santos, ana - formação e prática do professor de instrumento de cordas

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO FORMAÇÃO E PRÁTICA DO PROFESSOR DE INSTRUMENTO DE CORDAS ANA ROSELI PAES DOS SANTOS CAMPINAS FEVEREIRO, 2008

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Santos, Ana - Formação e Prática Do Professor de Instrumento de Cordas

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO MESTRADO EM EDUCAO

    FORMAO E PRTICA DO PROFESSOR DE INSTRUMENTO DE CORDAS

    ANA ROSELI PAES DOS SANTOS

    CAMPINAS FEVEREIRO, 2008

  • ii

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

    DISSERTAO DE MESTRADO

    Ttulo: Formao e prtica do Professor de Instrumento de Cordas

    Autora: Ana Roseli Paes dos Santos Orientadora: Letcia Bicalho Cando

    Este exemplar corresponde redao final da Dissertao defendida por Ana Roseli Paes dos Santos e aprovada pela Comisso Julgadora. Data: 25 de fevereiro 2008

    Assinatura:............................................................................... Orientadora

    COMISSO JULGADORA:

    2008

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  • iv

    o tnue fio do tempo

    o menino, o pai e o violino

    unidos, nicos, sozinhos

    rvore num jardim de delcias

    dedos de brinquedos do destino

    delicados, os gestos do pai

    ensinam ao menino o violino

    cordas num mesmo abrao

    sons de um mesmo sino

    (s a vida determina

    a equao dos caminhos)

    no se sabe onde doeu o grito

    quando o elo foi perdido

    o menino cresceu do pai

    entre solides e atritos

    e nunca mais se tocaram

    como se toca um violino

    (Tanussi CARDOSO. Exerccio do olhar, 2006, p. 65)

  • v

    AGRADECIMENTOS

    Antes que recursos e procedimentos utilizados para tornar possvel o presente estudo, para mim, o mais importante foi poder contar com incentivo, apoio e colaborao de pessoas

    altamente especiais, que, se antes j gozavam de minha profunda admirao, hoje merecem meu maior respeito e apreo.

    Agradeo ento:

    A Professora Dr. Letcia Bicalho Cando pela oportunidade e orientao a qual soube

    conter meu discurso exacerbado e mostrar-me um rumo.

    Aos meus colegas e professores do Grupo de pesquisa FOCUS/UNICAMP pela colaborao e presteza.

    Ao Rogrio Santos pela doce pacincia.

    s Professoras Dr. Clia Maria de Castro Almeida e Dr. Shinobu Saito pela credibilidade, amizade e apoio.

    Aos professores Dr. Dbora Mazza e Dr. Jonatas Manzolli, pela colaborao imprescindvel.

    Em especial a amiga Josefina Neves Mello que acreditou no meu sonho e me acompanhou nos momentos mais difceis, lendo e tentando compreender minhas inquietaes.

    Aos colegas professores que me permitiram invadir seu espao, sua vida, lendo e interpretando a obra nica que cada deles.

    Por fim, a todos que contriburam de alguma forma com a realizao deste estudo, amigos, funcionrios da Faculdade de Educao UNICAMP, aos meus alunos, que compartilharam comigo no quotidiano da sala de aula as alegrias de supostas descobertas e a felicidade de vivenciar o ensino como pesquisa.

  • vi

    RESUMO

    O presente trabalho insere-se na temtica da formao e prtica do professor e tem como objeto o Professor de Msica, especificamente o de instrumentos de cordas friccionadas. Diante das freqentes transformaes por que passam as sociedades, os ambientes de formao exigem tambm suas modificaes no plano das diretrizes. Diante de tais fatos, nosso problema de pesquisa se estabeleceu por meio das seguintes indagaes: Como alguns indivduos educados para ser msico assumem o ofcio de professor, Como constroem o conhecimento que colocam em prtica? e Como se d essa prtica

    pedaggica?. Este estudo, portanto, foi guiado pelas hipteses de que as formas de socializao so fatores importantes no desempenho futuro do professor e

    conseqentemente na construo da sua prtica; que o conjunto de valores e crenas acumuladas durante a trajetria de formao, dentre outros elementos, contribui para a perfomance servindo de base para seu desempenho. Assim, neste estudo procura-se demonstrar que a construo da prtica pedaggica antecede a prtica docente, pois tem suas razes nas relaes arcaicas, com ex-professores que marcaram o aprendizado quer de forma positiva ou no. Para amparar tal hiptese a pesquisa vem alicerada pela teoria de campo e pela noo do habitus (BOURDIEU 1997). A metodologia privilegia o modelo exploratrio com viso de etnografia por se tratar de estudo feito com pessoas. de natureza qualitativa por explorar comportamentos e prticas sociais. Por tais caractersticas, foi possvel constatar neste estudo que disposies incorporadas das diversas vivncias

    escolares; familiares; de convvio social foram determinantes para a construo do conhecimento que o professor de cordas coloca em sala de aula.

    Palavras-chave: FORMAO E PRTICA DE PROFESSORES DE MSICA; MSICA - ESTUDO E ENSINO; INSTRUMENTOS DE CORDA.

  • vii

    ABSTRACT

    The present work concerns the theme of teacher training and has the music teacher as its main object, specifically the string. Confronted with the frequent transformations by which societies go through, the training milieus also call for modifications as far as directives are concerned. Based on such facts, our research problem was established by means of the

    following inquiries: How do some individuals educated to be musicians assume the role of a teacher?, How do they build the knowledge they put into practice? and How does their pedagogical practice take place?. This study has, therefore, been oriented by the hypothesis that forms of socialization are important factors in the future accomplishments

    of the teacher and consequently in the construction of his or her practice; the set of values and beliefs accumulated during his or her training, among other elements, contribute to the accomplishment and give the basis for his or her performances. Therefore, the aim of this study was to demonstrate that the pedagogical practice precedes the teaching practice, for it

    has its roots in archaic relationships with former teachers who have positively or not

    marked his or her learning. To support such hypothesis, the research is backed by the

    field theory and by the notion of habitus (BOURDIEU 1997). The methodology favors the exploratory model with an ethnographic view, for it is a study carried out with people. It is qualitative in nature for it explores behaviors and social practices. For this reason, it was possible to evidence that these incorporated dispositions of the diverse life experiences school; family; social conviviality were determinant for the construction of the knowledge that the string teacher places in the classroom.

    Keywords: Training and practice for music teachers; Music study and teaching; Strings instrument.

  • viii

    SUMRIO Overture ---------------------------------------------------------------------------------------- 09

    CAPTULO I DEFININDO O CAMPO HARMNICO------------------------------------------------- 17 As instituies pesquisadas --------------------------------------------------------18 A Entrevista--------------------------------------------------------------------------- 34 A Observao------------------------------------------------------------------------- 35 Justificando o tema ------------------------------------------------------------------ 36 Retratos em movimento------------------------------------------------------------- 36

    CAPTULO II A CONSTRUO DA PRTICA PEDAGGICA: DA APRENDIZAGEM ATUAO PROFISSIONAL -------------------------------------------------------------- 40 Audio das vivncias--------------------------------------------------------------- 41

    CAPTULO III O OFCIO DE ENSINAR ------------------------------------------------------------------- 83 Relao entre modos de aprendizagem ------------------------------------------- 88 Material didtico --------------------------------------------------------------------- 100 Repertrio ----------------------------------------------------------------------------- 103

    Cadenza ---------------------------------------------------------------------------------------- 105

    REFERNCIAS------------------------------------------------------------------------------- 111 ANEXOS A- Reproduo de trecho de Tablatura --------------------------------------- 116

    B Reproduo de trechos de mtodo-----------------------------------------117

    APNDICE A- Roteiro das Entrevistas----------------------------------------------------128 B Transcries das Entrevistas------------------------------------------------130

  • ix

    Tenho tentado fazer com que a descoberta entusistica da msica preceda a habilidade de tocar um instrumento ou de ler notas, sabendo que o tempo adequado para introduzir essas habilidades

    aquele em as crianas pedem por elas. Muito freqentemente, ensinar responder a questes que ningum faz.

    (Murray SCHAFER, O ouvido pensante, 1991, p.282)

  • 9

    Overture

    Voltamos ao passado, procurando na memria fatos que possam dar coerncia nossa

    histria. Buscamos o passado para compreender o presente e legitimar o futuro.

    Meu contato com a msica se deu atravs da escola primria, na qual aprendamos teoria musical e canto coral. Eu gostava muito das aulas e sentia uma admirao pela professora de msica que, com seu jeito manso, organizava a sala, colocava-nos em naipes, sentava-se ao piano e tocava os exerccios de vocalize e, em seguida, cantvamos.

    Como muitas meninas de minha poca, e acho que de outras tambm, eu queria ser

    professora. Em todas as brincadeiras sempre havia uma escolinha.

    Eu estava com seis anos quando criaram o conservatrio da cidade o Conservatrio Dramtico e Musical Dr. Carlos de Campos de Tatu e desde ento meu pai me levava para assistir aos concertos. Algum tempo depois, j era aluna nesse conservatrio na classe de viola. Fazia aula de instrumento e de teoria; esta, depois de concluda, passava para harmonia e contraponto; orfeo, que depois de concludo passava

    para canto coral, anlise, folclore, prtica de orquestra, msica de cmara; e para os instrumentos meldicos havia um instrumento complementar para o qual minha opo foi o piano. No incio, eu no tinha instrumento e utilizava um emprestado do conservatrio; depois, quando comecei a tocar nas orquestras do conservatrio, meu professor me emprestou uma viola. Logo ingressei na orquestra jovem do estado. Na orquestra jovem recebamos um salrio mnimo como ajuda de custo. Assim, pude comprar meu prprio instrumento.

    Meu primeiro professor foi muito marcante, era bastante jovem, deveria ter entre oito ou dez anos a mais de diferena da minha idade. Ele era muito metdico; tnhamos uma cadernetinha na qual ele ia anotando as lies de casa e as observaes para cada lio. Ouvia-nos atentamente, muito atencioso, e no media esforos para nos ajudar em todos os sentidos; se percebia algum com problemas, procurava sempre ajudar. No importava a natureza do problema, sabamos que se fosse preciso ele nos ajudaria. Ele viera de Ribeiro

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    Preto, onde havia estudado piano, para o Conservatrio de Tatu, e em Tatu formou-se em violino e comeou a lecionar no Conservatrio.

    No Conservatrio havia prticas em grupo: banda, orquestras de cordas e grupos de percusso e orquestra sinfnica, porm s para alunos bastante adiantados. O professor Dario Sotelo foi o precursor das orquestras-escolas para iniciantes. Participei como aluna integrante da primeira orquestra do grupo de iniciantes. Era um grupo experimental, depois vieram outros e, hoje, na rea das cordas, existem grupos dirigidos por diversos professores.

