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Salvador e a invasão

holandesa de 1624-1625

Ricardo Behrens

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Copyright © 2013 Ricardo BehrensDireitos adquiridos para a publicação em

formato eletrônico pela Editora Pontocom

Também disponível em formatos EPUB e MOBIno site www.editorapontocom.com.br

Ricardo Behrens

Salvador e a invasão holandesa de 1624-1625

Salvador: Editora Pontocom, 2013.

ISBN: 978-85-66048-22-3

Editora Pontocom • Salvador • Brasil

Conselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialJosé Carlos Sebe Bom Meihy (USP)

Muniz Ferreira (UFRRJ)Pablo Iglesias Magalhães (UFBA)

Zeila de Brito Fabri Demartini (USP)Zilda Márcia Grícoli Iokoi (USP)

Coordenação EditorialCoordenação EditorialCoordenação EditorialCoordenação EditorialCoordenação EditorialAndré Gattaz

Capa: montagem sobre gravura de Hessel Gerritsz (1627)

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Sumário

Agradecimentos 7

Introdução 9

Já entraram, os inimigos já entraram! 9

A literatura sobre o tema 16

As fontes 18

A estrutura do trabalho 19

1. Salvador, uma “aldeia aberta” 23

1.1. Salvador, uma “cidade fortaleza”? 25

1.2. Administração e conflitos 55

2. Da resistência ao contra-ataque: uma ocupação sitiada 79

2.1. Salvador, a “Terra Batávica” 81

2.2. No refúgio 104

2.3. Enfrentamentos entre colonos locais e holandeses 121

3. Da retomada à reorganização 139

3.1. A retomada da Bahia 139

3.2. Administrando o caos 176

Considerações finais 201

Fontes e bibliografia 205

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Agradecimentos

Agradeço aos colegas de graduação e mestrado que colabora-ram de alguma forma com a pesquisa, bem como aos professo-res do curso de História da Faculdade de Filosofia e CiênciasHumanas da UFBA.

Agradeço à professora Maria Hilda Paraíso Baqueiro pelaatenção e sensibilidade com que orientou parte significativa dapesquisa e conclusão do mestrado.

A pesquisa que deu origem a esse livro não seria possívelsem o financiamento do CNPq. Instituições de pesquisa como aFundação Clemente Mariani, o Arquivo Público do Estado daBahia e o Instituto Histórico e Geográfico da Bahia foram in-dispensáveis na realização da pesquisa.

Minha mais profunda gratidão a Zeneide Rios e ClovisRamaiana. Sem o apoio, paciência e encorajamento de vocêsem meus momentos mais difíceis não teria superado as arma-dilhas do caminho e certamente não teria tomado a iniciativade publicar essa pesquisa.

Por fim, dedico esse livro ao Prof. Ubiratan Castro de Ara-újo (in memoriam), maior incentivador dessa pesquisa. Orien-tador do Pibic e também no primeiro ano da Pós-Graduação,Bira não me deixou desanimar quando as fontes para o estudodo período pareciam inatingíveis e, em inesquecíveis conversaspelas ruas de Salvador, me possibilitou um aprendizado queextrapolou os “muros” da academia. Sempre sugerindo e

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apontando possibilidades, como fez no exame de qualificação,não mais na condição de orientador, mas de examinador, asdicas de Bira foram fundamentais para pensar o tema.

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Introdução

Já entraram, os inimigos já entraram!

Os homens que vinham do mar, adentrando a baía de Todos osSantos, traziam consigo um misto de expectativas e perplexi-dades. Para quem vinha de uma longa viagem de cinco mesespelo Atlântico, enfrentando todo tipo de suscetibilidade, che-gar ao destino deveria causar alívio, ainda mais quando o pon-to de chegada possuía uma paisagem deslumbrante como a dabaía de Todos os Santos. Entretanto, os tripulantes daquelesnavios holandeses que chegaram a Salvador naquele maio de1624 não estavam muito interessados na beleza do lugar. Pos-suíam uma missão a cumprir num terreno desconhecido pelamaioria, sendo provável que suas mentes estivessem habitadaspelas dúvidas e ansiedades comuns a quem está prestes a en-contrar o desconhecido e entrar em combate.

Boa parte dos tripulantes daqueles navios que estavam dian-te da Capital da América Portuguesa eram aventureiros e merce-nários do Velho Mundo. Apenas quinze dias antes, quando passa-vam pela costa pernambucana, souberam seu verdadeiro itine-rário: atacar o “Reino do Brasil”, mais precisamente, sua capital.Naquele momento receberam ordens para que preparassem suasarmas e se provessem de munição. O alvo se aproximava.

Uma das principais motivações do ataque holandês ao Brasilera deslocar os conflitos entre a Holanda e a Espanha para o

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cenário ultramarino. Como Portugal e suas colônias estavamatrelados ao soberano espanhol em função da União Ibérica,1

os inimigos de Espanha, também se tornaram inimigos de Por-tugal. E foi justamente pela América Portuguesa que os holan-deses resolveram dar início à sua estratégia ofensiva.

Com esse intento a armada holandesa partiu do porto deTexel em dezembro de 1623, chegando a Salvador a 8 de maiode 1624. Na madrugada do dia seguinte, ao serem percebidospelos habitantes da cidade, foram recebidos por disparos “vin-dos de todos os montes”. Por volta das seis horas da manhãlevantaram âncora e, com ventos favoráveis, penetraram pelabaía sob disparos oriundos do Forte de Santo Antonio. Em res-posta, a frota holandesa revidou violentamente.

Apesar de a maioria dos tripulantes só ficar sabendo dodestino da armada poucos dias antes de o atingirem, os coman-dantes já possuíam um plano bem definido para efetivar a to-mada da cidade desde que zarparam. Assim, ordenou-se queparte das embarcações se posicionasse na praia em frente dacidade, de maneira que os habitantes voltassem sua atençãopara aquela área, enquanto outra parte das tropas desembarca-va na Vila Velha, atual porto da Barra.

Assim o fizeram. Desembarcaram primeiro uma tropa de“vanguarda”, organizada em linha de batalha, combatendo osportugueses que guardavam o lugar, enquanto a retaguarda de-sembarcava com maior tranquilidade. Com esta investida, osholandeses “enxotaram” os portugueses e hastearam suas ban-deiras. Em seguida, avançaram por um desfiladeiro até a porta

1 Desde 1580, como resultado da crise dinástica em decorrência da mortedo rei D. Sebastião, Portugal tinha sido anexado pela coroa espanhola,dando início a uma Monarquia dualista, na qual se reconhecia a existênciade duas coroas nas mãos de um mesmo soberano, regime que durou até1640 e que a historiografia designa por União Ibérica. Cf. SERRÃO, 1994.

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de São Bento. Como já era noite, decidiram que esperariamamanhecer para entrar na cidade, pernoitando no Mosteiro deSão Bento, onde encontraram vinho e “deliciosos confeitos”.

Na manhã do dia seguinte apareceu alguém acenando umabandeira branca, anunciando a entrega da cidade. Temendo umaemboscada, entraram em posição de combate. Para surpresados invasores, a maior parte dos habitantes havia abandonadoa cidade. Encontraram apenas alguns negros, muito ouro e pratanas casas e igrejas abandonadas e o Governador que, juntamentecom alguns jesuítas, frades, oficiais e soldados, foram todos apri-sionados e enviados para a Holanda. Desse momento em dian-te, até a retomada luso-espanhola em abril de 1625, Salvadorfoi chamada pelos holandeses de “terra batávica”.2

Para os habitantes de Salvador, a visão da armada que aden-trava a baía causou pânico e correria. Apesar de terem sidoavisados pelo rei da possibilidade de um ataque holandês, adefesa da cidade não contava com nenhuma estratégia especial.Mesmo sabendo da presença de uma nau holandesa na regiãode Boipeba desde o dia 13 de abril de 1624,3 o governador Dio-go de Mendonça Furtado, a despeito dos seus esforços, não con-seguiu organizar uma defesa satisfatória da cidade.

2 Tudo o que foi narrado até aqui está baseado em dois documentos holande-ses: Aldemburgk, Johann Gregor. Relação da conquista e perda da cidade deSalvador pelos holandeses em 1624-1625. Salvador: (s.n.), 1961; Relatóriodos Delegados dos Diretores da Companhia das Índias Ocidentais, entregueà Assembléia dos Altos e Poderosos Senhores Estados Gerais à 31 de agostode 1624. In: Documentos Holandeses, 1º Vol. Serviço de Documentação. Riode Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1945.

3 Referimo-nos à nau Holandia, que trazia a bordo Van Dort, o general da es-quadra que vinha atacar a Bahia. Tendo se afastado do restante da armada nailha de São Vicente (arquipélago de Cabo Verde), Van Dort teria chegado àBahia com quase um mês de antecedência e se pôs a aguardar seus compan-heiros em Boipeba. Quando, afinal, decidiu seguir para Salvador, a cidade jáera “terra batávica” havia três dias. Cf. ALDEMBURGK, 1961, p. 165, 174.

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Imediatamente após o conhecimento dos riscos represen-tados pela referida embarcação, o governador ordenou a vindade pessoas do Recôncavo para auxiliar na guarda da capital co-lonial. Entretanto, após aguardarem alguns dias de prontidãosem que nada acontecesse, essas pessoas começaram a questio-nar a necessidade de suas presenças ali e, mesmo sem autoriza-ção de Mendonça Furtado, muitas delas retornaram para suascasas. Nessa desobediência, a população contou com o apoio dobispo, que considerava aquilo tudo exagero do governador.

O ataque da nau Holandia nunca aconteceu, entretanto atensão se instalou novamente quando, da cidade, a populaçãoavistou as vinte e quatro embarcações holandesas a 8 de maio.O anunciado ataque estava prestes a se efetivar e o governadorjá não dispunha de grande parte do contingente que havia soli-citado do Recôncavo no mês anterior. Restou-lhe apenas reu-nir as forças que pode, ameaçar de punição aqueles que fugis-sem ou retirassem seus bens da cidade e permanecer fiel às suasconvicções de defender as possessões da Monarquia Ibérica atéo fim. Nesse momento, o bispo D. Marcos parece ter percebidoo engano que cometera e passou a “exortar” a população paraque se empenhasse em defender a cidade e pelejar “até a mortepor sua fé e rei”. Os padres das diversas ordens que existiam emSalvador saíram pelas ruas a encomendar as almas dos corposque partiam para as batalhas.

Contam os relatos portugueses que o confronto teve inícioquando os da cidade receberam com disparos um batel combandeira de paz enviado pelos holandeses, antes mesmo deouvirem a embaixada. Em resposta, os holandeses descarrega-ram seus canhões no costado da cidade, nos fortes e nos naviosque estavam no porto. E assim transcorreram as batalhas du-rante todo aquele dia 9 de maio de 1624.

Enquanto essas batalhas aconteciam defronte à cidade, osholandeses enviaram três naus para a ponta de Santo Antônio,

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onde desembarcaram muita gente. Quando os homens que guar-davam o lugar viram aquilo, não esperaram que chegassem maisperto e abandonando seus postos, correram de volta para a ci-dade. O jesuíta Jerônimo Peixoto tentou impedir tal fuga di-zendo que eles podiam se embrenhar nos matos e combater osinimigos sem que eles soubessem de onde vinham os tiros. Maso terror já havia tomado a todos, contagiando, inclusive, os queestavam na cidade.

Nesse mesmo dia 9, os holandeses tomaram o forte da Laje,4

que ficava em frente da cidade. Sem conseguir conter o avançoholandês, e provavelmente dando por perdida a guerra, os sol-dados portugueses incendiaram os navios que estavam no por-to antes de também se retirarem para a cidade.5

É muito provável que o retorno dessas duas frentes de de-fesa para a cidadela tenha espalhado um desânimo muito gran-de entre os que combatiam e certo pânico na população emgeral. Não fosse assim, como explicar a fuga destrambelhadanarrada por Vieira?

Era já nesse tempo alta noite quando, de impro-viso, se ouviu por toda a cidade (sem se saberdonde teve princípio) uma voz: já entraram os

4 Inexistente nos dias de hoje e muito confundido com o atual Forte deSão Marcelo, que ainda não havia sido construído na época da Invasãoholandesa.

5 Convém ressaltar que nesse período, a cidade de Salvador já havia ultra-passado o traçado original e que, além da cidadela construída por Tomé deSouza, prosperavam a região da Vila Velha, ou Vila do Pereira (atual Portoda Barra), edificada pelo donatário Pereira Coutinho, e a região de Itapagi-pe (atual subúrbio ferroviário), onde existiam alguns engenhos de açúcar.Ainda que os holandeses tivessem conhecimento dessas extensões da cida-de, como atesta um relatório anônimo holandês, os invasores concentra-ram-se na cidadela erguida no tempo da administração de Tomé de Souza.

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inimigos, já entraram, os inimigos já entraram;e, como no meio deste sobressalto viessem ou-tros dizendo que já vinham por tal e tal porta, eacaso pela mesma se recolhesse neste tempo umabandeira nossa com mechas caladas, como omedo é mui crédulo, verificou-se esta temerida-de; e assim, pelejando a noite pela parte contrá-ria, ninguém se conhecia, fugiam uns dos outros,e quantos cada um via tantos holandeses se lherepresentavam. (VIEIRA, 1995. p. 157-8)

Certamente temos de abstrair a carga de exagero inerentea Vieira. Entretanto, uma fuga não premeditada deve ter lá suadramaticidade e, seja como for, o fato é que a cidade se esva-ziou rapidamente, num evidente sinal de pavor por parte deseus habitantes, que deixaram o que possuíam para trás. Tam-bém o bispo D. Marcos Teixeira tratou de se retirar da cidade.Sua fuga teve uma curta reflexão por parte dos religiosos acer-ca do efeito que poderia ter perante a população, pois algunseram partidários da ideia de que a fuga do bispo seria o tiro demisericórdia na medíocre defesa da cidade.6 Aliás, esse debatetem força até os dias atuais, como demonstrarei adiante.

Enquanto os habitantes de Salvador sofriam com tanto pa-vor e pânico, os holandeses aguardavam, não menos apreensi-vos, o amanhecer do dia seguinte para enfrentar a batalha fi-nal. Entretanto esta jamais aconteceu, pois no momento emque os holandeses bebiam vinho e saboreavam deliciosos con-feitos no Mosteiro de São Bento, Salvador esvaziava-se. Paradescrever essa fuga, não encontrei maneira melhor do que trans-crever as palavras de Antonio Vieira:

6 Carta do padre Manuel Fernandes, 25 de junho de 1624. In: LEITE,1945.

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Mas, quem poderá explicar os trabalhos e lásti-mas desta noite! Não se ouviam por entre os ma-tos senão ais sentidos e gemidos lastimosos dasmulheres que iam fugindo; as crianças choravampelas mães, elas pelos maridos, e todos e todos,segundo a fortuna de cada um, lamentavam suasorte miserável. Acrescentava-se a este outro tra-balho não menor, que, como forçadamente, parapassarem avante, iam demandar um rio a quechamam Rio Vermelho, aqui se viam no apertoem que se viram os filhos de Israel no outro MarVermelho, quando fugiam do Faraó: porque omedo lhes representava os holandeses já nas cos-tas, o rio lhes impedia a passagem, a noite dificul-tava tudo, e o susto chegava a todos. Pelo que,vendo-se em tanto aperto e perplexidade, semtomar conselho, tudo era romper em ais e gemi-dos, com que feriam o céu e os corações dos queos ouviam. (VIEIRA, 1995, p. 159)

A primeira leitura do trecho causa estranhamento: com-parar a fuga dos habitantes de Salvador à bíblica fuga do povohebreu dos cativeiros egípcios é um exagero e tanto. Porém,tentando abstrair o máximo possível a exacerbação da dramá-tica pena de Vieira, aquela deve ter sido realmente uma fugasofrível. Pois, com certeza, não foi fácil para a população aban-donar suas casas e igrejas, com perdas que iam desde simplesobjetos pessoais a peças de ouro e prata. Certamente a ideia deque os colonos trocaram suas casas pelos matos, sem saber ondese alojariam, deve ser relativizada. Afinal, os aldeamentos, fa-zendas e engenhos localizados na região serviram como abrigo.Contudo, não deve ter sido uma fuga muito fácil, antes, umacorreria desesperada, repleta de dramas individuais.

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Na cidade, de acordo com as fontes, ficaram, além dos queresolveram aderir aos invasores, o governador Furtado e algu-mas pessoas ligadas a ele – que mesmo sendo aconselhado afugir também, decidiu que ficaria até o fim. E assim o fez. Quan-do tudo parecia sem reversão, o Governador pensou num últi-mo ato de desespero – o suicídio –, do qual foi demovido peloouvidor geral, Pero Casqueiro (SALVADOR, 1982. p. 364).Rendido, Mendonça Furtado foi aprisionado pelos holandesese posteriormente enviado para as Províncias Unidas juntamentecom outras doze pessoas, entre auxiliares e jesuítas que chega-vam do Rio de Janeiro.

Em menos de vinte e quatro horas, a capital colonial esta-va em mãos holandesas. De um lado, o desastre e a vergonha,do outro, a euforia da vitória e os lucros do butim. Aos colonosrestava se organizar nos arredores da cidade e impedir que oinimigo fosse além do limite da cidade. Para os holandeses, ca-bia a tarefa de efetivar a conquista, pois o domínio militar daurbis não garantia acesso à produção açucareira, um dos prin-cipais objetivos holandeses.

A literatura sobre o tema

Pouco se escreveu sobre a presença holandesa na Bahia. Emtermos de produção historiográfica, podemos dividir os traba-lhos que abordaram o tema da seguinte forma:

1) trabalhos de História Geral do Brasil, nos quais os acon-tecimentos de 1624 e 1625 aparecem como uma intro-dução à ocupação holandesa do Nordeste pós-1630, re-duzindo a história dos holandeses na Bahia apenas aosaspectos militares do episódio;

2) obras que trataram da presença holandesa no Brasil comoum todo. Nesses estudos, também é comum que os

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acontecimentos de 1624-25 fiquem circunscritos a umcapítulo introdutório, porém a passagem dos holandesesna Bahia é tratada de forma mais detalhada, sendo asso-ciada aos objetivos da Companhia das Índias Ocidentais;

3) obras específicas sobre a invasão da Bahia: Os hollande-zes na Bahia, de Francisco Menezes, publicada em 1922.Trata-se de um trabalho de grande fôlego, que busca ex-plicar os motivos da invasão holandesa desde a morte dorei D. Sebastião com o advento da União Ibérica; Holan-deses na Bahia, 1624-1625, de Alberto Silva, publicadoem 1925. Silva escreveu sobre o assunto nas comemora-ções do tri-centenário da expulsão dos holandeses e sepreocupou apenas em narrar os episódios militares; e Adefesa de Salvador na 1ª Invasão Holandesa, de Algedyde Souza, publicado em 1957. Este autor se concentrouem entender como Salvador caiu em poder dos holande-ses em menos de vinte e quatro horas;

4) artigos publicados em revistas especializadas, dentre osquais destacamos: Um problema: a traição dos cristãos-novos em 1624, de Eduardo D’Oliveira França, um bomtrabalho que aborda a possível ligação entre cristãos no-vos e holandeses; The Voyage of the vassals – Royal po-wer, noble obligations, and Merchant capital before thePortuguese Restauration of independence, 1624-1640, deStuart Schwartz, uma abordagem da restauração da Bahiacom ênfase na sociedade ibérica, no qual o autor apro-veita o episódio de 1624-25 para analisar as relações depoder entre sociedade e Estado na União Ibérica e, tam-bém do mesmo historiador americano, When Brazil WasJewish: new sources on the Fall of Bahia, 1624, in thecontext of Portugal’s political in the Seventeenth cen-tury, texto sobre o envolvimento dos cristãos novos na

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queda de Salvador, no qual o autor privilegia, mais umavez, as disputas políticas existentes entre Estado e socie-dade em Portugal durante a União Ibérica.

Além dos trabalhos acima citados, há uma série de confe-rências publicadas na Revista do Instituto Geográfico e Histó-rico da Bahia de número 66, no ano de 1940. Trata-se de umapublicação em comemoração à derrota de Maurício de Nassauna Bahia em 1638. Além das conferências, foram publicadas assugestões feitas pelos membros do Instituto para comemorar adata, dentre as quais se destaca a ideia de confecção de umasérie de placas comemorativas, a exemplo da que existe aindanos dias atuais na entrada do mosteiro de São Bento. De ma-neira geral, essas conferências e providências comemorativasatendiam as exigências de uma época em que a história se faziapela mitificação de personagens. Todavia, cabe salientar aimportância do IGHBa para um maior conhecimento do tema,por meio das sucessivas publicações que fez de documentosreferentes ao período. Vários relatos seiscentistas foram publica-dos nas revistas do Instituto. Esses relatos constituem materialfundamental para a compreensão do que se passou na capitalcolonial naqueles anos de 1624-25. Nesse sentido, se algum es-forço foi feito na Bahia para que se pudesse ter conhecimentoda história da presença holandesa em Salvador e no seu entorno,o mérito é do Instituto.

As fontes

Sobre a documentação utilizada na realização deste trabalho,boa parte se constitui de relatos produzidos no Seiscentos. Do-cumentos um tanto quanto escorregadios, repletos de exage-ros, deslumbramentos e omissões, as mais de duas dezenas de

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relatos foram, não obstante essas características, indispensá-veis para se estudar a presença holandesa na Bahia. São memó-rias, relatórios e crônicas, escritos, de maneira geral, por mili-tares e religiosos portugueses, espanhóis ou holandeses. Se porum lado são textos extremamente tendenciosos que devem seranalisados cuidadosamente, por outro lado, quando convergemem torno de alguma questão possibilitam ao leitor maior confi-ança quanto à veracidade de suas informações.

Optei por chamar esses textos de relatos pelo simples fatode que, independente da autoria (português, espanhol ou ho-landês), do caráter da escrita (erudito ou não) ou da sua função(informar autoridades ou narrar acontecimentos pitorescos doultramar para a população em geral), tiveram sempre a funçãode relatar os sucessos e infortúnios do episódio.

Pela riqueza de suas informações, estes relatos compõema documentação que sustenta este trabalho. E apesar das limi-tações e dificuldades que esse tipo de documentação impõe aum trabalho dessa natureza, foi através desta que pude analisara invasão holandesa da Bahia no ano de 1624.

Além dos relatos, utilizei regimentos de governadores, car-tas administrativas, livros de ordens religiosas, documentaçãoda Câmara Municipal de Salvador, entre outros. Foi o manu-seio desses documentos que permitiu muitas vezes a compara-ção com as informações contidas nos relatos. Ora completan-do-as, ora negando-as.

A estrutura do trabalho

Nesse trabalho, procurei abordar a presença holandesa na Bahiaenfatizando sua relação com o processo histórico da cidade deSalvador. Nesse sentido, só me referi às questões relacionadasaos conflitos internacionais envolvendo as metrópoles ibéricas

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quando estas foram estritamente necessárias para o entendi-mento da história local. Contribuíram para essa opção a es-cassez do tempo e a limitação de fontes e bibliografia, bemcomo um interesse em aprofundar os aspectos ligados à histó-ria local.

O texto divide-se em três capítulos. No primeiro, intitula-do Salvador, uma “aldeia aberta”, as reflexões giram em tornoda capital colonial no século XVII. A partir de consideraçõesacerca do processo de sua formação ainda no século XVI, buscoentender o que era essa capital, atentando para o papel desem-penhado pelos colonos. A ênfase desse capítulo está na forma-ção do sistema defensivo da cidade, sobre o qual procurei de-monstrar as debilidades, apontando o alto grau de improvisaçãoresultante da flexibilização que permeava a administração co-lonial. Busquei indicar como esse procedimento comprometeua defesa do território português no momento da invasão ho-landesa. Assim, ao examinar as ofensivas estrangeiras ao longodos séculos XVI e início do XVII, demonstro a inadequação dodiscurso de Salvador enquanto cidade fortaleza. Todas as con-siderações acerca do sistema de defesa da colônia visam enten-der os motivos que permitiram a rápida invasão dos holande-ses. Para isso, contraponho toda uma discussão centrada naperspectiva de apontar um culpado para tais acontecimentos,seja o bispo D. Marcos Teixeira ou os cristãos novos, a umaleitura do sistema defensivo de Salvador cujas fragilidades, agra-vadas por conflitos administrativos, explicam a queda da cida-de diante dos invasores.

No segundo capítulo, Da resistência ao contra-ataque: umaocupação sitiada, abordei os meses de ocupação holandesa. En-fatizei a atuação dos colonos, que imprimiram uma constantevigília aos holandeses, assegurando a não progressão dos inva-sores pelo território, confinando-os ao interior dos muros dacidadela. Procurei demonstrar também que a ideia de que os

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colonos unanimemente se opuseram aos holandeses não pro-cede, haja vista que a documentação indica uma série de situa-ções que apontam para algum tipo de cooperação entre algunscolonos e invasores. Nesse capítulo abordei também a partici-pação indígena e de negros nos combates. Os índios, especial-mente os aldeados, foram peças fundamentais para o sucessoda resistência, combatendo os holandeses com eficiência. Quan-to aos negros, a documentação apontou para eventual colabo-ração com os holandeses, tanto por parte dos que fugiram dosseus donos, quanto daqueles que eram apreendidos nos naviosque chegavam de Angola. Certamente, essa colaboração resul-tou de uma tentativa de estabelecerem alianças como os inva-sores na esperança de encontrarem um destino melhor. Pormeio da análise da documentação referente ao período da ocu-pação, procurei demonstrar o quanto a ação dos colonos du-rante a resistência foi fundamental para a rendição dos holan-deses. Sem as emboscadas engendradas pelos colonos, a tarefada armada luso-espanhola teria sido muito mais complexa.

