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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Todos os direitos reservados paraMárcio Martelli, Editora In House, Jundiaí, 2008.

Proibida a reprodução total ou parcial desta obrasem a prévia autorização do autor.

Editor responsável: Márcio MartelliProjeto da capa: Juliana Bacochina Projeto editorial: Márcio Martelli

Assistente de arte: Guilherme CatalanoAssistente administrativo: Ruth de Almeida Rodrigues

Revisão: Ivanira de Souza Lima DadaltFoto da contracapa: Dago Nogueira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Índices para catálogo sistemático:1. Contos : Literatura brasileira 869.932. Poesia : Literatura brasileira 869.91

CDD-869.93- 869.91

Martelli, Márcio Sangue: literatura e outras loucuras / Márcio Martelli. --Jundiaí, SP : Editora In House, 2008.

ISBN 978-85-98354-72-9

1. Contos brasileiros 2. Poesia brasileira I. Martelli, Mário

Publicado pela Editora In HouseRua João Ferrara, 100 - Sala 2 - Jardim Cica - Jundiaí / SP

CEP 13.206-714 - Fone/Fax: (11) 4607-8747 / 4586-9167www.editorainhouse.com.br - [email protected]

E D I T O R A

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

DedicatóriaDedico este livro à vida, fonte de tudo no mundo.

É uma homenagem à Criação e ao Criador.

Pobres de nós, meros mortais que não entendemos a real razão de vivere por tudo lamentamos sem conseguir ver a beleza do alvorecer!

Que este livro restaure nas pessoas a verdadeira arte da vida!

Que a esperança renasça!

E que o amor brote e perdure em nossos corações!

Dedico este livro a todos os leitores e

a minha querida irmã Alessandra e ao meu pai Elyzeu.

Fiquem com Deus,

pois Ele sempre está com todos nós!

Márcio Martelli

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

O porquêPenso que apenas deveria contar uma história, mas falar sobre o

que se ando com tão pouco lirismo? Estou prático, eu que sempre gos-tei de degustar tudo, “cada coisa ao seu tempo” − ele me diria. “Agoraé o seu tempo de colheita”, todos insistem tanto e tanto nisso quetambém passei a acreditar.

A colheita só é farta quando continuamos a plantar e semear. Eisso requer disciplina, e sou péssimo nisso. Esforço-me, mas que nada!Acabo seguindo meu próprio relógio que tem ritmo distinto e, emboranão se atrase, também não se adianta.

Ouço Bethânia, na verdade Lupicínio, cantado por ela e penso emSangue. Será um título muito forte? Será que vão achar que desejomatar alguém ou será que vão enxergar aquilo que eu vejo e não con-sigo exprimir com as poucas palavras que conheço e julgo dominarperfeitamente?

Sangue é minha vida, são as palavras pulsando e correndo dentrode minhas veias. É a vida gritando e é o elo que me leva até perto devocê. É vida. É toda hora, todo segundo. É o intervalo onde escuto omeu coração que bate incessante, como a me dizer: “eu amo você, euamo você, eu amo...”

Márcio Martelli

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Beba domeu sangue

“Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,E vós amais o que é fácil! Eu amo o longe e a miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...”(Cântico Negro, de José Regio)

Nas artérias, veias e vasos de Márcio Martelli correm letras juntoao seu sangue. Letras inesgotáveis em forma de prosa, poesia, crônicae conto. Imensurável sua ânsia de expressar-se, de expor a naturezade seus sentimentos, de confessar-se com o leitor. Elaborado em formaque o tempo pode ou não perpetuar, o conteúdo já se eternizou ao serrevelado por esse escritor que não cansa de ser tudo o que quer. Suassensações, pensamentos, dúvidas, dores, prazeres e tristezas, ausên-cias e presenças fortes vão se desnudando ao sabor de seu estado deespírito. A mim me parece que sem preocupação cronológica ou mes-mo temática, ainda que uma seqüência exista a permitir um alinhavodo que se lê. Mas, acima de tudo, há o livre pensar, o desejo desenha-do no momento, o sabor da autenticidade. Tudo muito intenso.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Quando Márcio fala de um tempo de eterna saudade, sentimentoíntimo com certeza, não me cabe duvidar. Constato, no entanto, umasaudade que não o paralisa. Ao contrário, impulsiona-o a mil e umaatividades. Sua saudade é alavanca de procura, de busca, de encon-tro, de seguir avante. E quando o passado se lhe repete em diversasocasiões, nem por isso afeta o seu estar aqui, lá, ali, onde quer queseja. Não afeta sua forma de ser. Ele fala em destino. Digo que eleconstrói o seu. Não está preso ao passado e nem por isso vive sem ele,nem sem saudade.

Márcio clama, por vezes, por um amor desobrigado de compro-missos que dure somente o que tenha que durar. Clama por loucura,talvez. O aventureiro toma-lhe o coração. Contudo, a edição do livro,os arremates da diagramação, os contratos e prazos a cumprir vão sesucedendo com a loucura do ofício a ser cumprido. O aventureiro, so-nhador, não impede a civilizada mente que, igualmente sonhadora,desbrava espaços e lugares ao sol. Tino e realidade. Sonhos realizados.Desejos sublimados.

Inspirado no sangue que se esvaiu sem que ninguém o estancas-se, um vampiro tomou-me a forma e, consciente, divaguei por sobremeus sentimentos respingados de uma singela visão de Márcio. Aoléu. Impressões que se colaram em mim. Nada muito racional, espero.Nada muito superficial, espero mais ainda. Apenas o livre pensar que ésó pensar em Márcio. Uma transfusão de letras, ritmos, melodias, mú-sica, enfim, ao gosto de Márcio.

Picôco Barbaro

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Breve biografia sobreMárcio Martelli

Márcio Martelli nasceu em Jundiaí aos 5 de maio de 1968. Desdecriança apresentou predileção pela leitura de gibis e livros infantis. Es-tudou o Ensino Fundamental e o Ensino Médio na escola pública, sendoque este último foi cursado na EEPSG Ana Pinto Duarte Paes, quandoteve como professora de Língua Portuguesa a sra. Ivanira de SouzaLima Dadalt, grande incentivadora de seu talento no mundo das letras.

Desde criança também mostrou aptidão para o desenho, a pinturae para o talento criativo que lhe rendeu um diploma no curso de Comu-nicação Social – Publicidade e Propaganda, pela Faculdade CásperLíbero.

Desde os 17 anos trabalha com publicidade e propaganda, primei-ramente em Jundiaí, na extinta Davidson e em empresas de São Paulo,como o Grupo Imarés, onde teve a oportunidade de trabalhar com aComputação Gráfica e com a editoração eletrônica do livro DicionárioMusical Brasileiro, de Mário de Andrade, obra póstuma editada em1989, pelo IEB, Instituto de Estudos Brasileiros, USP. Foi seu primeirocontato com a produção editorial de um livro.

Nesta mesma época fez o curso de Desenho na Escola Paname-ricana de Artes, em São Paulo, onde aprimorou seu dom para as artesplásticas.

Em 1990, resolveu trazer seus conhecimentos para Jundiaí e foium dos precursores do uso do computador para fins publicitários.

Iniciava-se uma nova etapa em seu trabalho como publicitário.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Márcio, vendo a oportunidade, abriu sua agência de publicidade e pro-paganda, que atendeu, entre outros importantes clientes, as indústriasVan Melle e a Meias Aço.

Ao mesmo tempo, produzia também informativos para clubes eempresas, destacando a importância da comunicação de uma institui-ção com os seus clientes internos e externos. Neste âmbito, semprecontou com a presença de sua irmã, Alessandra Pezzato, formada emLetras pela USP, que em 1995, após 4 anos em que o auxiliava na em-presa, tornou-se sua sócia, ampliando ainda mais o perfil editorial deseus trabalhos.

Em 1996, a Editora In House lançou, em parceria com o MaxiShopping Jundiaí, a revista Informe-se Maxi Shopping, mostrando moder-nidade e pioneirismo na edição de revistas na cidade. A revista é edita-da até hoje, 12 anos depois do lançamento de seu primeiro número.

Não tardou muito que shoppings de outras cidades também seinteressassem pelo trabalho da Editora, como o Shopping Ibirapuera, oOsasco Plaza Shopping e o Shopping Interlagos.

Também prestou assessoria de comunicação e marketing a diver-sas empresas de Jundiaí, destacando a Rede de Supermercados Ir-mãos Russi.

Em 2000, visando a seu aprimoramento profissional, Márcio cur-sou o MBA em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas, o que lherendeu, além do cobiçado diploma, um contrato de assessoria deMarketing para um dos maiores grupos de Transporte Rodoviário dopaís, o Grupo Santa Cruz, com sede em Mogi Guaçu, interior do Estado.

Alguns anos depois, visando à necessidade de um informativoque abrangesse notícias sobre a cidade, Márcio lançou a revista JundiaíCentro, hoje In Jundiaí, outro sucesso editorial da In House.

Embora Márcio tivesse gostado muito da experiência de trabalharna editoração de livros em São Paulo, somente em 2003 é que surgiu,

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

aqui em Jundiaí, uma oportunidade muito interessante. A artista plásti-ca Maria Alice Vilhena Coelho, então presidente da AFLAJ – AcademiaFeminina de Letras e Artes de Jundiaí, convidara-o para que fizesse aColetânea anual da Instituição. O livro ficou muito bonito e, desde en-tão, a Editora In House se responsabilizou por esta Coletânea.

A Editora In House, além de oferecer as revistas segmentadas,também colocava toda sua experiência na edição de livros. Márcio esua equipe, além do relacionamento existente entre as grandes edito-ras de São Paulo, como Melhoramentos, Saraiva, Pensamento, Cultrixe outras, puderam cada vez mais melhorar o trabalho oferecido, tornan-do-se referência na cidade.

Além disso, Márcio, visionário que sempre foi, decidiu lançar Co-letâneas para divulgar os autores jundiaienses, escritores que nem sem-pre tinham a oportunidade de ter seu livro individual. As coletâneas daIn House sempre foram muito bem-aceitas e com a participação deescritores de talento e prestígio na cultura jundiaiense.

Desde o primeiro livro, em 2003, a Editora In House já apresentaem seu catálogo mais de 90 títulos, inclusive o seu primeiro livro indivi-dual de prosa e poesia, Para sempre, lançado em 2006.

Antes deste trabalho solo, Márcio apresentou seus textos em di-versos livros, como: Água é vida: um olhar sobre os recursos hídricosde Cabreúva, Meu pai foi ferroviário 1 e 2; e nas antologias Uma cidadecontada em verso e prosa, De prosa com a poesia, Sempre é tempo deNatal, Animais amigos e importantes 1 e 2, Nossas mulheres etc.

Um dos trabalhos mais recentes como co-autor e editor é o livroFesta Italiana di Jundiaí – 20 anos, que retrata toda a importância his-tórica dessa Festa na cidade e a participação da colônia italiana emJundiaí. Um livro que demandou pesquisa e muito esmero em suaconcretização e cuja tiragem foi doada à Igreja Sagrado Coração deJesus, do Bairro da Colônia, para que a venda se revertesse às obrasassistenciais em benefício da comunidade.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Aliás, uma das marcas da editora e de seus colaboradores é apreocupação com o lado social; suas obras e eventos sempre contêmações sociais, seja em verba arrecadada para Instituições beneficentese ONGs, seja em eventos que estimulem ações sociais ou, ainda, empublicação de obras cujos temas sugiram reflexão e início de uma mu-dança interna e externa, visando a melhorias para a sociedade.

Hoje, com o trabalho reconhecido pelo pioneirismo e qualidade,Márcio sabe que há muito que fazer pela cultura e, principalmente,pelo incentivo à leitura em Jundiaí, e o que já conseguiu foi graças aoseu trabalho lá atrás, há 20 anos, quando decidiu pela sua profissão.

Ele ainda sabe que nada seria possível sem a ajuda do Criador,que o abençoou, e também sem a ajuda de várias pessoas, pois todo opercurso de sua vida aconteceu ao lado de grandes amigos, que sem-pre o apoiaram e que nunca deixam de prestigiar seu trabalho em prolda cultura na cidade.

Alessandra Pezzato*

* Este, além de ser um dos últimos textos que minha irmãAlessandra produziu (por volta de maio/junho de 2007), ela o fez emsegredo para uma homenagem que a Câmara de Vereadores de Jundiaífaria à minha pessoa. Meses depois ele foi encontrado entre os arqui-vos do seu computador. Para mim é mais do que uma grande prova deamor. É a certeza de que nosso caminho por esta estrada foi há muitotraçado pelas linhas do destino. Obrigado, Alê, por tudo o que vivemose conquistamos juntos. Ainda iremos nos encontrar e continuar o nossotrabalho pela eternidade.

Márcio Martelli

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Cenas da vida“Sei que falo muita coisa

E sei que me repito

Mas se insisto em idéias

É porque me reafirmo nelas

Sou o que sou”

Márcio Martelli

Conviver com Márcio Martelli é no mínimo uma aventura para láde instigante. Você não pode ficar um minuto no seu aconchego queele vem tirá-lo rapidinho, colocando nossas mãos para trabalhar, o cor-po para sacolejar e a cabeça para pensar. Realiza mil coisas ao mesmotempo, impossibilitando-nos de encontrá-lo quando precisamos de suapalavra (risos). Mas ao falar de suas palavras, elas tocam-nos com suasimplicidade e naturalidade de ser. A sinceridade contida em seus tex-tos faz-nos perceber os sentimentos na sua mais pura expressão. Aemoção de seus versos traz-nos à tona o que há de mais intenso, con-troverso e único.

Quando li esta sua nova criação, senti-me com se estivesse assis-

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

tindo às cenas de um filme de sua vida conhecendo a simbiose da suapessoa com a de poeta e escritor. E, quando me vi envolta em suaobra, compreendi ainda mais o poder que o artista tem de retirar-nos denós mesmos. Palavras que me sensibilizaram, versos que me remexe-ram, parágrafos que me extasiaram.

“...e nada sabia

nada

nada

eu nunca soube...”

A sua bela pessoa consegue nos mostrar, em sua caminhada, ovalor de sermos autênticos, persistentes, guerreiros e, mesmo à frentede obstáculos, amantes da poesia. E chama-nos a escutar sua músicano ritmo que a vida toca, transformando em deleite tudo que ela nosoferta em seu percurso.

“...Encorajando-me a caminhar sozinho

Neste pedaço de vida que é só meu

Nesta longa jornada que é a vida

Neste mundo onde moro

E posso chamar também de meu”

Mara Lígia Biancardi

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Sobre emoçõesingurgitadas...

Falar sobre o Márcio? Não, não se fala sobre alguém. Todavia épossível fazer um esboço recheado de observações do cotidiano, dosmatizes da amizade, dos momentos vividos e compartilhados.

Somente o Márcio pode falar sobre si mesmo, com sua timidezcharmosa e repleta de um brilho indefinido e quase infantil no olhar,orgulhoso de suas conquistas.

