalmente um dos núcleos mais emblemáticos do complexo rupestre do Vale do Tejo. A sua reconstrução com alteração da cota de coroamento em cerca de 1 a 2 metros viabilizaria esta possibilidade. A reintrodução de um processo construtivo vernacular, neste contexto, vem possi-bilitar a difusão do processo em outros sítios arqueológicos acessíveis, possibilitando desenhando no território uma rede de locais visitáveis em épocas de caudal reduzido, á semelhança da proposta proferida por Emanuel Anati após a visita efectuada em 1974:

“Se o homem pré-histórico fez oferendas ao deus das águas para que o leito do rio subisse de nível , seria bom que, pelo menos uma vez por ano, a albufeira da barragem pudesse descer - permitindo que nas suas mar-gens se realizasse um autêntico festival de cultura, que ali atrairia, sem dúvida, todos os grandes arqueólogos e historiadores do mundo” (Caires, 1974, p.32).

Conclusão A reconstrução fenomenológica de um lugar representada pelos sinais gravados nas margens do rio pelos nossos antepassados pré-históricos, permite clarificar a utilização do território por estas comunidades. Redescobrir esta utilização espacial, atribuindo-lhe um novo uso, será um exercício de compreensão e consequente valorização destes lugares.

É neste contexto de forte cariz histórico e patrimonial com características singulares que submete-mos a nossa investigação, incorporando á sensibilidade do lugar a mais-valia da intervenção arquitectó-nica. Encarando o projecto como “laboratório” de experimentação e o lugar como sujeito e não objecto, com uma clara vertente de fruição e reconstrução interpeladora e identitária do território.

A colaboração neste projecto transdisciplinar e interdisciplinar, proporcionará definir matrizes de projecto que podem ser aplicadas a casos de estudo de contexto semelhante.

A visão prospectiva que se pretende encontrar é de uma leitura elementar da paisagem, que con-sagre o território através dos elementos que o constituem e das suas relações intrínsecas com o lugar, assumindo-se a arte rupestre no Vale do Tejo, pela sua singularidade, como o valor estruturante.

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Caminhos do sagrado nas artes visuais: algumas anotações

Sacred Paths of the visual arts: some notes

Maristela Salvatori* & Bernard Paquet**

*brasil, artista plástica, Professora, instituto de artes da universidade federal de rio grande do sul. Par académico da revisão da comissão científica. e-mail: [email protected]**canadá, artista plástico, Professor, l’école des arts visuels de l’ université Laval, quebec.e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 3 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Este artigo busca elencar algumas vias do sa-grado nas artes visuais: a conjugação de diferentes aspec-tos que resultam na evocação do sagrado independente da intenção ou vontade do artista, bem como questões do sagrado dentro de processos artísticos de criação.Palavras chave: artes visuais / sagrado / processos de criação / repetição.

Abstract: This article attempts to list some of the sacred pathways in the visual arts: the combination of different as-pects that result in the evocation of the sacred regardless of the intention or will of the artist, as well as issues of the sacred within artistic creation processes. Keywords: visual arts / sacred / creative processes / repetition.

Muitas são as manifestações do sagrado na arte, bem além de exemplos tradicionais de pintura e escul-tura que representam cenas religiosas, numerosas obras sem cunho figurativo e/ou religioso podem ser associada ao sagrado e são justamente estas que são aqui objeto de nosso interesse.

De imediato pensamos nas esculturas verticais minimalistas em madeira, como as de Elisa Bra-cher, no Brasil, ou Louis Archambault, no Canadá, com seu notável movimento de ascensão em di-reção ao céu, ou algumas obras de dimensão monumental, como as do brasileiro Daniel Senise, onde localizamos esta mesma expressão de elevação própria às catedrais, lugares de meditação e/ou elevação espiritual. Estes aspectos são reforçados em montagens museográficas em que a disposição das obras favorece a constituição de um local de culto – tal qual o cubo branco e todas as relações que, não ino-centemente, dele emanam.

Estas conexões podem ocorrer de forma espontânea ou intencional, o artista podendo tirar partido, induzir ou reforçar questões que afloram em sua obra. Não por acaso, Daniel Senise, ao realizar a obra A crucifixão, de 2011, apropria-se de páginas de livros de arte dos anos 50, notadamente de páginas que identificam reproduções da pintura A Crucifixão, de Matthias Grünewald.

Associando também à contemplação, pensamos na pintura Color Fields de Barnett Newman, ou Marc Rothko, cujas obras comportam elementos que conjugados evocam aspectos do sagrado. Traba-lhando com grandes planos de cor, as obras geradas emanam um sentimento de universalidade, exaltam a noção do sublime e propiciam a meditação.

Ainda radicalmente longe de representações barrocas, e nem por isto menos sofisticadas, as insta-lações luminosas de James Turrell, como a apresentada na Bienal de Veneza, em 2011, nos evocam igual-mente o sentimento do sagrado. Vemos, da mesma forma, o jogo com linhas, ritmos e luzes que Pierre Soulages, o reconhecido “pintor do negro”, não hesitou em utilizar na abadia Sainte-Foy, em Conques, na França. Nesta, a brancura de vidros translúcidos, transpassados pela luz natural, absorve de forma difusa os resquícios do entorno e suas diferenças ao longo do dia e compõe movimentos acentuados pelo ritmo

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de linhas negras, configurando uma espécie de respiração que se desdobra como uma onda e evoca o silêncio, conforme suas próprias palavras.

Independente de suas crenças pessoais, numerosos artistas apresentam, voluntária ou involuntaria-mente, questões do sagrado. Le Corbusier, declaradamente ateu, acabou aceitando reedificar uma capela em Ronchamp, na França, e, finalmente, realizou uma obra de referência em sua trajetória. Nesta, os vitrais criados, que não são vitrais no sentido mais tradicional do termo, de um lado configuram um grande risco de luz que parece fazer o teto flutuar, de outro, através de numerosas fendas abertas nas espessas paredes e cobertas de pasta de vidro, promovem uma iluminação difusa que embevece os pere-grinos que por lá passam.

Se localizamos expressões do sagrado em numerosas obras, também as identificamos dentro do processo criador e mesmo na relação do artista com a obra. Matisse, que aliás realizou célebres vitrais, ao se ver retratado em um filme não se reconheceu. Ele via um Outro trabalhando e não a si mesmo, reconhecendo aí uma “força estranha à minha vida de homem normal”, sendo o homem normal aquele que se ocupa em fazer as tarefas ou obrigações do cotidiano (arrumações, compras, deslocamentos, etc.), enquanto o artista seria aquele que procura realizar gestos/ações que buscam um objetivo que diverge do cotidiano. Na busca de sua obra, repete estas ações e estes gestos para se projetar. Tem aí uma realização de si segundo duas atitudes que diferem no tempo e no espaço. Quando o artista está trabalhando, seu corpo faz parte da obra que está sendo feita e é neste momento que o Outro está trabalhando. Logo, para refletir sobre o que faz, vai fazer, ou constatar o que emerge do que ele fez, ele deve tomar distância física, afastando-se da matéria, ter tempo para parar o processo e mudar de ritmo.

Em Sob o signo de Saturno, Susan Sontag escreveu que o Eu nunca é alcançado porque é uma coisa a construir, um projeto que pensamos exigir um trajeto cujo desenvolvimento nunca é previsível e determinado. Ela acrescenta que o movimento para a construção do Eu é muito lento e que o artista está sempre em atraso em relação a si mesmo. O que se pode compreender percebendo o descompasso físico e temporal entre o artista que está inativo porque está refletindo, e o Outro que age fora do pensamento auto-reflexivo, é este vai e volta que encadeia a defasagem temporal e física e que, posteriormente, provo-ca repetições. Quando o Outro sai da matéria e volta ao Eu consciente, o tempo passou e o próximo re-torno à matéria toma a forma de um ato impulsivo obsessivo, como se a sequência estivesse eternamente a se refazer, de forma a resgatar o tempo perdido na realização de si.

Anton Ehrenzweig, em A ordem oculta da arte, ilustra este ir e vir escrevendo que a matéria revela ao artista, em um nível consciente, o que o Outro lhe teria atribuído em um nível inconsciente. O artista então nunca é o mesmo ao longo do tempo, está sempre em construção, impulsionado pela causa ativa, suas obsessões, que seriam o desejo de alcançar o atemporal através da repetição.

A repetição perpasse boa parte da arte contemporânea interessando numerosos artistas. Embora não detenham exclusividade, alguns meios são essencialmente identificados com a repetição, como é o caso da gravura. Semelhante a rituais, seus procedimentos técnicos são caracterizados por atividades repetitivas que, tal qual preces que induzem a um estado de espírito diferenciado, impõem seu tempo próprio e geram especificidades. Tomamos como exemplo a obra Por volta do branco (figura 1), uma ins-talação site specific, da brasileira Maria Lucia Cattani onde, impressa à exaustão à maneira de um carim-bo, uma pequena matriz cavada em borracha foi estampada ao longo das quatro paredes da sala com uma cor pouco diferenciada do branco do ambiente. Os gestos de atintar e pressionar a matriz contra a parede foram executados repetidamente por muitas e muitas horas, demandando um engajamento corporal específico e sendo realizados pela artista, cuja própria fadiga física parece impregnar a obra de muitos

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sentidos – como uma obsessão ligada ao desejo de alcançar o atemporal, citada por Ehrenzweig, e cujo resultado, aqui, gera sutil estranheza e um silêncio que se impõe. O tempo parece estagnado, suspendido, registro de uma memória diferenciada, que é ligada à eternidade e finitude, finalmente, fora do tempo.

A necessidade do trato direto com a matéria encontra eco nas palavras de Alfredo Bosi que, ao comentar a filosofia da atenção de Simone Weil, afirma que:

Quem trabalha com as mãos e ao mesmo tempo reflete sobre sua obra, do primeiro gesto à última demão, aprende que está lutando com forças em tensão, desafiando resistências no trato com a matéria. (Bosi, 1988: 86)

Reforçando vários aspectos conjugados ao sagrado, Wilson Coutinho, ao analisar o trabalho de Carlos Martins, afirma que gostamos de “admirar um bom trabalho feito com as mãos, feito religiosa-mente com as mãos” (Coutinho, 1985: s.p.).

Neste eterno recomeçar engendrando algo novo, podemos observar que na citada obra de Maria Lucia Cattani a repetição se apresenta sob diversas maneiras, na forma repetida através dos carimbos, no desdobramento destas impressões em linhas e colunas repetidas, criando padrões, ou na própria se-quência de janelas presentes no ambiente da instalação. Como afirma Gilbert Durand, em As estruturas antropológicas do imaginário, a repetição combinada ao espaço sagrado tem o poder de se multiplicar indefinidamente. Segundo ele, a característica das religiões seria a da multiplicação dos centros e o poder simbólico da ubiquidade: Deus está em toda parte, da mesma maneira o artista que se duplica no Outro, que se centra e descentra em sua obra afirmando seu poder de eterno recomeço e renovação. Assim o espaço sagrado torna-se o protótipo do tempo sagrado.

Aqui não estão em jogo as crenças ou descrenças pessoais do artista, visto que isto não impede a realização de obras que o transcendem e que trazem um sentimento de elevação em direção ao sagrado: então, é na ação de criar e na poderosa matéria da obra de arte em construção que há esta força de alcance e de expressão do sagrado.

Por sua ação de defasagem temporal e física contínua no trajeto instaurador, o artista deve constante-mente buscar o seu centro sem realmente o alcançar. É em se concentrando, divergindo e se reposicionando

Fig. 1. Maria Lucia Cattani (1999), Por volta do branco. (vista parcial) Guache sobre 4 paredes, Torreão, Porto Alegre.

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que ele tenta se construir e, assim, envolve uma série de repetições temporais, físicas, técnicas, estéticas e conceituais. Em sua obra o criador estaria em toda a parte dentro de um tempo suspenso e, no espaço da matéria, à procura de um Eu eterno em comunicação com uma potência superior, na esperança de uma dimensão sobre-humana.

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Alguns apontamentos sobre a imagem do javali e o “Berrão” de Carlão, Alijó, Douro

Some notes on the image of the boar and the “Berrão” of Carlão, Alijó, Vila Real, Portugal

Mila Simões de Abreu*

*Portugal, arqueóloga, Professora da universidade de trás-os-montes e alto douro (utad), unidade de arqueologia, centro de estudos transdisciplinares para o desenvolvimento (cetrad). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 03 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: A figura do javali foi representada desde tempos remotos em todo o mundo antigo. Na idade do Ferro, especialmente em Portugal, o javali ou talvez o porco, aparece representado em estátuas conhecidas como “Berrões”. Sacrificado, destinatário de sacrifícios ou verdadeiro Deus o seu culto como o de Endovélico e identifica-se, por exemplo, com a passagem da vida para a morte. Neste trabalho apresenta-se uma imagem de javali identificada gravada num pequeno santuário rupestre em Carlão, Alijó, Vila Real. Palavras chave: Javali / berrões / gravuras rupestres /Trás-os-Montes e Alto Douro.

Abstract: The figure of the boar has been depicted since early times throughout the ancient world. In the Iron Age, particularly in Portugal, statues known as “Berrões” seem-ingly portray boars or, possibly, pigs. A sacrifice, sacrificial object or an actual god, the cult, like that of Endovelicus, could be identified with the passage of life and death. This paper examines the figure of boar in a small rupestrian sanctuary at Carlão, Alijó. Vila Real, Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal.Keywords: Boars / berrões / rock engravings / Trás-os-Montes e Alto Douro.

Fragas que parecem fragas, e são altares (…)Gemidos que parecem uivos, e são rezas (…)Monstros que parecem monstros, e são deuses (…)Miguel TorgaConferência no Centro Transmontano de São Paulo 14 de Março de 1954

1 – A origem de uma imagemA relação entre o homem e o javali perde-se na noite dos tempos. A presença, embora muito rara, da figura do javali entre as imagens de animais da chamada arte Franco-cantábrica é representada frequen-temente pelas duas figuras (fig.1) de Sus scrofa pintadas no tecto da famosa gruta de Altamira, em San-tillana del Mar, Santander, Espanha ( Breuil 1930; Rice 1992).

Se, para certos investigadores não passam de bisontes mal executados (Freeman 1987; Lasheras Corru-chaga & González Echegaray 2005), como imagens elas chamam-nos à atenção de dois pontos importantes:

1 – A importância do javali ou do porco selvagem na alimentação humana. Os problemas rela-cionados com a sua aquisição, primeiro pela caça e depois pela eventual domesticação e como durante milénios foi adquirindo notável importância .Transformando o animal num “objecto” de culto e depois até numa verdadeira divindade.

2 – A dificuldade de identificação, de forma precisa, da imagem do javali e do porco em contexto pré-histórico, pré-clássico e mesmo clássico.

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No território português o consumo da carne de javali é documentado desde o Paleolítico Médio. Diversos vestígios ósseos foram encontrados em algumas localidades do Paleolítico Superior do centro do país como Lagar Velho, Lapa do Picareiro, Pego do Diabo e Caldeirão (Hockett & Haws 2009; Valente 2004). Embora até ao momento não tenha sido identificada nenhuma representação deste animal entre as milhares de gravuras paleolíticas do Vale do Côa e da área Douro, fragmentos de ossos de javali foram encontrados, por exemplo, no sítio de Fariseu nas margens do rio Côa. Esses vestígios parecem ter per-tencido a um único animal mas, como uma das falanges apresenta sinais de fogo, pensa-se que poderá ter consumido pelo homem (Gabriel & Béarez 2009: 335 e 338).

É possível que uma figura, com pernas curtas e torso volumoso, gravada ao ar livre nas margens do rio Águeda, em Siega Verde, Ciudad Rodrigo, Salamanca, na bacia hidrográfica do Douro possa ser um javali e não um hipopótamo como é publicado (Balbin et al. 1995/1996).

A importância do javali como fonte de alimentação para os humanos aumentou muito provavel-mente a partir do final da última glaciação com o desaparecimento da grande fauna de clima frio. No final do Paleolítico Superior e principalmente no período de transição seguinte, Epi-Paleolítico / Mesolí-tico os vestígios ósseos de javalis ou porcos selvagens tornam-se muito mais abundantes sendo encontra-dos, por exemplo, em Muge e Buraca Grande, em Portugal.

Uma verdadeira cena de caça ao javali pode ser admirada no abrigo de arte levantina de El Charco del Agua Amarga, em Alcañiz, Teruel, Aragão (Beltrán 1970). Os caçadores pintados a vermelho escuro usam grandes arcos e o animal aparece atingido por numerosas setas (fig.3).

Noutras zonas do Mundo a figura do javali surge por volta do IX milénio. Em Göbekli Tepe, que em turco quer dizer Monte com Barriga, no sul da Anatólia, (Schmidt 2010), para muitos o primeiro verdadeiro santuário até agora conhecido, diversos javalis aparecem entre as numerosas figuras de ani-mais esculpidas. Sozinhos ou, por vezes, associados a outros animais como pássaros talvez aquáticos, as figuram são bem proporcionadas e apresentam detalhes como a representação dos dentes caninos e até dos olhos (fig. 4).

A partir desse momento, e nos milénios seguintes, as representações artísticas de javalis tornam-se cada vez mais frequentes e vão-se espalhando por áreas cada vez mais distantes entre si. São, por vezes, pequenas esculturas como aquela de Tappeh Sarab, no Irão (Fig. 5-A), ou gravuras com as conhecidas nas estátuas-estelas e nas composições monumentais da Valcamónica, nos Alpes centrais, em Itália (Fig. 5-B – Cassini 1984).

Esse aumento de representações pode estar relacionado com o crescimento no consumo desse tipo

Fig. 1. Gruta de Altamira, Santillana del Mar, Santander. (Espanha). A - Javali nº 15; B - javali nº 14. Paleolítico Su-perior por volta de 15.000 anos (aguarelas Henri Breuil – Breuil & Obermaier 1935)

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Fig. 2. A possível figura de Javali de Siega Verde, Agueda, Ciudad Rodrigo, Espanha.(Balbiın Behrmann et al. 1995/1996:102)Fig. 3. El Charco del Agua Amarga em Alcañiz, Teruel, Aragão. Cena de caça ao javali com arco e flecha. (Foto Art work Profile; decalque Beltrán 1970)Fig. 4. Göbekli Tepe, Turquia. Exemplos de alguns dos mezzo-rilievi com a representação de javalis associados da pássaros talvez aquáticos (Foto Klaus Schmidt 2010)

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de carne que parece existir especialmente a partir do IV-III milénio e que está provavelmente associado ao advento da domesticação. Pequenas estátuas, amuletos, vasos com forma de javali surgem por toda a Mesopotâmia (fig. 6 A e B) e em muitas das zonas do crescente fértil. Embora os javalis fossem abun-dantes no Vale do Nilo, no Egipto, a maioria dos achados, a partir da época pré-dinástica parece tratar-se já de porcos domésticos (fig. 6 C e D) sendo o deus Ser é representado com essa forma. Diz-se que os porcos eram usados até para puxar o arado mas que por comerem os excrementos e dejectos eram con-siderados “impuros” (Heródoto 484-425 a.C.)

No centro e sul de Portugal em sítios e povoados como Mercador, Azambujal e Leceia. pertencentes ao Calcolítico, vestígios de javalis aparecem inúmeras vezes já ao lado dos de porcos domesticados. No norte, por seu lado, ossos de javali estão entre os restos de fauna encontrados em estações como Castro Palheiros, em Murça ou Prazo em Freixo de Numão. Os dentes e ossos parecem demostrar que o javali Calcolítico era maior que o animal do Neolítico (Cardoso 2005; Albarella et al. 2005).

Imagens de javalis, embora raras, podem ser admiradas gravadas ao ar livre em rochas desde o Go-bustan, no Azerbaijão até à Península Ibérica, passando pelos Alpes e pela Escandinávia (fig. 7 A-B-C).

Para além da carne, outras partes do javali passam a ser igualmente aproveitadas. Assim a pele, apesar de áspera, era utilizada para fazer vestuário e tapetes e as presas transformavam-se em objectos, utensílios e até protecções para o corpo e cabeça como armaduras e capacetes (Fig. 8-C). Pequenas esta-tuetas, moedas e outros objectos com a imagem do javali tornam-se muito comuns durante a Idade do Ferro por toda a Europa (Fig. 8 A-B).

O grupo de povos celtas que ocuparam a Europa a partir de 1000 a.C. parece apreciar muito a carne de javali que por tal motivo era tido como a presa mais desejada numa caçada (Méniel 2005). Considerado feroz e perigoso, era como animal totémico visto de forma bivalente, tanto como o símbolo da coragem e da fertilidade como da guerra e do caos. A sua imagem aparece esculpida, por exemplo, na parte superior de algumas carnyx, a famosa trompete de bronze tocada pelos celtas e representada, por exemplo, no caldeirão de Gundestrup (Fig. 8-E). Moccus, o nome de um dos deuses do panteão celta, parece derivar da palavra Mukkus ou “porco” em proto-celta.

Fig. 5. A – Pequena escultura de javali de Tapped Sarad, Irão, VI milénio AC, Museu Nacional do Irão, Terão (foto The Bridgeman Art Library); Figuras de javalis gravadas no fraga de Cemmo I, Capo di Ponte, Valcamónica, III milénio a. C. (decalque Cooperativa Archeologica “Le Orme dell’Uomo”)

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Fig. 6. A – Pequeno pendente amuleto em forma de javali (Foto Bonhams); B – Sul do Irão, vaso com forma de javali, Período Proto-Elamite 3100-2900AC (foto Metropolitan Museum of Art, New York). C e D – Pequenas escultura de porcos, Egipto, Museu Egípcio de Berlim (fotos Marie Parsons) Fig. 7. A – Javali gravado na estátua-estela de Ossimo, Valcamónica, Itália (Foto Angelo Fossati, Cooperativa Archeologica “Le Orme dell’Uomo”); B – Figura de javali circundada por punhais, círculos concêntricos e covinhas Östergötland, Suécia (Desenho Norsemyth); C – Javali gravado profundamente, Gobustan, Azerbaijão (Foto Dimit)Fig. 8. A – Moeda romana do tempo de Antonino Pio mostrando o javali, símbolo da X Fretensis no reverso (Foto Classical Numismatic Group); B – Pequena estatueta em bronze, Neuvy-en-Sullias I séc. a.c (foto zazzle.com); C – Capacete feito com placa de presa de Javali, Micenas tomba 515, Atenas (Foto frank99); E – Detalhe de Carnyx no caldeirão Gundestrup (Foto Kelticos.org)

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Na Grécia clássica e com a consolidação dos textos escritos, o javali torna-se protagonista de di-versas lendas e mitos. Assim o javali de Cálidon, que possui extraordinária força e potência, diz-se ter sido enviado pela deusa Artemis para destruir a cidade de Calidão, acabando por ser morto por Eneu e companheiros. Num dos seus “trabalhos”, Hércules captura vivo o javali de Erimanto. E, curiosamente, na “Odisseia” de Homero a feiticeira Circe transforma em porcos e em seus escravos os companheiros do rei Odisseu. Estas e outras lendas são representadas em vasos, estátuas, mosaicos e outras obras de arte por todo o mundo grego sendo mais tarde reproduzidas pelos Romanos em todo o Império.

Tal como para os Celtas, o javali era admirado pelo Romanos pela sua força sendo associados aos guerreiros. Era também visto como um intermediário com o “outro mundo” e tinha por vezes a fama de, por magia, depois de comido voltar a renascer.

A caça ao javali era tida não só um óptimo exercício físico mas também como uma actividade que fortificava carácter, principalmente dos jovens. Os javalis eram comidos frequentemente em grande banquetes e eram oferecido como sacrifício em diversos templos e santuários. Vasos e outros objectos tinham frequentemente como decoração figuras de tal animal. Sendo também representado, vivo ou mesmo morto, em muitos mosaicos romanos (Fig.11 A-B-C).

Relatos dessas festas inspiraram muitas lendas que chegaram até aos nos nossos dias. Como não recordar as cenas finais dos livros da famosa banda desenhada francesa Asterix, o gaulês, onde se festeja cantando e comendo sempre javali...

A abundância de javalis em Itália e o apreço com que lhe devotavam levou mesmo a que fossem criadas, pelos mais poderosos em Roma, e noutras cidades do Império, reservas especiais ou “vivaria”. Aí, os javalis, viviam em liberdade mas em zonas cercados e por vezes eram mesmos treinados para vir ter com o dono ou seguir um tratador vestido de Orfeu enquanto este tocava (Fig. 11-A). Em muitos casos os animais desses viveiros eram usados em jogos de caça mas também em combates com outros animais para gáudio dos mais ricos em jogos e festivais.

A famosa Legião XX fundada por Júlio César, que combateu contra os Cantábricos na Hispânia, e que na época do Imperador Cláudio conquistou a Britânia ajudando mais tarde na construção da famo-sas Muralha de Adriano, tinha um javali como símbolo (fig. 11-D). Assim, muitas imagens desse animal de época romana foram encontradas em Inglaterra (Piggoott & Daniel 1951).

2 – O caso dos “Berrões”Em Portugal a presença durante as últimas décadas do I milénio a. C. de numerosas esculturas de zoo-mórficas, principalmente no Norte do país, é frequentemente associada a uma possível influência celta. Conhecidas pelo nome de “berrões”, “varrões” ou “verrões” à Espanhola, termo pelo qual são chamados os porcos não castrados e usados como reprodutores, são maioritariamente representações de javalis ou de porcos. Existindo, porém, alguns touros, bodes ou até há quem diga, cães e ursos (Santos Jr 1975 a b; 1983). A maioria tem dimensões próximas do animal real mas existem algumas com mais de 1,5 m de comprimento e outras com apenas 30 cm.

A área de distribuição dos “berrões” estende-se do interior do Minho ao centro da Meseta Ibérica havendo uma maior concentração de achados entre a região de Trás-os-Montes e a Província de Sala-manca. Joaquim dos Santos Júnior (1975 a; 1975 b; 1983) que os estudou detalhadamente fala da existên-cia de quase 50 unidades em terras de Portugal. O número total desse tipo de imagens pode, em toda a Península, ultrapassar os quatrocentos. Pouquíssimas encontram-se intactas tendo a maioria delas sido vandalizada na cabeça, encontrando-se reduzidas por vezes só ao tronco e às patas. Diversas apresentam

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Fig. 9. A – Brinquedo com a forma de javali, Grécia, 450 a.C (Foto James Madison University) B – Imagem do javali de Cálidon (Desenho Waterloo University); C - Pintura num vaso representando a lenda da captura do javali de Erimanto apanhado vivo por Hércules, 500 a.C Etruia, Museu do Louvre (Foto Bibi Saint-Pol)Fig. 10. A – Mosaico com uma cena de caça ao javali, Villa Romana de las Tiendas, século IV(Foto Viagero.com). B – Alto-relevo com uma figura de javali e um cão, III século, Römisch-Germanisches Museum, de Colónia, Alemanha (foto BS Thurner Hof ).Fig. 11. A – Mosaico representando um javali , Musée Archeologique, Saint-Roman-en-Gal II d.C (The Bridgeman Art Library); B – Pequeno carro em Bronze com uma cena de caça ao javali, Mérida, Espanha. (foto Musée des Antiquités Nationale de st. Germain-en-Laye, Paris.); C – Mosaico com uma imagem de javali morto com maçãs, Toragnola, Roma. Museus do vaticano (Foto Mark Cartwright)

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“covinhas” no dorso e nalguns casos, como no do “porco” da vila em Bragança, foram perfurados pela coluna de um pelourinho (Fig. 16-D. Alves 1934).

Entre os exemplares mais completos e em melhor estado de conservação estão os berrões de do chamado grupo de Olival dos Berrões, encontrado em Cabanas de Baixo, Torre de Moncorvo (fig. 13 A e C) e enviado por José Augusto Tavares para Lisboa a pedido de Leite de Vasconcelos e ainda hoje depo-sitados no Museu Nacional de Arqueologia (Tavares 1895; Vasconcelos 1913).

Mais de uma dezena são claramente javalis pois apresentam esculpidas as típicas presas, outros, porém, podem tratar-se da representação do animal doméstico. Muitos parecem ser machos até porque aqueles que se conservam mais inteiros apresentam na parte inferior do torso a representação do sexo masculino. Assim, por exemplo, a famosa “porca de Murça” (Fig. 13-B) é na verdade um javali macho pois tem testículos (Fernandes 1993). Na maioria dos casos os berrões foram encontrados isolados mas existem grupos com mais de 5 estátuas, tal é o caso do Monte de Santa Luzia, em Freixo de Espada à Cinta, onde foram identificados 15 e Cabanas (Olival dos Berrões), em Torre de Moncorvo (Fig. 13 A-C) onde 7 esculturas foram encontrada nas proximidades da confluência entre o rio Sabor e a Ribeira da Vilariça (Santos Jr. 1983).

Em Portugal, cerca de trinta dessas imagens foram recolhidas em castros mas são diversas as que se encontram hoje associadas a igrejas, capelas ou pelourinhos de época histórica (Lopo 1895; Santos Júnior 1983; Vasconcelos 1913). Num caso em Picote, Miranda do Douro, o berrão parece ter sido encontrado in situ, no meio de um círculo de pedras, com um corredor de acesso com 9m de comprimento. Santos Júnior, quando escavou o local, nos inícios dos anos cinquenta, diz que encontrou numerosos ossos de animais nomeadamente de boi, cabras e mais raros, de porco. Não hesitando por isso em afirmar que se deve tratar de um local de culto ao javali considerando-o um verdadeiro Deus protector de cariz totémi-co adorado pelos Dragones, tribo pré-celta que teria vivido na zona. É verdade que um dos exemplares encontrado em Espanha, o de Las Cojotas, tem uma inscrição ibérica que foi traduzida com “Deus Porco bravo protector da cidade de Adorja”.

Autores como José Leite de Vasconcelos (1913) e mais recentemente João Parente (2003) pensam que os berrões eram divindade celtas. Para Teresa Gamito (2005) por outro lado o culto do javali está presente na Cultura castreja, na área dos Vettones, mas pode ser anterior à influência Céltica. Diversos

Fig.12. A – Vaso grego com uma cena de um sacrifício de um jovem javali, Museu do Louvre (Foto Jastrow). B – Frasco em vidro decorado com cabeça de um javali, 2ª metade do século III - IV século d.C. Campo da Trindade. Faro (Foto Museu Nacional de Arqueologia). C – Lucerna com a decoração de um javali. D – Um tijolo com o javali símbolo da XX legião, II - III século d.C. Holt, Clwyd, País de Gales, Museu de Londres (Foto AgTigress)

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Fig. 13. A – Um dos javalis de Cabanas de Baixo, Torre de Moncorvo (Foto Museu Nacional de Arqueologia); B – A famosa “Porca de Murça”, (Foto Câmara de Murça); C – Outro dos sete berrões Cabanas de Baixo (Foto Museu Nacional de Arqueologia) Fig. 14. A – O berrão sem cabeça de Picote (foto Santos Júnior 1975a) ; B – Outro javali sem cabeça, hoje em Castelo de Mendo, Guarda (foto Ironageportugal.blog); C– Torço de javali colocado em colunas de granito (Foto Marikonera blog).Fig. 15. Mapa de distribuição dos Berrões em Portugal. (MSA adaptado da Gamito 1997).Fig. 16. A – O berrão de Vila Flor (Foto Câmara de Vila Flor); B – O berrão junto ao pe-lourinho em Torre D. Chama (Foto Dignow blog); C – O javali da ara consagrada ao Deus Endovellicus, por Marcus Fannius Augurinus (Foto Museu Nacional de Arqueologia) ; D – A “Porca da Vila: suporta o pelourinho em Bragança (Foto museudobisaro.org)

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santuários rupestres espalhados pelo norte do país como, por exemplo, o de Panóias, em Vila Real pa-recem demonstrar que locais de culto muito antigos passaram a ser usados por povos mais recentes e por fim acabaram mesmo por ser romanizados. Muitas fragas onde foram cortados degraus e escavadas “pias” possuem também “covinhas” de origem bem mais remota (Abreu 2012).

Como divindade, o javali, seria um interlocutor entre os humanos e os deuses e podia passar do mundo dos mortos para o dos vivos e vice-versa. Parece provável que, como era habitual entre os Roma-nos, esse culto indígena tivesse sido romanizado e transformado no culto a Endovélico ou Endovellicus, divindade multivalente também herdeira dessa capacidade de “negociar” entre a vida e a morte (Vascon-celos 1913). Um javali esculpido foi esculpido no verso da Ara de consagrada a Endovellicus, por Marcus Fannius Augurinus, no seu mais importante santuário, em São Miguel da Mota, Alandroal. Entre as numerosas peças escultóricas aí recentemente descobertas (Guerra et al. 2003) foram identificadas, pelo menos, duas claras estátuas de javali (Fig. 17-C).

A ara romana de Calpurnia Hegesistrate (Fig 17-A), uma jovem romana de 17 anos, encontrada na Herdade da Defesa dos Barros, em Avis, que tive a ocasião de limpar nos meus tempos de faculdade, no inicio dos anos oitenta, tem na face central uma epígrafe com dedicatória do pai, circundada de pilastras e molduras numa alusão às “Portas do Hades”, na face da esquerda uma pomba debicando frutos empo-eirada numa árvore com densa folhagem e na da direita um javali, representado talvez esgravatanto por comida de baixo de uma árvore. Todos esses elementos remetem mais uma vez às relações entre este e o outro mundo (Gonçalves 2007, 2013 a e 2013 b).

3 – O problema da identificação de figuras de javalisPara se compreender a verdadeira dimensão e a importância do culto do javali ao longo dos milénios é necessário conseguir identificar com precisão a sua imagem. Tal tarefa, como já vimos, não se apresenta fácil. Desde o paleolítico as diferenças gráficas entre o javali e outros animais como o bisonte e, mais tarde, o touro/boi são pouco claras (Fig.18-A). No primeiro caso, a estrutura do corpo, a cabeça, o com-primento da patas e o eriçado no dorso aproximam graficamente os dois animais. Já o touro tem uma

Fig. 17. A – A Ara de Defesa dos Barros, Avis, lado direito, figura de javali (Foto Museu Nacional de Arqueologia); B – A estátua de javali proveniente do santuário de São Miguel da Mota, Alandroal (Foto Guerra et al. 2003); C – O santuário rupestre rocha da Mina, Alandroal, Évora (Foto About Portugal)

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Fig. 18. A – À direita a figura de javali/bisonte gravada em alto relevo na gruta de Roc de Serc (Foto Airwaux 2003); Figuras de javalis num dos lados o caldeirão de Gundestrup (Foto archeurope.com)Fig. 19. A – Fotografia satélite da zona onde se vê o cemitério, o Castro de Cralão e a zona da rocha com o berrão – circulo amarelo (Imagem adaptada Google Earth) ; B – Vista do cemitério, de algumas fragas e restos do Castro junto da actutal povoação (Foto MSA)Fig. 20. A – A rocha do Berrão onde se distinguem os degraus escavados e a figura de “berrão”. B – Vista da zona de Carlão onde se encontram numerosas rochas com covinhas e lagares (Foto MSA)

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dimensão e altura no garrote muito diferente da do javali mas pode apresentar semelhança na forma no corpo. Um segundo problema está no facto do animal selvagem e o doméstico serem relativamente se-melhantes na corpulência e tamanho e portanto difíceis de distinguir. Os artistas pré-históricos, é sabido, não respeitavam muitas vezes as proporções e exageravam nos detalhes (Fig. 18-B).

A identificação segura de que uma figura está associada a 3 fundamentais elementos: a estatura, a forma e evidentemente os dentes. Muitas das figuras de javalis foram gravadas em granito o que por vezes não facilita a execução de detalhes como as presas. Assim temos muitas das figuras como por vezes os “berrões” onde elas só raramente aparecem.

4 – O “berrão” de CarlãoCarlão é uma povoação do concelho de Alijó actualmente, pertence à freguesia de Carlão-Amieiro, co-nhecida por aí se localizar o famoso abrigo pintado de Pala Pinta (Santos Jr. 1933) e as “Caldas”, umas termas nas margens do rio Tinhela, especialmente recomendadas para as doenças da pele. O património arqueológico da zona inclui um interessante castro e numerosas rochas com covinhas, pias, lagares e la-garetas, amplamente estudadas por Carlos Brochado de Almeida (1992/1993). As pias e lagares parecem demonstrar o cultivo da vinha e a produção de azeite e vinho já em épocas remotas.

Numa visita que efectuamos com o Padre João Parente em 2003 foi-nos chamada à atenção pa-rauma fraga granítica, nas proximidades do actual cemitério, localizada bem em frente à colina com as ruínas do Castro de Carlão. Nela são bem visitáveis gravados uma série de toscos degraus e uma grande figura zoomórfica que pensamos trata-se de um javali ou de um verdadeiro “berrão”.

A imagem do animal foi gravada muito profundamente e encontra-se executada em vertical, tendo quase um 1,50 de comprimento por 1 metro de largura. A depressão tem profundidade diferenciada sendo a que correspondente à cabeça e a parte traseira mais profundas que a da zona central. (Fig. 21). As patas parecem ser três e são curtas, quase quadradas e sem detalhes como as unhas. Indicia-se o esboço de

Fig. 21. Pormenor da figura zoomórfica de Carlão junto a alguns dos degraus escavado na fraga granítica (Foto MSA)

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uma quarta pata. A cabeça apresenta uma parte mais pontiaguda, talvez a representando o focinho. Na extremidade oposta, mais próxima da base da rocha, a figura tem uma cavidade mais pequena que parece representar uma cauda arredondada. Tudo isto levando-nos a pensar tratar-se de um javali não esculpido mas sim gravado possuindo no entanto semelhanças com os “berrões” conhecidos na zona transmontana.

É interessante notar que uns simples degraus conduzem da parte inferior da rocha facilmente para o topo da fraga tal como é comum noutros santuários rupestres como o quase desaparecido da Rua Tei-xeira Rebelo, em Vila Real (Parente 2003:49). O Padre Parente faz referência a outra figura de “berrão”, também gravada em horizontal, numa rocha em Magarelos, concelho de Vila Real (2003:211) mas não tive ainda ocasião da visitar. Também aí a figura é toscamente gravada e apenas algumas linhas verticais representam as patas, sendo o corpo apenas esboçado.

5 – ConclusõesA figura do javali embora pouco presente na arte Paleolítica vai adquirir relevância com o passar dos milénios e talvez a importância que tal animal passa a ter na vida do Homem. As características do ani-mal, como escarafunchar na terra, comer detritos, ser feroz e ter força, são tanto qualidades denegridas como respeitadas e acabam por estar na base da transformação e da passagem de animal a divindade para alguns de origem Indo-europeia. Para outros autores ele não é porém o guerreiro (força física) mas sim o seu oposto o sacerdote (força espiritual) e muitas vezes associado ao xamã (Chevalier & Gheerbrant 1994). A vida na floresta e o alimentar-se da bolota aproxima-o do druida e dos cultos ligados à natureza. É o animal de excelência nalguns santuários onde pode ter sido sacrificado ou onde pode ele próprio ter sido objecto de sacrifícios. Tal papel torna-se particularmente relevante na Idade do Ferro. Em Portugal, como no interior norte da Península, o javali aparece então representado em numerosas estátuas, às quais têm sido ao longo dos anos associadas possível associar Deuses talvez anteriores mesmo a influencia celta e que continuam a ser objecto de culto em período romano. Os “berrões” e as suas outras representações de javali teriam tido posição de destaque em cultos associado talvez `a passagem para o mundo dos mortos da mesma forma que o Endovélico o teve em período romano (Gonçalves 2013 a e b). O javali gravado de Carlão é provavelmente um testemunho do tipo desses cultos levado acabo em pequenos santuários rupestre em todo o norte de Portugal e que devem merecer ser identificados e estudados.

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A natureza como Santuário na visão do caçador krikati

The nature as sanctuary in vision hunter krikati

Mirtes Barros*

*brasil, historiadora de arte, Professora da universidade federal do maranhão (ufma), centro de ciências sociais (cch), departamento de artes (dearte). Par académico da revisão da comissão científica. e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 31 de maio e aprovado a 14 de 2014

Resumo: Numa sociedade de caçadores-recoletores, a natureza, ao mesmo tempo em que se apresenta como fonte de subsistência, representa também uma grande ameaça à continuidade da vida. Isto porque ela tem seus espíritos protetores, os quais estão sempre alertas para punir casos de excessos. Esse estado de alerta estará ain-da mais aguçado em momentos do parto, posto que o caçador precisa de mais alimentos para criar seus des-cendentes. Por essa razão, cabe justamente a ele mediar a relação com a natureza como elemento que exerce a economia de punção através da prática de caça de ani-mais e coleta de frutos.Palavras chave: Povos Indígenas / Krikati / Relação Homem-Natureza / Punção.

Abstract: In a hunter-gatherer society, the nature, while presenting as source of livelihood, it also represents a major threat to the continuity of life. This is because it has its guard-ian spirits, which are always alert to punish cases of excesses. This alert will be even sharper in times of childbirth, since the hunter needs more food to raise their descendants. For this reason, it fits precisely mediate the relationship with nature as an element that carries the punching economy through the practice of hunting animals and gathering fruit.Keywords: Indigenous Peoples / Krikati / Relationship Man-Nature / Punching economy.

IntroduçãoOs povos indígenas do Brasil podem ser classificados como caçadores coletores e horticultores de floresta tropical. Assim, por dependerem da caça para sua subsistência construíram um tecido ideológico que possibilitasse uma relação amistosa com a natureza. Esse tecido tem como esteio a crença de que a fauna e a flora, assim como lagos, rios e mar são dotados de espíritos e que esses espíritos são os protetores da natureza. No meio, entre natureza e sociedade, segundo o imaginário indígena, existe um ser que per-sonifica esse mundo espiritual. Para os povos tupi ele é o kaapora. Lévi-Strauss, o define como “espírito dos bosques” (2001: 91); Reichel-Dolmatoff (1978: 262-3) fala de um guardião das caças, dos peixes, o Vai-mashsé, que também está associado à fertilidade das caças, das árvores frutíferas e dos peixes. Cada povo indígena certamente tem um termo para designá-lo.

O papel desse senhor-dos-animais é regular a atividade de caça, pesca e coleta. Nisso ele é um tanto ambíguo, pois ao mesmo tempo em que protege os animais, faz concessões a caçadores, apenas cuida para que estes não se excedam. De todo modo, a atividade de caça em sociedade de caçadores deve ne-cessariamente ser mediada por seres sobrenaturais.

Entre os Krikati, por exemplo, é veiculada através de mitos a ideia de que em tempos primevos o cão era longevo, enquanto o homem tinha vida breve. Compadecido, o cão trocou de lugar com os humanos pedindo que esses o alimentassem. Num outro mito, vários membros de uma mesma família se transformam em animais deliberadamente. Não há como afirmar, mas há indícios nos mitos de que a

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linha divisória entre essas categorias é muito tênue. Entre os Tenetehara, por exemplo, se se pode falar em uma Idade de Ouro, essa era quando humanos e animais comunicavam-se em uma única língua, quando da Terra se tocava o Céu:

Na época tudo falava, pássaro falava, animal falava, e o céu era baixinho lá. Então se reuniram todos os pás-saros para levar o céu lá pra cima, mas precisou muita força. Aí nesse tempo também o Tenetehara e todos já falavam, apesar que havia só uma pessoa com o poder da natureza. (Zannoni, 2011: 47)

Em que medida isso fundamenta a relação sociedade natureza não sabemos. O certo é que matar animais entre caçadores indígenas não é motivo de orgulho, antes eles comportam-se de forma cerimo-niosa, quase de luto ao retornarem para casa com animais abatidos. Há restrições quanto ao abate de animais cuja carne não é comestível, como os felinos por exemplo, só sendo permitido o abate em defesa da própria vida, mas a atitude do caçador deve ser de profundo respeito.

Não se pode ignorar a prática vigente entre os Awa-Guaja de mulheres amamentarem filhotes de animais cujas mães um caçador abateu. Há, portanto, o reconhecimento de que a vida é um direito uni-versal a todas as espécies; e de que o homem sente-se de alguma forma ligado ao mundo animal.

São frequentes nas mitologias indígenas brasileiras sagas de caçadores solitários depararem com algo que não é totalmente humano nem animal mas que conseguem interagir com ambas as realidades. Nesses encontros casuais, via de regra, o humano é convidado a participar de cerimônias. Isso se percebe num mito do povo Pukobyê sobre a origem da festa das máscaras:

Dois caçadores acompanhados por um cachorro estavam caçando uma anta. O animal fugiu para um gran-de lago, pulou na água e nadou para longe da margem seguida pelo cachorro. Um dos caçadores pulou também e nadou atrás deles. O outro içou na beira do lago vendo a caça e seus perseguidores indo cada vez mais longe. Ele pediu a seu companheiro que voltasse, mas ele não voltou. De repente, ele viu as piranhas devorando, primeiro a anta, depois o cachorro, finalmente o caçador.

As piranhas tinham sua aldeia no fundo d’água. Quando o chefe das piranhas soube do acontecido, ordenou a seus guerreiros que cuspissem toda a carne do caçador. Ele chamou as piabinhas, que são os mais hábeis dentre todos os peixes, para recomporem o corpo do homem. De repente, apareceu um cardume desses peixinhos, os quais se aplicaram zelosamente a essa tarefa; o chefe lá perto os encorajava. Logo o corpo do homem estava completamente recomposto e o chefe dos peixes permitiu que as piabinhas partissem. Então, o chefe chamou o surubim, que e, mágico e ressuscitou o homem. Em honra do índio ressuscitado, organizou--se uma festa na qual havia dançarinos mascarados. O homem observou. Quando a festa terminou, os peixes o levaram à entrada de uma caverna submersa. Ao voltar ao mundo de cima ele introduziu as roupas e a dança dos kokridô (nome que os pukobyê dão a essa sociedade aquática: nota do autor) (Nimuendaju, 1946: 202)

Versão semelhante existe entre os Krikati (Barros 2005). O caçador (Pukobyê) depois de ter sido devorado por piranhas é reconstituído por piabas e ressuscitado pelo surubim. Em seguida, ele é convi-dado a participar de uma festa com o compromisso de ensiná-la em sua comunidade. O caçador krikati, ao invés, nada sofreu por ser um exímio corredor, porém, por ter capturado um membro daquela comu-nidade não-humana, teve que ensinar à criatura a língua krikati e depois aprender deste o ritual que sua comunidade realizava nas profundezas das águas.