No terceiro capítulo, intitulado Da retomada à reorgani-zação, busquei demonstrar o quanto os preparativos da jornadarestauradora mexeram com os brios dos espanhóis e dos portu-gueses, bem como favoreceram o acirramento das disputas exis-tentes entre os luso-espanhóis em decorrência da União Ibéri-ca. Por outro lado, este capítulo enfatiza também os principaisconfrontos entre os ibéricos e os holandeses na Bahia até a ren-dição dos invasores e, por fim, enfoca a situação dos habitantesda capital colonial após a expulsão dos holandeses, destacandoa reorganização da administração local que, além das dificul-dades decorrentes dos combates ao inimigo, foi obrigada a con-viver com um expressivo número de soldados deixados pelocomandante da armada restauradora. Ao apontar essa questão,ative-me à delicada situação a que foram submetidos esses colo-nos, pois a presença de um contingente tão grande, ao mesmo

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tempo em que indicava sérias transformações na maneira depensar e administrar o sistema defensivo da colônia, foi tam-bém responsável pela imposição de infindáveis impostos com afinalidade de sustentação dessas tropas. Para a população deSalvador restou o ônus dessa tarefa e o temor de que essa gran-de quantidade de soldados se revoltasse mediante a falta de re-cursos para seu sustento. Coube também nesse capítulo umaanálise da participação da Câmara de Vereadores no processode reorganização da cidade, buscando sempre defender os in-teresses dos colonos que arcaram com o ônus da reestruturaçãoda capital colonial.

Antes de finalizar essa introdução, devo alertar o leitor deque a opção de me referir aos invasores utilizando a terminolo-gia “holandeses” resulta do constante uso do termo na docu-mentação seiscentista. Nesse sentido, mesmo sabendo que ainvasão da Bahia foi articulada pela Companhia das Índias Oci-dentais, que atuava de acordo com ordens emanadas das Pro-víncias Unidas, decidi, seguindo também uma tradição da his-toriografia brasileira, utilizar o termo holandês para denominaros invasores.

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1. Salvador, uma “aldeia aberta”

A rapidez com que se desdobraram as lutas entre holandeses ecolonos portugueses em maio de 1624, quando do ataque daCompanhia das Índias Ocidentais a Salvador, vem provocan-do, desde os relatos seiscentistas, uma discussão acerca das causasdo fracasso defensivo da capital colonial e do êxito dos invasores.Praticamente todos os textos que abordam o assunto buscamentender como Salvador, cidade fortaleza, caíra tão facilmenteem poder dos holandeses. De maneira geral, as explicações apon-tam para a controversa figura do Bispo D. Marcos Teixeira, cujosdesentendimentos com os representantes do poder régio o te-riam levado a divergir das ordens do Governador Geral quan-do este tentava organizar a defesa da cidade, diante do iminen-te perigo representado por uma misteriosa nau ancorada emMorro de São Paulo. O Governador Mendonça Furtado, mesmona dúvida das intenções da referida nau, buscou se precaver.Para o Bispo, as preocupações do governador eram exageradas.

Em que pese a obstrução do bispo, creio ser esse aspectoinsuficiente para explicar a desastrosa defesa da cidade. Mes-mo considerando a importância do bispo numa sociedade ex-tremamente ligada aos valores católicos, é preciso lembrar queo sistema defensivo da cidade possuía fragilidades que, agravadaspor conflitos administrativos, explicam a queda da cidade diantedos invasores. Para entender os motivos que permitiram a rápidainvasão dos holandeses torna-se necessário relativizar alguns

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preceitos, como o de Salvador cidade fortaleza, ou mesmo re-dimensionar o sentido da cidade capital colonial, lembrandoque este centro urbano administrativo estava ainda em forma-ção e as funções administrativas não eram especificadas comrigor. Nesse sentido faz-se necessário, ainda, uma análise des-sas questões levando em consideração o advento da União Ibé-rica e o conhecimento prévio que os holandeses possuíam doterritório.

Assim, num primeiro momento busco entender o que eraa capital colonial no século XVII, considerando o processo desua formação ainda no século XVI, levando em conta o papeldesempenhado pelos colonos, responsabilizados por quase tudoque dizia respeito ao funcionamento da cidade. Para isso, pro-curo apontar o alto grau de improvisação que permeava deci-sões importantes para a execução das ordens reais, principal-mente aquelas que diziam respeito diretamente ao sistemadefensivo da colônia. Ao examinar as ofensivas estrangeiras aolongo dos séculos XVI e início do XVII, demonstro que o dis-curso de Salvador enquanto cidade fortaleza não procede. Aslimitações impostas pela falta de recursos e pela vasta extensãoterritorial apontaram as brechas do sistema defensivo da cida-de, o que significa que as carências administrativas eram tam-bém sinônimos de carência de estratégias.

Num segundo momento, abordo os conflitos administra-tivos, ressaltando o caos de um sistema que não era ainda mui-to bem estruturado, em que rivalidades entre as autoridadesagravavam ainda mais a já comprometida defesa da colônia.Demonstro também a existência de uma literatura que se divi-de, parte procurando culpar o bispo pela queda da cidade dian-te do inimigo holandês, enquanto outra parte, preocupada empreservar a imagem do bispo, se empenhou em negar a sua res-ponsabilidade nesse episódio. No campo das discussões sobre abusca do culpado pelo fracasso defensivo, trago uma rápida dis-

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cussão sobre os cristãos novos, que nos relatos espanhóis ga-nharam status de traidores ao serem acusados de colaboraremcom os holandeses quando da ocupação da cidade. No entanto,procuro demonstrar que independente da atitude do bispo, foi adebilidade defensiva da cidade que permitiu o êxito holandês.

1.1. Salvador, uma “cidade fortaleza”?

Eu el-rei ffaço saber a vos Tomé de Souza ffi-dalguo de minha casa que vendo eu quanto ser-viço de Deus e meu he conservar e nobrecer ascapitanias e povoações da terra do Brasil e darordem e maneira com que milhor e mais segura-mente se posão ir povoando pêra eixalçamentoda nossa santa fee e proveito de meus reinos esenhorios e dos natuarais deles ordenei ora demandar nas ditas terras ffazer hua ffortaleza epovoação grande e forte em um luguar conveni-ente pêra dahy se dar favor e ajuda as outras po-voações e se menistrar justiça e prover nas cousasque comprirem a meu serviço e aos negócios demynha fazemda... (Regimento de Tomé de Sou-za, p. 81-101, grifos meus).

Conservar as capitanias da terra do Brasil por meio de uma for-taleza povoada, a partir da qual emanaria ajuda e justiça a ou-tras capitanias. Com esse propósito o rei D. João III mandouredigir, em 1548, o Regimento de Tomé de Souza, documen-to que regulamentou a criação do Governo Geral. De acordocom este regulamento, a colônia teria um corpo administrativoligado diretamente ao monarca português, cujo expoente má-

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ximo era o Governador Geral. A partir desse momento a colô-nia passaria a ter um centro de poder constituído por funcioná-rios reais nomeados com atribuições específicas. Desse centroirradiariam as decisões da Coroa para toda a colônia. A deter-minação de construir uma cidade que centralizasse a adminis-tração da colônia – o que obviamente não aconteceu de imedi-ato – estava ligada ao fracasso da tentativa de colonizar o Brasilpor meio de um sistema privado, conhecido por capitanias he-reditárias.7 Assim, os continuados ataques de corsários, especi-almente franceses, a difícil tarefa de subjugar os nativos do NovoMundo – cujos ataques eram em grande número e bastante de-vastadores –, a necessidade de lucro e a diminuição no trato asi-ático foram determinantes para a decisão do monarca português.

El-rei recomendou que a fortaleza povoada fosse construídana baía de Todos os Santos, destacando os atributos que creden-ciavam o local para abrigar a capital da América portuguesa:“[boa] desposição do porto e rios que nella entrão como pelabondade abastança e saúde da terra e por outros respeitos” (Re-gimento de Tomé de Souza, p. 81). Foi com a disposição decumprir as ordens reais que desembarcou na Bahia, em março de1549, na condição de primeiro Governador Geral do Brasil, Toméde Souza, homem experiente nos assuntos coloniais, tendoservido na África e Ásia. Sob sua responsabilidade, a execução dasobras de construção da cidade de Salvador, e em sua companhia,

7 De acordo com esse sistema, a coroa doava lotes de terra a pessoas próxi-mas ao trono, a indivíduos reconhecidos por feitos militares, entreoutros. O donatário (indivíduo que recebia as terras), possuía direito so-bre a venda do pau-brasil, a vintena da pescaria e a redízima das rendasda coroa, mas a ele era vetado a venda da terra. À Coroa cabiam os lu-cros maiores: dizimo de todos os produtos pagos em espécie, monopóliodas drogas e pedras preciosas, etc. Diversos autores entendem que ascapitanias fracassaram diante da falta de investimentos estatais. Maisinformações sobre o sistema de capitanias, ver, entre outros: PRADO,1997, p .96-107; RUY, 1949, cap. I; ALENCASTRO, 2000, cap. I.

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os homens que o ajudariam a pôr em prática as diretrizes para oestabelecimento do centro administrativo colonial.

O primeiro escalão do Governo Geral contava com umOuvidor-geral e um Provedor da Fazenda Real. A esses funcio-nários seguiam outros, hierarquicamente de menor importân-cia, a exemplo de escrivães e meirinhos. Juntamente com essescargos, foi criado também o Conselho de Vereança ou Senadoda Câmara, cuja primeira referência oficial, segundo AffonsoRuy, data de 15 de agosto de 1551 (RUY, 1996, p. 24). Esteconselho era composto por “três vereadores e dois juízes Ordi-nários, eleitos anualmente pelos ‘homens bons’, ou seja: os quepossuíam bens. [...], o conselho completava-se com quatrofuncionários nomeados pelo capitão e governador: dois almo-tacés,8 um escrivão e um procurador da cidade” (TAVARES,1999, p. 138). Outras duas instituições importantes estabele-cidas após a criação do Governo Geral foram a Santa Casa deMisericórdia da Bahia e o Bispado do Brasil, em 1550 e 1551,respectivamente.

De acordo com o regimento, o Governador Geral deveria,além de fundar uma cidade fortaleza capaz de se defender dacontinua presença de estrangeiros na costa do Brasil e garantira segurança dos colonos ante as constantes revoltas indígenas,doar sesmarias a quem pudesse nelas investir construindo en-genhos fortificados nas margens dos rios integrados à baía,ordenar a construção de embarcações que fossem utilizadas emserviços gerais e na defesa, livrar a terra dos índios inimigos,estabelecer feiras semanais para que os cristãos pudessem rea-lizar trocas com os índios sem que fosse necessário ir até suas

8 Cargo existente desde 1532, cujas funções eram, dentre outras coisas: fis-calizar o abastecimento de víveres para a localidade, processar as penaspecuniárias impostas pela Câmara aos moradores, fiscalizar as obras,zelar pela limpeza da cidade, etc. Cf. SALGADO, 1985, p. 134-5.

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aldeias, explorar o sertão, etc. (Regimento de Tomé de Souza).Em linhas gerais, observamos que a Coroa estava preocupada,principalmente, em defender, explorar, ampliar e garantir aposse do território, de preferência com retornos lucrativos,embora não faltasse ao documento as naturais demonstraçõesde interesse pela propagação do catolicismo.

No que pese os anseios da Coroa em sua jornada de expan-são, o Regimento de 1548 não garantia por si só o cumprimen-to dos desejos reais, bem como não representava um modelorígido da expansão portuguesa no ultramar. Pelo contrário, suasdeterminações demonstram uma flexibilização que levava emconta as necessidades locais, ou mesmo as carências da fazendametropolitana. Assim, em diversos trechos do Regimento deTomé de Souza, como, aliás, em outros regimentos de governa-dores do Brasil, a necessidade de adequação à realidade acabouconferindo um caráter de improvisação na administração colo-nial. Observemos um trecho do regimento de 1548 acerca daconstrução da cidade fortaleza:

[...] e no sitio que vos milhor parecer [...] façahua ffortaleza de gramdura e feição que a re-querer o luguar em que a ffizerdes conforman-do vos com as traças e amostras que levais pra-ticando com os oficiais que pêra isso la mando ecom quaesquer outras pessoas que o bem en-tendão [...] e pêra se poder começar a dita ffor-taleza vão nos navios desta armada allguas ache-guas e não achando na terra aparelho para sea dita ffortaleza ffazer de pedra e cal faz se aade pedra e barro ou taipais ou madeira comomilhor poder ser... (Idem, p. 85, grifo meu).

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Aos prepostos reais cabia cumprir uma tarefa nada fácil,atender as ordens da Coroa de acordo com os planos pré-esta-belecidos, ao mesmo tempo em que teriam de lidar com os li-mites que a realidade impunha. Assim, os recursos materiaispara a construção da fortaleza deveriam ser improvisados, e atémesmo os recursos humanos eram passíveis de um arranjo deúltima hora. Em verdade, o trecho acima, como praticamentetodo o regimento, apresenta uma contradição: embora a Coroadesejasse povoar e defender o Novo Mundo, não enviou recur-sos suficientes para tal empreitada. A criação de um governogeral representava a intervenção direta no processo de coloniza-ção, mas não assegurava, na integra, a execução dos planos me-tropolitanos. Dessa forma, restava ao rei orientar que se buscasseresolver os problemas de acordo com a necessidade do dia.

Em última instância, isso resultava em prejuízo para a co-lônia, pois a própria construção da cidade, abrigo do centroadministrativo, teria sua defesa comprometida em função dasimprovisações indispensáveis para o cumprimento das ordensreais. E, ao que parece, Tomé de Souza soube lidar com as dis-crepâncias entre o pretendido e o possível ao poupar da forcadois franceses presos em 1551, acusados de contrabando de pau-brasil, alegando que estes serviriam como trabalhadores semcustos para a Coroa (Carta de Tomé de Souza ao Rei em 1551).Este exemplo, aliás, remete a outra situação, agora de ordemfinanceira, que também sugere o caráter de improviso dos pri-meiros tempos da colônia, quando, em função da falta de “di-nheiro de contado” para a realização do pagamento dos soldose serviços, era comum fazê-lo por meio de mercadorias. Erao chamado resgate, contra o qual se manifestou o mestre deobras Luís Dias que, segundo Edson Carneiro, lamentou a de-sorganização do serviço de abastecimento e a falta de considera-ção com os homens que haviam percorrido grande distânciapara servir a el-rei, argumentando que havia sido enganado com

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“tais pagamentos” e que as mercadorias que chegavam de Por-tugal eram ferros velhos que se vendiam na feira de Lisboa(CARNEIRO, 1949, p. 45-46).

Um outro indicativo dessas “deficiências” coloniais podeser encontrado no relato de Frei Vicente do Salvador, que afir-ma ter ouvido de homens do tempo de Tomé de Souza que opróprio governador “era o primeiro que lançava mão do pilãopêra os taipais e ajudava a levar a seus ombros os caibros e ma-deiras pêra as casas, mostrando-se a todos companheiro e afá-vel”. Essa informação, entretanto, é passível de equívocos, poisé provável que Frei Vicente tenha tido a intenção de homena-gear a memória do primeiro Governador Geral, prática comumnesse tipo de relato. Não podemos esquecer que é consenso entreos historiadores que a elite colonial era avessa ao trabalho ma-nual. Entretanto, casos semelhantes de empenho pessoal apa-recem na biografia de outros governadores (o GovernadorMendonça Furtado diante do ataque holandês de 1624 é umexemplo). E no caso de Tomé de Souza, teria o detentor domais alto cargo da administração colonial deixado de lado asreservas quanto ao trabalho braçal e arregaçado as mangas? Emcaso positivo, tal atitude se justificaria certamente em funçãodas pressões advindas da Metrópole e, em última instância, deum provável desejo de “dar o exemplo”, estimulando as pessoasnas tarefas de construção da cidade, considerando que as con-dições de trabalho e pagamento não eram as mais favoráveis,como vimos acima. Portanto, tomando por verdadeiras as pa-lavras do frei, poderíamos considerar mais um indicativo dosprovidentes arranjos de última hora da colônia.9

9 SALVADOR, 1982, p. 144. A informação de Frei Vicente Salvador é con-testada por Edson Carneiro, que descarta a possibilidade de umaparticipação do governador nos trabalhos de construção da cidade argu-mentando a falta de condições físicas devido à idade do mesmo. Entretan-to, desconhecendo a verdadeira idade de Tomé de Souza quando (cont.)

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Até mesmo no que parecia ser o mais urgente, a defesa dacolônia, é possível verificar a adoção de medidas que estavamlonge de um bom resultado, ainda que as intenções fossem asmelhores possíveis e estivessem baseadas na limitação de gentee recursos estatais:

ey por bem e mando que os capitães das capita-nias da dita terra e senhorios dos engenhos e mo-radores da terra tenham a artilharia e armas [...]E todo morador das ditas terras do Brasill quenella tever casas terras ou aguas ou navios terá aomenos beesta espingardas espada lamça ou chu-ça e este capitolo fareis noteficar e apregoar emcada hua das ditas capitanias com decraração queos que não teverem a dita artelharia pólvora earmas se provejão delas da noteficação a hum ano.(Regimento de Tomé de Souza, p. 92-93)

Embora tenha deixado claro no início do Regimento o de-sejo em defender o litoral, el-rei não determinou a formaçãode exército regular capaz de fazer frente aos nativos insubmis-sos e corsários ameaçadores. Sua Majestade, provavelmenteagindo de acordo com os limites que a realidade imprimia, deulugar a uma plasticidade singular, fazendo de cada morador umsoldado em potencial para guardar suas possessões. Pior ainda,

(cont.) ocupava o cargo de governador geral, resta especular sobre suaenergia e disposição para o trabalho em função da sua nomeação para ocargo, ou seja, se estivesse tão velho como supôs Carneiro, não teria tidocondições de enfrentar uma viagem pelo Atlântico e chegando aqui en-contrado fôlego para percorrer outras capitanias. Ademais, é precisorelativizar as palavras de frei Vicente, ponderando que os esforços dogovernador talvez não tenham passado de uma atitude para animar seussubordinados. cf. CARNEIRO, 1949, p. 37.

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segundo Edson Carneiro, mesmo os soldados regulares (bom-bardeiros, artilheiros, etc.) eram completamente inexperien-tes. Essa realidade era agravada pela inferioridade das embar-cações utilizadas para guardar o litoral em detrimento dos naviospiratas, e acabou por gerar situações, no mínimo desastrosas,como o episódio em que o capitão-mor Pero de Góes não pôdecombater os franceses traficantes de pau-brasil em função dafragilidade de seus recursos bélicos e humanos quando compa-rados com os do inimigo. Em 1554, Pero de Góes advertia emtom de desespero que se persistissem essas condições, os fran-ceses continuariam tendo livre acesso ao litoral da colônia(CARNEIRO, 1949, p. 52).

Não obstante o caráter de improviso que permeou as açõesdo primeiro Governador Geral, os primeiros passos da coloni-zação por meio desse sistema foram implantados com relativosucesso. Mesmo com as limitações impostas pela realidade daempreitada colonial, Tomé de Souza cumpriu as ordens reaisda maneira que lhe foi possível, inclusive lançando as basespara o desenvolvimento econômico, garantindo a doação desesmarias para quem pudesse nelas implantar engenhos, im-pulsionando a economia colonial. Assim, parece que a institui-ção do governo geral e a fundação da capital colonial alcança-ram o objetivo desejado pela metrópole, que para UbiratanCastro de Araújo era o de implantar uma sociedade e economiaque fossem capazes de se integrar ao comércio ultramarinoportuguês, bem como permitir a expansão para o interior dacolônia. Nesse sentido, após a fundação da cidade, partiram oscolonizadores para a conquista do seu entorno, o Recôncavo(ARAÚJO, 2000).

A conquista de novas áreas para as finalidades acima mencio-nadas exigiu dos primeiros governadores uma tarefa difícil: ven-cer a barreira imposta pelos índios que então habitavam a região.Para tanto, os chamados índios “hostis” foram escravizados e

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os “dóceis” aldeados. Já na década de 1560 o número de índiosno entorno de Salvador havia diminuído consideravelmente,permitindo um primeiro surto do desenvolvimento da econo-mia açucareira nas terras próximas da cidade. Convém ressal-tar que a liberação dessas terras foi resultado das guerras con-tra os indígenas (especialmente aquelas comandadas por Memde Sá, a exemplo da guerra do Curupeba, a guerra do Jaguaripee do Paraguaçu, entre outras), reforçadas pelas epidemias, gran-des aliadas dos colonizadores na conquista dos povos nativos(ARAÚJO, 2000, p. 12). Assim, entre os anos de 1562-63, cercade cem mil índios foram dizimados pela epidemia de varíola(JANCSÓ, 1994, p. 55). Foi nesse período que se desenvolveramas paróquias de Paripe, Pirajá, Cotegipe e Matoim. Como resul-tado da política mais agressiva implementada por Mem de Sá, amaior parte do recôncavo estava apta a receber os engenhos deaçúcar já na década de 1570 (SCHWARTZ, 1988. p. 89).

Transposta essa etapa de conquista do território, passaramos colonizadores a implantar seus engenhos e toda a estruturanecessária para seu funcionamento: mão de obra escrava indí-gena e africana, animais de tração e de corte, combustível ve-getal, embarcações, etc. Numa associação de fatores internos eexternos (a comercialização da produção açucareira sempreesteve atrelada ao mercado internacional, variando de acordocom os processos políticos e econômicos do Atlântico), a eco-nomia açucareira deslanchou a partir de 1570, tendo um cres-cimento acelerado até o ano de 1620 (Idem, p. 146).

Interagindo com esse processo, Salvador transformou-senum centro urbano para onde afluíam as ordens reais, embar-cações em busca de riquezas e reparação de sua estrutura, car-regamentos de escravos africanos, mercadorias, etc. Através daságuas da baía de Todos os Santos realizava-se a comunicaçãocom os engenhos, que enviavam sua produção por meio deembarcações construídas na própria Salvador.

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Graças à importância da capital colonial como centro dedecisões políticas, porto de escoamento da produção açucarei-ra e acolhedora do poder religioso, os membros da aristocraciaaçucareira de regiões vizinhas mantinham casas na cidade como objetivo de controlar seus negócios e ostentar suas riquezasde acordo com o costume da época (SCHWARTZ, 1979, p. 49).Contribuiu para o desenvolvimento da cidade, a presença domovimentado porto, que, nas palavras de Amaral Lapa, era “umaespécie de pulmão por onde respira[va] a colônia” (LAPA, 2000,p. 2). O porto de Salvador destacou-se desde a segunda metadedo século XVI, sobressaindo-se entre aqueles instalados pelaCoroa ao longo das costas africana, americana e asiática.10 Suaboa localização tornava muitas vezes obrigatórias as escalas deembarcações que vinham da Ásia, África e América Espanhola,que procuravam repor mantimentos e ao mesmo tempo, abas-teciam a cidade. Dessa maneira, os armazéns da cidade de Sal-vador estariam sempre bem providos de “especiarias, sedas, prataem barras, ouro, pau-brasil e açúcar” (BERGER, 1975).

Todo esse desenvolvimento aguçou ainda mais a atenção ecobiça dos corsários que além do pau-brasil, desejavam agora oaçúcar e uma série de artigos que poderiam ser facilmente en-contrados nos armazéns e navios ancorados no porto. Enquan-to isso, a colônia, mesmo com um centro administrativo e uma“cidade fortaleza”, continuava com dificuldades em combateros ataques em virtude da perpetuação de problemas cujas raí-zes estavam fincadas no caráter de improviso da colonização

10 Segundo LAPA (2000), contribuíram para este sucesso, entre outros, osseguintes fatores: a cidade era o centro administrativo da colônia,possuía um bom ancoradouro, localizava-se no meio do litoral brasileiro,estava mais próxima do Reino que os portos do Sul, facilitava o contatocom a África (estimulando o tráfico de escravos), apresentava recursosem matérias primas, etc.

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portuguesa, bem como na extensão do território.11 Como bemnotou Schwartz, a baía de Todos os Santos possui um acessopelo Atlântico muito aberto e vasto, o que dificultava uma de-fesa adequada da cidade e seu porto. De acordo com esse histo-riador: “apesar de permanente fortificação de Salvador e da ins-talação de postos de defesa e artilharia em pontos estratégicos,a Bahia sempre esteve sujeita a ataques” (SCHWARTZ, 1988,p. 78). Na tentativa de equacionar tais deficiências, foi monta-da uma cadeia de fortificações ao longo da orla marítima, en-tretanto o objetivo não foi atingido, dentre outras coisas, pelofraco poder de fogo das fortificações e pelas brechas de algunslocais que permitiam a passagem de embarcações inimigas (OLI-VEIRA, 1999).

A partir de 1580, os ataques estrangeiros aumentaram bas-tante em decorrência da União Ibérica. Se já eram frequentesos confrontos com embarcações francesas ao longo do litoralda colônia, a união das duas Coroas trouxe para Portugal e suaspossessões os inimigos da Espanha, como a própria França, aInglaterra e a Holanda. Assim, ataques que antes se concentra-vam nas áreas de domínio espanhol, estenderam-se aos domí-nios portugueses na América, ou seja, ataques planejados pelos

11 Sérgio Buarque de Holanda vê na colonização portuguesa um certo“desleixo”. Para ele, as ações dos portugueses no Brasil, mesmo em seusmelhores momentos, teriam um caráter muito mais de feitorização doque de colonização. Não convinha a realização de grandes obras sem agarantia imediata de benefícios, portanto, dispensava-se tudo o queacarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a Metrópole(cf. HOLANDA, 1995, p. 107). No entanto, cabe ressaltar que esse“desleixo” a que se referiu Sérgio Buarque equivale a uma certaflexibilidade da Coroa portuguesa em decorrência das condiçõesprecárias da colônia e à pobreza e falta de recursos metropolitanos sufi-cientes para a manutenção do vasto território ultramarino. Até porquefoi com essa flexibilidade que a Coroa Portuguesa conseguiu relativosucesso em seu empreendimento colonizador.

