santos, milton_a natureza do espaço

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  • 2M I LTON SANTOS

    A Natureza do EspaoTcnica e Tempo. Razo e Emoo

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Santos, Milton, 1926-2001A Natureza do Espao: Tcnica e Tempo, Razo e Emoo / Milton Santos. - 4. ed. 2. reimpr. - So Paulo: Editorada Universidade de So Paulo, 2006. - (Coleo Milton Santos; 1)

    Bibliografia.ISBN 85-314-0713-3

    1. Espao e tempo 2. Geografia 3. Geografia - Filosofia4. Geografia humana I. Ttulo. II. Srie.

    02-3478 CDD-910.01

    ndices para catlogo sistemtico:1. Espao e tempo: Geografia: Teoria 910.012. Tempo e espao: Geografia: Teoria 910.01

  • 3______

    SUMRIO

    Prefcio - Histria de um Livro ................................ ................................ ................................ ......... 7Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ ......... 9

    Primeira ParteUMAONTOLOGIA DOESPAO:NOESFUNDADORAS

    I. ASTCNICAS, OTEMPO E OESPAOGEOGRFICO ..............................................................................................................................16Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ .... 16A Negligncia com as Tcnicas ................................ ................................ ................................ .........16A Tcnica, Ela Prpria, um Meio ................................ ................................ ............................... 22A Necessidade de um Enfoque Abrangente ................................ ................................ .......................25As Tcnicas e a Empiricizao do Tempo ................................ ................................ ........................30A Idade de um Lugar ................................ ................................ ................................ .................... 35

    2. OESPAO: SISTEMAS DE OBJETOS,SISTEMAS DE AO ............................................................................................ 38Introduo ..................................................................................................................................... 38Sistemas de Objetos ...........................................................................................................................40Um Objeto Geogrfico? .....................................................................................................................45Sistemas de Aes ................................ ................................ ................................ ......................... 50Uma Geografia da Ao? ................................ ................................ ................................ .............. 53

    3. O ESPAOGEOGRFICO, UMHBRIDO ................................................................................................................................57Entre Ao e Objeto: A Intencionalidade ................................ ................................ ...................... 57A Inseparabilidade dos Objetos e das Aes ................................ ................................ ................. 61O Espao Geogrfico, um Hbrido ................................ ................................ ................................ 65Uma Necessidade Epistemolgica: A Distino entre Paisageme Espao ................................ ................................ ................................ ................................ ....... 66

  • 4Segunda ParteA PRODUO DASFORMAS-CONTEDO

    4. O ESPAO E A NOO DE TOTALIDADE ......................................................................................................................................... 72Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ .... 72A Noo de Totalidade ................................ ................................ ................................ ................. 74A Ciso da Totalidade ................................ ................................ ................................ ................... 75Totalidade e Totalizao ................................ ................................ ................................ ............... 76A Precedncia do Processo ................................ ................................ ................................ ........... 77O Universal e o Particular: A Atualidade ................................ ................................ ....................... 78A Totalidade como Possibilidade ................................ ................................ ................................ .. 79Individuao, Objetivao, Espacializao: As Formas -Contedo ................................ .....................80O Papel do Smbolo e da Ideologia no Movimento da Totalidade ................................ ................... 82

    5. DADIVERSIFICAO DANATUREZA DIVISOTERRITORIALDO TRABALHO ................................ ................................ ................................ ................................ .....84Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ ..... 84Da Diversificao da Natureza Diviso do Trabalho ................................ ................................ .... 84Diviso do Trabalho e Repartio dos Recursos ................................ ................................ ............ 86Os Tempos da Diviso do Trabalho ................................ ................................ .............................. 88Rugosidades do Espao e Diviso Social do Trabalho ................................ ................................ .... 91

    6. OTEMPO (OSEVENTOS) E OESPAO ............................................................................................................................ 93Eventos: Os Nomes, Caractersticas, Tipologia ................................ ................................ .............. 93Durao, Extenso, Escalas, Superposies ................................ ................................ ................... 96O Tempo como Intrprete da Realidade dos Objetos Diacronia e Sincrona: O Eixo das Sucesses e o dasCoexistncias ................................ ................................ ................................ ................................ ......102Universalidade e Localidade: A Totalidade em Mov imentoDiacronia e Sincronia: O Eixo das Secesses e o das Coexistncias ................................ ....................104como Trama ................................ ................................ ................................ ................................ . 105O Processo Espacial: O Acontecer Solidrio ................................ ................................ .................. 108

    Terceira PartePOR UMAGEOGRAFIA DOPRESENTE

    7. O SISTEMA TCNICO ATUAL .................................................................................................................... 111Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ .... 111Os Perodos Tcnicos ................................ ................................ ................................ ................... 111Os Sistemas Tcnicos ................................ ................................ ................................ ................... 114O Sistema Tcnico Atual ................................ ................................ ................................ .............. 115As Tcnicas da Informao ................................ ................................ ................................ ........... 119

    8. ASUNICIDADES:APRODUO DA INTELIGNCIA PLANETRIA ......................................................................................123Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ .... 123A Unicidade Tcnica ................................ ................................ ................................ ..................... 123A Unicidade do Tempo: A Convergncia dos Momentos ................................ ................................ ..128O Motor nico ................................ ................................ ................................ ............................. 133

  • 59. OBJETOS E AES HOJE. AS NORMAS E O TERRITRIO ............................................................................................. 141Os Objetos, Hoje ................................ ................................ ................................ .......................... 141As Aes, Hoje ................................ ................................ ................................ ............................. 148As Normas e o Territrio ................................ ................................ ................................ .............. 152

    I O. DOMEIONATURAL AO MEIOTCNICO-CIENTFICO-INFORMACIONAL .....................................................................................................................................156Introduo ...................................................................................................................................156O Meio Natural ................................ ................................ ................................ ............................. 157O Meio Tcnico ................................ ................................ ................................ ............................ 158O Meio Tcnico-Cientfico-Informacional ................................ ................................ ..................... 159O Conhecimento como Recurso ................................ ................................ ................................ .... 162O Espao Nacional da Economia Internacional ................................ ................................ ............. 163Universalidade Atual do Fenmeno de Regio ................................ ................................ .............. 165A Produtividade Espacial e a Guerra dos Lugares ................................ ................................ .......... 166Fixidez, Rigidez e Fluidez ................................ ................................ ................................ ............. 167A Crise Ambiental ................................ ................................ ................................ ........................ 169O Alargamento dos Contextos ................................ ................................ ................................ ...... 171A Tecnosfera e a Psicosfera ................................ ................................ ................................ ........... 171Do Reino da Necessidade ao Reino da Liberdade ................................ ................................ .......... 173

    I I. POR UMA GEOGRAFIA DAS REDES ................................ ................................ ................................ ................................ ............176Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ ..... 176Que uma Rede? ................................ ................................ ................................ .......................... 176O Passado e o Presente das Redes ................................ ................................ ................................ . 177Tempos Rpidos e Tempos Lentos ................................ ................................ ................................ 179Um Espao No-homogneo e Instvel ................................ ................................ ......................... 180O Global e o Local ................................ ................................ ................................ ........................ 182A Rede e as Dialticas no Territrio ................................ ................................ .............................. 183As Redes, a Competitividade e o Imperativo da Fluidez ................................ ................................ . 185Dissipando as Ambiguidades da Noo ................................ ................................ ......................... 187

    I 2. HORIZONTALIDADES E VERTICALIDADES ..................................................................................... 190Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ ..... 190Dois Arranjos e Duas Segmentaes ................................ ................................ ............................. 192Verticalidades, Horizontalidades e Ao Poltica ................................ ................................ ...............194

    I 3. OS ESPAOS DA RACIONALIDADE .................................................................................................................. 196Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ ..... 196 Possvel um Espao Racional? ................................ ................................ ................................ ... 196A Produo de uma Racionalidade do Espao ................................ ................................ ............... 200O Espao Racional ................................ ................................ ................................ ........................ 204

    Quarta ParteA FORA DOLUGAR

    I 4. O LUGAR E O COTIDIANO ............................................................................................................................... 212Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ ..........212Atividade Racional, Atividade Simblica e Espao ................................................................................. 213O Papel da Proximidade ................................ ................................ ................................ .....................215

  • 6A Dimenso Espacial do Cotidiano ......................................................................................................... 217Os Pobres na Cidade ................................ ................................ ................................ ........................... 218Os Migrantes no Lugar: Da Memria Descoberta ................................................................................ 222

    I5.ORDEMUNIVERSAL,ORDEMLOCAL:RESUMO ECONCLUSO .............................................................................................. 225Introduo ................................ ................................ ................................ ................................ ...........225Objetos e Aes ................................ ................................ ................................ ................................ ..226Uma Globalizao do Espao? ................................................................................................................ 227Da Ao Globalizada como Norma ao Territrio Localcomo Norma ................................ ................................ ................................ ................................ .......229Uma Ordem Global, uma Ordem Local ................................ ................................ .............................. 230

    Bibliografia ................................ ................................ ................................ ................................ .............232

  • 7Prefcio

    HISTRIA DE UMLIVRO

    ste, como todos os livros, tem uma histria: a histria de uma pesquisa que durou muitos anos,a histria da busca de urna forma para exprimir os resultados alcanados. A pesquisa de veumuito aos cursos, sobretudo de Ps-Graduao, que ministrei na Universidade de So Paulo

    (USP), que me obrigaram, cada ano, a enfrentar uma questo nova e a encontrar uma ordem para asrespectivas exposies. A pesquisa muito deveu tambm, organizao, junto com Maria AdliaAparecida de Souza, de diversas reunies cientficas nacionais e internacionais, assim como a estgios evisitas que pude empreender a diferentes pases como a Frana, Espanha, Estados Unidos, Argentina,Mxico, Venezuela, Cuba etc., ocasio preciosa para troca de informaes e de ideias com colegasdesses pases. Ajudas materiais diversas proporcionadas em diversas ocasies, por agncias nacionaisde fomento pesquisa (CNPq, FAPESP, FINEP) constituram, uma contribuio valiosa para arealizao desta longa pesquisa.

