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Page 1: SANGUE NO MAR · se possível, pinta a cara da mesma cor. Assim, é provável que possa escapar depois de conseguir seu objetivo. Mas, vestir-se completamente de branco numa noite
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SANGUE NO MAR

Indubitavelmente o maior erro que pode cometer um

homem que realiza uma missão de espionagem durante a noite é vestir-se de branco. Quando a escuridão é absoluta, talvez isso não tenha importância. Mas quando há uma formosa lua tropical num céu recamado de estrelas, qualquer espião digno de tal nome enverga roupas negras e, se possível, pinta a cara da mesma cor. Assim, é provável que possa escapar depois de conseguir seu objetivo.

Mas, vestir-se completamente de branco numa noite enluarada é algo mortal. Pelo menos, costuma sê-lo. Como o sol, a lua reflete-se em sua roupa branca quase tão bem como o faria num espelho. Era o que estava acontecendo aquela noite.

O homem, de ponto em branco, corria o mais que era possível, aproximando-se da praia da ilhota.

Trazia na mão uma pequena maleta de peso tão considerável que mais de uma vez chegou a cambalear e a trocá-la de mão. Atrás dele, nada menos que uma dúzia de homens bem armados, parecendo furiosa matilha lançada empós de uma lebre assustada.

Igualmente vestidos de branco em sua maioria, mas com uma vantagem: não tinham por que se esconder, já que eram os “caçadores”. A vegetação era afastada sem contemplações rudemente, pouco importando o ruído daí proveniente. Tampouco se impediam de falar, dando uns aos Outras indicações a respeito da posição da presa.

A assustada presa vestida de branco, que corria para a praia, com aquela maleta que parecia pesar tanto quanto ele

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mesmo, O homem voltava freqüentemente a cabeça, sem deixar de correr. Todo o seu rosto redondo e moreno, de traços indígenas, estava coberto de suor que penetrava em sua boca aberta como a de um cão ofegante. Ele procurava fazer o mínimo rumor possível, mas sabia que seu caminho seria cortado inevitavelmente quando chegasse á praia. Uma vez lá, não teria mais escapatória.

Bem. Certamente poderia lançar-se à água, tentar afastar-se da ilhota a nado, mas... A maleta pesava em excesso, ele estava terrivelmente cansado e, sem dúvida, antes que pudesse recuperar-se para nadar embaixo d’água, uma dúzia de armas o crivariam de balaços.

Entretanto, continuava correndo para o mar. Já estava muito perto. Poucos segundos mais tarde, seus pés descalços se enterravam na areia, aumentando assim a dificuldade de sua corrida desesperada. Parecia que seus joelhos iriam dobrar de uni momento para outro. A menos de trinta metros, via-se o mar, com espumas brancas coroando as cadenciadas ondas. Mais além, a enorme extensão liquida estendia-se para leste, como uma negra mancha, até chegar ao continente sul-americano. No horizonte, viam-se as luzes de uma metrópole importante; Ciudad Andina.

Mas Ciudad Andina, por desgraça, estava demasiado longe para Gilberto Sierra. Tão distante como suas possibilidades de salvação. Do que não havia dúvida era que Gilberto Sierra, o homem perseguido era de uma teimosia admirável: precipitava-se para o mar como se lá, ao invés do término fatal de seu caminho, estivesse sua salvação, ou qualquer coisa verdadeiramente valiosa.

E talvez ele estivesse certo.

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Talvez, se conseguisse chegar ao mar, estivesse salvo... Pac! Pac! Pac! Os três disparos de rifle automático soaram de um modo

arrepiantemente claro no silêncio da praia insular, por trás do desventurado Gilberto, que lançou um grito, mais própriameflte um gemido de dor e espanto, parecendo receber um violento empurrão nas costas. Saltou com mais força para frente, ergueu os braços, soltando a maleta, e caiu de bruços na areia que brilhava como prata.

Atrás dele, ouviram-se vozes claras, em espanhol, dizendo que o haviam acertado. O rumor dos doze “caçadores” aumentou, foi ouvido com toda a nitidez. Várias figuras começaram a aparecer na orla do palmeiral que chegava até a praia. Todos armados, todos dispostos a rematar implacavelmente o pobre Gilberto Sierra.

Levaram ainda uns segundos até vê-lo ajoelhar-se na areia e arrastar-se para a maleta.

A maleta. Gilberto, simplesmente, estava jogando a vida por

aquela maleta. Quer dizer, já a tinha jogado... e perdido. Já de nenhum modo poderia escapar, com aquelas três balas cravadas nas costas.

Não obstante, ele insistia, deslizando para a maleta. Conseguiu agarrá-la com suas mãos trêmulas. Já nem sequer ouvia as vozes daqueles doze homens que o tinham caçado como um animal, como uma fera. Não ouvia nada. Mas via a maleta e muito perto dele, o mar. O mar que banhava aquela bonita ilha, parte do grupo que futuramente se Constituiria em Estado, sob o nome de Ilhas Coronadas. Ilhas Coronadas...

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Gilberto logrou pôr-se de pé e continuar correndo para a água. Um homem deveras obstinado, voluntarioso, estava-se revelando o pobre Gilberto Sierra.

Já quase á beira da água, avançava aos tropeções, quando atrás dele tornaram a soar alguns disparos de rifle, rompendo a noite negra e manchada de prata com alongados clarões violáceos, avermelhados, brilhantes.

Novamente ele caiu de bruços. Tinha as costas crivadas de balaços, completamente empapadas de sangue. Quis erguer-se uma vez mais, inutilmente. A noite prateada transformava-se na mais negra escuridão aos olhos de Gilberto, o bom índio andino. Mas as trevas não eram tão densas que o impedissem de ver a maleta.

E ainda teve forças para apanhá-la. E teve forças para ajoelhar-se, com as pernas metidas na água. E pôde atirar a maleta ao mar, com suas ultimas energias.

A maleta caiu na água e afundou rapidamente. Em menos de três segundos, não ficou nenhum sinal dela.

Na praia, Gilberto tinha-se posto novamente de joelhos. Seus olhos arregalados contemplavam o mar, as luzes de Ciudad Andina, que se viam longe, muito longe... Tão longe, que ele jamais poderia voltar para lá. Mas talvez fosse o desejo de vê-la uma última vez o que o obrigou a levantar-se, assombrosamente.

Pareceu a ponto de dizer alguma coisa, deu dois passos para o mar... Por trás dele, tornaram-se a ouvir disparos e nada menos que meia dúzia de novas balas se cravaram em suas costas.

Agora sim. Agora, realmente, já eram demasiadas balas. Gilberto Sierra caiu outra vez de bruços, na água. E ao senti-la em seu rosto, sorriu. A verdade era que não o

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atormentava dor alguma, nenhuma angústia. Tudo o que sentia era o frescor da água do mar em seu rosto índio. O frescor do Pacifico, seu mar... E lá longe, Ciudad Andina, brilhando na noite...

Gilberto Sierra foi um homem afortunado — morreu sorrindo.

Quando alguns de seus perseguidores entraram no mar até as coxas, para trazê-lo à areja, a água estava manchada de vermelho. Eram manchas feias, estranhas, mais brilhantes que a água.

— Está sorrindo, o miserável! — Deixe-o. Precisamos encontrar a maleta — disse

outro. — Vai ser fácil. Não a pode ter atirado muito longe.

Vamos mergulhar todos, até encontrá-la. Que fazemos com ele?

— Que fique onde está. O mar se encarregará de lhe dar destino.

E assim foi. Deixaram o cadáver à beira da água, parcialmente submerso, rodeado pela mancha formada por seu próprio sangue. O que importava não era ele, mas a maleta que atirara ao mar.

E o mar dele se encarregou, engolindo-o e dissolvendo lentamente a mancha de sangue.

Mas, ao que parecia, tinha-se também encarregado da maleta, já que os doze “caçadores”, por mais que a estivessem procurando, não conseguiram encontrá-la.

* * * E muito pouco depois, a uns trezentos metros mar

adentro, enquanto nestes, doze homens mergulhavam

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repetidamente, duas sombras negras emergiam das negras águas, junto a um pequeno bote. Dois homens com equipamento submarino: trajo de borracha, tubos de ar... Um deles, a primeira coisa que fez foi atirar dentro do bote a maleta pesadíssima que tinha custado a vida de Gilberto Sierra.

Depois, ambos subiram rapidamente á pequena embarcação e empunharam os remos. Não convinha fazer o menor ruído. O bote começou a deslizar em silêncio para o litoral, em direção às luzes de Ciudad Andina.

Um dos homens-rãs perguntou: — Acha você que Gilberto morreu? — Naturalmente. — Malditos! De bom grado voltaria á ilha para. — Calma. Não será ele o único a perder a vida por esta

maleta. O que temos que fazer agora é chegar até Héctor Benavente. E não será fácil. Precisamos ter muito cuidado em Andina, Paco.

— Eu sei, Luís. Mas se Gilberto deu sua vida por isso, nós terminaremos seu trabalho. Está prometido: chegaremos até Héctor Benavente custe o que custar. Gilberto não terá derramado seu sangue em vão.

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CAPÍTULO PRIMEIRO

Um terrível inverno que não acaba mais... A pedido da ONU

Uma espiã deliciosa! — Não há nada como o mar — declarou firmemente

Brigitte, — mas aborrece-me esse mar de inverno cheio de brumas, tio Charlie. Por isso, prefiro minha banheira de mármore rosa. Não está de acordo?

Charles Pitzer, chefe direto da agente “Baby”, estava no banheiro desta, contemplando-a com os olhos muito abertos, já que, evidentemente, ela se achava nua por completo.

Pena que aquela abundante espuma perfumada a cobrisse inteiramente, de tal modo que o pobre Pitzer não podia tirar muita vantagem de sua privilegiada posição. A espuma era também cor-de-rosa e tinha um aroma sutil de rosas frescas. Naquele mar de espuma rosada, os olhos azuis de “Baby” destacavam-se como duas estrelas numa noite apenas possível em sonho.

— Sim, sim... estou de acordo, Brigitte. Ela retirou uma perna da espuma e contemplou-a

criticamente, quase com desgosto. Isto é, o contrário de Pitzer, que estava gastando quantos olhos tinha.

— Minhas pernas não me agradam — disse ela. — Mas se são formidáveis...! — protestou Pitzer. —

Refiro-me à cor... Claro que ainda estão um pouquinho douradas de sol, mas não tanto quanto eu gosto. E este horrível inverno que não acaba mais! Como prefiro o verão, o sol, as palmeiras, os pássaros de todas as cores, o calor que convida a tomar champanha gelado... Odeio o inverno!

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Com toda minha alma! Não acha que minhas pernas perderam a sua bonita cor do sol, tio Charlie?

— Filhinha, não acho nada! Suas pernas não perderam coisa nenhuma. Você é uma gatinha muito vaidosa.

— Gatinha vaidosa? — estranhou Brigitte, erguendo as sobrancelhas.

— Gosta que lhe digam a todo instante que é bonita, que homem nenhum pode resistir aos seus encantos... Oh, sim, você é a gatinha mais presumida do mundo!

— E esta outra perna? — levantou a direita. — Não lhe parece que aqui se conserva melhor o dourado solar?

— As duas são iguais. Muito belas, muito perfeitas e... Ora, vamos, não vim aqui para lhe dizer amabilidades, mas para incumbi-la de um pequeno trabalho.

— Pequeno? — Parece que sim. Tolices de um pequeno país, pelo

menos... Vai sair do banho? — Vou. — Ótimo! — brilharam os olhos de Charles Pitzer. — Terei que repreender Peggy por deixá-lo entrar em

meu quarto de banho, tio Charlie. Você devia estar esperando na saleta, não é?

— Eu subornei a Peggy. — Ah, sim? Pois isso é como se me dissesse que

subornou o Presidente dos Estados Unidos com dinheiro da Rússia. Pura mentira. Sei muito bem que embromou a coitada para poder chegar até aqui. Ou não?

— Bem ... Quando ela me disse que você estava tomando banho...

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— Tio Charlie, isso é falta de vergonha. Agora, faça o favor de virar-se de costas enquanto tomo um chuveiro frio para refrescar meu formoso corpo e remover a espuma.

Resmungando, Pitzer levantou-se do banquinho e virou-se de costas para a banheira. Ouviu claramente o som da água ao deslizar pelo corpo da mais bela espiã de todos os tempos

— Não se vire! — exclamou ela. — Mas isto é suplício de Tântalo... — gemeu Pitzer, — Não seja exagerado riu Brigitte, friccionando-se sob o

jorro de água fria. — Você não tem nada de mitológico. E o pobre Tântalo é um personagem de Mitologia, não?

— Você deve saber... — Oh, sim! Deixe-me recordar meus bons tempos de

estudante aplicadíssima. Vejamos... Tântalo, ou Tantalus, foi filho de Zeus, pai de Pelops e Niobe. Foi rei da Patagônia. Roubou a ambrosia do deus e serviu-lhe a carne de seu filho. Zeus, enfurecido pelo que este fizera a um neto seu, precipitou-se num lago onde a água lhe dava pelo queixo e sobre o qual pendiam ramos carregados de frutos. Toda vez que ele queria beber, o nível da água baixava; toda vez que queria comer, os ramos carregados de frutos subiam. Assim, rodeado de água e alimento, o coitado nunca pôde satisfazer a fome ou a sede. Horrível, realmente.

— Então, posso virar-me? — Oh sim, claro. Pitzer virou-se com a velocidade de um raio...

Justamente quando “Baby” acabava de envolver-se numa grande toalha de cores alegres.

— Fui enganado! — reclamou o chefe da CIA para o setor de Nova Iorque. Você... você é uma pérfida!

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— E você um velho fauno, com toda essa cara de pau. Quer tomar alguma coisa?

— Uísque. Muito uísque para me consolar deste desgosto!

Brigitte olhou-se no espelho do banheiro e sorriu para si mesma.

— Bom Deus, como estou bonita esta noite! Como todas as noites, não é verdade, querido?

— Não sei. Mas se ficasse uma noite aqui, então poderia opinar... no dia seguinte.

— Disse muito uísque? — Veneno! — grunhiu Pitzer. — É o que quero:

veneno! — Também tenho. E bastante ativo, sem dúvida.

Lembro-me que uma ocasião, em... — Não me interessam suas histórias de espiã. Quero

tornar o meu uísque, dar-lhe alguns informes e largar-me daqui imediatamente. Ao diabo o velho Tântalo e sua família!

Rindo, Brigitte saiu do banheiro, seguido pelo mal-humorado Pitzer. Chegaram à saleta e ela, manejando astutamente a grande toalha, sentou-se, concedendo-lhe um espetáculo visual nada desprezível.

Agitou uma campainha de prata, com sua graça inimitável, e Peggy apareceu três segundos mais tarde.

— Uísque, Peggy. — Pois não, miss Montfort. Miss Montfort ficou olhando docemente para Pitzer.

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— Adiante. Oh, espero que não torne a mandar-me ao Alasca ou algum lugar parecido1.

— Você tem que ir ao trópico. — Maravilha! Fico-lhe muito grata, tio Charlie! Trata-se

de... executar alguém lá? — Não. Irá apenas como informante. — Informante? — ela contraiu as sobrancelhas,

enquanto acendia um cigarro. Deverei ir como jornalista? — Aproximadamente. Entretanto, convém que não

esqueça suas... habilidades de espiã. — Qual o problema da CIA no trópico? — Da CIA? Nenhum. Os olhos azuis fixaram-se surpresos na cara astuta de

Pitzer. — Não compreendo. — Digamos que seus informes serão diretamente

remetidos à ONU. — Á Organização das Nações Unidas? — exclamou

“Baby”. — Exatamente. — Assombroso... Sim, assombroso, porque segundo me

consta a ONU tem seus próprios informantes. E não são elementos de baixa categoria.

— É o que se diz. Não obstante, secretamente, houve um voto de confiança aos Estados Unidos, no senti de que... Bem, o fato concreto é que o Secretário-Geral da ONU pediu aos Estados Unidos a intervenção da agente “Baby”.

Brigitte estava boquiaberta de puro assombro.

1 Ver novela: Comandantes de Aluguel

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— Isso significa que o Secretário-Geral das Nações Unidas conhece a existência da agente “Baby”?

— Ora, vamos! — grunhiu Pitzer. — Ninguém no ignora que a CIA conta com a mais sagaz, eficiente, perigosa, infatigável... e original agente do mundo.

— Original? Eu sou isso? — Quanto ao seu discernimento do bom e do mau, é

originalíssima. O Secretário da ONU quis enviar a Andina um agente dotado de forte personalidade, de um critério próprio inflexível, com vistas a uma administração de justiça a mais adequada possível.

— Pelo amor de Deus. Isto é incrível! Uma agente da CIA atuando para a ONU. Suponho que os russos tenham bradado aos céus.

— Eles não sabem — sorriu Pitzer. — Na verdade, trata-se de pura e simples deferência pessoal do Secretário da ONU para com a agente “Baby”. Não para com os Estados Unidos, entenda-se bem. Nem, muito menos para com a CIA. Correm rumares de que o Secretário das Nações Unidas está pensando seriamente em convencer a agente “Baby” a abandonar a CIA e dedicar-se exclusivamente aos interesses daquela organização, sempre procurando preservar a paz do mundo. Não há dúvida de que o ilustre Secretário está muito bem informado a seu respeito.

— Incrível! “Baby” agente da ONU... Incrível! — Percalços da fama — grunhiu Pitzer. Peggy apareceu com uma bandeja em que se viam uma

garrafa de uísque, dois copos, pegador e um recipiente cheio de gelos. Deixou-a sobre a mesa e, a um sinal de Brigitte, retirou-se, já que esta se dispunha a servir a bebida pessoalmente.

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Depois de ambos terem sorvido o primeiro gole, Pitzer Continuou:

— O falatório chegou ainda mais longe, Brigitte. Na ONU diz-se que a agente “Baby” será enviada em breve a diversas partes do mundo onde haja ação bélica, ou mesmo uma simples guerra-fria, a fim de verificar conscienciosamente a origem de tais discordâncias. Mas voltemos à missão atual. Em Andina.

— Andina, esse país sul-americano, não muito grande, situado entre o Equador e o Peru?2

— Exato. Existe lá uma certa inquietação política, que, ao que parece, poderia degenerar em conflito armado entre a própria Andina e sua colônia de ultramar, denominada Ilhas Coronadas. Conhece-as?

— Sim claro. Qual é o conflito? — O Presidente de Andina formulou um pedido á ONU

no sentido de que esta chame a atenção das Ilhas Coronadas para que desistam de um movimento, que aparentemente está sendo preparado com o intuito de precipitar sua independência.

— Precipitar? As Ilhas Coronadas obteriam a independência dentro de

um ano, ou pouco menos. Mas, ao que parece, estão demasiado impacientes para esperar esse momento e preparam uma rebelião armada.

— E por que semelhante pressa? Se dentro de um ano se tornarão independentes, não creio que valha a pena

2 Como em diversas outras ocasiões, o autor recorre aqui ao

artifício do país imaginário.

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derramar sangue, tio Charlie. Qualquer país pode esperar um ano para ser livre.

— Bom... Seria preciso convencer disso os habitantes das Ilhas Coronadas, não é?

— Compreendo. Ou, tal não sendo possível, averiguar as causas pelas quais estão dispostos a combater contra sua metrópole ao invés de esperar um ano mais. Exato?

— Exato. — Suponhamos que não seja possível evitar esse

conflito armado... Que acontecerá? — Bem, neste caso, o agressor e rebelde, além disso,

seriam as Ilhas Coronadas, com o que a ONU se veria obrigada a enviar parte de suas forças a Andina para dominar a revolução. Isso, evidentemente, significaria um derramamento de sangue não pouco abundante, Brigitte.

— Claro. E que mais? — Como? — Que outras conseqüências haveria além do

derramamento de sangue? Refiro-me ao que significaria para as Ilhas Coronadas perder essa guerra.

— Ah. Semelhante cometimento de seus habitantes acarretaria um atraso de vinte e cinco anos na consecução de sua independência. Nenhum país não preparado para a paz poderá tornar-se independente. Assim estão as coisas.