Márcio fala profundamente sobre si quando escreve, esperandoque o alcancemos por alguns momentos nos versos de sua poesia ouquando proseia sobre sua rotina. Inspira-se ao escutar a música quetoca sua alma e o emociona em devaneios poéticos. Escreve sem serevelar por completo, sugerindo caminhos que o persigam e o encon-trem, feito um labirinto verde de emoções e maduro de sentidos.

Impetuoso na sua essência, apaixona-se fácil e elege suas musascom a velocidade própria do arrebatamento, recurso necessário paracompor seus versos apaixonados e cheios de adeus.

Desencanta-se com a crueza da rotina, mas, ainda assim, escre-ve sobre a dor de não existir no pictórico mundo dos sonhos, nos enle-vos que se fazem acompanhar das músicas que sempre escuta epermeiam suas composições literárias.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Ousado, questiona. Lírico, apela. Triste, desabafa. Apaixonado,deseja. Saciado, dispensa. E recomeça...

Ausentes do calor de outras mãos, suas mãos quentes e suaren-tas recriam começos e partidas, deságuam apelos que ensejam encon-tros, que buscam compreensão. Então, as linhas traçadas se tornamversos cheios de encanto e o inevitável tédio do dia-a-dia coloca omanto majestoso de crônicas sensíveis e bem traçadas.

Falar sobre o Márcio? Não, não se fala sobre alguém... Apresenta-se o poeta para que ele os convide a adentrar seu mundo.

Bem-vindos ao mundo de Márcio Martelli! Um universo particulare abissal que permite uma surpreendente viagem nesta nau capitanea-da por grandes e intensos sentimentos.

Josyanne Rita de Arruda Franco

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

E quem disse que homem não pode chorar, que não pode colocarà mostra seus mais íntimos sentimentos e reflexões, suas dores, suasdesilusões, seus medos?

A literatura de Márcio desmente tudo isso e nos deixa claro quetodo sentimento legítimo pode e deve ser revelado.

Escreve para poder suportar a carga de sua existência, para ex-travasar a sua dor e a saudade que o quer consumir. E ao mesmo tem-po nos fala das esperanças, dos sonhos, das inovações e do bem quedeseja fazer, não somente aos que ama, mas também àqueles quecruzarem seu caminho.

Finge esquecer o que não é possível esquecer, finge ignorar o quenão pode ser ignorado, finge desistir da vida, mas tem a ânsia de viverpara encontrar mais além a resposta para suas inúmeras interrogações.Seus textos são ricos em descrições dos próprios sentimentos, asse-melhando-se a painéis onde ele se movimenta dando vida a cada fraseescrita e a cada verso inspirado.

Brinca com as rimas em Fruta poesia, saindo momentaneamentede um estado quase depressivo, para revelar o menino puro de cora-ção, que um dia brincou de jogar bola e de esconde-esconde.

E em seguida nos surpreende com versos carregados de paixão,misturada a figuras poéticas quase transcendentais.

Quem disse quehomem não chora?

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Seu tempo é sempre curto para tudo que precisa fazer e maiscurto ainda para o que gostaria de fazer. Mas o Amor é a tônica de suaexistência, e no texto Uma carta para você é tão grande a carga emotivaque meus olhos se encheram de lágrimas que não pude segurar.

Revela em seus versos um lado espiritualista, que é a sua salva-ção. Precisa escrever, não pode parar. É pela palavra escrita que vaiamadurecendo seus sentimentos, colocando em ordem seus pensa-mentos e dando um sentido maior a sua vida. Ousa escrever com sin-ceridade, e nós, seus leitores, somos os grandes beneficiados, porquelevados a refletir na profundidade do sentimento humano e nos grandesenigmas que a vida nos apresenta dia após dia, desafiando-nos paraque encontremos as soluções.

Vá em frente, Márcio, sempre registrando suas imagens poéticase sua ótica da vida numa folha de papel ou numa tela de computador,empunhando as armas da coragem e da fé, mostrando a todos nós quea porta para a felicidade é estreita, mas não inexpugnável.

Flavia Cunha

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Trecho de Gota de sangue (Angela RôRô)

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Apenas escrevoEscrevo agora como quem pretende se limpar de uma sujeira que

há muito se acumulou no corpo. Eu me banho com as palavras que seencaixam neste texto e me perfumo com a poesia que exala, intoxi-cando-me.

Inerte, absorto, vou consumindo todas as letras como se fossemuma única palavra, um só pensamento.

E insisto em escrever como quem diz: não tenho rumo, não tenhoidéias, não tenho forças, não amo ninguém, não odeio... apenas escrevo!

E devo continuar a escrever até que olhe para o texto e diga:pronto!, agora posso enviar para que ela aprecie e me responda, comsua rajada de sentimentos que me embriagam, como se fosse um de-creto, uma notícia, uma lei... que sei, ousarei transgredir.

Mas, se assim escrevo, é porque existe quem leia as barbarida-des que fluem de minha mente confusa e que me deixam a pensar poralguns segundos... Isso mesmo! Alguns segundos. O tempo necessáriopara que eu possa fazer a ponte entre uma linha e outra, uma frasemeio dúbia e uma verdade absoluta.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Serei eu um escritor de palavras frívolas ou almejo fazer as lágri-mas se debulharem sobre as faces de meus leitores?

Repito, apenas escrevo...

E se escrevo tanto assim, não acabo me repetindo por um sómomento?

Estou enlouquecendo!

Estou fatigado!

Estou no afã de colocar neste texto aquilo que não quis falar paraninguém, inovar não ousei, revelar não pretendi e agora: eu me expo-nho!

Exponho-me e banho-me à luz de um abajur que invade meu quar-to com sua pouca luz deixando meus pobres olhinhos a tentar enxergaro papel que minhas mãos preenchem sem cessar.

Existe um Deus para as parcas palavras que aqui revelo?

E se existe esse Deus, como se chama? Por que não vem a mimagora e me abate com a sua fúria santa e enlouquecida de mim mes-mo, por somente tentar ser aquilo que acho que nunca serei?

Escrevo apenas por puro deleite de minha alma. Quero aportaraonde ninguém aportou − isso é impossível − e quero ver as saiasrodadas que escondem o seu pudor. Eu sei onde você mora! E tambémsei como chegar até você...

E também sei que ao findar esta página estarei com a alma lava-da em seiva de alfazema, perfume barato, presente de divindade, queme acalma... que me acalma... que me acalma...

Saio do texto mais leve. Deixei a fúria se lamentando e parto parauma outra praia que não revelarei. Somente em meus sonhos a verei etentarei explicar. Foi tarde, é muito tarde para nós dois.

Prefiro ficar aqui escrevendo enquanto a madrugada não chega e

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

ainda não tenho sono. Estou acordado mas não estou vivo. Estou numaespécie de transe onde transito entre mundos e de cada um absorvoum pedaço, transmutando-o em versos. Eu devoro mundos e a cadainstante me sinto devorado por todos os cantos por onde passei.

E por lá ficam as partes, espero eu, que não devem mais seguir-me nesta jornada. A César o que é de César.

Devo ficar aqui escrevendo até que a inspiração pare.

Até que o mundo pare.

Até que me sinta em paz comigo mesmo.

Até que meu coração volte a bater e eu entre em sintonia comtudo o que se passa à minha volta.

Então eu poderei dizer sobre tudo o que vivi.

E a minha real testemunha será a minha escrita.

Por isso, escrevo...

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Vou reunindo e juntando,

recompondo aos poucos

os pequenos pedaços de minha alma

que se perderam por aí...

E sei que não conseguirei reunir todos,

alguns, inclusive, desapareceram.

Porém sei que preciso resgatar momentos vividos

para poder entendê-los e assim viver em paz.

Vivo um tempo de eterna saudade.

Flashes instantaneamente se vislumbram

e acendem na minha memória a chama

e tudo o que vivi retorna com força total.

Cacos de vidro

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

E a cada passo que dou revejo faces,

flores de minha infância e maturidade,

algumas murchas, outras mortas,

várias, iguais a mim, vivas e revendo a história.

Cada pedaço, cada retalho tece uma longa colcha

de tudo o que vivi e do que ainda viverei

daqui para a frente.

O meu caminho, embora solitário, é repleto de surpresas

e sigo sem mágoas, às vezes, chateado,

mas crente de que tudo tem a sua importância.

Vou juntando todos estes cacos e descobrindo

que o passado se repete muitas vezes

nas mais diversas ocasiões.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

TristezaTudo se faz necessário nessa hora

e tudo me lembra você:

seu jeito, seus modos,

seu sorriso e suas brincadeiras.

Tudo o que eu não esqueço

e tudo que eu nem ouso pensar,

nem esquecer.

Podem passar os dias e os meses.

Os anos virão − não tenho como parar isso.

E você continuará presente

na minha vida, como sempre esteve.

Talvez até mais do que hoje,

ou do que tenha sido outrora.

A lágrima que ainda cai dos meus olhos

são pequenas lembranças que tenho de engolir

disfarçado e quieto,

no canto do meu quarto,

entre livros e CDs

e brincadeiras infantis.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Prometo que um dia elas secarão

e não irei mais chorar sua partida.

Irei rir com muita alegria

ao ver a continuidade da vida

andando frente a mim

e me estendendo a mão.

Vou ansiar por este dia

na esperança de que ele chegue logo

e me pegue de surpresa,

deixando-me sem palavras.

Vou rezar muito e agradecer

por tudo o que vivemos

e pelo muito que ainda iremos viver.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

VerdearVerde!

Antes de tudo: verde cor,

olhos de mar, saudades do verão.

Um porto da Bahia,

Baía de Todos os Santos,

Arpoador, São Paulo,

Verde Sampa meio que acinzentado

que colore as ruas de Madalena

e ilumina a Aclimação.

Tento mergulhar neste mare devastar suas cores, suas esquinas,

cair no Japi e banhar-me em cachoeiras

de águas frias de Oxum,

lambuzar-me de mel,

perfume de alfazema

e esquecer...

e me perder...

por aí!

Sem rumo,

sem nada.

Apenas ser verde,ímpar!

E chegar lá,

onde nem mesmo sei

que lugar...

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É sábado.Estou sozinho

As folhas balançavam ao vento. Embora faça muito calor em fe-vereiro, o vento resolveu se mostrar imponente. E como ventou estatarde! Da varanda do meu quarto andar observei a chuva mansamentechegando. Eu estava sozinho e assim sendo podia ter certos privilégioscomo, por exemplo, ficar nu. Eu, totalmente sem roupa, olhava a jane-la que dava para a sacada, quando vejo a chuva chegando bem maro-ta. Eu ria e achava que a chuva vinha para me banhar. Se eu me dei-tasse lá fora, sentiria os seus pingos me cobrindo por inteiro. Porém, eupoderia também acabar incomodando a vizinhança.

Soube que nos prédios em frente há malucos que ficam com binó-culos bisbilhotando os apartamentos. Eu já fiz isso, foi muito bom edivertido... Mas confesso que não me agrada a idéia de ser a vítima davez. Fechei a cortina.

O barulho que o vento faz obriga-me a aumentar o volume datelevisão. Passo a esmo os canais tentando achar algo que me agrade.Claro que acabo, mais uma vez, assistindo ao jogo de vôlei do canal deesportes. Até decorei as jogadas.

De repente, durmo.

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Acordo num sobressalto com o telefone tocando. E o pior, eraengano. Volto a dormir? I don't think so. Então me levanto e vou tomarum banho. Lembro-me da chuva e deparo-me com um sol incandescenteao reabrir as cortinas. Loucura.

E agora? Saio e vou comer algo ou assisto a mais TV? Durmo denovo? Optei por pegar o meu carro e deixá-lo me levar. É muito sim-ples, basta ligar o motor e engatar a marcha. Daí ande seguindo asplacas e sinais. Um sinal vermelho significa: não vá por aqui! Entãoviro e continuo deixando as placas me guiarem e, quando fico indeci-so, apelo para as placas dos carros, par é virar à direita, ímpar virar àesquerda e acabo chegando perto de algum lugar.

Uma padaria? Quem ganhou foi a fome. Entro e como dois baurusde peito de peru, queijo branco, mais o tomate e o orégano, só para darsabor... Ah,... que delícia! Completa a refeição um suco natural delaranja. Depois disso, volto para casa. TV ou internet? Acho que umDVD é a melhor opção e vejo um filme que nem sequer tinha tirado daembalagem plástica.

Já é noite e as luzes acenderam a cidade. A brisa é leve. Escancaroa persiana. Quero ser engolido pela noite e observo-a como se fosseuma tela de TV. O filme começa. Agito-me no sofá e me envolvo.Quando me dou conta já é um outro dia... e tudo se repete mais umavez...

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

CertezaEu achava que sabia tanto

E que as estrelas no céu

Eram diferentes das estrelas do mar

Eu que sabia tanto

Que o arco-íris findava num pote de ouro

E que as palavras eram formadas

Por pequenos seres que juntavam as sílabas

E sussurravam em meus ouvidos

Para que eu soubesse tanto

E ensinasse aos céus, aos anjos

Para que eles também soubessem

Tanto, tanto e mais

Muito mais do que eu

Mais do que tudo

E eu que achava

E nada sabia

Nada

Nada

Eu nunca soube...

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

ExpectativasSei que falo muita coisa

E sei que me repito

Mas se insisto em idéias

É porque me reafirmo nelas

Sou o que sou

Poderia soar palavras frívolas

Tentando adocicar seu chá de boldo

Tão amargo, tão impessoal

Mas eu quero invadir

E perturbar todos os seus pensamentos

Quero ser dono deles por um instante

E, no outro, pousar alegre

Em um aeroporto qualquer

Assim: inteiro

Assim: multifacetado

Assim: verdadeiro

Assim: falando muito

Sempre as mesmas coisas

Reafirmando

Aquilo que você vê

Mas nem sempre

Acredita...

Quero

Ter asas

E voar para bem longe!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

DesdobrarGosto muito de andar por aí,

de trabalhar de madrugada

nas mais diversas moradas

enquanto descanso a sono profundo.

Gosto de sentir-me útil

ao ser levado para aprender

nessa outra esfera não visível a olho nu.

Gosto da sensação que sinto

ao saber que tudo deu certo

e que estou cumprindo a missão.

Não me canso,

pelo contrário, revigoro.

Permaneço forte

e permito ser instrumento

enquanto merecer

e tiver fé.

Gosto demais de habitar

todas as moradas

do Senhor!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

InspiraçãoOuço um chamado dentro da noite

e me virei qual um cão à procura de seu dono.

E não era nada, a não ser os sons noturnos habituais.

Ouço um sussurrar de meu nome

por uma boca de mulher que me chama e não se mostra.

Eu apenas escuto e meio que sorrindo

finjo que não era para mim.

Mas a mesma noite me traz paz e calma.

Procuro ler e escrever sem parar,

sem temer o cansaço e a solidão que me invade

Entro em meu quarto e a tela do computador me chama.