    O processo de redao tambm foi longo. A bem dizer, ele se inicia em janeiro de 1994, quandome beneficiei de uma bolsa ps-doutoral da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo(FAPESP), que me permitiu fazer um estgio nos Estados Unidos e na Frana, ocasio em que tivediante de mim a possibilidade de contar com largo tempo livre dedicado exclusivamente busca defrmulas para a redao, longe que estava das rotinas de minhas obrigaes cotidianas no Brasil. Talocasio se repete durante o ano de 1995, quando pude permanecer, na Frana, entre fevereiro e agosto,beneficiado por um estgio-snior, oferecido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico (CNPq). Nesse ltimo pas, e em diversas oportunidades, em 1994,1995 e 1996, fuibeneficiado pelo acolhimento de amigos como Jean-Franois Malecot e Hlne Lamicq, que vrias vezesme emprestaram seu apartamento de Paris, na rue Nationale, e, com ele, uma bonita biblioteca de filosofia,economia e literatura, que me permitiu ampliar as minhas pesquisas mesmo em casa. Beneficiei -me,

    tambm, da hospitalidade da famlia Tiercelin, em sua propriedade de Roquepiquet, na Dordogne, onde ascondies de calma e conforto necessrias estavam reunidas a um quadro natural inspirador: foi neste lugar,e junto com a famlia, que utilizava as frias universitrias para o trabalho de redao. Mas esse trabalhotambm se fez em So Paulo, nos fins de semana e nos momentos roubados, durante a semana, s pesadastarefas dirias de um pesquisador e de um professor. O plano original da obra foi muitas vezes refeitodurante esse processo, para atender a um ideal de coerncia que espero haver atingido. As biblio tecas da

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  • 8USP, do Instituto de Geografia da Universidade de Paris e da Maison ds Sciences de FHomme de Paris,entre outras, foram-me de grande ajuda.

    Estes ltimos meses foram gastos no difcil trabalho de organiza o tcnica e material do livro,tarefa extremamente pesada, na qual, todavia, fui muito ajudado por Ana Elisa Rodrigues Pereira. Emtodos os momentos da produo deste livro, contei com o interesse e a dis cusso de meus colegas e alunos. sempre difcil dizer nomes, j que nessas ocasies no raro que haja esquecimentos lamentveis. Entreos colegas esto aqueles que vejo mais frequentemente, Maria Adlia Aparecida de Souza, ArmenMamigonian, Ana Fani Alessandri Carlos, em So Paulo; Ana Clara Torres Ribeiro, Lia Osrio, RobertoLobato Corra, Ruy Moreira, Leila C. Dias e Maurcio Abreu, no de Janeiro (e para Maurcio, tambmem Paris), entre os estudantes o dilogo foi mais frequente e frutfero com Maria Laura Silveira eAdriana Bernar-des (que tambm se incumbiram da preparao da bibliografia e dos ndices, juntocom Paula Borin), mas tambm com Mnica Arroyo, Ldia Lcia Antongiovanni, Eliza Pinto deAlmeida, Ricardo Castillo, Marcos Antnio de Moraes Xavier, Fbio Betioli Contei.

    Livros e artigos meus publicados antes haviam enfrentado alguns dos problemas de que trataeste livro. Agora, no apenas novas questes se levantaram, como temas de nossa preocupaoanterior aparecem mais documentados, sistematizados e aprofundados, como o caso, por exemplo,da tcnica, do tempo e do sistema de objetos e aes.

    Na Frana, foram-me muito preciosos o apoio e as conversas, mantidas em diferentesoportunidades, com meu afetuoso amigo Bernard Kayser e tambm com Jacques Lvy, Remy Knafou,Jacqueline Beau-jeu-Garnier, Olivier Dollfus, Pierre George, alm do permanente interessedemonstrado por Georges Benko, em cuja coleo de Geografia da Editora Harmattan, este livro deve,proximamente, ser publicado. Neste, como em tantos outros livros meus, editados pela Hucitec, fo-ram-me valiosos o apoio e a amizade de Flvio George Aderaldo.

    Minha mulher Marie-Hlne, como em outras oportunidades, foi rigorosa na crtica s minhasideias e sua formalizao, trazendo-me, assim, uma ajuda insupervel. Meu filho Milton SantosFilho esteve presente em todas as etapas e sua memria dedico, sentidamente, este livro.

    MILTON SANTOS

    Paris, Roquepiquet, So PauloAgosto de 1996

  • 9______

    INTRODUO

    sta obra resulta de um velho projeto e envolve uma pesquisa comeada h muitos an os. Atarefa se foi avolumando como tambm foi crescendo a nossa hesitao diante do que deveriarealmente ser o seu contedo. O perodo tcnico -cientfico da histria humana, que balbuciava

    desde o fim da Segunda Guerra Mundial," ia pouco a pouco tomando mais corpo, mostrando aqui eali seus aspectos centrais, mas permitindo apenas lentamente uma apropriao sistemtica dos seusfundamentos. Com os anos 80, veio a grande acelerao. Ento, a nossa timidez e as nossashesitaes cresceram ainda mais, atrasando a realizao daquele sonho.

    Quando Jean Brunhes publica, em 1914, o seu livro A Geografia Humana,, ele tambm sedesculpa diante de seu pblico e do seu edi tor por um atraso de dez anos. Nossa culpa dobrada,porque nosso projeto ainda mais velho. Mas podemos, com ele, dizer que "o meu atraso deve-se aoescrpulo e no negligncia".

    A pesquisa em que se baseia esta obra, e de que resultaram outros trabalhos, atravessa, pois,quase um quarto de sculo, arrastando com ela as consequncias conhecida s neste gnero deexerccio. Quanto interpretao da atualidade, sabemos, tambm, que, nestes tempos acelerados, otropel dos eventos desmente verdades estabelecidas e desmancha o saber. Mas a moda avassaladoradas citaes frescas no pode eliminar os debates inspirados em ideias filosficas cuja lio no circunstancial. Talvez por isso mesmo, possamos escapar quele medo de Maximilien Sorre, naintroduo ao seu Tratado, quando temia que certas pginas de seu livro pudessem estarenvelhecidas antes de impressas. Da a ressalva: "aceitarei esta desgraa sem estar demasiadamenteafetado, se o leitor lhe quiser solicitar sobretudo uma orientao e um mtodo".

    Nosso desejo explcito a produo de um sistema de ideias que seja, ao mesmo tempo, umponto de partida para a apresentao de um sistema descritivo e de um sistema interpretativo dageografia. Esta disciplina sempre pretendeu construir -se como uma descrio da terra, de seushabitantes e das relaes destes entre si e das obras resultantes, o que inclui toda ao humana sobre oplaneta. Mas o que uma boa descrio?

    Descrio e explicao so inseparveis. O que deve estar no alicerce da descrio a vontadede explicao, que supe a existncia prvia de um sistema. Quando este faz falta, o que resulta em

    E

  • 10

    cada vez so peas isoladas, distanciando-nos do ideal de coerncia prprio a um dado ramo dosaber e do objeto de pertinncia indispensvel.

    Este livro resulta sobretudo de uma antiga insatisfao do autor diante de um certo nmerode questes. A primeira tem que ver com o prprio objeto do trabalho do gegrafo. A essa indagao,com frequncia a resposta buscada numa interminvel discusso a respeito do que geografia. Talpergunta tem recebido respostas as mais dis paratadas, raramente permitindo ir alm de formulaestautolgicas. Se no pelo que alguns gegrafos afirmam explicitamente, mas pelo que muitos

    praticam, a geografia o que faz cada qual e assim h tantas geografias quanto gegrafos. Dessemodo, pergunta "o que geografia", e a pretexto de liberdade, a resposta acaba por constituir umexerccio de fuga. Discorrer, ainda que exaustivamente, sobre uma disciplina, no substitui o essencial,que a discusso sobre seu objeto.

    Na realidade, o corpus de uma disciplina subordinado ao objeto e no o contrrio. Desse modo, adiscusso sobre o espao e no sobre a geografia; e isto supe o domnio do mtodo. Falar em objetosem falar em mtodo pode ser apenas o anncio de um problema, sem, todavia, enunci-lo. indispensvel uma preocupao ontolgica, um esforo interpretativo de dentro, o que tanto contribui paraidentificar a natureza do espao, como para encontrar as categorias de estudo que permitam corretamenteanalis-lo.

    Essa tarefa supe o encontro de conceitos, tirados da realidade, fertilizados reciprocamente por suaassociao obrigatria, e tornados capazes de utilizao sobre a realidade em movimento. A isso tambm sepode chamar a busca de operacionalidade, um esforo constitucio nal e no adjetivo, fundado num exercciode anlise da histria.

    Um outro tema de nossa insatisfao a famosa unio espao -tem-po, mediante a considerao dainseparabilidade das duas categorias. A verdade, porm, que, frequentemente, aps a listagem de um ro -srio de intenes, o tempo aparece na prtica separado do espao, mesmo quando o contrrio que seafirma. A ideia de perodo e de periodizao constitu um avano na busca desta unio espao -tempo, e aproposta de Hgerstrand, quando permite pensar na ordemjriada pelo tempo, representa um marcoconsidervel. Mas a questo cons titucional continua sendo uma lacuna.

    Temtica central tambm aquela representada pela expresso an glo-saxnica place counts, isto ,o lugar tem importncia. Havamos j sustentado esta tese em nosso liv ro de 1978, Por uma GeografiaNova. A literatura que vem depois revela, porm, que, na ausncia de uma definio clara de espao,mesmo a abundncia de exemplos pode ter valor demonstrativo, mas no explicativo, do papel do lugar edo espao no processo social, e isto talvez justifique a rapidez com a qual esta temtica se esgotou.

  • 11

    Uma outra insatisfao nossa vem do tratamento dado pela geogra fia ao perodo atual. Como seestivesse demasiado prisioneira de uma moda, a geografia sucumbiu s fragilidades do enfoque da ps-moder-nidade, cuja verso mais popular uma abordagem frequentemente adjetival e metafrica, longe,portanto, da possibilidade da produo de um sistema. Ora, a partir do esprito de sistema queemergem os conceitos-chave que, por sua vez, constituem uma base para a cons truo, ao mesmotempo, de um objeto e de uma disciplina.

    Para Georges Gurvitch (1968,1971, p. 250), "no existe um para lelismo rigoroso entre asesferas do real e as cincias que o estudam". Partindo de uma outra ponta, ele, de algum modo, seaproxima de William James (1890, 1950), quando este se refere realidade de tudo que concebido.A noo de "subuniversos" de James encontra paralelo na ideia de "provncias limitadas designificado", de Schutz (1945,1987, p.128). Mas melhor que tais domnios de estudo sejam, de fato,superfcies da vida social, ou como queria o gegrafo Sauer (1963, p. 316), seces da realidade.