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inimigos da Espanha para regiões da América Espanhola, nãodeixavam de tentar obter lucros durante a passagem pelo Bra-sil, ampliando o número de ataques à América Portuguesa. Nessesentido, diversas pilhagens no litoral brasileiro resultaram dofracasso dos ataques em áreas espanholas, ou mesmo das difi-culdades em atingi-las pela falta de condições climáticas.12 Comoexemplo, podemos citar a investida à Bahia em 1587 promovi-da por Robert Withrington e Christopher Lister. Esses inglesespartiram de Dartmouth, Inglaterra, em 29 de agosto de 1586,com o objetivo de alcançar o Estreito de Magalhães, para daliapresar embarcações espanholas no Oceano Pacífico. Em 15 dejaneiro de 1587, quando os ingleses já haviam ultrapassado aregião do Prata, ventos pouco favoráveis obstruíram o avançodas embarcações, e Withrington decidiu buscar, “ao menos mo-mentaneamente, um porto ao norte, onde pudessem abaste-cer-se e aguardar a primavera” (Idem, p. 493-94). O retorno foilongo, pois o local escolhido para a espera foi a cidade de Salva-dor. Essa espera não foi nada pacífica, muito pelo contrário: osingleses promoveram um ataque ao porto da capital colonial,provocando muitos prejuízos e pavor entre os habitantes.

Ventos à parte, tudo nos leva a crer que os referidos nave-gantes sabiam muito bem o que encontrariam nesse retorno exa-gerado ao norte e possuíam claramente os objetivos de saquear omovimentado porto de Salvador e o rico Recôncavo Baiano.Relatos de que os habitantes, tomados pelo medo, abandonaram

12 Os ataques de navios estrangeiros ao Brasil no período anterior à UniãoIbérica podem ser caracterizados como ataques piratas, já os ataques pos-teriores a 1580, podem ser entendidos como corso. Enquanto osprimeiros se caracterizam por uma iniciativa com fim lucrativo, semautorização de qualquer governo, os segundos podem ser caracterizadoscomo uma atividade de guerra, na qual um particular recebe autorizaçãode seu governo para atacar inimigos de sua pátria. Sobre a questão, con-sultar BERGER et. al. 1975, p. 477-78.

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a cidade da mesma maneira que aconteceu durante o ataqueholandês de 1624, merecem particular atenção, na medida emque demonstram que a cidade fortaleza não foi capaz de trans-mitir segurança aos seus moradores diante de três naus ingle-sas. Ou seja, a insegurança que amedrontou os habitantes em1624 já se fazia presente no século anterior.

De acordo com a carta de Amador Rebelo, procurador doBrasil em Lisboa, ao Provincial da Companhia de Jesus, a cida-de ficou tão deserta que poucos homens poderiam tomá-la. Atémesmo o bispo D. Antônio, que então governava a colônia, jun-tamente com o Provedor e o Ouvidor, na ausência de Gover-nador nomeado pela Coroa, preparou-se para fugir, porém foidetido pelo comerciante Francisco de Araújo. Este, segundoAfonso Ruy, não esmoreceu diante da realidade, organizandouma resistência até a chegada do Provedor Cristóvão de Bar-ros, que retornou do Recôncavo com reforços provenientes dosengenhos e aldeamentos – ou seja, “escravos dos engenhos eíndios das aldeias” compunham uma força defensiva improvi-sada (Cf. RUY, 1949. p. 70-1; a carta de Amador Rebelo encon-tra-se citada na mesma obra, à página 70).

Relata frei Vicente que, assim que os corsários adentrarama baía, aprisionaram os navios que estavam no porto, com des-taque para uma urca de Duarte Osquer, mercador flamengoque residia em Salvador com marinheiros também flamengos,“que voluntariamente lha entregaram e se passaram aos ingleses”.Por não conseguirem entrar na cidade, os ingleses resolveram“barlaventear” pela baía, que era muito larga, mandando a zavra(pequena embarcação) e as lanchas fazerem a pilhagem. Bus-cando dar combate aos intrusos, Cristovão de Barros ordenouque se montasse

[...] uma armada de cinco barcas, das que levamcana e lenha aos engenhos [...] [mandando] meter

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em cada uma dois berços e soldados arcabuzeiroscom seus capitães [...], e por capitania uma galé,em que ia por capitão-mor Sebastião de faria, pêraque, onde quer que desembarcassem os ingleses,dessem sobre eles. (SALVADOR, 1982, p. 252-3)

Após dois meses de batalhas, os ingleses deixaram a baía eos habitantes retornaram para a cidade e receberam puniçãodo governador, “como corretivo ao covarde proceder de desam-pararem a capital da Colônia” (RUY, 1949, p. 71). Infelizmentenão sabemos os detalhes destas punições, porém, fica evidenteo quão necessário era a participação da população na defesa doterritório colonial, como afirmamos anteriormente.

Este episódio requer algumas reflexões. Primeiro, a ideiade que a cidade estava deserta precisa ser relativizada. Para en-tender tal questão parece-me necessário abstrair a dimensãodas informações e do espaço em disputa naquele momento. Oquão deserta estaria a cidade? Será que os relatos não queriamimpressionar a Metrópole visando o envio de recursos que pu-dessem garantir efetivamente a defesa da colônia, que realmenteera precária? Parece inegável que houve abandono da cidade,já que há referencias a punições para os que se refugiaram du-rante o ataque inimigo. Mas é preciso lembrar que a dimensãoda cidade naquele período era bastante reduzida. Portanto, esseesvaziamento poderia ser revertido tão logo passasse o perigo,pois a facilidade de retornar, mediante notícias de que a resis-tência havia logrado êxito, era a mesma com que fugiam. As-sim, é possível que muitos dos que fugiram tenham retornadopara colaborar com o reforço vindo do recôncavo.

Se este raciocínio estiver correto, podemos concluir que acidade pode até ter se tornado deserta e que por alguns diasteria sido fácil para os ingleses invadi-la, porém, este esvazia-mento não deve ter durado muito tempo, o que nos leva a crer

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que as punições tenham tido um caráter exemplar, para queem outras circunstâncias semelhantes a decisão de fugir não serepetisse. Caso contrário, no momento da punição, quem de-veria ser punido, toda a população da cidade? De qualquermaneira, o que fica claro é que a capital colonial, fosse por pou-cos dias ou durante todo o episódio, não estava preparada parase defender de ataques como esse, o que demonstra a ausênciade uma estratégia de defesa.

Uma segunda questão a ser ponderada diz respeito à for-ma como foi encaminhada a defesa da cidade contra os ingle-ses. O trecho citado anteriormente, retirado do relato de freiVicente, refere-se a uma armada composta por cinco barcasutilizadas no transporte da cana-de-açúcar e uma galé comocapitania. É óbvio que se trata de um exagero do cronista namedida em que essas embarcações não podem ser equiparadasàs que costumavam compor as armadas.13 Não obstante, a ca-pacidade de manobra que essas barcas pudessem ter, ou qual-quer outra vantagem em relação às embarcações inimigas, comcerteza não possuíam os mesmos elementos e dimensões, mui-to menos o poder de fogo de uma nau acostumada às travessiasde oceanos e à prática do corso. Dessa maneira, o que observa-mos na defesa de Salvador em 1587 foi uma medida criativa edesesperada de quem carecia de recursos para defender a cida-de. Mais uma vez, ficam patentes os arranjos de última hora aque estava sujeita a administração colonial. Provavelmente oêxito dessa pseudo-armada deva-se ao fato de que não era in-tenção dos ingleses invadirem a cidade. Mesmo não acreditan-do que as naus inglesas tenham chegado à baía de Todos os

13 De maneira geral, especialmente no período em questão, uma armadalevava tempo considerável para ser preparada, e caracterizava-se por umconjunto de navios, esquadra e frota sob comando único.

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Santos unicamente em função de fatores climáticos, parece ve-rossímil que de fato seus objetivos eram causar prejuízos a em-barcações espanholas e obter lucros com a pilhagem de portose navios. Nesse sentido, a chegada das naus à Salvador não deveter sido precedida de um plano de invasão, mas sim de inten-ções de pirataria e corso, o que fizeram a contento. O desco-nhecimento do esvaziamento da cidade, ainda que por poucosdias como acreditamos ter sido, acrescido da resistência orga-nizada de ultima hora e, portanto improvisada, deve ter dadoaos ingleses a impressão de que a cidade estava bem guarneci-da, quando na verdade a realidade era outra.

Nesse mesmo ano (1587), Gabriel Soares de Souza tam-bém demonstrava preocupação com a insegurança da capitalcolonial, solicitando ao rei que acudisse “ao desamparo em queesta cidade está, mandando-a cercar de muros e fortificar, comoconvém ao seu serviço e segurança dos moradores dela; porqueestá arriscada a ser saqueada...” (SOUZA, 1971, p. 140-41). So-ares de Souza temia um ataque de corsários e convidava o rei aassumir seu papel de guardar suas possessões. Informava tam-bém que os ingleses conheciam a fragilidade da terra por játerem nela estado.

Apesar de se preocupar com os ingleses, talvez influencia-do pelos últimos acontecimentos, Gabriel Soares esqueceu-sede mencionar os holandeses, também conhecedores da regiãoe responsáveis por diversos saques a navios que navegavam nolitoral próximo a Salvador. Além do mais, foram os holandesesquem deram vida aos seus temores atacando a cidade em 1599,1604 e finalmente dominando-a por onze meses entre os anosde 1624-25. Isso para não falar do saque de 1627, da investidacomandada por Nassau em 1638, da invasão de Itaparica em1642 e do ataque à mesma ilha em 1652.

Essa presença estrangeira nos remete ao terceiro e revela-dor aspecto do ataque empreendido por Robert Withrington e

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Christopher Lister, exemplificado aqui na figura do comercianteflamengo Duarte Osquer, residente na capital colonial, proprie-tário de uma urca tripulada por marinheiros flamengos. A ati-tude de Duarte Osquer durante o ataque inglês não ficou muitoclara na pena do frei Vicente, pois o relato do franciscano con-funde o leitor quanto à entrega voluntária da urca de proprie-dade do flamengo, ficando a dúvida se teria sido entregue pelocomerciante ou pelos marinheiros.14 Seja como for, a presençade Duarte Osquer como morador da capital da América portu-guesa confirma aquilo que Sérgio Buarque chamou de caráterrelativamente liberal dos portugueses, ou seja, a permissão da“livre entrada de estrangeiros que se dispusessem a vir traba-lhar”. De acordo com esse historiador, era permitido ao estran-geiro percorrer o litoral brasileiro na qualidade de morador, “des-de que se obrigassem a pagar 10% do valor de suas mercadorias,como imposto de importação, e desde que não traficassem comos indígenas. Essa situação prevaleceu ao menos durante os pri-meiros tempos da colônia” (HOLANDA, 1995, p. 108).

Convém ressaltar que a presença de estrangeiros pode sernotada em larga escala desde o momento da construção da ci-dade. Da leitura dos Mandados e Provisões emitidos por Toméde Souza, constatamos a atuação de diversos profissionais, inclu-sive os chamados homens de armas, oriundos de diversas loca-lidades da Europa, em especial da Espanha e de Flandres (Man-dados e Provisões do século XVI).15 No entanto, essa “tendência

14 Pedro Puntoni traz informações importantes sobre Duarte Osquer, en-tre elas, a confirmação de que Osquer não colaborou com os ingleses. Naverdade, sucedeu-lhe a perda da urca durante o ataque de 1587 (Cf.PUNTONI , 1999, p. 31).

15 Mandados e Provisões do Século XVI. In: Documentos Históricos. Vol.XXXVII. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1937. Ver Fontes e biblio-grafia para as referências completas das fontes citadas.

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liberal”, como afirmou Sérgio Buarque de Holanda, que permi-tiu a presença de homens como Osquer na colônia foi revistapela administração dos Felipes no Brasil. Assim, após ter orde-nado o aprisionamento de grande número de navios holande-ses que estavam no porto de Lisboa em 1585, Felipe II da Espa-nha (Felipe I de Portugal) determinou, em alvará de 1591, aproibição de navios estrangeiros em portos do Reino ou dasConquistas sem prévia autorização real.

A compreensão dessas mudanças empreendidas na admi-nistração dos Felipes passa por um entendimento das relaçõespolíticas europeias no período. Além das divergências com aFrança e a Inglaterra, devem ser consideradas em especial asdisputas entre a Espanha e suas antigas possessões, agora inde-pendentes, as Províncias Unidas dos Países Baixos. Os paísesdo norte europeu estavam agrupados em dezessete provínciassob a tutela da Espanha. Esta última, a partir do reinado deFelipe II, decidiu adotar medidas centralistas e deter o avançoda religião reformada através da Inquisição. Porém, as Provín-cias do norte estavam sob forte influência do calvinismo e re-belaram-se contra o rei católico, declarando-se independentesda Espanha em 1585 e, desde então, passaram a ser conhecidascomo Províncias Unidas dos Países Baixos. A partir daí, a Espa-nha impôs uma série de embargos aos comerciantes dessas Pro-víncias – embargos estes que trouxeram Portugal e suas colôni-as a reboque, haja vista que era o tempo da União Ibérica(PUNTONI, 1999, p. 33).16

Como observou Joaquim Serrão, para que os interessesmetropolitanos na colônia não fossem prejudicados, erafundamental que, além dos combates aos corsários, também

16 A ordem de 1585 era uma resposta direta à proclamação deindependência das Províncias Unidas.

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se adotassem medidas que limitassem a atuação de mercadoresestrangeiros que vinham negociar diretamente nos portos dacolônia (SERRÃO, 1968, p. 73). Nesse sentido, não deve tersido coincidência que também em 1591, juntamente com o al-vará mencionado acima, chegasse ao Brasil a Primeira Visita-ção do Santo Ofício. Segundo Ronaldo Vainfas, na introduçãodas Confissões da Bahia, no mesmo ano em que chegava aoBrasil o visitador do Santo Ofício, outro visitador também che-gava a Açores, Madeira e posteriormente a Angola, o que indi-ca que a preocupação da Coroa espanhola ia muito além dasquestões religiosas, buscando também limitar e vigiar a pre-sença de estrangeiros em suas possessões ultramarinas (VAIN-FAS, 1997, p. 5-33).

Apesar dessas medidas filipinas parecerem mais rígidas queas tomadas antes da União Ibérica, notamos que, no que dizrespeito ao planejamento, a Coroa continuava a deixar brechasem muitas decisões fundamentais para a defesa, embora as de-terminações no papel parecessem perfeitas. O Regimento deFrancisco Giraldes traz uma decisão real que exemplifica bemessa situação: o documento informa que o Governador TelesBarreto, falecido em 1587 e a quem Giraldes vinha em substi-tuição, havia construído uma galé nova que ainda não estavaem ação, e ordenou que o novo governador (Giraldes), assimque chegasse ao Brasil, procurasse saber se a referida embarca-ção possuía serventia para defesa da costa. Em caso positivo,deveria o enviado real ordenar a construção de uma galeotapara navegar em sua companhia. Quanto ao abastecimento des-sas embarcações, o rei foi claro em afirmar que deveria ser feito“com menos despesa de minha Fazenda”. Assim, o rei ordenou:

[...] aos donos de engenhos d’açúcar das Capita-nias das ditas partes, acudam com mantimentosnecessários para soldados marinheiros e chusmas

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que houverem de andar nestas embarcações,repartindo-os entre eles com igualdade, possi-bilidade, e fazenda que cada um tiver; [...] signi-ficando-lhes que o que principalmente me mo-veu a mandar armar êstes navios, foi, para comisso, se segurarem suas fazendas, e as poder na-vegar livremente, e os ditos mantimentos re-partir por êles nas Câmaras das ditas Capitanias,onde haverá livros da dita Repartição, em queos Oficiais das Câmaras assinarão para se, a todotempo, saber a quantidade de mantimentos quecada um há-de-dar e tiver dado, e a ordem quese há-de-ter na recadação deles. (Regimento deFrancisco Giraldes, grifo meu )

Lamentavelmente não temos conhecimento do cumpri-mento dessas ordens para saber como os senhores de engenhoreceberam tal determinação, e desconhecemos mesmo se che-garam a tomar conhecimento do referido Regimento, pois Fran-cisco Giraldes nunca desembarcou no Brasil, tendo sofrido di-versos reveses durante a viagem, retornando ao Tejo em 1589(SERRÃO, 1968, p. 39). De qualquer maneira, o documento ésignificativo para o entendimento das decisões do monarca es-panhol. Assim, observamos que a preocupação em defender suaspossessões esbarrava na carência de recursos, ainda mais quan-do lembramos as dimensões do império espanhol com o ad-vento da União Ibérica. Nesse caso, os custos da defesa deveri-am ser divididos com os senhores de engenho, que deveriamcontribuir com igualdade e possibilidade de acordo com os re-cursos de cada um.

Ora, como dividir igualmente o que é por natureza dife-rente? As ordens reais são contraditórias e demonstram maisuma vez a ausência de estratégias de defesa à altura da quanti-

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dade de corsários e piratas que rondavam o litoral da colônia.Do mesmo modo que havia se dirigido D. João III a Tomé deSouza em 1548, fazia Felipe II a Francisco Giraldes em 1591:resolva os problemas de defesa do território, solucione os con-flitos com os índios, aumente os rendimentos da minha fazen-da, etc. – tudo de acordo com o que ia determinado nos regi-mentos e, quando não fosse possível seguir tais orientações, oGovernador deveria agir de acordo com o que permitisse a re-alidade, contanto que não exigisse maiores investimentos porparte da Coroa.

É óbvio que não se trata de pensar que as determinaçõesreais devessem ter um caráter rígido a ponto de engessar asatribuições do Governador e do corpo administrativo. Comoponderou António Manuel Hespanha, “os governadores ultra-marinos estavam isolados da fonte do poder por viagens quechegavam a levar anos, tendo necessidade de resolver sem terde esperar a demorada resposta às suas demoradas perguntas”(HESPANHA, 2001, p. 175). Nesse sentido, era natural que aCoroa atribuísse poderes aos governadores para resolveremquestões que não poderiam ser previstas, porém, defender oterritório e a navegação não era tarefa desconhecida para ametrópole, antes, uma ação imperativa para o rendimento daprópria empresa colonial.

Evidência clara de que os embargos filipinos não produzi-ram o efeito desejado, certamente por manterem uma estratégiadefensiva deficiente, seja em terra ou no mar, e pela continuaausência de recursos, os ataques de corsários e piratas continu-aram a molestar os habitantes da colônia, bem como os merca-dores em alto mar. Em 1590 saiu de Plymouth o corsário inglêsThomas Cavendish para saquear as capitanias do sul do Brasil;em 1594 foi a vez do também inglês James Lancaster saquear oNordeste e, posteriormente, se unindo a Jean Venner, ataca-rem Pernambuco; em 1595 uma armada francesa composta de

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treze navios tentou saquear a Vila de Ilhéus; também em 1595os franceses Poedemil e Gouribaut de La Tramblade vieram aoBrasil para traficar pau-brasil – quando os navegantes lidera-dos por Poidemil aportaram nas proximidades de Sergipe, fo-ram abordados pelos portugueses acompanhados de índios eenviados para Salvador, onde, após dezoito dias foram enforca-dos; na Paraíba, o Forte Cabedelo foi atacado em 1597 por na-vios franceses, que não conseguindo êxito na ação, retiraram-se para Honduras, com uma rápida passagem pelo Rio Grandedo Norte. Vários outros corsários e piratas tentaram, e muitasvezes conseguiram, saquear portos, vilas e embarcações. Porhora, nos concentremos nos ataques holandeses à Bahia.17

Na véspera do Natal de 1599, o porto de Salvador foi maisuma vez atacado por estrangeiros, desta vez holandeses coman-dados por Hartman e Boers que, a bordo de sete naus, provoca-ram mais tumultos e pânico nos moradores da cidade ao ataca-rem os navios ancorados no porto, queimando e destruindoaqueles que lhes ofereciam resistência. A defesa foi comandadapor Álvaro de Carvalho, substituto do governador D. Francis-co de Souza, que havia partido para São Vicente em busca dasminas de ouro. Conforme frei Vicente, Carvalho tratou de co-locar pessoas “por suas estâncias na praia e na cidade” para adefenderem caso os holandeses quisessem desembarcar. Noentanto, os estrangeiros preferiram negociar, solicitando comorefém alguém equivalente ao seu general. Foi lhes mandadoentão Estevão de Brito, enquanto o general holandês descia paranegociar com Álvaro de Carvalho durante quatro dias no colé-gio dos padres da Companhia. Ao final dos quatro dias, o ho-landês ouviu do governador que a única alternativa que lhe

17 Para mais informações sobre os ataques de piratas e corsários ver, entreoutros: SERRÃO, 1968, p. 79; BERGUER et. al, 1975; HOLANDA, 1997,p. 147-175.

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restava era deixar Salvador, mas, ao que consta, o general nãorecebeu muito bem a notícia e enfurecido ordenou um ataqueao recôncavo. Acatando as ordens de “roubar e assolar quantopudessem”, os holandeses atacaram o engenho de BernardoPimentel de Almeida. Não encontrando resistência nesse en-genho, queimaram casas e igreja, saqueando inclusive o sinodo campanário. Seguindo o raciocínio cristão do frei, é possíveldeduzir que tal atitude foi punida quando o sino soou, denun-ciando a presença dos estrangeiros e dando condições aos tre-zentos homens comandados por André Fernandes Morgalhode castigá-los.18

O segundo momento desse episódio demonstra que os ho-landeses não se deixaram intimidar, pois, após o combate, em-barcaram e reforçaram seus quadros com mais munição e pes-soal. Seguiram então para as ilhas da baía de Todos os Santos,indo primeiro à Ilha dos Frades a fim de se abastecerem deágua, porém tendo desistido por acharem a água salobra, retira-ram-se para a de Itaparica. A desistência dos holandeses neutra-lizou os esforços no sentido de defender a ilha, feitos de últimahora por André Fernandes e Álvaro Rodrigues da Cachoeira,este último auxiliado por índios. Em Itaparica atearam fogo aoengenho de Duarte Osquier, o mesmo mercador flamengo queperdeu sua urca quando do ataque dos ingleses Withrington eLister. Antes que empreendessem outras ações, chegaram emItaparica para combatê-los, os mesmos André Fernandes e Ál-varo Rodrigues, que “os acometeram com tanto ânimo quemataram cinquenta e fizeram embarcar os mais e recolherem-se à sua armada, que também logo se fez à vela e despejou oporto” (Idem, p. 276-77). Antes de se retirarem do porto queocuparam durante cinquenta e cinco dias, os holandeses ataca-

18 Todas as informações desse ataque foram baseadas na obra de SALVA-DOR (1976, p. 275-76)

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ram a nau de Francisco de Araújo, que vinha do Rio de Janeiro,roubando cinco ou oito mil quintais de pau-brasil.

Talvez esse ataque à Bahia tenha sido o primeiro saldo dosembargos espanhóis para a América portuguesa. Antes de 1599,não encontramos nenhum relato de agressões holandesas à co-lônia. As notícias da presença de flamengos na Bahia, como emoutras partes da colônia, dão conta de que suas ações, de ma-neira geral, estavam ligadas à prática do comércio e financia-mentos. Já os relatos acerca dos holandeses, portanto de repre-sentantes das Províncias Unidas independentes da Espanha após1585, só começam a aparecer com mais constância a partir doSéculo XVII. Certamente foi em função disso que Sérgio Buar-que de Holanda afirmou que a investida de Hartman e Boersnão mais pertencia ao Século XVI, mas sim, ao XVII (HOLAN-DA, 1997, p. 168).19

Ainda em relação ao ataque de 1599, notamos, a partir dorelato de frei Vicente, que os holandeses não possuíam a pre-tensão de desembarcar, porém de auferir lucros. Tanto que apósespoliarem as naus que estavam no porto, designaram embar-cações menores para atacar os engenhos do Recôncavo, ondechegaram a incendiar um deles. Pergunta-se: e as tais fortale-zas que deveriam ser construídas pelos senhores de engenho,como determinava o Regimento de Tomé de Souza? Se existi-am, poucos efeitos tiveram, entretanto, creio que foi mais umadeterminação não cumprida, como haveria de ser a maioria dasdeterminações que colocassem o ônus da defesa nas mãos dossenhores de engenho que, como escreveu Stuart Schwartz, viviam

19 Os flamengos eram naturais de Antuérpia e participaram intensamenteno comércio marítimo no século XVI, ao passo que os holandeses, cujodesempenho nesse tipo de comércio floresceu ao longo do Século XVII,eram naturais da Província de Amsterdã, a mais importante das seteProvíncias Unidas dos Países Baixos. Sobre a diferenciação entre os doistermos, ver MELO, 2000.

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às voltas com as dificuldades financeiras advindas da necessi-dade de altos investimentos para fazerem funcionar seus enge-nhos (ver SCHWARTZ, 1988, cap. 8).

A expedição de 1599 era apenas o prenuncio do que viriaacontecer durante o século XVII. Já em 1603, o rei enviou umacarta ao Governador Diogo Botelho, avisando dos perigos deum ataque holandês ao Brasil:

Soube que nas ilhas de Holanda e Zelândia seficavam acabando de aprestar e pôr em ordematé trinta navios, com muita gente e munições,para fazer alguma empresa, e que partiram combrevidade; e porque, por certas conjecturas, sesuspeita que se faz esta armada com desenho deir accommeter este Estado do Brasil, pela Bahiaou Rio de Janeiro, me pareceu fazer-vo-lo logosaber [...] Pelo que vos encommendo desde logovos apercebais e estejais apparelhado de tudo oque parecer que convem, para que por qualquerparte que o imigo accommetter esse estado, achetoda a prevenção, com a resistência e defensãonecessária: e nesta occasião confio que vos ha-jais de maneira e deis de vós tão boa conta comode vossa pessoa espero, e conforme é minha con-fiança que de vós tenho. [...] vos mando cemquintaes de polvora para se repartirem pelas di-tas capitanias e estarem dela melhor provida(Carta Régia de 3 de Dezembro de 1603).