Ela me diz: escreve... escreve... E eu vou!

Caio nesse jogo que não cessa nunca

e, confesso, nunca hei de parar de jogar.

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Para o futuroBate em minha cabeça um tum tum tum de idéias que chegam e

se instalam mansamente a me exigirem que escreva. E eu obedeço.Afinal quem sou eu para recusar tal ordem?

É que o poeta, quando se instala, apodera-se de meu corpo numafúria que nem sempre reconheço. Ele veda-me os olhos e passo a en-xergar o nada. Eu nada vejo, nada temo e, o principal, eu nada sou!

O poeta põe-se a escrever sobre mundos e vidas que não sãominhas, mas que se revelam a cada sílaba, descortinando emoções,até então ocultas dentro da solitude de minha alma.

Então, quando posso e me é permitido, respiro.

Paro e respiro. Paro e olho ao redor, com os olhos que voltam a sermeus, nem que sejam por uns mínimos segundos.

Ele me olha e insiste na minha volta ao papel. Eu respiro e teimo-so, mas já cedendo, volto a escrever sobre aquilo que não controlo.

Sei que um dia, já mais velho diria, vou sentir a ausência desteamigo, pois ele irá embora, assim como eu irei um dia. Só que restarãoas memórias, os livros que foram escritos sobre este tempo e dos quaisterei orgulho de ter sido um instrumento potencial.

E quando me for, simplesmente, trancarei a porta do meu quarto,para que, um dia, alguém a abra. E pode ter certeza de que estarei lápor perto para ver tudo isso acontecer.

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Rainha do marSinto a areia da praia em meus pés e também uma brisa que

sopra do mar. É dezembro e o calor faz-se presente todo dia neste local.Levanto-me pontualmente às nove horas. Não sou destes aficcionadosde café da manhã; se tiver, eu tomo, se não, não ligo. Procuro ser sem-pre prático e não dar muito trabalho. Assim que me apronto, vou ba-nhar-me no mar. Ando por toda a orla, todo dia. Quando envelhecer,vou morar perto do mar. Quero desvendar todos os seus segredos econfiar-lhe os meus, que não são poucos. Quem sabe Mãe Iemanjá meleva para as águas fundas do mar e depois me deixa retornar? São esalvo, porém muito feliz. É, o mar também tem muitos segredos...

E eu? O que é que tenho em mente ao me deixar levar pelasondas seduzido pelo canto da sereia. “Ô morena do mar”. Eu acabei dechegar e não sei nada do mar. Quero apenas deleitar-me em suaspraias, comer em suas areias, embriagar-me em suas águas e dormirsob o luar. É pedir muito? Ou é o que todos pedem...? Será que consi-go? Ou será isso tudo mais um sonho de uma noite de verão?

Sinto a aura do mar ...

A areia da praia queima meus pés...

Essa brisa noturna me congela...

A maresia me enoja...

E eu continuo amando o mar.

Salve, Iemanjá!

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SozinhoEstou sozinho a rondar nesta noite escura

Sou só eu e meu Deus que me guia

Perambulo por estas ruas e avenidas

E não paro um só instante

Ando sem calma, sem medo, sem nada

Nas mãos trago calos de outras vidas

Que não se explicam e se glorificam

A cada passo e a cada caminhar

Sou guiado, sou levado a crer

Que aquilo em que acredito e que me apraz

Revela-me um passado e traz seu legado

Fortificando-me a alma e o saber

Então permaneço seguindo

Respeitando as leis que não me deixam desistir

Eu tenho de chegar a um determinado local

E nada, nada irá me fazer parar!

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InexperiênciaSe eu, de repente, parasse

e gritasse ao mundo:

− Me deixa em paz!

Qual seria a resposta do mundo?

Ele me ignoraria?

Ele me passava uma rasteira?

Ou ele, simplesmente, acolheria o meu pedido?

Esse é o meu medo:

receber aquilo que eu peço ao Universo.

Ele me presenteia com meus anseios

e nem sempre eu faço os pedidos certos.

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Trecho de E o meu sangue por você (Sidney Magal)

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Alice Ela dançava bem no meio do palco. Eu apenas olhava. O teatro

vazio e escuro tinha apenas por iluminação uma fresta de luz que esca-pava da coxia. Talvez fosse por isso mesmo que ela somente dançavaem um curto espaço de chão. Os pés para cima, as mãos para o altoseguindo ritmadamente o compasso da canção. E eu me perguntava:que canção? Não havia som nenhum ali, somente ecoava nosso respi-rar: eu no meio da platéia, ela no meio do palco.

Enquanto a dança da música inexistente acontecia, eu observavatodos os movimentos e rodopios que ela fazia. Uma bailarina talvez.Dentro do meu pouco conhecimento de dança achava que vislumbravaum espetáculo inebriante. Ela me fazia sonhar. Imaginava um pianotocando, a casa quase cheia, luzes, cores, um vestido rosa voando aovento e os pezinhos bailando acompanhados de movimentos furtivos ealegres. Para lá e para cá.

Uma dança moderna, com tambores digladiando com uma or-questra de cordas e ela correndo de um lado para o outro, como umritual de um filme hollywoodiano. E ela continuava a dançar. Talvez elanão tivesse percebido que eu estava ali. Talvez eu devesse fazer umbarulho que me revelasse, mas não. Como iria roubar dela estes mo-mentos que tanto me alegravam? Se ela souber de minha presençatalvez se torne inibida e acabe tolhendo sua criatividade e eu vou aca-bar me frustrando aos poucos...

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Não, eu não vou me delatar, vou ficar aqui, quietinho, calado, aespiar.

Que música será que ela imagina? Será que ela não se cansa? Vaie volta, levanta e abre pernas e braços. Transpira. Eu também. Sou umcúmplice à espreita do grand finale. Mas me deixe descrevê-la umpouco. Ela tem os cabelos curtos, meio ruivos, nem alta, nem baixa,magra, olhos marcantes e escuros, pouca maquilagem, pernas fortesde quem pratica algum tipo de ginástica, talvez seja mesmo bailarina, ea graciosidade de quem pelo palco desliza igual um cisne em um lago.Seu nome? Ainda não sei, eu a chamo Alice pois pertence a um reinoimaginário. Eu a imagino assim e assim ela é.

“Alice... não conheço. Deve ser uma espécie de flor.” Lembro dotexto quase completo da história infantil de Lewis Caroll, mas a minhaAlice nada lembra a dele. A minha continua dançando incessantemen-te no palco, alheia a tudo o que ocorre à sua volta.

Acabo me soltando um pouco e vou seguindo seus passos commurmúrios sonoros, como quando eu ia levar minha irmã à sua aula depiano e ficava cantando a música que saía do instrumento. Até que umdia ela me repreendeu, disse que ela e a professora me ouviam cantare ficavam dando risadas. Desde aquele dia eu não cantei mais. Só empensamento. Aliás, eu fiz muita coisa só na imaginação, até criei umpersonagem de mim mesmo, achando que o original não tinha grandeinteresse geral. E deu certo, por uns seis meses deu certo. Daí que eutambém me cansei do personagem e mandei tudo às favas. Prefiro ooriginal com toda a sua incompetência, pelo menos sou autêntico.

Deixe-me apresentar, sou MM, tenho 30 e poucos anos, muitasidéias na cabeça e pouco tempo para realizá-las. Um tipo normal, nemmagro, nem gordo, diria comum, comum até demais. Conheci Alicenuma tarde de sexta-feira dentro do teatro onde tinha ido entrevistar oator principal da peça que iria estrear. Ah, esqueci de dizer, sou jornalis-ta e escritor.

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Ela mexeu com a minha imaginação num momento em que, comodizer, estava pensando em nada. Ela entrou quando as luzes se apaga-ram. Eu pensava em tirar um cochilo até a hora do início da peça − simeu iria ver o espetáculo, o tal ator me convidou pois achava que sóassim eu en-tenderia o seu personagem. Bobeira dizer a ele que eunem iria dar tanto espaço assim na matéria que iria fazer sobre teatro,mas para que magoá-lo? Eu precisava descansar um pouco da reda-ção, então...

Quando eu vejo, ela estava dançando. Pensei até em interrompere perguntar se ela queria que eu saísse, mas fiquei calado. Ela rodopi-ava sem parar, meio trágica, às vezes; imaginei-a Medéia em algunspassos, e em outros, a paciente Penélope. Eu a queria meio Madonnafazendo poses eróticas e insinuando-se para mim. Mas ela parecia meignorar e me senti um nada, um não-ser. Eu não mais existia.

Quanto tempo passou? Não sei. Sei que acabei cochilando e acor-dei num sobressalto, morto de vergonha. Será que ronquei? E ela aindaestava lá. Olhava para cima e terminava a sua dança.

Ela vai para o local atrás da porta e pega a sua bolsa. De dentrodela retira a sua roupa e se despe. Ela realmente não sabe que estoupor aqui. Não fica nua, apenas retira o que é necessário para colocar asua nova roupa. Uma calça jeans rasgada no joelho e uma blusa bemapertada que lhe marcava todo o corpo. Esqueci de dizer, ela tem seioslindos. Senta-se no chão, penteia-se e enfia uma sandália nos pés.Levanta-se, enfia a cabeça por dentro da fresta da porta e grita: − Já tôindo! E vem andando para a beirada do palco. Desce as escadas quedão para o corredor entre as cadeiras e caminha devagar. Quando che-ga na minha fileira, pára, olha-me bem nos olhos e com uma voz firmee autoritária faz me um pedi-do meio que ordenando:

− Me paga um café?

Eu me levanto, sigo-a até a rua. Ela me diz que tem um Frans logoali na esquina. Como resistir a esse pedido? Impossível. Entramos, arru-

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mamos uma mesa, sentamo-nos. Ela arruma o cabelo, eu retiro o blazer.Ela me olha nos olhos e se apresenta:

− Oi, eu sou Alice, tudo bem?

Fico pasmo e não consigo dizer mais nada. Ela sorri apenas e ficaesperando uma resposta que não vem. Um grande silêncio. A atendentevem em seguida − só em livro mesmo para uma atendente do Frans serligeira − e me oferece o cardápio. Recuso-o e peço um expresso comum pingo de leite.

− E você? − eu pergunto. Ela me diz:

− O mesmo.

− Não quer comer nada?

Ela sorri, abre sua bolsa, pega um cigarro.

− Você se importa?

Claro que me importo, tudo o que eu menos gosto é de cigarro,ainda mais em mulher.

− Claro que não. A propósito, meu nome é MM.

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No arQuantas pessoasquantos passoslongo caminharlonga estrada

Quantos caminhosainda devo seguirquantos destinoshei de chegar

Quanto tempoque sequer se findaquanta buscasem nada se achar

Quantas vezesrogarei implorandoque embora errandotento conduzir a vida

QuantoQuantasQuando

E eu aqui,lá, ali, onde.E eu aqui

Até quando?

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OlharOlhar...

E o que mirar?

O olhar

Que mira as ruas

O mar

A rua que

Vai dar no mar

Com que olhar

Vou chegar

Entender

E mirar

Para alcançar

O seu olhar

O meu lugar

Em qualquer olhar

Com qualquer mirar

Em sintonia

Com o nosso

Olhar

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Irene riEu sabia que tinha de encontrar você

O porquê desconhecia

Só sei que quando lia as suas linhas

Suspeitava tratar-se de uma alma irmã.

Os anos nos separam, mas isso não foi problema.

Eu vi você e entendi perfeitamente

O porquê de nossa união.

Talvez eu devesse esse favor,

Talvez fosse somente respeito.

Sei que o seu sorriso me deixou feliz

E a sua crença de que tudo vai dar certo

Leva-me adiante.

Ah, Irene, sabe-se lá quantas vezes nos encontramos

Nessa roda da vida e no pulsar dos séculos!

Quando, hoje, olho para você

Tenho a sensação de missão cumprida.

E de todo o coração

Desejo a você toda a paz do Senhor

Nestes pequenos versos meus

Que, agora, são seus.

Irene, você já é imortal!

Para a querida amiga Irene Bôa Tega

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Novos rumosDedicado a Valderez de Mello

Ela parou-me por um instante

e com olhar de mãe

perguntou-me por que andava tão tristinho.

E não consegui responder naquela hora

que a minha tristeza vinha de dentro

e de tão profundo local,

que não saberia explicar mais nada.

Ela olhou-me com olhos tão doces

e uma voz tão amiga

que eu nada pude fazer, nem ao menos agradecer.

Às vezes, eu sou assim mesmo,

não consigo me expressar,

nem me esconder.

Acabo me revelando e ao me distrair um pouco

deixo transparecer o que não queria.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Talvez se chorasse mais um pouco

ou então se me sentasse no colo de Deus

E ouvisse sua voz me dizendo:

− Calma, que tudo tem jeito nesta vida,

eu me acalmaria

E ficaria feliz.

Sorriria um pouco

E continuaria a viver

E ela apenas me fez um carinho

e isso me bastou como um sinal.

Acalmei-me e segui em frente

esperando o meu trem chegar

para a minha nova viagem

a um local que ainda desconheço,

mas sei que é onde eu deveria estar.

E é para lá que irei,

quando esse dia chegar.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

SolidãoDedicado a Ivanira Dadalt e Raul Occhini

A fonte lá fora esparrama pela noite

a sua música noturna.

Eu cá escrevo e atento a cidade,

suas luzes, seu barulho.

Cachorros latem e pessoas falam ao longe.

Dentro deste apartamento apenas observo

e sinto o pulsar que emerge

além daquela sacada.

O avião em pleno vôo.

As buzinas dos carros.

Meus olhos marejados

e a falta de sono que me deixa impertinente.

E enquanto tudo isso acontece

perco-me em pensamentos

que acabam me levando para onde

nem ao menos sei se quero ir.

Um carro passa.

Uma pessoa dorme e ronca.

A televisão desligada

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

e a casa se preparando para descansar.

Só existe um poeta acordado

ouvindo a madrugada,

deixando-se levar feito água corrente

aos rios, mares e montanhas,

deixando-se evaporar e virar nuvens de algodão,

chover, chover e banhar as ruas

desta minha cidade que não pára,

desta minha cidade que me acolhe,

desta minha cidade que me resguarda

e que me salva de todos os perigos

os quais eu teria de enfrentar.

A fonte ainda canta lá fora

e os beija-flores dormem em seus ninhos.

Onde se localizam eles, eu não sei.

Sei que Raul os abastece com comida

e fica à espreita, esperando ansioso.

E eu rio disto tudo

porque entendo o quão simples é esta vida

e o quanto todos nós a complicamos.

Eu não quero a notícia,

nem quero ser a história.

Quero descansar no leito de um rio

enquanto as águas das cachoeiras

se precipitam levantando espuma.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Quero ver o alçar vôo de um avião

e observá-lo cruzar pelo céu azul de minha cidade.

Quero ver Durval se alimentando na sacada da Ivanira

e depois escapulir numa aventura aérea.