    O desafio est em separar da realidade total um campo particular, susceptvel de mostrar -seautnomo e que, ao mesmo tempo, permanea integrado nessa realidade total. E aqui enfrentamosum outro problema importante, e que o seguinte: a definio de um objeto para uma disciplina e, porconseguinte, a prpria delimitao e pertinncia dessa disciplina p assam pela metadisciplina e no orevs. Construir o objeto de uma disciplina e construir sua metadisciplina so operaes simultneas econjugadas. O mundo um s. Ele visio atravs de um dado prisma, por uma dada disciplina, mas,para o conjunto de disciplinas, os materiais constitutivos so os mesmos. isso, alis, o que une asdiversas disciplinas e o que para cada qual, deve garan tir, como uma forma de controle, o critrio darealidade total. Uma disciplina uma parcela autnoma, mas no independ ente, do saber geral. assim que se transcendem as realidades truncadas, as verdades parciais, mesmo sem a ambio defilosofar ou de teorizar.

    Todavia, transcender no escapar. Para evitar essa transgresso, aqui a demarche a oposta:no caso da transcendncia, a regra da metadisciplina a prpria disciplina. A possibilidade detranscender sem transgredir depende estritamente de sabermos, e de sabermos muito bem, qual asuperfcie do real de que estamos tratando ou, em outras palavras, qual o objeto de nossapreocupao.

    toda a questo da pertinncia que a se instala. Para que o espao possa aspirar a ser um enteanaltico independente, dentro do conjunto das cincias sociais, indispensvel que conceitos einstrumentos de anlise apaream dotados de condies de coerncia e de operaciona lidade. Assim aomesmo tempo demonstramos sua indispensabilidade e legitimamos o objeto de estudo.

    Nas diversas disciplinas sociais so essas categorias analticas e es ses instrumentos de anlise queconstituem a centralidade do mtodo. O que se torna residual considerado como "dado" e, desse modo,

  • 12

    expulso do sistema central. Cada vez que um gegrafo decide traba lhar sem se preocupar previamente como seu objeto, como se para ele tudo fossem "dados", e se entrega a um exerccio cego sem umaexplicitao dos procedimentos adotados, sem regras de consistncia, adequao e pertinncia. Talcomportamento muito frequente e le vanta a questo da necessidade de construo metdica de umcampo coerente de conhecimento, isto , dotado de coerncia interna e exter na. Externamente tal coernciase apura em relao a outros saberes, mediante a possibilidade de o campo respectivo mostrar -se distinto eser, ao mesmo tempo, completado e complemento, no processo comum de conhecimento do real total. Acoerncia interna obtida atravs da separao de categorias analticas que, por um lado, dem conta darespectiva superfcie do real, prpria a tal frao do saber e, por outro lado, permitam a produo deinstrumentos de anlise, retirados do processo histrico. Os conceitos assim destacados devem, pordefinio, ser internos ao objeto correspondente, isto , ao espao, e ao mesmo tempo constitutivos eoperacionais.

    Como ponto de partida, propomos que o espao seja definido como um conjunto indissocivel desistemas de objetos e de sistemas de aes. Atravs desta ambio de sistematizar, imaginamos poderconstruir um quadro analtico unitrio que permita ultrapassar am biguidades e tautologias. Desse modoestaremos em condies de formular problemas e ao mesmo tempo de ver aparecer conceitos, conforme aobservao de G. Canguilhem (1955). Nossa secreta am bio, a exemplo de Bruno Latour, no seu livroAramis ou 1'amour ds techniques (1992), que esses conceitos, noes e instrumentos de anliseapaream como verdadeiros atores de um romance, vistos em sua prpria histria conjunta. No sera cincia, tal como props Neil Postman (1992, p. 154) "uma forma de contar histrias"? Nesseprocesso, levados pelo investigador, alguns atores tomam a frente da cena, enquanto outros assumemposies secundrias ou so jogados para fora. O mtodo em cincias sociais acaba por ser aproduo de um "dispositivo artificial" onde os atores so o que Schutz (1945, 1987, p. 157-158)chama de marionetes ou homnculos. Quem afinal lhes d vida o autor, da esse nome dehomnculos, e sua presena no enredo se subordina a verdadeiras modelizaes qualitativas, daporque so marionetes. Mas o texto deve prever a possibilidade de tais bonecos surpreenderem osventrloquos e alcanarem alguma vida, produzindo uma histria inesperada: assim que ficaassegurada a conformidade com a histria concreta.

    No caso vertente, o que se busca uma caracterizao precisa e simples do espaogeogrfico, liberta do risco das analogias e das metforas. Como lembra Dominique L Court (1974,p.79) "as metforas e as analogias devem ser analisadas e referidas ao seu terreno de origem". O brilholiterrio as comparaes nem sempre sinnimo de enriquecimento conceitual.

    A partir da noo de espao como um conjunto indissocivel de sistemas de objetos e sistemasde aes podemos reconhecer suas categorias analticas internas. Entre elas, esto a paisagem, a

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    configurao territorial, a diviso territorial do traba lho, o espao produzido ou produtivo, asrugosidades e as formas-contedo. Da mesma maneira e com o mesmo ponto de partida, levanta -se aquesto dos recortes espaciais, propondo debates de problemas como o da regio e o do lugar, o dasredes e das escalas. Paralelamente, impem-se a realidade do meio com seus diversos contedos emartifcio e a complementaridade entre uma tecnoesfera e uma psicoesfera. E do mesmo passopodemos propor a questo da racionalidade do espao como conceito histrico atual e fruto, aomesmo tempo, da emergncia das redes e do processo de globalizao. O contedo geogrfico docotidiano tambm se inclui entre esses conceitos constitutivos e operacionais, prprios realidade doespao geogrfico, junto questo de uma ordem mundia l e de uma ordem local.

    O estudo dinmico das categorias internas acima enumeradas su pe o reconhecimento dealguns processos bsicos, originariamente externos ao espao: a tcnica, a ao, os objetos, a normae os eventos, a universalidade e a particula ridade, a totalidade e totalizao, a temporalizao e atemporalidade, a idealizao e a objetivao, os smbolos e a ideologia.

    A coerncia interna da construo terica depende do grau de re -presentatividade doselementos analticos ante o objeto estuda do. Em outras palavras, as categorias de anlise, formandosistema, devem esposar o contedo existencial, isto , devem refletir a prpria ontologia do espao, apartir de estruturas internas a ele. A coerncia externa se d por intermdio das estruturas exterioresconsideradas abrangentes e que definem a sociedade e o planeta, tomados como noes cornfins atoda a Histria e a todas as disciplinas sociais e sem as quais o en tendimento das categorias analticasinternas seria impossvel.

    A centralidade da tcnica rene as categorias internas e externas, permitindo empiricamenteassimilar coerncia externa e coerncia in terna. A tcnica deve ser vista sob um trplice aspecto: comoreveladora da produo histrica da realidade; como inspiradora de um mtodo unitrio (afastandodualismos e ambiguidades) e, finalmente, como garantia da conquista do futuro, desde que no nosdeixemos ofuscar pelas tcnicas particulares, e sejamos guiados, em nosso mtodo, pelo fenmenotcnico visto filosoficamente, isto , como um todo.

    A partir de tais premissas, este livro deseja ser uma contribuio geogrfica produo de umateoria social crtica, e em sua construo privilegiamos quatro momentos. No primeiro, tentamos

    trabalhar com as noes fundadoras do ser do espao, susceptveis de ajudar a encontrar sua buscadaontologia: a tcnica, o tempo, a intencionalidade, materializados nos objetos e aes. No segundomomento, retomamos a questo ontolgica, considerando o espao como forma -contedo. Noterceiro momento, as noes acima estabelecidas so revisitadas luz do presente histrico, paraapreendermos a constituio atual do espao e surpreendermos a emergncia de conceitos, cujosistema aberto, e cuja dialtica, nas condies atuais do mundo, repousa na forma hegemnica e

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    nas demais formas de racionalidade. No quarto momento, o reconhecimento de racionalidadesconcorrentes, em face da racionalidade dominante, revela as novas perspectivas da^mtodo e deao, autorizando mudanas de perspectiva quanto evoluo espacial e social e aconselhandomudanas na epistemologia da geografia e das cincias sociais como um todo.

    Esses quatro momentos daro as quatro grandes divises do livro, cuja arquitetura prevquinze captulos.

    A primeira parte, intitulada "Uma Ontologia do Espao: Noes Fundadoras", trata danatureza e do papel das tcnicas (captulo 1) e do movimento da produo e da vida, atravs dosobjetos e das aes (captulo 2). As tcnicas, funcionando como sistemas que marcam as diversaspocas, so examinadas atravs de sua prpria histria e vistas no apenas no seu aspecto material,mas tambm nos seus aspectos imateriais. assim que a noo de tcnica permite empiricizar o tempoe se encontra com a noo de meio geogrfico. A ideia de tcnica como algo onde o "humano" e o"no-humano" so inseparveis, central. Sem isso, seria impossvel pretender superar dicotomiasto tenazes na geografia e nas cincias sociais, quanto as que opem o natural e o cultural, o objetivoe o subjetivo, o global e o local etc. J no segundo captulo, consideramos o movimento da produoe da vida derredor de objetos e de aes, e a tambm a tcnica tem um papel central. Objetosnaturais e objetos fabricados pelo homem podem ser anali sados conforme o seu respectivocontedo, ou, em outras palavras, conforme sua condio tcnica, e o mesmo pode ser dito dasaes, que se distinguem segundo os diversos graus de intencionalidade e racionalidade.

    A segunda parte do livro retoma a questo da ontologia do espao. Aqui o que passa frente dacena j no so as noes fundadoras, mas o resultado historicamente obtido. O espao ser visto emsua prpria existncia, como uma forma-contedo, isto , como uma forma que no tem existnciaemprica e filosfica se a consideramos separadamente do contedo e um contedo que no poderiaexistir sem a forma que o abrigou. Partindo da j mencionada inseparabilidade dos objetos e das aes,a noo de intencionalidade fundamental para entender o processo pelo qual ao e objetos seconfundem, atravs do movimento permanente de dissoluo e de recriao do sentido. A produo ereproduo desse hbrido, que o espao, com a sucesso interminvel de formas-contedo, o traodinmico central da sua ontologia e constitui o captulo 3. A categoria de totalidade como umachave para o entendimento desse movimento (captulo 4), j que a consideramos como existindodentro de um processo permanente de totalizao que , ao mesmo tempo, um processo de unificaoe de fragmentao e individuao. assim que os lugares se criam, e se recriam e renovam, a cadamovimento da sociedade. O motor desse movimento a diviso do trabalho (captulo 5), encarregadaa cada ciso da totalidade de transportar aos lugares um novo contedo, mil novo significado e umnovo sentido. So os eventos (captulo 6), que constituem os vetores dessa metamorfose, unindo

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    objetos e.-aes. No se trata de um tempo sem nome, mas de um tempo empiricizado, concreto, dadoexatamente atravs desse portador de um acontecer histrico, que o evento. Desse modo, a tobuscada unio entre espao e tempo, aparece mais prxima de ser tratada de forma sistemtica emgeografia.