As informações reais estavam corretas. Em julho de 1604chegaram à Bahia sete naus comandadas por Paulus Van Car-den. Dessa vez, parece que a capital estava melhor aparelhadapara se defender do ataque, provavelmente graças ao prévio

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aviso da Coroa, pois os corsários não obtiveram muito sucesso,seja no porto ou no Recôncavo. Nem mesmo as embarcaçõesque se dirigiam para o Porto de Salvador caíram nas mãos dospiratas, pois foram avisadas da presença do inimigo através dejangadas enviadas pelo Governador e de tiros de alerta dispara-dos da cidade, ou talvez, de sinais enviados pela linha de defesainstalada no litoral norte da cidade.

Sabemos, graças a informações contidas na certidão dosserviços de Diogo Botelho, e de documento redigido por ofici-ais da Câmara em 20 de dezembro de 1607, que o referido go-vernador esteve vigilante na defesa da cidade, ordenando oguarnecimento da praia para impedir o desembarque dos ini-migos. E para que ninguém descumprisse suas ordens, avisouque quem propusesse o abandono da praia seria punido com aprópria vida e acusado de traição. De acordo com a versão dosoficiais da Câmara, o próprio Botelho não subiu à cidade du-rante os quarenta dias em que os holandeses permaneceram nabaía (Certidão dos Serviços de Diogo Botelho). No que pese acredibilidade das informações contidas num relatório a ser en-viado ao rei – sendo, portanto, necessário dar os devidos des-contos, já que os dados apresentados eram passíveis de altera-ções pautadas nas relações institucionais da época, ou seja, se asrelações entre o governador e a Câmara fossem amigáveis, asinformações enviadas provavelmente seriam favoráveis ao go-vernador, em caso contrário, apenas seus aspectos negativosseriam ressaltados – ainda assim, tudo leva a crer que Botelhose empenhou em cumprir a rigor as determinações reais, pro-curando não decepcionar sua Majestade.

Não só nesse episódio de 1604, mas durante toda sua ad-ministração, Diogo Botelho se mostrou empenhado em melho-rar o sistema defensivo da colônia, tentando atender às deter-minações da metrópole que, ao que parece, adentrou o séculoXVII mais preocupada com os ataques de corsários e piratas.

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A própria carta do rei informando a Botelho dos riscos e orde-nando a precaução é um indício de que a corte estava maisatenta com a segurança da colônia. No mesmo ano em que en-viou a carta ao seu representante maior na colônia, o rei tam-bém ordenou que o arquiteto Francisco de Frias viesse para oBrasil a fim de “tratar” das fortalezas da colônia. As ações do reidemonstram que a Coroa sabia que suas possessões ultramari-nas corriam riscos, entretanto, parece que desconhecia o tama-nho destes riscos.

Em 1605 Botelho solicitou, por intermédio de Diogo Mo-reno, que estava de viagem para a Europa, o envio, o mais rápi-do possível, de armas, munições e recursos para fortificar Sal-vador e Pernambuco. O rei se mostrou solícito em atender todosos pedidos, entretanto, o vice-rei de Portugal, na época o bispoD. Pedro de Castilho, recomendou que, antes de atender aopedido do governador, fosse enviado para a colônia um peritoem fortificação para avaliar a urgência do pedido, e que se real-mente houvesse necessidade da obra, os encargos não deveri-am recair sobre a Coroa. O vice-rei recomendou ao monarcaque escrevesse para as Câmaras do Brasil ordenando que as des-pesas com as fortificações fossem pagas com a imposição dovinho. De acordo com Serrão, é pouco provável que o tal peritoem fortificações tenha vindo para o Brasil, mas o rei acatou asugestão de D. Castilho e recomendou que as despesas recaís-sem na imposição (do vinho), e que as outras capitanias tam-bém pagassem o mesmo tributo até o final das obras.20

O mesmo Diogo Moreno, sargento-mor do Estado do Brasilque levou os pedidos do governador Botelho em 1605, escre-veu, em 1612, um relato importante abordando as condições

20 Cf. SERRÃO, 1968, p. 101-103. O autor cita e transcreve trechos de car-tas trocadas entre o vice-rei português e o monarca espanhol acerca doassunto. Sobre a imposição do vinho, trata-se de uma sobretaxa cobradana comercialização do vinho.

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de defesa da colônia. Intitulado Livro que dá Razão do Estadodo Brasil, o relatório do sargento traz informações relevantessobre o sistema defensivo de Salvador. Fazendo menção à soli-citação que enviara ao rei em 1605 reclamando a necessidadede fortificação, Moreno afirma que tanto a cidade quanto o Re-côncavo, “a qualquer rebate vivem em tormento e decomposi-ção, havendo com suas armas e à sua custa de acudir a cidade”(MORENO, 1955, p. 141, grifo meu). Mais adiante o autor vol-ta a insistir na debilidade defensiva de Salvador:

Por muitas vezes se tem advertido à Sua Majes-tade que os Fortes de Santo Antonio, de Itapa-gipe e da Água de Meninos não são de nenhumefeito, assim porque não defendem nada, comopelo grande risco com que se sustentam por suafraqueza e má traça, e é de crer que, por defen-der qualquer deles, que estão a uma légua dacidade, aventura-se, dividindo a gente, a perdera mesma cidade pelo que se adelgaçam as for-ças, e quando, pela conservar, não se dividindo,deixarem de socorrer os ditos fortes, e não sesocorrendo, perder-se algum deles, ou todos,perde-se a honra e a artilharia... (Idem, p. 143)

O documento põe em cheque a eficácia da fortificação detrês importantes áreas da cidade cujos fortes possuíam proble-mas que remontavam às suas construções, já que, segundoMoreno, estes foram mal planejados. Nesse caso, utilizar os re-feridos fortes para defender a cidade de eventuais ataques erapor em risco a vida de quem neles estivessem, e mais ainda,articular qualquer reação a um possível ataque significava lidarcom uma grande dúvida: até que ponto era viável dividir asforças humanas da defesa colocando parte delas para defender

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os fortes, já que essa divisão poderia implicar na perda da cida-de? E mais, não procedendo com a divisão também se corria orisco de perder os fortes, logo, as perdas iam além do campobélico, perdiam-se também a honra e vidas humanas.

Chamo ainda a atenção para o fato de que o mesmo fortede Santo Antonio aqui criticado, foi recomendado pelo rei, dezanos depois, para servir de base às operações de defesa da cida-de, conforme carta régia de 3 de agosto de 1622 (Carta Régia de3 de agosto de 1622). Dessa maneira, a carência de recursosobrigava à utilização de mecanismos ultrapassados para a defe-sa da cidade. Autoridade no assunto, Moreno segue seu relató-rio num tom enfático: “a fortificação da cidadela está tão atra-sada e a cidade é uma aldeia aberta, exposta a todos os perigosenquanto aquela parte se não fortificar”. Vai além, narrando asinvestidas que a capital da América Portuguesa sofrera em 1604,e sentencia: “se livrou mais por boa fortuna que por razão deguerra” (MORENO, 1955, p. 150, grifo meu).

Em 1614, Baltasar de Aragão, na ausência do Governador-Geral, Gaspar de Souza, foi nomeado capitão-mor da guerra daBahia e recebeu a incumbência de defender a cidade de umataque de franceses – e assim o fez. Recebendo notícias de queas embarcações inimigas estavam nas proximidades de Morrode São Paulo, Baltazar de Aragão saiu ao encontro dos inimi-gos. Quando tudo parecia resolvido a favor dos portugueses,um acidente esdrúxulo acometeu a nau em que se encontrava ocapitão-mor da guerra da Bahia, que morreu com mais duzen-tos homens.21

21 Após vitoriosos combates, Baltasar de Aragão resolveu não afundar a naucapitania francesa, optando por sua captura. Triste escolha: “não sei comque vento, [...], quando ia já para a ferrar, pendeu tanto a sua nau quetomou água pelas portinholas da artilharia, calando-se pelas escotilhasque iam abertas, foi entrando tanta que incontinenti se foi ao fundo comseu dono”. Cf. SALVADOR, 1976, p. 346-7.

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Um aspecto desse episódio a ser destacado é que, ao seravisado do risco de um ataque francês, o capitão-mor deu iní-cio aos trabalhos de defesa da cidade. Segundo Frei Vicente,Baltasar de Aragão,

[...] logo começou a perceber e fortificar assim acidade como a praia, cercando-as de suas cercasde pau-a-pique, com tanta diligência que a todoinstante trabalhava com seus escravos e criadossem ocupar a outros, [...], com quem fez de pedrae cal o muro e portal da banda do Carmo, que atéentão era de terra de pilão, reformou e fortificouas portas, o que tudo pagou da sua bolsa, e até ospaus para a cerca da praia mandou vir quase to-dos nas barcas dos seus engenhos. (SALVADOR,1976, p. 346)

Fica evidente, mais uma vez, mesmo com o provável au-mento nas preocupações da Coroa com a defesa da colônia, amanutenção da fragilidade do sistema defensivo de Salvador,onde, às vésperas de um suposto ataque, corria-se contra o tem-po para se preparar a defesa – que já deveria estar em plenofuncionamento na “cidade fortaleza” que era a capital da colô-nia e abrigava um porto bastante movimentado.

Como podemos notar, os trechos citados são contunden-tes ao se referirem às fortificações de Salvador. A cidade forta-leza não saiu das páginas do Regimento de Tomé de Souza. Como desenvolvimento da colônia e consequente crescimento dacapital, seus limites ampliaram-se no decorrer do tempo e suadefesa tornava-se cada vez mais precária. Entretanto, a preca-riedade do sistema defensivo não era, ao que parece, resultadoapenas do descaso das autoridades, mas também, da escassez derecursos para arcar com os altos custos da defesa. Ao menos é o

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que podemos concluir, ao observar na tabela abaixo, que em1611 a maior parte das despesas da Fazenda Real eram destina-das à “gente de guerra”, ou seja, com a defesa. De qualquermaneira, mesmo não sendo má vontade da administração real,a debilidade do sistema defensivo era clara, e é nesse aspectoque reside uma das fortes razões para o insucesso diante doholandês invasor em 1624.

Despezas da fazenda real na Capitania da Bahia em 1611

Instituição Despesa

Gente de Guerra 6:870$000

Igreja 5:443$640

Relação e Governador 4:954$000

Fazenda 1:059$600

Entretenidas 270$000

Tenças 143$000

Total 18:740$240

Fonte: Moreno, 1955

1.2. Administração e conflitos

A despeito de questões relacionadas ao sistema defensivo deSalvador, alguns autores buscaram explicar a rápida queda dacidade em mãos inimigas por meio dos conflitos existentes entre

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as instituições coloniais.22 Assim, uma querela entre o bispo e ogovernador em atividade no ano de 1624 teria enfraquecido adefesa da cidade. Para melhor avaliar essa hipótese, vejamosalguns aspectos da administração colonial nas vésperas da in-vasão holandesa.

A administração real estabelecida na colônia estava basea-da no tripé fazenda, guerra e justiça. No início do século XVII,a cidade de Salvador abrigava, além das instituições estabeleci-das com a criação do governo geral no século anterior, o Tribu-nal da Relação, órgão que teria sido criado, entre outras coisas,em função dos constantes conflitos de interesses entre funcio-nários seculares e eclesiásticos. Porém, Schwartz acredita quea verdadeira razão dada para a criação da Relação do Brasil “foio fato de que a América Portuguesa estava crescendo em tama-nho e importância. A colônia estava germinando e se tornandocada vez mais importante, tanto estrategicamente, como basede defesa militar, quanto economicamente, como fonte de açú-car” (Schwartz, 1979, p. 49).

Pensando estas instituições que se instalaram no Brasil co-lônia numa perspectiva de Império, ou seja, como semelhantesàs instaladas em outras partes do domínio português no mun-do, Boxer afirmou que “investigações recentes acerca da estru-tura social da Câmara e da Misericórdia da Bahia mostram queos poderosos locais provinham ainda esmagadoramente das fa-mílias dos senhores de engenho do Recôncavo...” (BOXER,1969, p. 313, grifo meu). E sobre a importância das instituiçõessupracitadas, escreveu:

A Câmara e a Misericórdia podem ser descritas,apenas com um ligeiro exagero, como os pilares

22 Sobre os autores que sugerem essa interpretação ver, entre outros:AZEVEDO, 1969; CALMON, 1959.

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gêmeos da sociedade colonial portuguesa desdeo Maranhão até Macau. Garantiam uma conti-nuidade que governadores, bispos e magistra-dos passageiros não podiam assegurar. Os seusmembros proviam de estratos sociais idênticosou comparáveis e constituíam, até certo ponto,elites coloniais. (Idem, p. 305).

De acordo com o trecho citado, o autor caracteriza as câ-maras como sendo representantes das reivindicações locais,prezando pela continuidade das ações práticas, mais ligadas àvida cotidiana dos habitantes da colônia. Já no caso de gover-nadores, bispos e magistrados, enviados reais que transitavamem partes diferentes do império ocupando cargos, as principaispreocupações estavam relacionadas ao acumulo de experiênciae obtenção de cartas de recomendações com o intuito de alar-gar as mercês a serem recebidas pelos serviços prestados – issosem falar nas vaidades individuais. Notamos, a partir das afir-mações de Boxer, a existência de dois poderes: um local, repre-sentado pela câmara, e outro metropolitano, representado porgovernadores, magistrados e bispos. Esses poderes atuavamconforme a situação: ora em acordo, ora sob forte tensão. E osrepresentantes metropolitanos também entravam em desaven-ça entre si, especialmente governadores e magistrados versusbispos. Além disso, os membros da câmara também se desen-tendiam constantemente com os bispos.

Certamente, as divergências envolvendo os poderes secu-lares e religiosos na colônia passavam pela própria concepçãode como deveria ser dirigida a colonização. Se por um lado ha-via a necessidade de dominar o território e incluir as popula-ções nativas na nova sociedade que emergia, por outro ladohavia a demanda de mão de obra para fazer funcionar a econo-mia açucareira. Dessa forma, temos dois projetos distintos de

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colonização que envolviam a população ameríndia, a saber:1) de longo prazo, sob a responsabilidade do Estado e da Igreja,cujo objetivo era transformar o índio em súdito; 2) de curtoprazo, resultado das necessidades dos colonos, que consistia naescravização do índio para atender às exigências da produçãoaçucareira.

À coroa cabia administrar o descompasso entre os interes-sados nestes dois projetos opostos, ambos fundamentais para odesenvolvimento da colônia. Nesse sentido, a metrópole in-vestiu nas desavenças entre seus agentes com o intuito de cen-tralizar as decisões, mantendo, de certa maneira, a submissãoda colônia enquanto passava o tempo administrativo, aqueleda burocracia, dos papéis que circulavam várias instâncias eatravessavam o Atlântico.

No entendimento de Maria Fernanda Bicalho, a historio-grafia tradicional vê os conflitos de autoridade e jurisdição queocorriam entre os administradores da colônia como ponto umnegativo das relações entre poder central e poderes locais. En-tretanto, a autora considera que a “justaposição de funções ecompetências [foi], até certo ponto, uma política deliberada daCoroa, que chegou a incentivar um certo enfrentamento entreseus agentes justamente pelo motivo de se acharem isoladospela grande distância que os separava do reino” (BICALHO,2000, p. 21). A mesma opinião é compartilhada por Schwartz,para quem o modelo da administração colonial favorecia o con-trole mutuo das instituições, o que gerava contínuas consultasà Coroa, que aproveitava o tempo burocrático para manter ocontrole da colônia. Assim, era de interesse da própria metró-pole que os administradores coloniais tivessem seus podereslimitados, obrigando-os à frequente consulta da Coroa(SCHWARTZ, 1979, p. 171).

A partir desses polos opostos, podemos visualizar a com-plexidade da administração portuguesa. Ressaltamos que os

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colonos eram representados por senhores de engenho e comer-ciantes, e não raras vezes estes eram os próprios membros daadministração. Nesse caso, os vereadores que, em tese, faziamparte da administração real, eram também os principais inte-ressados nos assuntos locais. Um bom exemplo para ilustrar aatuação dos vereadores e dos conflitos que envolviam os proje-tos supracitados é a promulgação da lei de 30 de junho de 1609,segundo a qual declarava-se a liberdade dos índios. De acordocom o padre provincial Henrique Gomes, que escreveu ao reiem 5 de julho de 1610 dando conta do que se passara na Bahiaapós a publicação da referida lei, o povo e Câmara reagiram muitomal, voltando seus protestos contra os jesuítas, defensores daliberdade indígena. Segundo Gomes, foi o maior motim que elevira desde que chegou ao Brasil. Com a palavra, o padre:

[...] deram princípio os juízes e vereadores comuns repiques a som de guerra, com que a 28 dejunho à tarde convocaram o povo à Câmara, ondesendo todos juntos, tratando-se a matéria, houvevários pareceres e entre eles alguns que nos em-barcassem a todos para Portugal, por inimigos dobem comum e da república [...]. Em resolução,depois de vários debates, se assentou que todosjuntos em um corpo fossem reclamar a Lei deSua Majestade diante do Governador Geral e doChançare-mor, o que efetuaram, entrando den-tro de suas casas só a câmara, e ficando de fora opovo todo, bradando a grandes vozes que nãoqueriam nem aceitavam tal lei, excitando-os Gas-par Gonçalves, procurador do conselho, que sobcapa de zelo da república foi a mor causa destemotim e alevantamento, persuadindo ao povo,com grandes vozes, que lhes queríamos tirar todo

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seu remédio e a sustentação [...] o povo se assa-nhou de modo que largavam pesadas palavrascontra os da Companhia, dizendo uns que nosembarcassem, outros que nos entaipassem o Co-légio; e foi tal o motim do povo, que o Procura-dor dos índios correu o risco de ser morto, só pordizer nesta ocasião que se informassem da verda-de e achariam que os Padres não tinham culpaalguma. (Carta do Padre Provincial HenriqueGomes)

Do trecho citado fica patente a iniciativa da Câmara emprotestar contra a nova lei que mexia com os interesses doscolonos, dentre eles, os poderosos senhores de engenho. De-monstra também a capacidade de mobilização da Câmara Mu-nicipal, que envolveu a população num “motim” contra umarespeitada ordem religiosa. E, mais ainda, os protestos deveri-am atravessar o Atlântico, sendo dirigidos ao próprio rei e, numsó documento, mesmo que para isso fosse necessária o uso decoação. E assim o fez o vereador Jorge Lopes da Costa, que foipedir aos jesuítas, por parte da câmara, uma certidão na qualdeclarasse que a nova lei era um desserviço a Deus e à Coroa eque prejudicaria todo o Estado. Além disso, deu a entender,

[...] com palavras claras, que, se a não desse, de-terminava a Câmara convocar os moradores to-dos deste Recôncavo, para que de mão comumnos embarcarem ou fazerem outro semelhanteagravo. Confesso fiquei sobressaltado, e comeceia imaginar onde estava: se em cidade livre de SuaMajestade, ou em alguma de inimigos, pois comtal força me queriam obrigar a fazer o que emnenhum modo podia, salva consciência; mas

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reprimindo o sentimento, lhe respondi com pa-lavras brandas, afim de os aplacar, que em tudo oque eu pudesse os serviria; não lhe dei contudo acertidão, que pediam, senão outra, em forma quenos pareceu a todos lícita... (Idem)

Em sua versão do ocorrido, o religioso ataca os vereado-res, magistrados e o governador ao se perguntar em que lugarestava: cidade livre de Sua Majestade, ou em alguma de inimi-gos? Também busca justificar no medo que teria sentido, omotivo pelo qual concedeu a certidão, não a que queria a Câ-mara, mas de qualquer maneira, uma certidão a favor dos co-lonos, os quais reivindicavam três coisas: que a nova lei nãolhes retirasse “os índios legítima e verdadeiramente cativosconforme as leis e provisões dos reis passados”; que não to-masse os índios “livres” que em suas casas e fazendas manti-nham; e esclarecer que a nova Lei abraçava os interesses dosjesuítas que queriam “chupar os índios de suas casas” para osaldeamentos.

Gomes ainda diz na carta que tentou convencer a Câmarade que não era responsável pela nova Lei, “acrescentando quenós não éramos partes nem o queríamos ser aos embargos quepretendiam por à nova Lei de Sua Majestade, que veio dirigidaà Relação desta cidade, e nela foi registrada, sem nós a apresen-tarmos nem sabermos parte dela” (Idem). Aqui o nosso infor-mante tenta eximir os jesuítas de qualquer culpa pela nova lei,ao passo que busca colocar o recém chegado Tribunal da Rela-ção na berlinda. Segundo Schwartz, não ficou clara a participa-ção da Relação na promulgação da lei que provocou toda estaconfusão, muito menos o quanto a população vinculou a novadeterminação à chegada do Tribunal. Para Schwartz, “é impos-sível determinar se a Relação ficou desacreditada pela promul-gação da Lei” (SCHWARTZ, 1979, p. 111).

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O Padre Gomes finaliza a carta demonstrando temor denovos motins “em caso que a dita Lei venha confirmada de SuaMajestade, e os de seu Conselho não estranharem ao Governa-dor deste Estado a dissimulação com que nele se houve, e nãocastigar os que nele foram culpados e particularmente o procu-rador do conselho...” (Carta do Padre Provincial Henrique Go-mes). Em sua conclusão, o jesuíta não dispensa novas críticasao Governador, desta vez atacando-o diretamente, pela dissi-mulação com que agiu, e cobra do rei uma punição ao procura-dor do conselho.

Além das discordâncias com relação aos índios, os repre-sentantes dos poderes religioso e civil conflitavam por motivosanteriores à descoberta da América – a instituição do padroa-do. Desde a Idade Média, em Portugal, a Igreja se submetia aosdesígnios do Estado, mas essa submissão deu-se de maneirarelutante, impregnada de desconfianças, agravada pelo fatode que cabia ao Estado a arrecadação dos dízimos da Igreja(FAORO, 1991, p. 197).

No Brasil, a cobrança do dízimo ficava a cargo da FazendaReal, o que resultava em uma série de conflitos, haja vista queesta colocava os religiosos na dependência dos funcionáriosreais, que podiam manter os cofres fechados como bem enten-dessem. Um dos expedientes utilizados pelos funcionários emesmo por desembargadores foi o de garantir primeiro seussalários, depois os da Igreja. Foi assim que o bispo ConstantinoBarradas (1600-1618) excomungou, em 1608, o provedor-morda Fazenda, Pedro Cascais, porque não pagou “certos atrasadosda folha eclesiástica do modo que ele bispo entendia” (VAR-NHAGEN, 1962, p. 110).

Embalados na insatisfação da dependência financeira doEstado e pelas divergências no modo de conduzir as questõesindígenas, qualquer motivo era passível de confusão entre reli-giosos e funcionários reais. Assim, numa sociedade em que o

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status era algo desejado por todos, a posição ocupada pelas au-toridades em procissões e solenidades passou a ser alvo de cons-tantes conflitos.

A 12 de julho de 1609, o governador Diogo de Menezesescreveu ao rei relatando o comportamento do mesmo bispoBarradas numa procissão do Corpo de Cristo que teria aconte-cido em Olinda. Segundo o governador, Barradas o “injuriou”na frente de todo o povo, e fazendo isto atingia ao rei, pois queele, Diogo de Menezes, era o representante de Sua Majestade.De acordo com a carta, o bispo não obedecia aos lugares que asautoridades deveriam ocupar na procissão. Rezava o costumeque à frente das procissões iria a bandeira da câmara, depois,juntos, o bispo e o governador, seguidos pelos oficiais da câma-ra. Naquele ano, o bispo iniciara a cerimônia antes do horáriocombinado, sem a presença do governador, dificultando o acessodeste ao lugar que deveria ocupar. Para agravar ainda mais asituação, devido à chuva que caiu naquele dia, a procissão foirealizada no interior da igreja. Nesse ambiente circunscrito,bispo e governador passaram das provocações para um embateverbal. Ali, defronte de todo o povo, os representantes maioresda Igreja e do Estado ofereceram ao público uma mostra decomo se relacionavam. Com a palavra, Diogo de Menezes:

E era o que fazia (o bispo) deante de todo o povo,a que me respondeo mil desvarios a que eu nãorespondi mais; que eu era D. Diogo de Menezes,estava neste Estado, governado-o como VossaMagestade mandava, e que nelle ninguém teriamelhor logar do que eu, pois representava a pes-soa de Vossa Magestade, ao que elle respondeo,entre outras coisas, que eu era menos do que ellee seo governo melhor do que todos, ao que mecalei, porque me pareceo assy conveniente ao

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logar e ao serviço de Deus e de Vossa Magestade.(Carta do Governador Diogo de Menezes ao Rei)

A atitude do bispo desmoralizava o governador numa cla-ra disputa de prestígio perante os súditos d’el-rei. Em 1610,novamente Diogo de Menezes escrevia ao rei. Agora, num tommenos cordial do que o utilizado na correspondência anterior,reclamava que nenhuma provisão do rei era obedecida no Bra-sil e das constantes excomunhões praticadas pelos bispos con-tra os membros da Relação, governadores e a quem mais seopusessem. Aparentemente irritado com as intervenções dobispo, Menezes desabafou:

He negocio este de muita importância para o ser-viço de Vossa Magestade, a que convém acudir-se com toda a brevidade possível porque se osclérigos, em suas causas particulares, com a capade arrecadar o seo, hão de excomungar o Gover-nador e os oficiais da Fazenda de Vossa Magesta-de, não será compatível o serviço de Vossa Ma-gestade, nem haverá oficial que o possa servir eserá grande desfraudo para sua Fazenda... (Cartade Diogo de Menezes ao Rei)

Certamente Diogo de Menezes estava preocupado com osexcessos do bispo, mas, não estava menos preocupado com oseu bolso, pois se o bispo o excomungasse, a exemplo do que jáfizera com desembargadores da Relação, ficaria a arrecadaçãonas mãos dos religiosos, o que sem dúvida seria um transtornopara administração colonial, que esteve sempre às voltas com acarência de recursos. Como vimos anteriormente, a própriadefesa da colônia ficava a mercê de improvisos em função,muitas vezes, da ausência de receitas.