— Compreendo. Quem governa, a colônia das Ilhas Coronadas?

— Um político inteligente... até o momento. Um homem jovem, chamado León Salvatierra. Quer vê-lo?

— Sem dúvida. Pitzer sacou seu habitual envelope amarelo e deste umas

quantas fotografias. A primeira que mostrou correspondia a

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um homem de pouco mais de trinta anos, moreno, de olhos negríssimos, sorriso simpático e expressão inteligente.

— León Salvatierra, dirigente da colônia. É um ilhéu de sangue ardente, um tipo apaixonado, impetuoso. Esse outro mostrou a foto de um homem aparentando quarenta e cinco anos, cabelos grisalhos, barbicha, olhos escuros, expressão fatigada e nobre — e Alberto de Mendoza, Presidente de Andina e, portanto, das Ilhas Coronadas, até que estas obtenham sua independência. E este outro — novamente um homem jovem, de uns trinta anos, rosto frio, seco, sério, queixo firme — é Feliciano Santander, Primeiro-Ministro de Andina e braço direito de Alberto de Mendoza.

— São três homens interessantes. — Com efeito. Mas não esqueça de que deles depende

uma possível guerra na qual, logicamente, haveria muitas mortes. O Secretário da ONU está ciente, ao que parece, de que a agente “Baby” detesta as guerras. De maneira que você visitará Andina, verificará em que pé estão as coisas e por que, e informará diretamente a Casa Branca a respeito. Dai, a informação irá á ONU.

— E à CIA, não? — Bem. Esperamos que você nos envie uma cópia de

seu informe — sorriu Pitzer. — Naturalmente... se assim convier á paz, tio Charlie. — Disso já sabemos resmungou Pitzer. — Bem, pois ai

está o assunto. Vá a Andina, investigue, tire suas próprias conclusões e o Secretário-Geral da ONU as receberá com muito gosto. Segundo você informar, assim será feito.

— Que decisão será tomada na ONU se, realmente, as Ilhas Coronadas se rebelarem?

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— Elas serão... esmagadas imediatamente. Já existe muita confusão no mundo para que se perca tempo com esta.

— Entendo... — murmurou Brigitte. — Quando devo partir?

— Amanhã. Tudo está preparado. Prepare sua bagagem de verão e... feliz permanência no trópico! Por esta vez não haverá tiros, nem mortes, nem nenhuma dessas coisas que lhe desagradam.

— Que assim seja... Oh, um momento: onde devo hospedar-me? E que contatos terei...

— Tudo isso está resolvido. Uma vez em Ciudad Andina, você alugará ou comprará um carro e se dirigirá a “La Riata”... É uma fazenda onde se criam touros, propriedade de Héctor Benavente. Lá, nessa fazenda chamada “La Riata”, você se avistará com o Presidente Mendoza. E uma vez realizada essa entrevista secreta, proceda de acordo com seu critério pessoal até chegar a conhecer toda a verdade sobre o assunto... e evitar o conflito armado, se puder.

— Poderei. Esse Héctor Benavente quem é? — Um toureiro. Um “matador” de touros. Um dos mais

famosos de toda a América do Sul, o número um, segundo a opinião da maioria.

— Não temos fotografias dele? — Não... — Pitzer ficou um tanto desconcertado. — Bom, é um homem tão famoso em todo o continente

sul-americano que não haverá possibilidade de erro quanto á sua identificação. Não há jornal andino que passe uma semana sem publicar sua fotografia. Atualmente está

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descansando, restabelecendo-se de uma intervenção cirúrgica.

— Foi ferido? — Foi. Mas por um touro. No México. Recebeu uma

tremenda cornada na parte inferior do tórax, que o manteve entre a vida e a morte por uma semana. Agora está bem, convalescendo cm sua bonita fazenda, onde tem sua própria criação de touros bravios. Já é homem de certa idade e não deverá demorar a aposentar-se.

— Um homem de certa idade? E por que toureia ainda? Talvez sua situação econômica não seja boa...?

— Pelo contrário. Héctor Benavente é considerado um dos homens mais ricos de toda a América do Sul. E multimilionário... em dólares.

— Oh! E que idade tem? — Quase quarenta anos. Brigitte ergueu as sobrancelhas, surpresa. — Considera-se velho um homem de quarenta anos? — Bem um pouco... maduro, não? De qualquer modo,

depois de conhecê-lo, você saberá defini-lo melhor. Sua importância, neste caso, é que se trata de um grande patriota, sempre disposto a qualquer coisa por Andina. Tanto que, segundo consta, é possível que se retire da arena para apresentar sua candidatura á Presidência do país dentro de alguns meses.

— Em oposição ao atual Presidente Mendoza? — Exato. — E Alberto de Mendoza confia num homem que

pretende ocupar seu posto? — perguntou incredulamente “Baby”.

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— Corre por lá um rifão, herança dos espanhóis, que diz assim: “lo cortês no quita lo valiente”. Isto significa que Héctor Benavente será um encarniçado rival de Mendoza quando tiverem lugar as eleições. Mas enquanto isto, sua pátria vem em primeiro lugar e, portanto, ele ajudará Mendoza a mantê-la em paz. O resto, isto é, que o Presidente seja este ou aquele, não tem importância.

— Um homem extraordinário esse Benavente — murmurou Brigitte. — Um matador de touros que quer ocupar a Presidência de seu país, mas que, por enquanto, colabora com o Presidente atual. Interessante!

Pitzer terminou seu uísque. — O avião sai às nove da manhã, Brigitte. Espero que

você deixe bem a CIA perante o Secretário-Geral da ONU. Não esqueça que vai como “observadora”, apenas. Alberto de Mendoza, seu Primeiro-Ministro Feliciano Santander e Héctor Benavente assim o entenderam. Não complique as coisas.

— Eu nunca complico as coisas, querido — sorriu “Baby”. — Resolvo-as, o que é muito diferente. E como prova de minha boa vontade nesta viagem, levarei para esses senhores umas quantas garrafas de minha bebida predileta... e algumas cerejas. Não é verdade que sou deliciosa?

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CAPÍTULO SEGUNDO

Um touro negro e um touro malhado Um candidato ás eleições presidenciais

Viver com o medo... A deliciosa passageira do vôo 89 da “American

Airways” chegou ao Aeroporto Internacional de Ciudad Andina trinta e’oitos horas depois de sua conversa com o “tio Charlie”. E chegou sorrindo, porque estava no trópico, praticamente rodeada de um mar azul profundo, entre palmeiras que se recortavam contra um céu puríssimo, imersa numa cálida atmosfera perfumada por mil espécies de flores e cheirando também a terra ensolarada, a fruta madura. Trazia uma elegante maleta e outra menor, de cor vermelha com pequenas flores azuis. Bagagem suficiente para uma missão de boa vontade, para estabelecer a paz entre duas facções. Ou, pelo menos, conhecer as causas da tensão entre Andina e as Ilhas Coronadas, a fim de informar a ONU, para que este organismo resolvesse as coisas pacificamente.

De acordo com o combinado, ninguém a estava esperando. Sua chegada era secreta, exceto para umas quantas pessoas, muito poucas. E está claro que ninguém, vendo-a tão doce e sorridente, poderia pensar que estivesse diante de mais astuta e perigosa espiã do mundo.

Uma criatura angelical. Não procurou nenhum táxi, pois não conviria que o

chofer, mais adiante, pudesse comentar sua viagem à fazenda de Héctor Benavente, dizendo que para lá havia transportado uma estrangeira belíssima... Portanto, no próprio aeroporto, alugou um carro. Um Ford velho de dez

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anos, que só Deus saberia como tinha ido parar em Andina. Mostrou seus documentos, depositou a fiança em dólares americanos, trocou esta moeda por alguns milhares de pesos andinos e, após colocar sua reduzida bagagem no já muito rodado veículo, pôs-se a caminho da cidade, que, como o aeroporto, ficava junto ao mar, porém uns doze ou quinze quilômetros mais ao norte.

Antes de entrar em Ciudad Andina, a qual podia avistar branca e brilhante ao claro sol da manhã, perguntou, já sem preocupação, qual o caminha para a fazenda de Héctor Benavente. O interrogado era um homem quase velho, de grande bigode cinzento, caído; usava calça e blusa brancas, e leves sandálias de palha. Seus olhos brilharam quando ouviu o nome do matador de touros.

— Héctor? — sorriu. — Todo o mundo sabe onde é “La Riata”, señorita.

— Eu não — sorriu também Brigitte. — Claro ... Se soubesse não perguntaria. — Exatamente. — Quer ver o nosso Héctor? — O Grande Héctor, sim... Não é como o chamam? — Claro! Ele é o maior! O mais formidável toureiro do

mundo! — Pensei que os maiores toureiros do mundo estivessem

na Espanha — tornou a sorrir Brigitte. — Qual nada! Tolice! Ninguém fez nem fará proezas

iguais ás de Héctor com os touros! Ninguém! Lembro-me de uma vez nas Tientas del Santíssimo, quando ele sozinho...

— Que são as Tientas del Santíssimo?

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O andino olhou-a com olhos arregalados, parecendo a ponto de desmaiar de puro assombro.

— Nunca esteve em nossa praça de touros? — Não. Sinto muito... — Virgem! — suspirou o homem, aniquilado. — É a

primeira vez que vem a Andina, então? — A primeira vez. — Ah! Bem... Mas de qualquer modo deve saber que

Héctor é o melhor matador do mundo! O melhor matador de todos os tempos!

— Isso eu sei. E venho justamente entrevistá-lo para o meu jornal.

— Héctor já foi entrevistado muitíssimas vezes! — riu o homem, divertido.

— É possível. Mas nunca por uma jornalista dos Estados Unidos, creio.

— Ah, é ianque, hem? — Sou. — E publicará coisas sobre Héctor em Norte América? — Esta é minha intenção. — Neste caso, vou lhe dizer onde está “La Riata”. E

quando vir o Héctor, diga-lhe da parte do velho Macário, o do porto, que faço votos para que esteja muito bem e que logo ele volte a tourear com a galhardia de sempre. Dirá isso a ele?

— Direi. Mas antes terei que chegar à fazenda... — Oh! Sim! Eu lhe mostrarei por onde se vai. — Obrigada — suspirou Brigitte. O velho Macário deu-lhe claríssimas explicações sobre a

maneira de ir a “La Riata”, enquanto ela pensava que se por acaso ele fizesse comentários a respeito da chegada de uma

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jornalista americana para entrevistar Héctor Benavente, tais comentários seriam efetuados em esferas sociais pouco comprometedoras. E possivelmente o mesmo teria ocorrido com o chofer de táxi. De qualquer modo, ela preferia dispor de veículo próprio para seus deslocamentos através daquele país tropical.

— Entendeu bem, señorita? — Muito bem. Você foi muito gentil, Macário.

Obrigada. — Não esqueça de dar meu recado ao Héctor. E outra

coisa: vai a “La Riata” de carro? — Claro. O velho admirativo moveu a cabeça. — Esses ianques... Boa viagem, señorita. — Gradas, Macário. Não lhe parece Conveniente que eu

vá de carro? — Isso é por sua conta. — Como acha você que eu deveria ir? — A cavalo, naturalmente. — Oh... Mas eu não tenho cavalo, de modo que terei que

usar o carro. Até a vista, Macário. — Adios, señorita.

* * * A fazenda “La Riata” ficava umas quinze milhas ao sul

da cidade e, ao que parecia, seus limites ocidentais chegavam até o mar, Devia ser, sem dúvida, uma grande fazenda. Não tanto quanto os ranchos texanos, mas ainda assim considerável.

Chegava-se à porteira saindo da estrada por um amplo caminho de terra vermelha, ladeado de palmeiras. Uma vasta porteira pintada de branco, tendo por cima, formando

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um arco de ferro forjado que imitava uma corda, as palavras que lhe davam nome: “La Riata”, o laço. Numa das grossas estacas laterais, gravada a fogo, a marca que identificava o gado de Héctor Benavente: um H e um B juntos de modo que a última barra vertical do primeiro se justapunha á vertical do segundo, formando como que uma só letra. Uma bonita maneira de colocar as iniciais de um homem no lombo dos touros.

Não se via ninguém, de modo que Brigitte teve que abrir a porteira, entrar com o carro e voltar para fechá-la. Depois, pelo largo caminho de terra vermelha, entre tabuleiros de relva e árvores de baixa e frondosa copa, ela prosseguiu em direção à casa que se via ao fundo, distante, branca e vermelha.

Mas ia olhando para as árvores, sob a maioria das quais viam-se alguns touros enormes, negros uns, malhados outros, tordilhos, tostados, zainos. Para Brigitte, entretanto, todos eram touros, de cores mais ou menos bonitas. E súbito compreendeu as palavras do velho Macário, quando lhe dissera que deveria ter vindo não de carro, mas a cavalo.

Surgiram no caminho três daqueles alentados animais, aproximando-se briosamente do veiculo, com a cabeça levantada, as agudas pontas dos chifres apontando o céu. Um deles desviou-se para a sombra de uma árvore, mas os outros dois ali ficaram, olhando com seus grandes olhos brilhantes o monstro mecânico de cor negra que se acercava deles, como a desafiá-lo, dispostos ao combate. Brigitte teve que se apressar a frear, sob pena de chocar-se contra aquela dupla massa de carne poderosa. Cada um dos animais devia pesar folgadamente quinhentos quilos.

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O carro deteve-se apenas a cinco metros deles. O malhado começou a escavar a terra do caminho com as patas dianteiras, enquanto o negro, impávido, erguia a cabeça e olhava diretamente para a espiã internacional. O malhado lançou-se de súbito Contra O carro, mas, felizmente, parecia estar brincando. Não se produziu o impacto, pois o enorme animal se deteve antes, como arrependido de seu ataque humorístico. Baixou e levantou a cabeça algumas vezes, entretanto, como se continuasse firme em seu propósito de hostilizar. Finalmente, parou junto à janelinha esquerda do carro, cujo vidro Brigitte logo tratou de subir, O negro aproximou-se até que seu focinho ficou quase tocando o capô do veículo. Enquanto isso o malhado continuava olhando para Brigitte através do vidro, com uma expressão expectante, intrigada, absorta.

A agente “Baby” não sabia o que fazer. Não estava muito assustada, pois esperava que a chapa metálica do carro pudesse resistir à investida daquele bicho tremendo. Do que não estava tão certa era que o carro deixasse de virar sob o terrível choque, se este chegasse a produzir-se.

Compreendeu muito bem que não devia dar marcha à ré. Quando o carro se movesse, o malhado o atacaria. Apenas começasse a deslizar para trás, afastando-se do negro que se havia estendido no caminho, o malhado efetuaria o ataque demolidor com sua grande cabeça provida de dois aterradores chifres de trinta centímetros de comprimento.

O melhor, sem dúvida, era não se mover. Nem ela mesma devia mover-se.

E assim, durante três ou quatro minutos, a espiã e o touro estiveram se olhando fixamente. O animal mugiu algumas vezes, enquanto com a longa cauda espanejava os

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flancos. “Baby” limitou-se a aguardar o inevitável. Mais além, Outros touros caminhavam pesadamente pelo campo, e outros continuavam sob a sombra das árvores, protegendo-se daquele fúlgido sol que começava a aquecer horrivelmente o carro, transformando-o num forno. Na testa de Brigitte começaram a aparecer gotas de suor, que finalmente deslizaram por suas faces e chegaram aos seus lábios, deixando nestes um gosto salgado.

— Ehê! ... Ehê, touro...! Touroooo...! Os olhos azuis voltaram para onde havia soado a voz,

apagada, distante. Mas nem sequer atreveu-se a suspirar ao ver o cavaleiro que se aproximava, volteando sobre sua cabeça um longo chicote muito grosso, que estalava com força no ar.

O touro que estava deitado no caminho Levantou-se, com a cabeça virada para o cavaleiro. O malhado também olhou vivamente para ele, movendo com galhardia seu robusto pescoço, erguendo muito a cabeça. O negro corria já para o cavaleiro e o malhado saiu atrás dele, numa carga estremecedora.

O cavaleiro já tinha chegado ao caminho e continuava lançando seus gritos de desafio. Por um instante, Brigitte teve a certeza de que cavaleiro e cavalo iam saltar pelos ares, despedaçados pela dupla investida. Mas o cavalo pulou destramente para um lado, esquivando os touros, os quais voltaram-se imediatamente, tornando a atacar com fúria. Uma brusca manobra do cavalo deixou plantados os dois animais. O chicote tornou a estalar por cima de suas cabeças. O negro deu a volta e afastou-se para a sombra de uma árvore. O malhado fez uma tentativa de ataque contra o cavalo, mas pareceu aborrecer-se de repente, e optou por

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imitar seu companheiro de folguedos, seguindo em direção à sombra da mesma árvore, já completamente esquecidos os dois do cavaleiro, do carro e do combate.

Então, o cavaleiro aproximou-se a trote do velho Ford, enquanto dois olhos azuis o olhavam, fixa, atentamente, chegando com aquele primeiro olhar muito mais fundo do que o cavaleiro poderia supor: até o fundo do audacioso espírito do homem de olhos negros. Corpo enxuto, lábios firmes e sólida mandíbula. Seus longos cabelos apareciam sob o chapéu de palha amarela. As mãos, grandes, ossudas, fortes, seguravam as rédeas com absoluta naturalidade. Aquele homem parecia ter um rosto de metal. Um rosto seco, de traços muito nítidos, cortado por uma cicatriz. Usava calças brancas, uma camisa cor de café e sandálias de palha. Mas via-se claramente que não era um servo.

Bastaria um olhar superficial sobre sua pessoa para identificá-lo como amo e senhor. Todo seu aspecto, seu porte, aquele rosto enérgico e impassível, o olhar direto daqueles olhos negros imediatamente o definiam como tal.

Quando desmontou junto ao carro, tirou o chapéu. E seu cabelo escuro ficou visível, de um cinzento brilhante e uniforme nas têmporas, como ligeiras pinceladas de prata. Devia estar bem próximo dos quarenta anos.

Quem poderia ser aquele homem impressionante senão Héctor Benavente?

Uma das grandes mãos tostadas pelo sol abriu a porta do carro. Estava de Costas para os touros e parecia ignorá-los completamente, com uma indiferença estranha que muito se assemelhava à confiança.

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— Queira desculpar disse. Espero que não tenha se assustado em demasia, señorita...

— Na verdade, assustei-me um pouco, sim — suspirou Brigitte.

— Sinto muito. Todos os meus amigos já conhecem estas pequenas dificuldades com meus touros, por isso vêm a cavalo. São poucos os que utilizam carros.

— Compreendo isso muito bem — Brigitte passou um pequeno lenço pela testa, enxugando o suor. — Já me via dando voltas dentro do carro.

— Não, não... E pouco freqüente que um touro ataque um carro, mas tornam-se incômodos. Rodeiam-nos, sentam-se à frente... Uma vez, um de meus amigos teve que ficar três horas dentro do carro, sem poder prosseguir nem recuar. Em geral, esse é todo o perigo que existe. Os touros são inteligentes e nobres. E também foi inteligente da sua parte não tentar escapar. Então, sim, creio que eles teriam investido.

— Foi mais ou menos o que pensei. — Fez bem... Oh, perdão: sou Hector Benavente. Brigitte estendeu a mão, apertando a do famoso matador

sul-americano. Eu sou Brigitte Montfort, señor Benavente. Jornalista

dos Estados Unidos. Vinha justamente pedir-lhe para conceder-me uma entrevista.

— Ah, sim — disse ele. — Fui informado de sua chegada, mas parece que não convinha ir esperá-la no aeroporto... O que teria feito com muito gosto.

Tinha uma voz profunda, viril, um tanto seca. Observado mais detidamente, Héctor Benavente dava a impressão de ser todo de couro, rijo, fortíssimo em sua esbelteza.

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— Agradeço-lhe... Disseram-me que me hospedaria em sua casa, señor Benavente. Espero que isto não lhe seja demasiado incômodo.

— Será um prazer. Bem sorriu bruscamente, coisa que parecia impossível, e Brigitte ficou subjugada por aquela cintilação branca, pela luminosidade de seu inesperado sorriso. — Espero que não esteja cometendo um erro... Quero dizer, que além de jornalista.