Quero rir, rir muito de tudo o que se passa à minha volta

e me vestir de palhaço para alegrar você,

contar piadas singelas

e recordar a minha infância

sentindo na boca um gosto de picolé minissaia:

meio abacaxi, meio groselha.

Quero tudo isso e ainda acho pouco.

E se puder pedir mais

gostaria de subir em uma árvore e lá ficar horas a fio,

fingindo-me de galho, de fruta, sei lá,

apenas deixando-me levar pela ocasião.

Amoras roxinhas ainda quero provar

e uvas colhidas na hora, escondido do produtor,

porque fruta roubada é mais gostosa!

E a vida vivida assim é que vale a pena.

Quero andar muito pela serra

e se ainda tiver coragem mergulhar fundo

em algum lago escondido,

visitar o reino encantado,

viver as Reinações de Narizinho.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Quero voltar a ser criança apenas um dia

e rever todo mundo que fez parte de minha vida,

os amigos e os inimigos.

Quero espantar o bicho-papão que ainda me amedronta

e enfrentar tudo de que sempre tive medo.

Quero beijar você, agora que sei como funciona isso

e voltar a rir de tudo ao meu redor.

Ah, como eu queria...

Mas o que me permito agora

é ouvir a fonte cantando sua melodia

hipnotizando-me tal qual um encantador de serpentes,

levando-me a lugares que já habitei,

como um flautista de Hamellin muito habilidoso.

E ela continua povoando minha fantasia...

E eu fico aqui, sozinho a pensar...

Pensar e relembrar...

O passado pode não voltar jamais,

mas tudo, tudo o que eu já vivi

foi o melhor presente que a vida me deu.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

MentorEle me olha

De dentro para fora

Mas não me vê completo

E nem quer

Ele invade meu pensamento

Que fica torto e louco (absorto)

E faz de mim

O que bem quer

Louco!

Ele ri de mim

Quando quero chorar

Mas não chora por mim

Em nenhum momento

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Ele é um clarão

Às minhas idéias

E é dono de meu texto

Pois quando a caneta corre

As palavras são dele

Ele apenas observa

E eu finjo não saber

Erro, erro muito

Ele não corrige

Pois sabe muito bem o que fazer

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Uma precepara as mãesSalve, Maria, Mãe de Jesus e de toda a humanidade!

Salve, Nossa Senhora, mães dos fiéis e desesperados!

Salve, Mãe Menininha do Gantois!

Salve, Mamãe Oxum, rainha das cachoeiras,

E Mãe Iemanjá, a rainha do mar!

Salve, Hera, mãe de todos os deuses gregos,

Matriarca da antigüidade, arquétipo de mãe,

Que protege, educa e ensina o que deve ser feito!

Salve, Madre Teresa de Calcutá,

Que mesmo sem ter sido mãe verdadeira

Amou a todos como se fossem filhos seus!

Salva, Senhor, as mães que parem seus filhos e os criam

Aventurando-se numa vida incerta

Onde só o amor é porto seguro!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Salva, Senhor, as mães que abortam e abandonam seus filhos!

Que Deus olhe por elas e as proteja

Para que elas aprendam o valor de uma vida!

Salva as mães dos filhos que não são seus

E que os acolhem em seus seios como se fossem

Parte própria de sua carne e vida!

Salva, Senhor, as mulheres que sofrem abusos

E acabam sendo mães forçadas,

Vítimas da tirania que neste mundo habita!

Salva quem nunca pariu um rebento

E que nessa vida ainda há de ser mãe

E repartir o seu amor com o ente querido!

Salva minha avó, mãe de dez filhos

E das cinco mulheres que nela se espelharam

E que também tiveram seus filhos, netos e bisnetos!

Salva, Senhor, minhas mães, tão importantes para mim,

A que me gerou e pariu e a que me criou e me ama,

Sem as quais eu não existiria, nem seria nada!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Salva minha irmã que partiu tão cedo desta vida,

Deixando-nos duas lindas filhinhas,

Razão de toda a nossa vida desde então!

Salva todas as mães do mundo,

Detentoras da vida e perpetuação de toda a espécie!

Salva, meu Deus, a todos nós,

Que seguimos nessa vida amando, sofrendo,

Caminhando e seguindo nosso rumo,

Seguindo a Tua vontade!

Olha, Senhor, pelas mães e faze que a passagem delas

Por esta vida seja somente de paz e amor!

Abençoa, Deus, todas as mães deste mundo!

Amém!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

EstátuaOlho para você

E a vejo

Apenas observo seus modos

E a vejo ali

Olho para você

E não vejo mais nada

Não olho para mais nada

Não existe nada

Quando olho

Olho para você

Pelo canto do olho

E vejo um todo de você

E fico espiando

Sem a ver

Sem me ver

Quando olho para você

E nada mais importa

Nada tem solução

Nem resposta

Pois quando olho

Para você

O tempo olha

E pára

Do mesmo modo

Que eu paro

Quando

Olho para você.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Pietra e o poodleEu não sei se é mera coincidência

Os dois terem, em seu nome, a inicial P.

Só sei que quando Pietra chega,

Puckie se consome: de ciúmes e felicidade.

Ele foge dela, provoca-me e quer atenção.

E ela revida na mesma moeda.

Como cão e gato, vivem em “harmonia”,

Quer dizer, nem tanto; já houve até mordida.

E ela chorou, berrou e, logo em seguida,

Voltou a provocá-lo.

É que antes de Pietra chegar, ele era o reizinho

E hoje quem manda é a princesa.

Acredito que ser destituído assim do poder

Não deva ser tão fácil,

Pois, a todo custo, ele tenta recuperar seu trono.

Vive ignorando a menina o tempo todo

Ela, porém, o busca sempre para brincar

Ele só brinca quando quer ou tem interesse

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Afinal, Pietra é uma fonte de guloseimas.

E é nessas horas que Puckie

se torna seu melhor amigo.

Fica à espreita de algo que ela deixe escapar

E que, numa rapidez de um raio, ele agarra e come,

Sem deixar tempo para ela sequer reclamar.

A menina, com seus olhinhos azuis arregalados,

Solta a sua gargalhada sobre a ousadia do cão

E passa a jogar comida para o gesto se repetir.

E ele a lambe agradecido,

E ela fica feliz.

Eu fico só de olho,

Pois sei que isso é momentâneo

E que as rusgas podem a qualquer momento surgir,

Pois Puckie gosta mesmo é de ficar na dele,

E Pietra o quer em seu colo para acariciar.

Resta-me administrar este conflito,

Entre cachorro e menina,

Para que a paz volte a reinar por todo este lar.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Lélia e agata preta

Um gato preto, dizem, é sinal de mau agouro,

Mas para Lélia é sinal de grande alegria.

A gata, com seus pelos negros como a noite,

Chegou, de repente, numa manhã qualquer

De um dia de que não me lembro

E, em sua casa, instalou-se e tomou posse.

Como todo gato, é independente e preguiçosa,

Passa o dia esparramada pelo canto do sofá

Que hoje é só dela e de mais ninguém.

Todos fazem festa para a despertar,

E ela retribui olhando com desdém.

Desfila tal qual uma princesa africana

Perante a platéia que somos nós.

Quem chega, logo acaricia seus pêlos,

Traz presentes e fica com ela a brincar.

Existe aquele que a põe em seu colo

E também existe quem a provoca,

E ela, nem aí, continua a sua vida.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Mas ela gosta mesmo daquele que a ignora,

Pois é com esse que ela vai se engraçar,

Usando todo o seu poder de sedução

Com suas brincadeiras espalhafatosas,

Enroscando-se em suas pernas e ronronando,

Para, logo em seguida,

Num pulo ligeiro acomodar-se em seu colo,

Pedindo carinho que não dá para negar.

Fez da cama da dona seu próprio leito

E ali dorme toda noite,

Permitindo que o casal

Divida com ela o seu espaço.

Come, dorme, passeia todo dia,

E, quando retorna ao apartamento

E dá com a cara na porta,

Fica do lado de fora a miar,

Pedindo para entrar.

Se gato preto dá azar,

Acredito que seja somente para os outros.

A gata preta da Lélia dá é muita sorte,

Pois trouxe para a sua casa

Paz, muita alegria e felicidade.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Ela

Quando anda

Apenas chama

Apenas

Anda

Ela

Quando engana

Apenas ama

Apenas chama

Apenas é ela

Quando

Se esparrama

Pela cama

Pelo quarto

No cinema

No asfalto

Apenas ela

Ela, apenasApenas ela

Quando salta

Ou passa

Ao largo

Somente ela

Quando canta

A mesma voz

A mesma garganta

O mesmo som

A mesma amiga

A mulher ideal

A dionisíaca

A enigmática

A intranqüila

Apenas ela

Sua vizinha

Sua parente

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Sua amante

Quando passa

Quando chama

Apenas ela

Sozinha

Pelo quintal

Pela cozinha

Apenas ela

E não a minha

A mulher que amo

A rapariga

Apenas ela

Somente ela

A ouvir vozes

A chorar dores

Apenas ela

Apenas amiga

Quando grita

Quando chora

Apenas chora

Apenas ela

Apenas ainda

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Raul e os pássarosTodo dia ele coloca na sua sacada

alpiste, pepino e outras comidas gostosas

e fica esperando escondido por detrás da cortina

os pássaros aparecerem fazendo alvoroço.

Do alto do seu quarto andar,

no barulho rotineiro da capital paulistana,

ele consegue distinguir o piar e o cantar

dos pássaros na sua janela a pousar.

Ele compra puleiros, xaxins, plantas e brinquedos

para que as aves se sintam em casa e possam descansar

brincando e bebericando da água da fonte

que ali também se encontra a jorrar.

E, quando eles vêm, seus olhos brilham,

tamanha é a sua felicidade e alegria;

pois, em meio a um mar de gigantes prédios,

é em seu apartamento que os pássaros fazem moradia.

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Trecho de Gota d`água (Chico Buarque)

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

EntressafraTemo não conseguir desta vez, afinal não é sempre que tudo dá

certo. É certo que tenho tentado, que tenho perseguido ideais, mas oque mais me resta a não ser descobrir, por novas vias, acessos que melevem a um lugar diferente...

Sou todo entregue a estas coisas que me levam embora, mesmoquando a minha maior vontade é ficar aqui, neste mesmo lugar.

Tão preso a lembranças...

Tão sem vontade de sorrir...

Deixando as lágrimas brotarem como brotam ervas daninhas noquintal que um dia tive e no qual brinquei.

Não há mais quintal meu, nem moro mais na mesma rua e bairro.Eu cresci e o tempo, por diversas vezes, esqueceu-se de me dizer oque aconteceu e nem percebi... segui em frente um tanto oco, masnem me dei conta.

Meu caminho nunca foi meu.

Eu não sou daqui.

Pertenço a uma tribo que um dia habitou estas terras e que se foihá muito. Sobrou a mim, um mutante em extinção. Desabrigado. Forado seu tempo e exilado. De muitas Capelas.

Procuro conduzir-me sem cometer os mesmos erros e eles voltama todo instante para me sacudir e seduzir. Eu sou outro. Um outro quenão dá trela, nem fica batendo papo na esquina, em bares onde sequerpensaria em entrar hoje, nem mesmo tentei entender o motivo.

Poetizo em livrarias e saraus a minha pequena ira: a de não enten-der nada, absolutamente nada.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

E vou assim caminhando sem proteção alguma, querendo cari-nho, atenção, paixão e sexo. Sem amor nenhum, somente por puradiversão. Não pretendo ver você amanhã cedo, nem quero dividir aminha cama. Ah, eu quero o puro deleite das paixões desenfreadas,aquelas que duram o tempo que têm de durar. O suficiente.

Não quero ter que me preocupar com presentes, nem data. Euquero a sorte de um amor tranqüilo. Mordido, mofado, escandaloso,sem regras.

Quero apenas ser eu, e quero que você seja você a toda hora.

Quero bater na sua cara, sem força, lógico – não pretendo lhemachucar – e quero que revide, na mesma medida. Gritar! Gritar quesomos loucos e colocar no último volume a sonata de Schubert, aquelacom a letra da Mathion. Aquela mesma. Ouvir por horas e tornar-meum pedaço daquela partitura e ser tocado por seu instrumento preferi-do: um violoncelo.

Passar várias madrugadas vagueando pelas ruas de Paris, pelobeco, pela Place de la Concorde, Marseille, Bourdeaux, Versailles, vol-tar a Montmartre e e ali ficar, parado, na esquina, vendo a prostitutaesmiuçar seus trocados conferindo a féria da noite. Será que precisa demais um freguês? Ou já basta?

Ir, aos poucos, sumindo na madrugada, zumbindo apenas em umou outro ouvido mais apurado. Até desaparecer.

No Le Monde da manhã seguinte estampa-se a manchete: Sona-ta de Schubert foi ouvida durante a noite e sumiu na madrugada. EMathion lança o seu sorriso tímido e pensa no que fez e no que a levoua fazer aquela letra para aquela melodia.

E eu continuo a pensar no que me sobrou...

E continuo a não entender nada... absolutamente nada.

E continuo a chorar impiedosamente.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Confissõesà meia-luz

Aquela dor no peito que alguns chamam angústia

invade meus dias, tardes e noites

e meu coração chora de saudades,

mesmo sabendo que nada pode voltar

do jeito que sempre foi um dia.

Continuo sentado neste final de tarde de domingo

ouvindo o som da bola e das crianças lá fora,

o tiquetaquear do teclado que vem do quarto

e a minha solidão em meio a tanta coisa.

Penso em tudo o que tenho de fazer amanhã:

nas reuniões, nos livros, nas festas...

E comparecerei a tudo isso, alheio ao que sinto

e já nem sei mais o nome que posso dar,

pois minto para mim mesmo e para todo mundo.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Quero aparecer supostamente tranqüilo

e sem demonstrar nada mais do que quero

deixar transparecer.

A minha dor é só minha e de mais ninguém.

E a noite vai tomando conta da tarde,

as luzes se acendem e o domingo acaba.

Foi tão curto o tempo que tive para descansar

e, mesmo agora, já respiro o ar de segunda-feira,

preparando-me para o meu dia-a-dia habitual.

E ele vem mesmo, não quer saber o que penso,

nem se ao menos respiro aliviado.

Eu sou o ontem que acabou desfalecido na sarjeta

para que o hoje nasça alucinado.

E assim têm sido os meus dias e noites.

Sem poder ver você, nem ao menos escutar.

Somente pensar no que você faria agora

e qual a solução que daria para estas coisas.

Tento não errar, mas é impossível para mim:

eu sou errado da cabeça aos pés!

Mas tento acertar e consigo, de vez em quando.

O amor não é meu, sempre foi seu.

E quem sabe um dia eu consiga chegar lá...

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

PânicoDe repente, instaurou-se o medo

e as pernas fraquejaram.

O peito doeu...

E parece ser difícil respirar.

Olho para o espaço aberto

e não consigo conter um espasmo.

Estou me reprimindo

e não confio mais em mim.

Tento disfarçar mas

outro sintoma se revela.