    A terceira parte do livro pretende oferecer uma discusso sobre o tempo presente e ascondies atuais de realizao e de transformao do espao. Enfrentar esta questo supe, desde oprimeiro momento, o conhecimento do que constitui o sistema tcnico atual (captulo 7), e de como, apartir das condies da tcnica atual, - uma tcnica in-formacional - se estabeleceram as condiesmateriais e polticas que autorizaram a produo de uma inteligncia planetria (captulo 8). Essesdados dinmicos da histria contempornea permitem retomar uma das discusses centrais do livro,isto , a questo dos objetos e das aes como hoje se verificam, acrescentando o papel das normas (ca-ptulo 9). So esses mesmos dados que levam caracterizao do meio geogrfico atual como um meiotcnico-cientfico-informacional (captulo 10). A realidade das redes, produto da condiocontempornea das tcnicas, e os problemas e ambiguidades que suscita, constituem o captulo 11. a partir, sobretudo, do funcionamento das redes, que podemos falar de verticalidades, esse "espao"de fluxos formado por pontos, dotado de um papel regulador em todas as escalas geogrficas, enquantose renovam ou se recriam horizontalidades, isto , os espaos da contiguidade (captulo 12). A noo deracionalidade do espao (captulo 13) tambm emerge das condies do mundo contemporneo,mostrando como a marcha do capitalismo, alm de ensejar a difuso da racionalidade hegemnica nosdiversos aspectos da vida econmica, social, poltica e cultural, conduz, igualmente, a que talracionalidade se instale na prpria constituio do territrio.

    A quarta parte do livro no foi concebida como uma concluso. Mas como ela cuida deperspectivas, pode parecer uma. Essa parte do livro trata do que estamos chamando aqui de fora dolugar. O captulo 14 busca mostrar as relaes entre o lugar e o cotidiano, revelando os usoscontrastados do mesmo espao segundo as diversas perspectivas que se abrem aos diferentes atores.Esse captulo aponta na direo de uma ruptura epistemolgica, j que se surpreendem evidncias daefetividade de contra-racionalidades e de racionalidades parale las, que se levantam como realidadesante a racionalidade hegemnica, e apontam caminhos novos e insuspeitados ao pensamento e ao. A mesma ideia inspira o captulo 15, intitulado "Ordem Universal, Ordem Local". A ordemuniversal frequentemente apresentada como irresistvel , todavia, defrontada e afrontada, na prtica,por uma ordem local, que sede de um sentido e aponta um destino.

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    Primeira Parte

    UMAONTOLOGIA DOESPAO:NOESFUNDADORAS

    I------------------------

    ASTCNICAS, OTEMPO E OESPAOGEOGRFICO

    INTRODUO

    por demais sabido que a principal forma de relao entre o homem e a natureza, ou melhor, entre ohomem e o meio, dada pela tcnica. As tcnicas so um conjunto de meios ins trumentais esociais, com os quais o homem rea liza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espao. Essa

    forma de ver a tcnica no , todavia, completamente explorada.

    ANEGLIGNCIA COM AS TCNICAS

    Um inventrio dos estudos empreendidos sobre a tcnica deixa ver que esse fenmeno frequentemente analisado como se a tcnica no fosse parte do territrio, um elemento de sua constituioe da sua transformao. Alguns exemplos o mostram. Concluindo o seu livro de 1985, D. Mackenzie &c J.Wajcman referem-se a diversas preocupaes dos estudos sobre tecnologia, mas o espao no mencionadonem mesmo em um lugar secundrio, como os captulos "outros temas".

    Adam Schaff (1990, 1992) se refere s consequncias sociais da revoluo tcnico-cientfica,alinhando quatro tipos de mudanas: econmicas, polticas, culturais e sociais. Mas no d um lugarespecfico s mudanas geogrficas. Certamente, porm, ele no o primeiro pensador de grandeflego a desconsiderar o espao como urna categoria autnoma do pensar histrico. Para Pinch &CBijker (1987), reconhecidos historiadores da tecnologia, a literatura dos respectivos estudos estaria

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    dividida em trs partes: 1) Estudos sobre as inovaes; 2) Histria da Tecnologia; 3) Sociologia daTecnologia. Outra vez silncio sobre o espao.

    Mesmo na obra de Barre & Papon (1993), dedicada economia e poltica da cincia e datecnologia, um compndio em que o territrio ganha uma enorme dimenso, o tratamento daquesto da cincia e da tecnologia , at certo ponto, externo ao espao, com o qual no aparecemintegradas. Um dos seus captulos, intitulado "A Geografia da Cincia e da Tecnologia" (pp. 52-98), ocupa-se da distribuio espacial de cientistas e de tecnlogos nas diversas reas e pases domundo, mas fica em aberto a questo propriamente geogrfica da cincia e da tecnologia, comocontedo do espao. Denis-Clair Lambert (1979, pp. 64-76), com sua noo de "potnciascientficas" j havia utilizado a expresso "espao cientfico" para significar a densidade ou no dapresena de pesquisadores e atividades de pesquisa e produo cientfica em diversos pases. Tal ideiade espao metafrica, ante a realidade constitucional do territrio e ao seu contedo em tcnica,capaz de identific-lo e distingui-lo.

    Historiadores da cincia e especialistas da tcnica, como o caso de B. Joerges (1988, p.16), lamentam o fato de que nos estudos histricos a realidade dos sistemas tcnicos aparea comoum dado entre aspas, faltando a conceptualizao. Esse mesmo autor critica, tambm, a posiodos economistas, quando estes frequentemente falam de empresas, mas no fazem referncia aosobjetos com que elas trabalham. Tal crtica, alis, mais ampla, incluindo socilogos cientistaspolticos, apontados por no levarem em conta coisas tais como barragens, condutos, geradores,reatores, transformadores, como se no fosse necessrio reconhecer que a tecnologia embutida nos objetosconstitui matria central da anlise sociolgica. Para Joerges, no basta que a tecnologia seja consideradaapenas por analogia com outros fenmenos sociais.

    Essa crtica, alis, no recente. M. Mauss, um dos principais seguidores de Durkheim,lembrava, num dos seus textos da revista UHomme Sociologique, que a sociologia de Durkheim nohavia atribudo a importncia devida ao fenmeno tcnico. Essa crtica compartida por ArmandCuvillier (1973, p. 189), ao se referir a trs grupos de estudiosos que "tomaram conscincia" daimportncia da tcnica: a) pr-historiadores e arquelogos; b) etngrafos (que escrevem a histria dospovos "sem histria") e c) tecnlogos propriamente ditos. Mauss (1947, p. 19), alis, havia proposto acriao de um saber - a Tecnomorfologia - que se ocuparia do conjunto das relaes entre as tcnicas e osolo e entre o solo e as tcnicas, dizendo que "em funo das tcnicas que observaremos a base geogrficada vida social: o mar, a montanha, o rio, a laguna".

    Se esse conselho houvesse sido aceito, crticas posteriores, tanto arqueologia, quanto geografia,teriam sido evitadas. Olivier Buch -senschultz (1987) lamenta que os arquelogos raramente se preocupemcom os problemas tecnolgicos, isto , com os processos tcnicos dos "traos materiais deixados pelas

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    sociedades humanas", no abordando de frente essas questes. No mesmo diapaso, Franois Sigaud (1981),embora alinhando algumas excees, tambm se interroga sobre a razo pela qual "os gegrafos evitamto sistematicamente o estudo das tcnicas que esto no centro das relaes sociedade -meio"1. Essemesmo desapreo tambm apontado em relao economia espa cial por Begag, Claisse c Moreau(1990, p. 187), ao escreverem que "a economia espacial permanece frequentemente muda a propsito dasquestes relacionadas com o desenvolvimento da tecnologia das comunicaes distncia".

    Mas, no seu projeto de pesquisa sobre a "arqueologia industrial", B. Gille (1981, pp. 22-23) traaum inventrio de setores a estudar e entre os grupos de problemas propostos, junto explorao da na -tureza, transformao dos pr.! Jtos e aos objetos da vida corrente, ele inclui a organiza o do terr crio("amnagement du territoire"). Nesse item, encontram-se as rodovias, estradas de ferro, canais, pon tes,tneis, eclusas e edifcios anexos, portos, linhas de eletricidade, condutos de gaz, pipe-lines e estocagemde combustveis lquidos, a ssim como as construes e urbanismos e, tambm, a evoluo da paisagem.No de estranhar, pois, que em sua grande Histria das Tcnicas (B. Gille, 1978), publicada naEncyclopdie de Ia Pliade (Paris), haja um captulo sobre "A Geografia e as Tcnicas" confiado a AndrFel.

    As tcnicas tm sido, com frequncia, consideradas em artigos e livros de gegrafos, sobretudo emestudos empricos de casos. Mas raro que um esforo de generalizao participe do processo de produ ode uma teoria e de um mtodo geogrficos. As estradas de ferro, e depois as rodovias, chamaram a atenode historiadores e de gegrafos. Tanto Vidal de La Blache, como Lucien Febvre, tiraram partido da noode progresso tcnico na elaborao de suas snteses. Da porque eles podem ser considerados entre ospioneiros da produo de uma geografia vinculada s tcnicas. Esse tambm o caso de AlbertDemangeon, quando se interessa pelo comrcio internacional.

    A preocupao com a tcnica aparece mais explcita em livros como o de Philip Wagner (1960),onde este gegrafo anglo-saxo declara que "nem a ecologia humana, nem a geografia regional, podemprogredir muito sem que se d a devida ateno ao papel peculiar do meio artificial na biologia do homeme no esquema da natureza". S. H. Be aver (1961) trabalhou a relao entre geografia e tecnologia.

    1. "[...] parece-me que nas disciplinas mais prximas, logicamente, da tecnologia que a recusa desta mais forte. O exemplo

    mais tpico talvez o da Geografia. Por que os gegrafos se interessam por quase tudo, menos pelas tcnicas?, tenho -meperguntado h vrios anos (1981, 4, p. 291-293). H, decerto, excees, sobretudo entre os gegrafos da escola antiga (RogerDion, Jules Sion, M. Sorre, Pierre Deffontaines etc.). Mas eles so excees, e estranho ver com que tenacidade a maioria dosgegrafos procura explicaes em todas as direes, salvo nas atividades tcnicas, que tm no entanto as relaes mais diretascom os fatos que lhes interessam" (Franois Sigaud, 1991, pp. 67-79 e p. 70).