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A tônica não foi outra quando, em 1622, chegou à Bahia oquinto Bispo do Brasil, D. Marcos Teixeira. Sua trajetória naBahia confunde-se com a própria história da invasão e ocupa-ção holandesa. Seu nome é uma incógnita para os historiadoresem diversos sentidos. Não temos sequer certeza de sua biogra-fia, sempre confundida com a do visitador da inquisição queesteve na colônia em 1618 (sobre esta questão, ver FRANÇA,1963). Da sua atuação nos combates com os holandeses temosinformações discrepantes que o colocam ora na condição deherói, ora na de vilão. Tendo se oposto aos trabalhos preventi-vos de fortificação da cidade realizados pelo governador, foium dos principais organizadores da resistência aos holandeses.Até mesmo sua morte é motivo de dúvidas: para uns foi enve-nenado por um cristão novo; para outros, morreu adoentado,vítima da velhice. Vejamos como o franciscano Frei Vicentedo Salvador narrou o primeiro desentendimento desse contro-verso personagem com o governador Diogo de Mendonça Fur-tado, já no momento da sua chegada a Salvador, a 8 de dezem-bro de 1622:

Desconcordaram estas cabeças, não querendo ogovernador achar-se no ato do recebimento eentrada do bispo, senão se houvesse de ir debai-xo do pálio praticando com ele, no que o bisponão quis consentir, dizendo que havia de ir re-vestido da capa de asperges, mitra e báculo, lan-çando bênçãos ao povo, como manda o cerimo-nial romano, e não era decente ir praticando.Por isto não foi o governador, mas mandou ochanceler e os desembargadores... (SALVADOR,1982, p. 359-60)

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Talvez Mendonça Furtado, sabendo das confusões passa-das entre religiosos e administradores, das disputas pelo poderexistentes na colônia, tivesse tentado demarcar seu espaço, pas-sando uma imagem de sintonia entre ele e o novo bispo ao de-cidir que só iria à sua recepção se desfilassem lado a lado. Ogovernador sabia do poder que possuíam os bispos pelo simplesfato deles serem os representantes do papa na colônia, portan-to a maior autoridade religiosa no Novo Mundo. Também erade seu conhecimento que as desavenças passadas entre bispos egovernadores deram-se por questões financeiras e que, na suagestão, a tendência era o acirramento dessas desavenças – hajavista que Mendonça Furtado tomou posse em 1621, trazendoconsigo a difícil tarefa de proteger a América Portuguesa deataques holandeses, tidos como certos depois que expirou a tré-gua de doze anos entre a Espanha e as Províncias Unidas.23 Nessesentido, suponho que o governador estivesse disposto ao tudoou nada. Ou teria o bispo do seu lado apoiando-o em suas tare-fas, ou o deixaria de lado, relacionando-se com ele apenas noque obrigava as funções do seu cargo.

Caso minha suposição esteja correta, Mendonça Furtadodeve ter se arrependido da estratégia que utilizou, pois D. Mar-cos tornou-se um opositor implacável. Segundo Salvador, alémdas antigas querelas sobre que lugar ocupar na igreja, governa-dor e bispo desentendiam-se por causa das obras de defesa dacidade, pois ao ser convidado pelo primeiro a benzer a primei-ra pedra que se lançou na construção de um novo forte, o se-gundo respondeu que “se lá fosse seria antes amaldiçoá-la, pois

23 Essa trégua vigorou entre os anos de 1609 e 1621, caracterizando-secomo um período em que os holandeses intensificaram seus interessespelos gêneros da América Portuguesa. Com fim dessa trégua, era tidocomo coisa certa que os holandeses atacariam possessões espanholas no ul-tramar, incluindo aí as colônias portuguesas. Cf. PUNTONI, 1999, p. 47.

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fazendo-se o dito forte cessaria a obra da sé, que se fazia dodinheiro da imposição” (SALVADOR, 1982, p. 359). O que,segundo Frei Vicente, não era tão verdadeiro, pois teria o bisporecebido uma quantia do governador para tocar a construçãoda Sé. E mesmo que não tivesse recebido quantia alguma para aSé, o bispo agia mais uma vez desconsiderando ordens reais,pois o governador estava cumprindo o que determinava a Car-ta Régia de 3 de agosto de 1622:

Quanto às fortificações, vista a relação que acer-ca delas fez o capitão e engenhero-mor Francis-co de Frias da Mesquita, e o que vos pareceu heipor bem que a da Bahia preceda todas a outras epor ser impossível, tendo tantos surgidouros bo-cas de rios assegurar tudo, se reduza a fortifica-ção aos dois fortes de Santo Antônio e São Felipe,melhorando-os conforme a traça que enviastes,fazendo de novo sobre a lajem, que está defronteda cidade, o Forte Novo e mole (?) para abrigodos navios; e que a cidade se fortifique por entreambas as bandas do mar e terra, tudo na formaque trata e na relação do engenheiro-mor seaponta, e se escusam os mais fortes que não sãode efeito. (Carta Régia de 3 de agosto de 1622)

Além do governador, a Câmara e a o Tribunal da Relaçãotiveram problemas com D. Marcos Teixeira. De acordo comfrei Vicente, os desembargadores

[...] contenderam sobre o espiritual e jurisdiçãoque tem pera a correção dos vícios e neste tempomais que em nenhum outro, porque lhe tiraramde um navio dois homens casados, que mandou

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fazer vida com suas mulheres a Portugal por es-tarem cá abarregados com outras havia muitotempo, e isto sem os homens agravarem, antesrequerendo que os deixasse ir, pois já estavamembarcados, pelo que o bispo excomungou o pro-curador da coroa, que foi o autor disso e houvesobre o caso muitos debates. Enfim estas eram asguerras civis que havia entre as cabeças... (SAL-VADOR, 1982, p. 360)

Já a Câmara de Salvador teve problemas semelhantes àque-les descritos nas cartas de Diogo de Menezes, ou seja, disputa-ram sobre onde ir a bandeira municipal nas procissões. Em fun-ção desta questão, D. Marcos pediu parecer da Relação quedecidiu em favor da Câmara. Não satisfeito, o bispo apelou paraa Mesa da Consciência, que para seu desespero, também apoioua Câmara (SCHWARTZ, 1979, p. 161-2).

Essas intrigas da elite administrativa não eram, comodemonstrei anteriormente, nenhuma novidade na colônia.Porém, em função do momento delicado em que acontece-ram, as rusgas entre D. Marcos e Mendonça Furtado tomaramproporções maiores do que as costumeiras queixas ao rei: apro-fundaram as deficiências do sistema de defesa de Salvador em1624. Essa afirmação não deve ser encarada como um julga-mento de valor. Não se trata de concordar que a responsabili-dade da queda de Salvador em mãos holandesas reside nas fu-tricas do bispo e do governador. A intenção é apenas destacarque essas confusões contribuíram de alguma maneira para oinsucesso da defesa da cidade. Senão vejamos:

Avisou Sua Majestade (que havia zarpado umagrande armada da Holanda) ao governador Di-ogo de Mendonça para que se apercebesse na

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Bahia, e avisasse os capitães das outras capitani-as fizessem o mesmo, porque se dizia virem parao Brasil. [...] se apercebeu o governador nestaBahia, mandando vir toda a gente do recônca-vo. (SALVADOR, 1982, p. 361)

O governador, atento às recomendações reais, ordenou oenvio de reforços do Recôncavo quando soube da presença danau Holandia na localidade de Boipeba, mencionada anterior-mente. Entretanto, após alguns dias de guarda sem que a cida-de fosse atacada, muitos retornaram para suas casas à reveliado que ordenara o governador. Essa insubordinação encontrouapoio do bispo, que

[...] havia julgado ser maior o damno que resul-tava aos habitantes, que o proveito da defesa,reputando menor o perigo, e que assim o tinhapregado, sem querer reunir-se ao conselho dogovernador por algumas razões, que tinha porjustificadas, dando com isso occazião não pe-quena à perturbação, e desacoroçoamento quedepois houve. (VARGAS, 1930, p. 61)

Por essa atitude, Boxer considerou que faltava bom sensoao bispo (BOXER, 1973, p. 62). De fato, fica difícil caracterizara postura do religioso de outra maneira. Como explicar que emtempos tão inseguros, quando todos preparavam a colônia parase defender de uma ofensiva holandesa anunciada, D. Marcosrecomendasse que as pessoas abandonassem os postos de defesa?

Não foram outros os motivos, senão a soma dessa insubor-dinação com a fuga da cidade quando os holandeses efetivaramo ataque em maio de 1624, que permitiram a alguns autorescolocar o bispo na berlinda, responsabilizando-o pelo fracasso

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da defesa. Ao menos é assim que considera Pedro Calmon emsua História do Brasil, para quem o bispo era, em parte, respon-sável pela desgraça (CALMON, 1959, p. 520). Ou ainda Algedyde Sousa que, analisando a defesa de Salvador por ocasião dainvasão holandesa, considera que a cidade estava com suas for-tificações em condições normais de emprego, concluindo que“os atritos entre o governador e o bispo, [...], iriam ser uma dascausas principais do fracasso da defesa. A deserção do bispo docampo de luta foi outro fator importantíssimo para acelerar aderrocada de Salvador...” (SOUZA, 1957, p. 36).

Certamente as atitudes de D. Marcos trouxeram danos, maso bispo não era responsável pelos assuntos bélicos, suas fun-ções eram outras – embora sempre as extrapolasse, como vi-mos aqui. Ainda assim, se aceitarmos colocar a culpa sobre osombros do bispo, não estaria descaracterizada a debilidade dosistema defensivo como uma das principais causas do “vexa-me” sofrido pela capital colonial diante dos invasores – pelocontrário, tal suposição coloca a descoberto todas as falhas des-se sistema, quando aceita a ideia de que a intervenção do bispoera capaz de desarticular todo o esforço do governador, encar-regado real para organizar a defesa da cidade.

Por outro lado, os relatos portugueses seiscentistas, emsua maioria produzidos por padres, buscam defender o bispo,tratando-o como herói por ter comandado a resistência aos ho-landeses após a fuga da cidade, além de enaltecerem a partici-pação fiel dos índios aldeados pelos jesuítas, numa clara propa-ganda de que os aldeamentos eram eficientes e úteis para acolonização. Nesses relatos, a culpa recai sobre a “covardia” dossoldados que fugiram em desespero.

Embora não seja nossa intenção montar um tribunal parajulgar os culpados pelo fracasso defensivo de Salvador, nota-seque já no Seiscentos, os cronistas se apressaram em defenderpontos de vista opostos. Assim, se os jesuítas defendiam o bispo

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e exaltavam o retorno bem sucedido de seus trabalhos de cate-quização junto aos índios, os cronistas espanhóis trataram denegar qualquer desleixo da administração dos filipes em rela-ção à defesa da principal colônia portuguesa, exatamente o quepretendiam os portugueses contrários à União Ibérica para aba-lar a estrutura do domínio espanhol. Dessa maneira, os espa-nhóis procuraram encontrar, no calor dos acontecimentos, umculpado capaz de desviar a atenção dos críticos. Para tal fun-ção, ninguém melhor que os cristãos novos.

Filho da conversão forçada ao catolicismo, o cristão novonão era nem judeu nem católico, ao mesmo tempo em que eraconsiderado judeu pelos católicos e católicos pelos judeus. Sobesse dilema esses indivíduos eram obrigados ainda a convivercom a Inquisição. Perseguidos por esta instituição católica quemuitas vezes lhes tirava a privacidade, os bens, a vida, os cris-tãos novos buscaram migrar para áreas onde o poder inquisito-rial não atuasse, ou só existisse na teoria. Nesse sentido, migra-ram para os países do norte europeu e para o Novo Mundo(NOVINSKY, 1992).

Daquele judeu convertido, convertido no final do séculoXV para o cristão novo do século XVII, que vivia na Bahia nomomento da invasão holandesa, existe uma grande distância.Esse último havia criado raízes no Novo Mundo, constituídofamílias, miscigenado-se com os nativos, conseguido cargos naadministração, enfim, conseguira se encaixar na sociedade co-lonial, sabendo inclusive driblar a perseguição que sofria, sem-pre suspeito de tudo, principalmente em momentos difíceiscomo o da invasão holandesa (Idem, p. 9).

Apesar das perseguições e discriminações existentes con-tra os cristãos novos, incluindo aí a política preconceituosa dopróprio Estado português, eles foram um elemento importantena sociedade baiana, e fundamentais para a economia colonial.Conectados ao comércio açucareiro, foram proprietários de

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engenhos, lavradores, mercadores e, em alguns casos, comomencionei acima, ocuparam cargos públicos. Essa ligação com otrato açucareiro colocava-os em contato direto com os compra-dores europeus, portanto com os holandeses. Sem dúvida, oconhecimento público do contato entre holandeses e cristãosnovos contribuiu para a acusação de traição feita pelos espanhóis.

Para compreender melhor que tipo de relação poderia exis-tir entre cristãos novos e holandeses – o que realmente interes-sa para o propósito desse trabalho, ao invés de julgar a posturadesse grupo como se ele fosse homogêneo –, passo a examinar avisitação da Inquisição ao Brasil.24 Já vimos que a primeira Vi-sitação do Santo Ofício, ocorrida no ano de 1591, coincidiucom o decreto do rei que proibiu o comércio com os holande-ses nos portos portugueses e espanhóis. Já em 1618, por ocasiãoda Segunda Visitação, nova ordem real determinava a expulsãodos estrangeiros do Brasil. Insisto que pode ser coincidência,porém me parece mais verossímil que se tratasse de um traba-lho sincronizado, visando restringir a presença de comercian-tes holandeses no Brasil. Dessa forma, podemos situar as visita-ções do Santo Ofício à Colônia na confluência dos interessesdeste último com os interesses da Coroa.

Nas confissões, período da visitação em que se concedia agraça aos que confessassem seus pecados, encontramos notíci-as das relações entre cristãos novos e holandeses. É o caso deJoão d’Araujo, cristão novo holandês que morava na casa dotambém cristão novo e mercador Diogo Lopez Franco. Apare-cendo diante do inquisidor em 16 de setembro de 1618, Joãod’Araujo declarou que havia escondido sua nacionalidade, de-clarando-se inglês, por temer que o expulsassem do país casodescobrissem que era holandês. Durante sua confissão deixou

24 É preciso considerar que os cristãos novos formavam um grupoheterogêneo, apresentando nacionalidade e interesse distintos.

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claro que conhecia a ordem real que expulsava os estrangeirosdo país e que havia sido educado na religião calvinista e nãoaprendera o catolicismo por falta de quem o ensinasse (Segun-da visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, p. 433-435). Ocurioso dessa confissão é o fato de que mentindo que era inglêsconseguiu manter-se no Brasil. A lei de 1618 determinava aexpulsão dos estrangeiros, mas parece que estrangeiro naquelecontexto era sinônimo de holandês.

Outra confissão interessante e que dá conta das idas e vin-das dos cristãos novos pelo norte europeu é a de Luiz Alvarez,solteiro e natural do Porto. Quando perguntado pelo inquisi-dor se teve algum contato com lugar ou gente suspeita da fé,respondeu que andara por Flandres durante quatro anos e apren-dera a língua flamenga (Idem, p. 352-4). Esta interpenetraçãoentre a Bahia e os Países Baixos significava a presença de ho-landeses na Bahia e de gente da Bahia nas cidades do norteeuropeu. Foi o caso do flamengo João Pore Montafaux que seencontrava na Bahia por ocasião da visitação de 1618 (Idem, p.489), ou como o cristão novo Manuel Homem de Carvalho,que declarou ter ido a Flandres e ter encontrado por lá outroscristãos novos que haviam morado na Bahia e passaram a resi-dir naquela cidade (Idem, p. 507-511).

Apesar de ter evidenciado uma conexão frequente comflamengos e holandeses, o resultado das confissões e das denun-ciações de 1618 não foram alarmantes. Não encontramos ne-nhuma evidência de que algo estivesse sendo tramado em con-junto – ao contrário, as informações levam-nos a concluir quea presença de flamengos e holandeses na Bahia foi uma cons-tante e que, portanto, deveriam conhecer muito bem os cami-nhos da cidade e seu sistema defensivo, o que tornaria desne-cessário o auxílio dos cristãos novos. Nesse caso, é mais profícuoavaliar quais os reflexos da constância de holandeses na colô-nia, procurando entender, por exemplo, qual o conhecimento

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que possuíam dos aspectos geográficos e militares da AméricaPortuguesa.

O caso mais significativo de holandeses que tenham esta-do na Bahia foi o de Dierick Ruiters. Natural da Província daZelândia, Ruiters foi preso em Ilha Grande, no litoral do Rio deJaneiro, quando traficava pau-brasil. De acordo com as infor-mações fornecidas pelo então Governador Geral, Gaspar deSouza, o zelandês havia sido preso e enviado para a Bahia jun-tamente com outros dez holandeses (Informações de Gaspar deSouza). O aspecto mais representativo da biografia de DierickRuiters reside no fato de que, depois de conseguir se libertardos portugueses – não se sabe exatamente como, pois o própriozelandês fez questão de manter o segredo atribuindo sua fuga aDeus –, escreveu um relato importantíssimo denominado ATocha da Navegação, e esteve de volta ao Brasil, mais particular-mente à Bahia, na condição de guia, durante o ataque de 1624.

Em sua obra estão descritas as rotas e passagens de Holan-da para o Brasil, as Índias Ocidentais, a Guiné, Angola, etc.Embora seja mais uma obra de caráter técnico, encontramos noseu relato informações valiosas sobre o Brasil, certamente colhi-das quando de sua prisão, assim narrada pelo próprio Ruiters:

Fui capturado pela astúcia dos portugueses, sal-vando-me milagrosamente e pela graça de Deus,depois de trinta meses. Tendo tido que andarpor terra com os portugueses (capturado), 3 e400 (?) milhas, às vezes metido em ferros, àsvezes amarrado por cordas, como também, con-duzido em navios e barcos, ao longo da costa...(RUITERS, 1966, p. 23)

Segundo suas palavras, trata-se de um relato “escrito à ma-neira singela mas objetiva do marujo, o qual será prático e útil

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a todos os navegantes que queiram ir às costas do Brasil” (RUI-TERS, 1966, p. 20). Modéstia à parte, Ruiters produziu um ver-dadeiro manual sobre a navegação no litoral da colônia, bemcomo ofereceu informações estratégicas acerca das condiçõesmilitares das principais cidades da América Portuguesa. SegundoSouza Leão, autor da introdução da edição da Tocha da Nave-gação publicada na revista do Instituto Histórico e GeográficoBrasileiro, Ruiters deve ter ficado em Salvador durante todo oano de 1618 e teve condições de observar a baía de Todos osSantos e a situação da defesa local.

Suas observações transcendiam as questões de ordem mi-litares. Não passaram desapercebidos ao olhar atento do prisio-neiro os navios que chegavam no porto de Salvador provenien-tes do rio da Prata; obviamente pensava nos lucros que poderiamser auferidos com a tomada daquele porto. Outro aspecto des-tacado no relato são os caminhos que davam acesso à cidadelocalizada no “alto de uma montanha”, que seriam quatro: “doisque vão direto ao centro e dois que entram pelos extremos”. Aquantidade de moradores e casas de Salvador também foramobservados com detalhes, tanto que Ruiters fez questão de di-zer que ele mesmo comprovou, nas suas contas: 1200 casas,1600 homens, entre velhos e adultos, 3000 contando-se mu-lheres e crianças (Idem, p. 52-53).

Os cristãos novos não ficaram de fora das observações deRuiters, que ponderou que prefeririam ver duas bandeiras deOrange, a uma do inquisidor. Provavelmente sua consideraçãoestava influenciada pela presença da Segunda Visitação, a qualo zelandês conheceu de perto naquele ano de 1618 e tirousuas conclusões a respeito dos sentimentos de quem era por elaoprimido:

Eu mesmo vi no ano de sua instalação, a Inqui-sição meter na cadeia, sob um só teto, a trinta

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comerciantes portugueses. É certamente o quepode acontecer a todos os portugueses do Bra-sil, a ponto de que se nós neerlandeses pudésse-mos tomar armas contra o Rei de Espanha e li-berá-los do jugo da Inquisição católica, não du-vido que todos os habitantes deste país (sobre-tudo os judeus) nada veriam com melhores olhosdo que se livrarem do Rei e arriscariam corpo ealma por aquêles que os liberassem de jugo tãopesado. (RUITERS, 1966, p. 80)

Embora raciocinasse dessa maneira, Ruiters observava tudopelo contexto em que estava vivendo e ponderou contraditori-amente que mesmo interessados em fugir da opressão inquisi-torial, não seria recomendável confiar nos cristãos novos, pois“para preservar um ambiente de fidelidade ao Rei, são capazesde nos traírem” (Id., ibid.). Certamente influenciado pela ob-servação direta do clima tenso provocado pelas delações co-muns em tempo de visitação do Santo Ofício, Ruiters entendeuque os holandeses poderiam até contar com a simpatia dos ju-deus conversos, porém, não deveriam confiar em nenhum tipode apoio direto.

Apesar do receio de Ruiters, creio que na ausência de umvisitador os laços de fidelidade entre cristãos novos e o monar-ca, se é que algum dia eles existiram efetivamente, fossem bemmais frouxos do que anotou o prisioneiro holandês. E tudo in-dica que ele mesmo acreditasse nisso, pois esperava apoio dosportugueses, cristão novo ou não, em caso de tomar o poder dacolônia das mãos dos espanhóis. Mais do que isso, entendia queos holandeses poderiam ser os salvadores das pobres e oprimi-das vítimas da Inquisição.

O que Ruiters não considerou foi que mesmo fugindo daopressão católica, dificilmente os cristãos novos teriam se uni-

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do com o fim de se oporem ao catolicismo. Como anotou Sal-vador, os mesmos estavam

[...] unidos entre si, via de regra, por laços étni-cos, cada um seguia os ditames da sua consciên-cia ou o que mais convinha. Havia entre eles oagnóstico, o protestante, o católico, o apóstata eoutros [...]. A sinagoga não absorve[ia] a todos eninguém há[via] que lhes domine[asse] o pen-samento. Até nos negócios existe[iam] dispari-dade. O dinheiro os incompatibiliza[va], comoaos demais homens. Se uns lutam[vam] pelosFelipes, outros os detestam[vam]. Uns são[eram]pelos holandeses, outros se batem[iam] pelosportugueses... (SALVADOR, 1976, p. 336)

Enfim, parece que o que existe por trás dessa fama de trai-dores que pesa sobre os cristãos novos é fruto da necessidadede um bode expiatório que eximisse de culpa a administraçãoespanhola. Mais relevante do que uma possível colaboração doscristãos novos com os invasores é o evidente conhecimentoprévio que os holandeses possuíam da região. Se observarmoscom atenção a estratégia dos holandeses ao atacarem Salvador,posicionando uma parte das embarcações em frente da cidadepara desviar a atenção dos habitantes, enquanto parte das tro-pas desembarcavam pela Vila Velha, guiados por Dierick Rui-ters, notamos o quão útil foi a estadia deste para o sucesso dasoperações militares holandesas, cuja estratégia parecia estarrespaldada no relato do zelandês acerca dos caminhos que le-vavam à cidade.

Diante do que foi exposto, notamos que dois argumentossão apontados como decisivos para o êxito do ataque holandês:a intervenção do bispo e a suposta traição dos cristãos novos.

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Por outro lado, tentei demonstrar o quão frágeis são essas ex-plicações, entendendo que a questão central está localizada nadebilidade do sistema defensivo da capital colonial, comple-mentada, obviamente, pelos resultados desastrosos provenien-tes dos conflitos administrativos que acabavam por tornar acolônia um verdadeiro caos. Assim, as rivalidades entre as au-toridades constituídas contribuíram imensamente para umaausência de estratégia defensiva, o que por si só, era tarefa nadafácil em função da carência de recursos. As fortificações obso-letas, os homens despreparados, as tensões internacionais dasguerras hispano-holandesas e os conflitos entre as autoridadesforam os elementos que se uniram para desacreditar a “cidadefortaleza”. Em resultado, a população de Salvador, acostumadaa se defender dos ataques de piratas e corsários, foi tomada pelopânico diante da eminência de ataque de uma frota compostapor vinte quatro embarcações holandesas, em 1624.

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2. Da resistência ao contra-ataque:uma ocupação sitiada

Ao contrário da defesa desarticulada que os holandeses encon-traram ao invadir a cidade de Salvador, a resistência dos habi-tantes que haviam abandonado a urbis pôs freios ao principalobjetivo dos invasores: garantir o controle da zona produtorade açúcar. Aqueles que fugiram conseguiram se articular, for-mando uma espécie de cordão de isolamento, no qual os holan-deses ficaram envoltos, sitiados dentro dos limites da cidade. Abaía de Todos os Santos, que propiciava acesso às suas ilhas e aoRecôncavo, não teve todo o seu potencial explorado pelos in-vasores, pois, segundo os relatos seiscentistas, os colonos nãoteriam dado folga aos holandeses em parte alguma, combaten-do-os por mar e terra.