A garganta aperta

e temo não mais respirar.

Então paro e rezo.

Louvo a Deus que isso seja bobagem

que de minha cabeça sai

e fico imaginando-me em outro local.

No meu quarto, na minha casa.

Tudo menos aqui

onde estou agora.

Sou um pássaro desesperado longe do ninho...

É, eu sei

e também sei que vou superar.

Tudo isso vai passar.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Todo diaEstranho,

quanto mais eu penso

ainda me custa acreditar,

que o tempo passou

e tudo foi mudando

e se adaptando devagar.

Só eu parei e não consegui

chegar a um lugar.

Estou sem conclusão

e sem nada a dizer.

Confesso,

estou perdido!

Estou desabrigado e desnudo

sem a mínima vontade

de continuar com tudo

e de prosseguir.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Tento não me entregar

a essa síndrome que tenta

me abraçar e me sufocar.

Resisto, eu a menosprezo.

Mas, ainda assim,

não acredito.

Faz pouco tempo,

tão pouco.

Ainda posso ouvir sua voz,

seu riso e seu rosto.

Apenas tenho que prosseguir sozinho

Até completar o meu destino.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

QueixasNão posso simplesmente aceitar o fato

sem nem ao menos tomar uma atitude.

As coisas são como são, todos me dizem isso,

mas não posso tão-somente esboçar a minha opinião sincera?

Foi-me perguntado o que acho disso tudo?

Ou simplesmente tomaram uma decisão

baseados em fatos pressupostos,

sem nenhuma certeza da fonte e sem constatar a verdade?

Isso me enoja!

E tenho vivido isso por muito tempo.

Eu quero apenas sair daqui e me alojar em outro local.

Não quero ter de brigar por aquilo que é meu,

nem quero dar satisfações a ninguém, a ninguém.

Sou o que sou e, sem querer, acabo me repetindo.

Mas a verdade é que não posso mudar o que deve acontecer.

Estou preparado.

Sei que talvez me machuque, mas estou pronto.

Que soltem as amarras!

Que venha quem tiver de vir!

Só peço que tenha a certeza de tudo.

Eu não pretendo desculpar, muito menos, pedir desculpas.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

EsperançaPor mais que eu queira chorar

e que a vontade de me esconder

num canto e ficar apenas espiando

me consuma quase que totalmente,

prossigo,

reunindo todas as forças de que ainda disponho

e tentando não me importunar com nada,

apenas olhando o lado bom das coisas.

Fico escrevendo neste caderno

coisas que meus olhos humanos não vêem

e que só a alma sente.

E como dói revelar a mim mesmo

toda essa loucura!

Em um dado momento me atrevo a contestar

e não consigo, pois a verdade é cruel

como um tapa na cara,

dado com toda a força e raiva

de alguém que me desgosta.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Contudo, forcejo para combater o choro,

expulsando-o daqui

e explicando que agora não é a hora

e que é preciso

me deixar em paz

para poder curtir esta solidão sozinho

sem me torturar, nem escravizar,

apenas sendo eu mesmo,

tristemente eu,

para que um dia eu acorde

e possa novamente ver o sol.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Ah... os clássicosNuma certa idade comecei a ler os clássicos. Diferente de minha

irmã − que sempre os adorou − eu não conseguia, ainda, extrair delestoda a beleza que a extasiava.

Ela adorava Bovary, O Vermelho e Negro mas, mais ainda, amavaO Primo Basílio. Eu nunca cheguei a tanto, tentei caminhar por Suez eme perdi; nunca consegui rir com a Divina Comédia, apenas me arris-quei com Sartre e concluí que eu ainda não tinha idade para ter tantarazão. Então parei. Um dia volto a lê-los.

Hoje, aos 40 anos, tenho certa curiosidade em revisitá-los. Acre-dito que eu os entenderia, como entendi e rolei de rir com Machado esuas Memórias Póstumas. Está aí um livro que adoro.

Chegam-me tantos livros que nem sei ao menos por onde come-çar, nem qual ler primeiro. Sei que lerei todos. Só não sei a ordem.

Na estante brilha um Pirandello. Será este o escolhido? Ou seráque adiarei novamente. Ah, os clássicos... e pensar que ainda não osli. Vontade não me falta e tudo o que tenho a fazer é começar...

Numa certa idade comecei a ler os clássicos...

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FaseVivo uma fase em minha vida onde me permito enxergar apenas

a bondade das pessoas. E é uma fase contagiante e me faz sentir bem.

O que desejo é enxergar novos horizontes e desbravar outros ca-minhos ainda não trilhados por mim. Pretendo ouvir os CDs que ainda,nem sequer, tirei do plástico, nem mesmo sabia que os tinha. Queroouvir os dois boxes completos da Nara Leão, conhecer suas histórias econhecer suas músicas.

E acredito que, ao fazer isso, acabo deixando o novo entrar naminha vida e talvez ela se torne diferente.

Passo por uma fase de completa transição. O rumo disso tudoainda me é desconhecido. Sei que preciso ser mais e mais. Muito mais,como o meu livro e tentar galgar um outro espaço.

Enquanto isso, ouço Nara Leão.

E me surpreendo com ela.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

CadeadosAh, vá que eu não tenha medo

E saia correndo, meio sem rumo,

Sem norte, chegando a nenhum lugar!

Ou, então, que eu me afogue em lágrimas

Mergulhando na solidão de minha alma,

A procurar a chave que abra esta porta

Ainda trancada dentro de mim

E que não me permite voar mais alto,

Mesmo quando a vitória é certa

E nada teria a temer...

Ah, eu acho que ainda tenho medo

De me machucar com as farpas e faíscas

Que pulam da fogueira ainda acesa

Em minha lembrança de menino

A se torturar por não ser,

Por não querer, nem ter

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

A coragem precisa para enfrentar

E suportar todas as inquietudes

Deste mundo tão cruel...

Eu não quero nada disso!

Eu não sou tudo isso!

Nunca fui. Nunca quis.

Apenas tento, nem sempre

Consigo...

Reagir!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

FalaEu tenho algo a dizer

Eu não quero dizer nada

E eu também quero repetir

Que o amanhã vai dar em nada

Mesmo que chova

Mesmo que caia canivete

Vou tomar um sorvete

Assim a vontade passa

Tenho algo a escrever

Mas a preguiça é tanta

Que acabo dormindo

Sobre a folha de papel.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Meu momentoMeu único problema é a tristeza, sentimento que não finda. Não

me importam as coisas boas, nem as ruins que acontecem a todo mo-mento, nada importa. Eu continuo a me sentir triste, remoendo-me pordentro e por fora... Respiro uma tristeza interminável e me culpo. E nãoentendo. Não entendo nada!

Amanhã completo 40 anos, mas nada faz sentido, não sinto ale-gria, não sinto nada. Apenas finjo que tudo está bem, mas não está.Acho que nunca mais nada vai ficar bem para mim. Nada.

As lágrimas que caem sobre minha face trazem à tona todas aslembranças que ficarão marcadas para sempre em minha vida. Eu nãosei quanto tempo tenho neste mundo, nem sei o que é que devo fazerpara dar continuidade. Vivo tateando coisas e seguindo o rumo que porora acho correto. E é mais ou menos assim: penso uma idéia, coloco emandamento, se tiver alguma resposta, continuo, se não tiver, desisto.

Eu me cansei de debater ou discutir planos e projetos. Hoje pensono que você gostaria que eu fizesse. E assim faço, mesmo sem poderdegustar vagarosamente cada sucesso. Eu passo por eles como quempassa por uma vaca pastando na paisagem de uma estrada.

E a minha estrada parece ser longa.

Acordo todo dia, agradeço estar vivo e peço orientação para queo mundo não me engula. Apego-me a pessoas, mas não quero que seapeguem a mim. Não quero ter ninguém ao meu lado. E é um totalparadoxo, pois reclamo da minha solidão, embora não esteja só.

Talvez eu me alimente do sonho, do sonho de um dia voltar a serfeliz. Sonho em voltar a ter alegria na data de meu aniversário e deachar que fazer quarenta anos é algo importante para caramba.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Amanhã vai ser um dia normal. Vou chorar muito. Vou me lembrardo último presente que você me deu e talvez eu o use. O tempo estáfrio mesmo... acho que vai dar. Vou tentar passar sem me importar comnada. Vou tentar fazer desse dia apenas mais um dia. Só mais um diaque passou sem que eu nem me desse conta.

No fim, acho que estou mesmo é estressado e triste. Não querocarregar nada nas costas, muito menos o mundo. Não quero me fazerde vítima, nem quero ser apedrejado. É que o momento me faz melan-cólico e, como a chuva lá fora, as lágrimas tornam-se abundantes.

Se eu pudesse ou quisesse, pegaria o meu carro e iria dar umavolta por aí, sem rumo, sem lenço, nem documento. Acabei me tornan-do tantas coisas ao mesmo tempo que acho que perdi a minha identi-dade. Sou pai, sou marido, sou filho, sou amante, sou menino, soucriança e também um bebê que chora pedindo atenção. E em nenhumdesses momentos sou eu mesmo e, sim, uma pequena parte de mimque está transbordando e invadindo a vida.

Posso ouvir o meu coração que, em momentos dói, fisicamentedói; ou então vibra baixinho. Pensei até que tivesse algo, mas nadaacusou. Então me visto com a máscara de plantão e me torno o empre-sário dinâmico que corre, corre, corre e se esquece de viver. Esqueceque a vida é para ser vivida e aproveitada em cada momento. Eu ante-cipo os momentos e acabo não vivendo nenhum. Não quero intervalos,nem comerciais. Quero apenas a notícia. E quero ler em primeira mão,mesmo que seja isso um erro.

Sim, é preocupante esta atitude, eu sei. Mas como posso viveresquecendo-me de tudo o que se passou? Trabalhando, somente traba-lhando.

Um dia, talvez eu aprenda que não é correto viver assim. Por ora,vou sobrevivendo e buscando um lampejo da tão sonhada felicidade.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Muito tristeAcho que nem consigo medir o tamanho da dor que sinto

É imensurável e não finda

Uma dor que me impede de fazer tudo

De sorrir, de viver, de ter vontade de alguma coisa

Não sinto vontade de fazer nada

Nem de dormir ou me esticar em uma rede

Esperando o sol se pôr

Não, eu não consigo me livrar desse sofrimento

Que a cada dia aumenta e me faz chorar

Talvez eu esteja enlouquecendo aos poucos

E precise abandonar tudo e sumir

Ficar só

Somente só e pensar

Pensar muito até me enjoar de tanto pensar

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Os livros já não me dão prazer

E são tão-só e somente uma válvula de escape

Assistir a um filme

Viver loucamente e me largar por aí

Nada disso mais me apraz

Nem mesmo posso ficar sozinho

Que entristeço ainda mais

Quem sabe o tempo?

Mas enquanto ele não passa

O que eu faço para passar por isso?

Espero? Emudeço? Grito? Esmoreço?

Eu sei que tudo que fizer será uma tentativa

Vão e estúpida para fugir de tudo

Mas não será a fuga uma estupidez?

Só sei que não consigo carregar a minha dor

Ainda mais a dor dos outros

Que também precisam expressar o que sentem

E eu não posso mais

Não consigo mais

Não quero mais

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Quero seguir em frente

E me esquecer

Mesmo quando os seus olhinhos azuis

Se encharcam de lágrimas

E me pedem colo

Eu preciso ser forte nesta hora

E fazer de conta que não ligo

Que tudo faz parte do que vivemos

E que embora eu não aceite

Compreendo lucidamente.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Olho para a obra inacabada

E me esbarro em não saber

Como terminá-la

Olho-a: estática

Vejo-a: muda

Chamo-a: surda

E a obra exclama

Reclama seu dono e mentor

Que desconheço

Não mereço

Olho a obra intacta

Disforme

E não reajo

Eu só sei um não sei

E não me mexo

Estremeço

Finjo que não é comigo

E esqueço tudo

Caio no mundo

Que não tem obra

Nem nada

Nem vida

Nem cilada

E desabo ao ver

A obra

Inacabada.

A ob

ra in

acab

ada

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Tarefa sem fimDentro de mim ainda bate um coração destroçado

E por mais que eu tente não me abalar

Acabo por sofrer calado durante a noite seguinte.

Eu sou a alma mais velha que habita este lar

E ouço, vejo, escuto, sem esboçar nenhuma reação

Canalizo tudo e emudeço calmamente.

Sou a sombra e também a luz que ilumina

A cozinha quando levanta para tomar água

E rapidamente sou a escuridão que se apaga

Ao fechar os seus olhos para a mansidão.

E quem sabe eu também recolha os cacos da madrugada

Numa outra esfera que não essa

Onde somos iguais em espírito

Mas nada lembramos quando voltamos para esta casa.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Trecho de Sangue e pudins (Fagner e Abel Silva)

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Dia de domingoem minha casaEstou esperando que todos voltem da missa. É domingo e o sol lá

fora arde nas calçadas das ruas, esquenta as piscinas do condomínio ecoloca em todos nós uma sensação de malemolência insana. Eu nãoquero fazer nada o dia todo, apenas ficar sentado, vendo televisão,assistindo a filmes, comendo muito e brincando com as meninas.

Como eu espero ansioso a chegada delas e como planejo de queiremos brincar! Andar de bicicleta ou ver sites de jogos? Assistir àqueleDVD pela milésima vez ou desenhar na mesa da avó?

Pois é, fico imaginando coisas que elas gostariam de fazer. E mepego pensando no que é que minha irmã iria fazer com elas hoje. Seráque iria levá-las ao parque, ou à casa de parentes, amigos, ou iria ficarcom elas e o marido em sua casa apenas curtindo mais um dia dedomingo...

Não dá para imaginar, nem dá para pensar em como seria, nemem como será. Apenas fico matutando em pensamento o que se passanas cabecinhas destas meninas, como é que vêem o mundo e o queesperam da vida...

Eu não espero mais nada. Quero apenas poder viver em paz eproporcionar a elas e a quem amo o melhor que eu puder. Isso se mefor permitido.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Enquanto elas não chegam, arrumo um pouco a pequena desor-dem da casa, como revistas e jornais espalhados pelo sofá da sala.Aspiro o cheiro da lasanha preparada por minha mãe e já me dá aquelafome de devorar todo o prato. Depois, eu vou ao endócrino, com amaior cara-de-pau, e pergunto o porquê de eu engordar tanto – risos.

No computador sobre a mesa da sala preparo um sarau sobre Elis.Penso no site da editora e em tudo o que tenho de fazer para deixá-loainda mais bonito. Puxa, quando é que vou descansar...

Faço a minha barba e descubro em meu globo ocular manchasvermelhas. Falar que não me apavorei é mentira, fiquei pensando arazão. Acho que devo descansar mais.

O domingo vai ditando o seu ritmo a cada minuto, telefono a umamigo, combinamos outro trabalho, ligam para mim, lembro da cantoraque vem de Sampa para me ver. Recebo textos para ler e permaneço àespera, só na espera.