Zannoni (2002), analisa um mito tenetehara que trata de dois jovens caçadores, sendo o primeiro

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habilidoso e profundo conhecedor dos segredos da floresta, enquanto o outro, ao contrário, era um tra-palhão. Aquele caçador habilidoso havia encontrado uma árvore muito frequentada por pássaros. Ali, ele preparou sua espera e pode abater algumas aves. Ao chegar em casa, seu irmão quis saber onde e como ele havia conseguido abater aqueles animais. Ao obter explicações pediu insistentemente emprestada a espera, pois também queria plumas coloridas. O outro depois de muito relutar, cedeu. Porém, não sem antes advertir seu irmão que não matasse um certo animal que ali aparecia todas as noites. O jovem não se conteve quando viu a beleza da pelagem do animal e tentou flechá-lo. Como esse caçador não voltou para casa, seu irmão foi resgatá-lo, mas só achou pingos de sangue, que ele resolveu seguir até o ponto em que esses pingos terminam num formigueiro. Ele entrou no formigueiro e no interior da terra viu uma comunidade de não-humanos. Ele pode ver ali seu irmão, o qual se havia integrado àquela comunidade. Houve uma festa com muitos cantos (naquele tempo os Tenetehara ainda não sabiam cantar) da qual ele foi convidado a participar. No dia seguinte ele voltou ao seu mundo deixando para trás aquele irmão imprudente, e levando como recompensa os conhecimentos adquiridos naquele ritual além dos cantos, com o compromisso de ensiná-lo a todos os Tenetehara.

Há como que um entrelaçamento entre os mundos no imaginário desses povos. Homens que tran-sitam livremente pelo mundo subterrâneo e pela abóbada celeste; astros que descem para legar aos huma-nos alguma condição ou conhecimento. Esse entrelaçamento de alguma forma influencia, ou pelo menos influenciou a relação sociedade natureza. Neste sentido, tem razão Silvia Carvalho quando diz que:

O problema do equilíbrio com o mundo exterior pode ser mostrado, indiferentemente, a partir de protago-nistas concebidos como humanos, tendo que se defrontar com o mundo exterior (do “senhor-dos-animais”), como também a partir de protagonistas concebidos como animais a se defrontarem com o mundo dos ho-mens. Isto se deve ao fato de que o índio sabe muito bem que há algo de humano nos animais e que o proble-ma crucial de toda a luta é que ele precisa combater o “ser terrível” que de fato encontra-se dentro dele desde o momento mesmo em que dele passou a depender. (Carvalho 1979: 320-21)

A figura de um senhor-dos-animais se insere neste contexto. A ele compete exercer o controle da ação dos caçadores, a fim de impedir que o sistema entre em colapso e a própria existência da espécie humana venha a correr o risco de desaparecer.

No mundo onde não existe ainda nem a domesticação de animais nem a agricultura, é sobretudo graças à pro-cessos que podemos chamar de “negativos” (“negative feedback” segundo os antropólogos americanos) que o ho-mem obtém o reequilíbrio da Natureza: não comer (os diferentes tabus alimentares acerca da caça e das frutas), nem colocar ao mundo outros seres humanos, isto é, novos caçadores, novos coletores e procriadoras, enfim, novas bocas (do qual derivam os tabus sexuais, a abstinência, as dietas prolongadas, o infanticídio), eis os dois mecanismos reguladores que são necessariamente combinados com um escalonamento dos produtos que per-mitem um nomadismo bem planificado. [...] Numa sociedade arcaica, respeitar os tabus, é ter consciência que não é só a humanidade atual que conta, que tem as gerações futuras (única verdadeira garantia da continuação do homem) e que precisa deixar um mundo habitável. A Natureza deve ser respeitada. (Carvalho, 1988: 163)

O foco de interesse do caçador é seu descendente. Por essa razão, é esse o alvo prioritário do Se-nhor-dos-Animais.

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1. Os tabus relacionados ao nascimentoEntre os Krikati o controle é exercido da seguinte maneira: Quando a mulher se sabe grávida, ela e o esposo se subtem a uma série de tabus. Ela não pode comer a carne de certos animais durante a gravidez e por todo o período de lactação, que geralmente supera os dois anos de idade do bebê. Ele não pode matar, nem comer certos animais. A criança, por sua vez, também não. A rigor, o único responsável pela quebra de tabus é o próprio pai, visto que nem a mulher, nem a criança, e por extensão nem o solteiro estão aptos a caçar. Ora, o senhor-dos-animais atua como mediador entre natureza e sociedade exercendo o controle da caça. Se o caçador incorre na quebra de tabus, seu descendente será eliminado pela ação de espíritos que povoam a natureza. O senhor-dos-animais sabe que todas a vezes que nasce uma criança, mais animais serão abatidos, pois será mais um a alimentar-se de carne de animais. Nada é mais precioso, para o caçador, que seu descendente. Essa é a única garantia de que quando sua vida findar, seu filho ou filha será seu substituto, dando continuidade à sua existência. Por essa razão, durante a primeira infância, a família nuclear da criança acha-se vulnerável à ação de espíritos.

Quando, por desconhecimento ou por teimosia um dos membros da família nuclear come algum tabu, e os espíritos põem em prática sua vingança, a criança fica doente. Nem o pai, nem a mãe estão autorizados a dialogar com esses entes sobrenaturais para restabelecer a aliança quebrada com o mundo espiritual. Para isso devem recorrer a quem está autorizado: o xamã.

Qual é o papel do xamã? Através do canto e da dança ele incursiona pelo mundo sobrenatural para dialogar com os espíritos, exortando-os a desistirem do seu intento de levarem a criança para o seu mundo. Sendo as matas, rios e lagos o habitat dos espíritos, ou seja, a natureza e, portanto, “a língua” não é outra que a dos próprios animais, o xamã deve ser um profundo conhecedor da própria natureza. Em síntese é para a natureza que ele apela a fim de obter a cura para a criança.

Na sociedade krikati, a criança vem ao mundo na casa materna. A parturiente é ajudada no parto por uma mulher mais velha, que não esteja mais na idade de procriar. A mãe e o recém-nascido ficam num quarto sozinhos. O pai da criança volta para a casa materna para cumprir a couvade, que dura cerca de vinte dias. Pai e mãe, cada um em sua casa, se submetem a uma dieta de arroz bem cozido só com água, o qual deve ser ingerido frio e em pequena quantidade.

O mundo composto pela fauna de caça está em alerta e este é o momento apropriado para que se efetue uma troca, se solidifique um “acordo” ou se acirre um conflito entre caçador e caça, pois o pai--caçador-predador acha-se vulnerável na fragilidade do filho. Se ele cometer um deslize, o castigo ou a cobrança recairá sobre a vida da criança que será atingida pelos espíritos protetores dos animais.

Sacrificar animais nesta fase significa comprometer a própria descendência. Por esta razão o pai recorre à flora cultivável simbolizada pelo arroz que a mãe lhe dá de comer. Assim, ambas as mães, a do filho e a do pai, estão unidas no esforço para manter vivo e saudável um novo membro da família.

Pai e mãe devem permanecer deitados e sem tomar banho. Para a mulher, a permissão para banhar--se vem com o fim do enerpério. O primeiro banho do pai acontece após a queda do coto umbilical do filho. Durante esse tempo lhe são permitidos asseios. Tomado o primeiro banho, o pai deve sair para caçar, porém não deve conduzir armas.

Na primeira saída, o homem apresenta-se novamente à natureza para reassumir seu papel de caça-dor. Um veado deve aparecer para ele, se esse tiver cumprido rigorosamente o resguardo. Trata-se de um veado sobrenatural que vem consentir que o pai continue a caçar, porque pela abstenção e pelos tabus relacionados ao nascimento de seu filho ele poupou parte da fauna e este comportamento é garantia de que poderá fazer o mesmo até que o seu filho atinja uma fase menos vulnerável.

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Após essa primeira saída que ele realiza sem as armas de caça, ele poderá asumir seu papel de ca-çador. A primeira caça abatida será doada à parteira, uma vez que esta não corre nenhum perigo de ser atingida pela ação dos espíritos destas caças, por já ter superado a fase fértil.

2. Os tabus relacionados aos rituais da vidaNas sociedades indígenas a vida de cada indivíduo é marcada por períodos rituais. Segundo Van Geenep (1978) a pessoa precisa passar por todos os ritos de passagem para seu desenvolvimento e sua maturida-de. Em todos estes existem tabus.

Esses tabus são a marca fundamental de um período determinado do ritual definido por, Turner 1974) como liminar. É nesse período que as pessoas são mais vulneráveis aos espíritos e, portanto, os tabus funcionam como um reequilíbrio na relação com a natureza perpassando do período provisório para o definitivo. Na liminaridade os indivíduos não são mais o que eram, nem o que serão (por exemplo: nem mais adolescente, mas não ainda adulto).

No caso acima citado do caçador que se torna pai, ele vive na liminaridade até o momento em que ele é reabilitado, pelo senhor-dos-animais, para a caça e após ter cumprido com os tabus relacionados ao parto.

Os adolescentes krikati ficam reclusos por um determinado período numa espécie de casa indivi-dual de forma semi-esférica. Lá dentro eles são alimentados com uma dieta particular, à base de legumes (tubérculos) e cereais. Os tabus relativos à preservação da natureza são respeitados, como a abstinência de carne. Há, portanto, uma relação estreita entre a natureza e a preservação da vida.

Conclusão: a natureza como santuárioNuma sociedade indígena, a relação homem - natureza é substancialmente uma relação, no plano ideal. Plantar ou coletar os frutos da floresta significa substituir a necessidade de proteínas animais pelos vege-tais. A caça programada (não matar animais mais do que o necessário para a alimentação da família ou para a realização de um determinado ritual) está relacionada à preservação.

É nesse sentido que entendemos a natureza como santuário. Isto é, dela depende a vida ao mesmo tempo em que nela a vida se transforma e se materializa numa relação de continuidade. Entre os Krikati isto está presente no sistema de nominação que envolve as gerações presentes e futuras mas que depende das atuais. A nominação de uma criança pelos parentes próximos significa a continuação da vida após a morte, isto é, o nome persiste assim como a vida através dos indivíduos e do social presente em cada mo-mento da vida. A natureza é quem media essa relação entre a vida e a morte, entre o passado, o presente e o futuro, entre os humanos e os sobrenaturais. Preservar a vida e a natureza significa cultuar (no sentido de cultivar o que de mais importante existe, a cultura) essa relação. R

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ReferênciasBarros, Maria Mirtes dos Santos (2002). A arte krikati:

uma abrodagem sociológica. Tese. (Douturado em Sociologia). Programa de Pós Graduação em Sociologia. FCL/UNESP/CAr. Araraquara (SP).

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Descoberta de um santuário lusitano-fenício a partir da toponímia, em Aljubarrota 1

Discovery of a Sanctuary Lusitano-Phoenician from toponymy, in Aljubarrota

Moisés Espírito Santo*

*Portugal, etno-sociólogo das religiões, Professor catedrático da universidade nova de Lisboa. Par académico da revisão da comissão científica. e-mail: [email protected].

artigo submetido a 02 de junhoe aprovado a 14 de junho 2014

Resumo: Um santuário lusitano-fenício (ou lusitano-pú-nico) descoberto na toponímia, confirmado pelo mito de origem do actual culto local e pela imagem que é o objecto do culto. Foi um santuário em honra de Istar/Astarté, baseado no mito babilónico/fenício da «Descida de Istar aos Infernos».Palavras chave: Fenícios / Mito babilónico / Santuário fenício / Istar/Astarté / Topónimos de origem fenícia.

Abstract: A Lusitanian-Phoenician (or Punic-Lusitanian) sanctuary discovered in toponymy, confirmed by the myth of origin of the current local cult and the image that is the object of worship. It was a shrine in honor of Ishtar / Astarte, based on the myth Babylonian / Phoenician of “Ishtar’s de-scent into Hell” Keywords: Phoenicians / Babylonian myth / Phoenician sanctuary / Ishtar/Astarte / Place names of origin Fenici

A partir de várias investigações, demonstra-se (muito facilmente, aliás) que a língua falada pelos lusita-nos anteriormente ao latim/português era a língua dos fenícios e cartagineses, uma mistura de linguas ou dialectos das regiões donde procederam os fenícios que fundaram Cartago e civilizaram a Lusitânia durante cerca de 500 anos: línguas ou dialectos cananita, hebraico, acádico e aramaico (Espírito Santo 1993). Há referências aos cónios no actual Alentejo. nome que foi côni ou câni «cananitas, fenícios») que era como se autonomeavam os habitantes de Cartago.

Na freguesia des Prazeres de Aljubarrota (centro-litoral de Portugal), um topónimo, Cadoiço, despertou-nos a atenção. É inconfundível. Trata-se de uma derivação de qdsh (leitura: cadoxe) que, na língua dos fenícios e hebreus, significa «santo» e «santuário». Contíguos ou vizinhos, encontramos esta constelação de topónimos/sítios (num raio de 1 km): 1º- Cadoiço, 2º- Casais de Santa Teresa (com uma capela), 3º - Os Médicos, 4º - Pataeiro, 5º- Cova da Santa, 6º - Ataíja (com uma capela), nome que já consta em documentos do séc. XII. Hipótese: houve por aqui um santuário lusitano-fenício.

Sabendo nós que os cultos antigos continuam na actual religião popular pela fidelidade na frequen-tação dos sítios (os sítios são um factor de continuidade das religiões), vamos ao terreno.

Entrando na capela dos Casais de Santa Teresa deparamo-nos com uma imagem em pedra, de estilo singelo representando uma santa vestida como uma freira com um livro numa mão e levantando (mostran-do) uma grande chave com a outra. É a padroeira do sítio. Qualquer investigador das religiões saberá que, por Santa Teresa, só poderá entender-se a espanhola Teresa de Ávila (séc. XVI) ou a francesa Teresinha do Menino Jesus (séc. XIX). Ambas encontrar-se-iam deslocadas nestes sítios rústicos. A santa mostra uma chave, atributo estranho à iconografia das duas santas católicas. Esta chave encerra um segredo.

Questionados os habitantes sobre a sua padroeira, tanto dizem «Santa Teresa», como «Nossa Se-nhora» e «Nossa Senhora Santa Teresa». Perguntando à zeladora da capela porque que é que a santa mostra uma chave, respondeu «é a chave do inferno» e conta este mito confirmado por outros vizinhos:

«O seu filho morreu e foi para o inferno. A Senhora, que tinha a chave do inferno, foi lá, abriu a porta, trouxe o filho e tornou a fechá-la».

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Tão simples quanto isto. Ora, esta curtíssima história é o essencial do mito babilónico e fenício conhecido desde o 3º milénio a.C., por Descida de Istar aos Infernos, muito circunstanciado e palavroso.

Istar foi a grande deusa babilónica, geradora das forças reprodutivas naturais e humanas. Em Canaã (actuais Líbano, Palestina e parte da Síria), chamava-se Astarté (muito referida na Bíblia); corresponde à Isis egípcia que detinha a chave dos mistérios da salvação, adoptada pelos estratos letrados helénicos e romanos nos sécs. IV-III a.C, objecto dum culto mistérico (Frazer 1983, 215). Istar, Astarté e Ísis foram a personificação da Lua regeneradora da vegetação e da procriação que também desce mensalmente à escuridão para renascer. Os «infernos» deste mito correspondem ao sheol hebraico e ao hades grego, lugar onde jazem os espíritos em estado de letargia.

Versão babilónica da «Descida de Istar aos Infernos» (3º milénio a.C.)A deusa quis conhecer o destino reservado aos mortos. «Istar decidiu ir à Terra-sem-regresso, ao reino de Ereshkigal, à morada escura, à casa donde se não sai, pelo caminho de ida que não tem retorno, à casa aonde chegam os que são privados de luz, onde o pó é a sua alimentação e a argila a sua comida, residindo nas trevas, sem jamais ver o dia, vestidos como os pássaros com um atavio de plumagens, enquanto o pó se amontoa sobre fechaduras e portas [...]. Ela dizia: ‹Quero chorar o destino dos homens jovens arrebatados às suas esposas, pelas raparigas arrancadas aos seus maridos e pelos meninos mortos antes da sua hora›. Quando chegou à porta da Terra-sem-regresso, dirigiu-se ao guardião:

«’Porteiro, abre! Se não me deixas entrar martelarei a porta e estilhaçarei as fechaduras! Quebrarei as ombreiras e demolirei as tábuas da porta! Depois farei subir os mortos que devorarão os vivos porque eles os ultrapassam em número!’ [O guardião disse que ia anunciar a sua presença à rainha do local, Ereshki-gal. Esta ficou irada com as pretensões de Istar mas deu ordem para ela entrar desde que se sujeitasse às «regras do local». (As «regras» consistiam em fazê-la passar por sete portas probatórias para a despojar dos seus poderes). O guardião anunciou]: ‘Entrai, Senhora, a Terra-sem-regresso está ditosa com a vossa visita’. Ao fazê-la passar pela primeira porta tirou-lhe a coroa da cabeça [Istar protestou mas o guardião disse que eram «as regras do local»]. Ao passar pela segunda confiscou-lhe os pendentes das orelhas. [Istar voltou a protestar, mesma resposta. Passou pelas restantes portas tendo-lhe sido retirados todos os seus atavios apesar dos protestos. E ficou retida com os mortos].

«Desde essse momento, os touros deixaram de fecundar as vacas e os asnos as burras, e mais nenhum homem tornou grávida uma mulher, cada um dormia à parte no seu cubículo. Perante isto, o vizir dos grandes deuses, preocupado e inquieto, vestido de luto, sem cortar os cabelos, foi chorar diante de Sin, o pai de Istar, e foi diante de Ea, o soberano dos deuses, e disse-lhes:‘Istar que desceu aos infernos não regressou. E desde então a reprodução das bestas, animais e homens parou’.

«Ea, o soberano dos deuses, sabia que a retenção de Istar na Terra-sem-regresso levaria à cessação das acti-vidades sexuais por a deusa não poder exercer a sua influência sobre os instintos da procriação. Então Ea enviou aos infernos um ente efeminado, ao gosto de Ereshkigal, para lhe reabrir as sete portas de volta. Ea ensinou ao en-viado o segredo do odre da água-da-vida que se encontrava nos infernos e disse-lhe que, se se aspergisse com essa água e se aspergisse também Istar, ambos regressariam. [O enviado foi]. Tendo sido aspergida com a água-da-vi-da, Istar libertou-se de Ereshkigal. [Saíu pelas sete portas onde recuperou os seus atavios. A rainha dos infernos ficou enraivecida e, como vingança, mandou a um mensageiro que fosse buscar Tamouse, esposo de Istar (ou filho segundo as versões), para ficar no lugar dela. Tamouse morreu e foi para os infernos. Istar ficou chorosa e inconsolável. Decidiu ir aos infernos para recuperá-lo. Tendo conhecido as virtudes da água-da-vida, aspergiu Tamouse, aspergiu-se a si-própria e ambos regressaram ao mundo] (Lara Peinado 2002, 306-311).

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Depois desta versão suméria, outras se produziram, Na versão de Canaã e das colónias fenícias, Istar chamava-se Astarté e Tamouse, Adonis, filho de Astarté. Adonis, morto por um demónio, foi para os infernos, o que provocou a paralização da procriação e a letargia da terra. Astarté foi resgatá-lo sujeitando-se às « regras do local» e, conhecendo as virtudes da «água-da-vida», aspergiu-o e trouxe-o. Depois há a versão de Isis e Osiris... todas relacionadas com a procriação humana, vegetal e animal. Istar/Astarté/Isis era a Lua, e Adonis/Osiris foi o deus da vegetação que morria e renascia anualmente. Este mito também deu origem ao mito romano de Proserpina.

Se Istar (ou Adonis) não recuperasse a vida, a terra não sairia do estado de letargia. Em todas as colónias fenícias e cartaginesas, durante o mês de Junho, depois da ceifa do trigo (porque Adonis era o deus da vegetação), os fiéis pranteavam-no com elegias fúnebres, os conhecidos «Prantos por Adonis», e regozijavam-se com a sua ressurreição ostentando vasos com flores efémeras («Jardins de Adonis») (Espírito Santo, 2001, 81-86; 2004, 278-282 ). Num cântico babilónico intitulado Prantos das flautas em honra de Tamouse, as pranteadoras diziam:

«Até quando ficará o germe cativo?Até quando ficará a verdura prisioneira?(...)Morre ele e ela lamenta-se,‹Meu filho›, proferindo gritos.Ela geme sobre a erva sem raízes,Geme sobre o trigo sem espigas,A sua casa não tem alegria,Uma mulher desfeita, um filho exausto.Ela chora o rio onde não cresce o salgueiro,Chora o campo onde não cresce trigo nem erva,Chora a lagoa donde o peixe fugiu,Chora a clareira despida de caniços,Chora a floresta donde a tamareira se ausentou,Chora o pomar sem enxames e sem cepas,Chora as pradarias sem flores...»Em Aljubarrota, o mito da Descida de Istar aos Infernos ficou reduzido às três linhas que vimos mas

é surpreendente que tenha sobrevivido a tantos séculos (ou milénios?) de mudanças culturais e religiosas.

Constelação dos topónimos contíguos ou vizinhos (num raio de 1 km)

1º Cadoiço(Aldeia a menos de 1 km da capela de Santa Teresa): Foi qdsh: [leitura: cadoxe] «santo e santuário» em cananita e hebraico. 2º Teresa (Casais de Santa):Adaptação fonética de tarazu que, no dialecto acádico-assírio, significou «levantar as mãos para o

céu, rezar, e sitio onde isso se faz»; os minhotos designam o insecto louva-deus, que levanta e une as patas dianteiras, por «santa teresa»

3º Os Médicos:

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Fig.1. Imagem de Santa Teresa mostrando a chave dos infernosFig.2. Capela de Santa Teresa, no dia da sua festa

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(Nome genérico das terras agrícolas contíguas do adro da capela de Santa Teresa). Adaptação fonética de:mqdsh [leit.: mekidoxe] do dialecto aramaico, «santo e santuário» com uma metátese: mekidoxe >

medicoxe.Portanto, três nomes em três dialectos fenícios para «santuário».

4º Pataeiro: (Lugar contíguo de Santa Teresa, a nascente)Foi pt awr [leit. pataour] «entrada do oriente»; pt «entrada» e awr «oriente», do cananita e hebraico).

Referiu-se a uma porta do recinto do lado nascente.

5º Cova da Santa(Uma rua dos Casais de Santa Teresa; não é uma cova mas, contrariamente, o cimo da encosta).Cova da: foi kbd [leit. câbôde] «recinto, refúgio, lugar de acolhimento» em cananita e hebraico. Refe-

riu-se ao recinto do santuário.

6º Ataíja(Aldeia e, no sec. XII, nome desta pequena região).Foi atta isha [leit. ata íxa], «Istar da Salvação, ou Istar das Graças, favores» ou «Senhora da Salvação

ou das Graças». Atta era um «titulo de Istar» e, também, «Senhora», do acádico (isha «salvação ou graça» é do hebraico).

A actual padroeira de Ataíja ainda é, curiosamente, Nossa Senhora da Graça, uma imagem com um menino, mas já se trata de Maria mãe de Jesus...

O antigo santuário não comportaria um grande templo. Os santuários fenícios eram recintos demar-cados com pedras ou muros com, num lugar relevante, uma edícula ou nicho que albergava um símbolo. Neste caso, a edícula situar-se-ia onde se encontra hoje a capela de Santa Teresa, no cimo da encosta. Há restos de alicerces de velhos muros na encosta, em campos vazios com cerca de 2 hectares.

Posição relativa dos topónimos em questãoAtaìja Cova da SantaPataeiro Casais de Santa Teresa Médicos + Capela Sta Teresa[encosta] Cadoiço(No raio de 1 km a partir da capela)

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Referências

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Espirito Santo, Moisés (2004). Cinco Mil Anos de Cultura a Oeste – Etno-história da Religião Popular numa Região da Estremadura. Lisboa, Assírio & Alvim.

FRAZER, James (1983). Le Rameau d’Or: Le Dieu qui meurt, Adonis, Atys et Osiris. Paris, Robert Lafont.

LARA PEINADO, Federico (2002). Leyendas de la Anti-gua Mesopotâmia, Dioses, Heroes e Seres Fantasti-cos. Madrid, Temas de Hoy.

MORET, Alexandre (1941). Histoire de l’Orient – Préhis-toire, IVe et IIIe millénaires : Egypte, Elam, Sumer et Akkad- Babilonne. Paris, PUF, 1941.

Notas1 Este texto é uma adaptação duma parte do livro Cinco Mil Anos de Cultura a Oeste – Etno-história da Religião Popular numa

Região da Estremadura (Moisés Espírito Santo, 2004)

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O santuário de S. Pedro em Portel: um exemplo de sincretismo religioso?

The Sanctuary of Saint Peter in Portel, an example of religious syncretism?

Natália Maria Lopes Nunes*

*Portugal, universidade nova de Lisboa - faculdade de ciências sociais e humanas (unL-fcsh), instituto de estudos medievais (iem) e centro de estudos sobre o imaginário Literário (ceiL) – colaboradora. e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 3 de Junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Francisco Patalim, na obra Relação Histórica da Nobre Vila de Portel, descreve as origens das ermidas e santuários do concelho de Portel, dos quais, a ermida de S. Pedro, salientando o poder taumaturgo e o carácter casamenteiro do santo. Pelo estudo efectuado, conclui--se que o culto de S. Pedro na serra de Portel é um bom exemplo do sincretismo religioso, onde a continuidade de um espaço sagrado se perpetuou no tempo.Palavras chave: S. Pedro / ermida / gruta-capela / mi-lagres / sincretismo

Abstract: Francisco Patalim, in the Relação Histórica da Nobre Vila de Portel, describes the origins of chapels and sanctuaries in Portel municipality, of which, the chapel of St. Peter, stressing the thaumaturge power and character matchmaker of the saint. By research done, it was concluded that the cult of St. Peter in the mountain of Portel is a good example of religious syncretism, where continuity of a sacred space was perpetuated in time. Keywords: St. Peter’s / chapel / grotto-chapel / miracles / syncretism

IntroduçãoEm 2003, a convite da Câmara Municipal de Portel, aceitámos a demanda de fazer uma investigação e estudo a partir da obra de Francisco de Macedo de Pina Patalim, Relação Histórica da Nobre Vila de Portel, o ponto de partida para uma “viagem” que nos fez entrar nos tempos mais remotos até à actuali-dade. O referido estudo acabou por nunca se publicado (por razões que desconhecemos), contudo, neste congresso, achámos pertinente apresentar uma pequena parte desse trabalho, visto que se enquadra nas suas linhas temáticas.

Francisco de Macedo de Pina Patalim nasceu em 28 de Setembro, no ano de 1692 em Portel. A mãe chamava-se Rosa Maria Gorgulha e o pai, almoxarife e juiz dos direitos reais, foi José de Macedo Sentido. Patalim foi aluno da Universidade de Évora em 1722; depois, partiu para o Redondo onde permaneceu durante dois anos. Já em Portel, teve um cargo importante na vila – sargento-mor das ordenanças da vila. Sabe-se que casou com D. Úrsula Maria da Silva e que escreveu duas obras: Des-crição Topográfica da Notável Vila de Viana e, aquela que deu origem a este estudo, Relação Histórica da Nobre Vila de Portel.

Na segunda parte dessa obra, Patalim descreve as ermidas e os santuários da freguesia de Portel, de entre eles, o Santuário ou Ermida de S. Pedro, o primeiro espaço sagrado referido pelo autor. A Ermida de S. Pedro, fundada no século XVI, enquadra-se na zona rural, no ponto mais alto da Serra de Portel. O espaço religioso é constituído por duas ermidas: a primeira é mais antiga e apresenta uma planta circular e é conhecida como Ermida da Gruta, onde teria aparecido a imagem de S. Pedro; a segunda tem uma planta longitudinal. Em 1500, já existem registos da Confraria de S. Pedro. No século XVII, a igreja é re-construída devido a um incêndio (também ele mencionado por Patalim). Quanto à tipologia, a segunda construção é um edifício religioso com características renascentistas, maneiristas e barrocas. É importante referir que em 2003, aquando da visita que marcou o início da nossa pesquisa, a igreja encontrava-se em

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estado avançado de degradação e a imagem de S. Pedro estava guardada numa arrecadação da Câmara Municipal de Portel. No entanto, alguns anos depois, foram realizadas algumas obras de restauro.

1.O Santuário de S. Pedro em Portel e os milagres do santoSegundo Francisco Patalim, a ermida era muito antiga, datando do século XVI. Contudo, nesse local já havia uma pequena capela em honra de S. Pedro sobre a rocha escarpada da serra. O relato enfatiza, indirectamente, a forma como aquele espaço elevado da serra foi cristianizado:

Está junta a um grande e alevantado rochedo, sobre o qual está uma capela feita de rico exórdio e arquitec-tura, em cujo lugar dizem foi achada esta soberana. A ermida começa a ser reconhecida pelos milagres de cura do santo: A devoção e necessidade tem obrigado a muitos a cavar e levar terra deste lugar e usando dela por medicina, tem usado o céu maravilhas, tirando sezões, quartãs e outras enfermidades (Patalim, 1730, M. 1188, Maço nº 13).

Porém, o poder taumaturgo de S, Pedro, não se esgota apenas no milagre à distância operado pela terra levada pelos crentes como uma verdadeira relíquia. O inexplicável incêndio ocorrido no século XVII (1668) é realçado por Patalim, conferindo à imagem um grande poder na cura. Este episódio enfa-tiza a importância da imagem, aspecto difundido na Contra Reforma como meio de combater a icono-clastia. Esse carácter do poder da imagem é acentuado, visto o incêndio ter destruído tudo em seu redor, à excepção da imagem de S. Pedro. O seu aparecimento no meio das chamas surge precisamente de forma milagrosa para melhor enunciar a sua grandeza:

Tempo em que o portado da porta, retábulos e imagens eram convertidas em cinzas, acharam este soberano Apóstolo tão pronto em dar os braços aos seus naturais, que metido nas mesmas chamas, sem a mínima lesão estava, ficando unicamente desfigurado na cor, que até nisto quis assemelhar-se a quem lhe acudia, porque todos na consideração desta saudade perdida, e de verem quais morta a sua esperança, com a cor perdida estavam […] (Patalim, 1730, M. 1188, Maço nº 13).

A luta contra a iconoclastia está ainda bem presente nas palavras de Patalim ao elogiar, a nível geral, as imagens que operam prodígios:

Não duvido que haja imagens, que por homens de justificada vida e de conhecida virtude as fazerem, per-mitia Deus com mais especialidade obrar por elas mais prodígios, como se vê por experiência, obra deus maravilhas por imagens antiquíssimas […] (Patalim, 1730, M. 1188, Maço nº 13).

A imagem do santo foi de tal modo venerada que o número de círios evoca bem a grande populari-dade deste apóstolo. Além disso, os pedaços da imagem tirados pelos crentes e levados como verdadeiras relíquias, demonstram a fé e a crença em S. Pedro, apesar de Patalim não se revelar favorável à profanação das imagens. Para evitar essa profanação, o santo foi “enclausurado com grades de prata.”

Sobre o culto de S. Pedro em Portel, salientam-se aqueles que lhe conferem características especiais: a terra levada pelos crentes, os pedaços da pedra com que fora talhada a imagem do santo, a cova na cape-la junto do altar do santo e o fogo a que fora submetido, aquando do incêndio. Por outro lado, próximo da ermida está a chamada Fonte Santa, aspecto que confere também alguma sacralidade ao local Quanto à

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presença do fogo, ele foi o elemento que veio determinar os grandes poderes taumaturgos de S. Pedro. Tal como um iniciado, o santo passa pela prova de fogo, aquela que lhe engrandece o carácter místico e o próprio culto. A purificação pelo fogo transformou-o, à semelhança de Cristo, na Pedra Filosofal dos alquimistas.

Contudo, pelas características do local e pelos vestígios de outros cultos na região, não seria outrora a serra de Portel espaço sagrado de outra divindade, nomeadamente da Grande Deusa (de Cíbele, a deusa da montanha) ou de outra divindade? A devoção a S. Pedro não teria suplantado a religião da Magna Mater? Por outro lado, o facto de haver nessa capela mais antiga uma cova escavada na rocha próxima do altar onde, segundo a tradição, os rapazes e as raparigas colocavam o pé para arranjarem casamento, não estaria ligado a antigos rituais de fertilidade e de fecundidade? Em alguns desses cultos mais antigos, sabe-se que o iniciado, ainda jovem, tinha de “entrar” numa cova para se purificar e iniciar-se nos mis-térios da Senhora da Montanha. Ou essa cova seria utilizada nas libações em honra da divindade que ali fora cultuada noutros tempos?

Por outro lado, a configuraração da gruta-capela, semelhante a uma cuba ou morábito faz-nos também pensar na existência da prática de ascetismo muçulmano, aquando da presença dos árabes em Portugal. A propósito, lembremos a lenda do mouro das Pedras Algares, ou Buraco dos Mouros, também da região de Portel, e a sua contextualização histórico-temporal. Procurando dar uma interpretação ló-gica baseada no conteúdo da própria lenda e em elementos histórico-religiosos que constituem a chave dessa interpretação, é possível apresentar a hipótese da existência da prática de zūhad (ascetismo) na região de Portel, à semelhança de outras regiões do território português, sobretudo no distrito de Évora, cidade onde nasceram alguns dos sufis que se destacaram na mística do Gharb al-Andalus. No concelho de Portel, para além da lenda do mouro das Pedras Algares em Vera Cruz de Marmelar, existem também algumas marcas da presença árabe: possivelmente, as muralhas de taipa do castelo, a antiga denominação de Portel, Porta de Mafamede e a toponímia (Alqueva). É ainda de referir que o culto de S. Pedro era muito comum nos cultos moçarabes. Estes tinham como principais santos aqueles que foram martiri-zados e deve acrescentar-se que a igreja de Vera Cruz de Marmelar, com vestígios da época visigótica, é conhecida por igreja de S. Pedro de Vera Cruz de Mamelar. Além disso, no concelho de Portel, a maior parte dos santos outrora cultuados tinham sido martirizados.

2.O significado simbólico e místico de S. PedroPara além das palavras de Patalim sobre o apóstolo S. Pedro, quem foi este santo? Simão Pedro, filho de Jonas e irmão de André, era um humilde pescador de Cafarnaum (Galileia). Um dia, quando pescava no rio Jordão, fora tocado pela palavra de Jesus e, a partir desse momento, tornou-se um dos principais apóstolos do Cristianismo. Apesar de ter negado Jesus, a sua fé era grande e, após a morte de Cristo, ele, juntamente com Paulo, tiveram uma função importante na evangelização de Roma e de outras regiões. S. Pedro era aquele que conhecia as escrituras e a sua relação com Cristo estendeu-se também no martírio: se Cristo sofreu o martírio da Paixão pela fé, Pedro morre pelas mãos do infiel pagão. Preso por ordem de Agripina I, vindo a ser martirizado em 67 d.C., crucificado de cabeça para baixo (crucificação referida por Eusébio de Cesareia no século IV).

A importância de Pedro destaca-se ainda mais quando Cristo o considerou ser a pedra onde seria fundada a sua Igreja e Patalim realça também esse aspecto ao afirmar: “é este soberano Apóstolo, pedra fundamental da Igreja, apelidada pelo mesmo Cristo – tu es Petrus et super hane petram edificabo Eclesiam meam.” (Patalim, 1730, M. 1188, Maço nº 13). O nome de Pedro, derivado de petrus (pedra), sim-

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bolicamente, remete para a solidez, tal como a pedra é sólida, também o templo (Igreja) deve ser sólido e robusto. Além disso, a pedra estabelece uma forte relação entre o Céu e a Terra. Esta interligação está bem presente na imagem de pedra de S. Pedro venerada em Portel, onde o santo se apresenta também com a chave na mão. Ele é o mediador da via espiritual e da ligação do homem com o divino. S. Pedro assemelha-se ao deus Jano, também ele guia das almas e portador das chaves que “abriam” o ciclo anual ligado aos solstícios. Jano representava a passagem entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses. Por outro lado, a sua representação iconográfica - com dois rostos – simblizava precisamente a transição entre o passado e o futuro.

A chave de S. Pedro, tal como a de Jano, é o símbolo do ensinamento esotérico. Aliás, a raiz da pa-lavra Pedro – Petr – nos hieróglifos egípcios está ligada a Hermes, ou seja, aquele que revela ou mostra, o intérprete dos oráculos. Em Atenas, nos Mistérios de Elêusis, Hermes estava igualmente associado às chaves. Os outros símbolos de S. Pedro, a mitra ou tiara pontifícia, são objectos que já se encontravam no paganismo, nomeadamente na Babilónia; o ceptro, encontramo-lo também como símbolo do deus Dio-niso. A nível esotérico, a imagem de S. Pedro com a chave na mão é uma representação iniciática – Pedro fora um iniciado nos Mistérios cristãos. A chave é o símbolo das duas etapas alquímicas – coagulação e dissolução. Possui-la, é símbolo de iniciação: “a chave é aqui o símbolo do mistério a penetrar, do enigma a resolver, da acção difícil a empreender, em suma, das etapas que conduzem à iluminação e à descober-ta.” (Chevalier; Gheerbrant 1982: 191)

Curiosamente, a pedra é também um símbolo da Terra Mãe, associando igualmente a Cíbele, a qual era representada, inicialmente, sob a forma de uma pedra negra (meteorito). Estes aspectos vêm, mais uma vez, reforçar aquilo que já afirmámos anteriormente: S. Pedro parece ter sido o santo que subs-tituiu alguns cultos, talvez mesmo o culto da Magna Mater na região.

ConclusãoEspeculações ou não, parece ter havido a cristianização de um espaço anteriormente pagão. Um estudo posterior ao ano em que terminámos a investigação veio provar que a Serra de Portel tem vestígios ar-queológicos de alguns povoados da Idade do Ferro. Assim, S. Pedro, através das suas ermidas, foi o santo que veio aniquilar o culto de uma divindade feminina ou masculina, ou ainda apagar o vestígio de algum morábito ligado à prática do ascetismo muçulmano. Como afirma Ana Sofia Antunes:

O povoado do Outeirão da Murada será conhecido da população de Portel pelo menos desde a edificação do primitivo santuário de São Pedro em 1624, denominado de “da gruta” (Espanca, 1978, p. 220), na medida em que aquele se lhe situa muito próximo. A implantação, a dimensão e aparentemente, o estado de conser-vação deste povoado ainda no século XVIII espantaram o padre Manuel Gomes Gaio quando da visitação que efectuou ao concelho em 1758./Antunes, 2007: 238)

Por outro lado, tal como a maior parte dos espaços sagrados pagãos cristianizados, também este, na Serra de Portel, está ligado a uma lenda segundo a qual a imagem do santo teria aparecido no alto da serra, sendo encontrada por pastores que tentaram levá-la para a vila. Como não conseguiram, foi aí construída a capela para que a imagem fosse venerada. Depois, a quadra popular que ainda hoje está patente na memória colectiva da população realça a capela como um espaço de peregrinação, tornando S. Pedro um santo casamenteiro. A cova presente na gruta-capela representa, em termos simbólicos, uma descida intra-uterina como forma de atingir a fecundidade e a fertilidade expressas no acto de casar, cuja

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simbologia permaneceu no imaginário popular. Em suma, o culto de S. Pedro na Serra de Portel é um bom exemplo do sincretismo religioso da região, onde a continuidade de um espaço sagrado se perpe-tuou no tempo, adquirindo um carácter folclórico e popular. Assim, se o culto de S. Pedro se esvaneceu em Portel, a sua memória ficou apenas nas ruínas do edíficio, na escultura de pedra do santo e nas lendas e quadras populares, como se pode testemunhar na seguinte quadra.

Rapazes e RaparigasVamos ao senhor São PedroVamos pôr o pé na covaQue é p’ra nos casarmos cedo.

Referências

Antunes, Ana Sofia (2007). “A Idade do Ferro na Serra de Portel.elementos de uma composição territo-rial no Sudoeste Peninsular”, in Vípasca, Arqueo-logia e História, nº 2, 2ª série, p. 232-241.

Chevalier, Jean Gheerbrant, Alain (1982). Dictionnaire

des Symboles, Paris, Robert Laffont/Jupiter.Patalim, Francisco de Macedo da Pina (1992). Relação

Histórica da Nobre Vila de Portel, 1730, edição fac-símile, Junta de Freguesia de Portel, Câmara Municipal de Portel.

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Folia de Reis: Território sacrário

Folia de Reis: Territory tabernacle

Neide Marinho*

*brasil, universidade federal fluminense (uff), instituto de artes e comunicação social (iacs), departamento de arte (gat). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido em 3 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: A partir da pesquisa realizada com a Folia de Reis Estrela do Oriente, de Juiz de Fora, MG, de 2010 a 2011, foi possível inserir essa manifestação num territó-rio sacrário. Esse artigo analisa como tal ritual popular dialoga com os meios massivos, como suas mitologias sobrevivem. Investiga ainda o Palhaço e suas máscaras lendárias e representativas, flutuando entre o sagrado e o profano, que se apropriam do grotesco traduzindo a mestiçagem brasileira. Palavras chave: Folia de Reis / culturas popular e mes-tiça / máscaras.

Abstract: From the survey conducted with the “Folia de Reis Eastern Star”, from Juiz de Fora, MG, 2010 to 2011, it was possible to insert this demonstration in a Territory Tabernacle. This article looks at how such popular ritual dialogues with the mass media, like their mythologies survive. Investigates the “Palhaço” and his legendary masks and representative, float-ing between the sacred and the profane, appropriated the grotesque translating the Brazilian miscegenation.Keywords: “Folia de Reis” festival / Popular cultures and mestizo / Masks.

IntroduçãoA Folia de Reis é um lugar da cultura sagrada de povos que buscam a explicação da existência e da sobrevi-vência através da interferência do sagrado e do profano. A execução da Folia é realizada no interior de um espaço circunscrito sob forma de festa, ou seja, dentro de um espírito de alegria e liberdade, mas ao mesmo tempo sagrado, já que combina fé religiosa, comemoração e compromisso em transmitir a manifestação às gerações seguintes. Este artigo faz uma visita ao santuário da Folia de Reis, demonstrando sua vitalidade e territorialidade sacrária que unem várias comunidades em celebrações festivas do sagrado.

Festa popular de caráter religioso, a Folia de Reis traz em seu cortejo foliões que se reconhecem não por um espaço delimitado, mas por sua religiosidade, por suas vestimentas, sua linguagem, por suas posturas – personagens urbanos construídos na transformação e na movência da cultura.

Eles destacam a dinâmica cultural, elaborada a partir das tradições interligadas e recombinadas, que contribuem para o processo de mestiçagem cultural brasileiro, através de variadas heranças. O es-petáculo e seus personagens definem a Folia e mostram a adaptação das passagens bíblicas nas festas e manifestações populares presente nas culturas mestiças e que combinam elementos variados, gerando novos textos.

A Folia se molda em uma espiral de diversidade cultural, num ritual de fé e prazer, onde o mais importante é o encontro, a troca, o reforço dos vínculos de sociabilidade.

Esse artigo partiu de uma pesquisa realizada com a Folia de Reis Estrela do Oriente, de Juiz de Fora, Minas Gerais. Durante um ano foram observados os preparativos e a comemoração religiosa que se davam em convivência harmônica nos espaços de lazer e na informalidade das ruas.

A pesquisa sinalizou para as intervenções do Palhaço e suas máscaras que exibem um imaginário

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povoado de representações simbólicas do real. Os brincantes, mascarados, vivem a dualidade do espetá-culo em que a vida e a morte, o prazer e a dor, a noite e o dia, o amor e o ódio, se encontram e se cruzam dramaticamente ou mesmo comicamente. A máscara corporifica o jogo do simbólico e do real, dando uma aura sagrada ou profana aos mitos, transportando-os para um outro tempo e outro espaço, para a dimensão do fantástico.

1. Tradições e sobrevivênciasNas tradições de um povo, nas crenças, nos rituais, nos sonhos coletivos e nas práticas do cotidiano é que o passado se renova, contando as histórias que moldam o presente e sustentam o futuro. Tradições que, em todos os cantos do país, ao mesmo tempo em que atravessam, são atravessadas por diferentes experiências simbólicas.

A confluência de heranças culturais estabeleceu os costumes religiosos sem anular as diferenças culturais presentes. Esse processo se dá por ser a cultura uma memória coletiva que (Pinheiro 2009: 16), “serve de mecanismo para a conservação e transmissão dos mais variados textos e a elaboração de novos. Parece-nos claro que o contato entre diversas culturas não elimina uma ou outra por completo, fazendo apenas uma prevalecer”.

Essas tradições são reveladas, notadamente, pelas festas populares. No Brasil colonial as festas já existiam em profusão (Montellato 2000). As mais comuns eram as relacionadas ao calendário religioso católico, geralmente iniciadas por procissões a fim de homenagear ou relembrar eventos cristãos.

A dinâmica cultural elaborada a partir das tradições interligadas e recombinadas contribuiu para o processo de mestiçagem cultural brasileiro, que contou com variadas heranças.

As culturas oral e escrita, a convivência entre diversas tradições, os variados elementos que consti-tuem o Brasil tornaram possível e perfeitamente aceitável a comunicação entre as manifestações popula-res e a cultura de massa, sem dicotomias insolúveis, num processo constante de diálogo em tensão e em reelaboração (Pinheiro 2004).

1.1 Território sacrárioAs atividades cerimoniais, como a Folia de Reis, mesmo com toda sua carga popular e improvisada, com seus paramentos e linguagens simples, são realizadas numa atmosfera impregnada de sagrado. “O homem religioso torna-se contemporâneo dos deuses, na medida em que reatualiza o Tempo primordial no qual se realizaram as obras divinas” (Eliade 2001: 78).

Desde as civilizações primitivas que o homem foi aprendendo a dialogar com os entes sobrenaturais e usou a palavra, o rito e a oferenda na tentativa de controlar a natureza (Gomes e Pereira, 1989). Mas também para mergulhar no Tempo sagrado e indestrutível. Para o homem religioso “é o Tempo sagrado que torna pos-sível o tempo ordinário, a duração profana em que se desenrola toda a existência humana” (Eliade 2001: 79).

A mistura e a presença de várias tradições culturais e religiosas no Brasil desenham o “mosaico móbile” (Pinheiro 2001) do processo cultural no país, desde o período colonial. A edificação de uma re-ligiosidade mestiça partiu dos catequizadores, que para facilitar a transmissão do catolicismo tradicional popular fizeram uso de pinturas, cantos, danças e dos próprios mitos e deuses indígenas.

Uma sacralidade rodeada de objetos profanos para validar os ritos: escapulários, medalhas, folha-gens distribuídas em missas de Domingo de Ramos, fitinhas, etc. Rotinas que dificultam a distinção entre o sagrado e o profano. Deuses indígenas, ou africanos, e santos são cultuados para regerem uma esfera da vida humana.

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2. Folia de ReisAs Folias de Reis rememoram a jornada dos Reis Magos Gaspar, Melchior e Baltazar – que teriam partido da Pérsia -, desde o momento em que eles recebem a notícia do nascimento do Menino Jesus até encontrá-lo, para presenteá-lo. Caminhando sempre à noite, os foliões entoam versos tradicionais ou improvisados, em cantochões que agregam solo e coro. Eles cantam às portas das casas, de manhãzinha, acordando os mora-dores, pedindo auxílios e recebendo esmolas, servindo-se de café ou de pequena refeição.

Desde a véspera do Natal, 24 de dezembro até o dia 6 de janeiro (dia dos Santos Reis Magos), a Folia de Reis, em procissão, reproduz de forma simbólica a história da viagem dos três Reis Magos à gruta de Belém. Ela é sinal de alegria pelo nascimento de Jesus Cristo e são organizadas em consequência de uma promessa, geralmente feita pelo mestre da Companhia ou de outra pessoa que a tenha solicitado. O compromisso é assumido livremente, porém a Folia tem por obrigação sair um mínimo de sete anos para se alcançar a graça desejada (Castro e Couto 1977).