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    Quando J. F. Kolars & J. D. Nysten (1974, p. 113) referem -se forma como a sociedade opera noespao geogrfico, atravs dos sistemas de transporte e comunicao, fazem -no de um ponto de vista doplanejamento, mostrando os problemas eventuais ligados ao movimento das coisas e das ideias2.

    O tema da relao entre a tcnica e o espao tambm objeto do interesse de gegrafos como PierreGeorge. Sua preocupao exposta em A Tcnica: Construes ou Destruies (Pierre George, 1974, p.13), onde lembra que "a influncia da tcnica sobre o espao se exerce de duas maneiras e em duas escalasdiferentes: a ocupao do solo pelas infra-estruturas das tcnicas modernas (fbricas, minas, carrires,espaos reservados circulao) e, de outro lado, as transformaes generalizadas impostas pelo uso damquina e pela execuo dos novos mtodos de produo e de existncia".

    Tomando um aspecto concreto da anlise geogrfica, Pierre George (1974, p. 82) distingue a cidadeatual da cidade anterior, lembrando que esta, na metade do sculo XIX, seria um produto cultural. Hoje, acidade "est a caminho de se tornar muito rapidamente, no mundo inteiro, um produto tcnico". Eacrescenta: "a cultura era nacional ou regional, a tcnica universal".

    Um outro gegrafo que se deteve longamente sobre a questo da tcnica foi Pierre Gourou (1973),para quem "o homem, esse fazedor de paisagens, somente existe porque ele membro de um grupo queem si mesmo um tecido de t cnicas". Os fatos humanos do espao teriam de ser examinados em funode um conjunto de tcnicas. Ele divide as tcnicas em dois grandes grupos: tcnicas da produo etcnicas de enquadramento3.

    Para Gourou, o nvel da civilizao seria medido pelo prp rio nvel das tcnicas4, conceito criticado,entre outros, por M. Bruneau (1989), P.-J. Roca e sobretudo D. Dory (1989), que o consideram como uma

    2. "A sociedade opera no espao geogrfico por meio dos sistemas de comunicao e trans porte. medida que o tempo passa, a

    sociedade atinge nveis cada vez maiores de com plexidade pelo uso das hierarquias e pelo manejo especial dos materiais e dasmensagens. Segue-se que a propriedade desses sistemas importante na conduo de todas as nossas atividades. Quaisquerlimitaes ao movimento das coisas e dos pensamentos atravs dessas hierarquias converte -se, por sua vez, em coaesexercidas sobre o funcionamento da sociedade. As limitaes podem ser fsicas, institucionais e culturais, ou psicolgicas. medida que mudam a tecnologia e as aspiraes humanas, tornando possveis novas conexes e s vezes fechando todas asvelhas rotas, a coao no interior dos sistemas tambm muda" (John F. Kolars 8c John D. Nysten, 1974, p. 113).3. "Sem um recurso s tcnicas de enquadramento, a explicao geogrfica se exaure em impasses. As tcnicas so estudadas por

    diversas disciplinas, s quais cumpre pedir justifi caes impostas pelo exame das paisagens. As tcnicas de enquadramento nosinteressam por sua eficcia no modelamento e na transformao das paisagens. O interesse no demonstrar as molas daorganizao familiar, ou o mecanismo da escolha das autoridades polticas, mas precisar o grau de eficcia dessas tcnicas:agressividade paisagista, controle de largos espaos durante longo tempo, isto , controle de um grande nmero de homens sobreuma grande extenso e durante longo tempo. a eficcia paisagista que pe rmite medir o valor explicativo das tcnicas deenquadramento; um critrio da mesma ordem ser aplicado s tcnicas de produo, consideradas segundo a sua potncia de aosobre as paisagens" (P. Gourou, 1973, p. 17).Sendo uma civilizao uma combinao de tcnicas de produo e de enquadramento, uma escalados nveis de eficcia develevar em considerao essas duas ordens tcnicas (P. Gourou, 1973).4. "[ ...] Em todos os casos, trata -se efetivamente de analisar, de localizar, de explicar, de responder a uma pergunta que

    sempre a mesma: Como os fatos humanos do espao estudado se justificam? E, sobretudo, por que conjunto de tcnicas deproduo (tcnicas de explorao da natureza, tcnicas de subsistncia, tcnicas da matria) e de enqua dramento (tcnicas dasrelaes entre os homens, tcnicas de organizao do espao): a existncia do mais pequeno grupo exige regras do jogo, tcnicasde enquadramento. Essa soma de ligaes e de tcnicas a civilizao. Em suma, todo grupo humano sustentado por t cnicas quefazem de seus membros seres 'civilizados'. E no existem 'selvagens'" (P. Gourou, 1973, p. 10).

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    apreciao quantitativa a priori das civilizaes, colocando alguns povos no topo e outros embaixo de umapirmide cultural inigualitria, e faltando clareza quanto ao papel das dinmicas sociais e polticascombinadas.

    Gourou introduz, tambm, a noo de "eficcia paisagstica" (1973, p. 17, pp. 30-31)5. Comopaisagem e espao no so sinnimos, pode-se todavia perguntar em qual dos dois reside a eficcia.

    Cabe, tambm, uma referncia particular obra de Maximilien Sorre, o primeiro gegrafo apropor, com detalhe, a considerao do fenmeno tcnico, em toda sua amplitude. A sua noo de tcnica abrangente. Para ele, "essa palavra 'tcnica' deve ser considerada no seu sentido mais largo, e no no seusentido estreito, limitado a aplicaes mecnicas". Para Sorre, a noo de tcnica "estende -se a tudo o quepertence indstria e arte, em todos os domnios da atividade humana" (Sorre, 1948, p. 5) 6. A ideia datcnica como sistema j lhe era presente, e da mesma forma, a noo de seu autocrescimento e rpidadifuso (1948, pp. 11-12). Ele estava convencido de que o entendimento da relao entre mudana tcnica emudana geogrfica era fundamental, sugerindo, ento, que os estudos geogrficos levassem em conta,simultaneamente, as tcnicas da vida social, as tcnicas da energia, as tcnicas da conquista do espao e davida de relaes e as tcnicas da produo e da transformao das matrias-primas (Sorre, 1948, pp. 6-7).Mas Sorre foi pouco seguido plos seus colegas ge grafos, mesmo se as suas ideias foram objeto de urnalarga aceitao em outras disciplinas. Segundo A. Buttimer (1986, pp. 66 -67), "os gegrafos francesesderam pouca ateno a Sorre: tenderam a v -lo mais como um gegrafo ortodoxo, verborrgico e talvezinclinado a confundir cincia com filosofia".

    O interesse pela tcnica tambm preocupa o gegrafo Andr Fel. No j mencionado artigo queescreveu sobre a geografia e as tcnicas, A. Fel (1978, pp. 1062-1110) traa um inventrio das mltiplasrelaes entre a tcnica e o fato geogrfico, lembrando que "se os objetos tcnicos se instalam na superfcieda terra, fazem-no para responder a necessidades materiais fundamentais dos homens: alimentar -se, residir,deslocar-se, rodear-se de objetos teis". Mas ele reconhece a ausncia de uma verdadeira cincia geogrficadas tcnicas, claramente definida em seus objetos e em seus mtodos (p. 1062). Por isso ele sugere a criacode uma disciplina que se poderia chamar de geotcnica, incumbida dessa tarefa7.

    5. "A civilizao moderna tem um enorme poder de ao paisagista; ela dispe de tcnicas de explorao muito eficazes

    (limitadas contudo pelas exigncias dos homens e pelas condies de funcionamento das mquinas) e de tcnicas deenquadramento irresistveis (transporte, telefone, rdio, televiso, publicidade comercial e propaganda poltica) que podemcontrolar vastos espaos, numerosas populaes, ci dades enormes" (P. Gourou, 1973, pp. 30 -31).6. "[...] Dou a essa palavra, tcnica, o seu sentido mais amplo, e no seu sentido estreito, limitado a aplicaes mecnicas. Ela se

    estende a tudo o que pertence indstria e arte humanas, em todos os domni os da atividade da espcie" (M. Sorre,"Introduction" ao tomo II, 1." Parte, Ls fondements techniques, 1948, p. 5).7. "Toda paisagem habitada plos homens traz a marca de suas tcnicas [...]. Essas paisa gens 'nos fazem perguntas' (P. Gourou).

    Num belo livro, Pour une gographie humaine, esse gegrafo nos mostra quo vasto e apaixonante o campo que assim se abre nossa curiosidade. Porque a paisagem no seno um ponto de partida. Se os objetos tcnicos ocupam a superfcie da Terra, para atender s necessidades materiais fundamentais dos homens: alimentar-se, alojar-se, deslocar-se, cercar-se de objetos teis. Aanlise geogrfica ocupa um lugar em qualquer investigao sobre as civilizaes.

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    A atual revoluo tcnica, que d um lugar proeminente informa o, no tem deixado indiferentes osgegrafos. o caso, por exemplo, de G. Tornqvist (1968, 1970, 1973, 1990), como de H. Bakis (1984,1985, 1987, 1990) e de Susane Pare (1982), cujo livro Informatique et Gegraphie, traz um inventrioadequado do aparelho informtico francs, segundo regies e cidades, mas, onde se poderia, talvez, obje -tara ausncia de um estudo de dentro do espao, no apenas externo a essa realidade social e que permitisseuma interpretao da forma como as novas presenas tcnicas vm agindo e transformando o ter ritrio.Isso implicaria ir alm da pura informtica e obr igaria a ver o conjunto de tcnicas, presentes e passadas naconformao do territrio, atravs de um processo de desenvolvimento desigual e combinado. Cabe marcar adistino entre as tcnicas particulares examinadas na sua singularidade, e a tcnica, is to , o fenmenotcnico, visto como uma totalidade8.

    Quando gegrafos escrevem que a sociedade opera no espao geo grfico por meio dos sistemas decomunicao e transportes, eles esto certos, mas a relao, que se deve buscar, entre o espao e o fenmen otcnico, abrangente de todas as manifestaes da tcnica, includas as tcnicas da prpria ao. No setrata, pois, de apenas considerar as chamadas tcnicas da produo, ou como outros preferem,as "tcnicas industriais", isto , a tcnica especfica , vista como um meio de realizar este ou aqueleresultado especfico. Uma viso assim pode levar a noes como a de espao agrcola, espao industrial (Y.Cohen, 1994, p. 95), ou espao econmico. S o fenmeno tcnico na sua total abrangncia permitealcanar a noo de espao geogrfico. Um esforo considervel nessa direo foi recentemente feito porum gegrafo espanhol, Joan-Eugeni Snchez no livro Espado, Economia y Sociedad (1991), sobretudo nocaptulo 14, "El Espacio y Ia Inno vacin Tecnolgica" (p. 263-319) e por um gegrafo brasileiro, RuyMoreira (1995).