No que pese a insistência dos referidos relatos em apontarpara uma resistência ostensiva engendrada pelos refugiados,podemos perceber nessas narrativas que essa resistência nãofoi tão unânime quanto querem fazer parecer seus autores. Emdiversas passagens, o tom homogêneo dos relatos é permeadopor informações contraditórias, que nos permitem considerarque, em alguns momentos, os holandeses conseguiram burlar aatenção dos líderes da resistência e obtiveram a adesão/colabo-ração de alguns colonos portugueses.

O período que vai desde a tomada da cidade, a 10 de maiode 1624, até a chegada da armada luso-espanhola, em 27 de

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março de 1625, foi marcado por conflitos entre os holandeses eos colonos resistentes. Enquanto os primeiros procuravam ummeio de transpor as muralhas da cidade, os últimos vigiavamos arredores da urbis, impedindo a progressão do inimigo peloterritório. Nesses meses de resistência, além de obstar a expan-são da ocupação holandesa, os colonos portugueses, diante dossucessos obtidos nos campos de batalha, transformaram o queera inicialmente uma resistência precariamente organizada numcontra-ataque aparentemente articulado.

No desenrolar dos acontecimentos os colonos mostraram-se hábeis em combater por meio das emboscadas, conseguindobarrar as investidas do inimigo, que mesmo contando com acolaboração de alguns moradores – de acordo com a documen-tação, portugueses e negros conhecedores da terra – não logra-ram êxito em suas tentativas extramuros. Ao perceber que suastáticas estavam surtindo efeito, o comando da resistência in-tensificou suas atividades, sitiando completamente os holan-deses e dando início ao contra-ataque. As tropas refugiadaspassaram a agredir e a provocar o inimigo mais de perto, apro-ximando-se das portas da cidade, investindo em arriscadas açõesna baía de Todos os Santos para subtrair embarcações e muni-ções dos inimigos, e até mesmo desafiando-os para um comba-te franco em campo aberto.

Para entender o sucesso alcançado pela resistência doscolonos, faz-se necessário o conhecimento dos enfrentamen-tos que ocorreram nos arredores da capital ocupada. As vitóri-as conquistadas nesses encontros foram o principal motor dosrefugiados, pois, foi a partir delas que se iniciou o processo deenfraquecimento dos holandeses, culminando com a sua der-rota diante da armada luso-espanhola, que os encontrou desor-ganizados e reprimidos.

Para uma melhor compreensão dessas ações, buscarei re-montar os dois cenários desse episódio: a cidade ocupada, e o

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acampamento dos refugiados. Procurarei demonstrar tambémde que maneira holandeses e colonos resistentes se articula-ram, respectivamente, para alcançar seus principais objetivos:ganhar terreno e barrar o avanço do invasor.

2.1. Salvador, a “Terra Batávica”

Os soldados holandeses, ao invadir a cidade do Salvador, en-contraram grande variedade de riquezas, como pedras precio-sas, ouro, prata, açúcar, fumo, vinho de Espanha e de Portugal,vinho da Canária, frutas, bebidas, etc. (ALDEMBURGK, 1961,p. 174). Tal variedade é compreensível se lembrarmos que Sal-vador, como vimos no capítulo anterior, além de ser o centrodas decisões políticas e econômicas da Colônia, era tambémum importante ponto de escoamento da produção açucareira,possuindo um dos mais movimentados portos do Atlântico, cujaimportância já era notada desde a segunda metade do séculoXVI. Assim, não era incomum que nos armazéns de Salvadorfossem encontrados, além dos produtos citados acima, outroscomo pau-brasil, especiarias, seda, etc.

Ora, vimos também que os objetivos dos estrangeiros quediversas vezes tentaram invadir Salvador, estavam relaciona-dos ao saque, uma vez que possuíam conhecimento da abun-dância desses produtos no porto e na cidade. Com os holande-ses não foi diferente, e a primeira ação dos invasores aoadentrarem a cidade de Salvador foi saqueá-la. De acordo coma documentação, houve uma desordem total das tropas invaso-ras, que se lançaram com avidez às casas, prédios públicos,mosteiros e igrejas abandonadas pela população. De acordo comAldemburgk, os soldados ficaram maravilhados com a quan-tidade de riquezas encontradas na terra. Em meio a tal farra, ossoldados invasores denominaram a cidade de Salvador de Terra

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Batávica e passaram à jogatina “dividindo-se o ouro e a prataem chapéus” (ALDEMBURGK, 1961, p. 174).

A maior parte do ouro e prata citados por Aldemburgkforam encontrados pelos holandeses logo após a tomada dasigrejas e conventos da capital colonial, onde foi encontrada tam-bém grande quantidade de tecidos. Segundo um relato anôni-mo, mas com caráter oficial, publicado por Edgar Falcão comoapêndice ao relato de Aldemburgk, os bens das igrejas, especi-almente do Colégio dos Jesuítas, conferiram altos lucros aosinvasores, “de sorte que muito capitão, em uma hora, arreca-dou 5 a 6.000 florins” (Relato oficial da conquista da cidade doSalvador...).

O encontro desses produtos abandonados pela populaçãojá havia sido previsto no relatório que Jan Andries Moerbeeckapresentou ao príncipe de Orange em 1623:

Os soldados e marinheiros obterão, também,muita presa, tanto em moeda corrente, comoem joias, pratarias, vestidos preciosos, linho eoutras coisas, uma vez que estando estas duascidades tão perto do mar e sendo de tão fácilacesso, não terão os seus habitantes tempo paratransportá-las, ocultá-las ou mandá-las paraoutros lugares.25 (MOERBEECK, 1942, p. 33)

A indicação desses produtos como uma vantagem para ossoldados e marinheiros que participassem do ataque à cidadede Salvador demonstra o conhecimento que os invasores pos-suíam da riqueza que circulava na Colônia. No relatório acimaverificamos também que, ao planejar o ataque às principais

25 As duas cidades a que o documento se refere são Salvador e Olinda,então candidatas á investida da Companhia das Índias Ocidentais.

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cidades da colônia Portuguesa, os holandeses apostavam no su-cesso. Esse otimismo vinha da ciência que tinham das fragili-dades defensivas e da facilidade de acesso a esses lugares.

Cabe ressaltar que apesar da sugestão do saque contida notrecho acima, a atitude dos soldados holandeses que saquea-ram a cidade após a invasão não foi bem vista pelos oficiais quecomandaram o ataque. Ao menos é o que podemos concluir daleitura dos Anais da Companhia das Índias Ocidentais. Segun-do seu autor, e também diretor da WIC (West-Indische Com-pagnie), Joan de Laet, assim que o almirante da armada tevenotícia das desordens praticadas pelos soldados,

[...] ordenou aos comissários e seus ajudantes quese passassem à cidade sem detença, arrecadas-sem e registrassem os bens, que nela andavammalbaratados. Chegado à cidade, contemplarameles com um enormesíssimo estrago, causado depura malícia da soldadesca, pois estavam as fa-zendas espalhadas por toda parte, calcada aospés, como se fossem lixo; arrecadaram muita lã,seda, linho e outras mercadorias, e as deposita-ram no colégio dos jesuítas. (LAET, 2001, p. 70)

É clara a preocupação dos oficiais holandeses em garantirque as riquezas encontradas na cidade fossem arrecadadas emfavor da WIC e não para o deleite particular dos soldados. Tam-bém o coronel das tropas holandesas, Van Dort, não comparti-lhava das mesmas ideias de Moerbeek, pois, ao assumir o seucargo de governador da conquista, reprimiu os saques e conde-nou as atitudes da soldadesca chamando-os à disciplina militar.Ademais, não interessava aos oficiais holandeses o saque dasresidências, pois era intenção dos invasores garantir os bensdaqueles que quisessem retornar à cidade e reassumir suas

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atividades. Entretanto, como vimos no documento acima, houveum descontrole no primeiro momento.

Outro aspecto importante da referida citação diz respeitoainda à variedade de produtos encontrados em Salvador. Notrecho mencionado, Laet especifica lã, linho e seda, além deoutras mercadorias. No relato oficial da conquista da cidade,obtém-se informações sobre o ouro e prata. Mas e os outrosprodutos, onde foram encontrados? Não encontrei nenhumrelatório ou lista que indicasse detalhadamente os locais de ondeestes foram retirados pelos holandeses, quando da invasão deSalvador.

Na busca de dados mais concretos que permitissem umavisão mais próxima dos lucros obtidos pelos holandeses com ainvasão, pareceu-me salutar montar um quadro a partir dasinformações contidas no relato de Laet, que indicou três locaisem que foram apreendidos alguns produtos. Embora apareçamde forma dispersa e muitas vezes desconexas, essas informa-ções nos propiciam uma ideia aproximada de que tipos de pro-dutos e os prováveis locais em que circulavam naquela Bahiado começo do século XVII. Observemos o quadro abaixo:

Produtos encontrados pelos holandeses ao invadirem a cidade

FONTE: Laet, 2001.

Armazéns da praia 1500 caixas de açúcar; tabaco.

Navios ancorados no porto Mais de 1400 caixas de açúcar;melaço; couro; aprox. 400 pipasde vinho; farinha; bolacha; sal.

Na ilha de Itaparica 140 pipas de óleo de baleia.

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Insisto que este não é um quadro fidedigno e completo,antes um exercício que serve de auxílio para melhor compre-ender a passagem dos holandeses pela Bahia, especialmente noque diz respeito aos possíveis lucros advindos com os bens aban-donados pela população refugiada. Listei apenas os produtos emercadorias cujo local onde foram encontradas foi indicadonas anotações de Laet; dessa maneira, foram excluídos os pro-dutos dos quais não consegui identificar a localização. Assim,observamos no armazém da cidade mil e quinhentas caixas deaçúcar e quantidade não especificada de tabaco. Ambos eramprodutos destinados à exportação e certamente aguardavam ahora do embarque. Os produtos encontrados nos navios ancora-dos no porto parecem fazer parte de duas categorias distintas:os de exportação (açúcar, melaço e couro) e os que se destina-vam à alimentação da tripulação (vinho, farinha, sal e bolachas),portanto, é crível que se tratassem de embarcações que aguar-davam o momento certo para zarpar, esperando por bons ven-tos, ou ainda, pela complementação de sua matalotagem, quedeveria ser acrescida, no século XVII, de carnes salgadas, pei-xes e azeite doce.26

Outro produto indicado pelo diretor da WIC foi o óleo debaleia, produto bastante utilizado para a iluminação. Embora odocumento não tenha precisado em que localidade de Itapari-ca o referido óleo foi encontrado, sabe-se que era comum queos pescadores seguissem com as baleias capturadas para o Portoda Cruz (provavelmente em Ponta da Cruz, atual Caixa-Pre-go), onde era extraído o azeite e espostejada a carne que serviade alimento (ver SALVADOR, 1982, p. 290-292). De acordocom Frei Vicente do Salvador, cada baleia rendia em médiavinte pipas de azeite, portanto a quantidade encontrada pelos

26 Sobre o mantimento das embarcações ver LAPA, 2000, p. 179.

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holandeses era resultado da captura de mais ou menos sete ba-leias. Sabendo que a pesca desse animal acontecia no mês dejunho e que se capturavam entre trinta e quarenta baleias, po-demos supor que as 140 pipas apreendidas pelos invasores eramresultado da pescaria do ano anterior e deveriam fazer parte doestoque reservado para abastecer a região até a próxima épocade pesca.

Tomando como referência os dados contidos no quadroacima e no relato oficial da conquista, notamos que do pontode vista da lucratividade, o ato da invasão em si foi positivo,pois, além de encontrar navios aparentemente preparados parazarpar, ou seja, embarcações que dispensavam todos os traba-lhosos preparativos e despesas que antecediam uma viagem detravessia do Atlântico, encontraram também certa quantidadede açúcar e tabaco, além de outros produtos valiosos que tive-ram como destino as Províncias do Norte, como atesta o relatode Aldemburgk: “partiram para a Holanda [...] quatro naviosmercantes, carregados de veludos, sedas, açúcar, fumo, vinhosgenerosos, ouro e prata” (ALDEMBURGK. 1961, p. 177). Quantoao óleo de baleia, embora não representasse lucro comercial, éprovável que tenha sido utilizado para iluminar a cidade du-rante os meses de ocupação, pois em função do cerco promovi-do pela resistência dos colonos, os invasores tiveram dificulda-des com relação ao abastecimento em geral.

Além dos produtos apreendidos no porto e na cidade, osholandeses preocuparam-se em garantir que os navios que apor-tavam em Salvador não viessem a ter conhecimento a cidadenão mais pertencia aos portugueses. Para tanto, arriaram asbandeiras holandesas dos mastros dos seus navios e em lugardelas hastearam bandeiras espanholas. Segundo Vicente do Sal-vador, esta estratégia rendeu aos holandeses a apreensão de cercade vinte navios com suas cargas (SALVADOR, 1982, p. 374).Infelizmente o franciscano não listou estas embarcações, nem

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fez alusão aos seus nomes – como, aliás, nenhum outro relato ofez –, de maneira que, comparando as referencias contidas nosrelatos de Laet, Salvador e Aldemburgk, só foi possível listar acarga de onze navios, como se observa na tabela abaixo.

Navios apreendidos durante a ocupação27

Data apreensão Origem do navio Carga apreendida

22 de maio Lisboa Azeite, farinha, bolachae outras mercadorias

27 de maio Rio de Janeiro e Mais de 7000 piastrasEspírito Santo e 40 caixas de açúcar

Junho Lisboa Farinha de trigo, veludos,sedas, azeitonas, vinhoespanhol, português edas canárias e azeitesem barris

4 de julho Angola 220 negros

11 de julho Desconhecida Vinho

20 de julho Espanha Vinho

21 de julho Canárias Vinho

Agosto Portugal (2 navios)Vinho, azeite e farinha

Outubro Rio da Prata Pedras preciosas, folhasde ouro e prata, etc.

27 Cf. LAET, 2001; ALDEMBURGK, 1961; SALVADOR, 1982.

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À exceção do navio proveniente de Lisboa que chegou emjunho, e dos dois últimos navios listados, as informações sobreos demais seguem fielmente as anotações de Laet. Optei seguiresta fonte por ser a mais detalhada, fornecendo inclusive asdatas das apreensões, porém, existem algumas divergênciasentre os relatos entre si e entre os mesmos e um relatório envi-ado pelos delegados da WIC, os quais passarei a analisar agora.

O primeiro deles diz respeito aos navios apreendidos em27 de maio. De acordo com o relatório enviado aos diretores daWIC, vieram dois navios do Rio de Janeiro “carregados de açú-car, nos quais se achavam 9 jesuítas, [...], 2 franciscanos e 4beneditinos, que haviam percorrido o Brasil em coleta de es-molas” e uma outra embarcação pequena proveniente do Espí-rito Santo, carregada de açúcar (Relatório dos delegados dosdiretores da Companhia das Índias Ocidentais...). Como se podeperceber na tabela acima, Laet apontou um navio do Rio deJaneiro e outro do Espírito Santo que teriam chegado juntos ecuja carga e tripulantes eram as mesmas dos três navios apon-tados no relatório citado. Já frei Vicente do Salvador, um dosfranciscanos presos, se refere a apenas um navio dos padres daCompanhia de Jesus carregado com “caixões de açúcar, mar-meladas, dinheiro e outras coisas” (SALVADOR, 1982, p. 374).

Difícil precisar o motivo do desencontro das informações,entretanto, levando em consideração que o teor das cargaslistadas nos três documentos não apresenta grandes discre-pâncias, creio que Frei Vicente simplesmente desconhecia queno mesmo dia em que chegara à baía de Todos os Santos, outra(s)embarcação(ões) também a havia(m) adentrado, o que é per-feitamente compreensível se imaginarmos a tensão que certa-mente tomou conta dos tripulantes, ansiosos por conhecer seusdestinos. Quanto as divergências entre o relato de Laet e o re-latório dos delegados da WIC, notamos que os dados aponta-dos pelo primeiro omite uma embarcação em relação ao relató-

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rio dos últimos. Num primeiro momento somos tentados a en-tender tal diferença como um possível desvio, entretanto, essahipótese teria mais lógica se a subtração tivesse ocorrido nosentido inverso, ou seja, se os delegados tivessem omitido aembarcação ao prestarem conta aos seus superiores. Porém, aomissão foi feita por um dos diretores da WIC, considerandoque toda a diretoria recebia os dados enviados pelos delegadosjuntamente com a carga apreendida nas embarcações, não éimprovável que um dos seus diretores tenha tentado tirar maisvantagens que os outros. No entanto, a falta de outros docu-mentos que possibilitem uma análise mais cuidadosa do casonão nos permite ir além do campo das especulações.

Outra disparidade encontrada, desta vez entre os dois do-cumentos holandeses supracitados, refere-se à quantidade denegros existentes no navio vindo de Angola. Enquanto Laetafirma que continha 220 negros, o relatório enviado aos dire-tores da WIC contabiliza 250. O que talvez justifique este de-sencontro entre as duas fontes holandesas seja o fato de queLaet, enquanto diretor da Companhia, tenha tido acesso a esterelatório, e também a outros que não conhecemos. Nesse senti-do, o mesmo pode comparar diversas informações sobre a ocu-pação da Bahia e anotar o que lhe pareceu mais convincente.Ou ainda podemos considerar a probabilidade de uma “presta-ção de contas” cujos dados foram alterados para encobrir umpossível desvio – contra os cofres da WIC – de trinta negros, oque explicaria a diferença nos relatórios – o que é pura especu-lação, até mesmo porque não encontrei nenhuma notícia devendas de escravos capturados na Bahia (no máximo, comoveremos adiante, trocas ou tentativas de trocas).

As duas embarcações que foram aprisionadas em agostoestão citadas no relato de Aldemburgk, sendo interessanteobservar que o mesmo destacou, além da carga, a existênciade duas mulheres degredadas da Espanha e de uma criança

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(ALDEMBURGK, 1961, p. 179). Infelizmente não foi possíveldescobrir o destino da criança e das duas moças. As poucas re-ferências à presença feminina encontradas nos relatos seiscentistasdizem respeito às filhas do vice-rei do Chile,28 a uma “donzelaportuguesa” que teria casado com um “assistente dos mercado-res” (mais um indício de que a resistência aos holandeses nãofoi total) e às “mancebas” do coronel Arnt Schouten. Diante dacarência de informações sobre a presença feminina, resta-nosespecular a sorte das duas espanholas capturadas naquele agos-to de 1624: teriam sido libertadas e se dirigiram para os acam-pamentos dos refugiados ou para algum engenho do Recônca-vo? Amancebaram-se com algum soldado ou oficial holandês?Seriam as mancebas citadas por Aldemburgk? Casaram-se?

Voltando aos navios apreendidos pelos holandeses, é im-portante não perder de vista que esses apresamentos, junta-mente com as riquezas encontradas na cidade quando da inva-são, representaram lucros vultosos e sugeriram o possívelretorno do empreendimento da WIC. Um exemplo disso foi acaptura da frota que transportava o vice-rei do Chile para aEspanha e levava uma preciosa carga como presentes para omonarca espanhol. Os diretores da Companhia certamente re-ceberam com muita satisfação a notícia do carregamento apre-endido, não só pela quantidade de ouro e prata que reforçariaos cofres da WIC, mas também porque atingia diretamente o

28 Presas no mês de outubro, juntamente com a frota do Prata, e que apa-rentemente gozaram de certa regalia conforme podemos notar no relatode ALDEMBURGK (1961, p. 192): “O mencionado vice-rei pediu paraser tratado conforme convinha ao seu cargo; por isso, nosso coronel foiao seu encontro, com uma escolta de mosqueteiros, e fêz transportar aele, à esposa, a dois genros, dois filhos e duas filhas [...], em palanquins erêdes, através da cidade, à casa de sua própria residência, onde lhes deuamplos aposentos, adornados de tapeçarias de ouro e com leitos e poltro-nas, hospedando-os condignamente...”.

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rei espanhol, cumprindo assim um dos objetivos do ataque àcolônia portuguesa: expandir a guerra hispano-holandesa parao ultramar. Vale a pena ler na íntegra como Aldemburgk nar-rou o apresamento da frota do Rio da Prata, atentando paradescrição detalhada de suas riquezas:

Nesse navio viajava um vice-rei, que, durante seteanos, governara os vice-reinos do Chile e do Peru,do Rio da Prata ao Estreito de Magalhães, e pre-tendia regressar à Espanha. Contudo, avariada anau [...] arribara ali a S. Salvador, que supunhaainda em poder dos espanhóis, a fim de prover-se de víveres e ser reparada a embarcação, pro-porcionando-nos assim magnífica prêsa, vistocomo o dito navio estava carregado de pedraspreciosas, grandes folhas de ouro e prata, umacadeia de ouro, na qual constava haverem tra-balhado diversos ourives durante cinco anos,toda a casta de baixelas de boa prata clara, entrea qual um caldeirão contendo tantas tigelinhasquantos são os dias do ano, tudo destinado parapresente ao rei da Espanha. (ALDEMBURGK,1961, p. 192)

Os navios apresados eram providentes, pois cargas tam-bém continham alimentos, objeto de interesse dos holandeses,pois a não efetivação plena da conquista dificultava seu acessoàs zonas agrícolas, tornando a obtenção de gêneros alimentíciosuma atividade extremamente perigosa. Dessa maneira, segundoAldemburgk, os víveres disponíveis “eram tão escassos que oexercito teria padecido grandes fomes e outras provações, se osnavios chegados nesse ínterim, [...], não o houvesse parcialmen-te socorrido” (Id., ibid.). Por isso, apreender as embarcações

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também era uma forma de atenuar esse problema, uma vez quehavia a possibilidade de que os navios que adentravam o portoestivessem carregados com diversos produtos, inclusive alimen-tos destinados à sobrevivência da tripulação e/ou à comerciali-zação. Porém, é necessário atentar para um certo exagero porparte de Aldemburgk, pois, as motivações para o apresamentodas embarcações estavam baseadas, prioritariamente, na garan-tia do lucro originado por mercadorias de grande valor.

A ocupação da cidade com certeza desarticulou a comer-cialização de alimentos de maneira geral, pois Salvador era omercado privilegiado. Quem possuía roças nos arredores da ci-dade, cujos produtos eram destinados a abastecê-la, deveriaagora se preocupar em abastecer os habitantes refugiados. Paraos invasores, a situação era ainda mais complicada, haja vistaque o bispo D. Marcos, agora governador, havia proibido compena de morte qualquer aproximação com os holandeses (VIEI-RA, 1955, p. 165). Entretanto, a resolução dos problemas holan-deses com a alimentação das tropas passava pela colaboraçãodaqueles que aderiram aos invasores e, portanto colaboravamno dia-a-dia. Vejamos o que nos informa Aldemburgk sobreessa possibilidade:

[...] tiveram ordem de se reunir, na praça do mer-cado velho, todos os negros da cidade inteira, as-sim moços como velhos, homens e mulheres;devido não só à escassez de víveres como aindahaver dêles negros em demasia na cidade, foramescolhidos cinquenta dos mesmos e embarcadosnum navio, guarnecido de cento e cinquentahomens, o qual devia dirigir-se à terra de Cama-mu, a fim de trocar os ditos negros com os portu-gueses, por bois, galinhas, porcos e frutas; mas,não aceitaram a troca os portugueses, pelo que

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descemos com fôrça à terra trouxemos bois parabordo. (ALDEMBURGK (1961, p. 193)

Esse relato não só aponta alternativas usadas pelos holan-deses para abastecerem as tropas, como demonstra também autilização dos negros como elementos de troca, visando obteralimentos. Mesmo os portugueses não aceitando a troca, os in-vasores não desistiram dos seus objetivos, utilizando-se da for-ça. Se no caso acima, os holandeses pretenderam trocar os ne-gros por alimentos em geral, na maioria das vezes em que osinvasores tiveram que sair em busca de alimentos nos arredo-res da cidade, os negros, conhecedores da região, foram colo-cados na linha de frente dessa perigosa e arriscada tarefa, hajavista que era um dos momentos em que os membros da resis-tência aproveitavam para atacar o inimigo. É o que nos sugereAldenburgk:

Certo dia, saiu uma partida dos nossos negros,armados de arcos, flechas, espadas e escudoscirculares de madeira invulneráveis às balas depistola, a fim de apanhar raízes de mandioca, ba-tatas, bananas, laranjas, ananases, limões e outrasfrutas; mas, logo foram surpreendidos pelo ini-migo que fez diversos prisioneiros e matou a quan-tos não lograram fugir. [...] Vários de nossos ne-gros saíram em busca de raízes de farinha; mas,foram dispersados pelo inimigo, que aprisionoua um deles, decepou-lhe ambas as mãos e o re-enviou à cidade [...] (Idem, p. 189, 191)

Não resta dúvida que a ocupação restrita aos limites ci-tadinos dificultava os propósitos da WIC, e Van Dort pareciacompreender bem que a cidade de Salvador e seu Recôncavo

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era um complexo integrado, no qual um não valia sem o outro.Nesse sentido, só com a ajuda dos habitantes poderiam os ho-landeses lograr êxito nas suas necessidades mais imediatas comoo abastecimento das tropas invasoras e, principalmente, em suaempreitada maior: controlar a produção açucareira. Desse modo,obedecendo às ordens da metrópole, Van Dorth

[...] mandou lançar proclamações, anunciandoque todos os paisanos ou burgueses e morado-res da cidade que se exilaram, e andavam fugiti-vos, uma vez que estivessem obediência de SuasAltas Potências os Senhores Estados Gerais dasProvíncias Unidas, e prestasse costumado jura-mento e fidelidade, assim a eles como à Compa-nhia das Índias Ocidentais, poderiam voltar aseu salvo à cidade e entrar na posse de suas casase terras, gozando das mesmas imunidades e isen-ções que tinham sob o governo de El-Rei deEspanha, e, em nome daqueles Altos Senhorese de Sua Alteza o Sereníssimo Príncipe de Oran-ge, bem como no da Companhia, lhes prometiadefende-los e guarda-los contra toda a violên-cia da parte do inimigo. (LAET, 2001, p. 73)

Nota-se que o convite era amplo e conclamava os “paisa-nos, burgueses e moradores”. Mas, de acordo com os cronistasda época, apenas negros e cristãos-novos aceitaram o convite,o que é, evidentemente, uma imprecisão. É possível perceber oesforço empreendido por esses autores no intuito de criar umaimagem de fidelidade para os colonos locais, principalmente osportugueses. Tal acusação atendia aos anseios dos padres daCompanhia de Jesus, que puderam se vangloriar com a não ade-são indígena, um mérito do seu trabalho de catequização, bem

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como dos cronistas espanhóis, ávidos por acusar os cristãos no-vos de terem colaborado com os holandeses, fato que caracteri-za muito bem a severidade da Contra Reforma na Espanha.