São vários os motivos para as promessas: a cura de doenças, o cumprimento de desejos e a superação de dificuldades. Ao pedir a graça os participantes estabelecem uma relação com os seres divinos e propõem “um triângulo de fé, inspirado em reciprocidade onde promessas transformam-se em bênçãos, proteção e recompensas para aqueles que cumprem suas promessas com os Reis Magos” (Castro e Couto 1977: 2).

A Folia de Reis surgiu no Brasil no século XVI, por volta do ano 1534, por meio dos Jesuítas, como crença divina para catequizar os índios e posteriormente os negros. Apesar de todas as variações da Folia ela se mantém com a mesma crença e devoção ao Menino Jesus, a São José, à Virgem Maria e aos Reis Magos.

A música caipira-religiosa cantada proporciona a concretização da jornada e pelo verso realiza a comunicação entre o mundano e o espiritual, sendo repetidas inúmeras vezes. É através da toada que os participantes, os músicos e as pessoas da comunidade manifestam seus desejos e cumprem suas obriga-ções religiosas e sociais. A manifestação é vivenciada de forma festiva, em que arte, religião e vida social se misturam, proporcionando uma verdadeira experiência estética (Durkheim, 1996).

Muito do caráter religioso das encenações tem-se diluído com o passar do tempo e novos ele-mentos foram incorporados às teatralizações como máscaras, acessórios e roupas coloridas, além das coreografias populares que imbricam gestos e malabarismos de vários povos. Nas danças, por exemplo, das festas populares, nota-se ainda, paralelo ao instinto lúdico, a expressão sagrada, a “possessão divina, presença do deus, oferenda religiosa” (Cascudo 1973: 309).

2.1 O Palhaço As Folias de Reis não têm número fixo de participantes ou foliões. O chefe do grupo é o alferes da Folia, mas o destaque fica com o Palhaço que confere um espetáculo à parte quando presente (Figura 1).

Existem duas explicações básicas para a presença dos Palhaços. Uma é que o Rei Herodes teria mandado os espiões para localizar o Messias e matá-lo. Por isso os soldados usavam máscaras para não serem reconhecidos. Outra hipótese é que “os Palhaços representam os enviados do próprio demônio para impedir que as pessoas sigam os Reis e descubram o Cristo” (Gomes & Pereira 1988: 199).

Uma pesquisa de 2011 a 2012 em Juiz de Fora acompanhou a preparação da Folia de Reis Estrela do Oriente. As comemorações religiosas representam, desde os primórdios da cidade, a convivência har-mônica em determinados espaços de lazer e na informalidade das ruas.

A Estrela do Oriente é uma das folias mais antigas de Juiz de Fora e tem no Palhaço sua figura mais importante. A improvisação é a característica marcante na performance dos Palhaços. Irreverentes, eles são peças estruturantes em todos os tempos da Folia.

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Fig. 1. Palhaço da Folia de Reis da Associação de Folia de Reis e Charolas de Juiz de Fora, em concentração na Praça Antônio Carlos. Marinho, 06/01/ 2012.

2.2 A máscaraO costume de participar de algumas festas com o rosto escondido por uma máscara vem da Antiguidade e faz parte da cultura de muitos povos. Para cobrir o rosto, ou até mesmo o corpo, para disfarçar, ocultar ou revelar a “outra cara”, a máscara é carregada de representatividade.

Máscara ritualística cujo uso remonta à pré-história e representava figuras da natureza. Com a utilização de pigmentos – têmpera – as tribos indígenas desenhavam uma máscara no próprio corpo por ocasião das cerimônias religiosas. Para suas atividades de caça esse homem primitivo se mascarava para poder se aproximar da caça ou para ganhar poder sob sua presa. O uso da máscara era vital ainda para se ligar aos deuses e às forças da natureza.

Nada o ajuda melhor a compreender as sociedades primitivas do que seu gosto pelas máscaras e disfarces. A etnologia demonstrou a imensa importância social deste fato, e por seu lado todo indivíduo culto sente perante a máscara uma emoção estética imediata, composta de beleza, de temor e de mistério. Mesmo para o adulto civilizado de hoje, a máscara conserva algo de seu poder misterioso, inclusive quando a ela não está ligada emoção religiosa alguma. A visão de uma figura mascarada, como pura experiência estética, nos transporta para além da vida quotidiana, para um mundo onde reina algo diferente da claridade do dia: o mundo do selvagem, da criança e do poeta, o mundo do jogo (Huizinga 2007: 30).

Não se pode deixar de citar as máscaras de origem pagã e o teatro grego já que estes permeiam a história das Américas. As máscaras teatrais ganham força na Itália no início do século XVI sob a tipifi-cação da Commedia dell’arte. Já na Idade Média o discurso poético era repleto de máscaras, e a maioria delas exprime a própria natureza desse discurso.

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Fig. 2. Palhaço da Folia Estrela do Oriente em concentração na praça central de Matias Barbosa/MG. Marinho, 25/12/2011.Fig. 3. Palhaço de Folia de Reis da Associação de Folia de Reis e Charolas de Juiz de Fora, em concentração na Praça Antônio Carlos. Marinho, 06/01/2012.

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Materialmente, a máscara era um rosto artificial, monstruoso, animalesco, cobrindo a face, associado ou não a um disfarce. Às vezes, sem dúvida, era pintada: os clérigos dos séculos XII e XIII, como Jacques de Vitry ou Étienne de Bourbon, evocam-na em termos referentes à maquiagem, facies depicta, homo pictus (Zumthor 1981: 21).

As máscaras das Folias trazem imagens de demônios (Figura 2) e dragões a personagens infantis (Figura 3) e deuses, numa profusão de cores e luminosos que atrai o olhar de todo espectador. Pinturas não definidas mesclam elementos os mais variados e estampam personagens ambíguos, estranhos, híbri-dos, comuns ou misteriosos.

ConclusãoA chegada da Folia de Reis com seus paramentos e máscaras propicia um espetáculo de costumes, festas, tradições e formas de entretenimento numa mistura de formatos e improvisos que levam os espectadores a participarem do evento, seguindo-o e reelaborando-o enquanto cultura popular.

Os Palhaços mascarados promovem correrias, provocam sustos, rolam pelos caminhos fazendo as mais diversas estripulias, contagiando os visitantes. Por trás da efêmera duração incógnita, os Palhaços divertem-se importunando amigos e parentes. O disfarce assegura sua ousadia conferindo-lhe ares de supremacia sobre os espectadores. Em rituais religiosos ou sociais, a máscara funciona como mediadora entre deuses e espíritos da natureza.

A Folia de Reis é um auto popular que procura relembrar a jornada dos Reis Magos em visita ao Deus-Menino recém-nascido. Faz parte do ciclo natalino e acontece mais ou menos em todas as regiões do Brasil. Rito coletivo, a Folia de Reis hoje mantém uma hierarquia que atua como locus de realização pessoal, onde a necessidade do homem de projetar suas emoções em entidades e forças imaginárias que o apavoram e o reconfortam, o elevam à dimensão sagrada, conferindo-lhes a fé que ajudará em sua sobrevivência.

ReferênciasCascudo, Luis da Camara (1973). Literatura oral no

Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo.

Castro, Zaide Maciel de & Couto, Aracy do Prado (1977). Folia de Reis. Cadernos de Folclore, n. 16. Rio de Janeiro: Arte-FUNARTE, Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro.

Durkheim, Emile (1996). As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes.

Eliade, Mircea (1992). O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes.

Gomes, Núbia Pereira de Magalhães & Pereira, Edimilson de Almeida (1989). Do Presépio à Balança: representações sociais da vida religiosa. Belo Horizonte: Mazza edições.

Huizinga, Johan (2007). Homo Ludens: o jogo como elemnto da cultura. São Paulo: Perspectiva.

Montellato, Andrea Rodrigues Dias (2000). História temática - Diversidade cultural e conflitos. São Paulo: Scipione.

Pinheiro, Amálio (2001). “Introdução”. In: PINHEIRO, Amalio -Org.-. Comunicação e Cultura. Campo Grande: Ed.UDERP.

Pinheiro, Amálio (2004).”Por entre Mídias e Artes, a Cultura”. In Ghrebh Revista Digital do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, São Paulo, v. 6.

Pinheiro, Amálio -Org.- (2009). O meio é a mestiçagem. São Paulo: Estação das Letras e Cores.

Zumthor, Paul (1981). “As máscaras do poema: questões da poética medieval”. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. N. 0. São Paulo: EDUC, pp. 11-22.

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Pragmatismo e Robustez:marca das igrejas luso--brasileiras no Rio Grande do Sul, Brasil

Pragmatism and Robustness (Strength): marks of Luso-Brazilian churches in Rio Grande do Sul

Paula Ramos*

*brasil,historiadora de arte, instituto de artes da universidade federal de rio grande do sul. Par académico da revisão da comissão científica. e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 3 de Junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: O artigo apresenta o modelo arquitetônico das igrejas luso-brasileiras no Rio Grande do Sul, estado mais meridional do Brasil. Região de ocupação tardia e em permanentes disputas territoriais, ali restaram apenas sete templos erigidos entres os séculos XVIII e XIX: todos caracterizados pela robustez e austeridade. O texto apre-senta um breve histórico dos mesmos, apontando suas características comuns.Palavras chave: igrejas luso-brasileiras / arquitetura colonial / Rio Grande do Sul.

Abstract: The paper presents the architectural style of the Luso-Brazilian churches in Rio Grande do Sul, the southernmost state of Brazil. Region of late oc-cupation and permanent territorial disputes, there remained only seven temples erected between the eigh-teenth and nineteenth centuries: all characterized by robustness and austerity. The text presents a brief his-tory of them, pointing out their common characteristics. Keywords: Luso-Brazilian churches / colonial architec-ture / Rio Grande do Sul.

1. Rio Grande do Sul: curiosa relevânciaDas catorze igrejas construídas durante o período colonial no Rio Grande do Sul, estado mais meridional do Brasil, restaram sete. Surgidas, na grande maioria, como ermidas junto a fortes militares, trazem como características o pragmatismo no desenho e a robustez na estrutura. O que as singulariza é a sobriedade das fachadas, a alvenaria de pedra e cal, bem como o despojamento dos interiores. Tais características estão relacionadas à conjuntura do povoamento dessa região pelos portugueses. Afinal, foi apenas no princípio do XVIII que os engenheiros-militares aportaram no Sul com o objetivo de assegurar os limites frente aos espanhóis.

Como região de ocupação tardia, numa fronteira em constante mudança e sob permanente ameaça de in-vasões e guerra, não poderia apresentar obras com a mesma qualidade dos centros açucareiros ou auríferos. Isso, porém, não desmerece as aqui produzidas. Ao contrário, hoje nos fazem indagar como foi possível que, sob condições tão diversas, pudessem ser produzidas obras de tal qualidade. (WEIMER, 1992: 17)

No âmbito arquitetônico, a qualidade assinalada pelo pesquisador Günter Weimer tem a assinatura de alguns dos mais destacados engenheiros-militares do período. José Fernandes Pinto Alpoim (1700–1765), José Custódio de Sá e Faria (1710–1792), Manoel Vieira Leão (1727–1803) e Francisco Roscio (1733–1805) são os responsáveis pelas edificações inaugurais no Rio Grande do Sul. Os três primeiros vieram acompanhando o governador do Rio de Janeiro, António Gomes Freire de Andrade (1685–1763), Conde de Bobadela, por ocasião de sua visita a Rio Grande em 1752, na qualidade de comissário d’El Rei para a demarcação dos limites fixados pelo Tratado de Madri (1750).

Em entrevista à autora, Maturino da Luz, arquiteto e professor universitário, afirma que a

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presença de profissionais desse porte demonstra a preocupação da Coroa com a região: “Portugal deu importância ao Rio Grande do Sul, investiu aqui, e isso se comprova pelo fato de ter enviado esses profis-sionais.” O pesquisador ainda reitera o fato de que esses mesmos engenheiros que projetavam as igrejas, fortes e edificações públicas eram os responsáveis pela complexa demarcação de limites. Ou seja: o traba-lho era contínuo e exaustivo.

2. A “matriz” de São PedroPor ordem de Freire de Andrade, foi erguida a mais antiga igreja luso-brasileira no Estado, a austera São Pedro de Rio Grande, iniciada em 1754. O rigor e a economia formal que regem a fachada de uma única porta e janela estão no projeto de Vieira Leão, executado, ao que tudo indica, por Pinto Alpoim. Um dos mais ilustres engenheiros do período, Alpoim traz em seu currículo o projeto para o Palácio do Governo, em Ouro Preto, e o plano urbanístico de Mariana, ambos em Minas Gerais, além dos Conventos da Ajuda e de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, todas obras importantes nos ambientes urbanos citados.

No que tange à fachada, além da única porta em madeira e, no alto desta, da única janela, localizada na altura do coro, encontramos um frontão triangular e, ladeando-o, duas torres com cúpulas de quatro gomos curvos, trazendo pináculos no topo e ornamentos em barro nos cantos.

3. A “grandiosa” matriz de ViamãoEm 1763, Pedro de Ceballos, governador da província de Buenos Aires, tomou a cidade de Rio Grande, forçando tropas e a comunidade civil a se retirar em direção ao norte. A presença espanhola no território português se estendeu até 1776 e, nesse período, diversos foram os embates. Com isso, restou à popu-lação rio-grandina recuar para áreas mais protegidas, como a região da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Viamão, criada em setembro de 1747 e que, com a invasão espanhola, passou a acolher a governança da província, funcionando como sede administrativa até 1773, quando Porto Alegre se tornou capital.

Na época, José Custódio de Sá e Faria estava à frente da província. Foi ele quem ordenou a cons-trução de uma nova igreja para a comunidade, projetando-a, nos dizeres de Francisco Riopardense de Macedo, “com a majestade de um templo e a envergadura de uma fortaleza” (Macedo, 1983: 72). Em

Fig. 1. Catedral de São Pedro, em Rio Grande (RS, Brasil), 1754, com projeto de Vieira Leão. Foto da autora (2009)

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passagem por Viamão em 1820 e certamente impressionado pela grandiosidade do templo, o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire assim se manifestou:

Pelas igrejas do Brasil pode-se aferir o quanto seria o brasileiro capaz, se sua instrução fosse mais cuidada e se tivesse alguns bons modelos para orientar-se. [...] Não se pode concluir daí que os brasileiros possuem um maior e mais natural sentimento das artes, e que, se conquistarem cultura, ela lhes custará menos trabalho e menos esforço? (Saint-Hilaire 1987: 25)

Verdadeira relíquia da arquitetura do século XVIII no Estado, o templo é assinalado pela presença de um adro com pequena escadaria e balaustrada. Na fachada tripartida, chamam a atenção, no primeiro nível, a porta imponente e as colunas ornamentais; no segundo, as janelas e o óculo quadrifólio e, no terceiro, o frontispício escalonado, arrematado por uma cruz. O corpo da construção é ainda ladeado por duas sineiras.

4. Descaracterizadas, impróprias e... uma surpresaA irradiação açoriana ao longo do Rio Jacuí, a partir de 1740, foi o motor para o surgimento de vilarejos como Triunfo, Taquari, Rio Pardo e Santo Amaro, cidades que durante décadas viveram do rio e que serviram de ponto de transbordo. É justamente nesses vales que encontramos duas importantes igrejas dramaticamente marcadas por interferências arquitetônicas e estéticas de várias ordens: a Igreja do Se-nhor Bom Jesus do Triunfo, em Triunfo, e a Igreja de São José, em Taquari, a cerca de 90 quilômetros de Porto Alegre, capital do Estado. Ambas trazem uma seqüência de intervenções que as descaracterizaram dramaticamente. Inserção de relógios nas fachadas, retirada dos retábulos de madeira e a presença de “grutas” escavadas nas paredes são algumas das barbáries verificadas nessas construções, já denunciadas há mais de 40 anos pelo pesquisador Athos Damasceno Ferreira (Ferreira 1971).

Uma terceira construção, em honra a Nossa Senhora do Rosário, foi erguida em Rio Pardo, sede ad-ministrativa de uma vila com mais de 156 mil quilômetros quadrados. Devido às guerras civis na província,

Fig. 2. Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Viamão (RS, Brasil), 1766–1769, com projeto de José Custódio Sá e Faria. Foto da autora (2009)

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Fig. 3. As descaracterizadas igrejas de Bom Jesus (Triunfo, RS), São José (Taquari, RS) e Nossa Senhora do Rosário (Rio Pardo). Fotos Ricardo Calovi (2009)

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o frondoso templo, assinado por Francisco José Roscio, nunca chegou a ser plenamente executado, tendo sido modificado na metade do XIX pelo engenheiro alemão Johann Martin Buff (1800–1880). Atualmen-te, encontra-se fechado sob risco de desmoronar.

No Vale do Jacuí, apenas a Igreja Matriz do município de Santo Amaro surpreende positivamente. Não se conhece o autor do projeto, concluído em 1787 e cujas características formais, para o pesquisador Günter Weimer, não deixam dúvidas quanto ao exemplo seguido: a Igreja da Conceição, em Viamão. Todavia, ao contrário do aspecto robusto e de fortaleza desta última, em Santo Amaro há uma altivez graciosa, resultado da curiosa ornamentação de viés popular. Em sua aparência torneada, os coruchéus impõem sutil majestade às falsas torres. Mas o que prepondera são as linhas sinuosas, no coroamento das aberturas e, sobretudo, no frontão com rebordo curvo, formando uma cimalha saliente com três níveis de molduras. São elas que conferem graça e airosidade ao conjunto.

5. Em Porto Alegre, exemplares da transiçãoNa capital do Estado, os dois únicos templos iniciados antes do alvorecer do Império não resistiram às fúrias do século XX: a matriz Nossa Senhora Madre de Deus, datada de 1780, cedeu espaço, na década de 1920, à Catedral Metropolitana; já a antiga Igreja de Nossa Senhora do Rosário, erguida entre 1817 e 1827, também foi colocada abaixo em 1951 sob a alegação de que se achava em vias de ruir. Hoje, as mais antigas construções religiosas na capital são as igrejas de Nossa Senhora das Dores e de Nossa Senhora da Conceição, exemplares da arquitetura religiosa de transição no Estado, entre a herança colonial lusa e as novas influências artísticas, e ambas com talhas internas de João do Couto e Silva.

Se a igreja “das Dores” levou quase um século para ser concluída, incorporando à fachada e ao inte-rior eclético tal temporalidade, a da “Conceição” foi levada a “pleno contento” por seu idealizador, Couto

Fig. 4. Igreja de Santo Amaro: delicada e de viés popular. Foto Ricardo Calovi (2009)Fig. 5. Igreja de Nossa Senhora das Dores (1809–1903) e de Nossa Senhora da Conceição (1851–1858): em Porto Alegre, a transição. Fotos Ricardo Calovi (2009) e Paula Ramos (2013)

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ReferênciasFERREIRA, Athos Damasceno (1971). Artes Plásticas no

Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo. MACEDO, Francisco Riopardense de (1983). Arqui-

tetura Luso-Brasileira. In: A Arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto.

RAMOS, Paula (2009). Memorial Igrejas RS. In: Revista Aplauso. Porto Alegre: Plural Comunicação.

SAINT-HILAIRE, Auguste de (1987). Viagem ao Rio Gran-de do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor.

WEIMER, Günter (1992). Síntese Rio-Grandense: a Arquitetura. Porto Alegre: Editora da UFRGS.

e Silva (Ferreira 1971). Tanto, que nessa construção ele fez questão de fixar seu nome, em letras garrafais, na entrada da nave. Sinal dos tempos? De certo modo, o fato de um criador identificar seu trabalho de modo tão enfático sinaliza, entre outros, uma mudança quanto ao reconhecimento do próprio estatuto do artista. “E devemos lembrar que o Rio Grande do Sul da época já era, em sua estrutura e mentalidade, diferente”, salienta, em entrevista à autora, o pesquisador Júlio Curtis. Curtis, que já percorreu o Brasil inteiro documentando e analisando sua arquitetura tradicional, reconhece que pouco se fala dessas cons-truções sulinas, pois os especialistas costumam se fixar nos exemplares mais exuberantes, como as igrejas mineiras, cariocas ou pernambucanas. Entretanto, salienta: “Não importa que sejam comedidas; elas são nossas e precisam ser preservadas. Elas representam bem a simplicidade e a austeridade que marcaram um longo período de nossa história.”

O presente artigo, resgatando de modo breve aspectos e personagens dessa história, busca justa-mente isso: subsidiar reflexões acerca desse ainda pouco conhecido patrimônio.

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Um Santuário Suíço nos Açores:Dos lagos suíços para a lagoa das Furnas, a migração de uma paisagem

A Swiss sanctuary in the Azores: From the Swiss lakes to Furna´s lagoon, the migration of a lanscape

Pedro Maurício de Loureiro Costa Borges*

*Portugal, arquitecto, universidade de coimbra, faculdade de ciências e tecnologia (fctuc), departamento de arquitectura (darq-fctuc), co-coordenador do centro de estudos em arquitectura (cearq - fctuc). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 3 de Junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: o tema é a migração das formas à escala da pai-sagem; em particular, como explicar a construção de uma Capela à beira de uma lagoa que é um vulcão; concluindo--se que o modelo de paisagem convocado é suíço, vertido de várias fontes, do Bois de Boulogne ao Lago de Thun.Palavras chave: Capela de N. S. das Vitórias / José do Canto / História da Paisagem / Arquitectura do século XIX / Estudos de Imagem.

Abstract: The subject is the migration of forms at the landscape scale; in particular, how to explain the construction of a chapel on the edge of a lagoon which is a volcano; concluding that the model of land-scape evoked is Swiss, poured from different sourc-es, from the Bois de Boulogne to the lake of Thun. Keywords: Capela de N. S. das Vitórias / José do Canto, / Landscape History / XIX.th Century Architecture / Im-age Studies.

IntroduçãoA migração das formas à escala das paisagens é o tema de fundo. A propósito da Capela de Nossa Se-nhora das Vitórias, também conhecida por Capela de José do Canto, seu fundador no último quartel de Oitocentos nas margens da Lagoa das Furnas, na ilha de S. Miguel, Açores, pretende-se mostrar como o projecto da mesma é desenhado com o mundo de fora para a cratera de um vulcão.

José do Canto foi um micaelense excepcional. A partir de 1852 começa a comprar terras junto à lagoa das Furnas. A laboriosa transformação que vai operar nesta propriedade, integrando a produção com o recreio e nela incluindo a construção de uma Capela que é hoje um signo identitário da ilha, vai ser a sua obra maior.

1. A lagoa desabitadaComo construir uma Capela no interior de um vulcão?

A resposta tradicional encontra-se eloquente em Santa Cruz da Graciosa, numa pequena cratera a Sudeste da vila, com três Capelas a coroar a cumeeira rigorosa. Ou, recuada das margens da lagoa, outra resposta nos dá a Igreja de S. Nicolau nas Setes Cidades. Mas, ao contrário das Sete Cidades, a lagoa das Furnas no princípio do século XIX era totalmente desabitada. Depois da violenta erupção de 1630, foi um estrangeiro o primeiro a pensar habitar a grande cratera. Edward Noursey Harvey era inglês, aven-tureiro e rico, e em 1838 compra terra inculta na encosta da lagoa e ali inicia a construção de uma casa (Dias, 1936: 94-95). Vinte anos depois, vende-a ao cônsul inglês de Ponta Delgada, Samuel Vines. Este chamou-lhe “Grená”, aportuguesamento de Grenagh, em Killarney, na Irlanda. Foi a pensar nos três lagos de Killarney que Dias chamou ao conjunto da Lagoa Seca, da lagoa barrenta, e da Lagoa das Furnas, a “região dos Lagos”.

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2. A Cintra dos Açores with rather a Swiss-like appearanceSe a lagoa começou por ser irlandesa, o vale das Furnas, onde se situa o povoado homónimo, preferia ser suíço.

No final da década de 30 e a propósito das Furnas, Bernardino José de Senna Freitas, sócio da Acade-mia Real das Ciências, propõe-se escrever uma Memória sobre o sítio que “um distinto americano intitula a «Suissa de S. Miguel»” (1845: XIV). Foram os estrangeiros a inaugurar e a incentivar a evocação suíça.

No contexto da rude paisagem micaelense de Oitocentos, a súbita e inesperada visão, em vol d’oiseau, do “vale” habitado e rodeado por “montanhas” poderá ajudar a perceber a constante compa-ração com um vale Suíço. O Capitão Edward Boid, oficial da marinha ao serviço da esquadra liberal, de olhar erudito e viajado, perscrutando o vale e admitindo-lhe alguma semelhança com “an inferior Swyss valley”, realça que “to an eye praticed in Italian and Helvetian scennery, is remarkable for […] the plea-sing contrast it offers to the surrounding scene of desolation and unprodutiveness” (1834: 136).

A americana Caroline Pomeroy, de visita a S. Miguel em 1824, evoca a paisagem alpina para melhor explicar o final do percurso sul para as Furnas, mais concretamente, da subida “[…] a 1.000 pés de altura por um caminho tortuoso, onde o panorama faz lembrar os Alpes” (1997: 89).

Para o escocês Charles Wyville Thomson, “The valley, at a first glance, looks strangely familiar from its resemblance to many of the valleys in Switzerland” (1877: vol. II, 38-39).

Em 1883, o americano Lyman Horace Weeks testemunha o deslumbramento de outro viajante com as Furnas à vista: “No famed Swiss landscape is fairer”; o americano prossegue: “At your feet nestles the green valley with its village of clustering white houses, seeming far away like some Swiss hamlet” (1882: 111-120).

3.1. A Suíça - em LondresNo seu Grand Tour de 1837, o pai de José do Canto, morgado José Caetano, foi ver o Diorama de Regent’s Park, em Londres. “The Village of Alagna, Piedmont”, o primeiro diorama apresentado, reproduzia uma tempestade nocturna, depois o amanhecer apaziguado com a aldeia alpina sob um manto de névoa e, “numa cabana suíssa que representava estar mais próxima, via-se o gelo dependurado”. Dias antes, José Caetano tinha ido ao Colosseum ver o famoso Panorama de Londres. Penso que não esperaria ter en-contrado, também aqui, outra “cabana suíssa […] toda ornamentada com trastes próprios dos suíssos” (Caetano, 1978: 31-38).

Em 1846, o seu filho José pagaria 10 xelins e 3 pence por três bilhetes para o mesmo Colosseum.Se o Diorama preconizava o cinema, o Panorama propunha apenas a visão de uma pintura de

enormes dimensões numa tela inteiramente circular. Para a visão completar 360º, o espectador acedia ao interior do círculo por um túnel e, subindo para o centro, daí descobria a cidade de Londres ou os vales da Suíça a toda a volta. Ora, qualquer lagoa micaelense é, para quem se deslocar ao centro, um panorama.

3.2. A Suíça - o país exemplarTal como o seu pai, José do Canto fez o seu tour de “ilustração e recreio”, demorando-se de Abril a Agosto de 1846 por Londres e Paris. Visitou a Bélgica e a Alemanha, e depreende-se que terá ido mais do que uma vez à Suíça, com toda a probabilidade por recomendação médica.

Simon Schama (1996: 447-513) conta-nos a história da descoberta e invenção da Suíça como paisa-gem física e política de culto. Resumindo, se a caminho de Itália os tastemakers do Sublime foram obse-quiados na Suíça com o cenário grandioso dos Alpes, também aqui tinham um museu vivo da sociedade

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Fig. 1. Vue de Genève prise de Saconney en Savois (Rehville, 1836).

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primitiva preservado da iniquidade da civilização pela barreira natural que eram as montanhas. Inven-tado por Jean-Jacques Rousseau, o homem natural, não corrompido pela ganância da cidade, pastoreava aqui, nas encostas verdejantes dos Alpes, e a vontade geral tinha assento público nas famosas assembleias anuais de Glarus e Appenzel. A Suíça era um modelo de virtude política e de paisagem sublime.

Depois de ter sido proibido, Rousseau é presença obrigatória em qualquer biblioteca particular de Oitocentos. José do Canto tinha a obra completa. Tal como o seu pai no tour de 37, José do Canto cumpriu a peregrinação à “Ermitagem”, em Montmorency, onde Rousseau se exilou de Paris. Adoptara de Rousseau a moral da virtude inatacável da mãe Natureza face à inescapável destruição da bondade do homem pelo processo civilizacional. E a Suíça como exemplo.

José do Canto tinha nada mais, nada menos do que quatro guias de viagem para a Suíça. O guia Joanne, um inevitável Baedecker, o Ludovic e o Guide Populaire Conty, onde encontrei um mapa com o trajecto do tour que fez com a família em Agosto de 1873. Ao filho António descreve a viagem em longa carta, onde anota a relação paisagística das cidades-com-os-lagos (Sousa, 1982: 302-302). Para além do primeiro passeio ao longo do lago de Neuchatel, refere os lagos de Brienz e Sarnen. Percorreram todos os recantos do lago de Lucerna, e demorar-se-ão para explorar o Lac Léman.

3.3. Uma arquitectura para a lagoaEnquanto o Alpine Club tirava teimas com os picos mais altos, os vales e os lagos disputavam-lhes a pri-mazia entre as imagens que identificavam a paisagem helvética.

A comparação, no universo das imagens, do vale das Furnas com os vales suíços começa por ecoar numa ilustração (Fig.1) do guia Ludovic, ou le jeune voyageur en Suisse (Rehville, 1836): numa primeira percepção, a topografia arredondada, a disposição das árvores, a dimensão aparentemente modesta do povoado na margem de um lago, e a ausência de um referente de escala que nos dê a medida do lago e da altura dos montes que o envolvem, viabilizam a comparação com outras imagens coevas das Furnas. Somos apanhados de surpresa quando lemos a legenda Vue de Genève prise de Saconney en Savois.

Veja-se agora a esplêndida panorâmica de Hartung tirada do Pico do Ferro (Fig.2). Num primeiro olhar, diria mesmo que esta imagem parece mais suíça do que a anterior: a escala global é mais vasta, os montes escalvados, à esquerda, têm arestas e vértices nos cumes e até são esbranquiçados.

Se as imagens, a meio do século, não ridicularizam a metáfora suíça, vejamos como, mais do que uma evocação, elas poderão ter constituído modelo.

As imagens a realçar encontram-se no Guide Populaire Conty. Comecemos pela ilustração intitula-da Le lac de Brienz à Interlaken que nos mostra um chalet sobranceiro ao lago (Fig.3). Compare-se com Une ville à Furnas que nos mostra o chalet de Ernesto do Canto no Parque das Murtas (Fig.4).

Ambos os chalets se implantam numa relação idêntica, sobranceira à água; por sua vez a água recorta-se sinuosamente no encontro com a terra, as árvores são esparsas, e as montanhas constituem o fundo em ambas as imagens.

Outra vista do Lac de Brienz, com uma capela sobre o rochedo mais alta que o casario em baixo, à cota do lago (Fig.5), mostra-nos uma composição em que a relação topológica dos elementos se asseme-lha à do conjunto construído por José do Canto (Fig.6).

3.4. A Suíça – em ParisEntre idas e vindas a S. Miguel, José do Canto viveu em Paris de 1853 a 1868. A partir de 1861, tem morada em Auteuil, um bairro exemplar do gosto ecléctico oitocentista, exibindo chalets suisses, palazzini italiens,

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cottages anglais, tourelles gothiques, (Joanne, 1856: 41). No contíguo bairro de Passy, entre mais chalets suíços, tinham atelier Hugé, que projectou o chalet de Ernesto do Canto, Adolph Alphand, Barillet-Des-champs e Georges Aumont,. Todos conhecidos de José do Canto.

Para além da arquitectura residencial, o modelo suíço também marca presença no paisagismo, ou não houvesse um Chalet Suisse no Bois de Boulogne, para reproduzir programaticamente ”le paisage du lac de Genève” (Limido, 2002: 64), e outro no Bois de Vincennes. No guia Joanne de 1856 podemos ler:

Entrons au bois de Boulogne par l’avenue de l’Impératrice ; […] Cette route […] conduit à l’extrémité du lac inférieur. De ce point, on découvre une des plus jolies vues du parc, sur ce lac aux bords plantés de pins […]. A l’ombre d’un petit bois de pins qui couvre la grande île, s’élève le Chalet (Joanne, 1856: 16, bold meu).

Será assim uma imagem suíça que José do Canto tem presente na memória quando, anotando ta-refas a executar nas matas das Furnas, escreve “Plantar pinheiros n’algumas margens da Lagoa, como no Bois de Boulogne » (Bold meu).1

5. A lagoa das Furnas, de projecto utilitário a projecto paisagísticoA partir de 1852 José do Canto começa a comprar, arrendar e permutar terras junto à lagoa das Furnas. Plantou logo pinheiros no lado da Chã do Forno da Cal, a sudeste da lagoa. A importância das matas para madeira e do lado utilitário, ou de produção, desta propriedade será constante.

Também logo de início se torna claro que as margens a sul da lagoa terão um tratamento especial. Os trabalhos do jardineiro inglês George Brown, tirando inteligente partido da morfologia existente, localizam-se todos na Fajã das Rabaças, vocacionando-a a pleasure grounds.

Data de 1861 o Projecto para a Chã do Forno da Cal assinado por Barillet-Deschamps, Jardinier en Chef des Squares et Jardins Publics de la Ville de Paris. Em 1864 Georges Aumont, colaborador de Barillet--Deschamps, envia para S. Miguel o conducteur de travaux Lainé para fazer le tracé du parc. Em 1867, um novo plano assinado por Aumont integra agora a totalidade da propriedade (Albergaria, 2000: 219-224). O projecto de Aumont incorpora, inalterado, o projecto de Barillet-Deschamp, expandindo para as outras chãs o mesmo sistema compositivo de largas elipses sobreposto por outro radial. Mantém a habita-ção ao meio da Chã do Forno da Cal, enquanto na Fajã das Rabaças aparece a “Église” e alguns pavilhões.

6. Na margem da lagoa, com a ajuda de LoudonAs primeiras casas de veraneio localizadas nas caldeiras das lagoas micaelenses têm implantações de manual: a Grená (in.1838) situa-se a meia encosta, sobre um promontório; a casa Álvares Cabral, nas Sete Cidades (1840s), fica próxima da cumeeira da cratera, ambas abrigadas por matas a Norte. Mesmo a casa de António Borges nas Sete Cidades (in.1852), apesar de estar à cota da lagoa, não se relaciona com ela tendo o parque, com uma colina, de permeio.

A atípica implantação na borda de água tinha adversativas em todos os textos normativos de José do Canto. Apenas John Claudius Loudon (1842: 766-768) faz jogo duplo: por um lado, confirma as precauções e advertências dos outros manuais, mas por outro, e face a uma solicitação paisagística poderosa, há que ser arrojado:

Where a house is to be built on the margin of a lake with a tame uniform shore, the common practice is, to keep it a certain distance from the water, and to form a lawn between it and the house: but a bolder and more

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Fig. 2. O Vale e a Lagoa das Furnas, em Hartung, G. (1860) Die Azoren in herer Äusseren Erscheinung und Nach ihrer Geognostischen Natur. Leipzig. Verlag Von Wilhelm.Fig. 3. Le Lac de Brienz à Interlaken (Conty, 1866?).Fig. 4. Une villa à Furnas, em Jedina, L. (1878), Voyage de la Frégatte Autrichienne Helgo-land autour de l’Afrique. Paris: Maurice Dreyfus Éditeur.Fig. 5. Capela sobranceira a um lago e casas na margem, Lac de Brienz (Conty, 1866?)Fig. 6. Capela, Casa dos Botes e Chalet de José do Canto, Lagoa das Furnas. Foto, anónimo, BPARPD.

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striking mode of proceeding would be, to carry the platform on which the house is placed to the very margin of the lake, and even projecting into it.

Avançando com uma plataforma sobre a água, José segue os conselhos de Loudon.

7. A Capela de Nossa Senhora das VitóriasDesistindo da localização no Forno da Cal, José do Canto adoptará a Maison de Garde como a sua casa nas Furnas, doravante denominada de Chalet. Projecto de 1864 de Georges Aumont, o Chalet, verdadeiramente de suíço, para além da implantação lagunar, tem apenas as duas águas com a típica madeira rendilhada.

Já a Casa dos Botes toma por modelo o Design XLII, apresentado por Loudon na sua enciclopédia de arquitectura (1842: 157-159).

A implantação da Ermida é peremptória na afirmação duma ideia de paisagem que incorpora a lagoa, desde o plano da água à encosta da cratera intensamente arborizada por José do Canto. O sítio escolhido junto à margem, contra todas as regras da salubridade construtiva, mas numa cota mais alta que as outras construções, fica a eixo do maior comprimento da lagoa, garantindo deste modo a maior extensão de água possível na sua frente. A encomenda corresponde a um voto feito em 1854 por causa da doença de sua esposa, Maria Guilhermina Taveira de Neiva Brum da Silveira. Na realidade, resulta num memorial erguido a Maria Guilhermina e a si próprio, em programa de mausoléu à escala da paisagem que, por pudor, se fez capela. Sendo este o programa-sombra, a visibilidade pública da Capela, garantida pela clareira imensa que é a lagoa, torna-se factor decisivo para a sua implantação.

O projecto da Capela, da autoria do arquitecto A. Breton, com atelier em Paris, teve início em 1864.

Fig. 7. Lagoa das Furnas: uma paisagem-memorial. Foto, anónimo, BARPD [19--?].

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A construção arranca em 74, depois do tour suíço. Em 1885 foi consagrada e a 15 de Agosto de 1886 inaugurada (Sousa, 2000: 50-75). Na composição volumétrica ecoa a tipologia de igreja paroquial de uma nave com a torre sineira centralizada sobre a entrada e estirada em agulha que se difunde em França associada ao revivalismo gótico oitocentista.

Conclusão Apesar do empirismo inspirado de Brown, da erudição ágil de Barillet Deschamps, da experiência técni-ca de Lainé e do excelente Plano de Aumont para transformar toda a propriedade num parque, Emygdio da Silva, em 1893, não reconhece aqui um ‘parque’, antes designando por “mattas da capella” o trabalho daquele colectivo orquestrado por José do Canto (Silva, 1893: 60). A paisagem, e não a arquitectura ou o paisagismo, é a grande obra artística de José do Canto.

Nesse final do século, o mesmo Emydgio da Silva, escrevendo para o Diário de Noticias, não deixa de recomendar que “Uma das excursões mais encantadoras é por certo a que se pode fazer à lagoa, onde se encontra sempre uma barca cedida por um dos seus amáveis donos e a bordo da qual se teria a illusão de bordejar n’um trecho do Lago dos quatro cantões, se as encostas apresentassem mais algumas habita-ções” (Silva, 1893: 59). O seu colega Bento Carqueja, focando a capela de José do Canto, escreve para o Comércio do Porto:

As aguas do lago de Genebra entoam no seu murmúrio as glorias de Rousseau; as aguas de outro lago da Suissa fallam dos feitos lendários de Guilherme Tell; as aguas da lagoa das Furnas coroam com o diadema de seus crystaes a memoria querida alli objectivada para sempre! .. Sentimental!... (Carqueja, 1894: 14).

Notas1 Apontamentos a tinta e grafite (c. 1855-1856), Universidade dos Açores, Fundo Brum da Silveira - Arquivo José do Canto,

(UACSD, FBS-AJC 6734).

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Uma imagem é uma imagem, mas… O processo de humanização das imagens da Senhora da Saúde

An image is an image, but… The process of humanization of images of Lady of Health

Pedro Pereira*

*Portugal, antropólogo e Professor da escola superior de saúde – instituto Politécnico de viana do castelo. e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 3 de junho, aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: O culto à Senhora da Saúde data do século XII e está presente em mais de trezentos lugares ao longo do ter-ritório português. Ancorado no domínio antropológico, o presente texto procura mostrar a presença de um pro-cesso de humanização das imagens da Senhora da Saúde.Palavras chave: Virgem / Senhora da Saúde / religião / imagem.

Abstract: The cult of the Lady of Health dates from the twelfth century and is present in over three hundred lo-cations throughout the Portuguese territory. Anchored in the anthropological field, this text tries to show the pres-ence of a process of humanization of the images of Our Lady of Health.Keywords: Virgin / Lady of Health / religion / image.

IntroduçãoDatado do século XII e espalhado por mais de trezentos lugares, o culto à Senhora da Saúde é, segura-mente, um dos maiores de Portugal. O presente texto situa-se no domínio antropológico, ancorando-se num trabalho de terreno em setenta e nove lugares da Senhora da Saúde e quarenta e oito entrevistas semi-estruturadas a crentes na mesma entidade. Neste artigo procura-se sustentar a presença de um processo de humanização das imagens da mesma invocação da Virgem.

Uma imagem é uma imagem, mas...Ao longo do trabalho de terreno, principalmente nos dias de festa, quando via as imagens da Senhora da Saúde cuidadosamente aparelhadas, em particular quando observava as relações que os crentes manti-nham com elas, diversas vezes registei no meu diário de campo a expressão que parecia melhor condensar a minha impressão desta ligação: Se Isto É Uma Estátua. Esta expressão repousa num roubo a Primo Levi que condensou na sua obra, Se Isto É Um Homem (Levi 2002), a descrição da desumanidade do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. O eixo de ambas as expressões é a humanidade, mas, paradoxal-mente, Levi denuncia a sua ausência, quando seria esperada a sua presença; eu denuncio a sua presença quando seria esperada a sua ausência. A desumanidade com que os seres humanos eram tratados no Lager contrasta com a humanidade com que as estátuas são tratadas na capela.

O processo de humanização das imagens da Senhora da Saúde apresenta-se como uma dimensão fundamental deste culto que pode ser notado, desde logo, pela forma como se veste a imagem. A ima-gem da Senhora da Saúde ganha vida através da matéria morta dos cabelos humanos, da invocação do movimento das mãos1, e até a boca leva os crentes a aludir ao falar, bem como ao beijar, enfatizando a dimensão afetiva, tão importante no culto à Senhora da Saúde2. De uma forma mais higiénica, mas não menos humana, a imagem da Senhora da Saúde de Urbanização de Monsanto (Lamego) foi ficando com as cores mais claras como resultado dos banhos que lhe foram dados pela pessoa que lavava a capela.

A imagem da Senhora da Saúde ganha humanidade também através da expressividade e na beleza

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que as crentes lhe atribuem. Nos mais diferentes lugares, nas mais diferentes festas, as vozes femininas eram semelhantes no elogio da beleza da imagem, está muito bonita, a Senhora da Saúde3. Mas este estado efémero pode passar a condição permanente, claramente evidente nas palavras de uma crente que veste e despe regularmente a Senhora da Saúde de São Paio de Oleiros (Santa Maria da Feira), “meu deus, ela não precisava de ser vestida porque ela é linda, linda, linda”.

Habitualmente a roupa da imagem da Senhora da Saúde traduz-se num muito valorizado manto4 e num vestido. Contudo, a zeladora da capela da Senhora da Saúde da Urbanização de Monsanto (Lame-go), relatou-me que houve um noivo que vestiu o seu fato à imagem da Senhora da Saúde: a gravata, a camisa, o casaco. Perante a impossibilidade de calçar as meias e os sapatos à estátua, deixou-os no chão, junto à imagem.

Alberto Pimentel refere que na Senhora da Saúde de S. Pedro d’ Arrifana (Santarém) o Menino “também se veste” (Pimentel 1899: 446). Efetivamente também o menino surge vestido, normalmente de cores brancas, beges ou azuis, mas ao contrário da Virgem, também aparece nu. Em algumas repre-sentações da Senhora da Saúde há algum adereço branco que quebra a nudez do Menino, um lençol branco que pode ter associada uma fralda também branca ou apenas com uma fita branca a envolver-lhe a barriga.

O processo de “sacramentalização afectiva da imagem sagrada” (Meslin 1988: 272) favorece os con-tactos entre o corpo do crente e o corpo da Senhora da Saúde e, frequentemente, estes corpos são femini-nos ou então de crianças, de ambos os sexos, incentivados pelas mães5. As mãos dos crentes são a ponta de lança desta vontade de contacto direto com a imagem, procuram tocar-lhe numa parte acessível. Quando as imagens estão no altar-mor não é fácil tocar-lhes, assim como não o é particularmente durante o perío-do de festa, pois as imagens já estão em cima de um andor e rodeadas de flores. Por exemplo, em Touvedo (Ponte da Barca), a parte mais acessível do corpo da Senhora da Saúde é o seu joelho direito fletido. À medida que os crentes vão chegando à igreja, são particularmente as mulheres que se aproximam da imagem e procuram beijar ou tocar na parte mais próxima do seu corpo que é o joelho. Este efémero gesto individual, regularmente repetido, não apenas o transforma num gesto social, como também se materia-liza no facto de, neste joelho, as cores do vestido já terem desaparecido, deixando gravada, de uma forma perene, uma marca social da crença.

Nos dias de festa, na generalidade dos lugares da Senhora da Saúde, em que a sua imagem está acessível, os crentes procuram tocá-la6. Na Senhora da Saúde de Bustelo (Penafiel), a fila é longa para tocar a imagem da Senhora. Geralmente mulheres, mães e crianças, que perante a inacessibilidade da imagem têm de ser as mães a pegarem nelas ao colo. Este gesto feito com a naturalidade funcional da crença, permite que a criança toque na imagem, acreditando que este contacto a irá proteger dos vastos e desconhecidos perigos da doença, traduz-se figurativamente num mimetismo da imagem da Senhora da Saúde que também tem ao colo o seu filho.

Esta proximidade física é uma expressão de uma proximidade afetiva, particularmente das mulheres que, teologicamente, as afasta da veneração e as aproxima da adoração. Em cada uma das onze cirurgias que já fez, Maria Branco pediu sempre ajuda à Senhora da Saúde, foi sempre à Igreja e fez sempre o mesmo, nas suas palavras: “choro com Ela [Senhora da Saúde]”. A partilha do choro, e certamente da angústia, pressupõe, de alguma forma, uma partilha da humanidade, da qual Maria Branco não duvida, pois para ela “uma imagem da Senhora da Saúde é como se fosse um ser humano. São como pessoas”.

Neste como noutros relatos, nem mesmo a hiperdulia, teologicamente devida à Virgem, parece ser suficiente para acomodar a relação dos crentes com as imagens da Senhora da Saúde. Alguns crentes, com

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maior proximidade com a instituição eclesiástica, tiveram a precaução de me lembrar do dever teológico católico de não adorar santos. Maria Ribeiro diz-me aquilo que a igreja diz: “a igreja católica diz que nós não devemos adorar os santos”; e diz aquilo que faz: “Eu não adoro os santos, venero o que é diferente, prontos, embora, digamos que sei lá...”. Mas, contornemos o desconforto católico da adoração à Virgem e situemo-nos na proximidade afetiva dos crentes relativamente à Senhora da Saúde. Apesar de, no con-forto do seu catolicismo, Maria Ribeiro negar a adoração de santos, é inegável a sua proximidade afetiva em relação à Senhora da Saúde. Apesar de também rezar em casa, Maria Ribeiro gosta de ir à igreja para poder “olhar nos olhos” a imagem da Senhora da Saúde e sentir o que não tem explicação: “parece que a gente não tem explicação, a gente sente-se, é diferente a maneira”.