— Sou a pessoa que está esperando, señor Benavente. Pode dizer isso a don Alberto de Mendoza quando julgar oportuno. Entendo que nossas entrevistas terão lugar em “La Riata”.

— Assim é. Avisarei o Presidente por telefone quando chegarmos à casa. Acho melhor que deixe aqui o carro, se está de acordo. Um de meus peões virá buscá-lo. Eles estão acostumados com este calor, o que não e o seu caso. Noto que não está bem disposta.

— Apenas um bocado encalorada. Dentro deste carro a temperatura é altíssima.

— Então, é melhor irmos a cavalo, quanto mais que assim evitamos outro possível encontro com touros. Os cavalos podem andar por toda parte.

— Mas só vejo um... — “Rejón” poderá com os dois. Mas, se não sabe

montar, poderei ir em busca... — Não, não, por favor... Nada mais de entrevistas com

seus touros, señor Benavente. Farei como sugere. — Muito bem. Creio que será melhor montar no selim.

Eu irei na garupa, manejando as rédeas. Permita-me ajudá-la...

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Deu-lhe a mão, ajudando-a a sair do carro, e franziu ligeiramente a testa quando Brigitte se voltou para apanhar a maletinha. Mas, sem fazer o menor comentário, segurou o estribo para ela montar. Brigitte ficou de Lado na sela e Benavente, com assombrosa agilidade, saltou à garupa do cavalo. Ela lhe entregou as rédeas e ele a segurou passando os braços pelos dois lados da espiã, que teve a impressão de estar encerrada num circulo de aço.

— Hop! “Rejón” pôs-se em marcha em direção à casa distante,

que se via como uma mancha branca e vermelha na planura, sobre um verde gramado, entre frondosas árvores. Alguns touros viravam a cabeça para eles e Brigitte teve a impressão de que os chifrudos animais se perguntavam sobre a conveniência de atacar. Mas, evidentemente, já estavam desenganados quanto ás suas possibilidades de velocidade contra as de um cavalo.

— Parece que possui uma esplêndida fazenda, señor Benavente. E seus touros, sem rancor contra eles, são muito bonitos.

— Obrigado. Suas palavras são muito gentis, mas como criador sou insignificante. Só daqui a cinco ou seis anos é que poderei me sentir satisfeito.

— Quantos touros tem agora? — Uns trezentos... Em sua maior parte, demasiado

jovens. Já enviei alguns às praças, e dizem que são muito bravos. Mas ainda não estou Contente.

— Por quê? — Devem ser mais bravos. — Pois eu os prefiro mansos — riu Brigitte. — Pelo

menos enquanto estiver por aqui...

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Benavente riu também. — Mas o pior que pode acontecer a um toureiro é

encontrar-se na arena com um touro manso. Quanto mais bravos, melhor. Via de regra, quanto mais bravo, mais nobre é um animal. Vê aqueles dois? São da Espanha. Comprei-os há poucos meses de um criador salmantino. Logo serão pais e espero que a despesa e os cuidados tenham valido a pena.

— Desejo-lhe boa sane. Como está sua ferida? — Minha que...? Oh, refere-se à cornada, suponho.

Bem... Já está bem. Ainda não cicatrizou completamente, mas está em perfeitas condições.

Conheci um seu admirador fanático... Lembra-se de um tal Macário, do porto?

— Não. — Não? Pois falou a seu respeito como se fossem

grandes amigos. Chamava-o Héctor, simplesmente... e lhe mandou muitas lembranças.

— Oh isso acontece com freqüência. Todos me conhecem neste país, mas eu é que não posso conhecer a todos. Se me vêem na rua, correm a dar-me palmadas nas costas, chamam-me pelo primeiro nome, convidam-me para suas casas... Como se fôssemos pouco menos que irmãos.

— Entendo que o senhor é pessoa muito querida em Andina.

— Tenho essa sorte. — E muito popular. — Sim, certamente. — Também é certo que pensa concorrer nas eleições

presidenciais, dentro de alguns meses? — Também é certo, sim.

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— Suponho que... terá que abandonar as touradas. — De fato. — Agrada-lhe essa idéia? Héctor Benavente demorou uns segundos para

responder. — Não... — murmurou por fim. — Não me agrada essa

idéia. — Nem mesmo depois de ter recebido uma chifrada em

pleno peito, que poderia ter-lhe custado a vida? — É minha profissão. Tenho mais sete chifradas, em

todo o corpo. Estou há vinte anos matando touros, miss Montfort. E natural que eles se tenham desforrado um pouco comigo.

— Suponho que esta última chifrada lhe tenha feito refletir...

— Já recebi duas piores. Uma delas, no ventre. Se estou vivo é porque Deus foi bondoso. Por mim Não. Não é o medo o que me impele a retirar-me. Faço-o apenas por compreender que o presidente de um país, embora tão pequeno e pouco importante internacionalmente como Andina, não pode andar por ai cortando rabos e orelhas. Além disso, sempre pensei que uma pessoa deve fazer uma só coisa. Mas fazê-la bem, nisso empenhando toda sua vontade. Creio que sentirei quando me afastar das praças, mas minha decisão está tomada.

— Segundo a lógica, não deveria sentir, señor Benavente.

— Não compreendo. — O senhor é livre de escolher entre concorrer ás

eleições para Presidente ou prosseguir toureando. Se a primeira perspectiva o entristece, por que não desiste de

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suas pretensões políticas e continua matando touros nas praças?

— Estamos chegando — murmurou Benavente. Havia dois peões junto a uma cerca de arame com um

pequeno portão de tábuas pintadas de branco. A cerca rodeava a casa e o terreno destinado a jardim e serviços; um espaço amplo, certamente, cheio de árvores e flores. A casa ficava para a direita, assim como a garagem. À esquerda, um grande pavilhão, distante não menos de quinhentos metros e onde sem dúvida deviam alojar-se os empregados. Entre ambos edifícios, estábulos brancos, em frente aos quais viam-se alguns peões treinando cavalos.

A casa ficava completamente isolada destas dependências, mas bastante perto delas.

— Pedro, ficou um carro no caminho. Quando puder, vá buscá-lo, por favor.

— Imediatamente, don Héctor! Deixo o carro na garagem?

— Claro, homem. A señorita ficará em “La Riata” alguns dias. Você, Florián, vá buscar-lhe um cavalo que não seja dos que lhe agradam — acrescentou sorrindo.

— Entendido? — Perfeitamente, don Héctor — sorriu também o rapaz. — Escove-o bem e escolha uma boa sela. Você sabe. — Não tenha cuidado, don Héctor. A señorita ficará

contente. Digo ao Crisanto que prepare a pracinha para esta tarde? A señorita certamente gostará, don Héctor.

— Você é um malandro — admoestou Pedro: — O que esta querendo é ver don Héctor tourear, ainda que seja uma vaquinha.

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Benavente havia saltado do cavalo e ergueu a cabeça para Brigitte, com aquele branco e surpreendente sorriso em seu rosto enxuto e tostado.

— Gostaria de tourear, miss Montfort? — Bom... — Garanto-lhe que não há perigo. Quero dizer que não

há mais perigo que diante de um touro. Nem menos. — Pensarei a respeito... — sorriu “Baby”. — Como se

costuma dizer, gosto muito de touros do outro lado da cerca. Pedro e Florián riram e foram cumprir seus encargos

respectivos. Héctor Benavente puxou o cavalo pela rédea, levando-o para a casa. Lá, ajudou Brigitte a desmontar e entregou as rédeas a um peão que acudiu pressurosamente, dando as mesmas demonstrações de afetuoso respeito para com o matador.

Brigitte estava maravilhada com aquela casa do mais puro estilo colonial espanhol, com grandes arcadas, pátio lajeado, um poço completamente rodeado de flores, duas grandes parreiras trepando por um dos arcos, cadeiras de vime, janelas de rótula... Não podia ser mais idêntica a um dos clássicos e formosos cortijos andaluzes. Dentro da casa destacavam-se os finos mosaicos do piso, os azulejos das paredes. Bem na entrada, havia uma enorme cabeça de touro, empalhada. Tinha cornos cujo comprimento não devia ser muito inferior a cinqüenta centímetros.

— É o de minha alternativa — disse Benavente. — Tive sorte3.

3 Em tauromaquia, alternativa é a formalidade em que o matador entrega a muleta ao novilheiro, autorizando-o a, em sua substituição, matar o touro.

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— Sorte? Que quer dizer? — O público teve a gentileza de solicitar á direção da

corrida que me concedesse o touro inteiro. E assim foi. Isso aconteceu há dezoito anos.

— Mas... com que idade começou a tourear? — Eu já tinha quase dezesseis anos. Aos dezoito, deixei

de ser um jovem novilheiro para transformar-me em matador. Desde então...

— Desculpe, señor Benavente, mas quantos anos tem? — Trinta e seis. Sei que pareço mais velho. Mas o medo

é algo que envelhece muito. — Não... — sorriu Brigitte. — Não parece mais velho, e

sim mais completo, mais feito que o homem normal de trinta e seis anos. Por Deus, quando me falaram do senhor, pensei que já fosse um ancião.

— E não lhe pareço? — Não! — Grato pela exclamação — sorriu Benavente. — Quer-

me parecer, miss Montfort, que seus olhos não são... normais.

— Julga-me vesga, talvez? — riu Brigitte. — É que são capazes de ver com mais profundidade que

o seu aspecto de jovem despreocupada e belíssima leva a imaginar.

— Acha-me belíssima?— perguntou ela. — Peço-lhe que me desculpe se não lancei exclamações

de entusiasmo ao vê-la. Cada um é como é. Há pessoas que preferem contemplar a beleza em silêncio. Sem demonstrações.

— Certamente é o melhor modo de compreender a beleza — disse Brigitte. — Também o senhor me parece

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uma pessoa profunda, embora nada tenha de velho. E quanto ao medo, não é certo que envelheça ninguém. Eu seria agora uma anciã de vinte e tantos anos, então.

— Matou algum touro, acaso? — sorriu levemente o matador.

— Não. Mas já senti medo muitas vezes. — Não é agradável ... Ai vem Luzia. Ela se encarregará

de acomodá-la e proporcionar-lhe tudo quanto deseje. Brigitte voltara-se ao ouvir os passos. Viu uma mulher

de cinqüenta anos, com os cabelos quase completamente brancos, mas ainda formosa e louçã. Tinha os olhos muito grandes e negros, brilhantes. Sorriu cortês-mente quando don Héctor a apresentou como sua governanta. E Brigitte teve a impressão de que aquela mulher seria capaz de qualquer coisa pelo proprietário de “La Riata”.

— Talvez lhe agrade um banho, señorita Montfort — Me contentarei com um chuveiro frio, obrigada. Mas

não tenho minha bagagem aqui... — Pedro a terá trazido quando sair do chuveiro. E Luzia

vai conduzi-la aos seus aposentos. Passa um pouco das doze... Poderemos almoçar à uma?

— Sem dúvida. — Enquanto trata de refrescar-se, telefonarei para a

cidade avisando de sua chegada. — Virão em seguida? — Não creio, O Presidente, com certeza, virá à noite, já

que lhe convém ser discreto. Mas talvez venha Feliciano Santander, o Primeiro-Ministro. Eles resolverão. De qualquer modo, não creio que venham antes das cinco da tarde, portanto, se quiser, poderá dormir a sesta.

— É obrigatório? — sorriu Brigitte.

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— Não. Mas é muito conveniente, neste clima. Entretanto, poderá fazer o que preferir, a todo momento, enquanto estiver em “La Riata”. Todos estamos á sua disposição, começando por Luzia.

— Muito obrigada, senõr Benavente. — Nós é que lhe estamos agradecidos, e também à

ONU. — Não acha que uma mulher seja incapaz de fazer face

á situação? — Depende do que seja essa mulher. E não a retenho

mais. Acompanhe-a, Luzia. Pouco depois, a espiã internacional estava sob o fresco

jorro do chuveiro, pensando com uma intensidade total em Héctor Benavente. Era na verdade um tipo notável. Um homem seco e forte, que tal como ela, embora por caminhos diferentes, havia chegado a conhecer muito bem o medo. Tinha, mais importante ainda, aprendido a dominá-lo, a viver com ele durante vinte anos. Tal como ela mesma, ele sabia sempre o que arriscava... e continuava arriscando-se. Os touros, para Héctor Benavente, eram como a espionagem para “Baby” da CIA.

Então, por que ia deixá-los para concorrer às eleições presidenciais?

De um ou de outro modo, Héctor Benavente era um homem demasiado notável, demasiado feito, para não tomá-lo sempre em conta fosse para o que fosse.

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CAPÍTULO TERCEIRO

Mensagem heliográfica Lição de tauromaquia

Soltam-se cinco touros. Acordou antes das cinco da tarde, tal como se havia

proposto ao deitar-se, após a agradável e leve refeição com que a obsequiara Héctor Benavente. Muito amiúde, a espiã tinha-se dedicado a este tipo de entretenimento: deitar-se e dormir, dizendo a si mesma que a determinada hora despertaria. E, geralmente, era o que se passava. Uma espécie de mecanismo despertador que ela deixava em marcha em seu subconsciente. Até mesmo morta de sono, podia adormecer ordenando a si mesma que duas horas mais tarde devia despertar.

Ficou uns segundos olhando o branco teto de seu espaçoso quarto, pensativa, ordenando seus pensamentos. Tudo parecia estar perfeito: a bagagem tinha chegado enquanto ela estava no chuveiro e agora suas coisas se encontravam no armário, havia almoçado, havia descansado.

Lá fora, o silêncio era total, surpreendente. Pelas frestas das venezianas, entrava uma luz dourada, avermelhada, mas tênue, suave. Muito diferente da do exterior, brilhante, ofuscante, com o sol tão alto no céu.

Levantou-se e dirigiu-se a uma janela. Sentia tanto calor que nem sequer deu-se ao trabalho de cobrir-se com qualquer coisa. Ficou olhando por entre as barras da veneziana. Ao longe, via-se o mar, de uma tonalidade entre verde e cinza-azulado. Era como uma mancha que se uma com o céu, no horizonte.

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Estava bocejando quando viu o reflexo do sol em algo muito brilhante. A princípio, pareceu-lhe uma centelha casual sobre qualquer objeto. Mas, poucos segundos depois, deu-se conta de que não era um objeto qualquer o que refletia os raios do sol, mas um espelho... Sinais heliográficos.

Ficou tão surpreendida que nem sequer pôde prestar atenção aos primeiros sinais. Partiam do alto de uma suave colina verde, onde muitas árvores formavam grupos espessos. Certamente haveria touros por lã, mas parecia evidente que quem manejava o espelho não lhes dava a menor importância.

Um homem que não temia os touros, que desmontava perto deles sem olhá-los, indiferente às suas possíveis investidas. Ela conhecia um homem assim. Um homem que já tinha recebido sete chifradas no corpo, além daquele terrível golpe de ponta em pleno rosto, que lhe havia deixado uma extensa cicatriz entre o pômulo e o queixo.

Longe, na colina, os sinais prosseguiam. O sol parecia explodir intermitentemente no espelho, lançando sua mensagem em alfabeto morse. E em espanhol, naturalmente.

Brigitte resolveu dedicar toda sua atenção ás palavras que se iam formando:

...Não foi possível na noite passada nem na anterior. Entretanto, hoje tornarão a tentar e esperamos que se possa conseguir. Ignoro quanto tempo ainda poderei permanecer em Andina, pois sou demasiado conhecido. Suponho que já saibas que Gilberto foi morto na praia de uma das ilhas. Mas Luís e Paco não foram capturados já que

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preparaste tudo muito bem. Continua esperando e depois me dirás algo sobre essa mulher que chegou à tua fazenda. Até breve.

A mensagem terminou. Já não houve mais reflexos do sol sobre aquele espelho distante. Segundo parecia, aquela mensagem era destinada a alguém que devia recebê-la na casa da fazenda “La Riata”. Alguém que, em algum ponto daquela casa, estava agora sem dúvida meditando sobre seu conteúdo.

Brigitte separou com os dedos duas das barras flexíveis da veneziana para olhar o pátio. Não esperava encontrar ninguém lá, pois era de supor que o receptor da mensagem tivesse sabido ocultar-se conveniente-mente.

Esteve a ponto de lançar uma exclamação quando viu Héctor sentado numa das cadeiras de vime, à sombra das parreiras. Diante dele havia uma mesinha, na qual via-se um copo com um líquido escuro, alguns jornais e uma caixa de charutos. Um dos charutos, longo e retorcido, estava entre seus brancos dentes. Nas mãos tinha um pequeno bloco e uma esferográfica, com o que, evidentemente, havia tomado nota da mensagem. Estava apenas de calças curtas, brancas, e seu corpo era tão bronzeado como o de um índio. Via-o pelas costas, e nestas costas havia uma cicatriz sinuosa, em tom quase rosado, recordação sem dúvida de uma daquelas chifradas por ele recebidas ao longo de sua carreira tauromáquica. Também podia ver um golpe de ponta em seu ombro esquerdo, como um olho na carne enxuta de cor marrom. Sete chifradas

Héctor Benavente, ao que parecia, tinha terminado de ler a mensagem que havia anotado para traduzir depois em

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letras normais. Acendeu um fósforo, incendiou a folha do bloco e levou aquela chama ao charuto que tinha entre os dentes. Depois deixou que a folha se consumisse sobre o cinzeiro.

E ficou fumando, imóvel, pensativo. Um homem decididamente notável, viril, aparentemente retraído. Um desses homens que só dizem a centésima parte do que pensam. Héctor Benavente era homem de grande inteligência, mas reservado.

Súbito, voltou-se para a janela de Brigitte. Qualquer outra pessoa teria soltado as barras da veneziana imediatamente e retrocedido um passo... Com o que, possivelmente, o matador de touros teria notado o movimento das barras, já que sua vista era aguda, penetrante. Mas a agente “Baby” não se moveu. Continuou mantendo levemente separadas as duas barras e olhando o toureiro. Se nada se movia, se nada ocorria, Héctor Benavente não saberia que ela o estivera espiando.

Só retirou a mão da veneziana quando o matador deixou de olhar para lá. Tinha visto seu rosto seco, sua testa franzida, seus inteligentes olhos fixos na janela. O charuto parecia encaixado naquelas mandíbulas vigorosas. Os negros olhos pareceram varar a veneziana.

Mas isto não era possível, e ‘Baby” o sabia muito bem. Quando ele deixou de olhar, ela afastou-se, foi até a

cama, sentou-se na borda e acendeu um cigarro. Que significava aquela mensagem? Quem eram Luís e Paco? Quem era o tal Gilberto, que tinha sido morto na praia de uma das ilhas? Quem tinha enviado a mensagem a Héctor Benavente?

Demasiadas perguntas.

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Terminou o cigarro, tomou um chuveiro frio e, pouco depois, passava em revista o conteúdo do armário. Escolheu umas calças brancas, compridas, que se prestariam muito bem para montar a cavalo, e uma blusa de finas listras azuis, vermelhas, negras e amarelas. Muito colorida, realmente. Calçou uns mocassins flexíveis, amarrou um lenço no pescoço e decidiu que chegara o momento de reatar suas relações amistosas com Héctor Benavente. Já eram quase cinco horas.

* * * O proprietário de “La Riata” voltou a cabeça, viu-a e

levantou-se imediatamente, retirando o charuto da boca. — Descansou bem? — interessou-se, amável. Otimamente. Fazia tempo que não dormia uma sesta tão

agradável. — Estimo. Desculpe Parecia envergonhado de seu torso desnudo, talvez pelas

muitas cicatrizes que o enfeavam. Os chifres dos touros certamente não produzem feridas estáticas. Benavente apressou-se a vestir uma camisa preta, de manga curta. Depois olhou suas pernas, especialmente a direita, cujo joelho exibia também a marca brutal de uma chifrada. Mas sem dúvida pareceu-lhe ridículo afastar-se para ir buscar umas calças compridas e, visto que Brigitte se havia sentado, fez o mesmo, levando novamente o charuto à boca.

— Desculpe minha aparência, mas com este calor... Além disso, não esperava que fosse tão pontual.