Como estão demorando... Será que devo ligar? Começo a ficarimpaciente e vou percebendo aos poucos que a minha vida, tão impre-visível, é totalmente previsível. Será isso um sinal da idade? Não sei.

O que eu sei é que a minha barba tem inúmeros fios grisalhos.Acho isso sensacional. Talvez me respeitem agora − risos − ou entãome internem em um asilo. Aliás, eu quero dar o mínimo de trabalho atodos quando chegar a minha hora. Se eu puder morrer sozinho, naminha casa, será uma grande graça.

Acho que eles chegaram. E acho que também termino agora. Odomingo apenas começou, mas a minha vida tem muito ainda para servivida.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Um texto assim:qualquer um

A minha dor não se acalma tão facilmente. Ela vai e vem sempedir licença e deixa-me perdido e sem ação. Ela me faz chorar, sentarem um cantinho qualquer da casa e ficar olhando a esmo tudo o queexiste ao meu redor. E, por horas a fio, assim fico.

O mais engraçado disso tudo é que parece que eu gosto e queroficar assim, quando, na verdade, eu gostaria de sair e ver o mundo,conhecer novos lugares e pessoas que mudassem só um pouquinho orumo de minha vida.

Não que eu não goste do que vivo, muito pelo contrário, eu amotudo isso com tal intensidade que acabei me apegando tanto a essecarinho, que temo o dia em que ele acabar. E sei que um dia ele acon-tecerá. Mas também sei que neste dia eu estarei em outro lugar.

Estarei em uma outra cidade, vivendo uma vida totalmente dife-rente desta, com pessoas que ainda nem conheço, mas que farão par-te de meu novo cotidiano. Irei me testar novamente e tentar vencer,como sempre faço. Só que desta vez não sei se quero me desafiarnovamente. Quero apenas o que for meu e nada mais. E acho que fuisempre assim.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

O fato é que hoje me pego avaliando tudo o que já vivi, se gostode tudo, ou se mudaria algo. E isso ainda me deixa sem resposta, poisnada que eu desaprove hoje poderá ser mudado. Já foi! Mas possoconsertar...

Um dia eu lerei tudo isso e vou ter uma nova opinião. Mas semprevou me lembrar da menina que me encontrou e disse que o que eutinha escrito em meu livro era a vida dela. E que ela me amava por tudoisso. Bonito, não? Eu nem sequer imaginei um dia que pudesse interfe-rir tanto assim na vida de alguém, mas eu fiz. E acho que foi bom.

Se eu puder continuar sendo assim, se eu puder deixar de ser tãotriste...

Não sei.

Só sei que agora uma nova fase chega. E tudo pode transformar-se. E nada, nada será como era antes. Só me resta esperar....

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

LampejosNão quero falar de amor

Nem quero pensar em tristeza

Tampouco relatar alegria

Pois não a sinto

E assim sendo me denuncio

Com um texto falso.

Talvez fale de esperança

De um tempo ainda por vir

Quando o sol, por detrás das montanhas,

Surgir e esquentar a cidade

Daí, sim, vou esboçar um sorriso

Só que o que eu mais quero, penso e desejo

É pensar no passado

Ao olhar com olhos marejados

A saudade na mesa da sala de jantar

Saboreando um estrogonofe

Por isso, não falo de amor

Por isso, não solto o riso

Por isso, não me desespero

Por isso, anseio pelo novo

Novo que a saudade trará

E me permitirá de novo sonhar...

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Já passouVolte, meu bem, volte

que quero você agora

sem nada nas mãos

sem nem um copo d`água

sem roupa nenhuma

apenas louca de dar nó

Volte, apenas volte

e reveja tudo

com olhos sãos e descansados

mire o azul prateado

das paredes e endireite o quadro

chame-me insano

e aceite-me como sou

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Senão, fique onde está

que as horas passam

minuto a minuto, vagarosamente

que ficarei contando e no aguardo

de tudo isso findar

Talvez eu brinde com vinho

barato e meio vagabundo a sua ausência

e depois repense novamente

sei que agora quero que esqueça

porque eu...

eu já esqueci!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

A últimaque morre

Passo em falso

Calabouço meu

Angústias que pesam

Dor que não respira

Ando meio endiabrado

Cabisbaixo e confuso

Um faquir com fome

A tropeçar em algodão

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Loucura, loucura

Brisa que a noite traz

Esperança vã

E a vida, a vida, a vida

Bêbado e desorientado

Sem ter como nem por quê

Somente caminhando

Em direção ao caos

E quando me descobrir

Só e sem musa alguma

Mirarei aquela pequena fagulha

Que tanto procurei e nunca achei!!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

AusênciaDou-lhe minha hora

Meus dedos

Meus braços

Meu corpo

Dou-lhe meus pensamentos

E minhas palavras

Dou-lhe minha poesia

E toda a prosa

Dou-me e não peço nada

Em troca

Você me dá seu mistério

E esse “nonsense” de liberdade

Que já nem sei se tenho

Se é verdade

Ou fingimento

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Dou-lhe todo o meu amor

E você me dá o seu

E tudo transborda

E tudo se esparrama

Dou-lhe tudo isso

Não me dê mais nada!

Apenas um sorriso

E a calma

A paciência de esperar

Que um dia eu volte

E deposite em versos

O meu amor de ontem.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

ChamadoUm desenho parado

Sem forma alguma

Diria abstrato

Faz-me recordar

A forma que é sua

Reta, redonda, sinuosa

Trilha de estrada que acaba

Incompleta como sua vida

Inacabada como a minha

Sonho multifacetado

Palavras proféticas

De um salmo que cura

O sangue desatado

E o grito incontido

Que ensurdece a platéia

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Olho o desenho

E lembro paisagens

Que não são estas daqui

Outro mundo

Outro planeta

Uma outra Capela

É chegada a Nova Era

E o mundo manda um sinal

A estrela brilha

E as vozes ecoam na mente

Sou eu, sou você,

Somos todos nós

E como ansiamos por esta hora!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Fruta poesiaUma fruta aqui: caqui

Que desce e rola: acerola

Ladeira acima: laranja-lima

E cai na prateleira

Logo abaixo dos morangos

Onde ninguém mais vê

E não leva: a uva

De tamanho: abacaxi

E eu aqui mais uma vez fico

Nesta poesia que não acaba: jabuticaba

E tem gosto de não: limão

Um ritmo: kiwi

E que não mora: amora

Agora na igreja: cereja

Com a irmã: romã

Tempo de perigo: figo

Foge para a casa da tia: melancia

Fica sob a cama: banana

Escondido

Sozinho

Que já tô indo: tamarindo

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Pra mimUm beijo teu

com sabor de veneno

que me traga a incerteza

e toda a volúpia precisa

para que te ame

e te devore

pouco a pouco

Um lábio teu

carnudo e vermelho

carmim que é pra mim

uma noite de luar

numa nau a navegar

no mar sem fim.

Um olhar teu

define o tempo

toda a hora

onde finda, onde começa

o tempo exato

do nosso amor.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

SarauTarde de amigos,

conversas jogadas ao ar,

tempo de colher idéias

e discutir sentimentos que possam surgir.

Ah, noite bela que se aproxima

entremeada pelo pôr-do-sol hipnotizante!

Um beija-flor, um girassol,

uma flor-de-maio colorindo de rosa a vida.

E eu só olhando,

tentando compreender

a poesia que ela lê enquanto acenamos

e dizemos adeus ao astro-rei.

Até amanhã...

Até logo mais...

que outras tardes iguais a essa virão

outros alvoreceres

nesta longa estrada que nos conduz

ao ato final.

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Trecho de Gota de sangue (Angela RôRô)

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

O jogo perigosode tentar

Eu nunca dancei de olhos fechados, nem mesmo com os olhosabertos, ousei dançar em um salão.

E talvez seja tarde para aprender, com tantas outras coisas, quehá anos se acumularam em minha vida.

Poderia começar visitando os lugares aos quais sempre quis retornar.São lugares tão banais que, se bobear, dava até para ir agora. Por exem-plo, eu gostaria de voltar ao colégio onde estudei. Quero entrar deolhos fechados e tentar captar os sons do passado. Entraria nas salasque um dia foram minhas e me sentaria nas carteiras. Escreveria nalousa com um toco de giz, já gasto e quase sem uso. Tentaria recordartodas as táticas para colar as fórmulas de Física ou as tabelas de QuímicaPeriódica que usávamos e, com certeza, riria muito, muito e muito.

Depois sairia da sala de aula e andaria pelas escadas dirigindo-meao pátio. Olharia para a velha cantina e sentiria o gosto do enroladinhode presunto e queijo que comia quase todo dia.

Por alguns instantes ficaria imaginando a velha turma andandopara lá e para cá, contando casos, disputando as meninas, para, sóentão, me dirigir à quadra da escola.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Tenho quase certeza de que me sentaria na pequena arquibanca-da e ficaria sonhando, como que voltando uns 25 anos no tempo, numamanhã de sol, em plena aula de Sociologia, à qual não tinha interessenenhum de assistir. Ficava ali, na quadra, enturmado com a turma dooutro período, jogando voleibol e me achando o máximo.

Ah, bons tempos!

Com os olhos lacrimejados eu tentaria andar por todo o restanteda escola. Tiraria fotos e procuraria, por todo canto, algum vestígiomeu. Claro que não acharia nada e, é claro que não me desapontaria.

Iria embora satisfeito e talvez matasse esse fantasma que mepersegue. Acho que vislumbraria este passado com outros olhos e nãosei o que mais seria da minha vida, a partir disso.

Acho que então eu aprenderia a dançar. Mas seria uma dançadiferente. Um tango. E ousaria dançar em meio a uma multidão. Equando estivesse bem seguro de mim mesmo, aí fecharia os olhos.Imaginaria uma nuvem, um céu azul e ficaria ali, dançando...só dan-çando.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

O tempoQuando me sobrar um tempo vou recolhê-lo e guardá-lo num co-

fre. Assim, quando eu precisar dele, bastará buscá-lo e aproveitá-lo,porque meus dias são muito corridos. Nem tenho a capacidade paraparar tudo e brincar com meu cão. Coitado! É o que mais sofre.

Só paro mesmo por minhas sobrinhas. Daí, esqueço tudo e souapenas delas. Nada me importa, nem tem valor. O tempo tão preciosoque tanto regulo para mim é todo delas e nele me permito sentar nochão e fazer bolas de sabão, só para ouvir o riso farto de Pietra quandouma delas pousa em mim.

Para mim este tempo é sagrado. E queira Deus que eu tenha mi-lhões de tempos assim como este! Que eu as possa ver crescerem epossa brincar com seus filhos!

Daí, minha missão está cumprida.

Daí, poderei seguir minha vida.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

O somdo silêncio

Eu pude ouvir o nada

onde o nada nem existe.

E, confesso, não entendi.

Consegui vislumbrar vales

e colinas além do horizonte.

E, confesso, não entendi.

Eu não entendo mais nada.

E, confesso, nem tentei,

ou me esforcei a tentar.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Estou sentado na areia da praia

E as ondas embriagam-me

lentamente, bem lentamente.

Eu contive um grito que estava

parado dentro de mim e

fechei meus olhos abruptamente.

Eu não fiz nada.

Eu não vi nada.

Eu não senti nada.

E, confesso, estou melhor agora.

Mas, nem me pergunte a razão.

Eu continuo sem entender nada.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Perguntasde Pietra

Ela sentou-se em meu colo,

mirou meu olhar

com seus olhinhos azuis

e me fez aquela cara

de quem vai perguntar algo.

Eu disse que estava doente,

mas não disse de quê.

Ela me perguntou afoita

se eu também iria morrer.

E eu, quase em pranto,

afirmei que não.

Mas o que ela não sabe

é que ali, naquele instante,

eu morri um pouquinho...

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Uma cartapara você

E o que me sobraram foram as fotos, retratos que miro e tentocaptar o exato momento oportuno de felicidade que se instaurou ali.Invade-me uma certa melancolia ao mesmo tempo em que me aqueceo coração.

Pouso meu olhar sobre os retratos de quem já partiu e abro umapequena ja-nela em meu peito. Sorrio, tentando disfarçar a tristeza quelogo começa a refletir e acabo buscando as páginas de meu computa-dor para expressar tudo o que passo a sentir.

Eu me pergunto:

− Para quê servem estas fotos? Ao menos me consolam ou medeixam cada vez mais triste?

Não tenho essa resposta.

Sei que na fotografia você vive e sorri lindamente. Cada momentoali registrado traz uma história que somente quem viveu vai poder selembrar e recordar. Tenho na lembrança cada roupa, cada situação,todo o nervosismo quando da nossa primeira apresentação pública emum auditório local, bem como a aclamação de todos os presentes pelosucesso alcançado.

E você vive ali! Num repente você solta o seu sorriso de felicida-de que desabrocha lindamente em sua face. Ninguém, ninguém imagi-naria que em tão breve tempo só restaria essa lembrança sua.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Sabe que eu nem mesmo sei quantas fotos tenho de todos nós?Não tive ainda coragem para abrir todos os arquivos que possuo edesbravar todas as situações em que estivemos juntos.

Cada dia é uma nova descoberta, como a do batizado, fotos quese julgavam perdidas e que achei quando ninguém mais esperava.

Como será que você se recorda de nós? Será que existe uma ja-nelinha igual a uma televisão, aí onde você vive, que mostra comoestamos vivendo? Ou o quanto demoramos para reaprender a viver?

Não, eu não sei se gostaria que você visse isso. Acho que nofundo, no fundo, eu apenas queria que você olhasse os breves momen-tos de felicidade que alcançamos: o sucesso iminente, suas filhas cadavez mais lindas e a nossa família, sempre unida. Para sempre.

Eu não queria escrever de novo um texto triste, mas é inevitávelnão chorar quando tento lhe contar tudo o que ocorre por aqui.

Muitas coisas mudaram. Mais gente se foi.

Será que se encontraram com você? Ou será que vivem em lo-cais diferentes, como um outro país, como vivemos aqui na Terra?

Sabe, eu não sei quanto tempo me resta. Talvez eu ainda demoremuito por aqui. Tenho muito a aprender e a ensinar. Todo dia isso acon-tece na minha vida. E toda manhã quando me levanto eu agradeço pormais um dia. E quase sempre Deus me responde da maneira comopode: com um raio de sol esquentando meu braço, com um pássarogorjeando, até mesmo com um arco-íris.

Mas, para mim, a melhor manifestação de Deus é quando estoucom sua filha em meus braços e ela encosta o rosto em meus ombrose me beija, dizendo que me ama. Aí, eu perco o rumo de tudo e julgoque não mereço isso. Choro baixinho para que ela não perceba e tam-bém agradeço a você, por ter me dado este presente, presente quemerecia ser seu. Mas, como sempre digo, não somos donos de nada,

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

não sabemos nada, apenas vivemos esperando algum sinal. E, queridairmã, os sinais têm acenado muito para mim ultimamente. É uma gran-de felicidade poder se sentir querido e recompensado. E eu me esforçopara pode merecer tudo isso. E quase sempre acho que não é certo.