O sonho de Maria Carvalho foi um sonho em vigília e o beijo na imagem da Senhora da Saúde foi quase uma reação afetiva decorrente de pegar na imagem, a grande, aquela que sai em procissão. Naquele dia em que estavam a fazer os andores, Maria Carvalho, ainda que hesitante, aproximou-se e abordou a pessoa que estava encarregue de transportar a imagem da Senhora da Saúde: “ó senhor José, a imagem é pesada? Não, isto não é muito pesado, mas pesa uns quilinhos, pesa um bocadinho, mas eu acho que peguei aquilo com uma facilidade doida. Diz ele, porquê? E ele ia assim para tirá-la e eu disse-lhe, deixe-me tocar na Nossa Senhora. Ó senhor José deixe-me pegar nela. Tome lá. Digo-lhe, posso levá-la para ali?, Maria Carvalho pegou na imagem da Senhora da Saúde, e foi “uma sensação tão estranha, eu digo, uma sensação tão estranha” e, talvez por isso, inexplicável. De facto, a linguagem parece não ser suficiente para Maria Carvalho traduzir aquilo que sentiu, como se pode notar nas palavras que usa para dizer aquilo que não consegue dizer: “eu sei o que senti mas não sei exprimir aquilo que eu senti”. O inexplicável deste deslumbramento devocional, expressa-se na confluência entre a proximidade física e a proximidade afetiva, e Maria Carvalho expressa-o quando diz que “parecia tolinha com a Nossa Senhora ao colo”.

ConclusãoO primeiro passo da humanização da Senhora da Saúde passa pela sua materialização numa imagem que permite não apenas dar um corpo à entidade metafísica, como favorece o relacionamento fenomenoló-gico com esse mesmo corpo7 (Leach 1992: 55-61). Contudo, como lembra Victor Turner, a imagem, para os crentes, não é um símbolo de outro poder, mas o poder sobrenatural da Virgem que está intimamente ligado à imagem (Turner 1978: 143). Embora a Senhora da Saúde não tenha uma identidade iconográfica definida, sendo, por vezes, representada apenas pela imagem da Virgem (imagem solitária da Virgem) e, representação dominante, a Virgem com o Menino ao colo (imagens maternais da Virgem), o processo de humanização concretiza-se através da presença de elementos humanos no corpo da Senhora da Saúde, como cabelos naturais, roupa, brincos e colares. Para além disto, é frequentemente enaltecida a sua beleza e a sua expressividade.

As crentes procuram a proximidade física com a imagem da Senhora da Saúde, que ostenta atri-butos humanos, tocando-lhe, abraçando-a, beijando-a, pegando nela ao colo ou chorando com ela. Esta proximidade física é a expressão de uma proximidade afetiva e a confluência de ambas transforma uma imagem em algo mais do que uma imagem. Claro que como boa católica, Maria Carvalho sabe, e lembra--me, que “uma imagem é uma imagem, mas...[pausa] naquele momento não era, não era, era mais do que isso”. Por isso, e por fim, Maria Carvalho confessa: “Prontos, beijei-a na cara, beijei. Foi assim uma coisa única na vida, não é?”.

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1 Podemos notar isto mesmo numa loa dedicada à Senhora da Saúde de Valpaços, na qual a ação solicitada contrasta com a imobilidade de uma estátua, bem evidente em versos como: “Ó Senhora da Saúde; Estendei-me a vossa mão (…). “Ó Senhora da Saúde; Vinde abaixo, dai-me a mão” (Martins, 1978: 351-352).

2 A relação afetiva associada à boca pode ser notada com um teor exacerbado num poema com laivos de uma certa sensuali-dade: “(…) riso da minha boca que tu beijas (…); Sra. da Saúde, - Oh! alma igual à minha –; água que mata a sede ardente; que nunca se sacia!...; Sra. da Saúde – Oh! minha ideal Santinha! –; que a minha boca, eternamente,; Só diga – unida à tua: - AVÉ MARIA!!!; «O Cávado» de 3-4-1938» - Frá Diávolo” (Sousa, 2000: 114).

3 A bibliografia corrobora o que foi constatado no trabalho de terreno. Na Praia (Santa Cruz da Graciosa) temos a “expressiva imagem da Senhora da Saúde” (Pereira, 1986, p. 355) e em Valpaços a Senhora “vive a sua festa sorrindo enlevadamente…“ (Martins, 1978: 334). A beleza da imagem é particularmente realçada quando sai durante a procissão.

4 Por exemplo, nos registos de 1905 das festas da Senhora da Saúde de São Paio de Oleiros (Santa Maria da Feira), a maior despesa (80.000 réis) foi a “compra «dum manto bordado a ouro de setim [sic] azul para a Nossa Senhora da Saúde»” (Mon-teiro, 2011: 13).

5 Em Portugal, as mulheres predominam nas práticas religiosas, no Norte (Hoogen, 1984; Pina-Cabral, 1989; Cole, 1994; Gemzöe, 2009), no Centro (Riegelhaupt, 1982; Sobral, 1999) e no Sul (Cutileiro, 1977).

6 Referindo-se às relações dos crentes com estátuas sagradas, P. Sanchis salienta que “fala-se-lhes, toca-se-lhes, fixam-se com uma insistência de quem espera resposta, levam-se junto dela objetos familiares ou crianças” (Sanchis, 1992: 42).

7 Note-se que o processo de antropomorfismo apontado pelos cognitivistas (Guthrie, 1980, 1997, 2010; Boyer, 1994, 2001, 2008) como central nas ideias religiosas, já há muito que tinha sido referido por outros autores (Hume, 1998 [1757]; Weber, 1997 [1904-1920]).

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Religiosidade e espacialidade no Sertão da Bahia - Brasil: o exemplo do Santuário da Santa Cruz de Monte Santo

Religiosity and spatiality in the backwoods of Bahia-Brazil: the example of the sanctuary of Santa Cruz de Monte Santo

Raimundo Pinheiro Venancio Filho* & Maria Helena Ochi Flexor**

*brasil, geógrafo, Professor da universidade do estado da bahia, faculdade do sertão baiano, mestrando em Planejamento territorial e desenvolvimento social universidade católica de salvador (ucsaL). e-mail: [email protected]** brasil, Professora, universidade católica de salvador (ucsaL). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 12 de maio e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Este trabalho analisa as romarias ao San-tuário da Santa Cruz, o mais antigo no Brasil que representa a Via Crucis de Jesus, desde o seu surgi-mento em 1775, na Serra do Piquaraçá na cidade de Monte Santo. Estuda a dinâmica local, tomando es-sas romarias como componentes de definição da es-pacialidade religiosa onde os peregrinos ocupam e mudam, temporariamente, o espaço de Monte Santo.Palavras chave: Monte Santo / religiosidade popular /Santuário da Santa Cruz / espacialidade.

Abstract: This paper analyzes the pilgrimages to the sanctuary of the Holy Cross, the oldest in Brazil represent-ing the Via Crucis of Jesus, since its emergence in 1775, in the Serra do Piquaraçá in the city of Monte Santo. Study the local dynamic, taking these pilgrimages as components of the definition of spatiality where religious pilgrims oc-cupy and temporarily change the space of Monte Santo.Keywords: Monte Santo / popular religiosity / Sanctuary of the Holy Cross / spatiality.

IntroduçãoNa obra “Os sertões”, de Euclides da Cunha (1963), encontra-se a descrição da fé do sertanejo, e o surgi-mento do santuário da Santa Cruz em Monte Santo em 1775.

No fim do século passado, porém, descobriu-a um missionário — Apolônio de Todi. Vindo da missão de Maçacará, o maior apóstolo do Norte impressionou-se tanto com o aspecto da montanha, achando-a semelhante ao calvário de Jerusalém, que planeou logo a ereção de uma capela. Ia ser a primeira do mais tosco e do mais imponente templo da fé religiosa.

Que nos dias santos viessem visitar os santos lugares, já que vivia em tão grande desamparo das coisas espirituais.

E aqui, termina, sem pensar e mais nada disse que daí em diante não chamariam mais serra de Piquaraçá, mas sim Monte Santo.

E fez-se o templo prodigioso, monumento erguido pela natureza e pela fé, mais alto que as mais altas catedrais da Terra (Cunha,1963: 63-64).

Monte Santo faz parte do conjunto de cidades, de pequeno porte do Sertão da Bahia, que servem de apoio à vida rural circundante (Figura 1).

Situando a cidade no universo geográfico e social, denominado de território usado - onde estão presentes “as coisas naturais e artificiais, a herança social e a sociedade em seu movimento atual” (Santos,

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Fig. 1. Vista aérea da cidade de Monte Santo. Foto da Prefeitura de Monte Santo (2010).

2003: 26) -, Monte Santo se apresenta como a herança social e a sociedade em seu momento atual, como uma moldura sociocultural diferenciada das outras cidades.

Em Monte Santo, as datas de festejos religiosos atraem milhares de romeiros que se deslocam de diversos lugares da Bahia e do Brasil, atraídos pelo simbolismo do Santuário da Santa Cruz, local que, em Monte Santo, é considerado sagrado em função de todo seu histórico de milagres e graças alcançadas por aqueles que o visitam (Figura 2).

Ao ver de Rosendahl, (1996, p. 43) as romarias feitas às cidades, - que guardam a tradição religiosa -, como Monte Santo, pode-se dizer que

trata-se de uma demonstração de fé que adquire uma nítida espacialidade, pois envolve o deslocamento de um lugar a outro, deslocamento este que em muitos casos é marcado por uma periodicidade regular. Envolve assim, espaço e tempo, fixos (os lugares sagrados) e fluxos (a peregrinação). As peregrinações constituem um fenômeno notável comum à maioria das religiões, inserindo-se assim em diversos contextos culturais.

Monte Santo é considerada uma cidade santuário, que pelo número de peregrinos, tem uma impor-tância cultural significativa no Estado da Bahia no Brasil.

1. Religiosidade e Espacialidade No sertão da Bahia, “são os capuchinhos que, em missões ambulantes vão se aproximando dos seus mo-radores já no século XXVIII. Nessa mesma época são criadas as freguesias” (Silva 1982: 16). O aspecto penitencial foi sempre muito forte no catolicismo do sertão.

Expressando-se de forma muito concreta através dos grupos de penitentes, esse traço foi largamente traba-lhado pelos missionários ambulantes durante as “santas missões” que, enfatizando nas pregações o sacrifício, de certo modo preparam as romarias – marchas marcadas pelo “sacrifício voluntário”, noção chave na eco-nomia da salvação cristã, valor consagrado por todos os santos (Fernandes 1982: 27).

Existem diversas formas de manifestação do sagrado em diversos lugares.

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Fig. 2. Santuário da Santa Cruz na Serra do Piquaraçá em Monte Santo, Bahia, Brasil. Fonte: própria.Fig. 3. Dias comuns na rua de acesso ao Santuário. Fonte: Própria

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Os lugares sagrados são locais de hierofania ou seja onde o sagrado se manifesta. A moita, a fonte, a pedra ou a montanha adquire caráter sagrado onde quer que seja identificado com alguma forma de manifestação divina ou com um acontecimento de significado extraordinário (Tuan 1980: 168).

Monte Santo se enquadra nesse perfil, de acordo com a carta escrita, no século XVII, pelo frei Apo-lônio de Toddi, - que construiu a capela original -, e enviada ao Dr. Baltazar da Silva Lisboa informando que a Serra do Piquaraçá, onde se encontra o Santuário da Santa Cruz, tornou-se o local místico, para os peregrinos e visitantes.

A Via Crucis de Monte Santo foi construída sob a supervisão direta do Frei Apolônio de Todi, substituída, em sua ausência por Jose Antonio e Antonio de Almeida. No lugar das cruzes o frei mandou construir pe-quenas capelas. Outras capelas maiores, foram acrescidas às primeiras e no cume do monte foi construída uma igreja dedicada à Santa Cruz. O espaço entre cada capela é de cerca de 200 metros, e a peregrinação é feita a partir da rua Senhor dos Passos (Amaral, 1937: 235).

O santuário da Santa Cruz do Monte Santo é alcançado por caminho com 1.969 metros de extensão, feito em rocha viva. Nas pequenas capelas encontra-se painéis, pintados na época do Frei Apolônio. No per-curso, além da capela são vistas mais 21 capelas construídas em alvenaria no local das primeiras cruzes. A pri-meira capela é dedicada às almas, e as sete seguintes as 7 Dores de Nossa Senhora. As 14 que se seguem foram colocadas em lembrança dos sofrimentos do Cristo na sua caminhada para o monte Calvário, em Jerusalém

Em Monte Santo as romarias criam e recriam o espaço local através das ações dos romeiros que, nos períodos que frequentam a cidade, transformam o dia-a-dia da população, criando temporariamente novos espaços com usos diversos e, em consequência, promovendo uma nova dinâmica. (Figura 3; Figura 4).

O Santuário da Santa Cruz é o símbolo maior da fé do sertanejo das cidades vizinhas, é o espaço sagrado também para os habitantes locais que se diferencia de outros lugares. O monte, as pedras, a areia, as capelas, os santos e tudo que compôe o Santuário em Monte Santo faz parte do espaço sagrado e trans-forma a vida das pessoas, espiritual e fisicamente.

2. A espacialidade nos dias sagrados na atualidadeO calendário religioso de Monte Santo possue duas datas marcantes. A primeira é a Semana Santa com a participação maior das comunidades rurais e da sede do município. Nessa data a população é acordada pela madrugada ao som das matracas, instrumento que produz um som bastante alto. Cobertos com mantas vermelhas, os componentes da Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santa Cruz encabeçam a procissão empunhando uma cruz. O silêncio do caminho é cortado por rezas e cantos. A lenta caminha-da, de quase uma hora, é penosa para velhos, crianças e turistas, mas facilmente suportada por homens e mulheres, que vararam estradas e caatingas distantes a pé, até chegar a Monte Santo.

Os pagadores de promessas misturam-se aos fiéis, curiosos e população local. Ao fundo da igreja principal são encontrados os ex-votos que representam as graças alcançadas, como chumaços de cabelos, fotografias, representação de pés, braços e cabeças, esculpidos em madeira, muletas e roupas, dentre outros (Figura 5).

A multidão quer ver e tocar as imagens que representam o Senhor Morto, Nossa Senhora da Sole-dade e São João Evangelista, cujas imagens descem a Via Sacra, carregadas pelos componentes da Irman-dade do Santíssimo Sacramento e Santa Cruz e pelo povo até a Igreja Matriz da cidade onde as imagens

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Fig. 4. Movimento durante as romarias. Fonte: PrópriaFig. 5. Ex votos na “sala dos milagres”. Fonte: Própria

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de Nossa Senhora das Dores e do Senhor dos Passos trazidas também do Santuário esperam para a grande procissão da Sexta-feira Santa (Figura 6; Figura 7).

A segunda romaria se dá no dia 31 de outubro, data em que se comemora o dia da criação do San-tuário da Santa Cruz, quando se dá o maior fluxo de romeiros à cidade.

A cidade atrai milhares de visitantes, que buscam socorro espiritual. Esses visitantes sobem o santuá-rio, pagam suas promessas, renovam os votos com os seus santos, se envolvem com os atos da igreja, como as missas. São os protagonistas temporários do espaço local, que trazem a fé como principal característica.

Ônibus fretados, ou oferecidos por políticos, caminhões pau-de-arara, - que apresentam grande perigo e nenhum conforto -, são os meios de transporte, utilizados pelos romeiros para chegar à cidade. As pessoas, de melhores condições financeiras, chegam de carro próprio.

As empresas de transportes intermunicipais oferecem também a alternativa de deslocamento de diversas cidades para Monte Santo. As camisetas dos romeiros mostram que as romarias são organizadas por comunidades, com antecedência, e contanto com programação prévia. Muitos romeiros dizem que ficam contando os dias para a viagem acontecer e para chegar ao Santuário da Santa Cruz, cujo protetor é evocado para protegê-los durante o percurso. Os cantos, que são entoados nos ônibus e caminhões, são em homenagem aos santos e à Divina Santa Cruz como os romeiros a chamam.

Chegando a Monte Santo, os ônibus e caminhões cumprem a tradição de dar três voltas ao redor da Igreja Matriz do Sagrado Coração de Jesus, que é o primeiro local de contato sagrado do romeiro com a cidade. Após esse ritual, o caminho do Santuário da Santa Cruz é o destino dos milhares de peregrinos.

A devoção dos romeiros é expressa desde as suas vestimentas com a parada e concentração em cada capela, nas quais acendem velas e rezam em silêncio (Figura 8).

As missas são celebradas, tanto no Santuário como na Igreja Matriz, sendo que nesta os fiéis se concentram, após a descida do monte, para assistir às celebrações e benzer objetos, trazidos na viagem ou comprados no comércio local.

As romarias a Monte Santo mudam a cidade e transformam o cotidiano local. A fé e devoção, dos milhares de visitantes, promovem uma remodelagem do espaço geográfico. “Os deslocamentos de pes-soas fazem parte das interações espaciais que integram a reprodução e transformação social do espaço” (Corrêa 1997: 280).

“Os peregrinos enquanto agentes modeladores do espaço nas cidades-santuário têm a importante tarefa simbólica de produzir e reproduzir o arranjo espacial urbano” (Rosendahl 1996: 48).

A mobilidade dos romeiros gera uma nova configuração dos serviços oferecidos na cidade, seja direcionado a atender aos desejos dos devotos ou outros fins. O comércio temporário dos bar-raqueiros é o que têm mais destaque (Figura 9). A maioria desses barraqueiros é de outras locali-dades, pois em Monte Santo o comércio é ainda muito precário no que diz respeito às variedades de produtos.

Em Monte Santo as romarias movimentam a cidade e aquece o comércio O espaço urbano é trans-formado através do sagrado que todos os anos atraem milhares de pessoas.

ConclusõesA Igreja Católica desenvolveu exemplos notáveis no uso da territorialidade em diferentes espaços, du-rante o longo tempo de sua história. Monte Santo é um exemplo de predomínio do catolicismo, que de-sempenhou um papel fundamental no aparecimento da cidade e que proporcionou uma ordem espiritual predominante e marcada pela prática religiosa da peregrinação ou romaria ao Santuário da Santa Cruz.

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Fig. 6. Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santa Cruz no Santuário. Fonte: Própria.Fig. 7. Imagens descem a Via Sacra, carregadas por fiéis. Fonte: PrópriaFig. 8. Devota acendendo vela e rezando na capela pequena do Santuário. Foto de Rita Barreto (2005).Fig. 9. Barracas com produtos variados na rua Senhor dos Passos. Fonte: Própria.

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Pelo simbolismo religioso que o local possui e pelo caráter sagrado atribuído ao espaço, pode-se chamar Monte Santo de cidade-santuário periódica.

A prática religiosa secular, existente na cidade, está relacionada à visita de peregrinos duas vezes por ano, coincidindo com os dias das maiores festividades. Buscando a satisfação espiritual e atraída pe-los rituais das grandes comemorações, essa população flutuante, que ultrapassa a população local, trans-forma a cidade, mudando as funções locais que, nessas épocas, se voltam para o sagrado e tudo o que está ligado a ele. Essa dinâmica repercute regionalmente e classifica Monte Santo como um dos principais espaços considerados sagrados do Sertão da Bahia.

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Tradição e cultura na escolha do lugar da cerimônia do casamento

Tradition and culture in choice of place of wedding ceremony

Raquel Lage Tuma*, Maria Elisabeth Alves Mesquita**, Carlos Eduardo Santos Maia***

*brasil, doutoranda em geografia do instituto de estudos socioambientais da universidade federal de goiás (iesa – ufg). e-mail: [email protected]**brasil, doutoranda em geografia do instituto de estudos socioambientais da universidade federal de goiás (iesa – ufg). e-mail: [email protected]***brasil, doutorado em geografia, universidade federal do rio de Janeiro (ufrJ). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 11 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Este estudo trata da análise das  tradições em rituais de casamento da Igreja Sirian Ortodoxa Santa Maria, situada em São Paulo - Brasil, bem como asua atribuição de valor aos lugares onde são realizadas. A experiência vivida deste ritual faz com que se concentrem os valores e atitudes das pesso-as para a realização dos casamentos nestes lugares.Palavras chave: Cultura / Tradição / Ritual de casa-mento / Igreja Ortodoxa Santa Maria.

Abstract: This study deals with the analysis of the tradi-tions in wedding rituals Syrian Orthodox Church of San-ta Maria, located in São Paulo - Brazil and asua value as-signment to the places where they are held. The experience of this ritual makes focus the values and attitudes of peo-ple towards the achievement of weddings in these places.Keywords: Culture / Tradition / Ritual wedding / St. Mary Orthodox Church.

Introdução Estuda-se a atribuição de valor das tradições que existem nos espaços específicos para a celebração do ri-tual religioso das cerimônias de casamento no catolicismo ortodoxo, espaços estes que serão denomina-dos de lugar, o lugar onde as tradições das pessoas e das famílias se afirmam no momento em que estes rituais são realizados e que o casal é apresentado para a sociedade.

A Igreja Sirian Ortodoxa Santa Maria está localizada na Rua Padre Musa Tuma, Vila Clemente, em São Paulo, Brasil. Formada pela comunidade Siríaca radicada em São Paulo, oriunda dos países do Oriente Médio, está ligada diretamente à Cátedra Siríaca Ortodoxa de Antioquia, que tem sua sede atualmente em Damasco, na Síria. As missas são realizadas em aramaico, que consideram a língua de Jesus Cristo, portu-guês e árabe, esta última devido à língua de seus fiéis imigrantes (Igreja Sirian Ortodoxa Santa Maria, 2014).

Utilizou-se como metodologia o estudo de caso, da cerimônia de casamento da Igreja Sirian Orto-doxa Santa Maria, a fim de pretender atingir o conhecimento em profundidade dos processos e relações sociais, observando a ocorrência da cerimônia e suas influências e, ainda, a pesquisa qualitativa envol-vendo entrevista estruturada com o pároco da igreja.

Estuda-se a cerimônia do casamento como um ritual vinculado a um espaço, onde a cultura que cada pessoa recebe, interioriza, modifica e elabora; a transformação da geração e da atmosfera social; e as diferenças de tradições e de centros de interesse das famílias acabam por configurar diferentemente os lugares das cerimônias religiosas dos casamentos.

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Os indivíduos seguem uma determinada religião por distintos motivos, como: pela sua herança cultural familiar, pelos valores apresentados pela instituição, pelas experiências vividas e diversas outras causas que podem levar a essa escolha. Para muitas de pessoas, a religião é o fio condutor de suas vidas, sendo extremamente relevante obedecer “a risca” suas normas para que possa ser “aceita” nesta institui-ção. Para outras, a religião é importante, entretanto, ela é uma das bases de sustentação da sua vida, o que muitas vezes faz não seguir todos os preceitos desta religião. Existem diversas religiões no mundo. No Brasil, a religião é diversificada, caracterizando-se pela fusão de diferentes doutrinas. Neste estudo, será dado enfoque ao cristianismo, mais especificamente, ao catolicismo ortodoxo.

Tradição no ritual da cerimônia do casamento ortodoxoO termo ritual é utilizado na perspectiva de Turner (1974), pois são chaves para a melhor compreensão do ser social, sendo que os ritos expressam funções sociológicas e psicológicas latentes, de forma que o ritual se torna um caminho fundamental para entendermos os mecanismos utilizados para controlar e influenciar a escolha das ações na cerimônia.

Além de Turner, busca-se contribuições de autores que enfatizam a importância dos símbolos pre-sentes nos rituais, como Segalen (2002) e Van Gennep (1978). Segalen nos atenta em visualizar a socie-dade contemporânea, a autora acredita no conjunto de atos formalizados, expressivos, portadores de uma dimensão simbólica, caracterizado também por uma configuração espaço-temporal específica, pelo recurso a uma série de objetos, por sistemas de linguagens e comportamentos específicos e por símbolos emblemáticos, cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns do grupo, nesse caso a igreja.

Alguns desses ritos encontrados são tipicamente de passagem, ou seja, como exara Van Gennep, traduzem mudança de status e de hierarquia. Essa é uma idéia proposta pelo autor resgata os ritos de passagem do seu plano de estudo individual e descobre que, dentro de uma multiplicidade de formas conscientemente expressas ou meramente implícitas, há um padrão típico sempre recorrente nos ritos de passagem. Sendo assim, esses Ritos de Passagem podem ainda ser considerados como Ritos de Separa-ção, Ritos de Margem e Ritos de Agregação, e nessa pesquisa o foco é o casamento um rito de agregação.

Analisando os rituais na cerimônia e o rito de passagem, também denominado de Rito de Agre-gação, existem também várias situações, que trazem à tona essa escolha para o espaço do ritual e do rito como a preferência do lugar onde será realizada a cerimônia do casamento se dá pelo fato de ser um lugar tradicional, bonito, glamoroso ou, até mesmo, elitizado. Entretanto, ainda existem pessoas que certamente se preocupam com o significado do ritual e a tradição enraizada em seu interior. Algumas famílias seguem com afinco as tradições de suas religiões, especialmente quando se fala no ritual da ceri-mônia religiosa do casamento, onde às vezes a seleção pela igreja também se deve em virtude das escolhas anteriores de seus familiares e o que aquele lugar representa sobre seus valores culturais.

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através de repetição, o que implica, automaticamente: uma continuidade em relação ao passado [...]O termo ‘tradição inventada’, inclui tanto as tradições realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais fácil de localizar num período limitado e determinado tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez. (Hobsbawm, 2002:09).

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Conforme entrevista concedida em 19 de dezembro de 2013, o padre apresentam-se três atos da celebração algumas tradições, as quais consideram-se, aqui, como inventadas. Uma delas é que no ritual do casamento os padrinhos têm em mãos uma vela e uma cruz. Entre os noivos, o padrinho do noivo se-gura a cruz ao lado esquerdo e a madrinha da noiva fica com a vela na esquerda durante toda a cerimônia, afirma o padre em entrevista. A segunda é o posicionamento da noiva à direita do noivo.

A noiva, na nossa igreja, fica à direita, porque tem uma simbologia, uma interpretação religiosa, típica. [...]a noiva fica a direita do noivo, para combinar com o texto que Cristo diz que depois do casamento os dois transformam em um único corpo. E acreditando, com o primeiro livro da bíblia Gênesis, quando ele fala que tirou uma das costelas, e tirou do lado direito. Então ela fica à direita combinando com o texto, com o versículo de Cristo quando ele fala que os dois transformam-se em um único corpo. Parece que essa costela voltou para Adão, transformando Adão e Eva num corpo só. (Padre, 2014)

Outro momento peculiar que faz parte do ritual do casamento ortodoxo é a coroação. De acordo com o padre, mais uma vez reforça-se a ideia da permanência da noiva do lado direito, pois as rainhas ficavam ao lado direito do rei. Conforme a entrevista, eles acreditam que “o espírito santo manifesta em cima dos noivos, transformando esses dois para esposo e esposa.”

Os ritos de passagem oficializam cada registro, cada momento de suas vidas, entre eles: batismo, comunhão, casamento e enterro. O casamento apresenta a fase biológica do acasalamento. Este momen-to, soleniza a sociedade a iniciação de uma nova família. Sendo assim, o estudo utiliza como categoria essencial o “lugar”, a fim de investigar este conceito aplicado às tradições das cerimônias do casamento.

O lugar do ritual das cerimôniasO conceito de lugar tem sua relevância para a geografia em suas diversas vertentes, em diferentes sen-tidos, seja como localização, conjunto de características naturais e humanas, ou relação subjetiva do homem com o espaço. Ainda, é importante compreender o lugar no qual se vive, a fim de buscar uma identidade com este lugar.

Cabe apontar que os geógrafos fenomenologistas, como Dardel (2011), defendem a ideia das relações subjetivas do espaço e do ambiente com o homem, as quais consideram a vivência do cotidiano, de forma a compreender os valores e as atitudes das pessoas neste ambiente. Na geografia humanista, o conceito de lugar recebeu grande importância e o define como “um ponto do espaço que concentra os valores de ordem cultural e individual que permeiam a vida cotidiana das pessoas” (DINIZ FILHO, 2009: 168). Dessa forma, entende-seque esta vertente apresenta as pessoas em suas atividades de trabalho, estudo, lazer, convívio so-cial e familiar nos diversos espaços vividos. O sujeito e o lugar são inextricavelmente ligados, fazendo com o que o conceito de lugar inclua o sujeito no ambiente. Berdoulay e Entrikin (1998: 116) concluem que “Il faut done remettre le sujet dans la perspective des rapports que la conscience de soi entretient avec le lieu”.

Tuan (1980: 130) afirma que “As pessoas sonham com lugares ideais”. E Bachelard (2008: 26) em sua visão poética do espaço mostra seu ponto de vista fenomenológico ao descrever: “Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. [...]. Ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio.”

Na visão de Rodrigues (1996: 76) “o lugar é o referencial da experiência vivida, pleno de significa-do” e a autora descreve que o lugar

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[...] não trata de uma construção objetiva, mas de algo que só existe do ponto de vista do sujeito que o ex-periência. É dotado de concretude porque é particular, único, opondo-se ao universal, de conteúdo abstrato, porque desprovido de essência. (Rodrigues, 1996: 76).

Para Carlos (1996: 20) o “lugar é a base da reprodução da vida e pode ser analisado pela tríade habitante-identidade-lugar”. Sobre este aspecto, a autora ainda ressalta que “as relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos do uso, nas condições mais banais, no secundário, no acidental”. E aponta a ideia de que este lugar “é o espaço passível de ser sentido, pensado, apropriado e vivido através do corpo”.

Na mesma linha, Rodrigues (1996: 76) reforça este pensamento e aponta que o espaço “pode trans-formar-se em lugar, na medida em que adquire personalidade, torna-se vivido. A percepção e o intelecto através da experiência vivida e compartilhada e constroem o lugar na subjetividade e na intersubjetividade”.

Todos nós procuramos por um lugar que seja ideal em cada momento diferente de nossas vidas, seja um lugar para viver, trabalhar, estudar, namorar, criar os filhos, viajar, casar, festejar, divertir, esconder ou relaxar, seja um lugar como espaço vivido ou como espaço social. Enfim, essa lista de verbos é extremamen-te longa e vai se modificando cotidianamente. Neste sentido, considera-se que a igreja, o salão de festas ou a fazenda, onde está sendo realizada a cerimônia do casamento, pode ser um lugar geográfico.

O ‘lugar do casamento’ traz significados e motivações diferentes em cada pessoa. E engloba diversas instâncias, conforme o momento e a condição em que é analisado: no ritual religioso, na festa, na igreja, na fazenda, no salão de festas, nas lembranças dos contos de fadas e até na exposição por meio do ciberespaço.

Apresenta-se o ciberespaço onde todo e qualquer tipo de interação humana tem algum potencial para ser representado nele. Ele também é um lugar de difusão e traz diversas formas de apresentação deste casal de noivos para a sociedade, tanto pelos sites de relacionamentos e sites pessoais, como são os casos dos blogs, por sites especializados em oferecer este tipo de serviço, que pode ocorrer desde o momento em que iniciam os preparativos do casamento, em seguida postando informações e fotos da cerimônia religiosa até o retorno da lua-de-mel.

Na maioria das vezes, um casal de noivos faz um ritual religioso para dizer para a sociedade “Esta-mos iniciando uma nova família!”. Para isso, é preciso seguir todo um ritual “imposto” pela família, ami-gos, sociedade e, ainda, pelas regras de sua religião. Este ritual, em alguns momentos, e para algumas pes-soas, é realizado somente para “cumprir” os deveres de um bom devoto ou para não deixarem impressões de que “juntaram os trapos” e não tinham recursos para se casarem, seja qual for a religião seguida pelo casal. Entretanto, para muitos casais, a realização deste ritual traz um significado muito relevante, tanto pelas tradições quanto pela simbologia, trazendo valores pessoais, culturais e religiosos para sua vida.

Considerações FinaisSendo o casamento um rito, a cerimônia um ritual e a existência dos dois precisam de um espaço espe-cífico, pré-determinado e escolhido pelos noivos, com base em suas formações no decorrer da vida, esse espaço, o lugar do casamento, traz consigo uma séria de tradições, “antigas ou novas”, mas são tradições, carregadas de simbolismo, de história e de imaginários que a fazem se repetir.

Todos estes lugares que envolvem o ritual do casamento são lugares que exprimem sentimentos, que demonstram as emoções dos sujeitos, subjetividades intrínsecas em todo o momento da cerimônia. De alguma forma, este ritual do casamento atribui valor aos lugares, pois foram momentos especiais vivi-dos, que não se repetem da mesma forma, sendo únicos e marcantes na vida de cada pessoa.

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ReferênciasBachelard, Gaston. (2008). A poética do espaço. São

Paulo: Martins Fontes.Berdoulay, Vincent; Entrikin, J. Nicholas. (2012). Lugar

e sujeito: perspectivas teóricas. In: Marandola Junior, Eduardo; Holzer, Werther. Qual é o espaço do lugar?:geografia, epistemologia, fenomenologia. São Paulo: Perspectiva.

Carlos, Ana Fani Alessandri. (1996). O lugar no/ do mundo. São Paulo: Editora Hucitec.

Dardel, Eric. (2001). O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva.

Diniz Filho, Luis Lopes. (2009). Fundamentos Epistemológicos da Geografia. Curitiba: Editora Ibpex.

Hobsbawm, Eric; Ranger, Terence (Orgs.). (2002). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Ed. Paz e

Terra S/A.Igreja Sirian Ortodoxa Santa Maria. Igreja Santa Maria.

[Consult. 2014-04-20]. Disponível em <http://www.igrejasiriansantamaria.org.br>.

Rodrigues, Adyr A. Balastreri. (1996). Lugar, não lugar e realidade virtual no turismo globalizado. Revista do Departamento de Geografia. São Paulo: Departamento de Geografia da FFLCH/USP. v. 10. p. 73-78.

Segalen, M. (2002). Ritos e Rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: FGV.

Tuan, Yi-fu. (1980). Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente, São Paulo: Difel, 1980.

Van Gennep, A. (1997). Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes.

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Sagres – o Promontorium Sacrum: uma petrificada paisagem sagrada

Sagres – the Promontorium Sacrum: a petrified sacred landscape

Ricardo Soares*

*Portugal, arqueólogo, câmara municipal de vila do bispo. e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 3 de junho e aceite a 14 de junho de 2014

Resumo: O território do Promontório de Sagres (Sa-gres, Vila do Bispo) manifesta uma remota, intensa e contínua vocação e exploração mágico-religiosa, des-de os primórdios da sua ocupação humana até aos nossos dias, realidade que se pretende aqui aflorar, por via de um discurso partilhado e complementar, entre a investigação arqueológica e a leitura históri-ca, entre os nossos menires e o culto de São Vicente...Palavras chave: promontório, sacralização, monu-mentalização, Megalitismo, Sagres.

Abstract: The territory of Promontory Sagres (Sagres, Vila do Bispo, Portugal) expresses a remote, continu-ous and intense magical-religious vocation and explo-ration, operating since the beginning of its human oc-cupation until nowadays, reality we intend to emerge throw a shared and complementary speech, between archaeological research and historical interpretation, among our menhirs and the cult of Saint Vincent...Keywords: promontory / sacralization / monumental-ization / Megalithism / Sagres.

Introdução: a sacralização de distintas paisagens naturaisNa sua maior parte, os estudos dedicados aos antigos cultos focam-se, particularmente, nas divindades e/ou nos templos edificados, subvalorizando, regra geral, as paisagens e outros aspectos ambientais, poten-cialmente determinantes para os fenómenos de sacralização de loci naturais.

Desde sempre, o Homem foi atraído por determinadas paisagens naturais, carregadas de peculiares forças ingénitas. Estes locais, contemplativos, místicos, geralmente ermos, particularmente nascentes, quedas-d’água, pegos, recortes de rio, cumes de montanha, cavernas, afloramentos, rochedos e promon-tórios, foram sacralizados e monumentalizados enquanto suportes de discursos simbólicos e de cons-truções mentais, autênticos recipientes de memórias colectivas de loco-identidades culturais. Sítios que adquirem sentido para além dos sentidos. Arquitecturas espirituais que se edificam sobre pilares naturais e humanos, numa teia de símbolos, mitos e rituais que investem a paisagem de multi-significâncias.

Neste contexto, desde a aurora da Humanidade que as paisagens de Sagres acolheram cultos má-gico-religiosos, que por lá se fixaram pela atracção da finisterra, evoluindo para discursos religiosos, petrificando-se nos menires, vingando nos tempos, cristianizando-se, santificando-se, edificando-se em templos, expandindo-se em procissões, romarias e peregrinações, migrando e globalizando-se...

1. A atracção da finisterra e o culto dos promontórios Os promontórios constituem-se como significativas paisagens especiais. Misteriosos acidentes geográ-ficos que apartam os mares, as terras e o céu. Autênticos monumentos geológicos. Naturais templos numinosos e hierofânicos. Ainda hoje, nos mais proeminentes recortes da crusta terrestre, os cabos atraem numerosos visitantes, numa ‘vertigem’ pela finisterra, num inexplicável apelo pelos extremos do mundo, numa demanda pelo horizonte infinito, onde o sol, a lua e todo o séquito de astros morre e renasce do mar.

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Há muito que assim acontece! Individualmente ou colectivamente, em peregrinações ou romarias, o ser Humano foi marcando, a ‘pé-posto’, a sua espiritualidade nas ‘rotas dos cabos’.

Poderíamos apontar uma série de evidências que atestam, em toda a ‘esfera de Atlas’, uma muito remota preferência pelos promontórios, enquanto privilegiados palcos de cultos mágico-religiosos. Por exemplo, em Portugal, o Cabo da Roca foi descrito por Plínio o Velho como loca sacra, monumentalizado com recintos de culto e altares de pedra (séc. I d.C. – Naturalis Historia, Livro IV). Na Arrábida, o Cabo Espichel foi designado como “Sacrum”, desta feita por Pomponius Mela (séc. I d.C. – De Chorographia, Livro III). E, claro, o extremo sudoeste da Europa – Sagres –, inevitavelmente sacralizado, até toponimi-camente, como um perpétuo altar de pedra, investido de uma omnipotência que se perde nas origens...

Muito para além do tempo histórico, nos confins da Pré-história, a Arqueologia tem vindo a reconhecer e a materializar alguns vibrantes ecos destes fenómenos de sacralização de diferenciadas paisagens naturais, designadamente em ‘grutas-necrópole’ e ‘grutas-santuário’, abertas nos carsos de diversos promontórios.

As grutas, enquanto espaços produzidos por acção da Natureza, foram utilizadas desde o dealbar da humanidade, como abrigos e, sobretudo, enquanto propícias sedes de exéquias e depósitos votivos. Nestes espaços, após a morte, os corpos foram devolvidos ao ‘maternal ventre da terra’, em posição fetal, acompanhados de relíquias votivas.

A procura destes locais, ermos e inóspitos, para práticas de cariz funerário, converte-os em santu-ários subterrâneos, nos quais, presumivelmente, se procurava o contacto com o transcendente, com as forças da fertilidade, e se recriavam metáforas para a origem da vida e para os mistérios da morte. Neste sentido, estes ocos profundos, escuros e geralmente húmidos, poderiam configurar o submundo uterino da terra fértil, um umbilical espaço de eterno retorno, onde as águas subterrâneas poderiam simbolizar um transcendente poder de purificação, infiltração e comunicação com o mundo inferior e com o ‘além’ (Soares 2013: 67-71).

2. O Promontorium Sacrum: referências clássicas e ‘baptismo toponímico’Desde muito cedo, na História da sua Humanidade, a região de Vila do Bispo foi escolhida como base de implantação de remotas comunidades que nestas extremas paisagens decidiram fixar-se, legando-nos, à guarda do tempo, numerosos e diversificados vestígios arqueológicos – verdadeiras provas materiais e definidos rastos culturais da sua longínqua presença.

Não será exagero afirmar que o nosso território se revela como um genuíno ‘Museu vivo de His-tória Natural e Humana’, com uma riqueza de apontamentos, produzidos e perfeitamente organizados numa arquitectura paisagística de referência, numa admirável ‘simbiose’ entre a Natureza e o Homem.

A historiografia permite-nos recuar, até ao séc. IV a.C., para lá resgatar as primeiras referências conhecidas, relativas à região de Sagres. Na sua Historia Universal, o historiador grego Éforo de Cime ‘baptiza’ esta finisterra como Hieron Akroterion, designação grega traduzida para o latim, no séc. I d.C., como Promontorium Sacrum (Plínio o Velho, Naturalis Historia) – o Promontório Sagrado!

Posto isto, podemos desde já estabelecer uma primeira conclusão: há cerca de 2400 anos (pelo menos) a região de Sagres já se encontrava fixada, toponimicamente, como um território de propensão sagrada!

Na última década do séc. II a.C., o geógrafo grego Artemidoro de Éfeso visita a Península Ibérica, afirmando ter estado precisamente no Cabo Sacrum, descrevendo as suas exploratórias viagens numa Geographia tida como perdida. O conhecimento da obra de Artemidoro chegou-nos pela mão de outros autores da Antiguidade, posteriores, que a ela, directa ou indirectamente, aludiram ou dela rebuscaram

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notícias. Muito recentemente, esta clássica visita ganhou mais verosimilhança, pois reconheceu-se um fragmento do supostamente perdido texto, num papiro encontrado no Egipto, em Antaiúpolis (Moret, 2003; Alarcão, 2010).

Estrabão será um dos autores que, no séc. I a.C., fará referência ao texto de Artemidoro. No livro III da sua Geographia, volta a denominar a Ponta de Sagres como Hieron Akroterion, descrevendo-o da seguinte forma e referindo-se aos seus predecessores, Éforo e Artemidoro:

É a elevação mais ocidental, não da Europa mas de toda a terra habitada (…) Artemidoro afirma que esteve neste lugar que o assemelha a um navio (…) Assegura que não se vê lá nenhum santuário nem altar a Héracles (nisto mente Éforo), dele ou de algum outro deus, mas que em muitos sítios há grupos de três e quatro pedras, que são pelos visitantes voltadas, em virtude de um costume ancestral, e deslocadas, depois deles fazerem libações; e que não está permitido fazer sacrifícios nem aceder de noite ao lugar, por dizer-se que nessa altura é ocupado pelos deuses, mas os que chegam para contemplá-la pernoitam numa aldeia próxima e logo pela manhã, seguem até lá, levando consigo água que este lugar carece (Estrabão, Geographia, III, 1, 4-5, apud Loução, 2011).

Estas linhas permitem-nos fixar mais alguns sugestivos considerandos: ainda no séc. II a.C., aquan-do da insigne visita de Artemidoro, algo de muito especial se passava sobre a plataforma deste nosso Cabo... “um costume ancestral”, um ritual antigo que implicava libações a ‘deuses de pedra’.

De destacar que Estrabão desmente Éforo, quando este refere a existência, no Promontório de Sa-gres, de um templo ou altar dedicado a Héracles ou a qualquer outra divindade. Porém, temos de ter em conta que a informação de Éforo terá sido produzida no séc. IV a.C., enquanto Artemidoro terá visitado o local cerca de 300 anos depois, no séc. I a.C. Nesta perspectiva, não será de excluir a hipótese de o refe-rido santuário, mencionado pelo mais antigo dos dois autores, ter sido entretanto destruído ou passado despercebido aquando da visita de Artemidoro.

Relativamente aos relatados “grupos de três e quatro pedras”, e no contexto do presente trabalho, trata-se de um assunto bem mais interessante! Tendo em conta a actual panorâmica dos nossos conhe-cimentos e as evidências materiais ainda disponíveis, a interpretação mais óbvia e coerente, para estas pedras, será a que as remete para os nossos persistentes e ainda copiosos menires!

3. Megalitismo de Vila do Bispo: referências arqueológicasSe entenderemos o megalitismo menírico enquanto manifestação mágico-religiosa, o território de Sagres encontra-se comprovadamente sacralizado pelo menos desde o Neolítico Antigo – inícios do VI milénio a.C. (Gomes 1994: 339; Gomes, 1997: 176).

Justamente, neste canto do mundo, foi erguida uma das maiores concentrações de menires conhecidas em toda a Europa. No Levantamento Arqueológico do Concelho de Vila do Bispo, publicado em 1987 por Má-rio Varela Gomes e Carlos Tavares da Silva (Gomes e Silva 1987), foram inventariados 121 menires na região. Em 2005, João Velhinho publica o levantamento Menires de Vila do Bispo (Velhinho 2005), exaustivo trabalho onde se encontram cartografados, georreferenciados, fotografados e descritos 267 menires.

Considerando a expectável probabilidade de novas descobertas e o facto de a região de Vila do Bispo ter sido explorada, até muito recentemente, como o ‘celeiro do Algarve’, suportando uma extensa e intensiva actividade agrícola, há que admitir que os menires que resistiram até aos nossos dias consti-tuem apenas uma ínfima parte de um todo entretanto perdido, a ponta de um imenso ‘iceberg de pedra’ que poderá ter atingido uma inigualável dimensão.

Além da descontextualização por deslocamento e da destruição por fracturação, causadas pela inten-

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sa lavoura, estes monumentos também foram alvo de reutilização para construção urbana, redução do seu calcário para cal, para não falar da alheia apropriação destinada ao embelezamento de pro-priedades privadas. Ainda assim, muito restou, tratando-se, em diversos aspectos, de um exemplar conjunto menírico.

Não despiciendo o fundamental contributo dos já referidos autores clássicos (entre muitos outros que não importa trazer à colação, no âmbito do presente texto), a investigação arqueológica, no território hoje abrangido pelo Concelho de Vila do Bispo, foi inaugurada, de forma verdadeiramente científica e pioneira, apenas nos finais do século XIX, com Estacio da Veiga.

Porém e estranhamente, nas suas visitas à região, não descuidando a exemplar qualidade da sua metodologia científica, Estacio da Veiga não documenta um único menir em Vila do Bispo. Tal lacuna só poderá ser explicada pelo facto do distinto arqueólogo, face à dimensão hercúlea do seu projecto, ter distribuído tarefas a informadores e colectores locais. Acreditamos que, se Estacio da Veiga tivesse tido a oportunidade de desenvolver prospecções pessoais, dificilmente lhe teriam passado despercebidos alguns dos mais significativos vestígios deste nosso património menírico, evidentemente numeroso e expressivo.

Na verdade, naquela época, os menires ainda eram uns ‘notáveis desconhecidos’. Com base no “Relatorio e mappas ácêrca dos edifícios que devem ser classificados monumentos nacionaes” (Veiga 1886: 87-88), Estacio refere que, em 1880, apenas se encontravam inventariados três menires em todo o território nacional, todos no concelho de Vila Velha do Rodão. Na mesma época e por comparação, em França já se registavam 1638 menires (ob. cit.: 24).