    Guardo ainda na gaveta da escrivaninha as anotaes das primeiras aulas. E tenho que confessar que, s vezes, volto a rev-las quando em algum momento em sala de aula surgem imprevistos que me fazem recorrer s vivncias do tempo de aluna habitus em exerccio.

    O progresso no aprendizado da msica se deu to rpido que logo estava fazendo monitoria no conservatrio. Em funo dessa monitoria na rea de canto coral tomei aulas com Margarita Schack, esposa do maestro Hans Joachim Koellreutter (1915-2005). Foi nessa poca que as idias do professor Koellreutter acerca da educao musical comearam a me causar inquietaes. Nesses encontros, o maestro, com sua vivncia musical europia,

    nos instigavam a pensar seriamente na educao musical e, principalmente, na forma como se ensinava msica. Ele dizia que este era o cerne da questo da msica no Brasil, e que, a partir da mudana na forma de ensinar, o cenrio musical se transformaria.

    Quero justificar aqui os dados biogrficos em funo de eles estarem ressaltados, uma vez que foram fundamentais no exerccio interpretativo que constitui essa pesquisa, bem como o foram no surgimento da inquietao que a impulsionou.

    A idia de ser professora sempre esteve presente mesmo com o caminho definido como instrumentista. Ento, refletindo sobre o percurso que deveria seguir esta pesquisa, tornou-se imprescindvel pensar sobre a formao do msico e, assim, defini-lo numa descrio sucinta para ilustrar. Msico qualquer profissional ligado atividade musical (instrumentista, cantor, compositor, maestro, musiclogo, etnomusiclogo, educador musical). Porm, para descrever o papel do msico, voltemos Idade Mdia, quando se impunha uma separao entre o terico, o prtico e o msico completo.

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    Em poucas palavras, o terico era aquele que compreendia a construo da msica, mas no a executava, o prtico no apresentava qualquer conhecimento terico musical

    nem suas relaes histricas, mas estava preparado para tocar. E, por ltimo, o msico completo, reunia as qualidades do terico e do prtico. Conhecia e entendia a teoria, e no a considerava dissociada ou isolada da prtica. Ele podia compor e tocar porque conhecia e compreendia ambas as relaes.

    Ao refletir sobre este aspecto histrico, pode-se fazer uma analogia entre o prtico do passado e o instrumentista de hoje; a ele interessa principalmente a execuo, a perfeio tcnica, atm-se execuo relegando a teoria ao segundo plano, e muitas vezes dissociando-a da prtica como se executar uma msica fosse apenas tocar as notas grafadas

    no pentagrama. Alm disto, h o fato de tocarmos uma msica composta por e para pessoas de outras pocas. O saber e o compreender tornam-se imprescindvel pelo fato de hoje no existir uma unidade entre a msica, a poca e o contexto social em que ela acontece. O que resulta disso um som musical que expressa os componentes estticos e emocionais, ignorando o restante do contedo.

    Quanto formao do msico, esta se dava da seguinte forma: havia um msico o mestre, com determinada especialidade, que formava aprendizes numa relao muito prxima daquela que, durante sculos, houve entre os artesos. O mestre era encarregado de ensinar o ofcio ao aprendiz, ou seja, ensinar a sua maneira de fazer msica, a sua tcnica musical composicional e instrumental. O mestre ensinava ao aprendiz a sua arte em todos os aspectos desta arte, no s a tocar ou a compor, mas a interpretar a msica.

    No entanto, h no desenvolvimento desse processo rupturas que passaram a levantar

    questes e a modificar a relao mestre/ aprendiz. Um desses momentos de ruptura foi a Revoluo Francesa. E entre suas conseqncias estavam as transformaes na funo

    fundamentalmente nova que passou a ter a formao, a vida musical e a relao mestre/

    aprendiz ento substituda por um sistema institucionalizado o conservatrio. A Revoluo tinha a seu lado muitos msicos e observou-se que, com a ajuda da arte e em especial da msica, era possvel influenciar pessoas. O aproveitamento poltico da arte para doutrinar estratgia que vem de longa data, apenas no tinha sido aplicada de forma to

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    sistemtica. A arte, a religio, os sistemas simblicos e a linguagem podem ser veculos de poder e mesmo de estratgia poltica, como tem demonstrado a Histria.

    Desse modo, ao institucionalizar o ensino musical, e integrar a msica ao processo poltico, houve uma sistematizao e uniformizao dos estilos e aplicao musical. Havia no mtodo francs o princpio terico de que a msica deveria ser suficientemente simples para que pudesse ser compreendida por todos, algo como a linguagem falada. O compositor deveria escrever uma msica que da forma mais fcil e acessvel possvel se dirigisse sensibilidade do pblico.

    Diante de tais consideraes, a antiga relao mestre/ aprendiz chegou ao fim no conservatrio pelas mos de Cherubini (1740-1842). Para dar sano sistematizao e consignar as novas idias num sistema rgido, foram encomendadas obras didticas a grandes autoridades da poca, dentre eles Baillot (1771-1841) e Kreutzer (1766-1831), que escreveram respectivamente os mtodos LArt du violon e tude, para que se pudesse assim celebrar na msica um dos ideais polticos franceses a igualdade. Tecnicamente,

    era trocar o som pela escrita.

    Esta revoluo no ensino da msica foi to radicalmente abrangente que em algumas dcadas, em toda a Europa, os msicos passaram a ser formados pelo sistema conservatorial, cujo objetivo era a excelncia na tcnica instrumental. Sistema em que eu e grande parte os meus entrevistados estudaram e que utilizado em muitas escolas e conservatrios do Brasil, at os dias atuais.

    Dando prosseguimento minha histria, depois do conservatrio entrei para a Universidade de Campinas, e o sistema conservatorial foi sendo complementado em especificidade. Ali, as matrias tericas eram separadas da prtica instrumental e havia um aprofundamento em cada uma delas. Como no havia prtica de orquestra no currculo, fazamos as aulas de instrumento individualmente com o professor e a prtica de orquestra

    na orquestra jovem de Campinas, mas sem nenhuma relao com a Universidade. A no ser pelo fato de grande parte dos msicos serem estudantes da Universidade, no havia vnculo entre as instituies; e havia os msicos da orquestra sinfnica municipal que tambm tocavam na orquestra da Cmara da Universidade, que tambm no tinham nenhuma

  • 13

    relao direta com o Instituto de Artes da Universidade. Pode-se dizer que eram relaes solidrias que se uniam para realizaes comuns.

    Como acontece com muitos instrumentistas, na cidade de Campinas comecei a lecionar mesmo ainda estando no primeiro ano da graduao. Tenho que confessar que, no incio, tive receio, pois meus alunos eram quase todos de violino; no havia nenhum de viola. Mas aos poucos fui conseguindo me desempenhar. Busquei orientao nas anotaes antigas das minhas aulas, feitas por meu primeiro professor. No preciso dizer que todos os meus alunos tm uma cadernetinha onde anotamos as lies e as observaes,

    exatamente como meu professor fazia comigo.

    Ento, observava meus colegas de trabalho: ou eram estudantes ou eram pessoas que se formaram nos conservatrios da cidade, e complementavam sua renda dando aulas de instrumento; alguns tinham outras profisses como primeira fonte de renda. Muitas vezes, ouvia comentrios, na universidade ou nas escolas, que tal professor era timo instrumentista, mas para ensinar no era assim to bom. Comecei a pensar na minha

    formao, nos meus professores, e chegava sempre na questo da formao do professor.

    Olhava para os pequenos msicos (alunos) e no poderia deixar de refletir sobre as nossas prticas. Nesse pensamento reflexivo sobre o que fazamos, procurava entender como construamos a nossa prtica de professor se nossa formao era para ser instrumentista: Como construamos esse conhecimento?. Se compreendesse melhor a nossa prtica como professores, sem dvida, isso teria um reflexo no desenvolvimento do

    aluno, no nosso prprio desempenho (SCHN, 2000). Depois de alguns anos de concluso da graduao em msica, e firmado o meu propsito de ser professora, essas inquietaes

    foram tomando vulto. Pela limitao dos conhecimentos no conseguia organizar essas preocupaes e dimensionar exatamente o meu problema.

    O primeiro passo rumo ao esclarecimento foi organizar uma pesquisa bibliogrfica.

    Entretanto, percebi que, se quisesse saber como se construa o conhecimento que o professor pe em prtica na sala de aula, teria que invadir seu espao e conhec-lo, compreender seu percurso.

  • 14

    Minha pesquisa teve incio ao ingressar no curso de ps-graduao da Faculdade de Educao. Nesse campo,1 o acesso aquisio de uma cultura geral e o meio de convvio

    predisps-me a uma outra atitude frente a minha atuao enquanto professora.

    Esta reflexo me remeteu a Bourdieu (1998) e definio de capital cultural, ou seja, ao conjunto de conhecimentos e habilidades adquiridos na famlia e na escola. Esta noo foi concebida por esse autor em analogia ao capital econmico para se referir ao poder que advm da aquisio, da apreciao, da produo e do consumo de bens culturais. Reconheo em mim mesma, nesse novo meio social, a incorporao de valores e

    disposies promovidos pelas discusses de leituras e debates sobre as pesquisas dos colegas do grupo e de convidados, isto , a interioridade da exterioridade, e com este

    olhar prossegui a pesquisa.

    A reflexo neste momento como mirar-me num espelho porque tambm sou professora de instrumentos de cordas friccionadas.

    Definindo os temas

    Como pensar no ensino muito abrangente, ento foquei meu olhar na prtica do professor,

    dividi em temas, e fui procurando elementos dentro da mesma tonalidade que pudessem ser definidos. Comecei a refletir sobre o porqu de seguirmos anos aps anos o mesmo modo de ensinar? O mesmo repertrio, os mesmos livros didticos (que conhecia to bem que tocava todas as lies de cor).

    A primeira hiptese que me veio foi o fato de que quase todos os meus colegas de trabalho e eu estudamos no mesmo conservatrio e de este modelo ter se consagrado como

    lugar legtimo para aquisio do conhecimento musical. Isso ocorre desde a criao do Conservatrio de Paris em 1795, o qual foi tomado como prottipo para muitos conservatrios, inclusive no Brasil. estranho pensar que o propsito de sistematizar/ institucionalizar o ensino musical estaria muito mais ligado poltica do que arte, ou seja, poderamos chamar de educao poltico-musical, j que o objetivo era realizar na msica o

    1 O termo campo aqui utilizado definido por Bourdieu para se referir aos espaos de posies sociais nos quais determinados tipos de bem so produzidos, classificados e consumidos. N.R.

  • 15

    novo ideal francs da galit2. Mais estranho ainda pensar que ainda hoje seguimos as mesmas diretrizes e resguardamos os mesmos fundamentos, num currculo comum,

    dividido em matrias tericas e prtica instrumental, com nfase ao ensino de um instrumento para o alcance da virtuosidade. Muitas vezes inquestionvel e com seus propsitos solenemente ignorados.