— Não se preocupe — sorriu ela. — Sou uma mulher muito moderna. E já vi muitas pernas masculinas. Finalmente, seria absurdo que neste clima o senhor vestisse

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um trajo completo e formal durante a tarde. Como pode observar, eu tampouco sou partidária da etiqueta.

— E muito amável, miss Montfort. Tenho a impressão de que a ONU a considera uma excelente... Mmm ... Creio que em inglês se diz “public relations”, não é assim?

— Assim é. O senhor, que sem dúvida descende de espanhóis, deve conhecer o ditado: “O hábito não faz o monge”.

— Conheço, claro — admitiu Benavente. — Quer dizer que uma pessoa nem sempre é o que parece em determinado momento, ou algo assim.

— Algo assim. Um cavalheiro continuará sendo um cavalheiro, embora use shorts, fume charutos pestilentos e esteja em mangas de camisa.

Héctor Benavente enrubesceu. — Se meu charuto a incomoda... — Seu aroma é... terrível — sorriu Brigitte. —

Pestilento, como disse. Mas suponho que os homens não podem estar fumando a todo o momento charutos perfumados. Suplico-lhe que continue deliciando-se com esse... cartucho de dinamite.

— Vou apagá-lo... — Não... não. Por favor: estou apreciando. Cheira a

homem, a fazenda de touros. — Bem, se na verdade não a incomodo... — Absolutamente. Ficaram silenciosos durante um momento. Brigitte

olhava fixamente o “gran maestro”, o homem que em toda sua vida de toureiro havia abatido, sem dúvida, nada menos de cinco mil touros. Cinco mil touros mortos um a um, com um coração e um estoque por toda arma... Seria isto

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possível? Que espécie de homem era Héctor Benavente? Que espécie de nervos teria ele?

— Fez-me uma pergunta esta manhã — disse ele, bruscamente.

— Certo. Uma pergunta que não quis responder. — A verdade é que eu ignorava se me compreenderia.

Agora estou convencido de que sim. — Muito obrigada. A pergunta se referia ao seu

iminente afastamento das touradas. Se os touros lhe agradam mais que tudo, por que deixá-los pela política podendo permanecer com eles?

— Sim. Esta foi a pergunta, mais ou menos. A resposta é que ninguém necessita de mim nas praças de touros, miss Montfort. Arriscando minha vida, não beneficio ninguém. Absolutamente ninguém.

— Compreendo. E por outro lado, acha que beneficiará alguém dedicando-se a presidir Andina. Exato?

— Exato. Suponho que não me possa imaginar como um bom político, mas asseguro-lhe que o sou. Conheço bem uma boa parte do mundo. Mas, sobretudo, conheço bem minha pátria. E quando for Presidente, sei que todos estarão satisfeitos, que Andina será um país próspero e pacifico.

— Fala como se estivesse seguro de ganhar as eleições. — Oh, sim, claro. Alberto de Mendoza não poderá

vencer minha popularidade. Dentro de alguns meses, serei Presidente deste país.

— Mas, por enquanto, está ajudando Mendoza, não? Benavente olhou-a sem poder ocultar sua surpresa. — Ajudando Alberto? Não... Não é isso exatamente.

Nós dois somos... velhos conhecidos. Pode-se dizer que bons amigos. Mas, no momento, não o estou ajudando.

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— A quem, então? — A minha pátria, naturalmente. Andina não necessita

para nada das Ilhas Coronadas. Mas de todos os seus homens para continuar lutando por um futuro melhor. Uns quantos milhares de mortos numa guerra estúpida não favoreceriam a ninguém.

— Certamente. Agrada-me sua maneira de pensar, señor Benavente.

— Esperava isso mesmo — sorriu ele; apontou para o mar. — Veja as ilhas. Estão a uns vinte quilômetros do litoral. São muito bonitas. Na verdade, são mais belas que Andina. Mas se seus habitantes não querem ser andinos, devemos deixar que se convençam de seu erro.

Brigitte olhou para os picos esverdeados que se viam na distância, dentro do mar. Contraiu as sobrancelhas, esteve pensativa por uns segundos e por fim perguntou:

— Está convencido de que, inclusive havendo obtido sua independência, os habitantes das Ilhas Coronadas pedirão muito em breve sua anexação a Andina?

— Noto que é muito inteligente, miss Montfort. As ilhas são... como filhos que se rebelam contra os pais. Quando os filhos se rebelam, é preciso ouvi-los, atendê-los bem. Ouvi-los com muita atenção e perguntar suas razões. Geralmente são razões más. Só que, por muito que tentemos explicá-las, eles não compreendem isto. Então, o melhor é dizer-lhes que estamos de acordo, que podem ir pelo mundo e viver sua vida. Sem ajuda, sem conselhos, sem apoio de nenhuma espécie. Na maioria das vezes, o filho volta ao lar paterno e, sem o dizer, sabe pedir que o recebamos novamente. Então, os bons pais tomam a admitir o filho em casa.

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— Compreendo — murmurou “Baby”. — Espera que após conseguir a independência, as Ilhas Coronadas tornem a colocar-se sob a proteção de Andina.

— Algo assim. Mas não como colônia e sim como parte de seu território, como solo pátrio de todos os -andinos. Sejamos sensatos: umas quantas ilhas precisam de uma mãe pátria que as mantenha. Vamos dar-lhes a independência, deixar que durante algum tempo vivam sua vida. Mas as ilhas voltarão a nós. Já não serão colônias. Nem serão independentes. Quando voltarem, será para integrar-se legal e totalmente a Andina.

— Não é um projeto demasiado ambicioso, señor Benavente?

— Talvez. Tenho a impressão de que a estou surpreendendo, miss Montfort.

— Um pouco, admito. — Deve saber que não sou um desditoso qualquer, agora

milionário porque matei muitos touros arriscando a vida. Quero dizer que... Bom, é certo que ganhei muito dinheiro com os touros. Mas não sou um rústico. Os primeiros pesos ganhos nas touradas serviram-me para financiar meus estudos. Cursei a Universidade de Andina. Sou diplomado em Ciências Econômicas e Políticas. Também sou advogado. E dediquei especial atenção a questões de Direito Internacional. Dividi meu tempo, durante os últimos vinte anos, entre os estudos e os touros. E posso dizer-lhe, sem jactância, que aprendi muito... de tudo.

Brigitte sorriu suavemente. — Está tratando de impressionar-me, señor Benavente? O inesperado e brilhante sorriso do matador de touros

apareceu fugazmente em seu rosto bronzeado.

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— E o que pensa? — Francamente, não sei o que pensar. — Pois não pense nisso. Eu não necessito da ONU para

saber o que tenho que fazer. — Para que a necessita, então? — Para evitar uma guerra com alguns milhares de

mortos. Andina e as Ilhas Coronadas não se podem permitir esse luxo. Isso fica bem para os Estados Unidos, que estão enviando seu excesso de soldados ao Vietnam para... aliviar a população. Aqui, em Andina, não sobra ninguém... Que é, Luzia.

Brigitte voltou-se, quase sobressaltada. Atrás dela estava a já madura, mas bonita mulher, que olhava com olhos brilhantes para o surpreendente toureiro.

— Estão chamando da cidade pelo telefone. Já vou. Me dá licença, miss Montfort?

— Pois não. * * *

— Parece que não teremos visita esta tarde — comunicou Benavente, tornando a sentar-se. — Feliciano telefonou-me para dizer que tanto Alberto quanto ele só poderão vir à noite.

— Isso nos deixa umas quantas horas livres. — Quase quatro. Posso mostrar-lhe parte da fazenda,

mas ainda está muito calor para andar a cavalo. Pensou a respeito de sua participação numa corrida com vacas? Não gostaria de manejar uma muieta4?

— Diante de uma vaca?

4 Capa pequena, para tourear, geralmente usada no fim da lide.

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— Uma vaquinha... Que também tem chifres, claro, mas bem menores...

— Gosto das experiências novas. Aceito seu convite, señor Benavente.

— Ótimo! Mandarei o Crisanto preparar tudo. * * *

A pracinha ficava atrás das cocheiras. Era pequena, de fina areia avermelhada, bem lisa. Estava colocada de tal modo que nem sequer a brisa marinha chegava até lá, evitando o perigo do revolutear dos capotes5 e muletas. Havia dois burladeros6, além do que servia de entrada à praça, e arquibancadas que poderiam conter cem espectadores, sob um telheiro branco que atenuava o calor sufocante do lugar.

Os touros ficavam atrás da pequena praça, unidos a esta pelo clássico beco, com paredes de tábuas pintadas de branco, grossas e sólidas. Um cheiro intenso de esterco, que não resultava tão desagradável como se poderia esperar, diluía-se rapidamente ao forte calor da tarde. Ouvia-se o mugir dos animais encerrados nos touros e os gritos alegres de não menos de vinte peões que se encarapitavam por toda parte e ocupavam os lugares mais frescos da arquibancada, fumando, palrando sem cessar. Grande acontecimento: depois de sua última cornada quase mortal, “el maestro” tomava a colocar-se diante de um par de chifres, após um mês de convalescença.

5 Capote - Capa maior, usada nas fases iniciais. 6 Burladeros - Tabiques, rente à barreira, para proteção aos toureiros.

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No centro da pracinha, Héctor Benavente estava dando instruções a Brigitte sobre como segurar a ampla capa de cor vermelha e dourada. Segurando aquele pedaço de pano, as mãos do matador pareciam ainda mais fortes, mais firmes. Era fácil compreender que ele estava em seu ambiente, da maneira mais completa. Ali, mais que em nenhum outro lugar, com a capa nas mãos, exibia uma personalidade que chegava a impressionar Brigitte.

— Não aperte as mãos. Só conseguirá cansar-se. Veja com que suavidade deve segurar a capa... E uma pressão justa e continua. Ponha a capa de um lado e, quando a vaca investir, não mova o corpo... Só as mãos, separando-as do corpo, trazendo o animal para sua direita, suavemente. Nada de movimentos bruscos. Pense que a vaca sai disposta a brincar, não a matar. Se brincar bem, ela será dócil e continuará alegremente. Não lhe ponha o “trapo” diante dos olhos, deixe-a que veja bem. Do contrário, talvez em lugar de lançar-se à capa se lance “ao vulto”. E o vulto é a pessoa. Compreende?

— Creio que sim. — Estarei por perto. Se sentir medo, ou ficar nervosa,

saia imediatamente da praça. Não insista. — Compreendo. — Eu receberei a rês, para que se familiarize com a

capa. Observe atentamente. E espero que não pretenda superar-me, miss Montfort. Não saberia como enviar minhas condolências à ONU...

— Não se preocupe. Prezo minha vida. — Muito bem. Crisanto, solte o bicho! Os peões começaram a gritar com grande entusiasmo. — Don Héctor, a vaquinha está apaixonada!

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— Gosta de atacar pela esquerda! — Levanta muito a cabeça! A larga porta do touril abriu-se e uma vaquinha apareceu

na praça, aturdida pela gritaria. Aos apelos de Benavente, virou a cabeça para ele e ficou olhando-o por uns segundos. Súbito, com surpreendente agilidade, arremeteu contra o matador, que a fez passar pela direita com uma capeada baixa, que provocou um alarido entusiástico do grupo de peões. A vaquinha voltou-se furiosamente e lançou-se outra vez contra o matador, que de novo quase arrastou a capa, para obrigá-la a baixar a cabeça. Um “Olé” vibrante ressoou na arquibancada. E após os dois passes seguintes, o “Olé” foi ainda mais estrondoso, enquanto os peões, que se tinham levantado, começaram a jogar para os ares seus chapéus de palha.

Junto a um dos pequenos burladeros. Brigitte contemplava, fascinada, o rosto daquele homem, que agora parecia talhado em pedra, inexpressivo, hermético. As mãos pareciam ter vida própria, e a fina cintura do matador dobrava-se suavemente, enquanto os braços pareciam alongar-se... Os peões começaram a bater com os pés na arquibancada, excitados ao máximo.

Benavente aproximou-se de Brigitte e estendeu-lhe a ponta de sua capa.

— Segure-a. Vejamos primeiro como faz o “alimon”. — O quê? — O duo. A vaquinha tem que passar por baixo. Bem? — Sim, sim ... Muito bem.. A vaquinha estava ao lado oposto da praça, mas

Benavente chamou-a com possantes gritos. Segurando a outra extremidade da capa. “Baby” olhava com olhos muito

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abertos os curtos chifres do animal. Curtos, porém não menos eficazes e perigosos que uma punhalada no ventre.

Um rugido de expectativa brotou do grupo de peões quando a vaquinha se lançou como uma flecha contra a capa. Benavente puxou esta para cima e mais que depressa Brigitte imitou-o. A vaquinha passou por baixo, levantando uma nuvem de areia.

— OOOLÉEE...! Um novo passe “alimón”. — OOOLÉEE...! Outro passe. — OOOLÉEE...! A vaquinha foi parar junto à barreira e Benavente soltou

a ponta da capa, sorrindo. — É toda sua, Lembra-se do que lhe disse? — Sim... Creio que sim... — Adiante, então. O matador sentou-se no alto das tábuas que formavam a

praça. Sacou um charuto e colocou-o entre os dentes. Quando “Baby” deu o primeiro passe sozinha, ele foi o primeiro a gritar:

— Oléee...! Os peões o acompanharam, atirando para o alto os

chapéus. O segundo passe, por baixo e muito longo, causou tamanho alvoroço na assistência que até ela mesma olhou para lá, assustada. Enquanto isto, a vaquinha veio-lhe em cima, como uma pequena locomotiva. O grito de aviso fez “Baby” sobressaltar-se, e teve o tempo justo de afastar-se, de qualquer modo, pisando a capa, tropeçando. O animal voltou sobre seus passos, agitando muito a cabeça, pateando, saltando...

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— Baixe as mãos! — gritou-lhe Benavente. — Por baixo, por baixo...

Brigitte quase arrastou completamente a capa, um pouco pálida, e a vaquinha esteve a ponto de cravar o focinho na areia.

— Oléee...! — Assim! Continue assim, miss Montfort! — Que lhe dêem as orelhas7! Agora todo o mundo ria, começando por Benavente, que

parecia muito mais jovem, mais lépido, mais alegre. Quase como um rapaz. No passe seguinte de Brigitte, começou a aplaudir com ardor, mordendo o charuto. Os peões divertiam-se a valer, admirados com aquela garota de grandes olhos azuis e rosto deslumbrante, que manejava o pesado capote com suas mãos delicadas.

— Viva a vaca! — gritou um peão. O riso agora foi retumbante. A vaquinha passou metendo

a cabeça em cheio na capa, arrancando-a por fim das mãos de “Baby”. Sacudiu a cabeça, atirou-a para um lado e arremeteu contra a improvisada toureira, já completamente entrosada no jogo de suas investidas. Um grito de espanto ergueu-se entre os peões, enquanto Héctor Benavente saltava à praça, agitando outra capa.

Mas a vaquinha não o viu. Via somente Brigitte... e avançou contra ela, cabeça baixa, pronta para lançá-la às nuvens. Benavente corria para lá, os peões estavam de pé, agora mudos de espanto, vendo os cornos da vaca a menos 7 Prêmio conferido pelo publico ao toureiro que demonstra especial habilidade. Pode ele também fazer jus ao rabo, às patas e, finalmente, ao touro inteiro.

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de dois metros do ventre da garota. Um segundo mais, uma entrada de cabeça e a valente estrangeira receberia a chifrada.

Um grito de admiração irrompeu quando ela saltou por cima do animal, fora do alcance de suas pequenas aspas. Foi um salto assombroso, perfeito. Ela passou por sobre o lombo da vaca até a garupa, enquanto girava no ar... E enquanto o bicho prosseguia em sua investida até e barreira, ela caia na areia, rodando, sem haver perdido a compostura após aquele salto de quase dois metros de altura e quase quatro de extensão. A menos assombrada foi a vaquinha. Os peões, após um segundo de estupefação, lançaram um “Olé” que deve ter chegado até Ciudad Andina, enquanto Benavente, com sua indiscutível maestria, levava o animal para o Outro lado da praça, olhando para “Baby”, que se tinha levantado rapidamente e corria para sua capa, parecendo estar disposta a continuar a lide.

— Deixe-a para mim! — gritou ao matador. Este largou a vaquinha com um passe e olhou para

Brigitte, sorrindo. Mas seu sorriso desapareceu bruscamente e seu rosto empalideceu, ao mesmo tempo em que um clamoroso grito de aviso partia da massa de peões.

Brigitte voltou-se a toda a pressa e também empalideceu intensamente ao ver os cinco gigantescos touros que surgiam na praça pela porta aberta do touril. Uns touros enormes, com aspas impressionantes, cabeças altas...

— Corra! — gritou Benavente. — Corra para a barreira! Dois dos enormes touros abalançaram-se contra Brigitte,

enquanto nas arquibancadas soavam clamores e vários peões saltavam à praça, munidos de panos vermelhos, bradando, atraindo a atenção dos touros... Mas não de todos.

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Os dois que haviam fixado Brigitte arremetiam contra ela como monstros irrefreáveis, cornos em riste.

O que vinha à frente lançou uma chifrada que passou roçando por suas virilhas, O outro a teria atingido no ventre se ela não tivesse saltado para trás, rodando sobre si mesma e levantando-se imediatamente, correndo para a barreira e saltando-a, apoiando-se à borda com uma das mãos.

Os outros três trotaram para Benavente, que estava no centro da praça, como cravado na areia. Ele reagiu ao ver Brigitte fora de perigo e ainda teve tempo de largar pela esquerda o mais próximo dos animais, O segundo desviou-se para outro lado, com a volubilidade característica da espécie. O terceiro enganchou com a aspa direita a camisa de Benavente e arrancou-a, transformada num trapo, derrubando o matador... O que pareceu chamar a atenção do segundo, que se lançou contra ele, os cornos quase ao nível da areia. — Toro!... Ejé, toro...! Um dos peões desviou o animal com um passe de capa,

enquanto três ou quatro ajudavam o matador a levantar-se e corriam para a barreira.

— Porfírio, deixa-o estar! — gritou Benavente. Em menos de três segundos, os touros e a vaquinha eram

donos e senhores da praça, olhando para todos os lados, ameaçando as tábuas com as cabeças baixas.

Ainda pálido, mas completamente tranqüilo, Héctor Benavente aproximou-se de Brigitte, cuja palidez era mais notável ainda.

— Está bem, miss Montfort? — Creio que sim... Na verdade, não sei. Mas se foi uma

brincadeira, señor Benavente

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Crisanto chegou correndo, mais pálido que Brigitte e Benavente juntos.

— Don Héctor... — tartamudeou. — Não sei como aconteceu... Virgen del Poder, isto podia ter resultado numa catástrofe... Juro-lhe que os touros estavam bem fechados, don Héctor! Juro por minha mãe, pela Virgem do...!

— Está bem cortou Benavente. Mas se os touros estavam bem fechados, como puderam esses cinco touros chegar à praça?

— Não sei! Juro que não sei, don Héctor! Preparei tudo bem, o senhor me conhece... Juro que tudo estava fechado, menos a saída para a vaquinha!

Benavente olhou firme para Crisanto durante alguns segundos. Depois, sem dizer palavra, dirigiu-se para os touros, pelo passadiço elevado. Brigitte foi atrás dele, olhando de soslaio para o atribulado e assustado Crisanto.

Um a um, o matador e a espiã foram examinando os ferrolhos dos diferentes compartimentos do touril. E todos eles estavam abertos. Os touros haviam tido apenas o trabalho de sair e caminhar tranqüilamente pelo beco de tábuas até a pracinha.

— Não é possível, não é possível... — tartamudeava Crisanto. — Juro que tudo estava fechado... Por minha mãe, don Héctor!

— Está bem, Crisanto. Vá ajudar os outros a recolher os touros.

— Eu vou, don Héctor... Virgem del Poder! Do passadiço elevado, “Baby” e Benavente estiveram

vendo regressar os touros para seus respectivos compartimentos, impelidos pelas aguilhadas que lhes aplicavam os peões. Em menos de cinco minutos, tudo

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estava em calma... com exceção dos excitados comentários de todos os homens.