    Para P.-J. Roca (1989, p. 119), o discurso dos gegrafos sobre a tcnica, tem-se dado segundo trsenfoques principais, constituindo, ao seu ver, trs esquemas bastante distintos. Esses esquemas so osseguintes (Roca, p. 120): um primeiro esquema em torno do conceito de gnero de vida de Vidal de LaBlache, em que, no dizer de Andr Fel, as tcnicas, as sociedades que as utilizam e o meio geogrfico queas acolhe, formam um conjunto coerente. Um segundo esquema, tambm mencionado por Roca,

    "No entanto, deve-se constatar que uma verdadeira cincia geogrfica das tcnicas - uma geotcnica? - claramente definida emseu objeto e em seus mtodos est longe de se ter constitudo. No por falta de pesquisas e de reflexes. Para citar apenasalguns gegrafos franceses, dos grandes clssicos aos mais jovens , P. Vidal de La Blache, M. Sorre, A. De -mangeon, J.Gottman, P. Gourou, P. George, J. Labasse etc. enriqueceram sucessivamente um domnio de estudos que insiste em permanecerimpreciso. Aqui, eles foram limitados e ns tambm, por um obstculo independent e dos pesquisadores. O prprio progressotcnico transforma a geografia. 'O mundo inteiro est envolvido numa sucesso de revo lues' (P. George)" (Andr Fel, 1978,pp. 1062-1110).8. No livro organizado por Pierre Musso (1994), a sua introduo sobre "In ovaes Tcnicas e Espao", p. S, constitui, mais

    uma vez, diante de novas tcnicas, um esforo para enten der o espao a partir de um enfoque que isola essas novas tcnicasdaquelas preexistentes, com abstrao, portanto, do espao que todas elas, juntas, conformam. Esse mtodo pode ser til doponto de vista dos utilizadores potenciais dessas novas tcnicas ou como estratgia de vendas. Mas insuficiente para tratar anoo de espao geogrfico, espao banal. Tal enfoque, j utilizado alis no passado, a propsito das estradas de ferro e, depois,das estradas de rodagem, constitui uma reduo, deixando -nos mais longe ainda da construo adequada de uma epistemologia dageografia que leve em conta o papel do fenmeno tcnico na construo do espao banal.

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    atribuindo-o a R. Cresswell, no qual o ponto forte o estudo das tcnicas a partir dos instrumentos de tra -balho. Para Cresswell, a tcnica seria definida como "toda uma srie de aes que compreendem umagente, uma matria e um instrumento de trabalho ou meio de ao sobre a matria, e cuja interao permitea fabricao de um objeto ou de um produto. Um terceiro esquema, diz ainda Roca (p. 120), pe emrelao trs entidades: a sociedade, as tcnicas e o meio, assim com suas inter-relaes. Mas esse esquema,segundo o seu autor, oferece o risco de ver os gegrafos, pelo fato da carncia de comando dos mtodosespecficos9, concentrarem seus esforos apenas sobre as relaes homem/meio ou sociedade/entorno.

    ATCNICA, ELA PRPRIA, .UM MEIO

    Como trabalhar a questo da tcnica de modo a que sirva como base para uma explicaogeogrfica? Cremos que um primeiro enfo que considerar a prpria tcnica como um meio. Essa, alis,foi, em diversos livros, uma das propostas principais de Jacques Ellul, para quem a ordem criada pelatcnica inclui o homem em um verdadeiro novo meio natural10. G. Bhnee prope a noo deTecnoestrutura, que seria o resultado das interrelaes essenciais do sistema de objetos tcnicos com asestruturas sociais e as estruturas ecolgicas, ideia que servir, no dizer de B. Joerges (1988, p. 17) paraexorcizar as ambiguidades do conceito de tcnica e de tecnologia nas cincias sociais.

    A noo de objeto tcnico ser central nesse e noutro s enfoques. J.-P. Seris (1994, p. 24) sepergunta se todo objeto artificial constitui um objeto tcnico. Ele tambm se pergunta se um gro de trigoou um exemplar de um jornal podem ser considerados objetos tcnicos. A verdade, porm, que, para osfins de nossa anlise, mesmo os objetos naturais poderiam ser includos entre os objetos tcnicos, se considerado o critrio do uso possvel. Se vlida a proposta de Seris (1994, p. 22): "ser objeto tcnicotodo objeto susceptvel de funcionar, como meio o u como resultado, entre os requisitos de uma atividadetcnica". Esses objetos tcnicos estariam sujeitos (Seris, 1994, p. 35), a um pro cesso similar ao da seleodarwiniana. Sua adoo pelas sociedades seria funo de uma avaliao dos valores tcnicos, emrelao com o xito ou o fracasso provveis.

    A eficcia do objeto tcnico foi bem analisada por M. Akhrich (1987, p. 51), para quem oobjeto tcnico vive num "pisca-pisca" incessante entre o "interior" e o "exterior". Mas em nenhum casoa difuso dos objetos tcnicos se d uniformemente ou de modo homogneo. Essa heterogeneidade vemda maneira como eles se inserem desigualmente na histria e no territrio, no tempo e no espao.

    9. "Como foi sugerido na introduo, evidente que, se os gegrafos trataram com frequn cia das tcnicas, eles quase no

    abordaram nem a tcnica, nem o seu papel na sociedade. Mais ainda, quando se trata de tcnica em evoluo, de relaes entresociedades onde a tcnica no tem o mesmo lugar, a vaguidade das anlises continua sendo um obstculo com o qual noschocamos constantemente. Uma retificao portanto, desde j, neces sria" (Pierre-Jean Roca, 1989, p. 119).10

    . Ver o captulo II ("La technique comme lieu") de Jacques Ellul, 1977, pp. 43 -61.

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    dessa forma que, como diz J. Frades (1992, p.18), "a tcnica adquire uma presena e esposaum meio". A pretexto de analisar as redes sociotcnicas, criadas a partir da introduo de objetostcnicos (no caso a eletricidade em meio subdesenvolvido), M. Akhrich (1987) oferece-nos, tambm,uma chave para entender, a partir do fenmeno tcnico, a produo e a transformao de um meiogeogrfico, assim como, por outro lado, as condies de organizao social e geogrfica, necessrias introduo de uma nova tcnica. Ela estava trabalhando sobre a difuso da rede eltrica na Costa doMarfim e avaliando o seu peso na produo de uma solidariedade forada entre os indivduos.Segundo essa autora (p. 52) o objeto tcnico define ao mesmo tempo os atores e um espao.

    Conforme observa Usher (1929), "em um momento dado as escolhas so limitadas pelo entornogeogrfico e social" (p. 67). esse fato que autoriza Stiegler (1994) a dizer que esse mecanismo limita ofenmeno da hipertelia do objeto tcnico11. A noo de hipertelia deve ser creditada a Simondon(1958), pai da ideia de objeto tcnico concreto. Graas aos progressos da cincia e da tcnica,construmos cada vez mais objetos com possibilidades funcionais sobredeterminadas. Esses objetosconcretos tendem a alcanar uma especializao mxima e'"a obter uma intencionalidade extrema.

    Para Simondon (1958,1989, p. 36), os "objetos tcnicos concretos" so distintos dos "objetosabstratos", tpicos das primeiras fases da histria humana. O "objeto abstraio", lembra Thierry Gaudin(1978, p. 31), formado pela justaposio de componentes que e xercem, cada qual, uma s funo abstraa,ao passo que, no objeto concreto, cada elemento se integra no todo e medida que o objeto se torna maisconcreto, cada qual de suas partes colabora mais intimamente com as outras, tendendo a se reunir em umamesma forma. Segundo Simondon, quanto mais prximo da natureza o objeto, mais ele imperfeito e,quanto mais tecnicizado, mais perfeito, permitindo desse modo um comando mais eficaz do homem sobreele. Assim, o "objeto tcnico concreto" acaba por ser mais perfeito que a prpria natureza.

    Mas cada vez que o objeto est inserido num conjunto de objetos e que a sua operao se incluinum conjunto de operaes - tudo isso formando sistema -, a hipertelia do objeto tcnico concreto setorna condicionada.

    Podemos dizer, com George Balandier, que as noes de tcnica e de meio so inseparveis, desdeque demos ao termo meio "sua acepo mais larga, que ultrapassa, de muito, a noo de entorno natural"(1991, p. 6). Os objetos tcnicos tm de ser estudados juntament e com o seu entorno, conforme propeLangdon Winner (1985, p. 374). De tal modo, podemos afirmar que cada novo objeto apropriado de ummodo especfico pelo espao preexistente.

    11. "Ao se naturalizar, ao engendrar seu prprio meio, o objeto escapa ao fenmeno da hipertelia, que limita sua indeterminao

    ao torn-lo dependente de um meio artificial. A hipertelia uma 'especializao exagerada do objeto tcnico' que o desadapta emrelao a uma mudana, ainda que ligeira, que sobrevenha nas condies de utilizao ou de fabricao" (B. Stiegler, 1994, p.92).

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    Sem dvida, o espao formado de objetos; mas no so os objetos que determinam os objetos. oespao que determina os objetos: o espao visto como um conjunto de objetos organizados segundo umalgica e utilizados (acionados) segundo uma lgica. Essa lgica da ins talao das coisas e da realizao dasaes se confunde com a lgica da histria, qual o espao assegura a continuidade. nesse sentido quepodemos dizer com Rotenstreich (1985, p. 58) que a prpria his tria se torna um meio (um environment),e que a sntese realizada atravs do espao no implica uma harmonia pree stabelecida. Cada vez seproduz uma nova sntese e se cria uma nova unidade.

    o espao que redefine os objetos tcnicos, apesar de suas vocaes originais, ao inclu-los numconjunto coerente onde a contiguidade obriga a agir em conjunto e solidariamente. Essa discusso deveser aproximada da ideia de Simondon de naturalizao do objeto concreto, isto , sua completa imisono meio que o acolheu, o que ele chama de processo de adaptao-concretizao. dessa forma que secria o que ele vai chamar de meio tecnogeogrfico. Esse meio tecnoge-ogrfico s possvel, ao seu ver, emvirtude da inteligncia do homem e sempre sugere a presena de uma funo inventiva de antecipao.Essa antecipao no se encontra, diz ele, na natureza, nem nos objetos tcnicos j constitudos (1958, 1989,p. 56).