No Algarve, terminados os trabalhos de campo para a Carta Archeologica (1877-1878), publicada nas suas Antiguidades Monumentaes do Algarve - tempos prehistoricos (Veiga, 1886; 1887; 1889; 1891), Estacio adenda somente mais cinco exemplares concretos ao ‘inventário menírico nacional’, todos na zona de Silves, levantando então a seguinte questão:

Serviriam essas pyramides e menhirs de demarcação de um determinado territorio, ou cada um d’esses monumentos ficaria representando um feito memoravel ou uma consagração de piedosa lembran-ça? Não o sei dizer (Veiga 1891: 233-235).

Ainda assim, recuperando os “grupos de três e quatro pedras” de Artemidoro e de Estrabão, o nosso ilustre pioneiro como que ‘pressentiu’ a real existência de uma presença megalítica na área de Sagres, referindo-a, com as devidas reservas, na qualidade de “antas ou dolmens (destruidos), que mui presumptivamente existiram sobre o solo” (Veiga 1886: 99).

Ao contrário das antas, há muito justamente integradas na agenda da investigação arqueológica nacional, será apenas nos anos sessenta, do século XX, que os menires se tornarão alvos efectivos de uma sistemática divulgação no nosso País, resultando num consequente boom de descoberta, notavelmente profícuo no Barlavento Algarvio.

Os menires de Vila do Bispo têm vindo a revelar-se, com base na informação entretanto produzida, como um conjunto claramente individualizado no contexto europeu, designadamente no que respeita ao seu número, ao suporte material em que foram produzidos (calcário e arenito), às decorações neles inscritas, aos povoados associados... à sua ‘personalidade’.

4. Sacralização megalítica: menires, monumentais ‘Homens de Pedra’O universo simbólico, associado aos monumentos meníricos, continua encriptado na pétrea distância dos tempos e dos preconceitos. Locais de descanso para a alma dos mortos, pára-raios, calendários so-lares, ídolos aos quais se prestariam cultos e sacrifícios, memoriais de tratados, de alianças, de feitos de

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guerra (Almeida 1979: 14, apud Calado 2004: 49), toda uma incrível panóplia de interpretações alvitradas sobre o significado destas esculturas.

Sobre os menires de Vila do Bispo, ainda paira uma redutora e excessiva ‘obsessão sexual’, aligeirada por significâncias invocadoras de cultos de fertilidade/fecundidade, integradas no contexto da emergên-cia das primeiras sociedades agro-pastorís: elipses segmentadas interpretadas como grãos de trigo, mas também como vulvas; semi-elipses como púbis e mamilos; linhas ondulantes como nascentes de água, cursos de rio, esperma... enfim!

O carácter fálico dos menires conquistou, nesta região, uma particular proeminência, sobretudo graças aos recorrentes cordões definidos no seu topo, decifrados como ‘glandes fálicas’ (Figura 1). Numa perspectiva mais moderada, porque não admitir simplificadas representações de cabeças humanas? (Go-mes 1997b: 256).

Reflexo do gradual aumento demográfico, propiciado pela sedentarização neolítica e pelos exce-dentes alimentares da produção agro-pecuária, as sociedades, originalmente igualitárias, complexificam--se estruturalmente, exigindo uma nova organização social e emergentes discursos de poder. O fenóme-no megalítico poderá ser precisamente entendido como a materialização de um discurso ideológico que irá agregar as comunidades, tendencialmente neolíticas, em torno de um mega-objectivo comum, de um monumental empreendimento colectivo.

O Homem é um ser gregário, dependente de propósitos colectivos, de linhas de comando grupal, de necessárias estruturas de orientação e contenção de esforços e tenções sociais – a génese de todos os discursos de poder!

Genericamente, o Megalitismo caracteriza-se pela monumentalização da paisagem com o recurso a grandes blocos de pedra, enquanto expressão cultural, mágico-religiosa e territorial. Recorrentes em todo o mundo, em diversas culturas e em todos os tempos, os menires ocorrem isolados, agrupados em alinhamentos ou em recintos.

Os menires podem, justamente, ser interpretados como a primeira manifestação do Homem na paisagem, a sua própria personificação cultural num virgem palco natural (Figura 2): o Homem seden-tário que se apropria de territórios, transformando-os, cultivando-os, marcando-os com marcos iden-titários de propriedade cultural – “o Homem torna-se a medida de todas as coisas” (Calado 1997: 296).

Considerando este esquema interpretativo, os menires, enquanto representações de figuras hu-manas, não figurariam, necessariamente, indivíduos concretos: potenciais esculturas antropomórficas representativas de distintos antepassados, de personagens míticos, de heróis fundadores ou mesmo de divindades, sendo, por extensão, relacionáveis com a emergência de linhagens, numa conjuntura de forte coesão social que monumentos desta ordem de grandeza parecem reflectir (Calado 2004: 241).

Esta tese antropomórfica reforça-se, com cabal substância, na própria evolução destes monumen-tos – as ‘estátuas-menir’ (Bueno-Ramírez 1990; Gomes, 1997b; Caubet 2002; Calado 2004: 47). No caso de Vila do Bispo, a tradição oral ainda hoje produz eco de uma antiga lenda, de pedras envoltas em ‘se-bastiânicos nevoeiros’ (ver texto seguinte!).

O pesado investimento necessário à deslocação, afeiçoamento e erecção de tantos menires poderá ser explicado por uma motivação de ordem simbólica. Ao contrário de uma muralha, em si mesma tam-bém revestida de simbolismo visual, enquanto estrutura de pedra que defende um povoado, as suas gen-tes e os seus bens, a justificação prática para um empreendimento megalítico será menos lógica do ponto de vista funcional. Ou seja, a monumentalização das paisagens, a sua marcação com o recurso a grande pedras, implicaria, necessariamente, um discurso de poder, uma liderança tendencialmente espiritual,

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uma estrutura mental de ordem mágico-religiosa: uma remota e perdida ‘religião megalítica’, com líderes espirituais (anciãos e/ou xamãs) e objectos de culto, materializados na forma de menires.

Tanto no vizinho Alentejo Central, como na nossa região, as escavações dos alvéolos de implan-tação dos menires têm permitido exumar, em diversos casos e entre outros artefactos, recorrentes frag-mentos de mós manuais. Geralmente fragmentárias, ou seja, uma parte de um todo, estas peças remetem para os povoados, para o mundo quotidiano da vida rural, para a importância do cereal e da sua moagem.

Estes indícios artefactuais levam-nos a presumir que os menires foram erguidos por comunidades de pastores-agricultores, dedução reforçada por outra recorrente evidência arqueológica: no Alentejo Central, além dos fragmentos de mó, a mais repetida iconografia gravada nos monumentos representa, justamente, o báculo ou cajado de pastor.

Este distante e subjectivo universo dos significados, o reportório simbólico que as primeiras gentes ne-olíticas atribuíram aos seus inaugurais monumentos e às decorações neles inscritas, constituirá, para sempre, um fértil campo para a imaginação, de impossível descodificação pela científica investigação arqueológica.

5. Resistência material e imaterial: ‘menires-cruzeiro’ na ‘Rota Vicentina’A apropriação, integração, continuidade, renovação e reutilização de antigos cultos e de precedentes san-tuários, encontra-se amiúde documentada, designadamente por distintos fenómenos de herança natural, de complexificação social, de contágio cultural, de conquista territorial e de aculturação. Por exemplo, a Romanização não se traduziu, necessariamente, numa expectável superioridade religiosa – na ‘evangeli-zação’ dos ‘povos bárbaros’. Pelo contrário! A civilização romana acabou por espontaneamente assimilar inúmeras divindades exóticas, indígenas, que depois de ‘maquilhadas’, num processo de interpretatio, acabam por conquistar um digno altar no profuso panteão romano, junto dos seus novos pares e de forma igualitária. Tal já se tinha verificado com os Gregos e voltará a repetir-se, com reverberações bem mais actuais, com a Cristianização.

Precisamente aqui, em terras do Alandroal, sobre as paisagens do Lucefecit, a investigação arque-ológica, conduzida por irremediáveis instintos da natureza humana, revelou um extraordinário acto de fé romana por um deus indígena – o deus Endovélico e o santuário da Rocha da Mina (Calado 1993).

Também na região de Sagres, foram documentados alguns interessantes exemplos de respeitosos reaproveitamentos de monumentos meníricos.

No Padrão (Raposeira), foi registada uma posterior apropriação de um monumento menírico (Fi-gura 2), originalmente pré-histórico, reinvestido na qualidade de ‘guardião’ de duas necrópoles: uma de Época Romana e outra da Alta Idade Média (Gomes 2011). Enquanto, no topo do Cerro do Camacho (Vila do Bispo), encontra-se um menir tombado, mas particularmente interessante. Dominante sobre a paisagem que ‘desagua’ em Sagres, além da decoração pré-histórica, é possível observar um conjunto de inscrições de épocas mais recentes (Figura 3): uma cruz incisa, outra cruz formada por cinco círculos em relevo (as cinco chagas de Cristo!), uma data gravada (1644) e uma inscrição onde se pode ler “Lisboa”. Trata-se, portanto, de um reconduzido monumento pré-histórico que perpassa os tempos, acumulando mensagens num palimpsesto simbólico, sendo hoje, a mais marcante, aquela que nos remete para o culto cristão – um ‘menir-cruzeiro’ na ‘rota do Cabo de São Vicente’.

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Salve Rainha: Maria entre a vida e o dogma através da arte

Hail Queen: Mary between life and dogma through art

Rodrigo Portella*

*brasil, historiador, Professor da universidade federal de Juiz de fora (ufJf), departamento de ciência da religião, Programa de Pós-graduação em ciência da religião. e-mail: [email protected]

artigo submetido a 02 de junhoe aprovado a 14 de junho 2014

Resumo: Este ensaio tem por objetivo refletir, de forma introdutória, sobre a iconografia mariana na história da arte e das devoções cristãs, trazendo à tona a relação entre as expressões iconográficas marianas e as mentalidades, teologias e ambiências das épocas em que, respectiva-mente, surgiram. Palavras chave: Maria / cristianismo / iconografia.

Abstract: This essay aims to reflect, in an introductory way, on the Marian iconography in art history and Chris-tian devotions, revealing the relationship between Mar-ian iconographic expressions and attitudes, theologies and ambiance of times in which, respectively, emerged. Keywords: Mary / Christianity / iconography.

IntroduçãoHá muitos estudos sobre Maria na história do cristianismo, desde diversos ângulos de investigação; mas, se há algo que os une, para além da diversidade de abordagens, talvez seja o fato de destacarem a im-portância de Maria para a história do cristianismo. Não quero e não posso, aqui, reflectir sobre as razões deste lugar ímpar de Maria na história cristã, o que cabe a teólogos e historiadores em estudos específi-cos. Procurarei, neste breve ensaio, esboçar a modesta tarefa de indicar algumas linhas que me parecem sugestivas sobre a questão de oragos, invocações, títulos e iconografias ligados a Maria. Destacarei, claro, apenas uns poucos títulos e iconografias, para exemplificar a tese que, aqui, neste ensaio, apenas balbucio, e que deverá, adiante, ser melhor aprofundada e documentada, ou refutada: a de certa transformação, com o tempo, dos significados de Maria e de sua imagética, num translado da vida (sentidos individuais e societários) para a doutrina e o dogma. Não que haja momentos totalmente estanques nesta “evolução”: há intercorrências e hibridismos, é claro. Mas, também, penso, há divisões de tipos de afetos a Maria que parecem datáveis.

Um bom início, talvez, seja o de elaborar uma classificação básica sobre as tipologias de invocações marianas que, imperfeita como todas as classificações, quer ser, entretanto, uma pequena bússola:

Tipologias de invocações da Virgem Maria (títulos marianos):

1) Ligadas a aspectos da vida de Maria na Palestina, em sua correlação com Jesus (a partir do século VI, principalmente). Exemplos de títulos: Nazaré, Soledade, Dores, Natividade, Belém, Desterro, entre outros1.

2 )Ligadas a aspectos da vida cotidiana das pessoas e das sociedades (a partir da Alta Idade Média e até o século XVIII). Exemplos de títulos: Boa Viagem, Boa Morte, Parto, Bom Conselho, Vitória, Livramento, Navegantes, Pena (padroeira das letras), Leite, entre outras.

3) Ligadas aos dogmas marianos e ao reforço de doutrinas católicas, ou com mensagens específicas para a época (séculos XIX e XX, especialmente): Assunção (Glória), Imaculada, Lourdes, Sallete, Fátima, Garabandal, Medjugorje, entre outras.

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Como o leitor atento notará, há intercâmbios entre estes três grupos. Por exemplo: a fé – a partir do sensus fidelium e do consensus fidei– na Assunção de Maria, ou em sua Imaculada Conceição, são anteriores – nas devoções, oragos e iconografias – ao século XIX, remontando mesmo à antiguidade cristã. No entanto, tais títulos marianos só foram reconhecidos (como dogmas) nos séculos XIX (Ima-culada Conceição) e XX (Assunção), reforçando a figura de Maria na economia da salvação e dentro da eclesialidade. Também é de se notar que aparições de Maria2 já eram relatas muito antes do século XIX, mas, talvez, a diferença seja a de que não eram acontecimentos de grande efeito popular ou social, e sem as grandes mensagens colhidas no dezanove e vinte. Aliás, esta questão é problemática quando é preciso classificar a aparição da Guadalupana, no México do século XVI, que tomou força societária ímpar. Tam-bém é preciso verificar que há invocações que pertencem tanto ao âmbito da vida de Maria na Palestina (perspectiva bíblica) quanto aos tempos posteriores, casados às vivências de indivíduos e sociedades, tais como Bom conselho, Pena, Dores, Boa Viagem, etc.

Uma vez esclarecidas tais questões, passamos para as duas classificações de títulos sobre Maria que nos interessarão aqui, ou seja, as dos exemplos dos grupos 1 e 2 de nossa classificação.

1. “Salve Rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve”Sem dúvida a oração medieval da Salve Rainha, atribuída a São Bernardo de Claraval, é um bom guia para ilustrar a piedade e devoção a Maria ancoradas na vida concreta, individual e social, em toda a sua drama-ticidade, durante o medievo (e não só durante tal época). Aqui o grande tema é o da mãe de misericórdia, que com seu manto cobre a multidão de pecadores, prestando-lhes o necessário auxílio. A figura da mãe de misericórdia foi, em iconografias, abundantíssima no medievo, retratando a Senhora estendendo seu manto sobre seus vassalos e servos que, sob ele, abrigam-se do “vale de lágrimas” das vicissitudes da vida, sob a encomenda de uma advogada toda especial, ou seja, da própria mãe do juiz último e universal.

Nesta Igreja medieval de São Goar, às margens do Reno, na Alemanha, a mãe de misericórdia, além de proteger o povo sob seu manto, também segura as flechas que os inimigos lançam sobre ele (“Pois os inimigos retesam o arco, já põem sua flecha na corda, para ferir às ocultas os que têm bom coração” Sl 11, 2). O inimigo, no ambiente do medievo, é identificado, de forma especial, com o Demônio. Mas, no caso, o “Demônio” também poderia ser o arqueiro de algum senhor feudal mais áspero com seus servos, que, por sua vez, recorreriam à mãe advogada. No degredo dos filhos de Eva, não há advogado que, a um tempo, quebre as flechas e dê abrigo compassivo. Particularmente os pobres estão abandonados da proteção da lei, tendo que recorrer à lei dos céus, cujo nome é misericórdia com rosto de mãe. Mas, na referida imagem, também nota-se um bispo (mitra), um nobre (chapéu\gorro) e mesmo possivelmente um papa (tiara?) sob a proteção da mãe de Deus. Todos, ao fim e ao cabo, estão fora do paraíso, no de-gredo, e, mesmo poderosos “gemem e choram” em meio aos dramas desta terra estranha, após a expulsão do paraíso, e entranhada no pecado.

É o que também vislumbramos nesta peça de retábulo, de uma igreja de Redondo (Alentejo). A figura de Maria como mãe de misericórdia (notem o manto bastante aberto) que, no céu, olha, intercede e faz a ligação da Igreja padecente (purgatório) com seu Filho (“depois deste desterro, mostrai-nos Jesus”). Notem que há uma figura, aparentemente de criança, dando a mão a Maria (e ligando a ela as almas do purgatório). Tal figura poderia ser interpretada como sendo a do menino Jesus, a fazer a ligação, através da intercessão de sua mãe, entre aos padecentes no purgatório e o céu. Entrementes, é mais provável que seja justamente a figura de um resgatado do purgatório por intermédio de Maria (sendo sua vestimenta um símbolo desta passagem, ao contrário dos demais, que estão nus). O purgatório,

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neste tema, comporta reis, clero e bispos, conforme as imagens. A morte iguala a todos e todos passam a ter uma mesma advogada. Maria torna-se a mãe misericordiosa da Igreja, também no Purgatório.

Nesta azulejaria, de uma rua em Viseu, mais uma vez percebe-se a mãe de misericórdia oferecendo auxílio a nobres e ao clero, em primeiro plano. Embora os estamentos sociais fossem bastantes definidos nas sociedades de antanho, todos, sem excessões, consideravam-se dependentes e tributários da mãe de Deus, isto é, a partir de Maria (da dependência dela) todos eram iguais em dignidade, ou, dito de outra forma, em indignidade diante de Deus, necessitados da mãe de Jesus para terem meio eficaz de miseri-córdia diante de Deus (“rogai por nós, Santa Mãe de Deus, para que sejamos dignos das promessas de Cristo”). Em um apócrifo medieval (Descida de Maria aos infernos), os condenados bradam à Virgem: “se teu Filho não te ouvir, mostra-lhe os seios que o aleitaram e os braços que o carregaram” (Apud Leclercq 1994: 71-87).

Na Idade Média a compreensão de Maria como advogada misericordiosa dos pobres era de tal monta, que muitas obras de caridade (Hospícios, casas de acolhida, dispensários) eram colocados sob seu patronato (De Fiores 2001: 11-20).

2. Do lar à guerra, do nascimento à morte: Maria e o cotidianoMaria é identificada, na piedade popular, como adjutora das necessidades simples, do dia-a-dia das pes-soas, particularmente das mulheres, e daí as imagens e títulos do Parto, do Leite, do Livramento (de pestes, guerras, doenças). Embora também alguns destes títulos tenham clara relação com as realidades vividas por Maria (relatas na Bíblia), tais realidades são colocadas como algo comum nas relações entre Maria e seus devotos em todo o sempre.

No urbi et orbe medieval, a mulher é valorizada e dignificada através da figura de Maria em seus vários títulos ou funções. Características como a de Mediadora ou Intercessora, Mãe e Advogada (miseri-córdia), Pena (educadora), Rainha (dignificadora), Parto e Leite (família, sustento) atenuam a figura das mulheres associada à Eva pecadora (Alves 2011).

Maria, portanto, passa a ser figura exemplar para a reversão da imagem feminina, operando a transformação dos paradigmas femininos, de porta do pecado à porta da salvação, e é, ou passa a ser, para as mulheres, o exemplo e a companheira para os momentos cruciais da vida ligados às realidades femininas (parto, amamentação e educação, particularmente).

Na antiguidade cristã e no início da Idade Média – particularmente na reforma carolíngia - a nobreza bárbara necessitou de Maria para legitimar a sua nobilitas. Assim, Maria passa de serva do Senhor à Rainha, à nobreza (Schreiner 1996: 305-432). Ora, como Constantino viu em Cristo o seu general, a nobreza franco--germânica que ascendia ao cristianismo viu em Maria sua representante, em uma cultura onde os títulos de nobreza eram conquistados pelos guerreiros como honra devida ao heroísmo, lealdade e feitos militares3. Maria, portanto, feito Rainha, é posta como que comandante-em-chefe nas batalhas cristãs, como bem figurava à nobreza. Assim, a imagem da Santa Maria da Vitória, título dado a Maria após as vitórias em batalhas, faz jus a esta lógica. Maria aparece no trono, com o cetro, como mãe coroada do coroado rei do universo, ou sendo coroada no céu. Em Portugal, por exemplo, Dom João I manda construir um mosteiro (Nossa Senhora da Vitória, ou da Batalha), no local que adquiriu o mesmo nome (Batalha) por considerar que a vitória portuguesa na batalha de Aljubarrota devia-se à invocação de Maria (século XIV). Mas talvez a história mais importante para a cristandade, a mostrar Maria como a vitoriosa nas batalhas, seja a da batalha de Lepanto, em 1571. A vitória das tropas leais ao Papa, ao defender a cristandade da ameaça moura, foi atribuída diretamente à Virgem, que teria conduzido as tropas, conforme a imagem abaixo.

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Fig. 1. Pintura na Evangelische Kirchengemeinde St. Goar, Alemanha. Anônimo. Foto e arquivo do autor. Esta Igreja medieval, antes de passar à Reforma Luterana, era Católica.Fig. 2. Retábulo junto a altar lateral na Igreja da Anunciação (século XVI), Redondo, Alentejo. Anônimo. Foto e arquivo do autor.Fig. 3. Azulejaria em rua de Viseu, Portugal. Foto e arquivo do autor.Fig. 4. Imagem de Nossa Senhora do Leite. Igreja do Mosteiro de São Martinho de Tibães, Braga. Foto e arquivo do autor.

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A imagem de Maria ia à frente do principal navio de guerra, mostrando em nome de quem se lutava e quem era a força das tropas.

No século XVII, Hipólito Marracci elenca alguns títulos eclesiásticos de Maria, dentre os quais: Castrum (praça forte), Interemptrix (matadora), Pugnatrix (combatente), Vindex innocentium (vin-gadora dos inocentes), Vulneratrix (golpeadora), Ereptrix (espoliadora), Gladius (espada) (Apud Boff, 2006: 275). Estes exemplos mostram que, se por um lado Maria é identificada, no medievo, como a mise-ricordiosa advogada e mãe compassiva, protetora de nobres e plebeus; seguro firme para as parturientes e para os que morrem; invocada para o leite da amamentação e para o bom termo das viagens, bem como para a boa educação ou conselho; também é ela não só doce para os seus, mas terrível para os descrentes, hereges, pagãos, mouros. Em uma mão, misericórdia para os cristãos; em outra, flagelo para os infiéis.

Maria faz, de tal forma, parte da vida dos povos – e de suas preocupações e lutas – que, inclusive, em uma mesma guerra, pode ser invocada dos dois lados beligerantes. “Maria luta contra Maria”, por assim dizer. O Fado coimbrão de Zeca Afonso, Senhora do Almortão, canta\reza: “Senhora do Almor-tão | ó minha linda raiana | virai costas a Castela | não queiras ser castelhana”. O Fado cita a Senhora que defende as raias\fronteiras contra o inimigo espanhol, e que deve escolher entre ser lusa ou ser castelhana nas cizânias fronteiriças; afinal, Maria é venerada – e invocada nas batalhas - em ambos os lados da fronteira.

Durante muitos séculos cidades emitiam decretos em nome de Deus e de Maria, que era conside-rada – após Deus, é claro – a principal protetora das cidades (Schreiner, 1996: 364). Vários reinos eram consagrados a Maria, isto é, tornavam-se Regio Mariae (como a Bavária, por exemplo), e ostentavam em suas armas e bandeiras a figura da Virgem.

Maria mensageira da Igreja: aparições como convites à fé e à doutrinaA partir do século XIX as aparições marianas iniciariam, conforme nossa hipótese, novos rumos na

iconografia e nas concepções a respeito das relações de Maria com os humanos. Não que as antigas rela-ções, já relatas, desaparecessem. Mas, agora, a tônica seria outra: reforço da fé e mensagens doutrinárias (ou seja, que enfatizam asserções da fé católica).

Contudo, é preciso iniciar por Guadalupe, que embora mais distante historicamente, como que inaugura esta nova fase mariana. A Virgem aparece, no início do século XVI, a um pobre índio mexicano, Juan Diego. O contexto é o da dominação espanhola, acompanhada de um verdadeiro genocídio popu-lacional e cultural quanto aos indígenas. À época, a religião asteca e mexicana tinha sua centralidade na adoração ao sol – com sacrifícios humanos – e, em degrau menor, à lua. A substituição desta religião pela cristã foi feita, em muito, através da força. Mas Maria teria tido outra sensibilidade e pedagogia para revelar o cristianismo aos indígenas. Sua aparição a Juan Diego traz, na sua imagem estampada na tilma, a boa nova cristã de uma forma compreensível aos indígenas.

Posicionada em frente ao sol (deus maior mexicana\asteca), Maria indica ser maior que ele, ocul-tando-o atrás de si; seus pés estão sobre a deusa lua (domina sobre ela); seu manto é adornado de estrelas, as quais também eram adoradas pelos astecas (portanto se mostra senhora sobre os astros, ou mensageira deles); a cor do manto é azul-esverdeado (turquesa), significando ser rainha, já que só quem poderia usar tal cor era o imperador asteca; seu cinto preto com laço pendente era usado pelas índias grávidas (mostra, assim, estar grávida de Deus); suas mãos estão postas em oração (indicando não ser ela deusa, mas se dirigindo a Deus) (Pasquoto 2013: 103-114).

O orago de Guadalupe era, originalmente, parte da devoção dos espanhóis à Maria (na região de

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Fig. 7. Imagem de Nossa Senhora do Rosário, levada na nau capitânia, e queimada por fogo mouro. Disponível em: http://ascruzadas.blogspot.com.br/2012/03/restauracao-de-nossa-senhora-da-vitoria.htmlFig. 8. Imagem de Nossa Senhora do Almortão. Disponível em: http://www.fotolog.com/poemencena/60288282/

Fig. 5. Santa Maria da Vitória. Anônimo do século XV. Santuario de Nuestra Señora de la Victoria, Málaga. Disponível em: http://cofrades.pasionensevilla.tv/m/blogpost?id=2420933%3ABlogPost%3A5902331Fig. 6. Maria conduz as frotas papais. Autor não informado. Disponível em: http://ascruzadas.blogspot.com.br/2012/03/restauracao-de-nossa-senhora-da-vitoria.html

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Cáceres, Extramadura). Portanto, é uma invocação mariana espanhola aliada, na imagem mexicana, a traços físicos e símbolos indígenas, fazendo ponte entre as culturas. “Assim, com a senhora de Guadalupe os índios se identificam, e os espanhóis, por sua parte, não se chocaram (...) não através do doutrinamen-to abstrato, mas de uma imagem concreta, a do avental de Juan Diego” (Boff 2006: 241).

A imagem da Guadalupana, assim como sua invocação, não só representou uma catequese cristã simbólica e inculturada para os indígenas, como também foi usada em insurreições indígenas no México e nas lutas pela independência, destacando uma simbiose entre a nacionalidade mexicana e a imagem (e mensagem) de Guadalupe (Lafaye, 1977). Assim, na figura 10 podemos contemplar uma estampa da Guadalupana com a bandeira do México, além de coroada, ou seja, sugerindo ser ela a senhora que governa a nação mexicana.

A aparição de Maria em Fátima, por sua vez, seria um importante evento a sinalizar o aspecto mais doutrinário da figura de Maria na atualidade. Suas mensagens tem relação com admoestações sobre o inferno, eucaristia, penitência e sobre formas de reforçar a santidade entre os humanos.

Direcionando nosso olhar às gravuras acima, podemos ver o seu Coração Imaculado (uma das revelações) envolto em espinhos (como que a simbolizar as dores de Cristo e de Maria em relação aos pecados e ao mundo); o Rosário que pende de seus braços é seu distintivo, aconselhado aos cristãos e que, quando rezado, pode trazer benefícios à Igreja, aos povos, aos pecadores; a brancura das roupas sugere a paz em plena I Guerra Mundial. A coroa, colocada pela piedade popular, está como símbolo de seu governo sobre o mundo.

O Rosário, que desde Lepanto, principalmente, foi compreendido como arma do cristão contra mouros, protestantes e hereges, tem sua importância enfatizada pelos Papas dos século XIX e XX, como sendo meio eficaz no combate ao modernismo e, em Fátima, é enfatizado como meio para a salvação. Sua mensagem a respeito da Rússia e de seus “erros” que iriam se espalhar pelo mundo antecipando o acontecimento histórico da revolução russa e coloca um prévio juízo de valor sobre a mesma: o cristão não poderia comungar com o comunismo. Assim, em contraponto, se prevê a “conversão da Rússia”, desde que ela seja consagrada a seu Imaculado Coração, ou seja, posta sob seu domínio maternal. Assim que vários grupos eclesiais viram na imagem e mensagem de Fátima um modelo para combater o comu-nismo. Fátima pedia conversão para a perpetuação da paz, para estancar os erros difundidos pela Rússia, e ainda sinalizava a existência do inferno.

Maria fala a crianças humildes de uma pequena aldeia portuguesa no contexto da república anticle-rical de 1910. O reforço da fé e mensagem católicas, portanto, é também uma mensagem a um meio cada vez mais laicista e hostil à religião, e não só em Portugal. Conforme Allegri (2013: 172-173):

Tratava-se de verdades já conhecidas, contidas na doutrina tradicional da Igreja, mas que, descuradas na formação normal das pessoas, esquecidas por quase todas, corriam o risco, em certo sentido, de perder toda a sua eficácia (...) sobretudo nas décadas futuras, em que tais verdades viriam ainda a ser mais negligenciadas e postas em dúvida.

Na imagem acima pode-se ver a coroação solene de Nossa Senhora de Fátima, simbolizando seu reinado sobre o mundo, ou sobre as pessoas qua a ela se consagram. Como se percebe pela foto, são os grupos mais afeitos à determinada concepção de ortodoxia doutrinária e a usos e costumes tradicionais que, principalmente, promovem a devoção à Fátima e a todas as suas mensagem relativas à doutrina, con-sagrações, etc., posto que a mensagem de Fátima sobre os erros do comunismo, a consagração da Rússia

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Fig. 9 e 10. Imagem original de Nossa Senora de Gua-dalupe e imagem em estamba popular. Disponíveis em: http://virgemimaculada.wordpress.com/2011/05/28/significados-do-manto-nossa-senhora-de-guadalupe/Fig. 11 e 12. Estampas de Nossa Senhora de Fátima. Disponíveis em: http://wwwparoquiasjalegre.blogspot.com.br/

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devida ao seu coração e a necessidade de conversão e penitência costumam mobilizar, particularmente, tais grupos, como o dos Arautos do Evangelho, retratado acima.

Anteriormente à Fátima, entretanto, outra aparição de Maria deu o tom penitencial e doutrinário para a nova piedade mariana. Foi a da pequena vila de La Salette, na França.

Em setembro de 1846 há a aparição de Maria, em La Sallete, para duas crianças pobres, pastores da aldeia. O contexto é o da pós-revolução francesa, da perseguição à Igreja, anticlericalismo e laicização do Estado e da vida das pessoas. Neste sentido a aparição, e sua mensagem, é interpretada como a desforra dos humilhados diante da república laicista e burguesa, e diante do iluminismo (Bouflet, Boutry 1999: 109-144). Por sua vez, em Lourdes, por volta da mesma época, a aparição de Maria a uma menina ex-tremamente pobre (analfabeta e que vivia nas dependências da antiga prisão, abandonada por causa da insalubridade) revelaria o poder de Deus e de sua glória – através da fonte santa e dos milagres - contra o racionalismo moderno (Boff 2006: 598).

A mensagem de Salette é clara: Maria, segundo ela própria, está a segurar o braço de seu Filho que, a qualquer momento, poderá cair inclemente sobre este mundo, por conta do pecado a nele gras-sar. Mais uma vez o tema da misericórdia de Maria aparece, naquela que tarda o castigo e que chora pelos pecadores (em Salette Maria aparece chorando). Mas doravante não é mais a misericórdia pela misericórdia. É a misericórdia vinculada a uma mensagem específica: os males do mundo moderno vão contra a fé sã em Deus. Daí o sofrimento da Virgem e sua manifestação de misericórdia em deter o braço de Jesus.

A Senhora da Salette surge chorando pelos pecadores, pela época. O motivo da tristeza, entre ou-tros, é que muitas pessoas desprezam o preceito dominical de ir à missa, e zombam das coisas de Deus, e já não rezam. Ou seja, uma mensagem para os tempos iluministas e laicistas, pós-revolução francesa. A misericórdia de Maria, portanto, se dá também de uma outra forma, isto é, através da manifestação de tristeza justamente porque as pessoas já não buscam abrigar-se sob seu manto de misericórdia ou, em uma palavra, já não buscam a Deus (e muito menos a ela). Pictoricamente é também necessário mencio-nar o grande crucifixo que pende do busto de Maria. Um enorme crucifixo ladeado de um martelo e de um alicate, evidenciando o sacrifício de seu Filho pelos pecadores.

ConclusãoRefletimos um pouco sobre a iconografia mariana na história da arte e das devoções cristãs, trazendo à tona a relação entre as expressões iconográficas marianas e as mentalidades, teologias e ambiências das épocas em que, respectivamente, surgiram.

Passa-se, com o processo histórico de institucionalização da Igreja - e consolidação de suas doutrinas - de uma piedade mariana ligada, remotamente, às questões da vida diária das pessoas, particularmente das mulheres (parto, leite, livramento, dores), e das sociedades (guerras, nacionalidades, negócios) a um veio devocional cada vez mais portador de símbolos e mensagens doutrinárias (Rosário de Fátima, Salette chorando pelos pecadores, etc). As expressões iconográficas também apresentam – ao longo da história – certa padronização, ou seja, no caso da imaginária iconográfica ligada às representações ou oragos antigos de Maria – ligados mais à vida cotidiana das pessoas e a seus problemas e anseios - não existem modelos iconográficos uniformizantes, ficando a confecção artística a critério mais livre e ligado aos ambientes de seus autores. No caso, porém, das representações mais recentes sobre Maria (a partir, principalmente, do século XIX), as imagens obedecem a modelos mais fixos, uniformizando não só a mensagem doutrinária da Igreja – que tais devoções veiculariam – mas também a própria percepção da figura de Maria.

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Fig. 13. Coroação da Senhora de Fátima, Paraná, Brasil. Disponível em: http://maringa.arautos.org/2013/05/procissao-e-santa-missa-em-arapongas/Fig. 14. Estátua de Nossa Senhora da Salette, município de Manoel Ribas, Brasil. Disponível em: http://www.diopuava.org.br/santuario-nossa-senhora-da-salette

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ReferênciasAllegri, Renzo, Allegri, Roberto (2013). Os milagres de

Fátima: a história narrada pelo sobrinho de Irmã Lúcia. São Paulo: Paulinas.

Bíblia Sagrada: Tradução da CNBB (2012). Brasília, São Paulo, Edições CNBB, Editora Canção Nova.

Alves, Kathia (2011). Virgo Maria, Domina Nostra, Mediatrix Nostra, Advocata Nostra. In: Coletânea. Revista de Filosofia e Teologia da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro, Ano X, Fascículo 20, julho\dezembro.

Boff, Clodovis (2006). Mariologia social. O significado da Virgem para a sociedade. São Paulo: Paulus.

Bouflet, Joachim, Boutry, Philippe (1999). Um segno nel

cielo. Le apparizioni della Vergine. Gênova, Marietti. De Fiores, Stefano (2001). Maria: un pórtico

sull’avvenire del mondo. In: Pedico, Maria Marcellina, Carbonaro, Davide (dir.). La madre de Dio: un pórtico sull’avvenire del mondo. Roma: Monfortane.

Lafaye, Jacques (1977). Quetzalcóatl y Guadalupe. La formación de La conciencia nacional en México. México, Madrid, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica.

Leclercq, Jean (1994). La figura della Donna nel Medioevo. Milão, Jaca Book.

Schreiner, Klaus (1996). Maria, virgen, madre, reina. Barcelona, Herder.

1 Alguns destes títulos – como “Dores” – são mais tardios na história do cristianismo, mas remetem a aspectos de Maria em seu curso histórico de vida. Por exemplo, o título “Dores” refere-se às dores de Maria ao testemunhar o destino de Jesus (flagelação, crucifixão, sepultamento, etc).

2 Opto por, a partir de uma concepção antropológica e fenomenológica compreensiva da religião, nomear “aparição”, e não “suposta aparição”. Assim como não se pode, empiricamente a partir dos atuais paradigmas científicos, “provar” as “aparições”, igualmente, também, não se pode “provar” que as “aparições” não ocorreram. Repito: do ponto de vista acadêmico, opto – sem, necessariamente, fazer juízo pessoal de valor – pelo próprio testemunho e linguagem dos nativos estudados (Igreja e videntes), em viés compreensivo.

3 Boff (2006: 164) indica que mesmo os clérigos apelavam à nobreza da Virgem a fim de conseguirem títulos e honrarias na Igreja.

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A lenda do Senhor das Chagas e a “construção” do santuário de Sesimbra

The legend of Senhor das Chagas and the built of Sesimbra’s santuary

Ruy Ventura*

*Portugal, investigador. Par académico da revisão da comissão científica. e-mail: [email protected]

artigo submetido a 02 de junhoe aprovado a 14 de junho 2014

Resumo: Este artigo pretende realizar uma leitura da len-da do Senhor Jesus das Chagas. O autor visa descobrir o quanto ela nos fornece alguns dados históricos sobre o pro-cesso de sacralização da região da Arrábida no século XVI.Palavras chave: lendas / literatura tradicional / religio-sidade popular / Sesimbra / Arrábida.

Abstract: This paper aims to read and discuss the Sen-hor Jesus das Chagas legend. The author wants to discover how it gives us some historical data about the sacraliza-tion process of Arrábida region in 16th century.Keywords: legends / traditional literature / popular reli-giosity / Sesimbra / Arrábida-

IntroduçãoTextos funâmbulos entre a imaginação e a realidade, o tangível e o intangível, o preciso e o impreciso, as lendas religiosas mostram muitos dos traços das sociedades tradicionais, entre eles o empirismo, o conservantismo, o pensamento mítico e a semiotização da realidade. Olham para o mundo, para o seu espaço e para os seus tempos, enquanto instrumentos de manifestação sobrenatural, logo de hierofania. Se as mutações civilizacionais as transformam, manipulam e enriquecem, reescrevendo-as na memória colectiva, pouco se altera na sua matriz cultural, que pode até ficar submersa, mas nunca desaparecerá por completo. Não são reportagens nem testemunhos de um tempo passado, mais ou menos imemorial, mas também não constituem devaneios, fantasias ou anedotas. São complexos simbólicos que recusam a lógica apofântica, ao misturarem num mesmo momento temporal acontecimentos ocorridos em épocas di-ferentes, por vezes muito distantes, e ao aglomerarem num mesmo objecto discursivo – popular ou erudito – factos e interpretações de factos, acontecimentos e opiniões, matéria e memória, visões sociais, psíquicas e espirituais dessa materialidade e dessa lembrança, natureza e preternaturalidade (Ventura 2011).

Podemos ler esses textos, parcelas de mitos ancestrais, de vários pontos de vista. Todos eles trazem, a quem deles se aproxima, conhecimentos que permitem um melhor entendimento tanto da sua impor-tância religiosa, geral e local, quanto das idiossincrasias históricas, económicas e sociais das comunidades que os foram produtransmitindo ao longo do tempo. É, assim, igualmente válida e frutuosa a procura dos seus sentidos literal, alegórico, moral/social e anagógico/místico (Ventura 2011: 6). Como bem sabiam autores tão diferentes quanto Orígenes, Santo Agostinho, Dante ou os cabalistas medievais, são patama-res diferentes da mesma escada que conduz à leitura integral enquanto espelho do Paraíso.

No texto que apresento, dos vários pontos de vista resolvi escolher aqueles que antecedem o cume místico. Seleccionei como objecto de estudo a lenda da invenção da imagem do Senhor Jesus das Chagas, que se conta em Sesimbra para justificar a intensa devoção a um Crucificado, recriando um padrão nar-rativo abundante em toda a costa portuguesa. Noutro trabalho, lerei e analisarei o que há de imemorial e de ancestral nesse texto, bem como a reiteração arquetípica e simbólica que nele se verifica. Neste texto,

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dou relevo a algumas das suas diferenças, que chegaram ao presente por via sobretudo erudita; são elas que permitem avaliar o momento histórico em que o culto ancestral se metamorfoseou e, sobretudo, foi enquadrado institucionalmente, dando origem ao santuário que é, nos nossos dias, um dos centros espirituais do território arrábido.

1. A lenda do Senhor das ChagasO culto do povo de Sesimbra a uma imagem de Cristo intitulada Senhor das Chagas fundamenta-se numa legenda que é, na essência, um texto etiológico, pois visa determinar, explicar e apresentar as causas de um fenómeno religioso. Trata-se de uma lenda de invenção, porque invenção vem do verbo latino inveni-re, que significa “descobrir”, “achar”, “encontrar”, “saber”, “conhecer”, “imaginar” (DLP, 362).

Conta a legenda que no dia 3 de Maio de 1534 os pescadores de Sesimbra encontraram na praia dessa vila uma imagem de Jesus crucificado, à qual faltava um braço. A descoberta deu-se junto de um rochedo denominado Pedra Alta, local onde também se encontrara o caixote onde viera boiando sobre o mar. Numa versão pouco divulgada, diz-se que o marquês de Torres Novas e primeiro duque de Aveiro, D. João de Lencastre (1501 – 1571), filho do grão-mestre da Ordem de Sant’ Iago, D. Jorge de Lencastre (1481 – 1550), acompanharia os homens da pesca nesse dia e terá assistido à descoberta (cf. Loureiro, 1939: 50).

Perante o achado, resolveram levar a escultura para um espaço aberto que até há algumas décadas se denominava Campo da Misericórdia, então ainda dependente da irmandade do Espírito Santo dos Mareantes. Nesse lugar a terão colocado. Na opinião de alguns, guardou-se numa ermida já existente no topo poente do terreiro (Marques 2005); na versão de outros, armaram-lhe uma capela improvisada (Monteiro, 2002: 24) ou até uma tenda; há também quem diga, por vezes os mesmos…, que foi de ime-diato levada para a igreja da Santa Casa da Misericórdia (Monteiro 2002: 66).

Tratava-se, ainda assim, de uma imagem decepada. Mandou-se fazer a um santeiro de Lisboa o membro em falta. Contudo, quando o vieram pôr, não se ajustava. Deu-se então novo prodígio. O relato de Rafael Monteiro, publicado em 1952, é fiel à tradição que ainda hoje corre em Sesimbra:

Fig. 1. A “Pedra Alta”, na praia de Sesimbra, local do achamento da imagem do Senhor Jesus das Chagas (foto de Carminda Proença, 2013).

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“[…] certo dia havendo uma velhinha ido à lenha para a serra, junto ao mar encontrara grosso madeiro. Para casa o trouxera, e ao outro dia o pusera sobre o lume do seu braseiro. Mas com espanto verificara que, enquanto se reduziam a cinzas as outras achas, o madeiro se conservava inteiro, sem que o lume lhe fizesse mal. Então voltara-o, e quisera parecer-lhe que não era ramo velho, como antes julgara, mas parecia ter a forma de um braço. Temerosa e surpreendida, lembrara-se da Imagem que há pouco aparecera, trazida pelo mar. E, agarrando o madeiro, correra com quanta ligeireza lhe permitiam as trôpegas pernas a procurar na Capela a Imagem do Senhor. § Não havia dúvida; aquele madeiro precioso era o braço que faltava, e o seu aparecimento foi, por isso, o segundo milagre do Senhor.” (Monteiro 2002: 77)

O relato do investigador António Reis Marques é distinto, resultando já, quanto a mim, da passa-gem da lenda por um crivo analítico:

“Alguns dias depois, e para exultação de todos, outros pescadores encontraram boiando, junto à mesma pedra, o braço original. § […] Há uma variante, que diz ter sido uma velhinha a encontrar o braço, quando buscava lenha junto à serra. Considera-se, contudo, que se trata duma adaptação da lenda do aparecimento, muitíssimo mais antigo, do Senhor de Matosinhos.” (Marques 2005)

Há entretanto a cronologia. 3 de Maio de 1534 é a data lendária do achamento, pelo menos aquela que os investigadores têm transmitido nos seus textos. 4 de Maio é contudo o dia em que se festeja o Senhor das Chagas com grande luzimento. Quanto a 1534, a explicação é erudita, atribuindo a viagem da escultura sobre as águas às convulsões geradas pela Reforma em terras inglesas:

“[…] Henrique VIII reinava em Inglaterra e fazia-se proclamar chefe da Igreja anglicana, em revolta contra Roma […]. § Para além da separação da Igreja Católica, mandou também encerrar ou reconverter os tem-plos. A fim de evitar a profanação das imagens sagradas, terá sido a própria rainha [Catarina de Aragão] a mandar encaixotá-las e a lançá-las ao mar. § Por isso, desde sempre se admitiu que a imagem […] tenha aquela origem.” (Marques 2005)

Curiosamente, ou não, a maior parte da população de Sesimbra, que presta culto fervoroso ao pro-tector dos seus pescadores, ignora tanto essa data (1534) quanto a sua explicação. Ainda recentemente o pude averiguar: comemorando-se os 480 anos do acontecimento, ninguém o sabia nem se importava muito com isso… Quanto à falta de coincidência entre o dia do achamento (3/5) e o dia da festa, 4 de Maio, de há algumas décadas feriado municipal, a explicação popular (a que mais interessa estudar) é eloquente e enquadra-se no sistema lendário tradicional: “Festejamos o Senhor hoje porque só um dia depois de se ter descoberto a imagem na ‘Pedra Alta’ uma velha encontrou o braço dele” (repetiram vários sesimbrenses à porta da matriz, antes das cerimónias litúrgicas e da procissão).

Temos, pois, uma lenda, uma escultura, uma data e locais de culto. Se desde muito cedo o Senhor das Chagas se cultuou na igreja da Misericórdia, é certo que para os sesimbrenses se reveste de idêntica importância o lugar do achamento. As palavras do padre Carlos Veríssimo, muito arreigadas na tradição da sua terra natal, afirmam inequivocamente que “A ‘Pedra Alta’ foi o Primeiro Altar que Sesimbra lhe preparou”, pois este “Povo de mareantes” tem permanecido “conservador por natureza”, só com dificulda-de alterando “ancestrais hábitos de vida”. Na opinião do sacerdote, que mostra mais do que diz ou pre-tendia dizer, esse rochedo “é testemunha” desse carácter e por isso “Ali se acolheu o Senhor das Chagas” (Veríssimo 2000: 165 e 243). A deslocação da imagem não foi aliás significativa, cerca de cem metros ou

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Fig. 2. A imagem do Senhor das Chagas antes da procissão de 4/5/2014 (foto de Ruy Ventura).

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pouco mais. Se o primeiro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, soube classificar a capela da Santa Casa como “Santuário de Sesimbra” (Veríssimo 2000: 65) – pela presença naquele lugar do “Senhor Iezu das chagas, Imagem milagrozissima, e de grande devoção”, como se escrevia em 1758, na memória paroquial da vila – não me parece ter menos importância simbólica essa pedra (que, segundo se diz, nunca as areias puderam cobrir), pois há quem diga que ali “se ajoelhou o Senhor”.