— Sinto bastante... — murmurou Benavente. — Não sei como pedir-lhe desculpas, miss Montfort.

O senhor mandou que soltassem esses cinco touros? — Claro que não! — Então, não se desculpe — sorriu “Baby”. — Logo

encontraremos a pessoa que deverá fazê-lo. Imagino, señor Benavente, que alguém teve a idéia de matar-nos. Ou a um de nós dois, sem se importar com o que sucedesse ao outro. Um de seus peões abriu o touril.

— Não, não... Não é possível... — Diga-me então como foi que cinco touros puderam

abrir os ferrolhos de seus compartimentos. — Bem isso é impossível. — Será melhor que voltemos a casa. Parece-me que terei

que tomar outro chuveiro... Proponho que jantemos às oito horas. Assim, quando chegarem o Presidente e o Primeiro-Ministro, poderemos tomar champanha todos juntos, enquanto falamos de política.

— Seu autocontrole é assombroso... — Vejo que está percebendo isto... — tornou a sorrir a

agente “Baby”. — E dentro de pouco espero demonstrá-lo a mais alguém. Vamos? Por hoje terminaram as lições de tauromaquia...

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CAPÍTULO QUARTO

Canhões ou champanha? A misteriosa maleta

Com uma taça em cada mão... Não havia dúvida de que Héctor Benavente era um

homem atencioso e amável. Haviam jantado, na arcada principal, e agora, enquanto tomavam café, ele acendera um charuto que exalava um aroma dos mais agradáveis, bem diferente daqueles terríveis e retorcidos que tanto pareciam agradar-lhe.

O matador estava de branco, impecável, e exibia uma elegante gravata. Sua personalidade era a mesma, tal como se ainda estivesse com a blusa de peões e as sandálias de palha: férrea, dura como o aço. E suas grandes mãos ossudas destacavam-se ainda mais sobre a imaculada alvura de suas roupas. Quanto a Brigitte, pusera um vestido curto de noite, segundo a moda atual, preso aos ombros por finas alças douradas. O decote era abismal, mas absolutamente não comprometia a distinção e bom-gosto de que ela fazia alarde a todo o momento. Suas costas ensolaradas, retas e perfeitas, estavam descobertas quase até a cintura.

Diante de tanta beleza, Héctor Benavente começava a perder um pouco daquela impassibilidade estóica que lhe era peculiar. Olhava-a de quando em quando, e Brigitte sorria-lhe, respondia cortesmente, mas logo seus olhos se desviavam.

Pelas nove horas, ambos ouviram quase ao mesmo tempo, com ligeiríssima vantagem para a espiã, a chegada de alguns carros. Nada menos que três.

— Aí estão eles — disse Benavente.

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— E parece que não temem as investidas dos touros... Pensei que viessem a cavalo. Mas, claro, isso não seria muito adequado para um Presidente.

O matador levantou-se, olhando de relance para Brigitte, sem saber se esta falava sério ou estava brincando.

— Espero que tudo saia bem... — murmurou. — Gostará do nosso Presidente, miss Montfort.

— Como homem, quer dizer? — Não creio que isso lhe interesse no momento. Estava

falando do Presidente de Andina, não de Alberto de Mendoza.

— Compreendo. Vi fotografias dele e gostei de seu rosto. Parece inteligente e nobre. Que me diz de Feliciano Santander?

— É brilhante. Um magnífico Primeiro-Ministro. — Parece-lhe que poderia chegar a Presidente? — Não creio. E muito eficiente, mas desses homens que

não têm capacidade para o contato direto com o povo. Posso estar enganado, claro, mas penso que ele jamais seria eleito. Falta-lhe... o sorriso do condutor de massas.

— Também o senhor não sorri muito. — É verdade. Mas todos os andinos já me viram sorrir

alguma vez. E gostaram. Além disso, sabem que Héctor Benavente nunca faltou à sua palavra. E simpatizam comigo.

— Insiste em dizer que será eleito? — Todo o mundo sabe disso. — Inclusive o atual Presidente? — Inclusive. — Bem... Se há de ser para o bem-estar dos andinos, até

eu começo a desejá-lo... Devo levantar-me? — sorriu.

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Os três carros, negros, grandes, brilhantes, tinham parado no pátio, perto da arcada principal. Do último deles saltaram seis soldados, que se distribuíram rapidamente pelo pátio. O segundo carro deu a volta e saiu, depois que o oficial que conduzia se convenceu de que tudo estava bem e, portanto, convinha vigiar o Outro lado dos muros brancos encimados por telhas vermelhas.

Do primeiro carro desceu um suboficial, que abriu rapidamente a porta traseira direita e saudou aceitável-mente.

— Deve conhecer o protocolo, sem dúvida — murmurou por fim Benavente. — Saberá se deve levantar-se ou não diante de um Presidente.

Brigitte levantou-se sorrindo e aproximou-se da borda da arcada, enquanto Benavente adiantava-se ao encontro dos dois homens que tinham saído do carro. Pôde reconhecê-los imediatamente como Alberto de Mendoza, com sua barbicha, e Feliciano Santander, nariz grande, queixo agressivo. O tio Charlie lhe tinha mostrado excelentes fotos de ambos. Eles apertaram a mão de Benavente, que os trouxe até a arcada, onde os esperava sorrindo a mais bela espiã de todos os tempos: “Baby” da CIA. — Miss Montfort — apresentou Benavente. — Don

Feliciano Santander, nosso Primeiro-Ministro. E Don Alberto de Mendoza, Presidente de Andina.

Feliciano Santander apertou secamente a mão de Brigitte. O Presidente teve a gentileza de sorrir e inclinar-se diante de sua mão, como se fosse beijá-la.

— Seu trabalho profissional está á altura de sua beleza, miss Montfort. Andina regozija-se com sua presença.

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— Muito obrigada, senhor Presidente. Asseguro-lhe que nada me agradaria tanto como colaborar para a solução desse iminente conflito que poderá produzir milhares de mortes.

— Um triste assunto... Por favor, sente-se. — Brigitte sentou-se e Mendoza fez o mesmo, sendo logo imitado por Santander e Benavente. — O assombroso do caso é essa impaciência. Não a compreendemos aqui, no continente. As Ilhas Coronadas obteriam sua independência antes de um ano, ou pouco mais, no pior dos casos. Entretanto, consta-nos que estão preparando um desembarque no litoral de Andina em data muito próxima.

— Está completamente seguro a este respeito, senhor Presidente?

— Sem dúvida. Feliciano tem a seu encargo um... pequeno serviço de espionagem, para denominá-lo de algum modo. E há certeza de que as noticias enviadas ao Ministério por seus agentes são exatas. As tropas das Ilhas Coronadas, recrutadas um tanto irregularmente, estão na Ilha Corbacho esperando, preparando-se. Nem sequer vestem uniformes. São simples rebeldes. Parece que há mais de dois mil. Com lanchas, metralhadoras, morteiros... — Alberto de Mendoza sorriu tristemente. — Por sorte, em armamentos são tão pobres como nós mesmos.

— O que não impediria muitas mortes. — Não, não impediria, certamente. Em resumo, miss

Montfort, a situação é a que acabo de explicar-lhe em poucas palavras. Está claro que nós, os andinos continentais, não pensamos atacar as Ilhas Coronadas, mas se formos atacados ...

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— Compreendo. Parece que a situação está bastante clara. Tentaram falar com León Salvatierra, o dirigente da colônia?

— Naturalmente. Mas não recebemos resposta a nossas repetidas propostas. Mais ainda: assegura-se que León Salvatierra não está nas ilhas.

— Não? Onde está, então? — Bem... Ele é um homem muito estimado, tanto nas

ilhas como aqui. Seu desaparecimento nos faz temer que esteja em Andina, procurando adeptos para sua causa, pessoas que o ajudem do continente... Tem muitos e muito bons amigos.

— Poderia citar-me alguns? Mendoza fez um sinal a Feliciano Santander, que sacou

um avultado envelope e estendeu-o a Brigitte, explicando: — Pareceu-nos conveniente redigir um informe

completo de todos os pontos por nós conhecidos. — Ótimo. E... suponho que antes de tomar uma decisão,

ou emitir uma simples opinião, eu deveria receber também um informe sobre os motivos que levam León Salvatierra a esta rebelião. Estão certos de que não poderia localizá-lo se fosse às ilhas?

— Como lhe dissemos, parece que não se encontra lá. E se lá estivesse, é provável que se negasse a dar qualquer espécie de explicação.

— Talvez o señor Salvatierra não tenha pensado no pouco que durariam as tropas que recrutou se para cá fossem enviadas forças da ONU. É uma lástima que um homem que parece inteligente esteja fazendo o possível para malograr a próxima independência das Ilhas Coronadas. Parece mesmo absurdo, não é verdade?

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— Parece de fato. Mas enquanto isto, dois mil homens estão reunidos na Ilha Corbacho, com armas e embarcações.

— Gostaria de ver essa concentração de forças, senhor Presidente. Posso dispor de um helicóptero?

Todos ergueram vivamente a cabeça, ao ouvir os disparos fora dos muros da fazenda. Primeiro foram dois, seguiram-se três ou quatro. E, finalmente, um fogo nutrido que durou alguns segundos.

Héctor Benavente fora o primeiro a levantar-se, muito pálido. Mendoza e Santander também se ergueram, nervosos, preocupados. “Baby” limitou-se a olhar, testa ligeiramente franzida, para a grande porta de entrada. Os soldados que estavam no pátio corriam para lá, erguendo os fuzis.

— Parece que algo não vai bem — disse tranqüilamente Brigitte.

Os três homens a olharam, perturbados. — Vou ver.. . — disse Benavente, — Não se arrisque, Héctor — aconselhou Feliciano

Santander. Benavente quase lançou uma gargalhada e cruzou o

pátio. Na verdade, era divertido aconselhar um homem que já abatera cinco mil touros a não se arriscar.

— Acho que também irei — sorriu “Baby”. — Talvez fique sabendo de algo que me ajude a cumprir minha missão em Andina.

— Iremos todos — resolveu Mendoza. — Parece que está terminado. Não se ouvem mais tiros.

Saíram do pátio os três e dirigiram-se para onde se via o grupo de soldados, diante de algumas árvores que formavam uma mancha negra naquela terra prateada pelo

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luar. Quando chegaram lá, Benavente estava ajoelhado no chão, junto a um homem que tinha o peito cheio de sangue, os olhos abertos e fixos, a boca crispada... Perto de sua mão direita havia um revólver. E um pouco mais além, via-se outro homem, em traços gerais parecido com ele; estava estendido de lado, com sangue no peito e nas costas: não havia largado o revólver, que empunhava fortemente com sua mão imóvel.

— Que aconteceu? — perguntou Mendoza. O oficial adiantou-se, saudando energicamente. — Vimos movimento aqui, senhor Presidente, e demos

voz de alto... Então, eles atiraram e eu ordenei a meus soldados que abrissem fogo.

— Pode ter sido uma emboscada contra você, Alberto — murmurou Feliciano Santander.

— Perto de um deles estava esta pequena maleta, senhor Ministro. Acha que devemos abri-la para...?

— Não! — exclamou Santander. — Talvez contenha uma bomba, ou algo parecido. É possível que a quisesse jogar no carro do Presidente. Ninguém deve abrir essa maleta, capitão Saldaña. Nós a levaremos ao Ministério e o Chefe do Armamento se encarregará dela.

Brigitte olhou a maleta. Era de couro, sólida e parecia pesar bastante. Mas, naquele momento, interessava-lhe mais o rosto angustiado, tenso, de Héctor Benavente, cujos olhos negros iam de um cadáver a outro.

— Levo-a para o seu carro, senhor Ministro? — Não, não! Deixe-a, por enquanto, no carro de vocês,

fora da fazenda. O capitão Saldaña pestanejou um instante. — As suas ordens, senhor Ministro.

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Sem dúvida, não se atrevia a fazer o menor comentário. E tampouco Brigitte julgou conveniente fazê-lo, apesar de ser notada por todos a covardia de Feliciano Santander. Se aquela maleta continha algo que pudesse explodir, não a queria em seu carro, mas sim naquele em que iriam seis soldados andinos...

— Que fique um soldado para vigiá-la — acrescentou o Ministro.

— Perfeitamente. Que fazemos com os cadáveres? — Levem-nos também para o carro. E além do soldado

de guarda, que ninguém se aproxime, dado o perigo de explosão. Deixaremos o carro aqui, com a carga, e avisaremos por telefone a Ciudad Andina para que venha o Chefe do Armamento e examine aqui mesmo essa maleta. Assim, ninguém correrá perigo.

Palavras muito astutas e convenientes, que tranqüilizaram os soldados e dissiparam quase totalmente o mal-estar causado pelas anteriores.

Um soldado encarregou-se da maleta, segurando-a um pouco assustado, e levou-a para o carro que se via junto ao alto muro encimado por telhas vermelhas. Os outros soldados dispuseram-se a levantar os corpos dos dois homens.

E enquanto os levavam, Feliciano Santander falou, indicando-os:

— Juraria que já vi antes um desses homens, Héctor... Não trabalhavam em sua fazenda?

— Os dois trabalhavam aqui — murmurou Benavente. — Despediram-se há quinze dias.

— Despediram-se? — Exato. Seus nomes são Paco Morales e Luis Arévalo.

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Brigitte apertou a.s pálpebras para olhar atentamente o matador. Paco e Luis? Acaso não eram aqueles os nomes mencionados na mensagem heliográfica que Benavente recebera à tarde? A privilegiada memória da espiã reproduziu algumas das palavras da mensagem: “...não foi possível esta noite nem na anterior. Entretanto, hoje tornarão a tentar e esperamos que se possa conseguir”. Que haviam esperado conseguir? A morte de Alberto Mendoza, talvez? Estava Héctor Benavente a par do atentado?

— Creio que estamos todos um pouco afetados... — disse subitamente Brigitte. — Voltemos ao pórtico, senhores. Nossa conversa ainda não terminou. E, além disso, permiti-me trazer comigo algo que expressará minha boa vontade para com todos.

— O que é? — indagou Benavente. — Champanha. Os homens olharam-na incredulamente, mas Brigitte

tomou o braço de don Alberto e caminhou para casa. — Penso que agora mais do que nunca, senhor

Presidente, impõe-se um brinde com champanha. — Mais do que nunca? Que espécie de brinde? — Poderíamos fazer um voto para que esses dois

homens sejam os únicos a morrer em todo este assunto. — Será um voto esplêndido — sorriu Mendoza. — Amanhã, com um pouco de sorte, espero localizar

León Salvatierra... e levarei também uma garrafa de champanha para brindar com ele. Espero que todos compreendam que minha boa vontade é geral, não unicamente para uma das facções. E espero que todos prefiram meu champanha ás tropas da ONU.

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— Creio que tive razão quando lhe disse que é uma perfeita public relations — murmurou Benavente, caminhando a seu lado.

— Apenas dou a escolher. Os russos, certa ocasião, se perguntaram: “Canhões ou manteiga?” Eu vou mais longe ainda. Minha pergunta é: “Canhões... ou champanha?” Espero que as duas mortes ponham todos de sobreaviso, e creio... creio que não tolerarei muitas outras, senhores. Na ONU estão esperando meu uniforme.

— Aceitamos o champanha — disse Mendoza. — Acho-a realmente admirável, miss Montfort. Entretanto, insisto em que, se formos atacados...

— Continuaremos falando disso dentro de alguns minutos. Sinto um pouco de frio, pelo que irei buscar um xale... E avisarei a Luzia para que sirva o champanha. Pedi-lhe esta tarde que o pusesse no refrigerador, de modo que estará, deliciosamente gelado. Meditem, senhores: canhões ou champanha.

Luzia estava na grande porta do terraço principal, olhando com os olhos muito abertos para Benavente, que a ignorou. Brigitte pediu-lhe que servisse uma das garrafas que lhe entregara aquela tarde, assim como as cerejas, e subiu a seus aposentos, languidamente.

Entrou e fechou a porta e, sem acender a luz, dirigiu-se para a janela. Não lhe agradou a vista dos três homens embaixo, na arcada, de modo que voltou sobre seus passos, acendeu a luz do quarto e saiu deste, deslizando a toda pressa para o fundo do corredor. Entrou em outro quarto e, sem acender a luz, foi olhar pela janela. Sorriu. Via livre.

Tirou os sapatos e o vestido, ficando apenas de sutiã e calcinhas, e transpôs a janela com uma agilidade felina.

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Teve que saltar de uma altura aproximada de dois metros, mas isso foi fácil para ela. Precisou esconder-se imediatamente entre uns maciços de flores, para evitar ser vista pelo soldado que passou muito perto, vigiando o interior do grande pátio. Em poucos segundos, o soldado afastou-se. E, sempre velozmente, “Baby” se encontrou junto ao muro da fazenda, bastante afastada da casa. Teve que subir numa árvore para de lá saltar ao alto do muro, sobre as telhas vermelhas. Um novo salto colocou-a do Outro lado, mas ainda dentro da grande área cercada que constituía a zona de segurança, sem touros, de “La Riata”.

Deslizou rente ao muro, sempre a grande velocidade, contando os segundos. Não era tempo o que lhe sobrava. Quando se deteve, estava a menos de dez metros do carro com os dois cadáveres e a pequena maleta... com o jovem soldado mantendo uma prudente distância entre o veículo e ele.

Avançou agachada, sempre buscando a proteção das moitas que cresciam ao pé do muro. Dez segundos após, estava atrás do soldado, que só tinha olhos para o automóvel.

Nem um único ruído alertou o rapaz a respeito do perigo que o ameaçava pela retaguarda. A esbelta figura dourada ergueu-se junto às suas costas, a mão direita se ergueu e caiu-lhe com força sobre a nuca. Ele apenas emitiu um abafado gemido. Ficou de pé, sustentado pela espiã, que em seguida o arrastou para a sombra do muro. Deixou-o sentado lá, deslizou para o carro e silenciosamente abriu a porta.

Sua delicada mão fechou-se com firmeza sobre a alça da pesada maleta

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* * * Os três homens puseram-se cortesmente de pé quando

miss Montfort reapareceu no terraço, impecável, maravilhosa com seu doce sorriso, envolta num bonito xale de casimira.

Héctor Benavente olhou-a como se estranhasse que uma mulher daquela têmpera pudesse sentir frio numa cálida noite tropical, junto ao mar.

— Sinto um pouco de frio — disse ela — mas creio que pela impressão com o ocorrido. Oh, já temos aqui o champanha.

Feliciano Santander indicou o recipiente que continha aquelas bolinhas de um vermelho vivo.

— E isto? — São cerejas, senhor Ministro. Nunca experimentou

champanha com cereja? — Não... — É delicioso. Quanto á marca do champanha, espero

que mereça a aprovação de todos: “Perignon 55”. O melhor. Permitam-me...

Encheu as quatro taças, ergueu a sua e sorriu: — Nada mais de mortes, cavalheiros. De acordo? Os três homens assentiram com a cabeça e tomaram um

gole de champanha. — Magnífico — aprovou Mendoza. Realmente

magnífico. — Não deixe ficar a cereja, senhor Presidente. Seu sabor

é muito especial, molhada em champanha. As cerejas foram saboreadas pelos três, que fizeram

comentários elogiosos, se bem que o de Héctor Benavente soasse um pouco seco. Não estava de bom humor, era

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evidente. Era-o ao menos para a agente “Baby”, que sentia muito interesse por ele.

A respeito do helicóptero, senhor Presidente... — Oh sim. Bem... Creio que poderemos dispor de um, é

claro. Que pensa fazer? — Sairei amanhã, não demasiado cedo. Quero sobrevoar

essas ilhas, ver as forças rebeldes e, se possível, aterrissar em Coronadas para fazer uma visita a León Salvatierra.

Mendoza e Santander trocaram um olhar de alarma. — Miss Montfort, talvez isso seja muito perigoso... Nós

não podemos garantir-lhe que respeitem o helicóptero e... — Não se preocupem por mim, cavalheiros. Conto com

o helicóptero? — Sim, claro. Posso mandar um carro buscá-la, pela

manhã, e conduzi-la ao Aeroporto Militar, se está de acordo.