    Pensei horas a fio em Porque preservvamos esse modelo tradicional, com tantas propostas que redimensionaram a educao musical no incio do sculo XX? Discutia essas propostas com um ou outro colega; a expresso musicalizao passou a fazer parte do

    nosso vocabulrio, li e reli as propostas de Orff, Dalcroze, Kodly, Willems, Suzuki, cada um falando a partir de seu prprio foco, dando nfase participao efetiva do aluno

    atravs da voz, do corpo da educao auditiva, do fazer, da experimentao antes da conceitualizao, do desenvolvimento integral da personalidade, dentre outros aspectos. Recordava-me do professor Koellreuter e suas idias to modernas sobre msica (dodecafnica, contempornea) que, na poca, me davam receio de coloc-las em prtica porque estava sedimentada em mim a msica erudita ocidental e o sistema tonal.

    Passei para outros elementos do tema j pensando numa mudana de tonalidade, prxima, porm: Como o professor constri o seu conhecimento?; Quais conhecimentos ele coloca em prtica?. Para estas questes vieram as hipteses: a

    influncia das vivncias familiares, escolares e comunitrias, e, dentre outros elementos, valores e crenas acumulados durante a trajetria de formao podem, em conjunto, contribuir para a performance dos professores. Num outro momento de reflexo, indaguei-me sobre a razo de ns, msicos, comearmos a lecionar mesmo antes da concluso do conservatrio e da graduao, se durante os cursos de formao o enfoque era o aprimoramento da tcnica do instrumento; na verdade, ramos preparados para a performance como instrumentista e no para ser professor.

    Tinha agora finalmente definidos os problemas da pesquisa: a) Como algumas pessoas educadas para ser msicos assumem o ofcio de professor?; b) Como constroem o conhecimento que colocam em prtica?; c) Como se d sua prtica pedaggica?.

    2 Libert, Egalit, Fraternit: os trs fundamentos da Revoluo Francesa (1789-1799)

  • 16

    No anseio de encontrar respostas vamos arquitetando planos para chegar ao objetivo. E sem sombra de dvida, a leitura a base para alicerar o projeto. Ao ler recentemente a tese de doutoramento de Clia Maria de Castro Almeida foi que me dei conta e pude observar em mim mesma um cluster sonoro: todas estas questes sobre a prtica, a construo do conhecimento, o ser msico-professor se emaranhavam e pude compreender que meu problema vinha amadurecendo dentro de mim e a busca pelas respostas no era apenas um desejo pessoal, mas que tinha uma relao ntima com as situaes que vivo. Deveria analisar as experincias vividas pelos professores desde o primeiro contato com a msica, passando pelo aprendizado e chegando ao ensino. Tinha para mim que as respostas no estariam nos programas nem nos currculos, mas sim na

    ao, na prtica em sala de aula e na relao com as vivncias fora dela. Tambm nas nossas crenas e valores acumulados durante nossa trajetria e nos significados mltiplos que decorrem dessa interao com a msica. Quando penso em interao com a msica, penso no apenas do ponto de vista esttico, mas tambm na interao social. Gosto muito da idia de Geertz quando diz que o homem um animal suspenso em teias de significados.

    Neste momento preciso delinear a forma da investigao para se chegar compreenso dos fatos. Portanto, minha dissertao est estruturada em trs movimentos, sendo o primeiro em que delineio as instituies em que se deram os levantamentos das

    prticas; um segundo, em que se explicitam o contato inicial com a msica e o aprendizado atravs das narrativas dos atores participantes e um finale,3 em que so analisadas tais prticas em comparao com as narrativas e os mtodos mais comumente empregados nas instituies que ensinam msica, atualmente.

    Espero que esta pesquisa venha contribuir com os estudos na rea de educao e formao de professores e que sirva de estmulo a outros pesquisadores que venham ampliar as investigaes aqui iniciadas.

    3 finale o ltimo movimento de uma composio instrumental em vrios movimentos.

  • 17

    CAPTULO I DEFININDO O CAMPO HARMNICO

    Para realizar este trabalho foi necessrio dividi-lo em etapas: em primeiro lugar foram feitas as leituras e confesso que esse perodo no foi nada fcil; eram leituras difceis, e eu no conseguia relacion-las com meu projeto, no estava habituada aos termos sociolgicos. Demorei muito para escrever e organizar o trabalho formal. Mantive um caderninho para anotar as observaes caderno de campo, e, muitas vezes, anotei nele as dificuldades que sentia. Tentava olhar meu objeto de pesquisa por ngulos diferentes, mas no sabia exatamente o que olhar. Depois de um tempo aprendi que deveria olhar em todas

    as direes.

    A metodologia descritiva levou o trabalho para uma abordagem qualitativa cujas razes tericas esto na fenomenologia que enfatiza os aspectos subjetivos do comportamento humano e preconiza a necessidade de se penetrar o universo dos sujeitos para poder ali entender como e que tipo de sentido eles do aos acontecimentos e s interaes sociais. Para Bourdieu possvel conhecer o mundo social de trs formas: fenomenolgica, objetivista e praxiolgica. (NOGUEIRA, 2006). A fenomenologia compreende uma srie de matizes, dentre eles a etnografia. (LDKE, 1986; GEERTZ, 1986). Portanto, fazer uma pesquisa etnogrfica envolve pressupostos especficos na coleta de dados, ou seja, carece estabelecer relaes, transcrever textos e entrevistas, selecionar informantes, mapear o campo, observar. Nesse sentido, adverte Geertz:

    Mas no so essas coisas, as tcnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que o define o tipo de esforo intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma descrio densa. (GEERTZ, 1989, p.4)

    Para operacionalizar este estudo, selecionamos trs instituies, a saber: uma escola oficial

    com registro no Ministrio da Educao e Cultura (MEC), o Conservatrio Dramtico e Musical Dr.Carlos de Campos de Tatu (SP), e duas escolas livres sem registro no MEC: a Oficina de Cordas e Escola de Msica da Cooperativa Crist, ambas em So Jos dos Campos (SP). Estas instituies selecionadas representam os locais onde se ensina e faz

  • 18

    msica profissionalmente ou no, ou seja, um conservatrio, uma escola livre e a escola da igreja.

    Estas instituies foram selecionadas pelo fcil acesso que oferecem pesquisadora que, primeiro por ter sido aluna, depois por ser monitora do conservatrio; a Oficina de Cordas por ser seu local de trabalho, e a escola da igreja, ainda que de acesso um pouco mais restrito, foi contatada por indicao de um aluno da Oficina de Cordas.

    Nosso objeto de estudo o professor de instrumento de cordas e, para tal, foram selecionados de acordo com a acessibilidade e o desejo deles de participar do estudo voluntariamente. Os professores selecionados no Conservatrio, trs entre os vinte e trs do quadro de docentes, so professores conhecidos4 o que de certa forma facilitou os encontros para as entrevistas. Da Oficina de Cordas selecionamos trs por ser este o nmero de professores especfico para os instrumentos violino, viola e violoncelo; e da escola da igreja, dois por serem estes os nicos professores de cordas da referida escola. A proximidade dos indivduos participantes favorece a pesquisa porque alm de observ-los

    em ao, tivemos que invadir sua vida, sua intimidade e observar coisas no ditas.

    Para realizar esta pesquisa, abarcamos trs temticas: a) formao musical como so inseridos no mundo da msica?; b) msica como profisso ser instrumentista ou professor?; c) prtica pedaggica como agem em sala de aula?.

    As instituies pesquisadas

    A escolha destas instituies justifica-se por serem estas, na regio pesquisada, o local onde se aprende e onde se ensina (e se faz) msica. O Conservatrio de Tatu, uma instituio oficial, isto , regulada pelo Ministrio da Educao e Cultura (MEC), oferece formao tcnico-profissionalizante; a Oficina de Cordas e a Escola de Msica da Cooperativa das Artes, como so instituies no-oficiais, tm carter livre, no sendo reguladas pelo MEC, porm guiadas por um conjunto de normas apropriadas a suas finalidades intrnsecas.

    A seguir, apresenta-se breve histrico dessas instituies, bem como suas caractersticas e seus mtodos de ensino da msica. Vale lembrar que, ao expor as

    caractersticas de cada instituio, no houve inteno de classific-las qualitativamente,

    4 Bourdieu recomenda que o pesquisador dever buscar entrevistar pessoas conhecidas para facilitar o processo de coleta de informaes. (N.R.)

  • 19

    tampouco compar-las no sentido de eleger esta ou aquela como melhor ou no.

    Conservatrio Dramtico e Musical Dr. Carlos de Campos de Tatu

    A tradio musical da pequena cidade de Tatu no interior paulista teve incio no sculo XIX. Tatu vizinha da cidade de Iper (SP), famosa por sediar a Fazenda de Ipanema, com a primeira fbrica de fundio da Amrica do Sul. O maquinrio, sob recomendao do Imprio, foi importado da Europa e, no ano de 1835, alemes e suecos, que naquela poca detinham a tecnologia do ao, chegaram ao Brasil para implantar a fbrica na regio.

    Pele muito clara, cabelos louros, olhos azuis, a sonoridade da lngua e seus costumes impressionaram os escravos que trabalhava na fundio. Ao fim da tarde, esses estrangeiros trocavam o peso do ao pelo fino metal dos instrumentos de sopros. E eles, os

    estrangeiros, no apenas ensinaram aos escravos a habilidade de lidar com o ao como tambm foram responsveis pela formao dos primeiros instrumentistas da regio. Muitos

    desses instrumentistas migraram para Tatu, cidade localizada no percurso das viagens impostas aos escravos.

    A cidadezinha de Tatu, nessa poca, j realizava uma famosa festa religiosa, a Festa de Santa Cruz, cujo ponto alto estava nas apresentaes musicais.

    Foi a partir dessas festas que os msicos comearam a se organizar em grupos e formaram a Banda de Santa Cruz. H uma divergncia quanto ao fundador da Banda; segundo o jornalista e historiador da cidade, Renato Ferreira de Camargo, foi o Maestro Antnio Rafael Arcanjo que, em 1852, organizou a primeira banda. No entanto, para Marcelo Aparecido Afonso, professor de clarinete no Conservatrio Dr. Carlos de Campos de Tatu e bisneto de um dos maestros da antiga Banda de Santa Cruz, segundo as histrias contadas pelo bisav, a fundao da banda remete ao Mestre Benedito um escravo vindo da cidade de Porto Feliz, em 1845.

    Esta hiptese aceita por historiadores da cidade, pela proximidade da data com a

    abolio da escravatura pela Lei dos Sexagenrios (Lei n. 3.270). Porm, nos registros da Banda, a data de fundao o ano de 1880 pelo Maestro Teodoto de Mello, por Jos

    Sommerhouse e Torquato Magalhes. Presidida por Dom Pedro II e tendo como Vice-presidente o Capito Antnio de Oliveira Leite Setbal (pai de Paulo Setbal, tatuiano ilustre da literatura brasileira).