Eu queria lhe contar tudo isso.

Sabe que quando escrevo penso muito em você. Penso em comovocê escreveria, nas palavras que deveria usar. Hoje, quando revisoum livro, eu a imagino ao meu lado e me apoiando. E sei que vocêsempre vai estar com a gente, assim como nós nunca nos esquecere-mos de você.

O que eu mais quero que chegue é o dia em que vou poder contarpara as suas meninas sobre você, como você era e todo o seu potenci-al. Espero muito que elas me dêem essa chance para manter acesa asua chama e todo o seu empenho e determinação para que elas pudes-sem estar hoje aqui, com a gente.

Vivemos o ano de 2008. Quase um ano faz da sua partida. Nemparece... Eu ainda penso que o meu celular vai tocar e vou ouvir a suavoz.

Era isso. Apenas isso que tinha a contar. Estamos crescendo.Estamos virando gente grande, participando de tudo o que nos é possí-vel. E tudo parece, ainda assim, incompleto...

Bem, o dever me chama e tenho muito o que fazer antes de dormir.

Um grande beijo em seu coração repleto de saudades terrenas.

Do seu irmão que nunca a esquece...

Márcio

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

SerenataNoturna

Pensei que pudesse escrever sem ser saudoso

E até imaginei que um dia voaria absorto pelos ares

Mas qual, não sou nada sem minha memória ancestral

E nada que eu tenha a dizer se faz sem lembranças

Eu sou a pura chama acesa que arde em brasa

Na lareira da casa esquentando corpos cansados

Estou ali, nu e cru, escondido entre as arestas

Em meio a azulejos portugueses e caquinhos de vitrais

Se não me vê, não compreende nada

E se me enxerga, enrubesce

Talvez sinta vergonha ao constatar que observo

Seus gestos e atos obscenos, impecavelmente puros

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Então cai em si e se esconde sob a coberta

E fica à espreita, esperando que me vá

Não, eu não me vou

Pertenço aos seus pensamentos mais indóceis

E não me doma, nem me afugenta

Acalma, espairece, mostra-se, despe-se,

Sorriso lânguido, meio Mona Lisa

Sem revelar, sem esconder

E me atrevo a perguntar

E se nega a responder

Então me disperso e me recolho à minha calma,

Noturno de minha vida, repouso da alma

Desisto de tudo e durmo

Mas dentro de mim fica a dúvida

Eu existo? Ou sonhei tudo isso?

Onde é que mora a memória neste caso

E por que certas imagens insistem tanto em se repetir?

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

RetornoPode passar tudo: o tempo

a idade

a vida

a saudade

os amigos

as cidades

os amores

a solidão

a espera

a loucura

e o medo

Que eu vou passar e esperar

e chorar

e acreditar

e ouvir

e respirar

e sonhar

e cantar

e agradecer

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Como um louva-a-Deus

Todo dia, toda hora

Todo instante

E em cada segundo

Vou esperar a sua volta

o seu sorriso

o nosso encontro

e vou deixar

tudo acontecer

de novo, mais uma vez.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

A minha dorOlho para os últimos livros que você leu

e tento imaginar o seu universo e todas as coisas

que um dia você planejou e não irá cumprir.

Olho para a estante e vejo o mundo

ao qual você não mais pertence

e, aliás, ninguém pertence.

Olho e ouço a música, lembro a sua voz

e não consigo me esquecer dos seus olhos,

nem de nada de você.

Ainda não apaguei seus últimos e-mails

e ainda tenho em mente nosso papo sem resolução.

Talvez um dia essa saudade passe.

Por ora, quero esgotar a dor que sinto.

E relembrar

Chorar...

Lembrar ...

E viver!!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Falta coragemA maior coragem da minha vida vai ser quando eu finalmente

conseguir apagar o seu endereço do meu msn. Eu não consigo. Nego averdade e não aceito acreditar que você morreu.

Simplesmente está lá, apagadinho... e eu fico na esperança devê-lo aceso, piscando enviando-me uma mensagem. Talvez esteja en-louquecendo ou então espero vir de uma outra dimensão esta mensa-gem que sei que nunca chegará.

Então, por que manter seu endereço ainda ali?

Está aí uma resposta que não tenho, nem quero ter. Quero ape-nas, quando ligar o meu msn, ver o seu nome ali, me dando uma pon-tada de dor, de tristeza e de felicidade ao mesmo tempo.

Este final de semana passei com a sua filhinha. Ah, como me éduro olhar nos seus olhinhos azuis que por tantas vezes me parecemtristes e não chorar! Como posso definir a sensação que me aflora àpele quando estamos deitados, conversando sobre a sua rotina na es-cola, a festinha de aniversário, o presente que ela quer ganhar... coisasde mãe e filha.

Confesso que me sinto mais mãe do que qualquer outra coisadela. E o que gostaria mesmo era de que ela nunca mais sofresse aperda de ninguém, ou então que eu fosse imortal e pudesse proporcio-nar a ela todo o amor de que ela necessitasse.

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Mas não posso. Eu somente posso acompanhar sua vida e vê-lacrescer ao lado da irmãzinha que ela tanto ama. E eu quero amar asduas da mesma forma. Mas também tenho medo. Medo de sofrer denovo, medo de perder de novo alguém que me faria tanta falta, comose tivesse sido arrancado de mim mesmo um pedaço.

Aliás, me falta um pedaço. E sei que não vou recuperar, nem que-ro. Aprendi a estar amputado e me virar desta forma. É assim que temde ser e assim será.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

EvoluçãoTornei-me um homem sério:

um cidadão que recebe honras

e medalhas pelos seus feitos.

Pergunto-me:

– Cadê aquele menino de outrora?

– Cadê seus sonhos e desejos?

– Onde foi parar seu Clube da Esquina

– E toda a sua arte?

Tornei-me meus sonhos ocultos

e já nem sei a razão disto tudo,

se me faz bem, se me agrada

ou se me atrapalha,

pois muito tempo se passou

desde que tudo começou.

Já nem sei se realmente estou

onde deveria estar.

Diz: onde foi parar a felicidade

que se autodespejou daqui

onde moro?

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Tornei-me responsável demais.

Um pai sem filhos meus,

só seus e seus.

E mesmo tendo me tornado

tão eloqüente e sisudo

diria que acabei me divertindo

com tudo isso

e que acabo rindo sozinho,

quando toca o celular

Tornei-me um homem só,

eu que sempre fui tantos.

E acabei habitando

o lugar que sempre achei que não queria.

E fiquei forte...

E fiquei feliz...

E fiquei eu...

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Tornei-me o que sempre fui,

o que havia combinado de ser.

E quanto mais penso em tudo

mais ainda tudo se encaixa.

E sinto saudades...

E torço pelo futuro...

E não vejo a hora

de me tornar de novo o que já fui

e morrer... de rir

de tudo o que já passei.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Lutandocomigo mesmo

Talvez se eu chorasse um rio de lágrimas

essa dor que sinto deixaria de aflorar

e de me machucar suavemente,

como na canção de Roberta Flack

que tanto admiro e ouço.

Então, mergulharia nelas e

banhar-me-ia na própria dor,

expurgando de meu corpo

as lâminas que o cortam e mutilam

e que me deixam cego e sem rumo.

Depois disso tudo, limpo eu estaria,

levantaria bem calmo e olharia

para o horizonte mirando as montanhas

que um dia sempre sonhei alcançar

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

E como numa idéia fixa

me dirigiria a elas a todo vapor,

sem desistir enquanto não lá chegasse.

Uma vez no alto delas

no cume eu me sentaria,

soltaria os cabelos, tiraria as roupas

e me entregaria a fazer amor

com o vento.

Arrepiaria todo o meu corpo,

sentiria por toda a minha pele

e os últimos resquícios sumiriam

de uma só vez,

sem nenhuma dor a mais.

Só ficaria a dor da lembrança

Mas esta, o tempo é fiel guardião.

Então eu desceria da montanha

dando um passo de cada vez.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Leria um bom livro

ou então um jornal.

Telefonaria a você que me lê,

perguntaria o dia, a hora, o mês,

sorriria meio que surpreso ,

como se comentasse em pensamento:

– Puxa, passou tão rápido!

E continuaria minha vida

como sempre toquei,

sem nada a mais,

nem a menos.

E tenho a mais absoluta certeza

de que você

faria o mesmo.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

SonâmbuloMeu percurso noturno pela estrada

Minha vida sendo mostrada

A toda velocidade

Sem nenhuma parada

Na janela do carro

Aparece cansada

Meu andar arfante pelas ruas

Traz-me imagens

E lembranças suas

Seu riso e o seu jeito de ser

Sem ordem, sem modo

Sem nada meu, só seu

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Meu sono entre as estrelas do céu

Viagens astrais onde me desdobro

Caindo no tempo sem data

Sem destino, nem local

Onde nem mesmo sei onde estou

E que visito sem ser chamado

Minhas linhas tortas escritas

Pedaço de alma que não é só meu

Encorajando-me a caminhar sozinho

Neste pedaço de vida que é só meu

Nesta longa jornada que é a vida

Neste mundo onde moro

E posso chamar também de meu.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

BadulaquesUm dia me disseram que não conseguiriam dormir no meu quarto,

que nele há muita informação. Mas mal sabem eles que tudo aqui éproposital, eu preciso desta agitação sonora, visual e plástica para mesentir de bem comigo e com o mundo. Então me deito na cama e olhoao meu redor. Vejo cores. Vejo quadros: um de Kandinsky, outro dePicasso e um sutra do Buda da Criação. Atrás da porta existem doispôsteres: um autografado pelo Maurício de Souza e Paulo Coelho, outrode um filme para adolescentes que achei o máximo.

Daí, olho para minha famosa estante. Devo confessar que amoestantes e caixas. Um dia, no meu aniversário, ganhei uma camiseta eum DVD, dentro de uma caixa bárbara. Os anos passaram, a camisetanem uso mais, o DVD, acho que ainda nem assisti a ele... mas a cai-xa... ah, a caixa, esta eu olho todos os dias. Dentro dela há papéis edocumentos importantes, que, de tempos em tempos, jogo no lixo. Sóque a caixa fica!!!!

Voltando à estante...

Não sei precisar quantos livros tenho nela em exposição. A maiorparte ainda não li, mas pretendo. Estou guardando para a velhice. Ri-sos. E é surpreendente olhar para eles e descobrir, a cada vez que olho,um livro diferente. Ontem mesmo, achei um que quase comprei noshopping, e eu já o tinha.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Eles – os livros – ficam pululando e me chamando a atenção comsuas lombadas coloridas e títulos diferentes. Por isso sou editor, o uni-verso da leitura me fascina.

Além dos livros existem os mil badulaques que enfeitam cadaprateleira, como os porta-retratos, bonecos de personagens dos cartoonse filmes Disney, souvenirs do mundo, minha coleção de Budas, anjos,DVDs CDS, aparelho de som, computador plugado 24 horas na internet,impressora, câmera, caixas, canetas, perfumes, remédios, quadros,revistas, tarôs, Ipod, fones de ouvido, uma esponja fechada, lacrada,no formato do Bob Esponja, álbum de relatos e sei lá mais o quê... issotudo, só na estante.

Sobre minha cabeça há uma prateleira. E nela fica a minha cole-ção de tarôs e baralhos esotéricos. É um verdadeiro oráculo, com cris-tais e mais mil badulaques enfeitando.

Por isso, o milhão de informações.

E tudo isso eu amo muito.

E por mais que eu diga que não sei tudo o que tenho no quarto,basta sair e retornar a ele que, só de olhar, já sei que alguém neleentrou ou que está faltando algo. Não sei como faço isso. Sei que faço.Mas não ligo, não. Tudo aqui não é meu. Não é de ninguém. É de quemsobrar. De quem ficar por aqui.

Garanto que vai ter divisão por muito tempo e olha que nem faleide tudo. Eu me esqueci do violão, do teclado, das canetas e incensos.Blá, blá, blá...

Talvez seja por isso que dizem que ando ligado nos 220 volts. Masrepetindo e parodiando, eu amo muito tudo isso!

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AlheioDos sons retiro um silêncio inócuo. Escondo-me por detrás das

persianas e observo toda a família a se debater em ruídos, risadas etodas as formas de afeto e considerações.

Estou alheio a tudo isso e não me importam mais as luzes dacidade, nem o programa da televisão. Assisti a um filme que ainda nãome saiu da cabeça e tentei entender, mais uma vez, a razão de tudo.

Ouço-os debatendo sobre os preparativos do aniversário da nenêe continuo desinteressado. Cadê a minha animação, os meus desejosincon-fessos de ter tudo isso?

Ruíram. Sumiram. Desapareceram.

E o tempo vai registrando em minha memória este momento quepassa longa e demoradamente. Sei que sou louco. Sei que deveriaparar tudo e me integrar, mas o fato é que não posso, não quero, nemsei mais...

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

DistanteA sala era clara e azulada

e sobre a mesa repousavam

dois castiçais com velas rosa.

A confusão de vozes causava

ansiedade e angústia

em quem apenas desejava o silêncio.

Lá fora, a noite estampava festa.

Cores alegres e figuras enigmáticas

revelavam seus modos e opiniões

de maneira simples sem exigir nada.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Na tela o homem não parava de falar

sobre o que viria a seguir e tudo o mais.

Todos estavam inquietos

menos o menino no quarto que jogava

em seu computador um game qualquer.

Ele falava sozinho e eu me dizia triste

quando veio a cobrança de certa festa.

Talvez um dia eu fique animado outra vez,

tal qual a sala azul iluminada

onde a alegria reinava sem parar

e só um poeta tolo e distante

insistia em não participar

de absolutamente nada...

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

CenasLembro-me de meu pai a dizer coisas engraçadas

e dançar desengonçado nas festas familiares.

Lembro-me de minha irmã escolhendo sapatos

e ficando, como sempre, com o da cor preta.

Lembro-me das tardes de domingo em que

íamos todos para a piscina do clube nadar.

Lembro-me do ônibus que me levava ao colégio

toda manhã em que acordava atrasado.

Lembro-me da pipoca do cine Marabá

bem salgadinha e deliciosa como nenhuma igual.

Lembro-me dos circos que se instalavam

com seus elefantes, palhaços e leões magrelos.

Lembro-me das pipas cruzando os céus que

eu e meu irmão soltávamos rindo no quintal.

Lembro-me da morte, que me pegou de surpresa

pois achava que éramos imortais.

Lembro-me de que fui muito feliz e não sabia

e, hoje, a única coisa que sei é que a tristeza,

embora passageira, demora demais para passar.

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Banho de marEu vi o mar pela primeira vez um pouco tarde na minha vida.

Tinha por volta de 16, 17 anos e tive um grande choque. O mar mearrebatou com a sua volúpia e me hipnotizou. Eu só queria entrar nomar e ir, ir bem ao fundo, sem querer voltar.