— Ótimo! Bem... — sorriu. — Parece-me que os senhores não têm muita certeza de que esteja capacitada para opinar sobre este assunto.

— Não, não. Pensamos apenas que um homem, considerado o perigo existente, talvez fosse mais adequado.

— Espero poder demonstrar-lhes o contrário. E, com champanha e cerejas ou sem champanha, convencerei León Salvatierra a... Que está acontecendo?

Ouviam-se vozes excitadas e dois dos soldados do pátio saíram correndo, fuzil preparado. Novamente foi don Héctor o primeiro a ir saber da novidade, seguido sem mais comentários pela espiã e pelos dois principais políticos de Andina.

O capitão Saldaña saiu ao encontro deles, rosto crispado, contendo sua fúria a duras penas.

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— Atacaram o soldado de guarda, senhor Presidente. Encontramo-lo caído no chão... Está agora recuperando os sentidos. E a maleta com as armas ou bombas desapareceu. Não está no carro...

Todos seguiram para lá. Dois soldados ajudavam o que fora atacado a levantar-se, já que tinha aberto os olhos, mas não parecia compreender muito bem o que estava ocorrendo ao seu redor.

— Que houve com você? Viu alguém? — perguntou-lhe Saldaña.

— Alguém...? Não... Não vi pessoa alguma, capitão... — Mas deve saber o que aconteceu! — quase gritou

Saldaña. — Não, não sei... Não sei nada. Eu estava vigiando o

carro e... e me golpearam por trás. Não sei mais nada... Feliciano Santander estava olhando dentro do carro.

Quando se voltou, assentiu com a cabeça, torvamente. — A maleta não está, Alberto. — Bem... Alguém quis recuperar suas bombas, ao que

parece. Demo-nos por satisfeitos por terem respeitado a vida deste rapaz. Deixe-o tranqüilo, capitão. E ocupe-se em organizar o regresso. Por hoje, já aconteceram coisas demais.

— As suas ordens, senhor Presidente! Poucos minutos depois, os três veículos se afastaram, e

Brigitte e Héctor Benavente ficaram mais uma vez sozinhos no terraço.

— Ainda há champanha para duas taças — disse ela. — E cerejas suficiente para todas as garrafas que trouxe. Quatro, nada mais. Sirvo-o, senhor Benavente?

— Não obrigado.

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— Parece-me... desanimado. Na verdade, creio que começa a refrescar. Certamente estaríamos melhor dentro de casa. Em seu quarto, por exemplo. É possível que lá ache mais saboroso o champanha.

Benavente, após um leve sobressalto, fixou a espiã internacional.

— Em meu quarto? — Por que não? — sorriu ela. — Gostaria de entrar lá,

ver como é, onde você dorme... Mas, Héctor, se a idéia não é de seu agrado.

— Está zombando de mim? — perguntou o matador. — Acha que estou? — Brigitte terminou de derramar o

champanha nas taças, com uma cereja no fundo, e ergueu-as. — Talvez você seja um desses homens que não acreditam em nada enquanto não o obtêm. Espero-o lá em cima, Héctor Benavente.

E se foi, levando uma taça de champanha em cada mão.

CAPÍTULO QUINTO Um homem incrédulo

Riquezas das Ilhas Coronadas Não se usam touros para matar toureiro...

Héctor Benavente ficou alguns segundos como cravado

no limiar do quarto. Depois entrou e fechou a porta, suavemente, sem revelar a menor perturbação.

Por fim, deteve-se diante de Brigitte, que estava sentada aos pés da cama, sorrindo, com as taças erguidas, como quem durante todo o tempo teve a certeza de conseguir seu propósito.

— Champanha com cereja? — perguntou ela.

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Benavente inclinou-se, aproximando sua boca viril dos lábios de Brigitte. Talvez fosse uma prova a que quisesse submeter aquela jovem tão serena, que o olhava com seus magníficos olhos azuis. Ela não se moveu e seus lábios pareceram dulcificar-se mais ainda, entreabrindo-se. E Héctor Benavente resolveu aprisioná-los com os seus.

Foi um beijo longo, durante o qual, sem fazer nenhum movimento, Brigitte Montfort continuou segurando as duas taças de champanha. Quando o beijo terminou, o matador de touros suspirou profundamente e endireitou o corpo.

— Sempre estive à sua espera murmurou. — Então deve estar feliz com minha chegada, Héctor. — Feliz, mas incrédulo. Não sou homem que ame

facilmente, Brigitte. — Pois faz mal. De um modo ou de outro, é preciso

amar. Amar sempre, Héctor. A todo o mundo. — Eu estava falando de outro amor. Do amor entre um

homem e uma mulher. — Também esse amor é belo — admitiu “Baby”. — Por

favor, querido, meus braços estão dormentes... O toureiro segurou a taça, sorrindo daquele modo

brilhante e súbito, juvenil. Beberam os dois, olhando-se fixamente. E assim, bebendo e olhando-se, Brigitte levou uma das mãos atrás e sacou-a novamente segurando a pequena maleta de couro sólida, pesada... O matador de touros quase se engasgou com o champanha e teve que retirar precipitadamente a taça dos lábios. Depois de olhar a maleta com olhos arregalados, olhou interrogativamente para Brigitte.

— A maleta... Como veio parar aqui? — perguntou. — Roubei-a — sorriu ela.

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— Você...? Você tirou-a do carro? — Sem dúvida, querido. Entretanto, é a parte menos

importante do assunto. — Você atacou um soldado e...? — Deixemos isso. Foi coisa de pouca importância.

Quero apenas que você me diga quem eram exatamente Luis Arévalo e Paco Morales. Também quero que me diga quem era Gilberto, o homem que morreu na praia de uma das ilhas. E por último, quero que me diga quem lhe enviou esta tarde uma mensagem por meio de um espelho. Depois de saber tudo isso, é possível que comecemos a entender-nos.

— Você sabe da mensagem...? Viu quando a recebi? — Assim é. E você sabe o que contém esta maleta,

Héctor? — Sei. — Eu também. Quer abri-la, por favor? Naturalmente

não contém bombas — acrescentou ela, sorrindo maravilhosamente. — Nós dois sabemos disso. Abra-a.

Levantou-se e afastou-se uns passos, com a taça de champanha entre os dedos. Héctor Benavente aproximou-se da maleta e abriu-a, coisa que não foi difícil, já que o fecho tinha sido forçado anteriormente por espertas mãos femininas.

De fato, não havia bombas, nem armas, nem explosivos de nenhuma espécie. Apenas pedras. Pedras.

— São umas bonitas amostras — murmurou Brigitte. — Desde quando você sabia?

— Faz tempo... Mas sabe você de que são essas pedras? — Ora vamos, Héctor! Está pensando que sou uma

mulherzinha bonita, mas ingênua e inculta? Não preciso de

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nenhuma espécie de análise para saber que estas pedras são amostras de pechblenda, ou se preferir, uranita. Resumindo, um dos minerais mais ricos em urânio que é possível encontrar no planeta Terra. Exato?

— Exato. — São das Ilhas Coronadas? — São. — Há muita uranita nas Ilhas Coronadas? — Milhares de toneladas. — E fantástico! Você imagina? A exploração deste

minério de urânio transformaria as Ilhas Coronadas num dos pequenos paises mais ricos do mundo. Algo fabuloso. Quer me contar tudo, Héctor?

Benavente ficou pensativo uns segundos, contemplando a cereja que havia no fundo de sua taça. Súbito, atirou furiosamente esta a um canto do aposento e seu rosto assumiu uma expressão de aborrecimento, de desassossego.

— Tudo saiu mal! Tudo! Éramos muito poucos contra muitos... Foi uma tolice de minha parte... Já mataram Gilberto, Paco, Luis... Não quero continuar, se isto nos custará ainda mais vidas!

Brigitte pousou sua taça e tomou as mãos do toureiro. — Calma... — disse-lhe sorrindo. — Foi León

Salvatierra quem lhe mandou a mensagem esta tarde? — Não penso dizer-lhe mais nada. Você foi mandada

pela ONU para trabalhar, para observar e informar, não é isso? Pois faça seu trabalho sozinha!

— Sempre o faço. Não seja tolo, Héctor. Vocês com seus pequenos e engraçados complôs, são para mim como crianças brincando. Já uma vez me aconteceu algo parecido e resolvi o caso facilmente.

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— Ao que consta, a ONU confia muito em... — Deixe de lado a ONU. Trata-se de fazer o que for

mais decente e conveniente para sua pátria, Héctor. Não é isso o que você quer?

Benavente olhou espantado para aquela extraordinária mulher.

— Que poderia fazer você por Andina? — Ajudá-la, querido. Já morreram três homens. Por que

deixar que as coisas sigam adiante? Pense bem. Esses rebeldes que...

— Não há rebeldes! E mentira! — Mentira? — Esses dois mil homens estão sendo enganados. Eles

estão convencidos de que Andina não vai permitir a independência das ilhas, e que vamos invadi-las. Por isso, dois mil estúpidos estão se concentrando na Ilha Corbacho, a mando de alguns traidores, para Conter a suposta invasão. Ao mesmo tempo, fez-se crer ao mundo que são os habitantes das Ilhas Coronadas que querem invadir Andina. Uma guerra, é isso o que querem. Uma rebelião, que custaria às Ilhas Coronadas mais vinte e cinco anos de colonialismo.

— Compreendo a jogada. León Salvatierra lhe pediu ajuda?

— Pediu. — Por quê? Por que a você, que segundo parece dentro

de poucos meses será Presidente da metrópole? — Leon e eu somos velhos amigos. Ele sabe muito bem

que quando eu for Presidente meu primeiro decreto será o da independência das Ilhas Coronadas. Até então, ele já terá

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feito compreender a seus queridos ilhéus que o futuro das ilhas está em Andina.

— Quer dizer que, quando você for Presidente, concederá a independência das ilhas. Ato contínuo, León Salvatierra pedirá sua anexação como território nacional. Exato?

— Exato. — É uma jogada elegante a que ambos pretendem. Mas

suponho que seja em beneficio de todos? — Poderia ser de outro modo? Vou dizer-lhe o que

aconteceria quando o mundo soubesse que as Ilhas Coronadas estão cheias de minério de urânio: os paises mais importantes as sufocariam com tratados, com sugestões de toda espécie, com ofertas e contra-ofertas. Em poucas semanas, elas se transformariam num caos. Por isso, León Salvatierra e os homens mais importantes das Coronadas querem esperar que eu seja Presidente para se unir conosco. Toda essa história de rebelião e uma jogada suja de alguém para conseguir que as ilhas continuem sendo uma colônia durante vinte e cinco anos mais. Como colônia, elas serão exploradas por todo esse período, sem que se tenha em conta outra coisa que sua produção de urânio, sua riqueza.

— Compreendo isso. Entretanto, sendo você Presidente de Andina e suas colônias, suponho que poderá estabelecer certa ordem nessa exploração, não é assim?

— Temo bastante que não possa chegar á presidência. — Percebo. Os cinco touros... Não eram para mim, mas

para você. Queriam matá-lo. A você, Héctor, não a mim. Um “acidente” para eliminar o único homem que nas próximas eleições, poderia vencer Alberto de Mendonza. Morto você, tudo prosseguiria de acordo com o programa,

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— esse simulacro de revolução funcionaria, as ilhas continuariam como colônia por mais vinte e cinco anos... e alguém tiraria proveito disso. Eis por que querem que você morra.

— Exatamente. Conhecem meus propósitos, sem dúvida. Sabem que eu seria Presidente, que colocaria León como Primeiro-Ministro... E querem evitar isso. Querem apenas explorar as ilhas... em beneficio próprio, naturalmente. Nada fariam por elas, nem por Andina. Dariam algumas migalhas em troca de centenas de milhões de dólares, ou rubros, ou Libras...

— É uma jogada bastante hábil, sem dúvida, mas gostaria de saber quem está dirigindo todo este assunto, Héctor.

— Feliciano Santander. — O Primeiro-ministro? Você tem certeza? — Não... — hesitou Benavente. — Não tenho certeza. — Então é preciso tomar muito cuidado com o que se

diz. E mais cuidado ainda com o que se faz. — Mas que outro poderá ser? — Alberto de Mendonza, talvez. — Esta é boa! Ele não tem suficiente imaginação para

tudo isto, Brigitte. — Bem... Logo encontraremos o culpado. É preciso ter

em conta, também, seu amigo León Salvatierra, que talvez esteja fazendo uma jogada suja e esteja utilizando você para conseguir a independência das ilhas e tornar-se, portanto, o mais beneficiado.

Héctor Benavente pareceu ter recebido violento golpe em pleno peito.

— León? Não... Oh, não!

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— Se dentro de alguns meses você for Presidente, ele conseguirá de imediato a independência das Ilhas Coronadas, não é? E talvez se “esqueça” depois de pedir a anexação formal e total a Andina.

O matador tinha empalidecido e olhava-a com expressão estupefata.

— Não... não... não... — repetia. — Querido, você não sabe quanto pode ser sórdida uma

pessoa. — Mas León, não! Além disso, se está desejando que eu

seja o Presidente de Andina para conseguir a independência das ilhas, por que desejaria matar-me, então?

— Talvez seja apenas mais uma jogada, para afastar dele suas suspeitas. Suponho eu que haja melhores meios para matar Héctor Benavente que colocá-lo diante de uns quantos touros! Depois de sete chifradas, creio que Héctor Benavente sabe muito bem como se safar dentro de uma praça... Sim ou não?

— Nunca ninguém sabe como escapar dos touros — sentenciou o matador.

— Mas é absurdo querer matar com touros um toureiro. Há mil processos melhores. E como lutar com um tubarão em pleno oceano. Por que não retirar o tubarão de seu elemento e cortar-lhe comodamente a cabeça?

— Não... — murmurou Benavente. — León, não, Brigitte. Mil vezes não.

— Então, temos que procurar outro culpado. Ou vários, que tenham unido seus interesses. Diga-me, Héctor: qual é a história desta maleta de uranita?

— Mandei um de meus peões mais fiéis às ilhas buscar estas pedras, para provar que todo o arquipélago continha

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minério. Mas ele foi morto ao chegar à praia, onde o esperavam Paco Morales e Luís Arévalo, com equipamento de homens-rãs, a fim de levá-lo a um barco com o qual retornaria ao continente. Antes de morrer crivado de balas, Gilberto Sierra, meu peão, atirou a maleta ao mar. Paco e Luis a recolheram e escaparam. Isso foi há três noites, mas tiveram dificuldades em desembarcar e só hoje puderam aproximar-se daqui... em má hora.

— Você tem certeza de que León Salvatierra está alheio ao caso?

— Tenho. Sim, tenho. Além disso, não seria lógico. Ele sabe que Gilberto Sierra, Paco Morales e Luis Arévalo eram meus melhores homens, dos mais fiéis. Por que matá-los para impedir-lhes que me trouxessem umas amostras de minério, se ele mesmo me disse que havia uranita nas ilhas?

— Claro. E outra coisa raciocinou Brigitte: — Se Paco e Luis se escondiam para que Santander e Mendoza não os vissem, devia ser porque não se sentiam seguros com eles, não lhe parece?

— Já lhe disse que suspeitamos de Feliciano Santander. Era natural, portanto, que Paco e Luis ficassem à espera de que se retirasse para vir entregar-me a maleta com as pedras.

— Bom... Parece que precisamos encontrar dois homens para que isto se esclareça.

— Dois? — Primeiro: quem dirige tudo isto. Segundo: o peão que

abriu as portas do touril. Sabe exatamente onde está León Salvatierra?

— Sei.

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— Iremos falar com ele. Mas não agora, pois ainda é cedo. Um bom momento será... as duas da madrugada, por exemplo. León tem uma lancha?

— Sim, claro. — Ótimo. Parece que dispomos de três horas antes de

pôr-nos em marcha, Héctor. — Aonde pensar ir? — Agora ou depois? — Depois. — Possivelmente, às ilhas. E... agora? — Bom... Agora, realmente, pergunto-me por que teria

que ir a algum lugar, matador... — Você poderia aproveitar esta espera para descansar

umas horas... — Não estou cansada. E você? — Eu nunca estou cansado. Héctor Benavente sacou um charuto, com mãos um tanto

nervosas. Mas quando ia acendê-lo, “Baby” tirou-o de sua boca, suavemente.

— Canhões ou manteiga? — perguntaram os russos. — Eu lhe pergunto: charuto ou amor?

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CAPÍTULO SEXTO

Um visitante noturno Uma faca afiada

Os condenados á morte não precisam de orelhas... A sombra apareceu na janela, recortando-se nesta por

dois segundos apenas. Passou por sobre o peitoril, rapidamente, deixando-se tombar no assoalho. Com o homem, entrou uma onda de perfume de flores, trazido pela brisa da noite, agradavelmente fresca.

Á esquerda estava a cama, onde se via um vulto que se delineou claramente, definindo-se como o corpo nu de Héctor. Ouvia-se bem sua respiração lenta, compassada, profunda. Uma réstia de luar entrava pela ampla janela aberta, até o fundo do quarto do dono da “La Riata”.

A sombra moveu-se sigilosamente, endireitando-se. Houve uma fria cintilação em sua mão direita. Chegou junto á cama, mas decidiu-se a rodeá-la, para chegar mais perto do adormecido. E quando chegou junto a ele, ergueu a mio, empunhando a longa faca, pronta para assestar o golpe mortal.

Outra sombra moveu-se, atrás da primeira. Uma sombra menor, mais ágil, muito mais perfeita. Um braço esbelto passou pela garganta do visitante assassino, rápido como um relâmpago, e o seco puxão para trás arrancou-lhe um rouco gemido. O homem debateu-se, tentando desprender-se daquele braço que o asfixiava, lançando ao mesmo tempo uma facada para trás, a qual normalmente teria encontrado o corpo da pessoa que o atacava pelas costas.

Normalmente.

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Só que aquela pessoa, em semelhantes assuntos, não tinha nada de normal, e a facada perdeu-se no ar.

— A luz. Héctor! — ofegou Brigitte. — E não se aproxime!

Benavente havia saltado da cama e, em menos de dois segundos, a luz inundou o quarto, mostrando o peão com a espiã agarrada às suas costas, apertando-lhe tenazmente o pescoço. O toureiro precipitou-se em socorro de “Baby”.

— Não, Héctor! Tarde demais. O peão, já quase asfixiado, lançara uma

facada, em desespero, com a força do furor que sentia naquele momento. A ponta do aço rasgou a carne do flanco de Héctor Benavente, que lançou uma exclamação, cravou a mão esquerda na ferida e demonstrou que aquilo não o impediria de insistir em sua intervenção.

Mas Brigitte obrigou o intruso a girar, justamente quando ele tornava a lançar uma facada para trás. E compreendendo o risco que isto significava, ela soltou o homem, subitamente, afastando-se dele um passo. O peão nem sequer teve tempo de voltar-se. Juntando as duas mãos, ela descarregou-lhe um tremendo golpe nos rins, com tal força que o homem caiu de joelhos, sem fôlego, com a boca aberta e os olhos arregalados. Novo golpe, agora na nuca, derrubou-o de bruços.

Brigitte voltou-se para Benavente, tão completamente nua como o matador de touros.

— Eu lhe disse para não se aproximar — recriminou-o. — Vejamos essa ferida...

— Não é nada — murmurou ele, atônito. A espiã afastou-lhe a mão da ferida, olhou-a um instante

e franziu a testa.

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— Vá ao banheiro e faça um curativo, Héctor. Ele ainda a olhava, espantado.

— Como você conseguiu dominar esse sujeito, Brigitte? — Bem sou uma mulherzinha treinada — sorriu ela: —

bonita, inteligente... e perigosa também. Ou não? — Mas você o derrotou como a um menino... Agora

compreendo por que não desejava que eu interviesse. Você prescinde de ajuda. Você é...

— Uma suave mocinha. Vá fazer o curativo. — Foi só um arranhão. Que é isto para quem já levou

sete chifradas? — Querido Héctor — beijou-o rapidamente na boca: —

uma faca, tal como um chifre, pode matar um homem. Não abuse de sua sorte, não se considere invulnerável. Você é apenas um homem. Agora, vá tratar do curativo. E faça-o bem, pois esta noite vai ser muito longa para nós dois.