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    A banda fazia parte do quotidiano da cidade. Todas as manhs um msico da banda saa pelas ruas para o toque da alvorada. A banda exercia influncia social, cvica, religiosa

    e poltica.

    O desenvolvimento do municpio nas trs primeiras dcadas do sculo passado estava diretamente ligado s tecelagens. Muitos desses trabalhadores, que vinham da capital e do Rio de Janeiro, tocavam algum instrumento e foram se ligando a essa banda e s orquestras de baile e do cinema mudo, que proliferaram a partir de 1935.

    Com a instalao do Ginsio, em Tatu, a musicalidade do municpio cresceu e se firmou ainda mais. Nessa poca, a disciplina msica era obrigatria no currculo e o organista Nacif Farah assumiu a cadeira de msica no ginsio.

    A vida musical se intensificou e os gneros musicais comearam a se misturar. Muitos tocavam em Jazz Band, outros em igrejas, bingos e no cinema. Tocavam sopros nas bandas, cordas nas orquestras e violo nas serestas.

    Em 1940, o professor Joo Del Fiol abriu no casaro da famlia uma escolinha de msica, e seus alunos tocavam em vrios eventos da cidade. Em um desses eventos estava presente o deputado Narciso Pieroni, que se encantou com o grupo e prometeu (o que mais tarde veio a cumprir) a criao em Tatu da primeira Escola Pblica de Msica do Estado de So Paulo. Ento, em 1950, nasceu o Conservatrio Dramtico e Musical Dr.Carlos de Campos. E, em 13 de abril de 1951, o ento governador Lucas Nogueira Garcez (1951-1955) o sancionou, oficializando-o como conservatrio.

    No ano de 1954, com o conservatrio instalado em um casaro, abriram-se inscries para violino, viola, violoncelo, flauta, clarinete, violo e canto, alm das matrias tericas. Em cinco dias foram recebidas 331 inscries, um recorde para o municpio com menos de 30 mil habitantes.

    O sucesso da escola foi ascendente e, de 300 alunos passou para 600, com alunos vindo de 49 municpios do estado e de nove estados brasileiros.

    A tradio musical da cidade foi reconhecida internacionalmente e mais msicos chegavam de todas as partes do Brasil e do Exterior para engrossar o grupo de docentes da

  • 21

    escola. A cidade ganhou ento o ttulo de Capital da Msica e uma estatstica curiosa: sete em cada dez habitantes da cidade tocavam algum tipo de instrumento.

    Hoje, o conservatrio tem 3.520 alunos divididos entre sopros, cordas, artes cnicas e lutheria (curso tcnico para fabricao de instrumentos de cordas).

    O ensino gratuito.

    O ensino

    O conservatrio tem seu currculo dividido em duas seces bsicas: a terica e a prtica. As aulas tericas incluem o estudo de teoria musical, harmonia, contraponto, histria da

    msica, anlise musical. E as aulas prticas consistem no aprimoramento da execuo tcnica do instrumento, atravs de aulas especficas de instrumento, msica de cmara e

    prtica de orquestra, banda, ou coral.

    Nas fases iniciais, chamadas de preparatrio, as aulas tm durao de 30 minutos; semanalmente, ocorrem aulas prticas, individuais. A durao das aulas prticas sofre alterao para 60 minutos a partir do primeiro ano de curso. As aulas tericas (teoria, harmonia, contraponto, histria da msica, orfeo, coral) so coletivas, com durao de 60 minutos, tambm semanais. A prtica de conjunto feita em um dos cinqenta conjuntos instrumentais do conservatrio (neste nmero esto includos big band, msica de cmara, MPB e Jazz, orquestras de cordas, orquestras completas e bandas).

    A durao mnima diria desta prtica de 60 minutos, podendo variar para mais tempo de acordo com o nvel tcnico do grupo.

    Ali, segue-se o modelo conservatorial tradicional, resguardando os fundamentos traados pelo ensino musical europeu e as diretrizes do Conservatrio Nacional Superior de Msica de Paris. O currculo dividido em matrias tericas e prtica instrumental, dando nfase performance, ou seja, enfatiza o desempenho do musicista ao instrumento.

    No h no Conservatrio de Tatu um curso voltado ao magistrio da msica.

    Corpo Docente na rea de cordas

    O corpo docente do conservatrio, hoje, formado por 23 professores de cordas, sendo que sessenta por cento destes tem nvel tcnico, formados pelo prprio conservatrio, e

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    quarenta por cento tem nvel superior em msica; destes, alguns estudaram fora do Brasil. Os professores que apresentam nvel superior fizeram bacharelado nos instrumentos

    especficos. O percurso de formao seguiu o trajeto do conservatrio faculdade. possvel afirmar que o modelo sob o qual a maior parte desses professores

    construiu seus conhecimentos leva-os a uma integrao, a qual propicia ao indivduo um corpo comum de categoria de pensamento e ao. Sobre este aspecto, Bourdieu (2004) comenta:

    Tendo sido moldados segundo o mesmo modelo (pattern), os espritos assim modelados (patterned) encontram-se predispostos a manter com seus pares uma relao de cumplicidade e comunicao imediatas [...]. No seio da cultura clssica, todos os homens possuem em comum um mesmo tesouro de admirao, de modelos, de regras e, sobretudo de exemplos, metforas, imagens, palavras, em suma, uma linguagem comum. (op. cit., p. 206).

    A Sede

    O conservatrio est instalado em uma sede principal onde funcionam as secretarias, as

    diretorias, a biblioteca, salas de aulas coletivas e salas menores para aulas de piano e msica de cmara ou estudo individual. As instalaes esto distribudas vrias dependncias e um anexo. H uma sala ampla para aulas de percusso, com instrumental de percusso de tima qualidade (importado, em sua maior parte) e nos anexos acontecem aulas de metais e popular.

    H tambm sala de treino, onde ficam os instrumentos que podem ser utilizados por

    alunos que ainda no possuem os seus. A biblioteca tem um acervo de bons livros, partituras e discos. Tambm, o teatro est bem equipado para espetculos teatrais ou musicais, com fosso, camarins espaosos e com tima acstica. H mais dois complexos, um prdio alugado com vrias salas pequenas para aulas de instrumentos de madeira (flautas transversal e doce, fagote, clarinete, obo) e musicalizao infantil. E outro, num casaro antigo, sobre o museu da cidade, onde acontecem as aulas de cordas (viola, violino, violoncelo e contrabaixo) e ensaio das orquestras de cordas. As aulas acontecem tambm no poro, onde h trs salas pequenas. O casaro fica em uma praa e comumente podem-

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    se ver alunos nos bancos, estudando. Nesse local tambm funciona a secretaria e mais uma sala de instrumentos que podem ser emprestados para estudo e aulas.

    Mesmo havendo a praa, no h na escola um local de encontro como centro de convvio social para os alunos. Eles chegam, fazem suas aulas e vo embora. Como no h muitas salas, sobra pouco espao para o estudo individual.

    A Oficina de cordas

    A Oficina de Cordas um projeto desenvolvido por dois professores, um de cordas e um maestro, com a finalidade de expandir o ensino dos instrumentos de cordas friccionadas. O ensino tem por base os mtodos coletivos de ensino, e est voltado para a prtica de orquestra.

    A Oficina de Cordas foi criada em 1999 e, a partir de 2006, representada juridicamente pela Sociedade Filarmnica5 Joseense (SOFIJ), Organizao Social Civil de Interesse Pblico (OSCIP)6, sem fins lucrativos e de natureza privada, neste caso, uma associao de alunos, pais e professores, regida por um estatuto com objetivos definidos no artigo 3. :I- Promover o desenvolvimento cultural e a educao musical dos seus membros e da comunidade, atravs da prtica da msica em conjunto, promoo de concertos, produo de material didtico, aulas de msica coletivas e individuais; II Educar, incentivar e lapidar valores, contribuindo dessa forma para o desenvolvimento da arte

    musical em geral; III- Difundir, por meio de apresentaes, a arte em todas as suas modalidades, tornando-a um fator de educao; IV Proporcionar a seus associados, pela

    prtica musical, recursos e ambientes para sua socializao; V Formar, por meio dos mtodos coletivos de ensino e de alfabetizao musical, os interessados de todas as classes sociais, contribuindo para sua profissionalizao musical; VI Representar o interesse dos associados e da comunidade em geral.

    5 Termo utilizado por muitas organizaes musicais significando amante da msica. FONTE: Dicionrio GROVE de Msica (1994, p.326)

    6 Define-se OSCIP como a reunio de duas ou mais pessoas com interesse e esforos para alcanar uma finalidade comum, mediante um determinado ajunte ou acordo que celebram juridicamente em um contrato social. Desse contrato pode surgir uma instituio, isto , uma entidade jurdica uma associao. Esse tipo de associao refere-se entidade de natureza privada, sem fins lucrativos, que pode pleitear a obteno de determinados ttulos ou qualificaes. (N.R.)

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    A entidade recebe apoio financeiro do setor privado e hoje tem como parceira majoritria a Petrobrs Petrleo do Brasil e a Refinaria Henrique Laje de So Jos dos Campos.

    O pblico atendido por esta instituio bastante heterogneo, as idades variam entre 04 e 60 anos. A Oficina de Cordas est dividida em trs ncleos: Ncleo Central, Ncleo Martins Guimares/Sap, na cidade de So Jos dos Campos (SP) e Ncleo Caapava, no municpio de Caapava (SP).

    O Ncleo Martins Guimares/Sap est voltado exclusivamente para crianas e adolescente, por estar instalado em um bairro que concentra populao de baixa renda, localizado na Zona Leste, periferia da cidade de So Jos dos Campos. A proposta para este ncleo dar acesso ao ensino de instrumentos de cordas para cerca de 120 alunos; e um dos desafios mais cruciais a permanncia desses alunos no curso. Para isso, feito um trabalho de acompanhamento junto s famlias, para que haja um comprometimento tanto por parte dos pais quanto dos alunos.

    Mais do que nos outros, neste ncleo a parceria professor/ aluno/ famlia fundamental para o sucesso do projeto e desenvolvimento do aluno. Sendo um bairro formado por processo de invaso, no o reconhecido oficialmente pela Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) da Prefeitura e, em conseqncia disto, no recebe assistncia pblica, no tem saneamento bsico, creches, posto de sade e outros benefcios normalmente disponibilizados populao da cidade.

    Assim, com uma populao que sobrevive do subemprego, em abrigos improvisados (um nico cmodo abriga vrias pessoas), as crianas muitas vezes so deixadas sozinhas porque a me (no geral sem pai) est trabalhando ou fazendo tarefas ocasionais que resultam em pequenos ganhos.

    O trabalho neste ncleo est voltado a crianas a partir de sete anos, adolescentes e jovens at 21 anos. O trabalho desenvolvido na sede da Obra Social e Assistencial da Parquia Nossa Senhora do Rosrio (parceira institucional da Oficina de Cordas), prxima ao bairro, que tem infra-estrutura para abrigar o projeto, e disponibiliza trs grandes salas, um salo onde ocorre a prtica de orquestra e uma sala para guardar os instrumentos que

    so utilizados tanto para as aulas como para a prtica individual dos alunos.