    Na realidade, no se trataria, segundo Simondon, de uma simples adio do meio tcnico ao meionatural, mas da produo de outra coisa, de tal maneira que o objeto tcnico aparece como condio deexistncia de um meio misto, que tcnico e geogrfico ao mesmo tempo, (p. 55). E a isso que Simondonvai chamar de meio associado. Essa proposta de Simondon deveria ajudar -nos na construo de uma nooadequada de meio geogrfico, antes como meio tcnico e j agora como mei o tcnico-cientfico-informacional. O que, todavia, irnico, que tal ideia, mesmo quando recentemente retomada porStiegler (1994, p. 94), , de nosso ponto de vista, incompleta, exata -mente pelo fato de que tende areproduzir os dualismos e as ambiguidades da proposta epistemolgica tradicional da geografia. Por exemplo,quando Simondon (p. 52) considera que "o objeto tcnico um ponto de encontro entre dois meios, o meiotcnico e o meio geogrfico", e "deve ser integrado aos dois. Ele um compromi sso entre os dois" (B.Stiegler, 1994, p. 92). Nossa pergunta a seguinte: porque uni -los, atravs de uma separao, em vez deconsider-los como fundidos ao produzir o meio geogrfico? De fato, dizemos ns, no h essa coisa deum meio geogrfico de um lado e de um meio tcnico do outro. O que sempre se criou a partir da fuso um meio geogrfico, um meio que viveu milnios como meio natural ou pr -tcnico, um meio ao qual se

    chamou de meio tcnico ou maqunico durante dois a trs sculos, e que hoje estamos propondo considerarcomo meio tcnico-cientfico-informacional. Mas se h um seno na proposta de Simondon, este certamente uma herana da prpria posio da geografia diante do seu quinho da realidade, que essadisciplina insistentemente tendeu a ver de maneira dual. como se se buscasse renovar a oposio entreum meio natural e um meio tcnico, com a recusa em ver a tcnica integra da ao meio como uma realidade

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    unitria. No assim, tambm, que, com frequncia, so descritos e explicados, paral elamente, um meiotcnico e um meio geogrfico? Mesmo a aluso a um meio humano, a uma geografia humana "integradaao processo de concretizao" (e no a uma geografia fsica) feita por Stiegler (1994, p. 94), decorre dessevcio fundamental. Mas o espao um misto, um hbrido, um composto de formas-contedo.

    A NECESSIDADE DE UMENFOQUE ABRANGENTE

    No domnio das relaes entre tcnica e espao, uma primeira re alidade a no esquecer a dapropagao desigual das tcnicas. Esse ponto, que foi corretamente discutido por Jean-Louis Lespes (1980,pp. 56-76), sugere um importante debate a respeito do processo de difuso das tcnicas e de sua implantaoseletiva sobre o espao. Num mesmo pedao de territrio, convivem subsistemas tcnicos diferentementedatados, isto , elementos tcnicos provenientes de pocas diversas.

    Quando J. Perrin (1988, p. 26) lembra que "um sistema tcnico pode absorver, se existecompatibilidade das tcnicas, estruturas pertencendo a um sistema precedente", ele est levantando umproblema propriamente tcnico: o de sua eficcia, j que a plena eficcia do sistema tcnico estcondicionada a uma articulao entre as suas diversas peas.

    De um ponto de vista propriamente geogrfico a questo se coloca de forma diferente. Devemospartir do fato de que esses diferentes sis temas tcnicos formam uma situao e so uma existncia numlugar dado, para tratar de entender como, a partir desse substrato, as aes humanas se realizam. A formacomo se combinam sistemas tcnicos de diferentes idades vai ter uma consequncia sobe as formas devida possveis naquela rea. Do ponto de vista especfico da tcnica domi nante, a questo outra; a deverificar como os resduos do passado so um obstculo difuso do novo ou juntos encontram amaneira de permitir aes simultneas.

    A noo, proposta por Th. Hughes (1980, p. 73), de "reverse sa-lient", decorre dessacontingncia histrica. Segundo este autor, um salient uma protuso resultante da expanso no-homognea dos sistemas tecnolgicos. Os reverse salients so componentes do sistema tcnico que setornou velho. Segundo Joerges (1988), reverse salient so anomalias tcnicas ou organizacionais queresultam da elaborao desigual ou da evoluo desigual de um conjunto e de tal maneira que, quandouma parcela progride, uma outra se atrasa. No seria isso, de algum modo, equivalente nossa noode rugosidade? (Santos, 1978, pp. 136-140), quando nos referimos ao papel de "inrcia dinmica"dessas formas herdadas?

    H, todavia, diferenas. As rugosidades no podem ser apenas encaradas como heranas fsico-territoriais, mas tambm como heranas socioterritoriais ou sociogeogrficas. A diferena entre

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    rugosidades e reverse salient vem, neste ltimo caso, do carter quase absoluto do valor em si de umaexistncia tcnica, enquanto na anlise geogrfica no h valores em si. O valor de um dado elementodo espao, seja ele o objeto tcnico mais concreto ou mais performante, dado pelo conjunto dasociedade, e se exprime atravs da realidade do espao em que se encaixou.

    Outro enfoque ligado a usa difuso desigual das tcnicas permite distinguir entre tudo o que sepassou em data anterior e o perodo atual, no qual a tcnica se torna universal, direta ou indiretamentepresente em toda parte Ora, examinando sob esse aspecto a histria d mundo, vemos que a aceitaodas tcnicas novas foi sempre relativa e sempre incompleta. Mesmo os pases responsveis plosmaiores avanos tecnolgicos jamais apresentaram um quadro de homogeneidade na sua implantao.Por exemplo, no nos E.U.A. que esto as melhores estradas de ferro do mundo, nem os correiosamericanos se encontram entre os mais velozes. Se consideramos o conjunto dos pases, uma anliseparecida pode ser feita. Vejamos, por exemplo, o que se passou no fim do sculo passado, quando seinstala a grande indstria. Graas s novas tcnicas, foi possvel ao mundo entrar na fase do imperialismo,mas as possibilidades tcnicas disponveis no foram completamente utilizadas.

    Se a tcnica fosse um absoluto, no seria possvel imaginar a permanncia, durante tanto tempo,desse sistema imperialista, com a coexistncia entre imprios coloniais (Inglaterra, Frana, Blgica,Holanda, Portugal...), independentemente das desigualdades s vezes gritantes de poder tecnolgico dasrespectivas metrpoles. Essa possibilidade de funcionamento simultneo e harmnico desses imprios,segundo nveis os mais diferentes de tecnologia presentes no centro e na periferia, resulta do fator poltico.A unidade de mando, sediada em cada metrpole era utilizada para impor normas comerciais rgidas scolnias, uma regulao em circuito fechado, com os equilbrios permanentemente recriados pela fora denormas rgidas de comrcio. Essas normas iam da criao de monoplios, at o estabelec imento dos preos equotas de importao e de exportao, mediante os conhe cidos pactos coloniais. De tal maneira, osdesequilbrios produtivos eram compensados plos equilbrios comerciais, numa sbia utilizao poltica dadesigualdade tecnolgica. O sistema vai durar praticamente um sculo, e a crise vai dar-se quando os pasesque dispunham de novas tecnologias, mas no de colnias, descobrem a necessidade de penetrar nessescircuitos fechados, pela seduo ou mediante o aberto incentivo imploso dos imprios.

    Quando os Estados Unidos se sentiram prontos a entrar vantajo samente na competio, atravs dassuas novas tecnologias, mesmo as da informao, e por meio dos sistemas produtivos correspondentes,compreenderam que a primeira tarefa era desmante lar as condies socioeconmicas e sociopolticas quelhes constituam um obstculo. a partir disso que os E.U.A. passam a estimular, no mundo como umtodo, a produo de um clima picolgico e intelectual favorvel ao processo de descolonizao. Estaproduz uma crise no interior de cada imprio. As lutas pela independncia, e depois, a criao de novospases, desmantelam o arcabouo que permitia aos imprios crescer ou subsistir sem uma contribuio

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    importante e obrigatria de novas tecnologias. Ao contrrio dos anteriores, o imprio americano do aps -guerra no tem como base a posse de colnias, mas o controle de um aparelho produtor de cincia e detecnologia e a associao entre esse aparelho, a atividade econmica e a atividade militar. Estava, por co n-seguinte, aberta a porta para o triunfo de um novo sistema.

    O processo de globalizao, em sua fase atual, revela uma von tade de fundar o domnio domundo na associao entre grandes organizaes e uma tecnologia cegamente utilizada. Mas a realidadedos territrios e as contingncias do "meio associado" asseguram a impossibilidade da desejadahomogeneizao.

    A questo que aqui se coloca a de saber, de um lado, em que medi da a noo de espao podecontribuir interpretao do fenmeno tcnico, e, de outro lado, verificar, sistematicamente, o papel dofenmeno tcnico na produo e nas transformaes do espao geogrfico.

    No seu livro A Vocao Atual da Sociologia, Georges Gurvitch (1950), referindo-se ao que intitulade falsos problemas da sociologia do sculo XIX, critica o que chama de escola tecnolgica. Esta, segun doele, teria desejado interpretar a realidade social e o seu movimento a partir exclusivamente dos meiostcnicos, atribuindo, assim, um papel predominante aos utenslios, sem levar dev idamente em conta os qua-dros sociais onde as tcnicas e os instrumentos nasceram e agiram. G. Gurvitch inclui entre os que assimpensaram os partidrios da tecnocracia, de Taylor a J. Burnhan. Mas ele tambm inclui, o que discu tvel,gente como Veblen, Ogburn, Leroi-Gourhan e Lewis Mumford, embora para este ltimo ele acrescentereservas e matizes. Daniel Bell (1976, p. X) tambm critica a nfase dada tecnologia, quando ela considerada como determinante de todas as outras mudanas sociais. Uma outra crtica feita por HenriLefebvre ( 1949), quando ele nos convoca para estar bem atentos a fim de conjurar a "iluso tecnolgi ca". assim que Lefebvre custica aquela viso de Proudhon, quando este supe "a hiptese de uma histria damquina ou da tcnica tomada como um dado independente". Sem dvida, a tcnica um elementoimportante de explicao da sociedade e dos lugares, mas, sozinha, a tcnica no explica nada. Apenas ovalor relativo valor. E o valor relativo s identificado no interior de um sistema da realidade, e de umsistema de referncias elaborados para entend -la, isto , para arrancar os fatos isolados da sua solido e seumutismo.