* * * Quando Héctor Benavente saiu do banheiro, com um

retângulo de gaze presa sobre a ferida por duas tiras de esparadrapo, Brigitte já havia amarrado solidamente o peão com tiras rasgadas de um lençol. Estava atado de tal modo que seria pouco provável pudesse libertar-se por si mesmo em menos de uma semana... se antes não morresse de sede e de fome. Quanto a ela, já se tinha vestido.

— É um de seus peões, suponho? — Sim. Obdulio Ferrán... — murmurou Benavente,

começando a vestir-se. — Você suspeitava dele? — Não... Há tempos tive que repreendê-lo, mas já nem

me lembrava.

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— Parece que ele não esqueceu. Além disso, naturalmente, pagaram-lhe para isto e para abrir esta tarde as panas do touril. Uma coisa é certa, Héctor: querem matá-lo. E bem sei que, quando começam, os atentados não terminam facilmente. Por isso, decidi dedicar algumas horas ao nosso amigo do touril... e aqui o temos. Há pressa em acabar com você, seja como for e sem dissimulação.

— O que não compreendo é como pôde você ouvi-lo escalar a parede...

— Tenho um ouvido apuradíssimo. Em compensação, o da Luzia parece ser muito duro.

— Não... — murmurou Héctor. — Ela sabia que você estava comigo e não se atreveu a entrar.

— Você confia nela? O matador esteve a ponto de desmaiar de assombro. — Em Luzia? — exclamou. — Ela...! — Está bem, está bem Vá buscar um copo de água ou o

que seja. Ajudaremos este cavalheiro a despenar. O peão despertou minutos mais tarde, devido à

insistência de “Baby”. Quando abriu os olhos, viu à sua frente aquela garota de lindos olhos azuis e Héctor Benavente, que parecia perfurá-lo com o olhar.

— Olá, Obdulio! — saudou ela, sorrindo. — Parece que você quis fazer uma coisa muito feia esta noite. Quem lhe pagou para isso?

— Ninguém. Héctor segurou-o rudemente pela camisa, levantando a

outra mão. — Vou-lhe...! — Calma, querido, calma aconselhou suavemente

Brigitte. — Primeiro, advertiremos amavelmente o amigo

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Obdulio; depois, ele arcará com as conseqüências de seu comportamento. Vamos a ver, Obdulio: eu não sou uma mulherzinha tola e medrosa, como você já compreendeu. Agora, peço-lhe que responda bem e sem demora minhas perguntas, pois já são quase duas horas da madrugada e Héctor e eu temos o que fazer. Entendido?

— Não responderei nada. Brigitte tirou a faca da mão de Benavente e passou um

dedo cuidadoso pelo seu afiado gume. Quando tornou a olhar para Obdulio Ferrán, havia um sorriso em seus lábios rosados, mas, coisa estranha, não havia sorriso em seus olhos, que pareciam de gelo.

— Obdulio, irei fazendo perguntas e, cada vez que você não responda, eu lhe cortarei alguma coisa. A primeira coisa será uma orelha. Está bem claro? Pois agora pergunto: quem lhe pagou para matar Héctor Benavente?

O peão olhou a faca que tinha diante dos olhos, sorriu desdenhosamente. Iria acaso deixar-se assustar por uma mulher?

Mas, ainda estava pensando isto, quando a mão direita da señorita Montfort se moveu, velozmente... e sua orelha esquerda caiu no chão, limpamente secionada. No momento, ele nada sentiu. Inclusive, olhou para o chão e viu a orelha... Mas súbito lançou um grito tal que possivelmente foi ouvido no último rincão da extensa fazenda. Um grito que logo foi cortado em sua garganta quando a ponta da faca se apoiou sobre a mesma, com uma leve pressão.

— Não me obrigue a cortar-lhe a língua, Obdulio. Teria que desatá-lo para que me respondesse por escrito e...

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A porta do quarto de Héctor se abriu e Luzia apareceu no limiar, assustada, olhando com olhos que se arregalaram quando viram no chão aquela orelha e o jorro abundante de sangue que brotava de um lado da cabeça de Obdulio. Fora, ouviam-se vozes de homens, que vinham do alojamento dos peões.

— Não é nada, Luzia. Desça e... Luzia! A mulher reagiu ao grito de Benavente. Parecia

alucinada e se não gritara fora sem dúvida devido ao próprio terror, que estava a ponto de sufocá-la.

— Desça e diga aos peões que não aconteceu nada. Não quero que ninguém suba aqui. Está claro?

— Sim... sim... — Depressa! A mulher desapareceu a toda a velocidade e Brigitte

sorriu para o gemebundo Obdulio, que estava lívido e na iminência de desmaiar.

— Muito bem, Obdulio. Ao que parece, você tem outra orelha. E se é tão surda como a primeira, eu a cortarei também, para igualar os lados de sua cabeça. Mas não sou tão perversa, querido Obdulio. Primeiro, lhe darei uma oportunidade: quem lhe pagou para matar seu patrão?

Ergueu a faca ensangüentada e Obdulio Ferrán abriu a boca.

— Don Feliciano, o Primeiro-Ministro! — gritou. — Isso é verdade? — Juro por todos os santos que...! — Está bem, Diga-me; que faria você depois de matar

Benavente? Avisaria alguém, talvez? — Sim, sim! — De que forma, Obdulio?

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— Da praia... fazendo sinais com uma lanterna. — Para as Ilhas Coronadas? — Sim... — Que sinal era esse? — Três... três longos, um curto e dois longos. — E depois? Que devia fazer depois? — Voltar para o alojamento, como... como se nada

tivesse acontecido. — Muito bem. Don Feliciano está esperando esses sinais

em algum ponto do mar? — Está. — E que fará ele quando os vir? — Penso que... que irá à Ilha Corbacho, numa lancha... — Bom. Está vendo, homem? Agora você teria duas

orelhas, se houvesse logo respondido minhas perguntas. Claro que, para os que vão ser condenados à morte, tanto faz uma orelha como duas. Agora, seu patrão vai curar-lhe como puder essa orelha, para que você possa viver até que o julguem por tentativa de assassinato. E enquanto Héctor se encarrega de você... — olhou para o matador — irei buscar algumas coisas em meu quarto, para descer imediatamente á praia. De acordo, Héctor?

— Sim, de acordo, Brigitte. — Não percamos tempo. Quero chegar á Ilha Corbacho

logo depois de Feliciano Santander. Aquele champanha com cereja vai lhe dar uma cólica, eu garanto.

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CAPÍTULO SÉTIMO

Passeio marítimo em plena madrugada Entre duas atentas sentinelas

“Voilá le cochon!” Tardaram pouco mais de vinte minutos para chegar a

parte da praia onde havia um amontoado de rochedos. Héctor Benavente ofegava um pouco, devido á diminuição de forças causadas pela ferida que lhe fizera a faca de Obdulio Ferrán. Havia proposto chegar á praia a cavalo, sendo que este regressaria sozinho à estrebaria, mas Brigitte não concordava com isto e tiveram que percorrer mais de um quilômetro a pé, num passo que mais parecia de marcha atlética. Não tinham trocado uma só palavra, mas o matador de touros estivera olhando de soslaio aquela infatigável mulherzinha, que chegou à praia tão fresca e repousada como se tivesse dado um passeio de automóvel, levando graciosamente a maleta vermelha, como se fosse seu brinquedo preferido.

— É León Salvatierra? — perguntou ela. Benavente assentiu com a cabeça. Levou as mãos aos

lados da boca e surpreendeu Brigitte emitindo um mugido de touro que indiscutivelmente parecia autêntico. Em seguida, mais dois.

Estiveram esperando em silêncio durante dois minutos, até que a silhueta de um homem surgiu diante deles, por entre os rochedos. Em sua mão via-se uma pistola.

— Héctor? — Sou eu, León. Onde está a lancha? — Escondida entre os rochedos, como você

recomendou... É a enviada da ONU?

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— Brigitte Montfort... — apresentou o toureiro. — Ela o conhece muito bem, León. Estou convencido de

que podemos confiar em sua boa vontade. Expliquei-lhe tudo e ela disse que resolverá o assunto esta mesma noite.

“Baby” apertou a mão que lhe estendeu León Salvatierra, após mudar a pistola para a esquerda.

— Encantado, miss Montfort. — Igualmente, señor Salvatierra. Este olhou para Benavente. — Ouvi tiros há algumas horas, mas não me atrevi a

chegar muito perto. Tenho a impressão de que estou cercado. Héctor... Se não estivesse em suas terras, os homens de Feliciano Santander já me teriam capturado... Que aconteceu?

— Mataram Paco e Luis. — Deus... Também eles. — Aproximaram-se depois do anoitecer, mas Mendoza

já havia chegado, com soldados. Luis e Paco viram um dos carros tarde demais, esconderam-se então, mas foram descobertos... E os soldados encarregados de proteger Mendoza pensaram que podia tratar-se de um atentado contra o Presidente, de modo que...

— Sinto muito, Héctor. Sei que você os estimava... — Já estão mortos — murmurou o toureiro. —Mas

tenho a maleta. Miss Montfort... — Falaremos na lancha — interrompeu esta. — Durante

o trajeto até as ilhas poderão trocar toda espécie de informações. Vamos para a lancha.

Encontraram-na dentro de três minutos. Era pequena, pintada de azul-escuro, o que era o mesmo que negro durante a noite. Estava metida numa espécie de cova de teto

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muito baixo, na qual o mar penetrava. León Salvatierra, com água até a cintura, puxou-a até colocá-la em posição acessível a Brigitte e Benavente, que não tardaram a abordá-la.

Brigitte abriu sua maleta, sacou uma possante lanterna, obtida na fazenda, já que não trouxera uma daquele tamanho, e acendeu-a, lançando para as ilhas os sinais que Obdulio Ferrán deveria fazer pessoalmente. Tornou a guardar a lanterna e olhou para León.

— Vamos, señor Salvatierra. Durante o percurso, Héctor Lhe contará como estão as coisas até o momento.

— Vamos ás ilhas? — À Ilha Corbacho, justamente. Salvatierra pôs a lancha em marcha e partiram

velozmente para as ilhas, que se recortavam na noite como um bonito desenho de cor prateada.

E enquanto os dois homens falavam, “Baby” abriu novamente a maletinha, da qual sacou três tubos de alumínio. Héctor Benavente não deixava de olhá-la, cada vez mais surpreso, enquanto explicava a situação a Salvatierra, o qual também dirigia freqüentes olhares aos manejos daquela belíssima enviada da ONU. Com a rapidez e a segurança de sua longa prática, ela estava montando o fuzil, ao qual acrescentou pouco depois a culatra. Finalmente, introduziu no longo tubo de três peças roscadas uma de suas cápsulas mágicas.

— Perdoem a interrupção... Quando estivermos a uma milha da Ilha Corbacho, desligue o motor, señor Salvatierra. Essa milha será vencida a remo.

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— Compreendo que quer chegar silenciosamente, mas é inútil... Há muitas sentinelas vigiando as praias e os poucos alcantilados da ilha.

— Chegaremos por um destes. E não se preocupe por isso, pelas sentinelas. Héctor: você insiste em que esses rebeldes estão sendo enganados? Quer dizer, que crêem estar cumprindo com seu dever?

— Insisto — respondeu o matador, positivo. — Não é certo, León?

— Certíssimo. — Então, seremos camaradas com esses rapazes —

sorriu Brigitte. Em seguida, deixando cada vez mais atônitos os dois

homens, tirou o vestido, ficando ataviada unicamente com um biquíni dourado, de cor quase idêntica à de sua própria pele. Por último, tirou da maleta uma bolsa de plástico, dentro da qual meteu a própria maleta, e fechou hermeticamente, por pressão.

* * * Lentamente, a remo, a lancha chegou á costa, detendo-

se, a um sinal de “Baby”, a uns cento e cinqüenta metros de um alcantilado não muito alto. Ela própria atirou a âncora. Depois, sem pronunciar uma palavra, segurando com uma das mãos o fuzil e a maletinha, deslizou para a água. Fez sinais aos dois estupefatos homens, que também se apressaram a tomar um banho sob a luz da Lua.

Três minutos mais tarde, nadando silenciosamente, chegaram a uns vinte metros do alcantilado... no alto do qual via-se a branca silhueta de um homem, com seu grande chapéu de palha. Em suas mãos um fuzil.

— Bem que eu disse — sussurrou Salvatierra.

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— Subiremos por lá — sussurrou também Brigitte. Mantenham-me á tona, movendo-se o menos possível. Não, pelos braços não... Pela cintura.

Os dois homens a seguraram. Ela passou a alça da maleta pelo pulso. Depois, com ambas as mãos, manteve o fuzil apontado para o homem do alcantil, que andava despreocupadamente de um lado para outro.

Pof... Em terra firme, o homem levou as mãos ao rosto,

soltando o fuzil, surpreendido. Um segundo depois, caía como fulminado.

— Vamos. Chegaram ao alcantilado, que não foi difícil de escalar,

motivo pelo qual haviam colocado lá uma sentinela, era evidente.

Uma vez no alto, León Salvatierra inclinou-se sobre o peão.

— Ele está simplesmente adormecido, por três horas, señor Salvatierra. Agora, leve-me o mais perto possível desses dois mil homens. Quer dizer: do posto do comando. Tem alguma idéia de onde possa estar agora Feliciano Santander?

— Construíram uma cabana onde se reúnem os oficiais... Mas não poderá chegar até ela. E impossível.

Brigitte retirou a capa de plástico da maletinha, guardou-a, sacou outra cápsula e introduziu-a no tubo do fuzil.

— Para a cabana, señor Salvatierra. — Mas eu lhe garanto que... — Por favor. — Bem... Como queira.

* * *

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Agora, podia-se ver a cabana a duzentos metros. Havia algumas luzes a seu redor e, sobretudo, homens armados. Atrás, tinham deixado adormecida outra sentinela, que nem sequer tivera tempo de ver ou ouvir alguma coisa.

Mas o objetivo da agente “Baby” estava mais adiante. Dentro daquela cabana, alguns personagens, entre eles Feliciano Santander, deviam empenhar-se em interessante conversa.

— Jamais chegaremos lá — murmurou Salvatierra. Héctor Benavente já tinha aprendido a calar. Limitava-se

a olhar para Brigitte, que uma vez mais recorria à sua maletinha. Viram-na sacar um pequeno aparelho, que parecia um rádio de pilha, desses tão incômodos que os banhistas levam á praia. Mas não devia ser um radio. A espiã esteve manipulando-o durante dois ou três minutos. Finalmente, estendeu a cada homem um pequeno retângulo plástico, que estava unido ao aparelho por meio de um fio.

— Por aqui se escuta — explicou. — E este aparelho é um receptor-gravador. Este dial põe-no em marcha, servindo também para dar mais ou menos volume a audição e à gravação. Agora vocês vão ouvir o que estão falando dentro daquela cabana. Daqui a dois minutos, ponham em marcha o aparelho, que lhes permitira escutar a conversa ao mesmo tempo em que esta é gravada. Compreenderam?

— Sim. Mas aonde vai? — Lançar o microfone. Não se movam daqui, ouçam o

que ouvirem. Se alguém vier, esqueçam-se de mim e escapem para a lancha.

Deslizou por entre a vegetação, completamente silenciosa, com o fuzil preparado para lançar o microfone-dardo.

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Quase dois minutos mais tarde, detinha-se entre algumas moitas, a uns oitenta metros da cabana. Atrás, tão silenciosamente havia deslizado, deixara outra sentinela. E a menos de vinte e cinco metros estava outra, igualmente vestida de claro, com o fuzil nas mãos toscas. Sem dúvida, aqueles dois homens se teriam posto a rir se alguém lhes dissesse que naquele momento havia entre ambos uma intrusa. Possivelmente, teriam respondido que nem sequer um gato do mato seria capaz de mover-se com tal ausência de ruído.

Um gato do mato, talvez não. Mas a agente ‘Baby”, sim, estava lá, entre os dois argutos vigilantes, apontando um fuzil para a cabana, pronta para lançar o microfone-dardo.

Pof... Baixou o fuzil e permaneceu imóvel uns segundos,

sentindo o suor gotejar em sua testa. A noite estava um tanto fresca, certamente, mas a tensão nervosa pode provocar o suor com facilidade. Olhou vivamente para o homem que tinha diante de si e que, segundo parecia, nada ouvira. Começou a retroceder, com lentidão e cautela... Pouco depois, via o outro. Estava fumando e a brasa de seu cigarro era como um olho vermelho. As sentinelas não devem fumar, mas não se pode exigir muito de um peão ao qual se deu um fuzil e que foi convertido num soldado da noite para o dia. Tampouco se pode exigir de todo o mundo que tenha o finíssimo ouvido da mais extraordinária espiã internacional

Dois minutos mais tarde, Brigitte deixava-se cair junto a León Salvatierra e Héctor Benavente, que quase não lhe prestaram atenção, tão absortos estavam escutando a conversa que tinha lugar na cabana.

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Brigitte tirou o pequeno auricular do ouvido de Héctor. — Que está havendo? — perguntou. — Feliciano Santander assegura que estou morto. E diz

que o ataque deve realizar-se amanhã de manhã, em plena luz, justamente quando ninguém o esperaria. Quer que desembarquem em Ciudad Andina e se apoderem do Ministério... Está louco: ele sabe que esses homens não poderão consegui-lo. Nossos soldados...

— Claro que ele sabe muito bem. O que quer é que a rebelião seja levada avante, mas que fracasse. Continue escutando.

— Mas se você quer ouvir... — Não. Tudo está sendo gravado, de modo que poderei

ouvi-lo quando me convenha. Mas vejamos o que diz Salvatierra.

— E assombroso — disse ele — como este aparelho... — Falemos de algo mais interessante — sorriu Brigitte. — Bem... Santander está lá, falando com alguns oficiais

coloniais das ilhas. Há outros que não quiseram participar da rebelião: Gálvez, Maresma, Portillo, Carballo... Estão todos prisioneiros. Os rebeldes temem por suas vidas se fracassarem, mas Santander assegura-lhes que isso está previsto, que serão perdoados.

— Ele pode perdoar rebeldes? — Claro que não. Esta é uma prerrogativa do Presidente.

Santander está enganando a todos... Diz que em Andina se prepara uma manobra política que atrasará de muitos anos a independência das ilhas caso eles não atacarem o quanto antes. Maresma, um dos oficiais fiéis, interveio na conversa: pede a seus companheiros que desistam desta loucura e que confiem em mim, que eu sei melhor que ninguém o que

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convém ás Ilhas Coronadas. Um dos rebeldes declarou-se de acordo com ele, mas replicou-lhe que eu pouco posso fazer por umas ilhas que estão condenadas a ser eternas colônias, e que, portanto, atacarão amanhã cedo...

— Divisão de opiniões... — sorriu Brigitte. — Parece que Santander só conseguiu enganar alguns. Em parte, compreendo esses rebeldes que não querem ser uma colônia. Que tal são eles como oficiais?

— Isso é que é terrível — disse Salvatierra. — São homens excelentes, miss Montfort. Estão agindo de boa-fé, enganados por esse maldito Santander. O diabo que o carregue.

— Carregará — disse friamente “Baby”. — Agora, voltemos ao mar.

— Ao mar? — estranhou Salvatierra. — Mas estamos ouvindo algo tão interessante...!

— Que está sendo gravado. Enquanto nos afastamos mais de dez milhas, este aparelho continuará em marcha, de modo que poderemos ouvir tudo quando quisermos. Voltemos à lancha. Quero que saiba que Feliciano Santander tomou precauções para não ser reconhecido pelos “soldados” rebeldes

— Por que precauções? Porque quando seus planos estiverem cumpridos, todos

esses oficiais, tanto os traidores enganados como os fiéis, serão assassinados, para que jamais possam dizer que ele apoiou a rebelião. E elementar, señor Salvatierra. E como nenhum dos “soldados” sabe quem é o misterioso visitante, tudo sairá na medida de seus planos.

— Miserável! Eu o matarei como um cão! — Boa idéia — aprovou Brigitte. — Vamos matá-los...