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    O Ncleo Central o mais antigo, e est localizado no centro da cidade de So Jos dos Campos (SP). Conta com oitenta alunos, formando quatro orquestras: B, C, D e E7; com aproximadamente 15 ou 20 alunos em cada orquestra, divididas pelo grau tcnico de desenvolvimento dos alunos.

    A Orquestra Jovem do Vale do Paraba (A), a orquestra principal do projeto, est classificada como orquestra de cmara semiprofissional, na qual tocam alunos em estgio avanado, geralmente com quatro ou mais anos de estudo, professores e msicos profissionais.

    As salas de aula de instrumento so divididas por idades com grupos de at cinco alunos nas fases iniciais e aulas individuais para as fases mais desenvolvidas. Nas aulas de prtica de orquestras todas as turmas se renem independentemente das idades. Muitos deles se dedicam ao estudo de um instrumento pelo prazer de fazer e ouvir msica, estes so os amadores da msica. Hennion (1983) se refere ao amador como uma figura que ama verdadeiramente a msica, mas no a cria, enquanto o profissional tambm ama

    verdadeiramente a msica, porm a conhece profundamente e a cria.

    comum encontrar nesses cursos vrios membros de uma mesma famlia (de netos a avs). Entre os jovens, alguns j ingressaram nos cursos superiores de msica e outros esto se preparando para os concursos vestibulares. H tambm profissionais vindo de reas diversas que estudam pelo prazer de tocar um instrumento. A maioria j tem o prprio instrumento, com exceo dos alunos do ncleo Martins Guimares/ Sap, que utilizam os

    instrumentos da Oficina de Cordas. No ncleo central, encontramos alunos que vm de vrias regies da cidade.

    O Ncleo Caapava (2006/2008) no municpio de Caapava (SP), cidade localizada a aproximadamente cinqenta quilometro de So Jos dos Campos, faz parceria com a Secretaria de Cultura daquele Municpio. As aulas acontecem em um Centro Cultural,

    localizado na zona central da cidade de Caapava e, como no Ncleo Central de So Jos dos Campos, atende a alunos com idades a partir de sete anos sem limite para idade

    7 As orquestras so assim classificadas; para chegar B o estudante precisa ter um desenvolvimento tcnico maior (alunos mais antigos, com dois anos de estudo ou mais); gradativamente nessa escala, na E esto os iniciantes. (N.R.)

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    superior. O ncleo tem aproximadamente cem alunos, divididos em trs orquestra A, B e C de acordo com o grau de desenvolvimento tcnico do aluno, como explicado anteriormente.

    Grande parte dos alunos tem o interesse por estudar um instrumento despertado pela influncia de algum membro da famlia que toca, pela oportunidade dada pelos pais na aquisio de um instrumento, ainda por ser oferecido graciosamente pelo municpio ou pela comunidade da igreja.

    A Oficina uma escola livre, porque no regulada pelo Ministrio de Educao e Cultura (MEC). Segue o modelo do Conservatrio de Tatu quanto ao currculo, dividido em prtica instrumental e matrias tericas (sendo apenas a teoria musical dividida em nveis) e um currculo para cada instrumento. Entre o material didtico utilizado esto livros especficos para cada instrumento. Num perodo de dois meses, os alunos desenvolvem uma atividade de iniciao musical com treinamento auditivo atravs de solfejos e treino rtmico, depois so introduzidos prtica da escrita. Trs meses aps as aulas de instrumentos comea a prtica de orquestra.

    A Oficina tem como orientao bsica o ensino coletivo para a fase inicial e utiliza os mtodos desenvolvidos a partir do trmino da Segunda Guerra (1945) especialmente o mtodo desenvolvido por Samuel Applebaum.

    O mtodo inicial

    O mtodo para aulas de cordas une violino e viola, violoncelo e contrabaixo porque estes tocam sempre juntos. Cada livro pode ser usado pela classe ou mesmo individualmente. Nesse mtodo a semnima adotada como figura inicial no somente por ser a unidade de tempo utilizada nas primeiras lies, mas porque atravs dela pode-se agregar os outros valores (mnimas, semibreves, colcheias e etc.) e por ser uma unidade de tempo de curta durao dentro da frmula de compasso utilizado (4 por 4), facilita a movimentao do brao que conduz o arco. A partir do exerccio n.15, as melodias em cordas soltas e aquelas que introduzem o primeiro dedo so tocadas em duetos entre o professor e o aluno, podendo tambm ser acompanhadas ao piano.

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    Depois da introduo do 1. dedo, o F sustenido e o D sustenido (segundo dedo) so introduzidos. O trabalho nas cordas centrais facilita a movimentao do arco e define a

    forma8 da mo esquerda. (DOURADO, 1998)

    O material do mtodo graduado e o texto explicativo, bastante resumido, ilustrado por esquemas que facilitam a visualizao da nota com a respectiva posio da mo esquerda no brao do instrumento.

    A prtica de orquestra

    Trs meses aps o incio da prtica instrumental, o aluno passa a fazer a prtica de orquestra. Esta aula tambm coletiva, mas cada naipe9 toca uma partitura especfica. Os naipes so assim divididos violinos primeiros, violinos segundos, violas e violoncelos.

    Cada naipe tem um chefe (geralmente, o aluno mais habilidoso), e este instrumentista conduz o naipe, cobrando o desempenho do seu grupo; estuda as partituras com o professor

    de instrumento e orientado nas anotaes que devem ser utilizadas que so comuns ao naipe (direo do arco, articulaes, dinmicas, dedilhados e etc.).

    O repertrio das orquestras selecionado de acordo com o grau de dificuldade tcnica de cada orquestra: iniciante, mdio e avanado. Semestralmente as orquestras fazem apresentaes pblicas do repertrio desenvolvido durante o semestre.

    Corpo Docente

    A equipe de professores est assim dividida de acordo com suas funes:

    - 01 professora para as classes de iniciantes de violino, viola e violoncelo;

    - 01 professor de violoncelo para alunos intermedirios e adiantados;

    - 01 professor de violino para alunos intermedirios e adiantados;

    - 01 professor de viola para alunos intermedirios e adiantados;

    - 01 professor de matrias tericas e regncia de todas as orquestras.

    8 Posio definida da mo esquerda para apertar a corda em determinado local para a produo da nota desejada. (N.R.)

    9 Em msica, diz-se naipe ao grupo que toca o mesmo instrumento. Por ex., naipe de violinos. (N.R.)

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    Todos os professores ingressaram em universidades pblicas (USP; UNESP; UNICAMP), ainda que alguns no tenham concludo seu curso.

    Atravs de concursos pblicos, os professores (de violinos, viola e violoncelo) ingressaram em orquestras profissionais, sendo este um forte impedimento para a no concluso do curso para alguns deles. Seguiram a trajetria do conservatrio universidade. Todos ingressaram no bacharelado em msica, especificamente nos instrumentos violino, viola, violoncelo, regncia e composio. Vale lembrar que a trajetria escolar desses professores e sua formao musical so analisadas a partir de suas falas nas entrevistas e da observao de campo que sero relatadas nos captulos que seguem.

    A Sede central

    A sede da instituio em uma casa alugada, no centro da cidade de So Jos dos Campos

    (SP), localizada nas proximidades do terminal de nibus urbanos, o que facilita o acesso dos alunos. So trs salas: uma maior onde acontece o ensaio das orquestras e as aulas tericas, outra menor para as aulas de instrumento. Na sala maior acontecem atividades coletivas, h cadeiras em nmero suficiente para os componentes das orquestras (aproximadamente 20 alunos em cada orquestra) e quadro branco para as aulas tericas.

    Tem uma biblioteca no-circulante, cujos volumes podem ser consultados no local, com acervo de partituras e livros relacionados msica. Na biblioteca tambm funciona a secretaria.

    O ponto de encontro a cozinha, onde os alunos se renem para conversar, tomar caf e consultar o quadro de avisos em que so colocados os avisos sobre a Sociedade Filarmnica Joseense (SOFIJ) e Oficina de Cordas, notas das avaliaes, outras notcias referentes msica, lista de aniversariantes do ms e anncios classificados referentes msica/ instrumentos/ aulas. No jardim, nos fundos, h ainda um telheiro e um quartinho; e estes espaos, muitas vezes, funcionam tanto como sala de espera quanto de estudo; ali, eles se renem para conversar e para tocar juntos.

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    Centro Cultural da Secretaria de Cultura de Caapava

    No Centro Cultural h quatro salas destinadas s aulas da Oficina de Cordas, o local uma antiga fbrica de tecelagem em um belo prdio com paredes de tijolos aparentes, com vrios galpes onde acontecem outras atividades como aulas de pintura, desenho, artesanatos e oficina de lutheria para construo de viola caipira, instrumento este bastante popular no Vale do Paraba.

    Os alunos da Oficina de Cordas dispem de instrumentos pertencentes Secretaria de Cultura que os disponibiliza para os estudos e aulas no Centro Cultural.

    Obra Social e Assistencial Nossa Senhora do Rosrio

    Entidade parceira da Oficina de Cordas (SOFIJ); o espao da Obra Social localiza-se na Zona Leste da cidade de So Jos dos Campos (SP). O prdio foi construdo com a ajuda da comunidade do Bairro da Vila Tesouro pela contribuio do dzimo. So trs salas, nas quais acontecem aulas de msica (Oficina de Cordas), informtica, catecismo, artesanato, e cursos voltados atividade religiosa.

    Tem ainda uma secretaria onde funciona a parte administrativa da parquia, sala para reunies, sala do proco, cozinha e banheiros.

    Nessa parceria a Obra Social cede o espao e a Oficina de Cordas realiza alguns concertos nos eventos da Parquia.

    A Oficina de Cordas, atravs do Projeto Orquestra Cidad10, adquiriu um instrumental especificamente para este projeto, que fica na sede da Obra Social, sendo que os alunos podem utiliz-los em dias diversos para os estudos individuais.

    Os alunos fazem suas aulas na sede da Obra e se espalham pelos jardins para estudar, trocar informaes e tocar juntos. O ensino

    10 Projeto scio cultural desenvolvido pela SOFIJ atravs da Oficina de Cordas com o propsito de levar o ensino de instrumentos de cordas (violino, viola e violoncelo) para a Zona Leste da cidade de So Jos dos Campos (SP) em um bairro perifrico que, por ter sido criado a partir de um processo de invaso das terras do municpio, no reconhecido pela Secretaria de Desenvolvimento Social do Municpio, no sendo contemplado pelo programa de assistncia pblica municipal. O projeto atende a crianas, adolescentes e jovens na idade de 7 a 21 anos. Este projeto conta tambm com a parceria da Refinaria de Petrleo Henrique Lages. (N.R.)