    De que maneira pode a categoria espao ser til a esse enquadra mento sistmico da tcnica? Ofilsofo J.-P. Sris (1994, p. 90) considera a geografia e a histria como condicionantes especficos constran -gedores, mas a ele est referindo-se s noes de extenso e sucesso. Mas quando o problema menos aconstatao pura e simples de um fato ou de uma situao (conjunto de condies) e a questo se deslocapara a explicao desse fato (conjunto de conceitos), histria como disciplina que ele se dirige (p. 9 1) eno mais geografia. Sem dvida, h referncia geografia na obra de J. -P. Sris (1994, pp. 95, 313), e, atmesmo, referncias s tcnicas do espao, que presidiram durante o neoltico a ocupao do solo e a

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    sedentarizao (p. 60). Todavia, ele parece limitar-se a essa aurora da histria. Cabe, ento, perguntar: teroas tcnicas do espao deixado de existir ao longo do tempo? O espao de Sris presta -se a essa maneira deolvido. Trata-se, na verdade, de um espao-receptculo, que apenas tomaria expresso como um reflexo doator. Tambm a referncia de J. -P. Sris normalizao tpica desse entendimento do espao, quando oautor considera que a partir da norma em vigor (p. 84) o tempo e o espao no contam mais, pois sodomesticados e como que anulados. um equvoco, devido a uma viso esttica, marmrea, do fenmenogeogrfico. Essa viso inaceitvel porque o contedo tcnico do espao , em si mes mo, obrigatoriamente,um contedo em tempo - o tempo das coisas - sobre o qual vm agir outras manifestaes do tempo, porexemplo, o tempo como ao e o tempo como norma. No que esta suprima o espao e o tempo, apenas

    os altera em sua textura, e pode tambm alter-los em sua durao.

    O exemplo do "espao do automvel" dado por Sris (p. 50), significativo. Ele escreve: "smboloda autonomia perfeita, o automvel particular apenas se concretiza no conjunto das relaes tcnicas oudas relaes tecnicamente estabelecidas no espao e no tempo [...] e no permanece concreto, senoenquanto essas relaes se mantm [...]". J. -P. Sris insiste nessa relao entre tcnica e histria,quando diz que a "tcnica necessariamente histria" (p. 91). E est certo. Mas, a tcnica tambmgeografia. Se esta no se alou s condies de considerar a tcnica como um dado explicativo maior,podemos, no entanto, dizer que a tcnica , tambm, necessar iamente espao.

    no espao que esse papel de "n de problemas" (p. 102), e de "mediao generalizada" (J.Ellul & J.-P. Sris, 1994, p. 53), se manifesta de modo indiscutvel. Aquela "unidade sistemtica"que a integra no "todo social" [...] (na totalidad e dos recursos em um dado momento da histria,sobre uma rea cultural comum), verifica -se exatamente sobre um espao, esse mesmo espao que,evoluindo e se renovando, assegura a "continuidade histrica" (Sris, 1994, p. 95). Apenas o espaono participa da histria como um destes "grands socles imobiles et muets", da alegoria de Foucaultna Arqueologia do Saber, que Sris cita, mas, na verdade, como um dado ativo cujo papel nasorientaes, escolhas, aes e resultados, crescente ao longo da histria.

    Culpa de Sris? Culpa dos gegrafos? Preferimos tender para uma resposta negativa primeiraquesto e afirmativa segunda. De um modo geral, por falta de uma epistemologia, claramenteexpressa, que a prpria geografia tem dificuldade para participar em um debate filosfico einterdisciplinar. Ao nosso ver, essa a razo pela qual es pecialistas de outras disciplinas, no sabendoclaramente o que fazem os gegrafos, renunciam a inclu -los nos seus prprios debates. O que fazfalta, alis, seria uma metadisciplina da geografia, que se inspire na tcnica: na tcnica, isto , nofenmeno tcnico e no nas tcnicas, na tecnologia.

    O fato de que os gegrafos tenham com frequncia desconsiderado a tcnica em suasformulaes metodolgicas ou que a tenham con siderado como um dado externo e no propriamente

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    constitucional, em sua dmarche terico-emprica, vai ter implicaes na maneira como outrosespecialistas tratam a questo do espao. J vimos que Simondon, em vez de considerar o meiotcnico como uma normal evoluo do meio geogrfico, viu -se levado a propor a noo de meioassociado e de meio tecnogeogrfico, para dar conta dessa associao entre tcnica e meio, fruto da marchada histria. Em revanche, os gegrafos nem sequer se aperceberam da importncia dos achados deSimondon. Resultado: perdeu a geografia, atrasando -se a sua prpria evoluo; e perdeu a filosofia dastcnicas, pela ausncia de um enfoque geogrfico paralelo.

    Para esse resultado, trabalha, sem dvida, a ambiguidade do esta tuto epistemolgico da geografia,at hoje tmida e hesitante quanto a uma clara explicitao do que deva ser o seu objeto.

    Quando Anne Buttimer (1979, p. 249) observa que "entre as preo cupaes centrais para a geografiamoderna encontra-se a organizao do espao e do tempo", seu objetivo no explicitamente uma desco -berta da experincia humana total, mas, antes, da experincia tcnica, ou da utilizao racional do espao-tempo, visando assegurar eficcia econmica administrao dos investimentos. Todavia, o objeti vocorreto no uma geografia preocupada com investimentos, mas com todas as formas de existncia. Trata -se, desse modo, de privilegiar um enfoque que leve em conta todos os aspectos de uma dada situao.Toda situao uma construo real que admite uma construo lgica, cujo entendimento passa pelahistria da sua produo. O recurso tcnica deve permitir identificar e classificar os elementos queconstrem tais situaes. Esses elementos so dados histricos e toda tcnica inclui histria. Na reali dade,toda tcnica histria embutida. Atravs dos objetos, a tcnica histria no momento da sua criao e node sua instalao e revela o encontro, em cada lugar, das condies histricas (econmicas, socioculturais,polticas, geogrficas), que permit iram a chegada desses objetos e presidiram sua operao. A tcnica tempo congelado e revela uma histria.

    O uso dos objetos atravs do tempo mostra histrias sucessivas desenroladas no lugar e fora dele.Cada objeto utilizado segundo equaes de fora originadas em diferentes escalas, mas que se realizam numlugar, onde vo mudando ao longo do tempo. Assim, a maneira como a unidade entre tempo e espao vaidando-se, ao longo do tempo, pode ser entendida atravs da histria das tcnicas: uma histria geral,uma histria local. A epistemologia da geografia deve levar isso em conta. A tcnica nos ajuda ahistoricizar, isto , a considerar o espao como fenmeno histrico a geografizar, isto , a produziruma geografia como cincia histrica. Assim pode-se tambm produzir uma epistemologiageogrfica de cunho historicista e gentico, e no apenas historista e analtico. Os medos de E. Soja(1989) so assim espantados.

    A epistemologia analtica (M. Escolar, 1996) permite construes lgicas, um discursoelegante e talvez coerente em si mesmo, mas frequentemente externo realidade. Com ela, podemoscorrer o risco de construir um discurso metafsico da geografia, que no permita a produo de

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    conceitos operacionais. Mediante um enfoque que leve em considerao e aperfeioe as premissasaqui delineadas, a geografia deve, ao menos, ser vista como um estudo de caso para as filosofias datcnica, seno propriamente como uma contribuio especfica para a produo de uma filosofia dastcnicas. Quanto ao problema epis-temolgico propriamente dito da geografia, ele passa peloencontro do caminho adequado para sistematizar as relaes da tcnica com o "tempo" e com o"espao".

    ASTCNICAS E AEMPIRICIZAO DOTEMPO

    O enfoque das tcnicas pode tornar-se fundamental quando se trata de enfrentar essa questoescorregadia das relaes entre o tempo e o espao em geografia. Com uma s penada, e a propsitoda neglicncia quanto ao tratamento do assunto, D. Harvey (1967, p. 550, em Chor-ley &C Haggett)produzira uma frase acerba, ao escrever:

    Do mesmo modo que Marshall considerou a dimenso espacial como relativamente sem importncia na

    formulao do seu sistema econmico, da mesma forma o 'vis anglo -saxo', assim como Isard (1956,p. 24) o chama, conduziu os gegrafos a negligenciar a dimenso temporal - um defeito de que Sauerfirmemente culpa Hartshorne (Sauer, 1963, p. 352).

    Quanta gente envolvida! Para Morrill (1965) os gegrafos so gente que critica a "maravilhosaterra sem espao" dos economistas, sem se preocuparem eles prprios com a validez de uma geografiaconstruda em um espao situado fora do tempo.

    Referindo-se tambm aos "amigos economistas", E. Ullmann (1973, p. 138) sugere que estesprocuram um revide, quando se quei xam de uma ausncia frequente no tra balho dos gegrafos: a ausnciada ao, ou mesmo mais, de fins normativos. E conclui: "um explcito reconhecimento do tempo ajudariaos gegrafos a se orientarem sensvel e objetivamente nessa direo interessante". Mas o que seria esse"explcito reconhecimento do tempo" - o estudo da modernizao e da difuso de inovaes, a delimitaode perodos histricos segundo as escalas geogrficas, ou, simplesmente, o enunciado da inseparabilidade dotempo e do espao?

    O tratamento da questo do tempo nos estud os geogrficos no mais um tabu, mas testemunha,ainda, uma certa frouxido conceituai. Com frequncia o que vemos so circunlocues e tautologias e umavolta ao ponto de origem, malgrado alguns firmes avanos, como os registrados recentemente com achamada geografia do tempo de T. Hgerstrand.

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    Como ir alm do discurso que prega a necessidade de tratar parale lamente o tempo e o espao, dodiscurso de crtica dos outros especialis tas que menosprezam esse enfoque, e do prprio discurso de autocrticade uma geografia igualmente faltosa? Como ultrapassar o enunciado gratuito de um tempo unido aoespao, mediante a relativizao de um e de outro? Como traduzir em categorias analticas essa mistura,que faz com que o espao seja tambm o tempo e vice -versa?

    A reafirmao das relaes entre a geografia e a histria , certa mente, o mais simples e,positivamente, o mais naf dos enfoques. certo que lise Reclus havia escrito, h um sculo, que ageografia a histria no espao e a histria a geografia no tempo, mas essa frase, milionariamenterepelida, jamais se pretendeu um guia de mtodo.

    A geografia histrica de certo modo desejou inverter esse enunciado, buscando, ela prpria, fazer umageografia no tempo, reconstruindo as geografias do passado. Mas de que serve dizer como Darby(1953, p. 6) que no podemos traar uma linha divisria entre a geografia e a histria "porque oprocesso do devir um s?" E Darby talvez no obtivesse o acordo dos gegrafos histricos, em suaafirmao de que "toda geografia geografia histrica, atual ou potencial". A geografia histricapretende retraar o passado, mas ela o faz assentada no pre sente, isto , a partir do momento em que escrita. Em que medida ela pode revelar o que arbitrariamente se chama de passado, q uando, emvez de mostrar