Dissociada do corpo estrito desta legenda, embora a ele associada no espaço e nos propósitos, há entretanto outra narrativa tradicional de Sesimbra que focaliza o carácter sagrado daquele espaço axial no complexo religioso da Arrábida: a lenda do Arcanzil, topónimo dado a “duas rochas afastadas da costa – uma, a oeste, junto à Chã dos Navegantes, e outra, a leste, à entrada da Baía da Cova”. Atentemos mais uma vez nas palavras dos colectores:

“[…] nos tempos em que Sesimbra era alvo dos ataques mouros, por via marítima, os sesimbrenses fizeram um Te Deum, implorando a protecção divina contra os saqueadores. Deus, ouvindo as suas preces, enviou--lhes dois arcanjos, que se petrificaram, a leste e a oeste da baía. A partir daí, cessaram as investidas dos sarracenos, pois as suas embarcações afundavam-se, ao chocar naquelas rochas” (Pitôrra et alii 2001: 40)

Os dados apresentados permitem pelo menos duas leituras, paralelas mas complementares. Numa poderemos ler o texto em função dos seus símbolos e arquétipos, tanto os mais evidentes quanto os mais ocultos. Noutra, é possível apurar um mínimo de substracto histórico subjacente às versões que chega-ram aos nossos dias, confrontando-as com a expressão artística e a iconografia do Senhor das Chagas, bem como alguns elementos simbólicos a Ele associados. Infelizmente, não temos a possibilidade de comparar os fanerotextos hoje disponíveis, todos já do século XX e moldados por via culta, com versões antigas e genuinamente populares. Ainda assim, é desejável associar as duas abordagens, pois parece-me claro que nesta estrutura lendária, que justifica o santuário de Sesimbra e os acontecimentos, mitos e ritos com ele relacionados, se mesclaram elementos provenientes de épocas distintas, como é habitual neste género de textos.

Tudo se entrançou, num longo processo de interpretação, reinterpretação e produtransmissão, dando origem a um “conglomerado” cultural e cultual, herdado e transmitido, onde não acontece pro-priamente uma substituição, mas uma aglomeração que fundamenta a evolução e o crescimento reli-giosos (cf. Ribeiro, s/d: 3). Temos um conglomerado lendário que se tem difundido tanto por meios tradicionais quanto por instrumentos eruditos, mas que não desmente o seu carácter popular, dada a sua brevidade e simplicidade, vinculada a um lugar com o qual se relaciona pragmaticamente, sendo um tex-to polifónico (com várias versões, correspondentes a estratos sócio-culturais distintos) que se materializa num conjunto de variantes, por vezes ligeiramente contraditórias, aceites por uma maioria generalizada, em função de um padrão tendencialmente canónico ou canonizado (Núñez & Trindade 1997: 141 – 146).

Tal narrativa, compósita, surge no âmbito de uma “cultura textualizada” (para utilizar uma ex-pressão e a definição de Peralta y Sosa), na qual “cada coisa, cada sítio, cada acontecimento tem a sua elaboração simbólico-lendária, na medida em que continua a ter uma função ritualizada, inscrita no devir da comunidade, nem que seja sob a forma de um simples festejo ou celebração” (in Núñez & Trindade 1997: 149 – 150).

A lenda do achamento da imagem do Senhor Jesus das Chagas institui, explica e justifica uma devoção, um ritual e um santuário. O santuário de Sesimbra – dúplice, pois comporta dois locais sacra-lizados (a Pedra Alta e o lugar onde se venera a escultura, a igreja da Misericórdia) – tem em simultâneo

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um carácter local e regional. Ao longo do ano, é visitado sobretudo por pessoas da vila, nomeadamente pelas gentes ligadas à pesca. No dia mais festivo (4 de Maio), a celebração conta com a presença de fiéis de todo o aro do antigo termo (o qual só em 1759 deixou de chegar às portas de Setúbal e na década de 1970 perdeu a actual freguesia de Fernão Ferro). Nessa data, chega a receber delegações de outros santuários da Península da Arrábida, que nele devem reconhecer alguma espécie de suserania (Ventura, 2014: 13). É, assim, um “ponto de confluência”, onde se venera intensamente uma imagem de Cristo que, na prática, confere uma essência numinosa e uma sacralidade acrescida ao lugar onde se encontra, manifestando a apetência da religião popular pela “valorização de objectos sacros que se podem ver, tocar, sentir, beijar e com os quais é possível falar” (Penteado 2001: 164 – 165).

Apesar da cronologia apontada nas versões eruditas do texto (1534), não me parece que a lenda em apreço se tenha instituído em exclusivo, como muitas outras, “no contexto da reforma católica e da contes-tação protestante às peregrinações e ao culto dos santos e da Virgem”, como refere Pedro Penteado. Estou, todavia, convicto, na senda do mesmo historiador, de que “não [tem] como objectivo principal reconstituir a história do lugar sagrado, mas provar que este, havia muito tempo, tinha sido escolhido pela divindade para se revelar aos fiéis e conceder-lhes auxílio material e espiritual” (Penteado, 2001: 165). Parece surgir como elemento indispensável no sistema lendário e ritual que produziu devoções tão intensas quanto as bem conhecidas à Senhora do Cabo ou à Senhora da Arrábida, mas também as mais discretas dirigidas à Senhora da Conceição de Alfarim, a Sant’ Ana da antiga Aldeia das Antas, à Senhora da Luz de Sampaio, à Senhora da Vitória do vale homónimo (já desaparecida e quase esquecida), à Senhora da Pinha e à Senhora d’ El Carmen, bem como a Santa Margarida e à Senhora da Salvação. Ou, ainda, como centro ou complemento do espaço sagrado situado entre os dois morros do Arcanzil.

É para mim claro que a lenda-padrão hoje conhecida e divulgada se organizou num momento tar-dio, certamente depois de meados do século XVI, se não muito mais tarde. Na minha opinião, o conglo-merado textual resultou da reunião num mesmo corpo (agora em grande parte coeso) de elementos die-géticos e etiológicos distintos na sua cronologia e na sua civilização, mas reveladores de uma cultura que, sob diversas formas, foi organizando e desenvolvendo o processo de sacralização do território arrábido.

2. A lenda das Chagas e a “construção” histórica do santuário sesimbrenseSe nas versões tradicionais da lenda do Senhor das Chagas temos uma temporalidade imprecisa, na qual interessam apenas os indicadores cronológicos que sublinham uma festividade cíclica, nas suas ocorrên-cias eruditas o ano de 1534 parece ser uma data crucial. Creio assim que esse ponto deve ser lido com muita atenção, em conjunto com outros indícios, pois permite encontrar algumas linhas de explicação histórica dos últimos cincos séculos de devoção ao patrono dos pescadores de Sesimbra.

Na minha leitura, esse aspecto temporal não pode nem deve separar-se da dimensão espacial da legenda. Ou seja, só pode ser explicado se for associado ao transporte da escultura da praia para o terreiro e, depois, para a igreja da Misericórdia. Deve ainda ser relacionado com a presença do primeiro duque de Aveiro, D. João de Lencastre, como figurante no momento da invenção da imagem na Pedra Alta.

Consideremos primeiro a data. 1534 integra-se numa década – e sobretudo num período de sete anos – crucial para o concelho de Sesimbra, principalmente para a sua Ribeira. Nesse decénio, ocorre a deslocação da centralidade religiosa e administrativa da vila para a beira-mar, onde decerto desde épocas muito recuadas existiria uma povoação ou arrabalde marítimo e piscatório. Em pouco tempo, a Piscosa assiste a uma quase refundação da sua orla marítima. Atendendo à importância demográfica desse nú-cleo urbano e aos incómodos causados pela assistência aos ofícios divinos na sede paroquial, intramuros,

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em lugar com acesso íngreme, aí se edifica de raiz uma ampla igreja (1533 – 1536) visando torná-la sede da nova freguesia criada em 1538. Reorganizando a estrutura assistencial, junto do hospital e capela do Espírito Santo (e nos seus terrenos) funda-se uma Santa Casa da Misericórdia, com irmandade centrada num novo templo engrandecido com obras de arte cimeiras (1535?). Entretanto, verifica-se a decadência da vila velha. No mesmo ano da criação da paróquia de Sant’ Iago Maior (1538) a vereação municipal reúne pela última vez no interior das muralhas. Ou seja, nesse ano o arrabalde dos pescadores passou a ser, de facto, a sede do concelho. O seu prestígio é sublinhado em 1540 pela construção nessa nova cen-tralidade dos paços de um dos membros do alto clero e da alta nobreza nacional e regional, D. Jaime de Lencastre, bispo de Ceuta e filho do grão-mestre da Ordem de Sant’ Iago, figura determinante na história da nova Sesimbra.

Há personagens omnipresentes nesses acontecimentos. São todas elas da mesma família da mais alta nobreza nacional , com importantíssimo papel senhorial na região. Movidas pela vontade popular e dos homens bons do concelho ou afirmando o seu poder e prestígio, decidem, impulsionam e/ou teste-munham os acontecimentos decisivos na vida da Ribeira na década de 1530:

a) D. Jorge de Lencastre (1481 – 1550) – filho legitimado do rei D. João II, duque de Coimbra, grão-mestre da Ordem de Sant’ Iago da Espada, comendador de Sesimbra desde tenra idade (1484), residente no termo dessa vila, em seus paços situados no Rossio de Vila Nogueira de Azeitão – foi quem primeiro manifestou intenção de construir uma nova igreja na Ribeira de Sesimbra (1533) (cf. Serrão & Serrão, 1997: 60); aberta ao culto (1536), autorizou imediatamente o levantamento do seu campanário e a instalação de uma pia baptismal (cf. Loureiro, 1939: 65), criando condições para que pudesse ser sede de uma nova freguesia, criada por Roma em 1538, devido à sua influência (cf. Serrão & Serrão, 1997: 60); na opinião de alguns autores, patrocinou ainda a execução do retábulo-mor da Misericórdia da vila, para o qual mandou pintar a Gregório Lopes uma magnífica Mater Omnia (1535?) (cf. Serrão & Serrão, 1997: 55 – 59);

b) D. Jaime de Lencastre (? – 1569), seu filho – bispo de Ceuta e confessor da rainha D. Catarina de Áustria –, impulsionou e patrocinou desde o início (1533) a construção desse novo templo dedicado a Sant’ Iago Maior, ao ponto de ao fim de um ano já estarem bastante adiantadas as obras (cf. Serrão & Serrão, 1997: 60); terá patrocinado a fundação da Misericórdia de Sesimbra ou, pelo menos, a edificação da sua igreja, tendo-lhe entregue, segundo dados apresentados por Carlos Loureiro, a pintura de Gregó-rio Lopes supracitada, que lhe fora oferecida pela mulher de D. João III (cf. Loureiro, 1939: 49); em 1540, edificou na Ribeira os seus paços, mais tarde tornados sede do município (cf. Serrão & Serrão, 1997: 70);

c) D. João de Lencastre (1500 – 1571), primogénito de D. Jorge – marquês de Torres Novas, pri-meiro duque de Aveiro, residente no limite de Azeitão e autor de Paixão de Cristo, tirada dos quatro evangelhos (1524) –, segundo a lenda, terá assistido em 1534, com os pescadores da Piscosa, à invenção da imagem do Senhor das Chagas na praia, sobre a Pedra Alta (Loureiro 1939: 50); cinco anos mais tarde, no santuário da Senhora de Guadalupe, na Extremadura espanhola, convenceu frei Martinho de Santa Maria a fundar na serra da Arrábida (pertença da sua família) um eremitério franciscano observante, o que se concretizou em Setembro desse ano de 1539 (Pereira 2006: 58 – 60).

Terá sido nesse contexto de amplas mudanças que surgiu em Sesimbra a imagem do Senhor Jesus das Chagas. Como se vê, foram sete anos decisivos na vila nova e no seu termo, sobretudo no que à sua dimensão religiosa dizia respeito. Em todos os acontecimentos houve agentes propulsores integrados na progénie dos Lencastres, descendentes do rei D. João II que, directa ou indirectamente, eram donatários da região. Sabe-se quão importantes foram o seu patrocínio e acção directa na edificação da igreja de

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Sant’ Iago. É muito provável que idêntico protagonismo tenham tido nas obras da capela da Santa Casa da Misericórdia. Segundo afirmam alguns historiadores, terão sido mesmo os encomendantes da magnífica pintura com figuração da Senhora da Misericórdia, que estaria no centro do retábulo-mor da capela da instituição assistencial (Serrão & Serrão 1997: 55 – 59).

Estou convicto de que uma dessas três figuras, provavelmente o duque de Aveiro, D. João (ou o seu irmão bispo, D. Jaime), terá tido um importância decisiva ou na chegada a Sesimbra da impressionante escultura que representa o Senhor das Chagas ou, então, na sua denominação tão franciscana. Por isso mesmo D. João consta de algumas versões eruditas da lenda como assistente no achamento da imagem na praia. Será bom recordar o quanto o filho do grão-mestre D. Jorge seria devoto da Paixão de Cristo, ao ponto de publicar em 1524 uma obra sobre essa matéria, a qual indicia a procura de uma espiritualidade mais individualizada e esclarecida, centrada na imitação de Cristo e da vida dos santos, de certo modo o cerne da Devotio Moderna. A religiosidade desse membro da família Lencastre teve expressão ainda na sua estreita ligação à reforma dos franciscanos observantes, que o levou – enquanto duque de Aveiro e proprietário da serra da Arrábida – a incitar em 1539 o espanhol frei Martinho de Santa Maria a instalar--se nesse lugar alto e numinoso. Os seus desejos concretizaram-se – e aí se fundou nesse mesmo ano, junto de um santuário várias vezes secular, um eremitério de frades menores, três anos depois organizado na sua regra e modo de vida pelo ministério de São Pedro de Alcântara. A devoção às chagas de Cristo crucificado está no centro dessa religiosidade, estabelecida com enorme intensidade a partir do huma-nismo do século XIII e da pregação de São Francisco de Assis e dos seus companheiros. Atingiu fervor inaudito quando se difundiram os testemunhos das experiências extáticas e da estigmatização desse alter Christus. A reforma capucha de “estreitíssima observância”, tão apoiada pelo marquês de Torres Novas, procurou fazer regressar os menoritas à sua pureza original. Foi um dos mais activos agentes na promo-ção do culto à humanidade de Cristo durante a Contra-Reforma católica, com ampla aceitação popular

Nem todos os passos da narrativa sesimbrense podem ser lidos à letra, como é óbvio, pois muitos deles são símbolos com denso e poliédrico significado ou ressonâncias de uma religiosidade ancestral. Penso ainda assim que a versão culta da legenda espelha a chegada a Sesimbra, por via marítima, de uma representação de Cristo crucificado cuja expressividade artística terá perturbado a sensibilidade dos seus habitantes. Essa co-moção terá levado à rememoração de sacralidades, devoções e mitos antigos, que o tempo amalgamou numa só lenda, conduzindo ao conglomerado textual que hoje conhecemos. Não custa crer que esse acontecimento tenha tido lugar na década de 1530, pois a obra de arte é dessa época e terá chegado no momento certo, consa-grando talvez com eloquência o novo estatuto municipal, paroquial e assistencial da Ribeira.

Conta-se que a imagem chegou à Piscosa depois de ter sido lançada ao mar, em Inglaterra, para não ser profanada. Se alguma vez se encontrar um documento que comprove essa informação enigmática, difundida pelas versões menos populares, saberemos até que ponto corresponde a uma factualidade his-tórica. Não é, contudo, uma hipótese improvável ou fantasista. A reforma religiosa gerada em Inglaterra pelo rei Henrique VIII traduziu-se no encerramento e extinção de inúmeros mosteiros e conventos e na consequente venda dos seus bens e destruição sistemática de muita da sua escultura decorativa e devocional (Suduirant 2006: 540). Era frequente a chegada aos países católicos de mercadores e nautas tentando vender peças oriundas desse país. Muitas terão sido resgatadas e adquiridas, evitando-se assim a sua destruição ou profanação. O primeiro bispo de Portalegre, D. Julião d’ Alva (1549 – 1560), antes capelão da rainha D. Catarina de Áustria, comprou por exemplo um magnífico conjunto de paramentos daí proveniente, encarregando-se contudo de obter autorização papal, não fosse estar a praticar uma acção ilícita (Cristóvão 1997: 5).

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Os enigmas ainda podem ser desvendados, mas os mistérios deixar-nos-ão para sempre na incerte-za… Seja qual for a sua proveniência, sejam quais forem a data precisa em que chegou à Ribeira de Sesim-bra, os meios usados na sua viagem e os responsáveis por essa vinda, trata-se de uma escultura que ainda hoje impressiona pelas suas dimensões e pela sua expressividade, acentuada pelas adições humanizantes que a revestem. Nem um repinte bárbaro lhe suprimiu as suas melhores características escultóricas, por vezes difíceis de descortinar por debaixo de uma cabeleira postiça e de um cendal bordado que ostenta todo o ano. Trata-se de um bom exemplo da arte setentrional do primeiro quartel do século XVI. Combi-na uma anatomia ainda esquemática, gótica, com a sugestão de um tímido renascimento, visível nalgum movimento do perizónio e na “doçura [dos seus] pragueados” (Pereira in AA. VV., 2001: 46). É um bom exemplo da acentuação da humanidade de Jesus, visível num rictus dolorido que revela o pathos agónico de um Nazareno prestes a exalar o Seu último suspiro: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mt 27, 46); “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46). Essa eloquência gestual, tão marcante na face da escultura, é característica da arte esculpida e pintada nos Países Baixos e no norte da Euro-pa, encontrando também expressão nalguns mestres dessa região que trabalharam na Península Ibérica (como, por exemplo, João Alemão) (Dias 1997: 54). A imagem do Senhor Jesus das Chagas integra um grupo de esculturas de Cristo, com apreciáveis dimensões e emotiva gestualidade, importadas da Flan-dres e acolhidas com entusiasmo, quase sempre sobrenatural, em várias localidades costeiras (Caminha, Viana do Castelo, Barcelos, Peniche, Ponta Delgada, etc.). Tal apreço, incentivado ou patrocinado por figuras importantes da nobreza ou da alta burguesia local, foi auxiliado pela sua leveza (que facilitava o seu transporte nas procissões) e terá sido impulsionado pela provável relação dos mareantes dessas vilas e cidades com os países do Norte, onde se deslocariam com alguma frequência (Dias 1997: 45).

As informações conservadas nas versões eruditas da narrativa, indicam mais alguns dados. O aco-lhimento da imagem terá ocorrido antes da edificação da igreja da Misericórdia ou da conclusão das

Fig. 3. Pormenor da escultura que representa o Senhor das Chagas (Ruy Ventura, 2014).

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obras desse templo. A escultura deve ter sido colocada, primeiro, num oratório situado no topo poente do terreiro, a curtíssima distância das traseiras da ermida e hospital do Espírito Santo dos Mareantes. Ponho a hipótese de que esse lugar de culto medieval tivesse uma configuração semelhante à de outros ainda hoje existentes em várias localidades piscatórias. Limitam-se a um alpendre situado em geral nas traseiras ou nas proximidades de uma igreja, o qual protege uma imagem de Cristo na cruz. Estão abertos de dia e de noite, para mais rápido acesso dos devotos aflitos, como acontece por exemplo em Olhão ou Faro. A sua localização lendária, a curtíssima distância da sede da irmandade do Corpo Santo (ou de São Pedro Gonçalves Telmo), leva-me a considerar a possibilidade de que esse humilladero sesimbrense estivesse associado ou encostado à sede do primitivo hospital da confraria dos pescadores, que em 1516 já se encontrava transformado em casa de habitação arrendada (Conde 2004: 67).

Enquanto as obras se concluíam, talvez em 1534/35, a importância da devoção ao Senhor das Cha-gas já deveria ser grande (e talvez ancestral). Desde o princípio deve ter havido intenção de prestar culto a essa invocação e imagem de Cristo na Misericórdia, embora num altar lateral. Assim se justificam a disposição e a simbólica do brasão extravagante que hoje orna a fachada do antigo hospital. É constituído por duas peças, que podem ter sido fechos da abóbada nervurada do templo primitivo, desaparecida depois das intervenções ocorridas na década de 40 do século XVIII (1741 e 1746) (Serrão & Serrão, 1997: 55). Não é ainda impossível que estivesse colocado na fachada primitiva da igreja.

Esse brasão é constituído por duas pedras sobrepostas, circulares, em calcário e com dimensão desigual. A maior tem uma moldura encordoada, ostentando no centro um escudo, ladeado por dois pares de quadrifólios, com cinco escudetes dispostos em 2-1-2, cada um com cinco besantes. A menor tem uma moldura idêntica, mas contém apenas no campo uma serpente mordendo a própria cauda, um ouroboros, o terceiro de três círculos concêntricos. O brasão parece representar o escudo nacional, com as cinco quinas. Tendo em conta todavia a sua forma, típica da primeira metade de quinhentos, e a sua datação estilística, situável na década de 30 do século XVI – apegada ainda à ornamentação manuelina de algumas peças circulares (influenciada pelas peças esmaltadas da oficina de Della Robbia), embora depurando-a –, seria uma peça com heráldica anacrónica, ao dispensar a cercadura com os sete castelos.

Ao anacronismo aparente junta-se a posição sui generis dos escudetes. Não estão em cruz grega (1-3-1), como era habitual deste a Idade Média, mas em posição diferente e irregular (2-1-2). Nessa época, um erro aparente correspondia a uma mensagem sub-reptícia, críptica e enigmática, destinada à leitura (por vezes mística) das classes mais letradas. Penso assim que a disposição anómala dos escudetes evoca as cinco chagas de Cristo, colocadas sempre desse modo na composição heráldica com que normalmente eram apresentadas na época manuelina-joanina (Pereira 2004a: 25 – 29). Sabemos de onde vem essa disposição sintética, extravagante, porque evocativa e memorial, quase mnemónica. O brasão da Miseri-córdia de Sesimbra é, ao mesmo tempo, um emblema falante da principal imagem cultuada na sua igreja e na vila e uma síntese da parte mais importante do mito do milagre da batalha de Ourique. Indicava (e indica) que naquele lugar se situava o santuário do Senhor das Chagas e das Chagas do Senhor. Recordava (e recorda), em simultâneo, a vitória das milícias cristãs de D. Afonso Henriques sobre cinco reis mouros nos arredores de Castro Verde, depois de uma aparição de Cristo chagado e crucificado dando-lhe con-fiança no prélio que se aproximava (Pereira 2004 a: 20 – 25; Costa & Falcão 2002: 16 – 33). Nesse mito se fundamenta a rica heráldica nacional: cinco escudetes postos em cruz grega (as cinco chagas), cada um com os trinta dinheiros entregues ao traidor Judas Iscariotes, tendo como timbre a serpente salvífica de Moisés, prenúncio da crucificação salvadora de Jesus no Calvário (Costa & Falcão 2002: 28).

Na maior parte das figurações do milagre de Ourique, a revelação heráldica do Salvador ao

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Fig.4. Brasão quinhentista embutido na fachada do antigo hospital da Misericórdia de Sesimbra (Ruy Ventura, 2014).

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primeiro rei representa-se ostentando, lado a lado, o brasão das chagas e o escudo nacional (um das mais belas está numa gravura seiscentista atribuída a Agostinho Soares Floriano (Costa & Falcão 2002: 31)). Em Sesimbra a heráldica nazarena e lusitana fundiram-se, numa síntese eloquente com propósitos cate-quéticos e apologéticos, decerto relacionados com a devoção ao Senhor das Chagas e com a visão de um Portugal privilegiado pela Divina Providência.

Curiosamente ou não, a data mítica da batalha fundacional é 25 de Julho, dia da festa litúrgica de Sant’ Iago Maior. Parece-me assim muito difícil separar o culto a Cristo e às Suas Chagas em Sesimbra – acolhido pelos pescadores a partir de 1534, segundo contam os transmissores letrados da lenda – da edificação da nova igreja de Sant’ Iago entre 1533 e 1536 (destinada a sede da nova paróquia instituída em 1538) e da mais que provável construção na mesma época da capela da Santa Casa da Misericórdia. A ligação estabelece-se, de um ponto de vista simbólico, através do milagre de Ourique. Aí todos os ele-mentos se juntam e conjugam: Cristo e as suas chagas, Sant’ Iago e a sua face guerreira de Mata-Mouros, Portugal e os seus mitos. No escudo, é também visível a concordância entre o Antigo e o Novo Testamento, sobretudo na serpente de Moisés (cf. Nm 21, 8 – 9) ostentada como timbre, embora na forma de um ouroboros, de modo a recordar a união do mundo ctnoniano, subterrâneo e terrestre, do ofídio e com o uraniano, celeste, do círculo (DS, 716). Indicia ainda que a terra (figurada nos quatro quadrifólios que ladeiam o escudo nacional, primitivo e extravagante) é sacralizada pelo Céu (simbolizado nos vários círculos concêntricos aí presentes). Tudo isso surge num período da nossa história em que se acentuou o providencialismo nacionalista como alicerce da estruturação e da afirmação da identidade nacional no âmbito de uma “mística da dinastia de Avis” (Pereira 2004 a: 22). Expressão desse ambiente, decerto o programa iconográfico sesimbrense foi pensado pela cultíssima família Lencastre, descendente directa de D. João II, não se destinando propriamente ao vulgo. Terá procurado, ainda assim, dar uma expressão mais erudita e purificada à religiosidade local, utilizando para isso uma espiritualidade franciscana e patriótica, ao mesmo tempo que promovia a valoração do seu poder senhorial, do seu prestígio pessoal e da supremacia local da cúpula dos Espatários.

Todos estes considerandos não significam que a devoção a Cristo crucificado e chagado se tenha iniciado em Sesimbra com a chegada dessa escultura. Segundo a lenda, o oratório onde de início foi colocada já existia em 1534. Certamente aí teria culto uma imagem anterior, mais antiga, provavelmente medieval. A rememoração dessa primitiva representação é indiciada pelo persistente ritual de envolver a cintura do Senhor com um cendal em tecido ricamente bordado, o qual cobre essa parte da escultura, escondendo o perizónio esculpido e dando-lhe uma dimensão bem mais longa, pouco acima dos joelhos. Sabe-se que os panos de pureza longos, nalguns casos abaixo das rótulas, são característicos dos Cristos medievais (Almeida & Barroca 2002: 179 – 187; Soalheiro 2005: 56 – 59). Embora a tradição de vestir as imagens dos santos se tenha acentuado na época barroca, dando-lhes uma expressão mais humanizada e realista (e até patética), essa extensão do cendal da imagem de Sesimbra parece-me uma clara medievali-zação da escultura, tornando-a imemorial ou, melhor, um memorial de uma peça mais antiga.

ConclusõesDesta análise da lenda do achamento da imagem do Senhor Jesus das Chagas, protector dos pescadores de Sesimbra, análise que deliberadamente excluiu todas as dimensões que não possibilitassem uma leitu-ra histórica desse acontecimento narrado de geração em geração, podemos concluir que:

1. a data de 1534 parece corresponder a um momento importante no culto dessa invocação cristã: embora não se consiga provar a ocorrência de uma descoberta acidental da representação escultórica,

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tudo indica que nesse momento deve ter ocorrido uma valorização artística dessa devoção, associada a todo o processo de refundação municipal e religiosa de Sesimbra na povoação situada na Ribeira, no sopé da antiga vila amuralhada, ocorrido na década de 30 do século XVI;

2. nessa valorização de um culto com indícios de grande ancestralidade é quase certo que houve uma intervenção directa de um ou vários membros da família Lencastre, cujo patriarca liderava a pode-rosa Ordem de Sant’ Iago, em cujo território se incluía Sesimbra;

3. essa modelação/renovação do culto dos pescadores teve várias expressões: desde a vinda ou o acolhimento de uma nova imagem, proveniente da Flandres ou de outro país do Norte da Europa, ao título que foi dado ao Cristo (integrado na tradição franciscana e, também, numa mitologia nacionalista e providencialista abraçada pelas classes letradas durante a segunda dinastia);

4. toda essa purificação não apagou, todavia, da memória colectiva os aspectos mais tradicionais quer da lenda quer dos rituais dela decorrentes ou a ela associados, permanecendo ainda o que parecem ser rememorações quer de um antigo lugar de culto quer de uma anterior representação do protector da comunidade piscatória;

5. todas essas dimensões, associadas e aglomeradas num mesmo texto, reforçaram e justificaram uma devoção, um conjunto de rituais e também a importância simbólica de um lugar de culto (a igreja da Misericórdia), transformada no santuário por excelência de Sesimbra e da sua região.

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Santuarios y apariciones marianas en Andalucía (España)

Shrines and Marian Apparitions in Andalusia (Spain)

Salvador Rodríguez Becerra*

*espanha, antropólogo, Professor, universidad de sevilla (us). Par académico da revisão da comissão científica. e-mail: [email protected]; www.grupo.us.es/giesra

artigo submetido a 02 de junhoe aprovado a 14 de junho 2014

Resumen: Los santuarios marianos y la devoción a las imágenes de la Virgen María que en ellos reciben culto, especialmente en las fiestas de romería, constituyen la ex-presión más generalizada de la religiosidad común de los andaluces, cuya existencia está justificada en la memoria colectiva por leyendas de aparición o hallazgo.Palabras clave: Virgen María / santuarios / romerías / leyendas de aparición / Andalucía.

Abstract: The Marian shrines and the devotion to the Virgin María images that there receive worship, especially in the pilgrimage festivals, are the most widespread ex-pression of common religion of the Andalusians, whose existence is justified in the collective memory by appear-ance or find legends.Keywords: Virgin María / shrines / pilgrimages / legends of emergence / Andalusia.

Si tuviéramos que condensar en un solo lugar y en una fecha la religión de la mayoría de los andaluces, este sería un santuario mariano y la romería para celebrar su fiesta. Considero que no es exagerada esta afirmación por cuanto en los santuarios marianos se localizan los símbolos sagrados que más han afec-tado históricamente y en la actualidad a las diversas comunidades de Andalucía. En el santuario y en la romería se condensan en esta región lo esencial de las relaciones con lo sobrenatural. Es la devoción y la presencia de peregrinos lo que hace a un determinado edificio religioso un santuario, éste es prima-riamente local, pero cuando se dan unas determinadas circunstancias, que tienen que ver sobre todo con la capacidad de la imagen de hacer milagros de la imagen y la difusión de estos poderes, traspasa este ámbito alcanzando un “área de devoción” más amplia: comarcal, regional o nacional.

Los santuarios en general no forman parte de la estructura básica de la institución eclesiástica -hay pocos santuarios en parroquias, colegiatas o catedrales-, y constituyen un componente esencial de la reli-giosidad común. Estos centros de atracción religiosa dan satisfacción a las principales necesidades vitales y especialmente de salud, al tiempo que los rituales que en ellos tienen lugar, suponen un importante soporte emocional, estético y de sociabilidad.

Al no formar parte históricamente de las preocupaciones primordiales de la jerarquía eclesiástica y ser centros alejados de los núcleos de población, han gozado de cierta autonomía de organización y funciona-miento. A ello habría que unir el que muchos santuarios han estado vinculados a hermandades, cofradías, cabildos civiles y órdenes religiosas, y por ello un tanto alejados del control eclesiástico. En la mitad sur de la Península Ibérica el culto a María floreció tras la conquista cristiana, pues los santuarios de mártires y santos habían desparecido durante la etapa musulmana. La utilización de las imágenes como símbolos religiosos en el mundo occidental permitió sacralizar el campo que se fue poblando de ermitas, en algunos casos sustitu-yendo a morabitos, donde ya se había mostrado lo sagrado con anterioridad por ser lugares hierofánicos. Esta situación se intensificó aún más cuando en el siglo XIX en la mayoría de los santuarios dedicados a mártires y santos terapéuticos decayeron en la devoción permaneciendo como mudos testigos de un pasado devocional.

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La devoción a la Virgen por el contrario, ha permanecido y se ha robustecido en el en el pasado siglo, por ser protectoras poderosas y polivalentes, de ahí que su devoción no haya sido superada por la ciencia médica, que ha marginado, sin embargo, otras devociones como las de los santos especializados en las epidemias, una vez superadas éstas en el mundo occidental. Pero quizás la razón más poderosa sea la profunda identificación espiritual que ya desde el Antiguo Régimen se había producido entre imágenes marianas y los pueblos que las poseían y posteriormente con las comarcas y regiones próximas. La identi-ficación con el icono mariano en estos últimos casos se fundamentaba en su capacidad de hacer milagros, capacidad que sobrepasa las fronteras.

En Andalucía se crearon a partir de la conquista cristiana numerosas ermitas, algunas de los cuales se convirtieron en santuarios. Entre éstos destaca por la amplia y profunda expansión de su culto en Andalucía, la Virgen de Cabeza (Andújar), la más conocida y visitada durante todo el Antiguo Régimen, solo superada en la actualidad por la de la Virgen del Rocío (Almonte).

Leyendas de apariciones y hallazgosPartimos del hecho de que el espacio rural de Andalucía está sembrado de santuarios de influencia lo-cal, comarcal o regional de los que desconocemos las circunstancias de su erección. Estas imágenes y santuarios disponen de textos legendarios que justifican su presencia en estos lugares. Esta explicación se expresa tan real como si respondiera a hechos comprobados, y durante siglos ha sido suficiente para justificar la presencia de una imagen en un lugar concreto. Aparentemente estos textos parecen iguales o semejantes, pero quizás sea más acertado decir que las narraciones legendarias responden a algunos modelos establecidos cuya unidad es indudable. Un hecho es común a todos los casos: las imágenes son halladas o se aparecen, mejor reaparecen, pues en el imaginario colectivo estas imágenes recibieron culto con anterioridad a la conquista musulmana. Es por tanto el hecho de la conquista e islamización de la península Ibérica y su posterior cristianización el hecho fundamental del que parten la mayoría de estas narraciones. Entendemos que es una forma clara de reafirmar que este territorio fue cristiano con anterioridad, lo que no quiere decir mariano, y que de nuevo volvía a serlo. Sabido es que la conquista cristiana fue vivida en los reinos peninsulares como una “reconquista”; también es sabido que cuando se produce la conquista cristiana del sur peninsular entre los siglos XIII al XV la devoción a la Virgen María estaba en auge en Europa y que los propios reyes llevaron el nombre de María por todo al-Andalus, poniendo bajo su protección los templos y erigiendo ermitas por todo el territorio conquistado.

Los relatos más extensos y de los que se conservan más versiones corresponden a las imágenes más populares. De la mayoría solo se conserva una breve referencia que indica el lugar de aparición y el oficio del vidente –generalmente pastor-. No existen textos coetáneas a las supuestas apariciones, y son escasos los textos anteriores al siglo XVII. El mecanismo de las advocaciones permite individualizar y adjudicar a cada población un ser sagrado diferenciado.

La actitud de la Iglesia en relación con estas narraciones legendarias ha sido de condescendencia, fueron los eclesiásticos, especialmente los frailes, los que las crearon, ayudaron a conformar y fijaron por escrito estos mitos. Estas leyendas formaron parte durante siglos de los sermones impartidos en las fiestas locales. La importancia de las órdenes religiosas en la consolidación de los santuarios y en la difusión de las narraciones legendarias no puede ser minusvalorada. Es muy posible que lo que comúnmente se lla-ma tradición, aplicada a estas leyendas, no sea sino la repetición de estos esquemas aplicados a cada una de las imágenes. Estas leyendas que corrieron primero de boca en boca, experimentaron un alto grado de fijeza en los casos que fueron impresas, lo que les dio carta de naturaleza como verdades incontestables.

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Las leyendas pueden sintetizarse del modo siguiente: Un hombre recibe señales extraordinarias o encuentra a una imagen –nunca se dice de qué materia ni naturaleza-, no da crédito a sus sentidos, duda y es confortado por ella que le da pruebas de su poder curándole alguna minusvalía, lo comunica a las autoridades eclesiásticas y civiles locales, la traen en procesión al pueblo y la entronizan en la iglesia principal, desaparece reiteradas veces, lo que se interpreta como el deseo de la imagen de permanecer donde se apareció. Rara vez queda testimonio del nombre del vidente ni de la fecha en que tuvo lugar el suceso, lo que se convertirá en un signo de verosimilitud en aquellos casos en que el santuario alcance la fama. Lo que para nosotros es indicativo de la constante reelaboración a que es sometida la leyenda. Es significativo el hecho de que en todas las leyendas una vez que el vidente se ha recuperado de su asombro y la imagen ha resuelto favorablemente la credibilidad del suceso mediante un milagro, del que él mismo es beneficiario, marcha a la ciudad o villa y se presenta a las autoridades eclesiásticas, frecuentemente también civiles, para darles conocimiento del suceso portentoso. Esta actitud que recogen sistemática-mente los textos, la interpretamos como una prueba de la identificación del icono con la población y el territorio donde se supone tuvo lugar la aparición o hallazgo.

Más significativo es el hecho de que las ermitas y santuarios estén siempre en el campo, a cierta distancia de los núcleos urbanos. Así, en el relato, si bien se pone en primera instancia en conocimiento de la autoridad religiosa y civil, la imagen hallada o aparecida, con una tenacidad impropia de seres humanos, decide el lugar donde quiere residir, y dónde desea se le levante una ermita, que no es sino el lugar de aparición, es decir, lejos del control de las autoridades que implica el núcleo urbano. Los pocos datos concretos dan cuerpo o añaden contenido al modelo de la narración que suele ser muy escueta; los autores, conocidos, hacen los textos más asequibles, los cargan de sentimientos, de valoraciones éticas, de adjetivos y de datos conocidos que la hacen más cercana.

Las imágenes son tallas de pequeño tamaño, con niño, labradas en tiempos bajomedievales, la mayoría de estilo gótico, que según la tradición fueron enterradas u ocultadas tras la invasión musulmana. Los indivi-duos que las encuentran, según las crónicas, son hombres sencillos pero creyentes, lo que no debe confundirse con hombres de Iglesia, pues los prototipos que nos presentan no tienen el perfil de creyentes cercanos a la Institución eclesiástica. En todos los casos son hombres, y tienen una minusvalía física: manco, mudo, ciego.

De la mayoría no se citan los nombres de los videntes, pero en ocasiones, que coinciden con las imágenes de más amplia devoción, se dicen nombre y apellidos, aunque en alguna ocasión no es sino un nombre genérico; predominan los pastores y agricultores. Estos videntes suelen tener miedo a no ser creídos, actitud acorde con el bajo nivel que ocupaban en la sociedad, y por ello piden a la Virgen pruebas irrefutables del hecho portentoso. Estos personajes reciben los avisos a través del sueño, generalmente con turbación y hasta con miedo.

La razón más general para explicar el hallazgo o aparición, según los textos, se centra en el hecho del peligro que se creó tras la invasión musulmana y la supuesta rápida huida de los cristianos hacia el norte, hechos no corroborados por la historia, y que, bien por el peso de las imágenes o por otras razones las ocultaron. En otras ocasiones se cita la inseguridad de la frontera en la que vivieron algunas villas y ciuda-des en los siglos XIII al XV. Aunque los textos utilizan los términos hallazgo y aparición, en la práctica en ambos casos es el ser sobrenatural el que ejerce su voluntad de ser sacada del escondite, emitiendo señales, o conduciendo al afortunado hasta el lugar o, simplemente, se aparece. Existe una gran coincidencia de los fenómenos extraordinarios que revelan los documentos: la luz cegadora, sin duda el signo más generalizado y simbólico de lo sagrado, aunque se utilizan otros como tañido de campanas, animales o sueños.

En algunos estudios sobre santuarios se ha puesto de manifiesto el valor simbólico de los mismos

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como límites entre comunidades con pastos, bosques y otras fuentes de riqueza mancomunadas, así como la función que cumplen en las inevitables pugnas por los derechos y aprovechamientos de los mismos. Las imágenes deciden su residencia trasladándose durante de noche al lugar elegido, al que vuelven una y otra vez aunque se las cambie a otro lugar. Existen otras formas de expresar la voluntad de permanencia, tales como el insoportables peso que hace desistir a los naturales del empeño de elegir me-jor templo para la imagen hallada, o la utilización de una yunta de bueyes para su traslado, que termina deteniéndose en un lugar, lo que se interpreta como la voluntad divina expresada a través de irracionales, acción que excluye la intencionalidad humana.

ConclusionesLa mayoría de las ermitas dedicadas a María han dado lugar a devociones locales muy fuertes pero en pocos casos la devoción se ha ampliado fuera de ellas dando lugar a santuarios. Estos iconos identifican mejor que ningún otro elemento a la localidad. Las imágenes de la Virgen, según la tradición, fueron escondidas tras la conquista musulmana, aunque la devoción a María con anterioridad al siglo VIII no se corresponde con la verdad histórica. Las imágenes son esculturas góticas, pequeñas y ligeramente dobladas, correspondientes a los siglos XIII-XV. Las referencias a su origen apostólico o visigodo no tienen fundamento histórico, pero la antigüedad, grado de sacralización y cercanía al modelo vivo les otorgaba prestigio.

De la mayoría de ellas solo se conserva el nombre del vidente y su oficio: pastores o agricultores, aunque se observa la tendencia a fijar la fecha de la aparición. Ésta se fijó a posteriori y en referencia a la fecha de la conquista cristiana. Las ermitas existieron antes que los textos legendarios, solo cuando éstas adquirieron cierta notoriedad surgen las leyendas de aparición, generalmente debidas a los frailes. La fechas de construcción son desconocida y su datación es compleja.

Las imágenes fueron custodiadas en santuarios rurales y sus cultos organizados por hermandades y cofradías que aunque bajo la jurisdicción eclesiástica, ésta no ejercía siempre un estricto control. En algunos casos, fueron administrados por órdenes religiosas que ofrecían mejores servicios religiosos y se constituyeron en base de sustentación para los conventos. En varios casos en el suceso intervienen perso-nas de distintas comunidades lo que vincula a diversas poblaciones con la imagen y da lugar a frecuentes desencuentros en defensa de sus pretendidos derechos sobre la imagen que se resuelven con armisticios o permanecen en el tiempo.

ReferenciasÁlvarez Santaló, C.; Buxó, M. J. y Rodríguez Becerra, S.

(coords.) (1989; 2003). La Religiosidad popular. Barcelona: Anthropos / Fundación Machado.

González Jiménez, M. (1990). “Devociones marianas y repoblación. Aproximación al caso andaluz”, en Devoción mariana y sociedad medieval. Acta del Simposio. Ciudad Real: Instituto de Estudios Manchegos, pp. 9-22.

Carrasco Terriza, M.J. (coord.) (1992; 1998). Santuarios

marianos de Andalucía occidental; Santuarios marianos de Andalucía oriental. Madrid: Ediciones Encuentros.

Rodríguez Becerra, S. (2006). La Religión de los andaluces, Málaga: Editorial Sarriá.

Rodríguez Becerra, S. (2010). “El santuario de la Virgen de la Cabeza de Andújar según el manuscrito de Juan de Ledesma (1633)”, Boletín del Instituto de Estudios Giennenses, núm. 202, pp. 57-77.

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Desenho, Memória e Simplicidade Visual: O Painel de Desenhos de Siza Vieira sobre S. Pedro e S. Paulo, na Basílica da Santíssima Trindade do Santuário de Fátima

Drawing, Memory and Visual Simplicity: Drawings Panel of Siza Vieira about St. Peter and St. Paul, in the Basilica of the Most Holy Trinity of the Sanctuary of Fátima

Shakil Yussuf Rahim* & Ana Leonor Madeira Rodrigues**

*Portugal, arquitecto, Professor, doutorado em arquitectura, ramo desenho, faculdade de arquitectura de universidade de Lisboa (fauL). e-mail: [email protected]; [email protected]**Portugal, Professora, departamento de desenho e comunicação visual, faculdade de arquitectura da universidade de Lisboa (fauL). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a 2 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: O presente artigo analisa o painel de desen-hos sobre a vida de S. Pedro e S. Paulo, do arquitecto Siza Vieira, no Santuário de Fátima (Portugal). Com a Memória e a Simplicidade Visual como estratégias de desenho, os parâmetros visuais estudados mostram três elementos compositivos fundamentais na obra: a eco-nomia da linha de contorno da figura, o reflexo da qua-drícula de azulejos do suporte parede e o movimento do espaço arquitectónico na sua proporção morfológica e na variabilidade da iluminação natural.Palavras chave: Desenho / Memória / Simplicidade Visual / Siza Vieira / Portugal.

Abstract: St. Peter’s and St. Paul’s life in the Sanctuary of Fátima (Portugal). Using Memory and Visual Simplic-ity as drawing strategies, the visual parameters that were studied show tree key composing elements in the work: the economy of the contour line of the figure, the reflection of the wall tiles and the motion of the architectural space in its morphological proportion and natural light variation.Keywords: Drawing / Memory / Visual Simplicity / Siza Vieira / Portugal.

IntroduçãoA produção do arquitecto Siza Vieira (1933- ) reune obras em vários campos do conhecimento artístico, relacionan-do a arquitectura com outras áreas. O Desenho é uma dessas extensões do seu pensamento. Este artigo recupera a importância dos desenhos na obra de Siza Vieira e tem como objecto de estudo um painel de desenhos temáticos de sua autoria, criado para o Santuário de Fátima. A hipótese aqui estudada é a dupla intencionalidade da implantação da obra: i) construção física da narrativa bíblica através do traço e das figuras sobre o plano da parede, ii) participa-ção do contexto arquitectónico na transformação gráfica e simbólica do espaço e das cenas desenhadas.

1. O Santuário de Fátima e a Galilé dos Apóstolos S. Pedro e S. PauloO Santuário de Nossa Senhora de Fátima, situado na Cova da Iria, (Leiria, Portugal), é um dos mais importan-tes locais de peregrinação da fé católica e um dos mais emblemáticos santuários marianos de todo o mundo. Conta a história, que, no ano de 1917, numa das aparições de Maria aos três pastorinhos (Jacinta, Francisco e Lúcia), a virgem terá pedido que se erguesse uma capela naquele lugar (Ruggles, 2003). Actualmente, a Ca-pelinha das Aparições é apenas o centro de um vasto complexo arquitectónico que cresceu ao longo dos anos, onde se destacam diversas esculturas e edificações.

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Uma nova fase de expansão do Santuário, inaugurou em 2007, a Basílica da Santíssima Trindade (Figura 1). Desenhada pelo arquitecto grego Alexandros N. Tombazis (1934 -), com a coordenação portuguesa do atelier Paula Santos Arquitectos e Joana Delgado, o projecto de inspiração bizantina e ortodoxa, contempla a dimensão espiritual da interioridade, através da gestão simbólica da luz e da morfologia circular do volume da Basílica (125 m de diâmetro):

Visitei com ele [Alexandros Tombazis] o projecto em construção, o vasto espaço da Basílica, extremamente confortável contudo, pelo acerto das proporções, pela forma elíptica que dispensa arestas, pela criteriosa escolha de materiais e cores, um espace indicible, como diria Le Corbusier, que a luz controlada, neutra ou colorida, ordena (Siza, 2008: 395).

Todo o conjunto arquitectónico é marcado por obras de arte, encomendadas a vários criadores. A Basíli-ca tem um segundo plano, a nível subterrâneo e sob o corpo da assembleia, onde se localiza a Zona de Recon-ciliação. Esta área é dividida em capelas com confessionários e sacristias, articulada por um grande corredor - a Galilé dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo. É no contexto desta galeria subterrânea e na ligação do projecto de arquitectura aos projectos complementares de produção artística, que se situa a parede que acolhe os desenhos do arquitecto Siza Vieira para o Santuário de Fátima.