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    O curso est dividido em preparatrio A e B e, a partir da, subdividido em seis nveis. Nas fases de preparatrio e nvel I as aulas so coletivas; aps o segundo nvel, o aluno passa a

    ter aulas individuais de instrumento, mantendo em grupo as aulas de teoria e prtica de orquestra.

    O aluno iniciado nas aulas de teoria e percepo musical durante um perodo de dois meses. Nesse perodo, desenvolvem-se leitura, escrita e fundamentos bsicos da teoria musical.

    Os treinos de percepo envolvem leitura rtmica e solfejo. As aulas tericas so coletivas, com aproximadamente 15 alunos por turma; divididos em nveis de acordo com o programa. As aulas tm durao de 50 minutos, uma vez na semana.

    Aps esse perodo, o aluno passa a ter tambm aulas especficas de instrumento, no caso violino, viola ou violoncelo. Assim, complementa-se o aprendizado teoria e prtica.

    As aulas de instrumentos so coletivas, com grupos de at trs alunos, que estudam o mesmo instrumento (violino, ou viola, ou violoncelo). A durao da aula de 30 minutos, uma vez na semana.

    Passados os trs meses iniciais da prtica instrumental, o aluno passa a fazer a prtica de orquestra. Esta aula tambm coletiva, com cada naipe de instrumentos tocando uma partitura especfica. No mesmo esquema anunciado anteriormente, os naipes so assim divididos violinos primeiros, violinos segundos, violas e violoncelos. Cada naipe tem um chefe (como explicado anteriormente), e este instrumentista conduz o naipe, cobrando o desempenho do seu grupo; estuda as partituras com o professor de instrumento e coloca as

    anotaes que devem ser comuns ao naipe direo do arco, articulaes, dinmicas e outros. O repertrio das orquestras selecionado de acordo com o grau de dificuldade

    tcnica de cada orquestra: iniciante, mdio e avanado.

    Semestralmente, h audies de todas as orquestras e avaliaes. O currculo do curso traz um programa mnimo que o aluno deve cumprir, para estar apto a fazer os exames.

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    Cooperativa Crist de Artes

    A Cooperativa Crist de Artes foi criada em 2003, a partir de um ministrio dentro da Primeira Igreja Batista de So Jos dos Campos. Dentro da igreja, os Ministrios so sees responsveis por determinadas atividades. As aulas de msica j existiam desde o ano 2000, porm as atividades eram separadas. Com o crescente interesse por parte da comunidade batista pela atividade da msica e de outras atividades artsticas, criou-se a Cooperativa que atende aos membros da igreja em sua maioria, e evanglicos de outras denominaes. O movimento para a criao da cooperativa partiu do Pastor Sidney Vieira

    da Costa, formado em Msica Sacra pela Faculdade Teolgica Batista de So Paulo.

    A escola oferece vrios cursos; os de instrumentos, tais como piano, teclado, violo, guitarra, contrabaixo, violino, violoncelo, viola, flautas doce e transversal, saxofone, trompete, trombone e clarineta; e os de musicalizao e artes cnicas. E ainda na rea da dana, jazz, street dance, sapateado, ballet e adorao (coreografias para serem executadas durante os cultos); canto popular e erudito; artes visuais, oficina de sonorizao e humanizao hospitalar (apresentaes musicais nos hospitais).

    A escola tambm presta servios externos em hospitais, escolas, asilos, igrejas, casamentos, formaturas, saraus e recitais.

    Neste ano de 2007, a cooperativa tem cento e dez alunos, sendo apenas nove de

    violino, dois de violoncelo e zero de viola. A orquestra conta com a participao dos professores, porm no h ensaios freqentes e eles somente se renem quando h algum

    evento. Esta orquestra no a mesma que toca nos cultos.

    Todos os cursos so pagos, e no h alunos bolsistas.

    Segundo a Coordenadora Pedaggica, a escola define-se a partir de11:

    - Viso da escola: transformar vidas atravs da arte;

    - Misso: capacitar pessoas para serem usadas na rea de adorao junto s igrejas; preparar alunos e professores para serem teis comunidade; fazer da escola um canal que mostre o amor de Jesus;

    11 Todas as frases entre aspas so transcries ipsis literis das falas da Coordenadora dos cursos da escola Cooperativa Crist de Artes. (N.R.)

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    - Valores: refletir um carter cristo aos alunos; ser exemplo de vida, compromisso com o ensino da arte;

    A Escola dentro da viso dos cinco propsitos12

    - Adorao: Alunos e professores visitam at hospitais, escolas e utilizam o teatro para

    evangelizar, a dana para expressar o amor a Deus e o canto para impactar pessoas com a mensagem cantada, os instrumentos para transmitirem a msica e alimentar a alma;

    - Comunho: Estabelecer metas que ajudam a equipe da escola a receber de maneira agradvel os alunos e seus pais, como tambm promover programas que ajudam nessa comunho;

    - Discipulado: Primar por um ensino de qualidade e de forma criativa para que o aluno

    esteja satisfeito em estudar na escola; - Servio: Integrar a escola comunidade; ajudar como voluntria nos eventos

    promovidos, como, por exemplo, coral, recital; visitas a escolas, hospitais, asilos, e ser parceira dos ministrios da igreja;

    - Misses: Sair das quatro paredes e avanar para lugares onde as portas sero abertas. Fazer da escola um canal que mostre o amor de Jesus.

    O ensino

    As aulas nessa escola seguem o modelo apresentado aqui anteriormente. Todas as aulas duram sessenta minutos.

    No h programa nem aulas de teoria. Ela dada na mesma aula de instrumento, na

    medida da necessidade do que o aluno est tocando. Utilizam apenas o mtodo BONA para iniciar a leitura da partitura, conforme aparecer explicado no prximo captulo.

    A prtica de orquestra no freqente, s acontece quando tem apresentao fora da escola, e nessas ocasies os professores tambm tocam junto com os alunos. Alguns desses alunos, os mais adiantados, fazem parte da orquestra da igreja que toca durante os cultos. As msicas so composies evanglicas, tiradas do Hinrio Batista.

    12 Estes propsitos orientam a igreja enquanto instituio. (N.R.)

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    Para as aulas de instrumento, utilizam um mtodo editado pela prpria igreja chamado por eles de CCB (Congregao Crist do Brasil). Em anlise ao mtodo possvel perceber que a finalidade instrumentalizar o aluno para ele conseguir tocar as msicas do Hinrio. Os alunos passam por vrias avaliaes at serem considerados aptos a tocar nos cultos. Primeiro fazem uma avaliao para participar da reunio dos jovens, depois para participar dos ensaios e, por fim, outro teste para oficializar o conhecimento e poder tocar em qualquer igreja e tambm dar aulas. Corpo Docente na rea de cordas

    - 01professor de violino

    - 01 professor de violino/viola

    - 01 professor de violoncelo (deixou a escola em outubro/ 2007)13

    Todos tm formao religiosa e musical laica. O pastor fundador da escola tem formao universitria, porm com foco religioso, conforme dados anteriores.

    A Sede

    A sede da cooperativa propriedade da Primeira Igreja Batista de So Jos dos Campos e est localizada na regio central da cidade, prximo Rodovia Presidente Dutra, no final da Avenida Engenheiro Francisco Jos Longo. Conta com nove salas assim distribudas: sala para as aulas de musicalizao infantil, sala para as aulas de instrumentos de sopro, sala

    para instrumentos de cordas, trs salas para as aulas de piano onde tambm acontecem as aulas de canto, um estdio onde acontecem aulas de bateria, uma sala para ballet, uma sala

    para as aulas de teatro, a da diretoria e a da secretaria.

    As audies e apresentaes acontecem em uma grande sala, chamada de Salo Azul, ou ainda na Capela.

    H um ptio central e as salas esto distribudas em forma de U, a diretoria fica em uma das pontas. No h convvio social entre os alunos. Os alunos no circulam pelo

    espao. Em nossa visita no encontramos nenhum aluno pela escola.

    13 Este professor se desligou da escola em outubro/ 2007 e pediu para no participar da pesquisa. (N.R.)

  • 34

    A entrevista

    Para trabalhar as entrevistas orientei-me pela obra de Pierre Bourdieu, A Misria do Mundo, que traz uma srie de entrevistas, na qual uma equipe formada por socilogos, em espaos sociais diversos, procura compreender as condies de produo das formas contemporneas da misria social. Em especial, no texto intitulado Compreender o autor explica as intenes e os princpios dos procedimentos colocados em prtica nas entrevistas.

    A entrevista, alm de seu carter de veculo de conhecimento e de uma relao de pesquisa, traz em si uma relao social estabelecida entre o pesquisado e o pesquisador. Algumas das entrevistas transcorreram como uma conversa despreocupada sem manipulao de respostas por parte do entrevistado. Outras, permeadas de restries, foram mais resumidas e cuidadosas do que podia ou no ser dito, pois havia certa censura que algumas vezes impedia o entrevistado de expor as opinies e idias e em outros momentos encorajara a reflexo.

    Durante as entrevistas, procuramos conhecer como se deu o contato inicial com a msica, o percurso percorrido pelos professores, seus ressentimentos e alegrias, o motivo que os levou docncia.

    A proximidade social e familiaridade com os entrevistados ajudam na interpretao de sinais de feedback que, muitas vezes, so inconscientes porm importantes para a interpretao de uma resposta reticente ou mesmo silenciosa; em outras vezes, a relao de

    familiaridade reduz a violncia simblica contida na dominao do mercado dos bens simblicos que se institui na posio superior que o pesquisador ocupa na hierarquia das diferentes espcies de capital, em especial o cultural. (BOURDIEU 1990a, p. 698)

    As entrevistas foram gravadas com autorizao dos entrevistados, e seguiram um roteiro orientado, mantendo-se a preocupao de no restringir as respostas, mas tambm deixando os sujeitos vontade para expressar suas idias e lembranas (BEST, 1972). Foram feitas na sede das instituies, respeitando os horrios estabelecidos pelos entrevistados. A durao em mdia foi de sessenta minutos, alguns professores falaram de suas experincias musicais com muitos pormenores enquanto outros foram mais sucintos.

  • 35

    Algumas entrevistas tiveram que ser repetidas para esclarecer algumas dvidas da pesquisadora, surgidas ao longo da preparao dos textos.

    A observao

    A observao participante o mtodo mais importante da etnografia. A idia central da

    observao etnogrfica penetrar e participar de um grupo ou uma instituio. A melhor maneira de fazer a observao a de adaptar um papel real dentro do grupo ou instituio.

    Ou seja, ter acesso a todas as atividades do grupo, de tal forma que seja possvel uma observao desde a menor distncia. (ANDR, 1995)

    Para realizar o processo de observao deste estudo, foi feita observao em sala de aula, conforme descrio a seguir. A atividade de observao de aulas ocorreu em cada

    uma das instituies, durante uma aula de cada um dos entrevistados que concordaram em receber a visita da pesquisadora/ observadora. Vale dizer que algumas resistncias fizeram

    parte desse processo: ou a ausncia do professor ou do aluno, quando nas aulas individuais; ou ainda o estranhamento dos alunos quando em aulas coletivas. Assim, em funo de cancelamentos e entraves de idas e vindas, foram feitas quatro observaes nas trs instituies, durante uma aula completa.