Não obstante a firmeza com que os cronistas apontarampara os negros e cristãos-novos como únicos a aderirem aosholandeses, notamos, através de uma leitura mais cuidadosados escritos dos próprios cronistas, que tal afirmação é umafalácia. Um dos exemplos mais claros da contradição das fontesé o texto do padre Antonio Vieira. Segundo este jesuíta, assimque o bispo dom Marcos Teixeira assumiu o comando da resis-tência, o mesmo tratou de tomar providências para impedir aadesão aos holandeses, pois, “alguns portugueses se metiam ese faziam amigos com eles [os holandeses], para recuperar oque já perderam ou para não perderem o que ainda possuíam”(VIEIRA, 1955, p. 164-5). Assim, o bispo “mandou logo sobpena de vida que ninguém trate com o inimigo, antes se ajuntetoda a gente e preparem armas contra ele” (Idem, p. 165). Comose pode observar nos dois fragmentos citados, havia portugue-ses aderindo aos holandeses.

Ao que tudo indica, não seriam poucos os que se passarampara o lado dos holandeses, tanto que o bispo adotou comopunição a pena capital. É importante destacar que Vieira nãose refere a cristãos-novos, mas a portugueses de maneira geral,indo de encontro à ideia de que apenas negros e cristãos-novosse interessaram pelas ofertas dos holandeses. Por outro lado,fica visível a intenção dos relatos seiscentistas em isentar osportugueses nascidos em Portugal, atribuindo aos nascidos nacolônia, o papel de “traidores”. Segundo Robert Southey, outramedida adotada pelo bispo foi “proibir a cultura do açúcar e dotabaco, em que os holandeses começaram a traficar, ainda an-tes de finda a primeira semana” (SOUTHEY, 1981, p. 318). Émais uma evidência de que as adesões não se reduziram a ne-gros e cristãos-novos. Nesse sentido, afirmar que houve apenas

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deserções de negros, como fez MENEZES (1922), é um equívocopromovido pelas próprias fontes, que não hesitaram em afirmar osvalores morais dos portugueses perante sua religião e rei.

Além dos indícios das adesões dos colonos aos holandesesimediatamente após a conquista, como vimos anteriormente,outros trechos dos relatos sugerem a existência de trocas e ten-tativas de trocas entre os mesmos. A realização de negócios noengenho de Simão Nunes de Matos, defronte da ilha de Maré, éum exemplo. Apesar do empenho do cronista, no caso Frei Vi-cente, em garantir que tais negociações aconteceram na ausên-cia do proprietário, tratando-se de uma negociata entre o feitor eos invasores, é crível que as relações entre invasores e invadidosacontecessem à revelia das ordens do Bispo.29 As notícias dastentativas de trocas são abundantes e dão uma mostra do co-nhecimento que holandeses e portugueses possuíam entre si.

Um dos episódios mais reveladores das relações entre ho-landeses e colonos locais foi a tentativa de troca realizada emBoipeba. Segundo frei Vicente do Salvador, os holandeses sedirigiram para aquela região e lá procuraram o senhor de enge-nho Antônio de Couros, que seria amigo do capitão holandêsFrancisco, do tempo em que este esteve preso na Bahia.30 Porintermédio de um português que os holandeses levavam consi-go para facilitar as conversações, Couros subiu a bordo da em-barcação holandesa e, após cerimoniosa conversa, não aceitoufazer negócio, dizendo que com os holandeses não queria paz,antes a guerra (SALVADOR, 1982, p. 372). Diante das inten-ções dos cronistas em isentar os portugueses de uma possíveltraição, é questionável a atitude de Couros. Será que houve

29 Sobre as transações no referido engenho, ver SALVADOR, 1982, p. 3 71.

30 Provavelmente, frei Vicente estava se referindo a Dirck Pieters Colverou a Dirck de Ruiter, que estiveram presos na Bahia em 1618 e torna-ram a Salvador com a esquadra de invasão.

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realmente recusa em negociar com os holandeses? Ou trata-semais uma vez de uma narrativa comprometida? Mas, havendoou não a concretização da transação, fica clara a existência decanais de ligação entre as partes conflitantes. Os holandesessabiam exatamente onde deveriam tentar realizar negócios, eisto, certamente não acontecia apenas pelo fato de já possuí-rem um bom conhecimento da região, como afirmei no capítu-lo anterior, mas também por receberem ajuda de portuguesescomo o do caso aqui mencionado. A quantos engenhos os ho-landeses não devem ter batido à porta por indicação deste mes-mo português?

Talvez a grande pergunta sobre estas trocas e tentativas detrocas seja por que elas não aconteceram com maior frequên-cia, ou se aconteceram, por que as fontes não as revelam. Nãosão questões que possam ser respondidas objetivamente, masacredito que uma análise comparada do que aconteceu na Bahiana década de 1620 e o que se sucedeu em Pernambuco a partirde 1630, possa ajudar. Ao observar o ocorrido em Pernambu-co, notamos que houve um longo período – oito anos – de re-sistência aos holandeses. Nesse espaço de tempo, os habitantesdaquela capitania esperaram incansavelmente uma armada desocorro, espelhada na que restaurou a Bahia em 1625. Esta ar-mada jamais chegou, a resistência foi minguando e, talvez comuma dose de exagero, foi minada com a chegada de Mauríciode Nassau e sua política apaziguadora.31 É obvio que isso nãosignifica que não tenham existido negociações entre os invasorese os resistentes, mas certamente, enquanto perdurava a expec-tativa do socorro metropolitano, poucos se arriscavam em ne-gociar abertamente.

31 Sobre a expectativa de uma armada de restauração no período daresistência pernambucana, ver MELLO, 1998, especialmente o capítuloI: A empresa da terra e a vitória do mar.

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Na Bahia, como veremos adiante, desde o início da ocupa-ção muitos possuíam a certeza que a Coroa socorreria os colo-nos em apuros. Dessa maneira, seria suicídio aderir abertamenteaos holandeses quando a expectativa era a chegada de uma arma-da de socorro.32 Nesse caso, provavelmente prevalecia um jogodúbio no qual os colonos ora combatiam os inimigos interessadosem posteriormente solicitarem favores ao rei, ora, quando en-contravam brechas, comercializavam clandestinamente com osinvasores. Assim, acredito que o verdadeiro motivo dos poucosregistros de negociações entre holandeses e habitantes da Bahiadeve-se em parte ao possível caráter clandestino dessas ações.

Além das tentativas de negociação, os invasores dispensa-ram grande parte do tempo precavendo-se dos possíveis con-tra-ataques dos refugiados. Logo, evitar a fome e defender-sedos ataques da resistência foram tarefas que exigiram muitaatenção por parte dos invasores. Trataram de “trabalhar nasfortificações, construindo trincheiras, baluartes, hornaveques,meias-luas e revelins” (ALDEMBURGK, 1961, p. 175). Aliás,sobre a debilidade defensiva da cidade, à qual já me referi nocapítulo anterior, os holandeses consideravam Salvador, já nomês de junho – portanto um mês após a conquista da cidade –“ainda completamente aberta e não fortificada” (Idem, p. 176).Sobre os trabalhos de fortificação levados a cabo pelos holande-ses, Vieira nos fornece informações bem detalhadas. Vejamos:

Enquanto presos e encerrados na cidade [os ho-landeses], não estavam ociosos, porque, enten-dendo que havíamos de ser socorridos por umaarmada de Portugal, todo o seu cuidado era forti-

32 Como veremos adiante, certamente boa parte dos colonos estavaconfiante no socorro da Metrópole graças ao envio de gente, munições egovernador tão logo a notícia da tomada de Salvador chegou à Coroa.

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ficar-se quanto mais podiam contra ela. Para re-forçar os muros da cidade e das suas portas, queestavam fracos, levantaram uns montes de terra,tão altos que mais pareciam criados com poderda natureza que levantados à força de braços, e amesma terra que tiravam abriam uma cova, tãoprofunda quanto era a altura dos baluartes. Fize-ram sobressair por cima umas pontas de paus,tão agudas e unidas sobre si, que dificultavamnotavelmente a subida se alguém a intentasse.Pelas quebradas dos três montes, que dissemoscingiam a cidade, represaram as correntes de al-gumas fontes, e fizeram um tanque, tão largo ealto que bastou para impedir a passagem a qual-quer força ordinária. Levantaram o forte da praiaque estava imperfeito. Por toda a cidade em rodaassentaram artilharia nos portos e postos maisimportantes. E, porque lhes não faltasse coisa al-guma, com que pudessem impedir-nos a entradana cidade, semearam ao redor dela, e dentro, nasbocas das ruas, uns estrepes de ferro, feitos portal arte que, de qualquer parte que caíam, assen-tavam três pontas no chão ficando outra paracima, e estes em tal distância uns dos outros que,caminhando, ainda em boa paz, não bastava qual-quer tento para assentar o pé em salvo, e, erran-do o passo, ficava um homem preso e enredadosem remédio. (VIEIRA, 1955, p. 180-1)

Exageros à parte, o relato de Vieira aponta as falhas do sis-tema de defesa da cidade do Salvador. É possível que todo o cui-dado dispensado pelos holandeses para fortificar a cidade estejarelacionado ao conhecimento que os mesmos demonstraram

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anteriormente quando planejaram o ataque. Ora, se cada falhafoi observada como ponto facilitador da invasão, é natural queocupando a cidade e sabendo que a reação estava sendo prepa-rada, os holandeses buscassem sanar as deficiências defensivas.Contudo, isso não anula o exagero do cronista cuja intençãoera não só engrandecer a resistência, mas também justificar ofracasso da defesa.

Aldemburgk também reforçou a necessidade de investi-mentos na defesa da cidade afirmando que durante todo tem-po, “cuidamos de nos entrincheirar, sem cessar abrindo fos-sos, erguendo parapeitos e baluartes, que frequentemente eramdanificados e desmoronados pelos aguaceiros e chuvas tor-renciais” (ALDEMBURGK, 1961, p. 193). Essas informaçõesajudam a compreender o trabalho intenso e permanente para amelhoria das fortificações. Ao que tudo indica as medidas toma-das eram apenas paliativas, sendo necessário refazê-las com fre-quência. Não sabemos se faltavam investimentos, mão-de-obra,conhecimento do ecossistema ou materiais mais adequados, jáque o cerco à cidade dificultava aquisições de artigos desse tipo.O fato é que da forma como está colocado nos documentos,temos um indicativo de que o sistema defensivo dos holande-ses era tão frágil e problemático quanto o dos portugueses.

A preocupação em garantir a defesa da cidade estava tãoevidente que a avaliação feita pelos diretores da WIC em re-lação à administração da conquista estava muitas vezes ligadaao compromisso do administrador com as fortificações. Dessemodo, Van Dorth era considerado um governador impecável,que observou cuidadosamente a disposição da cidade, ordenan-do as fortificações necessárias (LAET, 2001, p. 73). Vejamoscomo Laet analisou os governadores holandeses em seus Anais:

Diremos em substancia que, depois da morte dogovernador, o Sr. Van Dorth, os negócios correram

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ali mui descuidada e irreligiosamente. O novocoronel Albert Schouten não teve muito em res-peito prover a cidade das fortificações, que reque-ria, e tendo morrido também, ainda menos olhoupor elas seu irmão Willem Schouten, que se en-tregou a todos os desregramentos, e não só nãopromovia as obras necessárias, como até recusa-va aos soldados, que queriam trabalhar, as remu-nerações que lhes eram devidas. (Idem, p. 76)

Fica difícil não ceder à tentação oferecida pelos cronistasde, didaticamente, dividir o período da ocupação holandesa emantes e depois de Van Dorth. Com sua administração, a tenta-tiva de aproximação com os habitantes da cidade, os cuidadoscom a defesa, a disciplina de sua tropa, etc. Após sua mortenuma emboscada preparada pelos refugiados, o desanimo dastropas, desmoralizadas com a perda de seu general, o caos coma administração dos irmãos Schouten, a insubordinação mili-tar, etc. Entretanto não acredito que esta divisão simplista sejauma boa opção, pois, se Albert e Willem não foram bons admi-nistradores, conquistaram fama de beberrões, chegando ao pon-to de o primeiro ter morrido de tanto beber; também é verdadeque assumiram o comando de um exercito sitiado e com seuefetivo diminuído graças ao envio de navios para a Europa eÁfrica. Por isso, estou de acordo com Boxer quando este afirmaque os desregramentos dos irmãos Schouten não chegaram aprejudicar a capacidade de resistência e a fortificação da cidade(BOXER, 1961, p. 35). Não fosse assim, não teriam sustentado aocupação por dez meses já que Van Dorth morrera um mêsapós a ocupação.

Não resta dúvida que a morte do governador holandêspesou muito para os invasores, mas daí a fazer uma divisão emantes e depois de Van Dorth, creditando aos governadores que

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o substituíram a culpa pelo fracasso da ocupação, é desvalori-zar outros acontecimentos que marcaram esta história. Umdeles, de imensurável importância, foi o desmantelamento datropa invasora logo após a conquista. Essa atitude não deve sertomada como ato suicida ou irresponsável da parte dos holan-deses, mas, como o cumprimento de planos pré-estabelecidos.Ao que tudo indica, havia diretrizes que previa a conquista deoutras áreas tão logo se efetivasse a ocupação da cidade do Sal-vador. Logo, dos vinte e seis navios que compunham a armadainvasora, doze já haviam zarpado até o mês de agosto de 1624.No mês de julho, oito navios retornaram para a Holanda levan-do os lucros obtidos na invasão da cidade, e em agosto, quatronavios dirigiram-se para Angola, com o intuito de se apropriardaquela praça – de acordo com Luiz Felipe de Alencastro “naestratégia holandesa, os portos comerciais do Atlântico Portu-guês se apresentavam como alvos conjugados. Tal era o planode batalha da campanha de 1624-25, levando à tomada da Bahiae ao bloqueio naval de Benguela e Luanda” (ALENCASTRO,2000, p. 209).

Apesar de a expedição de Angola ser composta de apenasquatro dos doze navios que deixaram Salvador, foi certamentea que provocou maior baixa nas tropas holandesas. SegundoAldemburgk, de cada dez homens do exército, um foi destina-do a Angola (ALDEMBURGK, 1961, p. 179). Para Boxer, esseerro dos holandeses era originado de uma suposição correta:“deveriam chamar a si as rédeas do principal comércio ne-greiro na África ocidental”. No entendimento desse autor, osdiretores da WIC compreenderam que o Brasil não seria ren-tável sem o trabalho escravo nas lavouras de cana (BOXER,1961, p. 35). Sem dúvida a conquista de Angola fora uma açãoorquestrada pela WIC. Garantir a posse da zona produtora deaçúcar e da zona fornecedora da mão de obra que fazia funcionara lavoura canavieira estava nos planos da Companhia, tanto

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que em 1642, durante a ocupação de Pernambuco, os holandesesfizeram nova investida sobre Angola, dessa vez com sucesso.33

A decisão de atacar Angola sem que a conquista da Bahiaestivesse efetivada, pautava-se na certeza de que a invasão lo-graria êxito. Mesmo tendo notícias de que a Espanha prepara-va uma armada para expulsá-los, os holandeses não se intimi-daram. Essa atitude estava relacionada à confiança na chegadade uma poderosa armada que a Holanda também preparava paraassegurar a conquista de Salvador. O excesso de confiança con-correu para que os holandeses mantivessem os planos das no-vas conquistas e isso prejudicou muito a posição dos invasores,que se fecharam ainda mais nos limites da cidade, possibilitan-do maior movimentação dos refugiados que, como veremos,recebiam reforços, ora de Pernambuco, ora de Portugal. Ouseja, enquanto os holandeses diminuíam o seu efetivo militar eaguardavam a vinda da armada que não chegou a tempo emfunção das desfavoráveis condições climáticas, os colonos lo-cais ganhavam terreno e ajuda externa.

De maneira geral, a permanência dos holandeses na ca-pital da América portuguesa, ou Terra Batávica como a cha-maram, foi marcada pelas preocupações com a defesa do es-paço conquistado. O que era para ser uma ocupação duradoura,que garantisse o acesso aos engenhos de açúcar, restringiu-seà área intramuros de Salvador. Apesar de ser o açúcar o motordas ações da WIC no Brasil, não temos notícia de que ne-nhum engenho tenha caído em suas mãos. A maior parte doseventos que marcaram a passagem dos invasores pela Bahiaaconteceu na cidade de Salvador e arredores, as investidas peloRecôncavo foram pontuais e, na sua maioria, frustradas. En-fim, a cidade era o limite, os arredores a vigília, o Recôncavo a

33 Sobre a participação dos holandeses no tráfico de escravos verPUNTONI, 1999.

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esperança e a baía, quando foi cercada pela armada luso-espa-nhola, a rendição.

2.2. No refúgio

Enquanto os holandeses se ocupavam [com] sacrilégios cobri-am os matos e praias os desterrados, que só dos portuguesesseriam dez ou doze mil almas, servindo de casa a uns as árvoresagrestes, e a outros o céu, sem mais algum abrigo da calma,chuvas e sereno da noite; todos a pé, muitos descalços e despi-dos, morrendo a fome e sede aqueles que, pouco havia, deixa-ram casas tão ricas e abastadas de tudo, que mais pareciam ser-vir ao regalo que a necessidade. (VIEIRA, 1955, p. 161)

Mais uma vez Vieira não economizou nos exageros. O exer-cício de imaginação empreendido pelo padre ao narrar cercade dez ou doze mil portugueses, (fora os demais habitantes)fugindo desordenadamente, deixando para trás verdadeiras for-tunas, enfrentando total desconforto, se aproxima muito maisda fuga dos hebreus do Egito, do que dos acontecimentos demaio de 1624. Além do mais, as contradições dão o tom da nar-rativa. Observem que o padre faz referencia a pessoas descal-ças, despidas, morrendo de fome e de sede, aliás, coisa impen-sável numa região tão bem servida de água. Mas, ao mesmotempo os coloca numa posição abastada, conforme o cronista,estas pessoas teriam deixado “casas tão ricas e abastadas” suge-rindo que eram pessoas acostumadas com a fartura. Logo, comopoderiam estar em estado tão deplorável, em tão pouco tempo?E mais, não parece real a informação de que o mato lhes serviude abrigo. Certamente, os aldeamentos indígenas e os engenhoslocalizados no Recôncavo é que cumpriram essa função. É ób-vio que o pânico sempre se faz presente numa situação comoessa, porém, atribuir um caráter tão desesperado à fuga dos co-

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lonos é também uma forma de valorizar as atitudes dos queresistiram aos holandeses, colocando-os na posição de heróisao mesmo tempo em que justifica a rápida queda da cidade nasmãos dos invasores.

Viera nos transmite a ideia de que a fuga foi completa-mente desarticulada e com um único destino, a aldeia do Espí-rito Santo, situada na atual Vila de Abrantes, que de acordocom o jesuíta Vieira, distava

[...] seis ou sete léguas da cidade, [...]. Quantoaqui fosse o aperto e incomodidade bem se dei-xa ver, pois moravam setenta em casas feitas erepartidas para quatro. A esta aldeia se recolheunaqueles primeiros dias a maior parte da gente,à qual acudiu a caridade dos nossos com o quepodia, não faltando a ninguém carne, nem fari-nha, que é o pão da terra, e neste tempo era omaior regalo. (Idem, p. 161-162)

O relato acima deixa claro mais uma vez que os dados re-ferentes a essa fuga precisam ser relativizados, pois não me pa-rece real setenta pessoas dividirem uma casa planejada para abri-gar quatro pessoas, mesmo com todas as implicações que omomento requeria. Acredito que os refugiados tomaram váriosdestinos como engenhos e fazendas no Recôncavo, porém, osrelatos luso-espanhóis deram maior ênfase à aldeia acima refe-rida, consagrando-a como a grande acolhedora dos refugiadosgraças à sua utilização como local de articulação da liderançada resistência.34

34 Certamente outros aldeamentos serviram de abrigo para aqueles que serefugiaram, sobre a localização desses aldeamentos ver PARAÍSO, 2003,p. 129-158.

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Foi na aldeia do Espírito Santo que se reuniram os oficiaisda Câmara Municipal, desembargadores e religiosos para re-solverem sobre a sucessão do governador Mendonça Furtado,que havia sido feito prisioneiro pelos holandeses. Por determi-nação real, em caso de morte ou ausência deste, o sucessor na-tural seria o governador de Pernambuco Matias de Albuquer-que. Como a distancia não favorecia a agilidade que a ocasiãoexigia, as partes concordaram que o cargo deveria ser ocupadopor Antão de Mesquita, chanceler do Tribunal da Relação.

Apesar da concordância inicial em torno do magistrado,seu governo foi curtíssimo.35 Ao que tudo leva a crer, o bispoD. Marcos Teixeira não ficou satisfeito com a escolha, queren-do ele mesmo assumir o comando da resistência aos holande-ses. Nesse momento parece ter se instalado mais um capítulodos conflitos administrativos tão comuns ao período colonial.O resultado foi a queda do chanceler e a ascensão do bispo comogovernador. A documentação é confusa a respeito do que real-mente se passou. Frei Vicente do Salvador minimizou a ques-tão, na sua História do Brasil o bispo assumiu o governo deimediato, só ficamos sabendo que houve algum desentendimen-to, ainda assim tratado como coisa menor, quando o francisca-no noticiou o envio do novo capitão-mor por parte de Matias

35 A documentação não especifica a duração do governo de Antão deMesquita. De maneira geral as informações são de que duraram poucosdias. Também, generalizada é a notícia de sua posse. Os relatos seresumem em afirmar que foi logo nos primeiros dias do refúgio. Consi-dero razoável pensar que a decisão de empossá-lo tenha demorado nomáximo cinco dias, tempo em que as pessoas foram chegando e se aco-modando na aldeia do Espírito Santo.Isso seria, no mais tardar, dia 14 demaio. Da transição do poder de suas mãos para as mãos do bispo,nenhuma data precisa é citada, sabemos apenas, por informação contidano relato do espanhol Tamoyo de Vargas, que ainda no mês de maio obispo já era o novo governador. Dessa maneira, supomos que o Governodo magistrado durou em torno de dez a quinze dias.

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de Albuquerque. O padre Antonio Vieira menciona a escolhado chanceler e explica a sua sucessão em função de motivos desaúde do mesmo. Já Tamoyo de Vargas credita a queda de Mes-quita ao “peso da idade e achaques do mesmo” (VARGAS, 1947,p. 72).

Na ótica de Varnhagen, houve um verdadeiro golpe con-tra Antão de Mesquita. Para o autor, o bispo dera provas de suaambição no episódio das disputas com o governador Furtado,de modo que restariam poucas dúvidas acerca de suas ações norefúgio. Assim, Varnhagen afirma que uma espécie de complôfoi armado pelo bispo, o qual foi apoiado pelos oficiais daCâmara e por Antonio Cardoso de Barros e Lourenço Caval-cante de Albuquerque, ambos nomeados pela Câmara, coro-néis de toda a milícia da terra (VARNHAGEN, 1955, p. 79-80).

Para Schwartz, o argumento de que Antão de Mesquitaestava velho não procede. Segundo este historiador, se isso fos-se verdade, Mesquita não teria sido o único escolhido para per-manecer no Brasil como Magistrado Real após a abolição doTribunal da Relação. Além disso, prossegue Schwartz, “as hon-ras e recompensas que recebeu e as expressas satisfações daCoroa com seu desempenho tendem a refutar as afirmações dobispo”. Enfim, o autor entende que o controle da situação foiarrancado das mãos de Antão de Mesquita pelo bispo e seusseguidores (SCHWARTZ, 1979, p. 174).

As observações de Schwartz e de Varnhagen são funda-mentais na elucidação dessa história. Porém, uma questão nãome parece bem resolvida: porque os oficiais da Câmara, quenomearam o chanceler, voltaram tão rapidamente atrás de suasdecisões? Talvez a resposta para a questão possa ser encontradanos conflitos existentes entre as instituições coloniais. Como jáobservamos anteriormente, Câmara, Tribunal da Relação e Bispa-do possuíam discordâncias entre si. No refúgio, seus membrosforam obrigados a conviver num mesmo espaço improvisado e

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forçados a tomarem decisões em conjunto. A primeira, e maisimportante, escolher um substituto para Mendonça Furtado. Porforça da hierarquia, Antão de Mesquita seria o mais indicado,mas não o mais desejado. Nesse sentido, ao perceberem a dispo-sição do bispo em assumir o controle da situação, os oficiais daCâmara não vacilaram em rever a decisão tomada dias antes.

A situação emergencial impediria qualquer tipo de recur-so à Coroa por parte do chanceler deposto; ademais, caso obti-vessem sucesso no combate aos inimigos, “os golpistas” teriamseus esforços reconhecidos e recompensados pelo rei. Por seuturno, o bispo se retrataria com a Coroa pelo desserviço queprestara na organização da defesa da cidade. Mas isso é apenasuma hipótese.