2. O Desejo do Desenho entre a Memória e a Iconografia O programa adoptado para a intervenção de Siza na parede da Galilé dos Apóstolos foi um conjunto de dese-nhos ilustrativos da vida de S. Pedro e S. Paulo, de acordo com as escrituras, desde a evangelização ao martírio final (Siza, 2008).

O desenho das cenas quotidianas de S. Pedro e S. Paulo envolveu a memória, na produção das marcas visuais que permitissem o reconhecimento do texto bíblico. Desenhar para sublinhar e recriar uma iconografia histórica é uma tarefa exigente. Uma ligação entre a memória descritiva do desenhador que produz e a memó-ria colectiva do espectador que interpreta. Neste caso, não há um modelo à vista. Há fontes escritas e relatos; há obras e interpretações de outros artistas.

Como o próprio autor refere: “Consultei reproduções das inúmeras e sublimes obras realizadas sobre os mesmos temas, através dos séculos” (Siza, 2008: 396). O tema foi tratado por muitos autores. Miguel Ânge-lo Buonarroti (1475-1564) pintou para a Cappella Paolina (Palácios do Vaticano) a Crocifissione di san Pietro (1545-1550) e a queda de cavalo na Conversione di Saulo (1542-1545). Também Caravaggio (1571-1610) pintou, na Cappella Cerasi (Roma), a Conversione di san Paulo (1600-1601) e Crocifissione di san Pietro (1600-1601) (Figura 2).

De entre múltiplas referências, os painéis de desenhos de Henri Matisse da Capela do Rosário de Vence (1949-1952) foram uma inspiração para o autor (Figura 3). Para Matisse foi uma obra completa, onde realizou o projecto de arquitectura e coordenou todos os pormenores (Seligny, 2013). Para Siza foi um atrevimento (Figura 4):

Aproveitei para revisitar a Capela de Vence, o maravilhoso trabalho de Matisse. Não pude evitar uma sensação de irresponsável atrevimento. Aquele painel de azulejos põe de joelhos qualquer um, quanto mais quem pretenda realizar, em ambiente religioso, exactamente um painel de azulejos. Senti-me inseguro e incompetente. Refugiei-me no trabalho (Siza, 2008: 395-396).

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O desafio foi encontrar o melhor Pedro e Paulo de entre a imagética consagrada. A posição certeira do cavalo e do galo. Conseguir captar através da linha a verdade das personagens e o instante das cenas pela inte-ligibilidade dos sentidos, na perspectiva da tríade escolástica de São Tomás de Aquino: integridade, proporção e claridade (Talon-Hugon, 2009: 18).

3. A Linha de Contorno e a Simplicidade Visual Para Siza, o desenho é a sua visão do mundo e a sua sensibilidade. Um motor de inovação, ideação e criativi-dade, que vai para lá do esquiço de arquitectura (Siza, 2006).

No Santuário de Fátima, o traço de Siza é reduzido ao essencial. Tem a função de contorno da figura, na sua volumetria fundamental, e na pesquisa da:

(...) aproximação ao tema, a expressão do desenho, procurando a espontaneidade, a qualidade do traço executado em segundos: a segunda espontaneidade, resultado do trabalho sem pausa e da libertação do trabalho. Seleccionava o que melhor me parecia para cada episódio (Siza, 2008: 396).

A natureza da linha é gestual, dinâmica e vibrante (Figura 5). Pequenas variações na expressão da espes-sura e da intensidade, numa estrutura sem densidade de linhas. Linha continua com terminações arrastadas. Certeira na orientação e na posição. Utiliza a simplicidade visual como estratégia que capta o contorno do instante no limiar do reconhecimento da forma (Barton e Barton, 1987). E a economia da linha na expressão visual com uso de um mínimo de recursos formais. O autor é consciente das limitações do traço na impossibi-lidade da figuração (Siza, 2008). Reduz as linhas para organizar a cena com aumento de sentidos e significados.

Na procura do traço, a expressão das personagens vai para lá da anatomia, desperta a memória pela síntese, com uma marcada importância no movimento das figuras. Segundo Higino (2008), a primeira cena que Siza desenhou foi a queda de S. Paulo do cavalo e a cena de maior emoção foi o abraço entre Pedro e Paulo, representada na Figura 6.

O conjunto final de desenhos perfaz um total de 19 situações: 2 gravuras na pedra e 17 cenas no azulejo. Na pedra a Sul está representado S. Pedro com as chaves, a que se segue: 1. Pesca milagrosa, 2. Tu és Pedro, 3. Transfiguração, 4. Lava-pés, 5. Negação e arrependimento, 6. Chorando por Pedro, 7. Crucifixão (Figura 7). Na pedra Norte está uma gravação de S. Paulo com o livro da Palavra de Deus, ao qual se segue: 1. Denúncia dos cristãos, 2. Cristãos perseguidos, 3. Queda;, 4. Quem és Tu, Senhor, 5. Cura da cegueira, 6. Batismo, 7. Encontro de Pedro e Paulo, 8. Cristãos orantes, 9. Viagens apostólicas, 10. Martírio (Figura 8).

São desenhos na continuidade do traço personalizado do autor, que define a singularidade do gesto e a identidade da linha, que o identifica e onde há o reconhecimento de uma marca autoral: “Desenhar à Siza” (Machabert e Beaudouin, 2009).

4. A Parede como Suporte de DesenhoNa Galilé dos Apóstolos, a parede que serve de suporte aos desenhos é uma quadrícula de azulejos vidra-dos (14 x 14 cm), com juntas demarcadas e com um pé-direito de 4.5 m e uma área de 675 m2. Serve de teia aos desenhos porque quebra o traço, e aumenta a sensação de movimento.

A figura é isolada do fundo, sem descrição do contexto, e ocupa uma área reduzida. O cenário branco da parede contrasta com a linha preta que se desdobra pelo reflexo da superfície alterando a ideia bidi-mensional e monocromática do desenho (Figura 9).

O Desenho reproduzido em painel de azulejo não é um trabalho exclusivo para Siza Vieira. Já o tinha

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Fig. 1. Fotografia do Corpo da Basílica da Santíssima Trindade, Fátima, Portugal (2007) (em cima) e Desenho do Santuário por Alexandros Tombazis (2007) (em baixo). Fonte: foto própria (2014).Fig. 2. Comparação entre as representações de Miguel Ângelo Buonarroti (à esquerda), Caravaggio (ao centro) e Siza Vieira (à direita) da Queda de S. Paulo do Cavalo (em cima) e Crucificação de S. Pedro (em baixo), Fátima, Portugal, 2007. Fonte: fotos próprias (2014) à direita, em cima e em baixo.Fig. 3. Desenhos de Matisse nos painéis de azulejo e intervenção da luz natural filtrada pelos vitrais. Fotografia da Capela do Rosário de Vence (1949-1952), França (Lepine, 2013).

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feito na igreja de Marco de Canaveses ou na estação de metro de S. Bento no Porto. Na Galilé dos Apóstolos, Siza não desenha directamente sobre o azulejo. Utiliza papel branco, em formato A3 (Siza, 2008: 396), longe da (ir)regularidade da quadrícula. Para além da neutralidade do suporte, o desenho também não é condicionado pela escala final. São posteriormente fotocopiados e ampliados à escala real. Estas transfor-mações foram ajustadas e testadas em obra, obrigando a mudanças, como nos relata o autor:

Fixei nas paredes do escritório a ampliação de dois desenhos, tentando encontrar a justa escala. Em seguida co-loquei um deles em Fátima, no lugar que lhe estava destinado. Ajustamos a dimensão, tendo contudo de mudar a ordem (...). Esta nova distribuição obrigou a significativas alterações (Siza, 2008: 396).

5. A Morfologia do Espaço e o Desenho de Luz na Organização Visual Os parâmetros visuais manipulados pelo desenhador na articulação entre as linhas desenhadas na parede e a sua participação no espaço são: a morfologia e a luz. A morfologia do corredor e da parede na organização visual dos desenhos, a partir da proporção e do ângulo do observador. E a luz na expressão da cor e do reflexo através das variáveis peso e movimento.

5.1. A Forma e a Proporção EspacialA Galilé dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, onde desembocam as escadas e as rampas de acesso público à Zona de Reconciliação, é um longo corredor (150 m x 6.75 m) que funciona como coluna de distribuição. Um interstício instável e de passagem efémera. Um trânsito apressado, cortado por sucessivos vãos: “As portas de acesso às capelas pontuavam a parede em ritmo irregular” (Siza, 2008: 395). Aqui, o autor valoriza o corredor nas suas condicionantes de fluxo e circulação.

A proporção do corredor é um parâmetro espacial de divisão visual da obra, dado que as medidas do corredor não permitem uma visão panorâmica de toda a narrativa representada. A proporção do espaço

Fig. 4. Desenho de Matisse para a Capela do Rosário de Vence (1949-1952), França (à esquerda) (Plum, 2014) e Desenhos de Siza Vieira “S. Pedro com as chaves” e “S. Paulo com o livro da Palavra de Deus” (ao centro e à direita, respectivamente), Fátima, Portugal (2007). Fonte: fotos próprias (2014) ao centro e à direita.

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Fig. 5. Detalhes do Desenho “Martírio” com linha de contorno gestual, dinâmica e expressiva, Siza Vieira, Fátima, Portugal, 2007. Fonte: fotos próprias (2014).Fig. 6. Desenho “Encontro de Pedro e Paulo”, Siza Viera, Fátima, Portugal, 2007. Fonte: foto própria (2014).Fig. 7. Pormenores de Desenhos do lado Sul do Painel sobre a vida de S. Pedro: “Pesca Milagrosa”, “Tu és Pedro” e “Transfiguração” (cima da esquerda para a a direita) e “Lava-pés”, “Negação e arrependimento” e “Chorando por Pedro” (baixo da esquerda para a a direita), Fátima, Portugal, 2007. Fonte: fotos próprias (2014).

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Fig. 8. Pormenores de Desenhos do lado Norte do Painel sobre a vida de S. Paulo: “Denúncia dos cristãos”, “Cristãos perseguidos” e “Quem és Tu, Senhor” (cima da esquerda para a a direita) e “Cura da Cegueira”, “Batismo” e “Viagens apostólicas” (baixo da esquerda para a a direita), Fátima, Portugal, 2007. Fonte: fotos próprias (2014).Fig. 9. Desenho “Cristãos Orantes”, Siza Viera, Fátima, Portugal, 2007. Fonte: foto própria (2014).Fig. 10. O longo corredor da Galilé dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo (à esquerda) e entradas de luz do Pátio S. Pedro (cima à esquerda) e Pátio S. Paulo (cima em baixo), Fátima, Portugal, 2007. Fonte: fotos próprias (2014).

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destrói a continuidade visual, por isso é o principal parâmetro de gestão e organização visual das cenas dese-nhadas. O ângulo do observador e o enquadramento são restringidos pela largura do corredor e pela altura da parede, que podemos classificar como uma visão de recorte. A proporção secciona a atenção. Favorece a visualização cena a cena, de forma oblíqua, em quadros sem moldura (Higino, 2008). Mas não é um espaço museológico, não é possível recuar em profundidade para abarcar a história completa. Os desenhos acompa-nham a função do corredor.

5.2. A Iluminação e o Peso VisualA Galeria é iluminada por dois pátios e pelas entradas de luz provenientes das duas rampas laterais (Figura 10). Acrescem ainda, três acabamentos construtivos que determinam a qualidade da luz: os espelhos de água do pátio, as paredes envidraçadas e o revestimento de azulejo da parede de desenhos. A luz desempenha as funções de filtro e transformação do reflexo da água, do vidro e do azulejo sobre o espaço interior, em alusão à claritas de São Tomás de Aquino.

Um mapa de sombras e reflexos que amplia o espaço e multiplica imagens, nas suas diferentes saturações e valores cromáticos, dependente da intensidade, incidência e direcção da luz. Acrescenta matizes com varia-bilidade ao longo do dia. Cria atmosferas, misticidade e desperta para uma apropriação fenomenológica do genius loci (Norberg-Schulz, 1991) . A luz emociona e evoca o recolhimento, e os espelhos de água representam criação do mundo (S. Pedro) e o baptismo (S. Paulo).

Esta diminuição do peso visual através da luz, com leitura simbólica e espiritual, é a recusa da homoge-neidade e procura do espaço sagrado com valor existencial (Eliade, 1999). Uma alusão aos espaços sagrados tradicionais, seja a luz zenital do Panteão ou os vitrais das igrejas góticas (Norberg-Schulz, 2004). De noite, a luz artificial ilumina o lago e prolonga a ilusão. A luz enaltece o painel de desenhos, a água agita a figura, e com isso Siza Vieira faz uma homenagem à plasticidade da arquitectura.

ConclusãoA leitura que Siza Vieira faz do sítio é determinante para a implantação do seu painel de desenhos. Esta leitura determina os parâmetros visuais que utiliza para caracterizar cada um dos 3 elementos do seu trabalho: i) a simplicidade da linha das figuras narradas, ii) a trama e o reflexo da parede de azulejo e iii) a proporção e a luz do espaço da Galeria.

Com estratégias baseadas na recuperação da memória e no reconhecimento da simplicidade visual, as semelhanças com Matisse são visíveis: a linha preta, a quadrícula de azulejo branco, a figura humana estilizada, a tensão do corpo na narrativa, o gesto do traço e a linha que se move pelas transparências de luz sobre o su-porte e sobre o espaço. Esta simplicidade visual, caracteristica exemplar do seu traço, é aquilo que nas palavras de John Maeda (2006) no seu livro The Laws of Simplicity, chamaria eliminar o que é obvio e adicionar o que é signifivativo. É nesta intencionalidade e no prolongamento do estímulo da expressão artistica comtemporânea dada pelo Vaticano II, que se caracterizam os desenhos do autor:

A visita ao primeiro painel, colocado no local pretendido, emocionou-me profundamente. A su-perfície irregular e branca do azulejo enchia-se de cor e de reflexos cambiantes. O nítido traço negro tornava-se vibrante (Siza, 2008: 397).

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Caravaggio, Michelangelo (1600-1601). Conversione di san Paulo. Óleo sobre tela, 230x175cm. Cappella Cerasi, Roma. [Consult. 2014-06-01] Repro-dução de pintura. Disponível em <URL: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/6/67/Conversion_on_the_Way_to_Da-mascus-Caravaggio_%28c.1600-1%29.jpg/640px--Conversion_on_the_Way_to_Damascus--Caravaggio_%28c.1600-1%29.jpg>

Caravaggio, Michelangelo (1600-1601). Crocifissione di San Pietro. Óleo sobre tela, 230x175cm. Cappella Cerasi, Roma. [Consult. 2014-06-01] Reprodução de pintura. Disponível em <URL: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f7/Caravaggio_-_Martirio_di_San_Pietro.jpg/640px--Caravaggio_-_Martirio_di_San_Pietro.jpg>

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A procissão de São Cristóvão em um local sui generis

The procession of Saint Christopher in a sui generis site

Sigrid Hoppe*

*brasil, doutoranda do Programa de Pós-graduação em ciências sociais da universidade estadual do rio de Janeiro (uerJ). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido em 3 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Neste estudo de base etnográfica, busco com-preender as múltiplas relações entre catolicismo, vida social e cuidados médicos em um hospital psiquiátrico brasileiro conhecido como Colônia Juliano Moreira, onde, há aproximadamente 50 anos, comemora-se o dia de São Cristovão. Através de depoimentos e histórias de vida dos devotos procuro entender o sentido atribuído a esta devoção em um local sui generis.Palavras chave: devoção / São Cristóvão / hospital /psiquiatria / motorista.

Abstract: In this ethnographic study, I seek to under-stand the multiple relationships between Catholicism, social life and medical care in a brasilian hospital of men-tal illness, where, about 50 years ago, the drivers of the hospital still continue relevant maintaining the tradition in a tribute of St. Christopher. Through testimonies and life stories of the devotees try to understand the meaning attributed to this devotion in a sui generis site. Keywords: devotion / Saint Christopher / hospital / psy-chiatry / driver.

IntroduçãoO complexo hospitalar Colônia Juliano Moreira foi instalado na década de 1920 no bairro de Jacare-paguá, Rio de Janeiro, zona rural na época e foi povoado por pacientes, e funcionários que aí residiam.

O convívio social entre funcionários e pacientes sempre foi incentivado por meio de atividades de coletivos como, por exemplo, futebol, exibição de filmes, além da vívida religiosidade popular católica. Tecia-se assim uma rica vida social entre os moradores, sendo que ainda hoje muitas práticas católicas continuam sendo atualizadas, passados quase um século de sua existência. Em alguns momentos elas emergem com mais intensidade e, em outros com menos. No entanto, a devoção a São Cristóvão se destaca por sua permanência. Desta forma, seja em função da busca de proteção para a realização de seu trabalho e/ou como afirmação identitária de um grupo particular - os homens que trabalham no setor de transporte do hospital- anualmente, é realizada uma missa, seguida de procissão com cortejo de carros e finalizada com uma festa em homenagem ao santo padroeiro.

Os relatos dos moradores mais antigos indicam que a “brincadeira” de São Cristóvão já existia em 1963, ano em que muitos trabalhadores foram incorporados como funcionários ao hospital, entre eles, os motoristas de ambulância e de ônibus que faziam o transporte de pacientes e funcionários respectivamente.

Até o presente momento os depoimentos e as inúmeras fotografias coletadas sinalizam para o fato de que a festa de São João foi também muito importante para esta população. Porém, na primeira década do século XXI a festa de São João não encontrava mais ressonância entre os moradores da CJM, ao con-trário das de São Cristóvão e mais recentemente as de São Jorge disputadas por vários grupos. Mas, entre as diversas manifestações devocionais católicas consideradas importantes no passado recente como São Judas, Nossa Senhora e São João, a devoção a São Cristóvão foi a única que persistiu e continua sendo transmitida entre gerações há pelo menos 50 anos.

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A procissão de São Cristóvão em um lugar sui generisNo dia 25 de julho de 2011 acompanhei de perto pela primeira vez a festa de São Cristovão na Colônia Ju-liano Moreira. Uma das primeiras observações realizadas foi que são os motoristas que pedem às beatas para que intercedam junto à paróquia de maneira a garantir que no dia do padroeiro um padre reze uma missa festiva em uma casa onde outrora dormiam os pacientes. Há alguns anos este local foi transfor-mado em igreja com a disposição de móveis e objetos característicos como, por exemplo, genuflexórios, cruz, imagens de santos e pequenos quadros com episódios da via crucis.

Na ocasião, havia poucos fiéis e, no início do culto, um dos motoristas passou uma cesta onde os demais colocaram as chaves de seus carros. Uma senhora que ajudava o padre, chamou a atenção que no dia 25 de julho celebra-se São Tiago e que São Cristóvão é comemorado no mesmo dia.

A missa teve início com a preparação ritual do padre e, em seguida, a homilia versou, longamente, sobre São Tiago. São Cristóvão, pouco mencionado, foi chamado de imitador de Cristo e os fiéis foram exortados a seguirem seu exemplo.

Para compreender a devoção a São Cristóvão é preciso recorrer ao martirológico romano onde consta que um homem de nome Cristóvão sofreu martírio e foi morto por flechas e decapitado, após ter sobrevivido a chamas. Cristóvão era um homem muito alto e de aparência assustadora que desejava servir ao mais poderoso dos reis. Após servir a um rei e ao demônio, porém ao notar que o demônio tinha medo de Cristo, desejou servir a Cristo e passando a buscá-lo foi aconselhado a transportar todos que passassem por certo rio profundo fazendo uso de sua estatura elevada e força. Certo dia, uma crian-ça pediu para ser transportada até a outra margem. Quando Cristóvão pôs a criança em seus ombros e entrou no rio, a água começou a subir e, ao mesmo tempo, a criança tornou-se cada vez mais pesada. Com esforço, Cristóvão conseguiu deixar o menino na outra margem quando então este revelou ser Jesus Cristo. Cristóvão, portanto, havia carregado o mundo inteiro e o criador do mundo em seus ombros. O nome latino Christophorus que significa “o que leva Cristo”.

Durante a celebração percebi um certo contragosto do padre em celebrar o culto a São Cristóvão, o que parece indicar uma disputa pela legitimidade dos santos e dos cultos a eles. Após o sermão, houve leitura de ensinamentos e, então, uma jovem com sua guitarra convidou os presentes a acompanharem-na cantando uma canção. Como muitos fiéis chegaram durante o ofício, no momento da canção, muitas vozes se fizeram ouvir. A cerimônia prosseguiu com a oferta monetária, a comunhão e, finalmente, a benção das chaves seguida de orações. O padre finalizou o rito chamando São Tiago e São Cristóvão de santos peregrinos.

Um grande alvoroço marcou o final da missa em virtude da busca das chaves pelos seus respectivos donos e pela saída da imagem do santo, que foi colocado na parte aberta de uma pick up. Do lado de fora do pavilhão/igreja, alguns fiéis entraram, apressadamente, nos carros organizando as caronas para que todos os envolvidos pudessem participar do evento fazendo o trajeto da peregrinação.

O animado cortejo saiu das proximidades do pavilhão/igreja, fez o trajeto que passou na frente dos pavilhões hospitalares, na rua residencial e na via principal, onde está localizada a portaria e a cancela de entrada para o complexo hospitalar. A procissão foi até o núcleo histórico, região onde se encontram uma capela e as ruínas de alguns prédios do hospital, em frente ao chafariz.

O cortejo foi composto por cerca de trinta automóveis entre carros de passeio e institucionais, foi ruidoso e alegre. As buzinas foram tocadas, insistentemente, durante o trajeto cortando o silencio habi-tual desta região. Ao passar pelas ruas onde há casas, a buzinada atraiu os moradores para as janelas e portas fazendo-os também participar da “brincadeira” ao acenarem sorridentes para os passantes.

O final do percurso foi marcado pela benção dos carros pelo padre através da aspersão de água

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benta com um ramo de folhas. Findado o trajeto, chaves e carros benzidos, a população se dispersou e o santo retornou a seu lugar de destaque na “garagem”. O sentimento geral é que a partir daí estariam assegurados por mais 364 dias que nada de grave deveria ocorrer com os carros e seus motoristas.

Terminada a obrigação com o santo, seguiu-se o tradicional momento em que apenas os motoristas, seus convidados e familiares partilham de um churrasco com cerveja, conversas e música. Segundo o chefe do setor é neste momento que é possível “juntar os de hoje com os de amanhã”, pois os motoristas aposentados também par-ticipam. Trata-se de uma ocasião de conectar o presente com o passado, de assegurar a continuidade da tradição.

Percebo que o caráter agregador (comunitas) do ritual de comensalidade consegue romper as dife-renças entre os tempos, “o hoje e o amanhã” e, entre as crenças, uma vez que mesmo os não católicos que não participaram da missa nem da carreata, participam desta confraternização, momento este em que é reafirmado a solidariedade com o grupo ocupacional.

O receio da tradição “acabar” aparece em um depoimento no qual é mencionado o pouco interesse dos funcionários em continuar a participar dos festejos de São Cristovão. A princípio apenas um funcionário continua indo à missa, os demais são crentes, espírita ou não se interessam pela missa apesar de participarem da procissão e da festa. O atual chefe do setor comenta que “quando eu for embora, tudo vai acabar”, “sem o chefe a festa não vai acontecer”. Quando se tornou chefe, lembra que comprou as flores do santo e chaveiros e que depois de benzidos foram entregues aos funcionários que ganharam também vasinhos com flores.

Na transmissão da devoção, a iniciativa ou o papel do chefe é fundamental. Ao longo dos anos, fo-ram os chefes do serviço que comunicaram à direção do hospital que no dia do santo não tem expediente no setor, “mas deixam um carro preparado se um paciente for sair”.

A missa, a carreata e as benções realizadas na capela e nas ruas são amplamente abertas à parti-cipação de todos os moradores e demais convidados, contudo o churrasco após as celebrações sagradas costuma ser restritas aos motoristas e suas famílias.

A festa, regada à comida e bebida alcoólica, é um momento de comunhão entre os trabalhadores e de manutenção da autoridade do chefe do setor que deve arcar com a maior parte dos custos, enfeites e lembranças do festejo. Percebe-se que a devoção é passada através da profissão, no labor.

Camilo, motorista em atividade, nos contou que sua família não era católica e que São Cristóvão era desconhecido para ele até começar a trabalhar na “colônia”. Segundo ele:

Quando comecei a trabalhar, passei a ser devoto porque é uma “religião de motorista” e me tornei o encarregado de colocar as flores no altar no dia em que seu “falecido” chefe pediu para que ele comprasse as flores para a festa do santo.

Ao que tudo indica a devoção não está relacionada ao pagamento de promessa nem a milagre, nenhum dos motoristas entrevistados mencionou milagres. Ao ser perguntado sobre milagres do santo, Camilo, afir-mou: “não acredito muito nestas coisas, acredito em Deus e na tradição”, “a gente conta com a tradição”.

A reiterada obrigação de realizar o culto ao santo para proteção e a independência de promessa e milagre para a continuidade da devoção é compreendida por Ribeiro (apud Guttilla, 2006) como sendo uma devoção de aliança, pois o culto não é estabelecido em função de um pedido, trata-se de uma relação permanente de devoção e proteção. O fiel espera que o santo seja seu protetor celeste, o culto é feito como uma obrigação de agradar o santo que o protege e não como forma de pagar promessa ou pedir favores.

A valorização do sentimento de aliança também pode ser observada entre os motoristas na cons-tituição de suas identidades profissionais. Alguns depoimentos relacionam as dificuldades no ofício às vidas dos pacientes “atendidos”. Conforme um entrevistado:

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A gente dá sempre, dá prioridade ao paciente porque a infelicidade dele é porque estamos aqui. Também outra coisa, quem menos dá trabalho para gente é o paciente, quando o paciente quer alguma coisa é porque ele tá pre-cisando mesmo do serviço. Então é o que menos me dá dor de cabeça. Eu nunca pego um paciente para passear nem nada, é atendimento médico, é prioridade deles, então a gente sempre colocamos na cabeça que a priori-dade é sempre o paciente, o paciente sempre em primeiro lugar. As outras coisas todas podem passar, ele não.

Quando o isolamento geográfico da região era maior do que é hoje e não havia transporte públi-co, as atividades dos motoristas eram mais significativas para o dia-a-dia do hospital. Um entrevistado menciona que havia um ônibus só para os médicos e outro para os demais funcionários. Ele dirigia carro também, indo “a qualquer hora” buscar os médicos que moravam na zona sul da cidade. Por outro lado, nos casos de “pacientes fugidos”, os motoristas é que iam buscá-los.

Além de ir atrás de “pacientes fugidos” e de buscar médicos “a qualquer hora”, outra atividade re-corrente do setor transporte era levar os pacientes de um pavilhão a outro. Na antiga garagem, há ainda a bomba de água que era usada para lavar os carros que voltavam sujos de vômito dos pacientes.

Em outros anos, não precisados pelos entrevistados, a homenagem a São Cristóvão durava um dia inteiro tendo como principais atividades a missa celebrada pelo padre responsável pela paróquia, o cortejo de carros pelas principais ruas do hospital, a benção de chaves e de carros e a festa com churrasco e bebida alcóolica nas instalações do setor de transporte.

Segundo os motoristas, a proteção agora é de outra ordem, como demonstra o seguinte depoimento:

Poxa, sou devoto, porque nós somos motoristas não é? Graças a Deus São Cristóvão tem abençoado bastante a gente aqui. Eu tenho 34 anos de repartição, nunca aconteceu nenhuma coisa séria com os carros, são pedaços de carros, mas nunca morreu ninguém, já até pegou fogo em carro, mas não tinha paciente nenhum na hora, motorista saiu. Então alguma coisa também, não é São Cristóvão tem nos protegido bastante. Eu mesmo fiz um pedido (...) de que a gente queria manter, enquanto tivesse na ativa, essa tradição. E a gente vem mantendo, a missa, a procissão.

ConclusãoTransportar doentes mentais crônicos parece significar uma semelhança com à ação de São Cristóvão ter carregado Cristo com todo o peso no mundo na forma de criança. Parece haver correlação entre a inocência em Cristo criança e a inocência dos doentes mentais que “o destino os colocou ali”, a tarefa é árdua e penosa, mas é entendida como compensatória.

A maioria dos informantes relaciona a razão de seu trabalho às infelicidades vividas pelos doentes, sendo que estes motoristas utilizam um discurso de conduta responsável no trabalho, marcando a singu-laridade deste ofício no hospital, bem como sua relevância social.

Referências Guttilla, Rodolfo (2006). Witzig. A casa do santo e o santo

da casa: um estudo sobre a devoção a São Judas Tadeu, do Jabaguara. São Paulo: Landy Editora.

Oliveira, Pedro Ribeiro de (1985). Religião e Dominação de Classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes.

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O Santuário de Frei Damião de Bozzano no Convento de São Félix da Cantalice, em Recife-Pernambuco-Brasil

The Sanctuary of Fray Damian Bozzanoin the Convent of St. Felix of Cantalice in Recife-Pernambuco-Brazil

Sylvana Brandão de Aguiar*

*brasil, Professora, universidade federal de Pernambuco (ufPe), centro de filosofia e ciências humanas, departamento de antropologia e museologia. e-mail: brandã[email protected]

artigo completo submetido a 03 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Este artigo procura compreender trajetórias da vida de Frei Damião, em especial, o tempo que antecede sua chegada ao Brasil na década de trinta do século XX. Para tanto, nos utilizamos de fontes primárias e secun-dárias e cremos estar inseridos nas sendas da História social, ou seja, a tentativa de entender personagens em sua época e esta mesma época através do personagem.Palavras chave: devoção / santuários / missões / frei Damião.

Abstract: This article seeks to understand the life trajec-tories of Fray Damian, in particular, the time before his arrival in Brazil in the thirties of the twentieth century. Therefore, we use the primary and secondary sources and we believe we are in the paths of the Social History. In other words, we aim to understand the characters in his time and this same era through the character.Keywords: devotion / sanctuary / missions / Fray Da-mian / practices.

IntroduçãoFrei Damião de Bozzano, da Província dos Capuchinhos de Lucca, na Itália, chegou ao Brasil em 1931 e, durante 66 anos realizou missões pelo Nordeste brasileiro, somente interrompidas pelo agravamento de sua saúde e morte, ocorrida em 1997. Na Capela de Nossa Senhora das Graças, localizada no Convento de São Félix da Cantalice, no Bairro do Pina, na Cidade do Recife, em Pernambuco, Brasil, está sepultado o seu corpo, para onde convergem centenas de peregrinos de todo o Brasil e do exterior, especialmente da Itália. Seu processo de beatificação está em curso desde 2003.

Nossas pesquisas, ao longo dos últimos dez anos, indicam que ele é considerado um santo taumaturgo, protetor e conselheiro dos mais humildes, embora sua devoção tenha se espraiado pe-las elites. Sua imagem está no imaginário coletivo, bastante associada ao Pe. Cicero Romão Batista que atuou com bastante ênfase por todo Estado do Ceará, chegando a ser prefeito do Juazeiro e Vice-governador do Estado e que teve suas ordens suspensas pela Igreja Católica por acusações de fanatismo e ligações políticas.

Damião de Bozzano era filho de agricultores, assim posso crer que como todas as crianças daquela época, daquela região na Itália, teve uma educação regrada, em primeiro lugar pela religião e, dela, um tipo específico de moral rígida. Posso imaginar a dureza de uma vida onde, independentemente das esta-ções, se acordava cedo e, antes de qualquer coisa, a devoção era a primeira atividade do dia que poderia se seguir, da vida que se acreditava existir e que, depois de muitos sacrifícios de sentimentos e gozos materiais, haveria de existir um céu, um paraíso compensador.

Sua formação religiosa, cuja influência familiar é reconhecida, foi se moldando também ao ingres-sar no Seminário Seráfico de Camigliano no ano de 1911. Em julho de 1914, Pio Gianotti iniciou seu no-viciado no Convento da Vila Basílica, antigo convento de formação capuchinha, onde recebeu o nome de Fr. Damião de Bozzano, passando a viver em total separação do mundo (Lazzari 2002:21). Professou os

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Fig. 1. A estátua de Frei Damião de Bozzano, na área externa do Convento de São Félix da Cantalice, cercado de ex votos nas formas de fitas com pedidos e agradeci-mentos. Recife, Pernambuco, Brasil. Fonte: PrópriaFig. 2. Capela de Nossa Senhora das Graças no Con-vento de São Félix da Cantalice da Cantalice, onde está sepultado o corpo de Frei Damião de Bozzano. Recife, Pernambuco, Brasil. Fonte: Própria

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primeiros votos publicamente no ano de 1915. Deu continuidade ao seu percurso formativo no convento dos capuchinhos em Lucca, seguindo os estudos teológico-filosóficos.

Tendo sido ordenado sacerdote em 1923, Frei Damião veio concluir seus estudos e obter a láurea em Teologia, Filosofia e Direito Canônico aos 24 de julho de 1925, na Universidade Gregoriana. Com a formação obtida Frei Damião retornou ao Convento de Vila Basílica onde assumiu a função de vice mestre dos noviços.

Segundo Gianfranco Lazzari, em Massa “se inicia como pregador e confessor, sobretudo no perí-odo quaresmal” (Lazarri 2002:21). Ali assumiu também a função de confessor dos estudantes até 1931 quando, no capítulo provincial, foi indicado entre os frades que deveriam viajar ao Brasil para assumir, pela Província de Lucca, a nova responsabilidade: suceder aos confrades napolitanos na Missão de Per-nambuco, assumindo a atividade missionária dos Capuchinhos na região. Em junho de 1931 chegava ao Brasil, como já foi ressaltado, Frei Damião de Bozzano.

Chegando ao Recife para o Convento de Nossa Senhora da Penha, prédio contíguo a Basílica de Nossa Senhora da Penha, sua primeira moradia, Frei Damião teria como primeiro comprometimento o estudo da língua. Para pregar ao povo seria necessário o conhecimento do português. No Nordeste do Brasil, Frei Damião assumiu um empenho diferente daqueles anteriormente desempenhados: tornou-se missionário entre o povo, um missionário itinerante, viajante, corajoso, desprovido de ambição, aberto ao improviso, uma vida aberta a intempéries.

No ano de sua chegada realizou pregações na cidade de Gravatá, a primeira cidade do interior do estado de Pernambuco a receber o frade capuchinho. Inicialmente se locomovia em lombo de animais e num pequeno ônibus coletivo. Incansável pregador, ajudou a criar fraternidades e a difundir a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

A devoção a Nossa Senhora era outra preocupação do frade que ajudou a difundir esta devoção e a mantê-la. A revista Dom Vital de junho de 1941 traz uma publicação de Frei Damião sobre esta devoção, instruindo sobre as origens e a importância da devoção (Bozzano 1941). Nesse sentido, podemos dizer que sua atividade missionária contribuiu para disseminar as novas devoções que a Igreja Católica vinha procurando difundir entre a população, desde o período da romanização.

Em todas as suas missões no Nordeste brasileiro Frei Damião de Bozzano cuidou de imprimir no povo o sentimento e as práticas religiosas. Insistindo no cumprimento dos sacramentos como: a con-fissão, a comunhão e o casamento. Embora em atividade missionária constante Frei Damião assumiu a função como membro do Conselho Diretor da Missão de Pernambuco ao ter sido eleito em 1934.

Em 66 anos de missões Frei Damião percorreu quase todos, senão a totalidade dos 860 municípios nordestinos entre os Estados de Alagoas e Ceará.

As ‘Santas Missões’ realizadas por Frei Damião de Bozzano não possuíam conotação social. Nelas, o caráter mais peculiar era a preocupação com a assistência religiosa como um fim, os ensinamentos da igreja e a inserção do povo nas práticas institucionais constituíam o principal objetivo. Suas missões eram sempre incansáveis, e duravam o dia inteiro. Apenas com pausa para o café da manhã e o almoço. Sempre buscando conversar e atender a todos.

Nas seis décadas de missões pelo interior do Nordeste, Frei Damião de Bozzano mantinha um ritmo que muito faz lembrar a descrição acima. Suas missões em uma cidade geralmente duravam uma semana. São nessas missões que se inicia sua fama de santidade entre o povo que nele viam ‘um homem de Deus’, ‘um padre diferente’ e começam a proliferar os relatos de milagres divulgados pelo povo. Milagres que para frei Damião não existiam.

O sentimento de admiração do povo para com ele foi construído nos longos anos de missionário

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pelo nordeste. Em artigo escrito na REB (1979), Abdalaziz de Moura assim descrevia Frei Damião: “De origem italiana, se fez nordestino e conquistou com seu trabalho, seus milagres, suas pregações, a simpa-tia do povo” (Moura 1976).

Estabeleceu-se entre o missionário e o povo uma relação que ultrapassando a esfera puramente eclesiástica/institucional chegava à esfera da sacralidade, como se o frade fosse uma manifestação do divino em meio ao povo, embora fosse ele representante da instituição.

Como missionário Frei Damião possuía uma agenda cheia. Nas palavras de Pe. Liberato, vigário de Água Preta – PE, levar o capuchinho até a cidade era algo difícil: ‘Fiz reserva de data em 1972, e só em 1973 ele confirmou. ’ [...] ‘Mandei pessoas amigas lembra-lo. Não é brincadeira não. Ele não para, já tem compromisso para daqui a quatro anos. Na sua idade, qualquer outro não suportaria. Humanamente, é um milagre. ”

1.Confessor e Conselheiro: o dom da escuta em Frei Damião de BozzanoReconhecido como pregador, Frei Damião possuía, como os antigos missionários capuchinhos no Bra-sil, a autoridade e legitimidade de pacificar contendas entre grupos ou famílias. Esta característica dos Capuchinhos foi analisada num dos estudos sobre a atuação dos Capuchinhos no Brasil, onde se afirma que os religiosos eram chamados para a pacificação no meio popular quando havia algum tipo de revolta prestando assim um valioso serviço ao Estado (Miranda 2002).

Metodio da Nembro, em sua história dos Capuchinhos no Brasil também apresenta na sua obra e deixa entrever pelos documentos citados esse caráter pacificador da OFMCap que “ao mesmo tempo, essa prestava ajuda eficaz ao governo por desarmar e vencer o povo rebelado com a única arma que não tira, mas dá a vida: a palavra de Deus ”(Nembro 1958).

Esse aspecto do trabalho dos missionários parece ter permanecido na memória do povo, pois também Frei Damião foi convocado neste sentido. Um exemplo da sua ação pacificadora foi citado por Mario Souto Maior que diz ter sido o frade chamado para ir a Belém do São Francisco em 1981, em missão de paz para resolver as contendas entre algumas famílias da região. Caso resolvido, enquanto esteve vivo (Maior 1998).

Dois aspectos se destacam na prática missionária dos Capuchinhos: escutar e consolar. Aspectos que se tornaram característicos da pessoa de Frei Damião sendo um dos distintivos com relação a outros reli-giosos. Frei Damião possuía o dom da escuta, passava horas no confessionário ouvindo os fieis. Para aqueles que seguiam as missões do capuchinho, ele representava aquele que os escutava, aquele que aconselhava.

Sua aplicação ao confessionário o tornou, segundo Eduardo Hoornaert, um ‘conselheiro do povo’, que orientava nos problemas da vida, a quem todos confiavam e seguiam. Conselhos que se tornavam relevantes por serem justamente pronunciados por ele: “o fato de serem pronunciados pelo Frei lhes dava um vigor, uma relevância, uma poderosa convicção que se estendia por anos seguidos e não raras vezes pela vida inteira” (Hoornaert 1998).

Sua fidelidade ao povo e o testemunho de vida fizeram dele um frade admirado tanto por fieis quanto por demais religiosos. Seus ensinamentos hoje ecoam por todo o Brasil, em especial no Nordeste, principalmente no Convento de São Felix de Cantalice, entre os devotos que visitam seu túmulo durante todo o ano e, especialmente no período que marca seu nascimento e sua morte. A devoção à Maria é expressa nas orações e na recitação do terço, com rosários em mãos, oração que Frei Damião procurava estimular e difundir.

Esta fidelidade ao povo é afirmada por D. Marcelo Carvalheira em 1977 quando Frei Damião realizou missões na região do Brejo Paraibano.

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Impressiona a quantidade de confissões que Frei Damião teria escutado durante seus 75 anos de vida sacerdotal, cerca de dois milhões e meio de pessoas, possivelmente 100 pessoas por dia, segundo cálculos do Frei Gianfranco Lazzari , o que corresponderia ao dobro de São Pio de Pietrelcina (Lazzari 2003).

No Mapa das Missões pregadas por Frei Damião, elaborado pela Custódia Provincial de Pernam-buco no Brasil (1931-1949) há uma projeção numérica de atividades que não há como prescindir mais uma vez do adjetivo impressionante. Frei Damião teria pregado 11.218 vezes entre Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Foram realizados 5.490 casamentos, 155.889 crismas e 2,3 milhões de comunhões, cabendo destacar que os sermões precediam os sacramentos (Proneb 1949).

Em termos comparativos esses números significam afirmar um total de 4,3 vezes a população da cidade do Recife, capital de Pernambuco, na década de 1950.

Morreu como viveu. Humilde e desprovido de riquezas materiais. Hoje cultuado por milhões de fiéis que o têm como amigo fiel, conselheiro, confidente, curador de males do corpo e da alma, interme-diador entre Deus que pode mudar os rumos de um período de estiagem, de uma eleição política, de um jogo de futebol, de uma doença terminal, de uma dor mais banal, de uma desavença afetiva, de um desespero materno, de uma aquisição de um bem, de uma queixa contra um vizinho, de um sonho de ver um filho vencer materialmente na vida, do alcance de um bom matrimônio, enfim, dos mais profundos e misteriosos à razão instrumental que um fiel seja capaz de crer, rezar e alcançar. Frei Damião, ‘Meu Frei Damião’, há muito já canonizado pelas gentes brasileiras.

ConclusãoFrei Damião foi um exímio missionário, que se empenhou em pregar a palavra no Nordeste brasileiro, de forma diferenciada. Destacou-se por suas incansáveis missões e por sua atenção dirigida a impregnar os ensinamentos religiosos aos fiéis, ouvindo-os detalhada e calmamente. Recebeu uma conotação sagrada, pelos fiéis, por sua dedicação. Soube conviver e adaptar-se aos modos de vida simples, dedicando-se ao serviço missionário, por 66 anos, até sua morte.

Referências Bozzano, Damião de (OfmCap) (1941). Sagrado Cora-

ção de Jesús. In:Revista Dom Vital. Ano 5, nº 6-7.Hoornaert, Eduardo (1997). Dia 4 de junho de 1997 na

cidade do Recife: dia do enterro do Frei Damião.Lazzari, Gianfranco (Ofmcap) (2003). Padre Damiano

da Bozzano. Apostolo della riconcilizane e maestro di vita spirituale. Il “Padre Pio del Brasile” S. Gio-vani Rotondo: Edizioni Frati Cappuccini, 2003.

Lazzari, Gianfranco (Ofmcap) (2002). Padre Damia-no: um apostolo del Vangelovro. Il “Padre Pio del Brasile”. S. Giovani Rotondo: Edizioni Frati Cappuccini.

Mapa das Missões pregadas por Frei Damião de Bozzano da Custódia Provincial de Pernambuco no Brasil

(1931-1949). Arquivo da Proneb. Manuscrito.Miranda, Carlos Alberto (2002). A ação missionária

e pacificadora do Frei Caetano de Messina in: Brandão, Sylvana (Org.) História das Religiões no Brasil, v. 2 .[Consult.2014-06-02] Recife: Ed. Universitária da UFPE. ISBN:8573153067

Moura, Abdalaziz (1976). Frei Damião e os impasses da Religião Popular. REB, Vol. 36.Petrópolis: Vozes

Nembro, Metodio da (OFMCap.) (1958). Storia dell’attività missionária dei cappuccini nel Brasile (1538-1889). Roma: Istitutum Historicum Ord. Fr. Min. Cap.

O Poder de Frei Damião. Recife: Alternativa, 1977. Ca-dernos do Nordeste, Vol 2, Ano 1, out. 1977.

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Festas e ofícios, entre uma e outra romaria incelenças são entoadas afirmando identidades

Festivals and crafts, between one and another pilgrimage “incelenças” between are sung affirming identities

Valdir Nunes dos Santos*

*brasil, universidade do estado da bahia (uneb), departamento de educação campus x (dedcx). doutorando em belas-artes na faculdade de belas-artes da universidade de Lisboa. e-mail: [email protected]

artigo completo submetido em 3 de junho e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: Em Helvécia, Bahia-Brasil, as festas e os ofícios circunscrevem na rotina da vida diária a (re) construção de significados para afirmação de identidades. A pesqui-sa social na abordagem qualitativa em confluência com a prática etnográfica constituem o desenho metodológico. Consideramos suas performances culturais instituidoras da estética ancestral e de agradecimento aos deuses pela vida que se inventa e (re)inventa a cada instante.Palavras chave: Helvécia no extremo sul da Bahia /Fes-tas e ofícios / Performances culturais / Estética ancestral.

Abstract: In Helvetia, Bahia-Brazil, festivals and crafts circumscribe the routine of daily life (re) construction of meanings for identity assertion. Social research in the qualitative approach to the confluence with the ethno-graphic practice constitute the methodological design. We consider instituting their cultural performances of ances-tral aesthetics and give thanks to the gods for the life that invents and (re) invents every moment. Keywords: Helvetia in the extreme south of Bahia / Par-ties and crafts / Cultural performances / Ancestral aesthetic.

Iniciando a conversaAs festas e os ofícios em Helvécia ocupam espaços e tempos, sagrados e profanos, que ainda resistem às interferências históricas causadas pelas forças econômicas presentes na dinâmica e definição das condi-ções políticas e sociais da comunidade. Estas forças estão materializadas nas relações sociais dos morado-res e presentifícam-se de modo concreto na vida diária através do plantio desordenado da monocultura do eucalipto. E mesmo assim, as festas que acontecem neste contexto contribuem para a preservação e “permanência” do tecido histórico e cultural da comunidade. Elas relembram, revitalizam os estilhaços da memória coletiva, celeiro de significação simbólica e ancestral para afirmação das identidades. “Fes-tar” como nos sugere Brandão é a metáfora que ordena a subjetividade, a reinvenção e a insurgência, ao tempo que desordena a vida diária, pois “a festa é uma fala, uma memória, uma mensagem” para além da ordem na perspectiva do desregramento social, dos ensinamentos e aprendizados instituídos. (Brandão 1989). São com essas características figurativas, de representação e de ordenamento, da vida simbólica que a festa de São Sebastião e os ofícios em Helvécia são instituídos.

No que se refere à fundamentação teórica, o estudo se baseia nas sugestões conceptuais em Bakhtin (2010); Brandão (2009) Geertz (1989); Police, (2004); Richard Schechner (2003) e Souza, (2011). O con-torno metodológico foi traçado pela abordagem qualitativa da pesquisa social em Minayo (2010), o que nos possibilitou realizar uma análise interpretativa de dados resultante de uma prática etnográfica sus-tentada pela teoria da interpretação da cultura estruturada por Geertz (1989).