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— Vamos...? — Matá-lo señor Salvatierra — sorriu ela. — Ele

merece a morte com todas as honras. Voltemos à lancha. Vamos, Héctor.

* * * — Ai vem a lancha — murmurou Benavente. — Vejo-a muito bem. Esperemos que passe perto de

nós. Quando nos quiserem ver será tarde demais... para eles. Estavam os três na pequena embarcação de León

Salvatierra, com o motor parado, esperando. A espera terminara. Feliciano Santander concluíra sua conferência na Ilha Corbacho e regressava a Andina, ao continente. Via-se a esteira de prata que sua lancha ia deixando no mar e ouvia-se-lhe o possante motor, cada vez mais forte, mais perto.

Brigitte, ainda de biquíni, tinha nas mãos o fuzil de cano de alumínio e seus formosos olhos estavam fixos no barco que vinha em linha reta para eles, a ponto de parecer inevitável o choque. Os olhos azuis reluziam como os de um felino emboscado à espera da presa. O fuzil ergueu-se, uma extremidade apoiada a seu ombro, a outra apontando para a lancha. A de León Salvatierra balançava mansamente sobre as ondas, mas “Baby” era capaz de disparar de uma “montanha russa” e acertar no alvo.

E o alvo estava cada vez mais perto, mais perto, mais perto...

Pof... León Salvatierra e Héctor Benavente viram muito bem. a

silhueta de Feliciano Santander, sozinho na lancha, erguendo os braços para o céu, deixando solto o volante. A embarcação pareceu saltar, depois continuou dando

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guinadas, fazendo um percurso em ziguezague, como se fosse virar de um momento para outro. A silhueta de seu tripulante havia desaparecido.

— Agora, Salvatierra, alcance-a! O motor da pequena e veloz lancha azul rugiu

imediatamente, impulsionando-a empós da outra, maior e mais pesada. Pouco a pouco, a distância foi diminuindo. Numa das sacudidelas, o volante da lancha grande pusera em ação o piloto automático, de modo que agora ela seguia uma impecável linha reta.

— Mais perto! — gritou “Baby”. — Mais ainda! Mais! Salvatierra tinha as mandíbulas cerradas e os olhos

apertados. As duas embarcações estavam quase se tocando, correndo à mesma velocidade. A espuma levantada pela primeira saltava sobre eles, como uma chuva furiosa...

— Só um pouco mais, León! E, súbito, Brigitte saltou para a outra lancha, sem hesitar.

Durante um segundo, Benavente e Salvatierra, alarmados, viram-na desaparecer, não sabendo se ela caíra na coberta ou se fora lançada pela borda do outro lado, afundando no mar. Uma queda perigosa, àquela velocidade. Mas, finalmente, os dois homens puderam chegar à conclusão de que a belíssima miss Montfort não era pessoa por cuja segurança tivessem que se preocupar. Viram-na erguer-se, já empunhando o volante. E segundos após a grande lancha se detinha.

Salvatierra encostou a sua, detendo-a também. E os dois estremeceram quando ela soergueu Feliciano Santander, puxando-o pelos cabelos, como se fosse uma peça de caça.

— Voilá le cochon — disse “Baby”. — E agora, Salvatierra, vamos mandá-lo para o inferno.

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Levou-o até a borda. Fê-lo passar por cima e empurrou-o. Ouviu-se o ruído do corpo ao cair na água. Fim. O cochon, o porco, ia a caminho do inferno.

Depois. Brigitte amarrou a lancha grande à popa da pequena e voltou para junto de seus amigos.

— Vamos àquela gruta. Deixaremos lá as lanchas, por enquanto. Ainda temos muito que fazer.

— Santo Deus! — exclamou Salvatierra. — Todas as enviadas da ONU são como você?

— Queridos riu “Baby” nem na ONU nem em todo o mundo há ninguém como eu. Voltemos ao Continente.

CAPÍTULO OITAVO

Champanha com cereja Bandeiras brancas

Um beijo para o mar... Os dois carros negros e grandes detiveram-se no pátio de

“La Riata” e, como na noite anterior, os soldados apearam a toda a pressa, ocupando os lugares estratégicos. Do primeiro carro desceu Alberto de Mendoza, passando junto ao suboficial em posição de sentido que mantinha aberta a porta. O jovem e elegante capitão Saldaña aproximou-se do Presidente, que lhe disse algo muito rapidamente e dirigiu-se para a casa. Na ampla janela da arcada principal lhe pareceu ver miss Montfort, sentada diante de uma mesinha, bebendo alguma coisa..

Héctor Benavente logo saiu ao seu encontro e Alberto de Mendoza não lhe deu tempo para saudá-lo.

— Que aconteceu, Héctor? Por que me chamou em hora tão matinal, com tamanha pressa?

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— Por favor, Alberto, acompanhe-me. Temos algo muito importante a comunicar-lhe.

— Mas... — Tudo a seu devido tempo, peço-lhe. Indicou o interior da casa e o Presidente entrou, nervoso,

inquieto. Benavente levou-o para a grande sala, na qual, diante da janela, estava efetivamente Brigitte, com uma taça de champanha na mão esquerda, a direita graciosamente abandonada sobre o regaço.

— Bom-dia, senhor Presidente... Uma taça de champanha com cereja?

Alberto de Mendoza nem sequer respondeu. Seu olhar estava fixo, entre estupefato e furioso, no último personagem da reunião matinal: León Salvatierra, de pé junto a Brigitte Montfort, também com uma taça de champanha na mão.

— Que faz aqui esse traidor? — perguntou enfim Mendoza.

— É exatamente disso que se trata, Alberto — explicou Benavente: — León não é o traidor.

O Presidente de Andina voltou-se irritado para o matador de touros.

— Que está dizendo? Todos sabemos que... — Peço-lhe que nos ouça com calma — apaziguou

Benavente. — Será o melhor modo de entender-nos. — Está bem. Eu o escuto, Héctor. — Obrigado. Temos provas concretas e indiscutíveis de

que o traidor era Feliciano Santander. Ele quis — Feliciano! — exclamou Mendoza. — Vocês estão

loucos!

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— Asseguro-lhe que não. A coisa é simples: ele queria que as Ilhas Coronadas não fossem independentes... Não por enquanto, pelo menos. Por isso, organizou a revolução, enganando alguns oficiais coloniais, simulando estar do lado deles. Enganou todos... ou quase todos. Temos provas disso. Mais ainda: temos provas de que esta manhã, em plena luz do sol, talvez dentro de uma hora ou duas, esses oficiais vão empreender a invasão de Andina, começando pela Ciudad Andina, na qual querem ocupar o Ministério.

— Mas...! — É a verdade, Alberto, garanto-lhe. — Mas não compreendo... Por que faria Feliciano uma

coisa assim? — Ele fez mais ainda. Como não queria que eu fosse

eleito Presidente, atentou contra minha vida. Ontem, por duas vezes, tentaram assassinar-me.

— Não posso acreditar nisso! — Temos o assassino que Feliciano Santander me

enviou, Alberto. E um de meus peões, Obdulio Ferrán. Ele dirá a verdade quando for julgado.

— Quero ver Feliciano... — murmurou Mendoza. — Onde está?

— Está morto. Foi considerado culpado de traição, de ambição e de ordenar diversos assassinatos. Depois de reconhecida sua culpa, foi executado... imediatamente. Está agora no fundo do mar.

Alberto de Mendoza cambaleou; estava transtornado, pálido...

— Será melhor, senhor Presidente, que aceite uma taça de champanha — sugeriu Brigitte. — Dizem que o champanha é bom a qualquer hora. E quando está bem

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gelado e leva uma cereja, não se pode pedir mais. Beba: lhe fará bem.

Mendoza aproximou-se da mesinha e recebeu com mão trêmula a taça que “Baby” lhe oferecia. Aturdido, tomou um gole, depois outro tão longo que quase esvaziou a taça. Ficou imóvel, a cabeça caída sobre o peito durante segundos em que ninguém fez o menor comentário.

— Não posso acreditar... — murmurou por fim. — Por que Feliciano quis fazer essa revolução e matar

Héctor? Não compreendo! Por quê? — Porque as Ilhas Coronadas são ricas em minério de

urânio — explicou Benavente. — O que significa muitos milhões de pesos.

— Mas esses milhões não representariam nada para ele e sim para o pais.

— Para que país? — Para Andina, naturalmente, até que as ilhas tivessem

obtido sua independência. — Certo. Mas para que se conformar com uns quantos

meses de exploração, podendo ter tudo durante muitos anos? Por isso, para evitar que as ilhas auferissem os benefícios depois de sua independência, quis atrasar esta preparando uma revolução, enganando a todos. Uma revolução que significaria mais vinte e cinco anos de colonialismo para as Ilhas Coronadas.

— Mesmo supondo que seus planos tivessem saído bem, Feliciano não poderia beneficiar-se dessa exploração, Héctor.

— Não? — Claro que não! Os benefícios teriam sido para o país,

para Andina, não para ele.

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— Bom... Digamos que ele esperava dar umas migalhas ao país e ficar com a maior parte do dinheiro que pagassem nossos compradores de uranita.

— Absurdo. Acham que eu teria permitido isso? — Achamos, Alberto. — Como? Que está dizendo, Héctor? — Estou dizendo que antes de ser... executado, Feliciano

Santander nos revelou que todo o plano era obra de ambos: de você e dele. Por isso queriam matar-me, para evitar que alguém pudesse tirá-lo da presidência do país. Assim, governando os dois, sem ninguém que lhes pudesse pedir contas, ambos iriam enchendo seus bolsos, até cansar-se. Então, tudo quanto teriam que fazer seria esperar novas eleições, você não se apresentaria, e abandonariam Andina para ir viver como milionários em qualquer outro país: Estados Unidos, Brasil, Argentina... Ou talvez mesmo na Europa. Não é verdade, Alberto?

— Estão loucos... — tremeu a voz de Mendoza. — Completamente loucos!

— Eu creio que não. Temos gravada a conversa de Feliciano Santander, na qual explica toda a verdade a respeito de você e dele, seus planos, tudo... Tudo está gravado com a própria voz de Feliciano Santander, Alberto.

— Mentira! — Acha que é mentira? Muito bem: ouçamos então a

voz de Santander, explicando tudo detalhadamente. Olhou para Brigitte, a qual, sorrindo docemente, pos em

marcha o pequeno receptor-gravador. Imediatamente soou a voz de Feliciano, em sua conversa da noite anterior com os oficiais coloniais, na pequena cabana da Ilha Corbacho.

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— Parem com isso! — gritou Mendoza. — Parem imediatamente!

Uma pequena pistola havia aparecido em sua mão direita, mas ninguém se perturbou demasiado. “Baby” deteve a marcha do aparelho, mas, sem que o Presidente se desse conta, apertou o botão que trocava a trilha da fita, de modo que a gravação começou ato continuo... em prosseguimento à obtida desde a chegada de Alberto de Mendoza.

— Por que nos aponta essa pistola, Alberto? — perguntou Héctor.

— Vocês... vocês puseram tudo a perder... — Certamente. Então, admite que tudo quanto eu disse é

verdade? — É... É verdade! Mas vocês... Nenhum de vocês vai

viver depois de me ter feito fracassar! — Entendo que tenciona assassinar-nos, Alberto? — Sim... Sim, é isso o que vou fazer... Depois chamarei

o capitão Saldaña e lhe direi que tentaram matar-me, combinados com esse traidor de León Salvatierra. Ninguém duvidará da palavra do Presidente de Andina! A invasão será efetuada, as ilhas continuarão sendo colônia e só eu é que tirarei proveito disso! Alegro-me que Feliciano esteja morto! Alegro-me!

— Isso está muito mal, senhor Presidente — sorriu “Baby”.

— Você... você cale-se, ou... — Senhor Presidente, não me agrada a idéia de morrer,

mas menos ainda sua descortesia. — Minha descortesia?

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— Com efeito. Conceda-me ao menos a satisfação de fazer as honras ao meu champanha, ao meu convite ela ergueu sua taça. — Que tal se brindarmos ao sucesso de seus planos?

— Por que não? — sorriu secamente Mendoza, que ainda tinha a taça na mão. — E uma excelente idéia. Brindemos... Vocês também, Salvatierra e Benavente. Levantem suas taças e brindem ao êxito de meus planos! Vamos!

Héctor Benavente e León Salvatierra ergueram suas taças, olhando torvamente para Mendoza. Pareciam resistir ao brinde, mas um movimento ameaçador da pistola os convenceu. Fora, no pátio, os soldados e o capitão Saldaña permaneciam completamente alheios a tão interessantes acontecimentos.

— Cavalheiros, não resistam — aconselhou docemente Brigitte. Afinal de contas, é nossa última oportunidade de tomar champanha com cerejas. Senhor Presidente, muito sucesso no futuro! Saúde!

Foi a primeira a esvaziar a taça, sem deixar de sorrir, com evidente satisfação. Para alguém que ia morrer dentro de poucos segundos, não podia estar mais feliz e contente... No fim, a cereja caiu em sua boca e ela mastigou-a com grande prazer, emitindo um suspiro de deleite. Os outros, após tomar um gole, permaneciam sorumbáticos, sob a vigilância de Mendoza.

— Oh, senhor Presidente, vai deixar a cereja? Mas se é deliciosa! Mmmmm...!

Alberto de Mendoza levou novamente a taça aos lábios e a cereja deslizou até sua boca, onde foi triturada

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imediatamente. Um sorriso de feroz satisfação estampou-se em seu rosto.

— Devo admitir, miss Montfort, que seu sangue-frio é extraordinário.

— Obrigada. Está boa a cereja, don Alberto? — Ótima! Realmente ótima! — Tanto assim? Creio que um pouco menos... Acontece

que me permiti injetar-lhe uma pequena dose de veneno, senhor Presidente, caso o meu truque de acusá-lo surtisse efeito. Era natural que... Oh! Está sentindo alguma coisa, don Alberto?

Alberto de Mendoza tinha empalidecido subitamente. Cambaleou e Héctor aproveitou a ocasião para retirar-lhe velozmente a pistola, enquanto o Presidente de Andina caia de joelhos, mais lívido que nunca...

— Eu estava dizendo, senhor Presidente, que era natural que Feliciano contasse com o melhor apoio possível para seus planos, e ocorreu-me suspeitar do senhor. Era o lógico, naturalmente. Além disso, já sou uma espiã veterana, farta de truques inocentes... Que lhe pareceu o da cereja envenenada, don Alberto?

Don Alberto já estava caído, de bruços. Sua cabeça ficou de lado, com os olhos muito abertos, fixos na espiã internacional. León Salvatierra inclinou-se sobre ele, examinou-o e murmurou:

— Está morto. — Isso quer dizer que o truque da cereja envenenada é

muito bom. Terei que utilizá-lo mais vezes. Mais champanha, cavalheiros? Garanto-lhes que o champanha não contêm veneno...

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— Deus! — exclamou Benavente. — Como pode você ser... assim?

— Uma questão de temperamento e mentalidade. Depois, não vou desperdiçar estas últimas gotas de “Perignon”.

Derramou-as em sua taça, tranqüilamente. Salvatierra e Benavente olhavam-na como hipnotizados. Ela pareceu lembrar-se, no momento em que sorvia um pequeno gole de champanha, e apontou para eles.

— Está tudo preparado? As lanchas grandes com bandeiras brancas, os alto-falantes para que estas gravações possam ser bem ouvidas no mar...? Tudo pronto?

— Os dois assentiram com a cabeça. — Você poderá tranqüilizar e convencer o guapo capitão

Saldaña, Héctor? — Posso, é claro! — A caminho, então... Vamos, queridos! Temos que

evitar que centenas de homens morram esta manhã... Que estão esperando para correr ao mar e proceder de acordo com minhas instruções?

Os dois saíram correndo da casa. Fora, ouviram-se vozes, gritos, os motores dos carros... Brigitte Montfort terminou o champanha, foi ao seu quarto, preparou sua bagagem, deixando de fora as duas garrafas de champanha que tinham sobrado. Desceu à sala, onde Luzia estava a ponto de desmaiar, depois de ter ouvido tudo e certamente visto, de algum esconderijo. Brigitte deixou as garrafas sobre uma mesinha, após escrever nos rótulos de cada uma os nomes respectivos de León Salvatierra e Héctor Benavente. No rótulo deste, acrescentou: “Por favor, venda o urânio ao Tio Sam e a ninguém mais que a ele.”

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Lançou um olhar indiferente ao cadáver de Alberto de Mendoza, apanhou suas maletas sem esperar ajuda de ninguém e dirigiu-se para a porta da bonita fazenda do matador de touros.

— Adeus, Luzia — sorriu. — Adeus, señorita... Que Deus a acompanhe... E que a

Virgen del Poder... Certamente, quando Luzia terminou sua despedida,

“Baby” já estava cruzando os verdes campos com seu automóvel alugado no dia anterior. Missão cumprida, com a rapidez fulminante que a caracterizava.

Voilá. Mas, ainda ocorreu algo mais. Uma hora mais tarde ela

se deteve num ponto da estrada que levava de Ciudad Andina ao aeroporto internacional, estrada que se estendia junto ao mar, ao longo das praias do continente sul-americano.

E no mar havia numerosas embarcações de diversos tamanhos, cheias de “soldados” de chapéu de palha. Rumo a estas embarcações, navegavam duas lanchas com bandeira branca, procedentes de Ciudad Andina. E no centro de cada uma delas via-se um homem de pé, junto a um enorme alto-falante.

E a voz de um deles chegou á agente “Baby”, em rajadas, segundo os caprichos da brisa:

— Ilhéus andinos! Quem está lhes falando é Héctor Benavente... não vai haver guerra... traidores que enganavam todos vocês... eu lhes prometo a independência...!

Brigitte, antes de pôr novamente o carro em movimento, atirou um beijo para o mar.

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— Até a vista, matador... Ou já devo dizer señor Presidente?

PALAVRAS, APENAS PALAVRAS... Charles Pitzer, malgrado sua caturrice, estava

procurando adjetivos para qualificar o último “trabalhinho” da agente “Baby”.

— Fabuloso, incrível, sensacional... Brigitte ergueu a cabeça, deixando de contemplar suas

maravilhosas pernas. Estava de baby-doll, sentada no sofá e, realmente, não parecia satisfeita.

— Palavras, tio Charlie, apenas palavras... Além do mais, nem sequer tive tempo de apanhar sol. Tudo terminou tão cedo, eram todos tão ingênuos... Não lhe parece que o bonito tom dourado da minha pele está clareando demais?

— Mas você fez algo extraordinário, Brigitte! — A que se refere? — Pelo amor de Deus! Você foi enviada para tentar

resolver um assunto delicado... Nem sequer isso! A verdade é que foi a Andina como simples observadora.

— Terei que recorrer ao sol artificial... embora não o tolere. Gostaria de estar tão bronzeada como Héctor Benavente... Bem, não tanto, pois aquele homem parece um índio... Tio Charlie, você viu alguma vez o torso e as pernas de um matador de touros que já tivesse levado sete chifradas?

— Não... O Secretário Geral da ONU mandou as mais calorosas felicitações à CIA, e em especial à agente “Baby”. Tudo resolvido em dois dias, como se não fosse nada...!

— É terrível. — Terrível? A ONU lhe manda felicitações e...

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— Aquelas feridas de bordas salientes, tão cruéis... A partir de agora, tio Charlie, creio que vou simpatizar muito com os matadores de touros. E até irei a Andina assistir a algumas corridas na praça... Como foi que disse o velho Macário? “Las Tientas dei Santissimo”! Gostaria de ir comigo, tio Charlie?

— Você não está dando importância às felicitações que...!

— Palavras. Já lhe disse que são apenas palavras... Afinal de contas, querido, tudo quanto fiz em Andina foi convidar alguns senhores a tomar champanha com cereja...

A seguir:

O ÁS DE COPAS Um pistoleiro acredita no seu próprio gatilho até certo

ponto, mas tudo pode acontecer...

(C) 1968 – LOU CARRIGAN 400618 / 401007

Brigitte Montfort é enviada a Andina, um país da América do Sul como observadora atendendo a um convite da ONU,

que teme uma levante armado para fracionar do país.