O mar sempre me enganou, por isso desconfio dele. Vou até ondepossa sentir a areia sob meus pés, até onde possa ver o fundo, os peixinhosnadando e as conchas escondidas nas suas águas cristalinas.

Gosto de tomar banho de mar, mas não mergulho mais nas suasprofundezas como um dia já fiz. Fico solto, boiando e me ardendo aosol. Bronzeando-me, diriam nos anos setenta, época em que minhairmã e primas ficavam horas e horas tomando sol para parecer quetinham ido à praia. Protetor solar? O que é isso? Nem existia... e nenhu-ma delas teve doença nenhuma na pele...

Mas voltando ao meu mar... Aprecio sentir suas ondas e marolas,tentando me pegar desprevenido, rio das suas tentativas, deitando-mena areia a esperar a alta da maré. Permaneço um bom tempo assim,esquecendo-me de tudo e dialogando com o mar.

Ele me diz que tudo o que vai, volta. E eu digo que espero hámuito o retorno de muitas coisas. E ele responde: “tenha calma, meni-no!”. E eu sigo a minha vida observando seu movimento. Um dia, quemsabe, morarei junto ao mar, talvez vire até pescador, ou um castelo deareia, habitado por todos aqueles que tanto amo e que moram dentrode minha alma; mas um castelo que o mar não leve, mas, se ele levar,que me leve junto e que não nos traga de volta nunca mais.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Perdido no tempoEnquanto espero

chegam-me as palavras,

vozes ditadas em meu pensamento

que afloram e preenchem

este pequeno pedaço de papel.

Enquanto ainda não é chegada

a minha hora

penso nas coisas a se fazer

penso na vida e reflito

tentando achar saídas para as situações

que, por ora, se apresentam.

Enquanto não retorno ao passado

a vida não flui,

a mente divaga e me inquieta

pois a resposta, embora óbvia,

urge a se apresentar.

E o momento é agora,

a vida é esta

e o confronto é presente.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

BuscaCordão de prata

ligado ao meu corpo

que me prende e desperta.

Deixe-me sair agora

Deixe-me chegar

aonde tenho de ir

para tornar a alcançar

rebuscar...

rememorar...

rever...

confrontar...

descortinar...

redescobrir...

revelar...

e me confortar.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

LiçõesDe todo silêncio tiro uma lição.

O que fazer quando a alma chora,

O coração silencia

e o único ímpeto é o desespero?

De toda a angústia há sempre o que se aprender

mesmo que o ritmo descompasse

e que o medo aflore

tornando a fuga a única saída.

De todo o problema resta uma luz

apesar da escuridão da sala,

do quarto vazio iluminado por fotos

fazendo com que a saudade desabe sobre o corpo.

Ah, de tudo sempre há o que se aprender

E não chore, não ria, não grite, nem reclame.

A razão disso tudo é desconhecida hoje

mas amanhã... Ah, o amanhã...

Este, a Deus pertence. Confie!

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

CicloTenho um coração machucado

que me dói, dói tanto

a ponto de me deixar louco.

Um coração ensangüentado,

vertendo lágrimas de tristeza e infinita solidão.

E sei que tudo isso passará

e que num futuro incerto

recordarei esses momentos.

E terei um novo coração: dividido e multifacetado,

a ser preenchido com novas histórias,

memórias ainda inexistentes que o completarão.

E dele jorrarão fontes de lágrimas,

puras e cristalinas,

morada de alegria e de esperança.

E sei que passará

Como tudo passa e deve seguir

Mas as memórias vivas ficarão

para sempre em nossas vidas.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Minha meninaNo sorriso da menina: a flor

No semblante dos seus olhos: a saudade

No seu modo de ser: a lembrança

Na sua alegria infantil: a verdade

No seu jeito sincero de ser: a inocência

Nos seus olhos azuis infinitos: a vida

No seu cantar ritmado e puro: a alegria

Na confiança que em mim deposita: o amor

Por mais que eu tente,

e olha que eu tento muito,

nunca serão suficientes

todos os agradecimentos ao Senhor,

pela sua existência.

Você é o porto seguro onde

aporto à procura de paz.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

No seu carinho e abraço afetuoso: a confiança

Nos seus pedidos que não nego: a paciência

Nos nossos papos e conversas: a certeza

Na nossa história por entre séculos: o reencontro

E assim será

por que assim foi escrito

pelas mãos que guiam e orientam.

E tudo vai se revelando aos poucos

e no final, todas a incertezas

confirmarão as suas razões.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Premissas de umfuturo a se revelar

Não, eu não tenho por que reclamar de coisa alguma. O que eutenho é uma leve inquietação que me incomoda. Um pouco, mas inco-moda. Vai me dizer que você esperava que eu fosse feliz o tempo todoe que vivia cantando, sorrindo e não me importando com nada?? Ah,amigo, você se enganou... Eu vivo e respiro como qualquer um e tenhoos mesmos anseios, inseguranças e recompensas.

Há momentos em que viro um menino que ganhou um carrinho depresente e sigo construindo pontes e estradas para ele. Consigo atéouvir as vozes dos parentes dizendo assim: “este vai ser engenheiro”,“olha só o que ele construiu...” É, ainda ouço as vozes.

Mas, mais do que isso, eu consigo me recordar dos sonhos que játive e nunca realizei e dos sonhos que jamais ousei sonhar e que estourealizando hoje. Engraçado, mas crescer é isso mesmo. É jogar fora osvelhos ideais e transformá-los em prédios de concreto, que não caemao vento. E olha que já fui hippie – em sonho – e já pensei em viver deartesanato numa praia qualquer do Brasil – ainda penso nisso. Só que ofuturo me pegou de calça curta e ele nem bem chegou e tornou-sepassado. Vivo eu do pretérito imperfeito?

E ainda reafirmo que não vou reclamar de nada. Que bobagemmexer nas coisas que estão prontas e funcionando. Eu quero soluções.E quero rápido.

Tem uma senhora que diz que eu e ela nascemos de sete meses,

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

ou será que os outros é que nasceram de doze? Não sei bem ao certo.Sei que meu dia não termina antes de que o outro dia comece. Euamanheço sorrindo e agradecendo por mais uma jornada diária. E repi-to o ritual ao dormir. Se o dia foi legal ou importuno, não importa. Qualé a lição que tirei disso? Aprendi algo? Senão tudo vai se repetir... Eisso me irrita.

O futuro acena e me absolve. Estou livre para o que der e vier.Estou aqui pelo menos – esta é a única certeza que a vida me dá. E atéquando? Isso ninguém sabe. Então, adeus batucada, vou tirar minhaviola de dentro do baú e fazer serenata para a moça da janela. Vou paraa Bahia e vou comprar para o Evandro a negra peituda que ele tantogamou. Calma aí, é tão-somente uma estátua de madeira que arrasteido Mercado Modelo para a minha casa. Mas ela tem uns peitões...

Não é isso risível? Isn´t it? Lembrando o question tag da queridaDausiley que, aliás, fez uma palestra bem legal sobre Machado deAssis em um evento. Convite meu. Como o mundo dá voltas... Outrodia era seu aluno, adolescente... já hoje...

E me diz uma coisa: eu tenho do que reclamar? Já plantei árvore,já escrevi livro, já viajei pelo mundo, já li mil coisas, já briguei, já parti,já sei tanto e, é claro que não sei de nada... como a música. Não, eunão tenho.

O melhor a fazer é abrir meu sorvete Häagen Dazs e assistir a umDVD. Dormir em seguida e levantar pela manhã. Abrir meus olhos, sen-tir o sol na minha pele, dar um telefonema de bom-dia e trabalhar. Ànoite, quem sabe, escrever mais um pouco. E, no fim de semana, des-cansar... É isso que a vida me dá. E é tudo o que eu mais quero. Achoque sou feliz.

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FinalTalvez o meu maior medo seja o de não conseguir parar. Eu bem

que tento, mas não consigo.

Olho através do vidro embaçado e vejo a vida pulsante que corredefronte a minha janela. Eu faço parte deste caos, sou um organismovivo, parte, não diria fundamental, porém essencial à vida das pessoasque me rodeiam e esperam de mim aquilo que não sei se estou prontoa ofertar...

E eu luto!

Luto, pois desistir não existe em meu dicionário; meu verbo épersistir e continuar acreditando até quando e onde a certeza me levar.

Entretanto há horas em que perco o rumo. São tantas coisas apensar, definir, decidir se fico, sem saber qual é a direção certa, o rumocerto. Então, me arrisco.

É perigoso jogar com a sorte, tem de ter muita confiança nas luzesda estrada, tem de se guiar por avisos nem sempre visíveis e é precisosempre acreditar.

Por isso o meu medo de não conseguir parar. Penso que se pararacabo parando também. E eu tenho e preciso continuar. Meu caminho,embora difícil, tem um objetivo que se mostra aos poucos na trilha quesigo. E tenho de chegar, seguir nessa direção, largar desse cais e ir semdireção. Tentando sempre, esquecendo o medo e me deixando levar.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Pós-escritoO escritor Márcio Martelli, que se fez amigo da distância com

proximidade de ternura, propõe-me o pós-escrito de seu livro Sangue:literatura e outras loucuras. Ouso aceitar. Não que me considere prepa-rada para analisar seu livro, mas porque escolhi viver, ler e escreverprocurando entender o que mora nas entranhas dos outros e nas mi-nhas. Márcio é coração. Escreve sem medo de se revelar, entrega-se,despe-se das máscaras que a sociedade aplaude e se permite ser elemesmo. Márcio é portador do sentimento dos sonhadores maiores.

Escreve: “Pouso meu olhar sobre os retratos de quem partiu eabro uma pequena janela em meu peito”. Essa colocação, em minhaleitura, condensa o livro. A cada página, os versos escorrem de nossosolhos para abrir uma fresta do horizonte. Quanta beleza, meu Deus!

Contêm, os seus textos, “uma flor-de-maio colorindo de rosa avida” e nos mistérios de seu alto mar pessoal, a presença inesquecívelda Alessandra Pezzato, sua irmã querida, que volta como gaivota nopôr-do-sol e lhe traz, num sussurro, a carícia das nuvens brancas. Oescritor, de vôo constante, emocionado, tropeça em algodão e, porcerto, em meio às águas do oceano é capaz de perceber uma orquestrade girassóis do céu.

Diz a quem lhe toca a alma:

“Dou-lhe minha poesia

E toda a prosa

Dou-me e não peço nada”.

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

Coloca-se por inteiro em cada palavra porque não se envergonhade ser humano e, com as nuances da fragilidade, constrói seu poemas-vitrais. Azul, vermelho, verde, amarelo, violeta... Há neles silhuetascompostas pela brisa do outono.

O título, que diz das loucuras, faz-me recordar uma frase que li emalgum lugar e na qual não constava o autor: “Somos poucos, mas pou-cos que somos, somos loucos”. E é essa a realidade dos raros, como opoeta Márcio Martelli, que se permite entender as planícies e as cordi-lheiras. É de “loucura” porque navega contra a correnteza da indiferen-ça para com poesia semear, nos jardins conhecidos e nas ilhas inex-ploradas, brancos lírios.

Neste livro há partida sem perder a descendência. E o autor ape-nas fica “matutando em seu pensamento o que se passa nas cabecinhas”de suas sobrinhas, “como é que vêem o mundo e o que esperam davida”. Há as raízes de cada um: “Volte, apenas volte / e reveja tudo”.

Feche este livro com as mãos em concha e carregue nelas, paratoda a vida, gotículas desses versos grávidos de afeto!

Maria Cristina Castilho de Andrade

É cronista e professora

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Sangue: literatura e outras loucuras Márcio Martelli

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SumárioO porquê, por Márcio Martelli ........................ 5

Beba do meu sangue, por Picôco Barbaro ..... 7

Breve biografia, por Alessandra Pezzato ........ 9

Cenas da vida, por Mara Lígia Biancardi ..... 13

Sobre emoções ingurgitadas...,por Josyanne Rita de Arruda Franco ............ 15

Quem disse que homem não chora?,por Flavia Cunha ........................................... 17

É só uma gota de SANGUE em forma verbal

Apenas escrevo ............................................ 21

Cacos de vidro .............................................. 24

Tristeza .......................................................... 26

Verdear .......................................................... 28

É sábado. Estou sozinho ............................... 29

Certeza .......................................................... 31

Expectativas ................................................. 32

Desdobrar ...................................................... 33

Inspiração...................................................... 34

Para o futuro ................................................. 35

Rainha do mar .............................................. 36

Sozinho ......................................................... 37

Inexperiência ................................................ 38

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E o meu SANGUE ferve por você

Alice .............................................................. 41

No ar ............................................................. 45

Olhar ............................................................. 46

Irene ri ........................................................... 47

Novos rumos ................................................. 48

Solidão .......................................................... 50

Mentor .......................................................... 54

Uma prece para as mães ............................. 56

Estátua .......................................................... 59

Pietra e o poodle .......................................... 60

Lélia e a gata preta ....................................... 62

Ela, apenas ................................................... 64

Raul e os pássaros ........................................ 66

Já estanquei meu SANGUE quando fervia

Estressafra .................................................... 69

Confissões à meia-luz ................................... 71

Pânico ........................................................... 73

Todo dia ........................................................ 74

Queixas ......................................................... 76

Esperança ..................................................... 77

Ah... os clássicos ......................................... 79

Fase ............................................................... 80

Cadeados ...................................................... 81

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Fala ............................................................... 83

Meu momento .............................................. 84

Muito triste .................................................... 86

A obra inacabada ......................................... 89

Tarefa sem fim .............................................. 90

Talvez se eu prometesse SANGUE e pudins

Dia de domingo em minha casa ................... 93

Um texto assim: qualquer um ...................... 95

Lampejos ....................................................... 97

Já passou...................................................... 98

A última que morre ..................................... 100

Ausência ..................................................... 102

Chamado ..................................................... 104

Fruta poesia ................................................ 106

Pra mim ...................................................... 107

Sarau ........................................................... 108

Beba comigo a gota de SANGUE final

O jogo perigoso de tentar ........................... 111

O tempo ...................................................... 113

O som do silêncio ....................................... 114

Perguntas de Pietra..................................... 116

Uma carta para você .................................. 117

Serenata noturna ........................................ 120

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Retorno ....................................................... 122

A minha dor ................................................ 124

Falta coragem ............................................. 125

Evolução ..................................................... 127

Lutando comigo mesmo ............................. 130

Sonâmbulo .................................................. 133

Badulaques ................................................. 135

Alheio .......................................................... 137

Distante ....................................................... 138

Cenas .......................................................... 140

Banho de mar ............................................. 141

Perdido no tempo ........................................ 142

Busca .......................................................... 143

Lições .......................................................... 144

Ciclo ............................................................ 145

Minha menina ............................................. 146

Premissas de um futuro a se revelar .......... 148

Final ............................................................ 150

Pós escrito,

por Maria Cristina Castilho de Andrade ...... 152

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