    Outros fatos ainda dificultaram a observao, tais como evento extra-sala, concertos, audies, ausncia de professores, ausncia de alunos. As observaes na escola

    da igreja tambm foram restritas, marcadas pela secretaria e muitas vezes desmarcadas, demonstrando certa resistncia por parte do professor.

    Nesse contexto foram observadas aulas de 30, 45 e 60 minutos, com interrupes e inibies previstas em uma situao dessa natureza.

    Atravs da observao pudemos descrever a ao do professor em sala, o interesse ou desinteresse, o habitus como razo prtica, a interao professor/ aluno, como ele ensina, de que modo faz as intervenes. A base terica para analisar essas observaes

    veio de Clifford Geertz (1986), em especial sobre o texto Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa, no qual o autor faz uma interpretao da vida na Ilha de Bali.

    Podemos afirmar que no foi possvel visualizar o fenmeno do ensino em toda sua dimenso, embora nossa observao fosse direcionada a ele. No entanto, em razo da

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    condio de a pesquisa criar inevitavelmente situaes artificiais, na medida em que os sujeitos tomam conscincia de estar sendo observados, deixam de ser plenamente naturais. Fomos em busca de registrar os sinais mais importantes emitidos pelos professores no interior da sala de aula.

    A prtica docente, embora seja de responsabilidade do professor, constri-se no encontro entre professor e aluno em momento e espao especficos. A sala de aula esse espao especial que se revela na sua dinmica interna, mediante o modo de os sujeitos professor e aluno se relacionarem e estabelecerem uma comunho, uma consonncia, e

    at certa cumplicidade. (ANDR 1995)

    Justificando o tema

    H no Brasil uma avalanche de faculdades com cursos diversos e a msica entra tambm por essa porta. Alm dos cursos pblicos que graduam anualmente diversos

    instrumentistas, h ainda as instituies particulares. No entanto, a realidade do mercado de trabalho, com pouqussimas orquestras profissionais, direciona esses profissionais, instrumentistas educados para ser msicos de orquestra, para o magistrio.

    Esta condio exige uma ateno especial sobre a formao do professor de instrumento, e este estudo procurou investigar como esses instrumentistas se tornaram professores e como o conhecimento foi constitudo e colocado em prtica na sala de aula.

    No pretenso de este estudo expressar opinies sobre a prtica deste ou de outro professor, se a metodologia eficiente ou no; importa aqui, sim, conhecer como tecemos essa trama de vida cheia de matizes, s vezes fortes, s vezes fracas, mas que do todos eles o contorno das nossas aes na sala de aula quando somos um pouco mestres e um pouco aprendizes. (ANDR, 1995; SCHAFER, 1991; HEUTSCHKE, 2003; SWANWICK, 2003; NVOA, s/d) Retratos em movimento

    Estabelecemos um breve retrato dos participantes desta pesquisa para que o leitor possa assim compor em seu imaginrio, de forma animada e em conjunto com a descrio das instituies, a figura desses professores.

    Suas idades variam entre 17 e 65 anos.

  • 37

    - O professor Jos tem 28 oito anos, estatura mdia, e um fsico trabalhado em academia (o que me parece ser motivo de orgulho); bastante extrovertido e brincalho em sala (estratgia para se aproximar dos alunos), veste-se sempre de preto, usa brinco e pulseiras o que lhe d uma aparncia de msico de banda de Rock, bastante popular e est sempre rodeado por jovens alunos;

    - O professor Slvio tambm uma pessoa bastante divertida, porm em sala mostra-se srio, tolerante. Aparenta ter 40 anos e fora da sala de aula gosta de contar piadas, fazer imitaes e tocar trechos musicais para complementar as brincadeiras. Na ocasio em que

    estivemos na instituio para a observao o surpreendemos tocando o tema do stio do pica-pau amarelo14;

    - O professor Isaas, no perodo das observaes de campo, era recm-papai, com enormes olheiras de quem passou a noite embalando beb. Nesse momento, mostrou-se um pouco intransigente (conseqncia do cansao da noite mal-dormida) e muito exigente (caracterstica que se mostrou constante nas aulas seguintes) com os alunos, mesmo sendo nordestino com aquela tpica forma de falar com sotaque acentuado e tranqilo. Metdico, anota cada aula em um dirio feito por ele (o dirio de classe no exigncia da instituio).

    - A Professora Lucia tipicamente professora, lembra muito as professoras primrias da dcada de 1970. Traje tpico o qual no h necessidade de detalhar, pois temos exatamente na lembrana nossas professoras dos primeiros anos escolares. Compreensiva com os

    alunos, pois ela mesma confessou em entrevista ter tido dificuldades no perodo de estudante por ter sido uma aluna comum.

    - O Professor Santos tem 65 anos e grande parte da sua idade foi vivida no conservatrio e na cidade de Tatu. Alm da formao musical tambm formado no magistrio, o que lhe confere a aparncia e o ttulo de legtimo professor. Em sua sala h um piano diante do

    qual est sempre sentado em um banquinho prprio para o instrumento sobre o qual h uma pequena almofadinha de croch. O piano utilizado para acompanhar os alunos durante suas aulas.

    14 Programa infantil que passa em emissora de TV, adaptado da obra de Monteiro Lobato. (N.R.)

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    - O Professor Paulo envaidecido por ser um dos professores a alcanar boas colocaes em concursos importantes no cenrio da msica erudita e tambm por haver sido um aluno

    talentoso e precoce. Tem aproximadamente vinte e nove anos e uma carreira no muito longa como professor.

    - O Professor Wesley tem 17 anos; embora se mostre muito responsvel, vez ou outra em sala um menino. A ordem moral vinda da igreja impe-lhe um aspecto de jovem velho, cala social e camisa, muito diferente da vestimenta dos jovens da sua idade (jeans, camiseta e tnis).

    - O Professor Isaac ajudante geral em uma empresa que presta servios para o municpio da sua cidade. Muito simples, bastante melindroso e fica sem jeito diante da presena da pesquisadora. Como relatou em sua entrevista, terminou o ensino mdio no ano de 2006. Tem dificuldade de expressar-se e muitas vezes de se fazer entender pelo aluno por conta da linguagem coloquial. Em uma das aulas observadas estava vestido de terno vinho e gravata escura, porque depois da aula iria tocar no culto.

    Ao incluir estas observaes, alm do desejo de ilustrar e ajudar a compor a figura do professor pesquisado, percebemos que a variabilidade de retratos, cuja amostra aqui se apresenta, por ser constituinte de personalidades vivas, com matizes to diversos, deixa de ser apenas retratos individuais para compor sim um lbum de retratos em constante movimento.

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    Fig. 1 Prof. Ana Roseli em aula de violino, na Fundao Cultural Cassiano Ricardo (FCCR)

    FONTE: Foto by Anna Rebeca C. EKROTH (2003)

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    CAPTULO II A CONSTRUO DA PRTICA PEDAGGICA: DA APRENDIZAGEM ATUAO PROFISSIONAL

    Este captulo resultado das entrevistas realizadas com os professores das trs instituies selecionadas para esta pesquisa, conforme anunciado no captulo I. No encontro com os entrevistados procurei questes relevantes para entender quais os fatores que mais influenciaram na construo da prtica pedaggica do professor de instrumento de cordas friccionadas. As informaes foram extradas de suas histrias, sobretudo da deciso de fazer da msica profisso, fator que em muitos casos foi anterior passagem pelo

    conservatrio e ingresso universidade.

    A hiptese inicial que guiou esta parte do trabalho a de que as formas de socializao so fatores importantes no desempenho futuro do professor e, conseqentemente, na construo da sua prtica; que o conjunto de valores e crenas acumuladas durante a trajetria de formao, entre outros elementos, contribui para a performance dos professores. Formam, portanto, a base do seu desempenho.

    Assim, neste texto, procuro demonstrar que a construo da prtica pedaggica antecede a prtica docente, pois tem suas razes nas relaes com ex-professores que marcaram o aprendizado quer de forma positiva ou no, e com familiares, profissionais msicos ou no que, de certa forma, influenciaram a escolha da profisso. Foram estas relaes que contriburam para o modo particular com que cada um desses professores lida com os acontecimentos na sala de aula.

    O homem, segundo Geertz, um animal suspenso em teias de significados que ele mesmo tece ao longo de sua existncia social e histrica. (GEERTZ, 1998)

    No caso dos professores pesquisados, essas teias de significados partem de relaes

    estabelecidas antes do ingresso nos cursos do conservatrio ou universidades, nas relaes com os professores durante os cursos, no exerccio da profisso, na relao com colegas dos grupos, orquestras jovens15 das quais participaram, cursos de frias durante os quais

    15 Denomina-se Orquestra Jovem o conjunto de estudantes de instrumentos de orquestra. (N.R.)

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    ampliaram os contatos com professores vindos de outras localidades do pas e do exterior, no se podendo esquecer evidentemente o aprendizado informal feito na famlia e que vem

    completar esse universo de significaes.

    Nas observaes das suas aulas, nas instituies, notamos que o processo de construo da prtica no parte de regras tericas definidas. Na medida em que o professor enfrenta dificuldades, interage com os campos social, profissional e escolar, faz uso de esquemas de classificao, percepo e apreciao adquiridos anteriormente, que funcionam como esquemas geradores de saberes que servem para estruturar sua prtica. De

    fato, ao relacionar os esquemas geradores das prticas musicais dos professores da amostra e comparar a maneira como eles lidam com o ensino da msica, podemos entender a

    singularidade de cada um dos professores de cordas em suas aes docentes. Em outras palavras, a prtica do ensino da msica implica uma complexa operao de classificao, ou seja, o conhecimento prtico aciona por referncia uma relao dinmica e histrica das vivncias que cada professor herda em seu processo de socializao, as quais organizam a percepo do mundo, o pensamento e as aes. (NOGUEIRA, 2006; BOURDIEU, 2004)

    Neste captulo, portanto, procuro destacar alguns aspectos relevantes do processo de

    construo da prtica do professor de cordas e, por meio deles, apreender os fatores que contriburam para a sua formao profissional. Para tanto, foram sublinhados, na variedade de situaes encontradas nas falas dos professores entrevistado, informaes que, mesmo advindas das mltiplas relaes estabelecidas em diferentes meios sociais, assumiram o carter de indcios para uma disposio carreira musical.

    Em especial, neste estudo, pretendemos compreender de que modo indivduos

    vindos de diferentes lugares, isto , de meios e estruturas sociais diferentes, conseguem se vincular a um habitus para exercer as mesmas atividades, quais sejam tocar em orquestras e lecionar msica em uma mesma escola.