Ao entender a festa como um parêntese que se abre na rotina da vida diária, na qual os compor-tamentos humanos são, em geral, dedicados ao trabalho, e, por isso, repetidos, modelados pela redun-dância, para atender o formato da construção social, decidimos por analisá-la a partir do conceito de performance cultural e comportamento duplamente exercido de Richard Schechner. Justificando, “toda a

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gama de experiências, compreendidas pelo desenvolvimento individual da pessoa humana, pode ser es-tudado como performance”. (2003: 27). Deste modo, o estudo objetiva apresentar a festa de São Sebastião e os ofícios como instituidores de significados que os norteiam para além da labuta de trabalho, para além da sua própria vida distante de seus costumes, estes, destituídos pelo “caos instaurado pela sociedade branca” (Police 2004: 150), porém ainda sobrevivem nos quadros de memórias ancestrais e contribuem para a necessária reinvenção da vida em comunidade, pois “a festa afro-brasileira aspira à criação de um além” (Police 2004: 150).

Diante desta questão propomo-nos analisar estas ações performativas como práticas efetivas de afir-mação da ancestralidade negra como metáforas ordenadoras dos comportamentos sociais, pois “toda ação, não importa quão pequena ou açambarcadora, consiste em comportamentos duplamente exercidos” (Po-lice 2004: 150). O ato de “festar” e os ofícios encomendados circunscrevem na rotina da vida diária a (re) construção de significados para afirmação de identidades. Ao tempo que as analisamos como instituidoras da estética ancestral e memórias de agradecimentos pela vida que se inventa e (re)inventa a cada instante.

1. As festas em Helvécia alteram o tempo e instituem significadosApesar de a festa estar sendo, anualmente, realizada em um contexto no qual as interferências provocadas pela plantação de eucalipto são a ordem imposta à comunidade; mesmo assim, ela é um ato de comuni-cação, de ensinamentos e de formação estético-ancestral materializado em um parêntese que se abre na rotina do trabalho, assim:

tendo sido subvertida a ordem do mundo na nova situação imposta ao povo negro, as práticas festivas e os rituais teriam por objetivo reencontrar, restaurando-a simbolicamente, a antiga e justa ordem (Police 2004: 14-15).

Nas festas e nos ofícios, a comida, a bebida, a alegria e a vida corporal são elementos revividos, recuperados por meio da performnce e que a ação de “festar” os imprime como essenciais e altera a vida diária, “porque é a exaltação coletiva dos sentimentos de liberdade das amarras da vida cotidiana” (Souza 2011: 3). Nos espaços da festa e dos rituais as pessoas vivem a vida em sua dimensão, espiritual, material e utópica, como se ainda vivessem resquícios do que viveram os homens medievais nas suas festas, nas quais os elementos, material e o corporal, eram o fundamento da cultura cômica popular (Bakhtin 2010).

A festa, neste sentido, é por natureza, um evento celebrativo que institui a coletividade como ordem de acontecimento e, a necessidade de ocorrência, está intrinsecamente relacionada às insurgências ao trabalho. Em Bakhtin, “o princípio material e corporal é o princípio da festa, do banquete, da alegria, da ‘festança’ (Bakhtin 2011: 17).

Em Helvécia – o samba de viola, a dança dos Mouros e Cristãos, a corrida da bandeira, a dança bate--barriga e os ofícios – são o alimento ancestral e o princípio das festas, todas elas, compostas de rezas de agra-decimentos e são instituidoras de identidades. Esses elementos tecem o pano de fundo e instituem as cenas do espetáculo festa, mesmo sob as interferências das forças econômicas através da monocultura do eucalipto. E ainda constroem a utopia permanente de que ali se realizam festas e ofícios estritamente tradicionais.

Para Souza, a festa ocupa um espaço de “subversão porque é a possibilidade de fugir às regras impostas por instrumentos de poder” (Souza 2011: 3). Embora obedeçam a um calendário cultural anu-almente organizado e seguido pelos grupos designados para a tarefa de realizá-las - festeiros, rezadores, políticos e membros da Igreja - dentro das dimensões profano/sagrado, estas festas cumprem os objetivos religiosos na realização de suas novenas e ofícios, atividades comuns de antecipação à semana de festividades.

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A festa inicia-se na Igreja Matriz e se espalha por toda a comunidade, o espaço da festa se amplia à medida que não existe unidade espacial definida, pois a praça, ruas e casas dos moradores compõem o espaço da festa. Nestes diferentes espaços que dá-se uma ideia de “itinerância” às festas, os motivos são ampliados, exagerados e relacionam-se às festas populares brasileiras, o que nos levam a referenciar o realismo grotesco apontado por Bakhtin na obra de Rabelais ao afirmar que: “a abundância e a univer-salidade determinam por sua vez o caráter alegre e festivo (não cotidiano) das imagens referentes à vida material e corporal” (2010: 17). Há portanto, uma indissociabilidade entre o sagrado e o profano, entre a vida material – corpo, comida, bebidas, vida sexual e os rituais – pois todos partem, como nos sugere Bakhtin, do princípio material e corporal, continua o autor,

no realismo grotesco, o elemento material e corporal é um princípio profundamente positivo, que nem aparece sob forma egoísta, nem separado dos demais aspectos da vida (2010: 17).

Em Helvécia, esta compreensão de indissociabilidade do sagrado, profano e de coletividade tem um significado que remontam às origens da comunidade e que justifica esta questão como dois campos que se fundem, pois:

as fronteiras pouco definidas desses campos que oferecem margem às práticas devocionais, às orações, às simpatias, igualmente à diversão, ao lazer e à bebedeira, constituindo-se em momentos importantes de sociabilidade, mas também de resistências e contestação (Souza, 2004, p: 348). porém num momento ín-timo de agradecimento em rituais de rememoração das cenas vividas por seus ancestrais, os moradores de Helvécia vivenciam a festa e os ofícios, como se passassem a limpo a escritura feita e, pedissem forças para o recomeço de uma outra jornada, seja de trabalho ou de bençãos a receber, para este autor “[...] é característica [da festa] a imbricação entre o sagrado e o profano, cujo entendimento implica considerá--los em conjunto” (2004, p: 348). Como é possível observar nos textos imagéticos que ancoram a nossa leitura, 1 e 2:

Tomando esta análise como uma rede de significação que entrelaça o homem às teias que ele mesmo teceu, para aproximar da sugestão de Clifford Geertz; e ainda garimpando para compreender a dimensão

Fig. 1 e 2. Celebração do aniversário de morte do dono da casa, com o ofício e festa, acervo próprio.

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dessas práticas religiosas e profanas, como saberes locais, explicitamos aqui, uma definição de festa cons-truída por um festeiro e tamborileiro da dança bate-barriga há mais de setenta anos, diz o senhor Tito, “a festa pra mim é um momento sagrado e serve para impedir que nóis voltemo para a escravidão” (13 de maio de 2013). Sobre esta noção de festa e o fato de abordarmos como sugestão de sentido Geertz chama-ria de fundamentação empírica e ainda diria que é o sentido que melhor explica o fenômeno e que mais se aproxima da realidade local. A fala do senhor Tito estabelece uma estreita relação com o pensamento de Brandão ao afirmar que a festa é,

o desfile, o cortejo, a procissão, a folia e tudo o mais que possibilite fazer deslocar, entre as pessoas e pelos lugares que a própria festa simbolicamente reescreve e redefine: sujeitos, cerimônias e símbolos (1989: 13).

2. Itinerância, performatividade e tradição Os romeiros, antigos moradores de Helvécia, vivenciam o mundo, suas realidades e a fé de maneira obsti-nada, pois distantes de sua terra natal, muitos em função de terem vendido as suas terras para as empres-sas da monocultura do eucalipto, voltam anualmente em romarias, acompanhados de outros visitantes, para participarem da “ciência” da festa e dos ofícios, como alguns costumam definir esses fenômenos. Muitos acreditam que o cotidiano não pode ser construído dissociado de uma efetiva prática religiosa, acreditando assim, eles transitam entre a devoção e a obrigação cultural em processo de adaptação per-manente. Rezam na Igreja, nas casas e em diferentes oratórios para os quais são convidados, porém, na primeira segunda-feira depois da semana santa a reza de ofício é realizada, há mais de meio século, na casa de dona santa, como lugar de memória e de agradecimento. Expresso neste texto visual como guion para a construção de significados. Figura 3.

A cultura cumpre esse papel de levar as pessoas a transcenderem às suas próprias vidas e a exerce-rem uma missão, um ofício, uma festa, um rito ou uma vocação para a continuidade e o fortalecimento da memória e da própria existência por meio da repetição dos comportamentos vivenciados pelos seus ancestrais, [porque] “a festa é ritual, é sua realização repetitiva que permite reverenciar a memória do santo, por exemplo” (2011: 3).

Sem um processo de consciência, ou de conscientização pemanente, como nos adverte Paulo Freire (2001), à medida que essses eventos, festas, ofícios e suas performances culturais, declinam para a zona rural ocupam lugares e formatos de realização que se desenha a ancestralidade, como se as novenas se transformassem em ofícios e os significados fossem os mais próximos dos rituais afrobrasileiros, o que

Fig. 3. Oratório para adoração aos deuses na primeira segunda-feira após a semana santa, acervo próprio.

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equivale a dizer que ao se adentrar para a zona rural, os costumes herdados dos ex trabalhadores em regime de escravidão à época do Brasil Colônia estão em, certa medida, sendo preservados ao tempo que revitalizam a estética ancestral – a tradição. No exercício efetivo desses fenômenos recuperam-se, reconectam-se à comportamentos identitários e performáticos que haviam sido adormecidos, ou extra-viados nos escombros das memórias como suspeitamos das performances que foram perdidas, ocorre aí um processo de atavismo.

Considerações de um trajeto de estudoTomando por base os objetivos a que nos propusemos é possível considerar que a festa e os ofícios en-quanto práticas performativas, e movimentos por excelência de performatividades negras, são catego-rias das culturas de tradição que desenvolveram a capacidade de reatualizar os tempos, de revitalizar os comportamentos por meio dos recursos das memórias para reconstruir as identidades. As performances culturais inerentes aos movimentos da festa e dos ofícios em Helvécia são uma espécie de totem, por serem entendidas como células núcleos da estética ancestral – modela, orienta e exige rigor e fidelidade.

Afirmamos que essas performances por terem a capacidade de revitalização e de reinvenção iden-titárias, elas se preservam mesmo ocorrendo em meio às ações desordenadas das empresas de monocul-tura do eucalipto.

Há portanto, um grande deslocamento de valores espirituais, seja ele de modo natural em que rituais e performances negras se deparam com os comportamentos contemporâneos, ou porque a Igreja a depender de quem estiver à frente dos serviços paroquiais exige, altera e até proíbe certos modos e conteúdos inerentes aos rituais ou o mais comum, pela forças dominantes veiculadas em projetos e cur-rículos educacionais.

ReferênciasBakhtin, Mikhail Mikhailovitch (2009). Mikhail

Mikhailovitch 1895-1975. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem / Mikhail Bakhtin (V.N. Volochínov), 13.ª ed. São Paulo: Hucitec, 2009.

Bakhtin, Mikhail Mikhailovitch (2010). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Fran-çois Rabelais/Mikhail Bakhtin. São Paulo: Hucitec.

Randão, Carlos Rodrigues (1989). A Cultura na Rua. São Paulo. Papirus.

Randão, Carlos Rodrigues (2009). Prece e folia, festa e romaria. São Paulo: Idéias & Letras.

Freire, Paulo (2005). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Freire, Paulo (2001). Conscientização - Teoria e Prática da Libertação: uma introdução ao pensamento de

Paulo Freire. São Paulo: Centauro.Minayo, Maria Cecília de Sousa - org.- (1993). Pesquisa

social: teoria, método e Criatividade, 19, ed. Petrópolis, RJ: Vozes.Police, Gérard (2004). “A festa afro-brasileira”. In Maes-

tria, 2, 11-24. Souza, João Carlos de (2004). “O Caráter religioso e

profano das festas opulares: Corumbá, passagem do século XIX para o século XX”. In

Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 24, n.º 48, pp. 331 - 351. Souza, João Valdir Alves de (2011). A festa e o calendá-

rio religioso na demarcação dos tempos da vida social.Teixeira, João Gabriel L. C. –org- (2004). Patrimônio

imaterial, performance cultural e (re) tradicionalização. Brasília: ICS-UnB.

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Os Santuários como espaços de devoção: São José de Ribamar, no Maranhão

The Sanctuaries as places of devotion: São José de Ribamar, no Maranhão

Wherlyshe Morais*

*brasil, universidade federal do maranhão (ufma). e-mail: [email protected]

artigo completo submetido a dia 24 de maio e aprovado a 14 de junho de 2014

Resumo: São José de Ribamar é um município do estado do Maranhão onde a questão da cultura religiosa é muito forte com seu santo padroeiro. A cidade recebe todos os anos muitos devotos de todo o Brasil para seus festejos no mês de setembro com romarias, desfile de motoquei-ros e várias demonstrações de fé que dentre elas são as promessas que os fiéis fazem ao santo. Durante o festejo do santo as pessoas vão até o santuário de São José de Ribamar pagar suas promessas, e que esses pagamentos de promessas são feitos de diversas formas, tipo durante as procissões tem pessoas que fazem o percurso desca-lças, pessoas que carregam uma maquete de uma casa na cabeça, tem as pessoas que carregam pedras na cabeça e umas das mais curiosas são as promessas pagas com par-tes do corpo feitas com parafina, a promessa é paga com uma parte do corpo feita da parafina pela graça alcança-da. São inúmeras peças que o santuário recebe todos os anos, como cabeça, pernas, braços, mãos e etc. Tudo isso em agradecimento por graças alcançadas. Palavras chave: Cultura religiosa / Santuário / Promes-sas / São José.

Abstract: São José de Ribamar is a municipality in the state of Maranhão where the question of religious culture is very strong with his patron saint. The city welcomes ev-ery year many devotees from all over Brazil for its festival in September with processions, parade of bikers and vari-ous statements of faith among them are the promises that the faithful make the saint. During the celebration of the holy people go to the shrine of São José de Ribamar pay their pledges and promises that these payments are made in different ways, like during processions have people who do the journey barefoot, people who carry a model of a house in the head, have the people who carry stones in the head and one of the most curious are the promises paid with body parts made with paraffin, the promise is paid with a body made of paraffin achieved by grace. Are numerous parts that the sanctuary receives each year as the head, legs, arms and hands. All this in thanksgiving for graces received.Keywords: Religious culture / Sanctuary / Promises / São José

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IntroduçãoSão José de Ribamar pertence à Região Metropolitana de São Luís. É um dos quatro municípios que inte-gram a Ilha de São Luís. Situada no extremo leste da Ilha, de frente para a Baía de São José, distante cerca de 32 quilômetros do centro da capital maranhense. O município é o terceiro mais populoso do estado do Maranhão. Sua população é de 162.925 mil habitantes segundo censo do IBGE (instituto brasileiro de geografia e estatísticas) em 2010.

O nome da cidade é em homenagem ao padroeiro do Maranhão. Sendo São José de Ribamar iden-tificado como um dos santuários mais importantes do Norte-Nordeste. Urbe pacata e de pessoas hospita-leiras, tem como o diferencial de sua identidade marcada pela cultura e turismo religioso proporcionados por suas histórias e mitos sobre o santo padroeiro São José de Ribamar.

Como toda localidade religiosa São José de Ribamar tem suas histórias de milagres e seus mitos. As pessoas a partir de suas memórias vividas relatam suas experiências e devoção ao Santo Padroeiro. Esta devoção é demonstrada no decorrer do ano e principalmente no festejo em homenagem ao santo que ocorre em setembro com os pagamentos de promessas.

1.História do Município“O município de São José de Ribamar ao ser colonizado por missionários era, primitivamente, aldeia dos índios Grandes ou Gamelas, localizada nas terras dos religiosos da Companhia de Jesus, doadas por datas e sesmarias pelo governador do Maranhão Francisco Coelho de Carvalho, em 16 de dezembro de 1627. As terras de São José de Ribamar foram as primeiras que no Maranhão possuíram vice província da Companhia de Jesus”. (MARQUES: 1870 apud Livro Tombo do Curato/Paróquia/Santuário de São José de Ribamar, o ano deste livro é de 1870 p. 35).

Chegando aqui o capitão–general do Estado Francisco Coelho de Carvalho, nomeado por Sua Ma-jestade católica o Rei Felipe VI, que levava poderes de passar cartas de datas e sesmarias, “concorreram logo algumas pessoas, assim seculares como religiosos, a pedir as terras que se lhes faziam precisas para o benefício de suas lavouras em 1624”. (Livro Tombo do Curato/Paróquia/Santuário de São José de Ri-bamar, p. 36).

As terras de São José de Ribamar, onde estavam as aldeias dos índios Gamelas, foram dadas, em 1627, para os jesuítas conforme se afirmou acima, por pedido do Padre Luiz Figueira (o Padre Figueira escreveu a primeira gramática do idioma brasílico, editada na Bahia em 1851), que já possuía uma légua de terra doada por Pedro Dias ex-artilheiro da armada de Alexandre de Moura e sua mulher, Apolônia Bustamente, na Vila do Paço do Lumiar.

Sucessivos atos e leis alteraram o início da vida política de São José de Ribamar. Através do Decreto--Lei Estadual nº 820, de 30 de dezembro de 1943, foi criado o Município de Ribamar com um único distrito. Por atos das disposições constitucionais e transitórias do Estado, promulgado a 28 de julho de 1947, na interventora de Paulo Sousa Ramos, foi restituída a categoria de lugar e foi extinto o Munícipio de Ribamar, cuja área passou a pertencer ao Município de São Luís por força da Constituição de 1946. Foi, por várias vezes, extinto e restaurado, até que finalmente, pela Lei Estadual nº 758, de 24 de setembro de 1952, assinada pelo Governador Eugênio Barros, que deu o nome de Ribamar.

Passando-se 17 anos, o Governador José Sarney, definitivamente, restaurou a denominação pela Lei-Estadual nº 2.980, de 16 de setembro de 1969, para São José de Ribamar, em homenagem ao santo milagroso padroeiro da cidade e padroeiro do Maranhão.

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2.LendasConta a lenda que um navio que vinha de Lisboa para São Luís desviou-se de sua rota e em plena Baía de São José, esteve ameaçado de naufrágio por uma grande tempestade. O capitão invocou a proteção de São José, prometendo erguer uma capela no povoado que avistava ao longe. Tal foi a força das súplicas, que imediatamente o mar se acalmou e todos chegaram a terra a salvos. Para cumprir a promessa, o capitão trouxe de Lisboa uma imagem de São José e colocou na modesta igrejinha do povoado, erguida de frente para o mar. Este povoado se tornaria São José de Ribamar.

Ainda segundo a lenda muito próximo dali havia uma antiga aldeia chamada Anindiba dos Indí-genas, atualmente município de Paço do Lumiar. Os moradores daquele lugar acharam que a imagem deveria ser removida da igrejinha e levada para Anindiba e ao cair da noite, sem que ninguém percebesse, eles transportaram a imagem de lá. Ao amanhecer a imagem não se encontrava mais em Anindiba, pois, misteriosamente, ela voltou à igrejinha de origem. E os moradores tornaram a repetir a transferência e colocaram pessoas a vigiar o santo. São José, entretanto, transformando seu cajado em luzeiro, desceu da Igreja de Anindiba e, protegido por anjos e santos, voltou a Ribamar. E o caminho por onde ele ia passando encheu-se de suaves rastros de luz. Só assim os moradores de Anindiba compreenderam que o santo queria permanecer em sua igrejinha, de frente para o mar. Tempos depois, quando da construção de uma nova igreja, resolveram fazê-la de frente para a entrada da cidade - mas as paredes da igreja várias vezes ruíram, até que os fiéis compreenderam que a igreja de São José de Ribamar deveria permanecer de frente para o mar, como encontra-se até hoje.

3.Memórias que resistem ao tempoAlguns dos moradores persistem em deixar viva as memórias transmitidas através das gerações. Deixam--nos relevantes depoimentos sobre suas histórias que junto a história da cidade fazem-na particular. Essas pessoas que moram na cidade e relatam histórias que ouviram ou que passaram transmitem um pouco da riqueza espiritual desse lugar. Segundo o relato da moradora, Moraes, um milagre aconteceu por volta 1970 no interior chamado Sertãozinho, que fazia parte de uma cidade chamada Icatu - nas proximidades de São José de Ribamar, onde se pode fazer o trajeto tanto de carro como com embarcações. O relato descreve a história de duas crianças de mais ou menos 10 e 12 anos (a mesma não lembra com precisão as idades) que saíram para pescar de barco, então a maré secou e encheu e nada das crianças apontarem no mangue, próximo da casa onde moravam. A mãe das mesmas começou a entrar em desespero, como relata com descrição a senhora Valberlena, as palavras da mãe dos meninos (ô meu Deus o que aconteceu

Fig. 1. http://www.saojosederibamar.ma.gov.br/

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Fig. 3 e 4. Igreja (frontal e interna). Autor: Wherlyshe MoraisFig. 5. Largo do Santuário. Estatua de São José de Ribamar.

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com os meninos... meu Deus ‘’quêdê’’ meus filhos alguma coisa aconteceu) dona Valberlena reforça dizen-do que essa era época de chuvas e ventanias e por essa razão a mãe das crianças entrou em desespero.

A maré estava alta e agitada e de repente os dois aparecem em casa chorando bastante e se abra-çaram com a mãe deles e relataram que eles tinham naufragado no meio da Baia de São José. Então no auge do desespero, o maior, fez uma promessa a São José pedindo para o Santo que se o salvasse e ao seu irmão, ele iria fazer uma vela do tamanho dele e do irmão e levar todos os anos no festejo de São José, e eles já abraçados com a mãe relatavam chorando que quando fechou a boca com o pedido ao santo na mesma hora sentiram terra embaixo dos pés, onde disseram para a genitora deles: (mamãe, mamãe pisamos na terra e estávamos no meio da Baia e de repente apareceu uma canoa e nos resgatou). Daí então ambos foram pagar a promessa feita ao santo com as velas com o tamanho real deles e essa devoção se estende até hoje que durante os festejos da cidade. Todos os anos sempre vão pagar sua promessa pela graça alcançada pelo Santo.

Segundo as memórias de D.. Patrícia, a mesma recorreu ao santo padroeiro da cidade em uma hora difícil. A mesma era casada já havia um tempo e nunca conseguia engravidar e isso a incomodava muito, pois todas suas amigas já tinham conseguido e ela já com 36 anos não tinha conseguido ainda. Isso fez com que ela procurasse diversos médicos e eles fizeram todos os exames necessários e disseram para Patrícia que sua gravidez seria de auto risco e talvez até sem sucesso. Mas os médicos deram outra solução um tratamento alternativo que seria feito por inseminação artificial que iria sair muito caro, isso por volta de 2006. Após escutar isso dos médicos a mesma caiu em depressão e o desânimo tomou conta da mesma, e por viver em umas sociedade com resquícios do patriarcalismo, seu marido a cobrava por ela não conseguir engravidar.

Então no mesmo ano no mês de março na procissão de São Josésinho ela foi e então fez sua pro-messa ao santo: “ olhando para o andô de São José de Ribamar que se eu tivesse um filho iria colocar o nome dele de José se fosse homem e eu queria vir de barriga na procissão dele segurando a corda, quando foi em maio eu fiz um exame quando foi meu marido pear o exame eu até me tranquei no quarto esse dia porque fiquei com medo com receio de dar negativo e vim de novo aquela tristeza ai quando ele abriu o exame deu reagente. Aí foi uma alegria e quando foi em setembro na festa de São José de Ribamar eu vim de barriga segurando a corda com 6 meses de gravidez, eu já era devota e me tornei mais ainda agora todos os anos participo do festejo que é através dele que mostro minha devoção e agradecimento pela graça alcançada e então coloquei o nome de meu filho de José”.

Ressaltamos que dentro da igreja existe um local onde os devotos levam seus objetos para pagar suas promessas mas devido à época deste artigo não foi possível registrar uma quantidade grande de objetos. Mas segue registro fotográfico do altar de São José e dos milagres.

Referências

MARQUES: 1870 apud Livro Tombo do Curato/Paróquia/Santuário de São José de RibamarIBGEDepoimentosValberlena Maria Alves Moraes. Depoimento cedido em: 13/05/2014Patrícia Portela. Depoimento cedido em: 13/05/2014

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Centro de Estudos do Endovélico. Classificação do vale sagrado do Lucefecit: Teatro de Santuários (Endovélico e Boa Nova)

Studies Center of Endovélico. Sacred valley Lucefecit classification: theatre of sanctuary (Endovélico and Boa Nova)

Manuel Lapão*

*Portugal, câmara municipal do alandroal, [email protected]

artigo completo submetido a 2 de Junho e aceite a 14 de junho de 2014

Resumo: Apresenta-se uma proposta de classificação do vale sagrado do Lucefecit, como espaço de cultura e es-paço natural a que naturalmente está ligado o culto do Endovelico, sendo espaço deste imenso santuário. Palavras chave: Vale do Lucefecit, Endovélico, Santuá-rio, Classificação

Abstract: We present a proposal for classification of the sacred valley Lucefecit as a cultural and natural space.Keywords: valley Lucefecit, Endovélico, Sanctuary, Rating

IntroduçãoPretende-se com a presente comunicação enfatizar o papel da classificação como elemento galvanizador do conhecimento deste universo e da sua continuidade, assim como de uma estratégia de desenvol-vimento socioeconómico e cultural assente na especificidade e alcance do valor cultural do território. A metodologia em si mesma, assim como o programa associado constituem um dos propósitos mais relevantes da comunicação.

Caraterização física e área de intervenção A área de intervenção localiza-se no Concelho do Alandroal. Compreende o troço da Ribeira do Lucefé-cit e o respetivo Vale, com uma área aproximada de 13 000 Ha. Tem uma orientação Noroeste – Sudeste, tendo como limites a Estrada Regional 373 a Poente e o Rio Guadiana, consequentemente a Fronteira com Espanha, a Nascente.

Metodologia, processo, objetivos programáticos- Definir o processo, a articulação com os atores, as entidades públicas e privadas, os meios, a entida-

de gestora e o modelo de governação;- Assegurar uma coordenação, articulando e compatibilizando o ordenamento com as políticas de de-

senvolvimento económico e social, bem como as políticas sectoriais com incidência na organização do território em questão, no respeito por uma adequada ponderação dos interesses públicos e priva-dos em causa;

- Assegurar efetivamente a participação pública desde o inicio do processo;- Intervir no processo de ordenamento do território e governo da paisagem;- Entender a classificação como um instrumento que determina uma servidão administrativa,

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Fig. 1. Localização / Área de estudo

sinalizando objetivos e compromissos claros para todos;- Associar a este instrumento legal e político, de modo indissociável, a definição de um Programa

Estratégico que visa salvaguardar e valorizar de modo duradoiro e sustentável um vasto território cujo eixo central é o troço do vale do Lucifecit e envolvente próxima;

- Identificar como um espaço rural de reserva e observação em contexto, da biodiversidade e da ati-vidade humana (associada ao vale da ribeira do Lucefecit): geologia; biologia; ambiente; agricultura e património em sentido lato;

- Constitui, ainda, um suporte estratégico para a implantação do Centro de Interpretação do Endo-vélico (CIE) e genericamente para o desenvolvimento de um programa de ação de valorização de territórios assente nos aglomerados urbanos que integra (Terena e Rosário).

Conclusão O propósito do desenvolvimento da classificação (de ‘sitio de interesse público’ a ´sitio cultural´) assim como a gestão do vale sagrado do Lucefécit assenta assim no seu valor excecional de experiencia cultural e território-palco dos valores patrimoniais classificados e inventariados que em conjunto revelam uma capacidade evocativa extraordinária da ação do Homem nas margens da Ribeira manifestando-se de forma continuada no domínio da sua sacralização, da preponderante atividade agrícola e da cultura popular, tendo como expoente máximo do Endovélico.

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Meta-artigo auto exemplificativo[Título deste artigo, Times 14, negrito]

Artigo completo submetido a [dia] de [mês] de [ano]

Resumo: Este meta-artigo exemplifica o estilo a ser usado nos artigos enviados à revista Santuários. O resumo deve apresentar uma perspeti-va concisa do tema, da abordagem e das conclusões. Também não deve exceder 5 linhas.Palavras chave: meta-artigo, conferência, normas de citação. [Itálico 11, alinhamento ajustado, máx. de 5 palavras chave]

Title: Meta-paperAbstract: This meta-paper describes the style to be used in articles for the Santuários journal. The abstract should be a concise statement of the subject, approach and conclusions. Abstracts should not have more than five lines and must be in the first page of the paper. Keywords: meta-paper, conference, referencing.

Introdução [ou outro título; para todos os títulos: Times 12, negrito] De modo a conseguir-se reunir, na revista Santuários, um

conjunto consistente de artigos com a qualidade desejada, e também para facilitar o tratamento na preparação das edições, solicita-se aos autores que seja seguida a formatação do artigo tal como este docu-mento foi composto. O modo mais fácil de o fazer é aproveitar este mesmo ficheiro e substituir o seu conteúdo.

Nesta secção de introdução apresenta-se o tema e o propósito do artigo em termos claros e sucintos. No que respeita ao tema, ele compreenderá, segundo a proposta da revista Santuários, a visita a um Santuário — e é este o local para uma apresentação muito breve do santuário, tais como a localização e o seu contexto geográfico e histórico. Não se trata de uma descrição, apenas um curto enquadra-mento redigido com muita brevidade.

Nesta secção pode também enunciar-se a estrutura ou a meto-dologia de abordagem que se vai seguir no desenvolvimento. [Todo o texto do artigo, exceto o início, os blocos citados, as legendas e a bibliografia: Times 12, alinhamento ajustado, parágrafo com recuo de 1 cm, espaçamento 1,5, sem notas de rodapé]

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1. Modelo da página [este é o título do primeiro capítulo do corpo do artigo; caso existam subcapítulos de-verão ser numerados, por exemplo 1.1 ou 1.1.1 sem ponto no final da sua sequência]

A página é formatada com margens de 3 cm em cima e à esquerda, de 2 cm à direita e em baixo. Utiliza-se a fonte “Times New Roman” do Word para Windows (apenas “Times” se estiver a converter do Mac, não usar a “Times New Roman” do Mac). O espaçamento normal é de 1,5 exceto na zona dos resumos, ao iní-cio, e na zona das referências bibliográficas. Todos os parágrafos têm espaçamento zero, antes e depois. Não se usam bullets ou bolas automáticas ou outro tipo de auto-texto exceto na numeração das páginas (à direita em baixo). Também não se usam cabeçalhos ou rodapés. As aspas, do tipo vertical, terminam após os sinais de pon-tuação, como por exemplo “exemplo de fecho de aspas duplas,” ou ‘fecho de aspas.’

Para que o processo de peer review seja do tipo double-blind, eliminar deste ficheiro qualquer referência ao autor, inclusive das propriedades do ficheiro. Não fazer auto referências.

2. CitaçõesObservam-se como normas de citação as do sistema ‘autor,

data,’ ou ‘Harvard,’ sem o uso de notas de rodapé. Recordam-se al-guns tipos de citações:

— Citação curta, incluída no correr do texto (com aspas verti-cais simples, se for muito curta, duplas se for maior que três ou quatro palavras);

— Citação longa, em bloco destacado.— Citação conceptual (não há importação de texto ipsis ver-

bis, e pode referir-se ao texto exterior de modo locali-zado ou em termos gerais).

Como exemplo da citação curta (menos de duas linhas) recor-da-se que ‘quanto mais se restringe o campo, melhor se trabalha e com maior segurança’ (Eco, 2004: 39).

Como exemplo da citação longa, em bloco destacado, apon-tam-se os perigos de uma abordagem menos focada, referidos a pro-pósito da escolha de um tema de tese:

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Se ele [o autor] se interessa por literatura, o seu primeiro impulso é fazer uma tese do género A Literatura Hoje, tendo de restringir o tema, quererá escolher A literatura italiana desde o pós-guerra até aos anos 60. Estas teses são perigosíssimas (Eco, 2004: 35).[Itálico, Times 11, um espaço, alinhamento ajustado (ou ‘justificado,’ referência ‘autor, data’ no final fora da zona itálico]

Como exemplo da citação conceptual localizada exemplifica--se apontando que a escolha do assunto de um trabalho académico tem algumas regras recomendáveis (Eco, 2004: 33).

Como exemplo de uma citação conceptual geral aponta-se a metodologia global quanto à redação de trabalhos académicos (Eco, 2004). Os textos dos artigos não devem conter anotações nos rodapés.

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3. Figuras ou QuadrosNo texto do artigo, os extra-textos podem ser apenas de dois

tipos: Figuras ou Quadros.Na categoria Figura inclui-se todo o tipo de imagem, desenho,

fotografia, gráfico, e é legendada por baixo. Apresentam-se aqui al-gumas Figuras a título meramente ilustrativo quanto à apresentação, legendagem e citação/referência. A Figura tem sempre a ‘âncora’ no correr do texto, como se faz nesta mesma frase (Figura 1).

Figura 1. Fotografia de Tomas Castelazo, Detalle de la puerta de la celda 18 de la vieja cárcel de León, Guanajuato, Mexico (2009).

[Times 10, centrado, parágrafo sem avanço; imagem sempre com a referência autor, data; altura da imagem: c. 7cm]

As Figuras também podem apresentar-se agrupadas (Figuras 2 e 3) com a ‘moldagem do texto’ na opção ‘em linha com o texto,’ controlando-se o seu local e separações (tecla ‘enter’ e ‘espaço’), e também a centragem com o anular do avanço de parágrafos.

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Figura 2. A estátua de Agassiz frente ao edifício de zoologia da Universidade de Stanford, Palo Alto, Califórnia, após o terramoto de 1906 (Mendenhall, 1906).Figura 3. Efeitos do teste ‘stokes’ sobre o dirigível ‘Blimp’ colocado em voo a 8 km do cogumelo atómico, em 7 de Agosto de 1957 (United States Department of Energy, 1957).

[Times 10, parágrafo sem avanço. Imagens sempre com a referência autor, data; altura das imagens: c. 7cm; separação entre imagens: um espaço de teclado]

Na categoria ‘Quadro’ estão as tabelas que, ao invés, são le-gendadas por cima. Também têm sempre a sua âncora no texto, como se faz nesta mesma frase (Quadro 1). A numeração das Figuras é seguida e independente da numeração dos Quadros, também seguida.

Quadro 1. Exemplo de um Quadro.

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A Figura pode reproduzir, por exemplo, uma obra de arte com autor e fotógrafo conhecidos (Figura 4).

Figura 4. Instalação O carro/A grade/O ar, de Raul Mourão, no Panorama da Arte Brasileira, 2001, no Museu de Arte Moderna

de São Paulo (Fraipont, 2001).

A Figura também pode reproduzir uma obra bidimensional (Figura 5).

Figura 5. Josefa de Óbidos (c. 1660), O cordeiro pascal. Óleo sobre tela, 88x116cm. Museu de Évora, Portugal.

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O autor do artigo é o responsável pela autorização da repro-dução da obra (notar que só os autores da CE que faleceram há mais de 70 anos têm a reprodução do seu trabalho bidimensional em do-mínio público).

Cita-se agora, como exemplo suplementar, o conhecido es-premedor de citrinos de forma aracnóide (Starck, 1990). Se se pre-tender apresentar uma imagem do objeto, como se mostra na Figura 6, não esquecer a distinção entre o autor do objeto, já conveniente-mente citado na frase anterior, e o autor e origem da fotografia, que também segue na legenda.

Figura 6. O espremedor de citrinos de Philippe Starck (1990). Foto de Morberg (2009).

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Notar que no exemplo do espremedor de citrinos, tanto o obje-to como a sua foto têm citação e referência separadas (veja-se como constam no capítulo ‘Referências’ deste meta-artigo). O mesmo su-cedera, aliás, no exemplo da instalação da Figura 4.

Se o autor do artigo é o autor da fotografia ou de outro qualquer gráfico assinala o facto como se exemplifica na Figura 7.

Figura 7. Apostolado na ombreira do portal da Sé de Évora, Portugal. Fonte: própria.

Caso o autor sinta dificuldade em manipular as imagens inse-ridas no texto pode optar por apresentá-las no final, após o capítulo ‘Referências,’ de modo sequente, uma por página, e com a respetiva legenda. Todas as Figuras e Quadros têm de ser referidas no correr do texto, com a respetiva ‘âncora.’

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4. Sobre as referênciasO capítulo ‘Referências’ apresenta as fontes citadas, e apenas

essas. Cada vez mais as listas bibliográficas tendem a incluir refe-rências a materiais não papel, como vídeos, DVD, CD, ou sítios na Internet (páginas, bases de dados, ficheiros ‘*.pdf,’ monografias ou periódicos em linha, fotos, filmes). O capítulo ‘Referências’ é único e não é dividido em subcapítulos.

ConclusãoA Conclusão, a exemplo da Introdução e das Referências, não é

uma secção numerada e apresenta uma síntese que resume e torna mais claro o corpo e argumento do artigo, apresentando os pontos de vista com concisão. Pode terminar com propostas de investigação futura.

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Referências [Este título: Times 12, negrito; toda lista seguinte: Times 11, alinhado à esquerda, avanço 1 cm]

Castelazo, Tomas (2009) Detalle de la puerta de la celda 18 de la vieja cárcel de León, Guanajuato, México. [Consult. 2009-05-26] Fotografia. Disponível em <URL: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cell_door_detail.jpg>

Eco, Umberto (2007) Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas. Lisboa: Presença. ISBN: 978-972-23-1351-3

Fraipont, Edouard sobre obra de Raul Mourão (2001) A instalação “O carro/A grade/O ar,” exposta no Panorama da Arte Brasileira, 2001, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. [Consult. 2009-05-26] Fotografia. Disponível em <URL: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:CarrosGradeAr.jpg>

Mendenhall, WC (1906) The Agassiz statue, Stanford University, California: April 1906 [Consult. 2009-05-26] Fotografia. Disponível em <URL: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Agassiz_statue_Mwc00715.jpg >

Morberg, Niklas (2009) Juicy Salif. [Consult. 2009-05-26] Fotografia. Disponível em <URL: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Juicy_Salif_-_78365.jpg>

Óbidos, Josefa de (c. 1660) O cordeiro pascal. [Consult. 2009-05-26] Reprodução de pintura. Disponível em <URL: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Josefa_cordeiro-pascal.jpg>

Starck, Philippe (1990) Juicy salif. [Objecto] Crusinallo: Alessi. 1 espremedor de citrinos: alumínio fundido.

United States Department of Energy (1957) PLUMBBOB/STOKES/dirigible - Nevada test Site. [Consult. 2009-05-26] Fotografia. Disponível em <URL: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:NTS_Barrage_Balloon.jpg>R

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Chamada de trabalhos:II Congresso Internacional Santuários, Cultura, Arte, Romarias, Peregrinações, Paisagens e Pessoas (SCARPPP’2015) 12—13 setembro 2015, Alandroal, Portugal

Este Congresso sobre Santuários é uma Porta Aberta a todos e propõe encontro no Alandroal, vila do Alentejo, em Portugal, em cujo território se situa o santuário ao deus Endovélico, que foi um dos maiores santuários da época romana (séculos I d.C. — V d.C.), na Península Ibérica. Hoje apresenta um grande conjunto de vestígios, esculturas e aras de culto e ex-votos, a Endovélico, uma divindade local, adopta-da pelos romanos. Foi um lugar de encontro entre duas culturas, a indígena e a romana. Um santuário constitui como que um «concentrado espacial» da cultura e da religião, um sítio de ligação privilegiada e imediata com o sagrado. São muitas as possibilidades de análise de determinado santuário. Todas as análises são bem-vindas ao nosso congresso. Por exemplo:

Santuários mortos: pré-históricos, arqueológicos, rupestres, megalíticos... ou referidos em textos históricos. Eventuais continuidades em santuários ou cultos actuais na mesma região.

Santuários activos ou vivos: titular sagrado do santuário: Icones, simbolos e sinais dentificadores e representativos. Meio ecológico: rural ou urbano; mar, montanhas, rochas, árvores, nascentes, astros...

História do titular e da fundação do santuário: relatos institucional ou popular, histórico ou mito-lógico... Sincretismos.

Arte: edifícios, iconografia, objectos. Música, cantares, poesias. Âmbito territorial dos adeptos. Deslocação de populações e concentração no espaço. Tipos de ritos, institucionais e populares. Ofertas. Promessas. Ex-votos. Convívios e sociabilidades. Calendário do culto. Manifestações culturais e religio-sas específicas. Multiculturalidade. Relações com a saúde e o bem-estar, e com preocupações sociais, políticas, matrimoniais, familiares... Funções económicas do santuário.

... Entre outras questões, todas bem-vindas.

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1. Desafio a todos aqueles que vivem e estudam os santuários em todas as suas dimensões, cien-tífica, artística, estética, religiosa e humana.

1.1. Incentivam-se comunicações ao congresso sobre  Santuários como centros de Cultura, de Arte, de Romarias, de Peregrinações, de Paisagens e de Pessoas.

1.2. O congresso centra-se no olhar sobre todas as dimensões do santuário. 1.3.Valorizam-se abordagens inovadoras da temática do congresso e estudos de caso.

1.4. Tema geral / TemáticaOs Santuários como espaços de devoção em todos os tempos e em todas as culturas é o objecto de análise deste congresso, onde se desafiam todos aqueles que vivem e estudam os santuários: antropólogos, ar-queólogos, arquitectos, artistas plásticos e performativos, biólogos, conservadores/restauradores, crentes, devotos e peregrinos, curadores, escritores, designers, filósofos, gastrónomos, geólogos, historiadores, historiadores de arte, médicos, museólogos, músicos e musicólogos, psicólogos, sacerdotes, sociólogos e todos aqueles que entendam que o seu trabalho ou a sua devoção tem uma relação com um conceito amplo de santuários.

Os subtemas, cultura, arte, romarias, peregrinações e paisagens remetem-nos para as diferentes dimensões dos santuários:

— Espaços de afirmação e encontro de culturas;— Espaços artísticos de grande investimento da cultura popular e erudita com áreas urbaniza-

dos, povoadas de estruturas arquitectónicas, com forte presença da pintura, da escultura e de outras artes;

— Espaços de Romarias onde a festa é um fenómeno social total, com a música, a dança, a comi-da e as roupas a protagonizarem a dimensão popular na vivência dos santuários;

— Espaços de Peregrinação em que o ritual religioso constitui a essência do santuário (o cami-nho e o sacrifício, as celebrações litúrgicas, a procissão, a bênção).

— Espaços de Paisagens naturais (geológicas e biológicas) marcantes e singulares.— Espaço de muitas Pessoas, cada uma com a sua história Pessoal que a motiva para o encontro

com aquele lugar onde o Sagrado está presente. 2. Línguas de trabalho

Oral: Português; Castelhano; Inglês; Francês; Italiano.Escrito: Português; Castelhano; Inglês; Francês; Italiano; Galego; Catalão. 

Não haverá tradução de textos nem tradução simultânea durante o congresso. Cada autor/congressista escreverá/apresentará o texto/comunicação nas línguas referidas. 3. Datas importantesData limite de envio de resumos: 31 de março 2015Notificação de pré-aceitação ou recusa do resumo: 8 de abril 2015Data limite de envio da comunicação completa: 15 de maio  2015Notificação de aceitação ou recusa da comunicação completa: 31 de maio

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As comunicações aceites pela Comissão Científica serão publicadas em periódicos académicos como o número 3 e 4 da Revista: Cadernos do Endovelico: Santuários, entre outros, lançadas em simultâneo com o Congresso SCARPPP’2015. Todas as comunicações serão publicadas nas Atas online do I Congresso (dotada de ISBN).   4. Condições para publicação— O autor do artigo debruça-se sobre aspectos de santuários. — Incentivam-se artigos que tomam como objeto Santuários vividos, conhecidos pelo autor ou com base em dados históricos e documentais.— Incentiva-se a revelação de Santuários menos conhecidos. — Uma vez aceite o resumo provisório, o artigo só será aceite definitivamente se seguir o manual de estilo publicado no sítio internet do Congresso e tiver o parecer favorável da Comissão Científica.— Cada participante pode submeter até dois artigos. 5. Submissões— Primeira fase, RESUMOS: envio de resumos provisórios. Cada comunicação é apresentada através de um resumo de uma ou duas páginas (máx. 2.000 caracteres) que pode incluir uma ou duas ilustrações. — Segunda fase, TEXTO FINAL: envio de artigos após aprovação do resumo provisório Cada comuni-cação final tem cinco páginas (máx. 10.000 caracteres c/ espaços referentes ao corpo do texto sem contar com resumos e bibliografia). O formato do artigo, com as margens, tipos de letra e regras de citação, está disponível no meta-artigo auto exemplificativo.   6. Apreciação por ‘double blind review’ ou ‘arbitragem cega’ Cada artigo recebido pelo secretariado é reenviado, sem referência ao autor, a dois, ou mais, dos membros da Comissão Científica, garantindo-se no processo o anonimato de ambas as partes — isto é, nem os revi-sores científicos conhecem a identidade dos autores dos textos, nem os autores conhecem a identidade do seu revisor (double-blind). No procedimento privilegia-se também a distância geográfica entre origem de autores e a dos revisores científicos.

Critérios de arbitragem:— Dentro do tema proposto para o Congresso, “Santuários — cultura, arte, romarias, peregrinações e paisagens,” versar sobre santuários;— Interesse, relevância e originalidade do texto;— Adequação linguística;— Correta referenciação de contributos e autores e formatação de acordo com o texto de normas. 7. CustosO valor da inscrição irá cobrir os custos de publicação, os materiais de apoio distribuídos e outros custos de organização. Despesas de almoços, jantares e dormidas não estão incluídas. Por autor e por comuni-cação: 100 euros (31 de maio de 2014), 120 euros (8 de junho de 2014). A participação é gratuita e caso queira o certificado custa 10€.  

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PagamentoPagamento presencial, na tesouraria da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. A Tesoura-ria da FBAUL está aberta de 2ª a 6ª, das 9h30 às 15h30 (aberto à hora de almoço); Pagamento à distância por transferência bancária (NIB: 0035 0250 0000 5473 930 81).

Pagamento por IBAN para os seguintes dados:Nome do Banco: Caixa Geral de Depósitos (CGD)Cidade: LisboaIBAN: PT50 0035 0250 0000 5473 9308 1BIC/ SWIFT: CGDIPTPL

A inscrição só será considerada mediante o envio do comprovativo bancário de pagamento e da ficha de inscrição para [email protected]. Caso queira pagar por VISA terá de solicitar um número de código para [email protected]

Nesse e-mail deverá escrever o seguinte: nome completo, e-mail de contacto, o valor a pagar e a data limite de pagamento. Caso pague com o cartão de outra pessoa o e-mail tem de ser da pessoa que é titular do cartão. ContactosCIEBA: Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes FBAUL: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Largo da Academia Nacional de Belas-Artes 1249-058 Lisboa, Portugal [email protected] | www.santuarios.fba.ul.pt

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