    Audio das vivncias

    A partir das falas dos professores entrevistados, pde-se constatar o peso do meio social de origem no gosto e interesse pelo aprendizado da msica. O hbito de audio de msica erudita, a freqncia a concertos de algumas das famlias, a rotineira audio dos msicos

    da orquestra da igreja, audio de rdio, apresentam-se como sendo fatores importantes e,

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    s vezes, decisivos na formao do interesse pela msica. Embora possa parecer que a aprendizagem musical se constitui unicamente via talento hereditrio, dada a incidncia

    dessa prtica musical dentro das famlias dos professores entrevistados, a aquisio do conhecimento, no que se observou, tende a depender mais relevantemente sobre as formas de socializao.

    As falas dos professores entrevistados mostram tambm que existem diferenas de vrias ordens no acesso a este aprendizado. O grupo de rock, as orquestras jovens, o convvio com a comunidade da igreja, o fazer musical no mbito domstico, os campeonatos entre bandas, todas se apresentam como atividades que serviram aos professores entrevistados como porta de entrada ao estudo do violino, viola e violoncelo,

    tornando-o objeto de sua profissionalizao em orquestras do estado de So Paulo. Proponho circunstanciar a variedade de situaes encontradas nas falas dos

    professores entrevistados, em que a apreenso de informaes no caso musicais advindas das mltiplas relaes, estabelecidas em diferentes meios sociais, assume uma

    disposio, ou seja, tornam-se motivos pr-conscientes da ao para transformar essas informaes em potencial de conhecimento.

    Observamos que h na aprendizagem musical dois momentos distintos, o primeiro que poderamos chamar de exposio e treino, quando a prtica musical se d atravs de audies freqentes de msica mais o treinamento a partir do ver fazer; e outro, especfico, orientado por um especialista para a ampliao do repertrio e apurao da

    tcnica. (CALVO, 1992)

    Estes mtodos descritos pelos professores demonstram que existem diferenas de vrias ordens no acesso ao aprendizado; porm, todos se encaminham para a busca da apreenso do sistema tonal, dos elementos gramaticais desse sistema, considerado eficiente na medida em que seja capaz de promover a absoro de um sistema musical (no caso da msica ocidental, o sistema tonal).

    O caso do Professor Jos

    Um dos professores entrevistados, a quem darei o nome de Jos, esclarece bem essas informaes ao narrar o incio do seu interesse pelo instrumento de cordas.

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    Meu interesse pela msica veio da famlia, meu av tocava violo, minhas tias tocavam violo. Quase toda a famlia tocava violo. Eu que desandei um pouco e fui tocar guitarra e depois viola (viola de orquestra).

    Este professor comeou a aprender msica com o av, agricultor da cidade de Paracuru (CE), no interior do estado. Naquela famlia, como em muitas do interior do Cear, que praticam agricultura de subsistncia, todos trabalham juntos. Os laos de parentesco nessas famlias so os principais aspectos de sua organizao hierrquica. A comunidade se forma a partir de famlias extensas, e a noo de produo e de trabalho

    culturalmente diferenciada; o trabalho dividido pelas categorias de sexo e maturidade. E um ponto que aqui nos interessa evidenciar que todos da famlia tm acesso a todo o conhecimento que a comunidade detm. (ARIS, 1981)

    O professor se lembra bem que, depois das lides na lavoura, quando a luz do dia se acabava, todos da famlia se reunia no apenas para o aprendizado do violo, mas tambm para o aprendizado da moral e dos valores que o grupo vinha reproduzindo ao longo do

    tempo os adultos falavam de coisas que ns crianas no entendamos muito bem, mas me lembro que eram importantes porque os adultos ouviam atentamente e concordavam com meu av. Quase todos tinham violo alguns com detalhes, com fitas no brao penso que era para personalizar e diferenciar o instrumento.

    O av sentava e comea a tocar o violo e os outros acompanhavam fazendo o ritmo e todos ns cantvamos, enquanto o av fazia o solo. Todos da famlia tocavam e o aprendizado era passado de gerao a gerao. Conta que o av tocava a Marcha dos Marinheiros, de Dilermando Reis... ele adorava solar essa msica, era quase um hino, nunca podia faltar. Um ritual que se repetia muitas vezes. Todos tinham que aprender a tocar esta msica: Se no tocssemos esta msica era como se no soubssemos tocar, ela funcionava como um diploma, um ttulo que legitimava a aprendizagem. Era um

    momento prazeroso para todos: gostvamos de tocar e cantar juntos.

    Um ritual que se constitua num espao de aprendizagem quando esse av, rodeado pelas crianas que brincando o imitavam e o escutavam ao mesmo tempo, ia transmitindo uma forma de ser e de viver.

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    Relata o professor que o momento da aula propriamente dito era sempre especial: o av colocava-o sentado sua frente, pegava o violo e ia contando o nome das cordas e

    tocando para que o som pudesse ser identificado. Eram instrumentos simples da marca Tonante16 acho que esta marca nem existe mais, s sei que depois que conheci um pouco mais de msica, que soube que essa marca no era boa. Naquela poca eu achava o som timo. O av fazia um acorde17 e ele o repetia vrias vezes; depois passava para outro e, assim, se aprendiam todos os acordes, ouvindo muitas vezes e bem lentamente, s depois que vinha o ritmo. Repetia o ritmo nas cordas soltas at que ele estivesse bom e ento comeavam a juntar os acordes, ia encadeando um aps o outro, devagar, e depois um pouco mais rpido. Quando as passagens de um acorde para outro estavam saindo com desenvoltura, colocava-se o ritmo e aquela msica estava pronta. Isso levava alguns dias at que se aprendesse a msica inteira.

    Esta prtica de aprendizagem utilizada com freqncia na msica popular, o tocar de ouvido, em que a tcnica no obstculo, nem a teoria; h a conscincia de processos harmnicos revelados no desencadeamento dos acordes, mas no h conhecimento deles como constructos. (WILLEMS, 1962)

    O mtodo utilizado pelo av para ensinar a todos os netos era a aprendizagem por imitao, que privilegiava o som, pois ficvamos tocando os acordes e ele dizia para escutarmos com ateno. Nesse processo o repetir e o imitar se fundem. Primeiro, ouviam o av tocar e depois o av pedia para que eles o imitassem, evidenciando a relevncia da mediao do outro no desenvolvimento da aprendizagem. Essa aprendizagem dependia dos olhos e dos ouvidos, e a ausncia da partitura em nada alterava o processo que era mediado pela palavra, pela imagem e sinestesia. Este estilo de aprendizagem informal, cuja transmisso do conhecimento processada de forma imitativa e em conjunto, ainda praticada nas famlias do interior brasileiro. Alguns mtodos desenvolvidos no sculo XX tambm utilizam o aprendizado em conjunto e a valorizao da educao auditiva. Da mesma forma que a pintura usa tintas e a literatura, palavras, a matria-prima da msica o som.

    16 Foi encontrada a informao de que o violo Tonante fabricado por Rei dos Violes. [//cifraclub.terra.com.br]

    17 Acorde: soar simultneo de duas ou mais notas. (N.R.)

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    Partindo dos sons que a cercam em casa, na escola ou na rua, a criana passa a perceber os sons da msica. Sons fortes, fracos, graves, agudos, macios, speros,

    estridentes; sons de madeira e de metal vo sendo aos poucos incorporados. (FERES, 1989)

    Esse tipo de ao pedaggica que privilegia o desenvolvimento auditivo, considerando-o um pr-requisito ao estudo da msica, destoa do que foi estruturado no lapso entre os sculos XVII e XIX, quando se considerava que somente por meio de um trabalho de escrita um iniciante poderia aceder ao aprendizado da msica e ao conhecimento ntimo da linguagem das obras musicais. No decorrer do sculo XX, o ensino

    sistematizado, desenvolvido nos conservatrios, passou a ser influenciado por idias novas que, mais tarde, vieram redimensionar o ensino musical, representado pelo princpio no

    qual o reconhecimento dos sons deveria ser alcanado por meio de atividades prticas. (HARNONCOURT, 1998)

    Carl Orff (1895-1982), um educador musical, trabalha sobre a escala pentatnica para favorecer modos prprios de expresso. No seu mtodo, os alunos passam a danar e a

    tocar o que compem, a improvisar melodias e ritmos para os movimentos que criam. Ao reservar um lugar importante para a improvisao e para o ensino coletivo, Orff nos remete

    infncia do professor Jos cuja iniciao musical foi feita tambm de forma coletiva quando todos da famlia acompanhavam os solos improvisados do av. (GRAETZER & YEPES, 1961; ROCHA, 1990)

    A reflexo que se faz a partir das idias supracitadas tem o sentido de ajudar a reconstituir os mecanismos e as operaes que estiveram presentes no princpio do conhecimento musical da amostra estudada. A partir da narrativa sobre a iniciao musical

    do professor Jos, por exemplo, vimos que no existiu nela um modo sistematizado de proceder como praticado pela escola, isto , percebe-se uma liberdade maior para abertura aos vrios campos, o que vai diferi-lo dos outros professores. Este professor, quando saiu

    do meio rural para a cidade, perdeu o contato com o av e com o conjunto musical familiar, ao mesmo tempo em que o fato de tocar violo em conjunto o aproximou de outros estilos de msica, principalmente do rock. Tanto os investimentos em discos de rock quanto na relao com os amigos para criao do grupo de rock explicitados como um novo recurso

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    social representa um ganho que lhe foi proporcionado pelo aspecto ldico da msica vivido durante sua infncia.

    Explorando a dinmica deste capital musical, Jos foi aprender a tocar guitarra utilizando a tablatura18, isso por meio da aquisio de revistas que serviam de referncia para aprender a tocar violo e guitarra sem professor. Como a tablatura um sistema de notao que utiliza letras, algarismos e outros sinais, ao invs de notao musical no pentagrama, para ele, foi possvel apreender o modo como proceder para produzir determinada nota ou acorde no novo instrumento e adaptar-se ao ritmo do rock, muito

    distinto do gnero musical praticado antes com a famlia.

    Essas tablaturas para guitarra assemelham-se s tablaturas que eram utilizadas nos sculos XVI e XVII e que funcionavam como verdadeiros guias de indicao de execuo, mostravam exatamente onde o msico deveria colocar seus dedos da mo esquerda, ao dedilhar as cordas. Porm, quando examinamos uma tablatura vemos apenas, diante de ns, as posies dos dedos, que no representam a obra graficamente. (GROVE, 1994, p. 924) O conhecimento adquirido atravs da leitura das revistas de msica, que alm das tablaturas traziam assuntos diversos sobre o rock e a audincia de estilos diversificados de msica,

    serviu de incentivo para seu aprendizado. Parece advir desse fato a necessidade de entender e decodificar a linguagem musical.

    Eu queria aprender a ler partitura, ento fui ao Sesc19. L havia aulas gratuitas de msica. Cheguei e disse que queria aprender msica e eles me perguntaram qual instrumento, e eu fiquei parado u