Das providências tomadas pelo bispo, a primeira e de mai-or ressonância deu-se no dia 13 de junho, dia de Santo Antô-nio, com um contra-ataque à cidade ocupada. É emblemáticoque D. Marcos Teixeira tenha escolhido o dia de Santo Antô-nio para investir contra a Terra Batávica. Santo de maior devo-ção popular no Brasil, Santo Antônio também era consideradoum santo guerreiro, de maneira que no Brasil Colônia, muitasforam as patentes concedidas a ele. Para o antropólogo LuizMott, a incorporação de Santo Antônio ao serviço militar aten-dia aos interesses tanto da Coroa Portuguesa em sua luta con-tra os estrangeiros hereges, quanto aos colonos na recuperaçãode seus escravos fugidos. Na defesa de Salvador, o santo pos-suía papel fundamental: guardar a entrada da barra da Baia deTodos os Santos com um forte que levava, e ainda leva, o seunome – diga-se de passagem que, contrariando as expectativas,o forte Santo Antônio não conseguiu conter a invasão dos ho-landeses.36 Mas parece que essa falha não pesou na decisão do

36 Para mais informações sobre Santo Antônio, ver MOTT, 1996.

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bispo em atacar os holandeses no dia do santo guerreiro – pelocontrário, a escolha deve ter sido uma estratégia do preladopara encorajar sua tropa, que lutando ao lado do santo, estariamais fortalecida.

A missão foi um fiasco, pois antes de acometerem a cida-de, resolveram atacar uns portugueses que estavam abrigadosno mosteiro do Carmo e que seriam “espias” dos holandeses.Para tal intento, mandou Francisco Dias de Ávila com índiosflecheiros e alguns arcabuzeiros para que prendessem os ditosportugueses. Aqui, os dois principais cronistas luso-brasileiros,frei Vicente e Vieira, divergem. Vejamos como o franciscanonarrou o episódio:

[...] em chegando ao dito mosteiro e não lhesquerendo os de dentro abrir, entraram por for-ça, dando [os índios] um urro de vozes tão gran-de que, ouvido pelos holandeses, tiveram tem-po de se aperceber... (SALVADOR, 1982, p. 366)

Agora observemos a narração do padre Vieira:

Estes [os portugueses], antes que amanhecesse,foram presos, mas antes que o fossem, vendo-seacometidos, deram com um sino rebate aos ho-landeses, cujos espias eram. Vendo pois os nos-sos, que fizeram esta boa presa (e não passavamde cinquenta, e deles a maior parte índios) queeram sentidos, arremetem sem conselho à cida-de, e soldado de cavalo houve que daquela feitase adiantou até pregar a lança na porta da cidade,ferindo e atropelando os guardas dela; mas, so-brevindo os inimigos e disparando algumas ro-queiras, se retiraram. (VIEIRA, 1955, p. 165-6)

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De um lado, temos a denúncia de frei Vicente acerca docomportamento desastrado dos índios, do outro a omissão com-pleta de tal comportamento por parte da pena de Vieira. Nanarrativa do jesuíta, o objetivo de prender os portugueses foialcançado. Mais ainda: foi cumprido com tanto sucesso queencorajou os refugiados a tentarem entrar na cidade. E umadas maiores motivações para tal encorajamento residiu no fatode que a força que prendeu os portugueses era composta pormenos de cinquenta homens, sendo a maior parte de índios.Ou seja, enquanto o franciscano criticou a atitude dos índios, ojesuíta a elogiava considerando um incentivo para os demais.Por hora, cabe lembrar o interesse de Vieira em exaltar o valordo índio catequizado, pois as tropas indígenas saíram dos alde-amentos jesuíticos. Nesse sentido, é provável que a crítica aocomportamento dos índios implícita no relato do franciscanoresida numa certa discordância provocada pelos resultados dotrabalho dos jesuítas.

Segundo Vieira, o fracasso da precipitação sobre a cidadeensinou que ante a inferioridade das forças de resistência, me-lhor seria cercá-la, impedindo a saída do inimigo por meio dasemboscadas (VIEIRA, 1955, p. 166). Para melhor funcionamentodesta tática, o bispo ordenou uma maior aproximação da cida-de, montando uma espécie de quartel general a uma légua daurbis, no atual bairro do Rio Vermelho. É Vieira mais uma vezquem melhor descreveu o local:

Faz juntar aqui a gente de guerra, os clérigosreligiosos e oficiais de justiça que pode. Aqui serecolhem todos em choupanas ou barracas fei-tas de palma, e do mesmo feitio era a igreja. Aquise administram o sacramento e a justiça. Aquise curam os enfermos. Aqui se guarda e distri-bui todos os mantimentos dos soldados. Daqui

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finalmente saem para os assaltos, tornando ademandar o mesmo lugar. Fortifica-se este por-to com cava, trincheiras e plataformas nos pas-sos de mais importância, nas quais assentaramalgumas peças de uma nau, que escapou dasmãos dos inimigos. (VIEIRA, 1955, p. 166)37

Nesse “arraial”, como denominavam as fontes, a vida cor-ria movimentada. Um intenso comércio se instalou no local,onde se negociava carne, peixe, frutas, farinha e tudo que ha-via no Recôncavo. Também se trazia vinho e azeite de Per-nambuco, que vinham de barco até a torre de Tatuapara e dalipor terra até o arraial. No que diz respeito à segurança acrescen-te-se às anotações de Vieira que o arraial ficava em cima de ummonte, cujo acesso se dava apenas por três partes, as quais foramentregues à guarda de três capitães, a saber:

[...] a que estava para a banda da cidade entre-gou ao coronel Melchior Brandão com a gentedo Paraguaçu, a outra, que estava pêra Tatuípe,ao capitão Pero Coelho, e a terceira, por onde seservia para o sertão, ao capitão Diogo MunizTeles, e o corpo da guarda se fazia junto à tendaou casa palhaça do capitão-mor pelos soldadosdo presídio e outros, que seriam todos duzen-tos. (SALVADOR, 1982, p. 368)

37 De acordo com Maria Hilda Baqueiro Paraíso, o local descrito por Viei-ra funcionou como aldeamento jesuítico no Século XVI, tendo sidodesativado nesse mesmo século, permaneceu como propriedade jesuíticaque utilizaram o local para retiros, férias dos estudantes e repouso dospadres. Segundo a autora os inacianos só abandonaram o local no SéculoXVIII, quando foram expulsos da Bahia. Cf. PARAÍSO, 2003.

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Os cuidados do bispo na preparação da resistência são dig-nos de comentário. Depois da equivocada oposição que fez aogovernador Mendonça Furtado, tudo indica que D. Marcos quisse redimir de seus erros, pois as fontes são unânimes em apon-tar sua atuação enérgica no cerco aos invasores. Até mesmo osrelatos holandeses apontaram sua dedicação. Comentando arecusa dos colonos locais em aderir aos holandeses, Laet afirmaque não o fizeram por medo do bispo, que se conservava “nasvizinhanças da cidade, e fazia-se de forte, procurando disfarçarsua vergonhosa fuga, cuja culpa lançava ao governador prisio-neiro” (LAET, 2001, p. 73).

O bispo não se fazia de forte, ele era forte, tanto que suaestratégia funcionou muito bem e os holandeses se restringi-ram aos limites citadinos. Quando não era assim e se arrisca-vam no além-muros, foram repelidos pelas companhias deemboscadas criadas pelo bispo e Capitão-mor. De acordo comVieira, existiam 27 capitães de emboscada, cujos efetivos iamde 25 até 40 soldados. Todos esses capitães eram subordinadosa dois coronéis.38 Não encontrei nenhum outro documento quetenha feito referência a tantas companhias. Tentando listá-las,os relatos seiscentistas apontam pouco mais de dez. Sendo quea informação mais precisa, contida na obra de Frei Vicente,destaca seis companhias com atuação intensiva e mais quatroou cinco que aparecem esporadicamente nas páginas de suaHistória do Brasil. Vejamos as mais importantes:

38 Frei Vicente do Salvador afirma que esses coronéis seriam MelchiorBrandão e Lourenço Cavalcante de Albuquerque. Entretanto, como já foimencionado, Varnhagen afirmou que os coronéis eram este último eAntonio Cardoso de Barros, informação idêntica à fornecida pelamaioria das fontes e que será seguida neste texto.

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1. A companhia dos capitães Vasco Carneiro e Gabriel daCosta, comandando uma trincheira com duas peças debronze, localizada em “Tapegipe”, defronte da fortalezade São Felipe. Contavam com uma “companhia do presí-dio de quarenta soldados”;

2. A companhia dos capitães Manuel Gonçalves, Luiz Pe-reira de Aguiar e Jorge de Aguiar, comandando outra trin-cheira, não muito longe da primeira, com cinco falcões eduas roqueiras;

3. A companhia do capitão Jordão de Salazar, que manti-nha sob seu comando uma trincheira “junto ao mar eporto”;

4. A companhia dos capitães Francisco de Castro e Agosti-nho de Paredes, entrincheirados na ermida de São Pedropara vigia com sessenta homens;

5. A companhia dos capitães Francisco Padilha e Luís deSiqueira, de vigia “pêra o Rio Vermelho”, com quarentahomens na roça de Gaspar de Almeida,

6. Por fim, a companhia do capitão Lourenço de Brito,“como capitão dos aventureiros, acudia a todas as par-tes”. (Cf. SALVADOR, 1982, p. 369)

Além dessas, Salvador cita Francisco Dias de Ávila, senhorda torre de Tatuapara, que comandava uma guarnição de índi-os flecheiros e alguns arcabuzeiros, Afonso Rodrigues da Ca-choeira, que acudia em diversas partes com seus índios flechei-ros, Pero de Campo, Diogo Mendes Barradas e outros mais. Écerto que no relato do franciscano ficaram de fora uma série decompanhias e personalidades importantes da Bahia que atua-ram contra os holandeses, como Antônio de Brito Correa, paide Antonio Guedes de Brito, instituidor do Morgado da casa daPonte. Segundo documento publicado nos Anais do ArquivoPúblico da Bahia, Brito Correa teria sido

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[...] governador das companhias que resistiramcontra os holandeses em 1624 nos combates doForte Novo de S. Felipe, em 9 de Maio; em 13de Setembro do mesmo ano nas proximidadesde S. Bento; em 18 de Outubro do mesmo anona Fonte Nova, onde comandava um terço denegros; em 30 de Dezembro enfrentou os fla-mengos que foram saquear o engenho de açú-car de Itaparica... (Casa da Ponte. Restos do seuPatrimônio em 1819.)

É importante ressaltar que as companhias de emboscadasou assaltos como querem algumas fontes, eram flexíveis quan-to aos seus postos, podendo se deslocar rapidamente e ajuda-rem-se conforme a situação e a necessidade. Não obstante essacaracterística, convém chamar atenção para o fato de que asbatalhas convergiam para as portas do Carmo e de São Bento,locais de acesso mais fácil para a resistência, visto que o diqueconstruído pelos holandeses, bem como a escarpa, dificultava aaproximação por outras partes. Os responsáveis por estes doisextremos da cidade eram, respectivamente, os capitães ManuelGonçalves, o mesmo que estava entrincheirado nas proximida-des de “Tapagipe”, e Francisco Padilha, aquele que vigiava o ca-minho do Rio Vermelho. Como veremos no próximo tópico, foinestes locais que as batalhas transcorreram com maior vigor.

Ainda sobre as companhias, não podemos deixar de desta-car aquelas que atuavam pelo Recôncavo e que estavam prontaspara colaborar com a resistência a qualquer necessidade, “em talordem que, em qualquer parte que desembarcavam [os inimi-gos], já os nossos eram com eles, e por boas vindas os recebiamcom uma salva de arcabuzes e flecharia, com que lhes impedi-am o passo ou lhes tiravam a vida” (VIEIRA, 1955, p. 168).

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O desfecho dessa história demonstra que o bispo e seusdois homens fortes comandaram com competência a resistên-cia. Os refugiados causaram grandes transtornos para os inva-sores, cujas tropas ficaram desorganizadas com a morte de seugeneral e também com a do seu sucessor. Sair da cidade erauma operação de alto risco para os holandeses. Aos poucos, osrefugiados sitiaram os invasores. Quando chegou à Bahia o novocapitão-mor, Francisco Nunes Marinho, indicado por Matiasde Albuquerque, a resistência já havia desestabilizado os ocu-pantes e seus passos eram acompanhados de perto. Sobre a si-tuação da Bahia quando da transferência do cargo de capitão-mor, vejamos as palavras nada parciais do padre Antônio Vieira:“Entregou-lhe [o cargo a Francisco Nunes Marinho] logo emchegando o senhor Bispo, largando-o com tanta vontade notempo já mais próspero, com quanta o aceitara no mais adversoe trabalhoso” (Idem, p. 171).

Antes de passarmos à administração de Nunes Marinho,vejamos o que aconteceu com o bispo. Tendo assumido o con-trole da resistência no mês de maio, o religioso manteve-se comocapitão-mor até a chegada do enviado do governador-geral eminício de setembro, portanto, sua administração durou poucomenos de quatro meses. Nesse período, o bispo se destacou porsua atuação enérgica e firme, a qual conseguiu, de maneira ge-ral, manter a população distante dos invasores. No período pos-terior ao seu mandato, o bispo teve pouco tempo de vida, vin-do a falecer a 8 de outubro.

O falecimento do bispo acabou gerando uma situação inu-sitada nessa história. Em função do seu comportamento desas-trado no período da administração de Mendonça Furtado, cer-tamente D. Marcos seria chamado a prestar esclarecimentos aorei por sua obstrução às ordens do governador. Entretanto, suamorte, somada à sua boa atuação no comando da resistência,reverteu completamente essa situação, fazendo com que o prelado

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entrasse para a história como herói da luta contra os holande-ses. Todos os relatos e crônicas a que tive acesso não pestaneja-ram em elogiar o bispo como capitão-mor. Como exemplo des-ses elogios, observemos um trecho de Tamoyo de Vargas:

Era amado de todos como pai e venerado comosanto, [...] seu zelo na defeza da religião, sua cari-dade com o povo, e o exemplo que dava em to-dos os exercícios da virtude, o qualificavão emtodas as occasiões [...] dando o céo testemunhosde quanto lhe erão aceitas suas acções, com osfavores que por sua intercessão fazia àquelle acam-pamento, por quanto faltando algumas vezes pelanoite pólvora ou mantimentos, pela manhã tudonelle se achava com tanta abundância, que ossoldados attribuião à dilligencia sobre humanasemelhantes provisões, chamando guerra mila-grosa a essa a que assitião, e reverenciando cadavez mais o seu prelado como causa de tantas ma-ravilhas... (VARGAS, 1947, p. 75)

O cronista espanhol não poupou elogios ao bispo, impri-mindo-lhe um caráter mágico a ao colocá-lo como causa dasmaravilhas que aconteciam no acampamento, atribuindo atémesmo poderes sobre-humanos a D. Marcos. Afirmar que danoite para o dia, como uma mágica, o bispo abastecia as tropasem pólvora e mantimentos não passa da tentativa de constru-ção da imagem de um homem virtuoso com poderes milagro-sos, um verdadeiro santo.

Mas nada do que Vargas escreveu supera a emocionada eexacerbada pena de Antônio Vieira na descrição da atuação dobispo. Para o jesuíta, foi graças ao bispo, depois de Deus, que seconseguiu conservar as fazendas do rei. Acudia a tudo e a todos,

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animava a uns, chorava com outros, passava mensagens de amora todos. Após deixar o comando da Resistência, enquanto ossoldados combatiam com as armas, o bispo rezava missa, nego-ciando “o favor do céu” para conquistar a vitória contra os he-reges. A sua morte fora um castigo de Deus para os que fica-ram, ao passo que era um prêmio para o próprio Deus, que, apartir daquele momento, iria gozar de tão boa companhia. Amorte do “bom pastor”, como disse Vieira, teria sido lastimadapor todos, tanto que houve quem afirmasse que a perda do pre-lado foi castigo maior do que a perda da cidade, no que Vieiraconcordou, afirmando que a cidade seria restaurada, já o fale-cimento do bispo não teria remédio. Segundo Vieira, os índiosforam os que mais sentiram, os que mais choraram a morte deD. Marcos, “porque de todos eles era pai, defensor e protetor”(VIEIRA, 1955, p. 172-3). É claro que os sentimentos dos índi-os ganharam as cores e os tons que a pena de Vieira quis dar.Tal comoção imaginada pelo padre se justifica diante da inten-ção de salientar o êxito da empreitada catequizadora. No su-cesso dos aldeamentos residia a educação dos índios e conse-quentemente o respeito e, por que não dizer, a veneração paracom a maior autoridade religiosa da colônia. Sentimentos queVieira desejava ver se tornarem reais.

Enfim, o bispo parecia intocável. Sua morte parece terapagado definitivamente o resultado amargo das suas desa-venças com o governador. Após seu sepultamento, D. MarcosTeixeira consagrou-se herói da resistência contra os holande-ses. Houve até quem reivindicasse, no aniversário dos 350 anosde sua posse, o seu lugar no pedestal da história que lhe per-tenceria por justiça e por direito. Até com nome de rua embairro nobre da capital baiana o controverso bispo foi agraci-ado. Entretanto, as aspirações dos que pretendiam imortali-zar o religioso não foram adiante. Hoje, certamente as pesso-as que passam pela rua D. Marcos Teixeira, no atual bairro da

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Barra, desconhecem o passado do ilustre personagem que deunome ao logradouro.39

Antão de Mesquita, o único que poderia, perante a Coroa,refutar a posição de D. Marcos, não o fez. Muito provavelmen-te, as recompensas que recebeu do rei, permanecendo comoúnico magistrado da Coroa no Brasil foram suficientes para ochanceler, cuja principal característica que sobressai na docu-mentação é sua discrição. A constatação de sua moderação podeser observada em carta que escrevera a Matias de Albuquerqueem 12 de setembro de 1624, dando a notícia da chegada deNunes Marinho. Nela Mesquita demonstrou seu ressentimen-to com o bispo, “alegando muito o que mereceu ao serviço de S.M. na paciência com que dissimulou os agravos que recebia dobispo” (VARNHAGEN, 1955, p. 80, nota 3).

Quando este sentimento de comoção se instalou entre osrefugiados, Francisco Nunes Marinho já era o comandante daresistência. O novo capitão-mor já havia assumido igual cargona Paraíba e possuía experiência na Índia e em outras partes doImpério português. Para sua nova empreitada, lhes deram doiscaravelões com trinta soldados, pólvora, munições e outras coi-sas de que se necessitava na Bahia. Sua chegada foi retardadapor uma tormenta que o obrigou a entrar no rio Sergipe parareparos nos navios. Enquanto os concertos eram feitos, Mari-nho resolveu seguir para Salvador por terra, levando consigoalguns soldados (SALVADOR, 1982, p. 378).

Francisco Nunes Marinho comandou as tropas de resis-tência entre setembro e dezembro de 1624. Sua administraçãonão destoou da do bispo no que diz respeito ao vigor com quecombateu os holandeses. Contam os relatos seiscentistas que,

39 Sobre os debates que ocorreram por ocasião do aniversário dos 350 anosda posse do bispo, ver Freguesia da Conceição da Praia, 1623-1973.

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mesmo doente e fraco, Marinho jamais desanimou – pelo con-trário, por pior que estivesse, manteve sempre os soldados pen-sando que estava bem de saúde. E até com as deficiências dosrecursos para a guerra, o novo capitão-mor foi criativo. Segun-do frei Vicente do Salvador, Marinho costumava mostrar “bo-tijas cheias de areia, fazendo entender aos soldados que eramde pólvora” (Idem, p. 379).

De maneira geral, Nunes Marinho manteve a mesma es-tratégia utilizada no tempo de D. Marcos Teixeira. Entretanto,acrescentou algumas medidas que ajudaram a sufocar cada vezmais os ocupantes, dentre elas destacamos o posicionamentode dois barcos de vigília, um em Itapuã e outro em Morro deSão Paulo, para que avisassem às embarcações portuguesas quese aproximavam, da tomada do porto pelos holandeses. Outramedida importante consistiu em abreviar o caminho do acam-pamento no Rio Vermelho para a cidade, facilitando desta for-ma os ataques ao inimigo.40

A resistência, que já havia demonstrado eficiência no tempode D. Marcos, fortalecera-se mais ainda com a chegada de Nu-nes Marinho e da ajuda externa, pois a notícia da ocupação daBahia foi recebida com preocupação pelo monarca espanholFelipe IV, que sem demora determinou que se preparasse umaarmada para retomar a cidade ocupada. Enquanto a armada eraaprestada, o rei ordenou que Lisboa mandasse de imediato todoo socorro possível, não só à Bahia, mas a outras partes do Brasil.Em obediência à ordem real, foram enviadas, a 8 de agosto de1624, duas caravelas para Pernambuco, tendo por capitães Fran-cisco Gomes de Melo e Pero Cadena, que deveriam seguir as

40 Infelizmente não conseguimos descobrir que tipo de intervenção foifeita para encurtar o caminho até a cidade ocupada. Sobre as medidas deFrancisco Nunes Marinho, ver: VARGAS, 1947, p. 76; e SALVADOR,1982, p. 379-380.

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ordens de Matias de Albuquerque. A 19 de agosto do mesmoano era a vez de Salvador Correia de Sá e Benevides com destinoao Rio de Janeiro, no navio Nossa Senhora da Penha de França.41

Para a Bahia foi enviado D. Francisco de Moura, sujeitocom larga experiência em assuntos coloniais, pois já havia sidogovernador do Cabo Verde, cavaleiro com muitos serviços naÍndia, além de ter militado em Flandres (VARGAS, 1947, p. 77;VARNHAGEN, 1955, p. 83). As três caravelas que vieram paraa colônia trouxeram “cento e cinquenta homens de guerra, tre-zentos arcabuzes aparelhados, cinquenta quintais de pólvora,dez de morrão, vinte e nove de chumbo em pão, cento e cin-quenta formas de fazer pelouros” (SALVADOR, 1982, p. 382).Em Pernambuco, juntaram-se a Francisco de Moura, o capitão-mor do Pará, e o filho do governador do Maranhão, respectiva-mente, Manuel de Souza de Sá e Feliciano Coelho de Carvalho.A esses dois, Matias de Albuquerque entregou seis caravelõesabastecidos com os mantimentos trazidos pelas caravelas.

De Pernambuco, Moura seguiu para a Casa da Torre ede lá para o Rio Vermelho, onde foi recebido com salva daartilharia em 3 de dezembro de 1624. O mandato de D. Fran-cisco de Moura, que durou desta data até a chegada da armadaluso-espanhola no princípio de abril, caracterizou-se pela con-tinuidade dos trabalhos realizados pelos capitães que o antece-deram, principalmente pelas fortificações que realizou no Re-côncavo para defesa dos engenhos e a formação de uma pequena

41 As duas primeiras caravelas traziam: “cento e vinte homens de guerra,cinqüenta quintais de chumbo em pão, mil e trezentos arcabuzes deBiscaia aparelhados, quatorze quintais de chumbo em pelouros, duzentaslanças e piques de campo, quatro arrobas de morrão”. Já o navio NossaSenhora da Penha, trazia “oitenta homens armados com seus arcabuzesde Biscaia, quatorze quintais de pólvora, oito de chumbo e dois demorrão”. Cf. SALVADOR, 1982, p. 381

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esquadra, composta de dez barcas para garantir a segurança dosmantimentos que eram levados do Recôncavo para o “quartel”da resistência (SALVADOR, 1982, p. 383).

Com os socorros enviados de Portugal, vinha a certeza deque na Europa, a Metrópole estava atenta ao que se passava nacolônia. As notícias acerca da grande armada que estava sendopreparada para socorrer os habitantes da Bahia enchiam as tro-pas de esperança, o que muito ajudou nos sucessos quase quediários de suas investidas contra os holandeses. Além das boasnotícias, os refugiados contavam com o reforço concreto dehomens e mantimentos e se organizavam cada vez mais. A cadatroca de comando, a tática prevalecia a mesma, havendo ape-nas o incremento das ações visando um melhor desempenhodas companhias de emboscadas. Os resultados dessa organiza-ção eram percebidos a cada vitória dos refugiados sobre os in-vasores, que passaram seus últimos dias na Bahia completamenteoprimidos dentro dos limites da cidade.

2.3. Enfrentamentos entre colonos locais e

holandeses

Para uma melhor compreensão do sucesso alcançado pela re-sistência, faz-se necessário o conhecimento dos enfrentamen-tos que ocorreram nos arredores da capital ocupada. As vitóri-as conquistadas nesses encontros foram o principal motor dosrefugiados, pois, foi a partir deles que se iniciou o processo deenfraquecimento dos holandeses e que culminou com a suaderrota diante da armada luso-espanhola, que os encontroudesorganizados e reprimidos.

Num primeiro momento, os ataques feitos contra os ho-landeses sitiados na cidade e que ultrapassavam os muros parareconhecer o território ou para buscar riquezas e certamente

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alimentos nas proximidades da cidade, eram, de maneira geral,levados a cabo por índios, que agindo independentes de qual-quer ordem, buscavam, segundo os cronistas, vingar as mortesdos seus parentes que caíram lutando contra os holandeses nomomento da invasão. Assim, seguindo uma lógica própria, osíndios foram os primeiros a imprimir o pavor aos invasores.42

São exemplos das investidas dos índios nos primeiros diasda ocupação as situações registradas pelo padre Antônio Viei-ra. Uma ao quarto dia após a tomada da cidade, quando “dozeou treze índios parentes de alguns que na bateria do forte fo-ram mortos, [se dirigiram à cidade ocupada] deliberados a to-mar vingança de suas mortes na vida dos holandeses” (VIEI-RA, 1955, p. 163). Em outra ocasião, menos de doze índios,motivados pelo mesmo sentimento de vingança, surpreende-ram alguns holandeses que encontraram numa casa de palhanas proximidades da Vila Velha (atual Porto da Barra), onde osúltimos procuraram se abrigar. Para azar dos invasores, ao dis-pararem contra os índios, sucedeu que a palha da casa pegoufogo. O resultado trágico foi que aqueles que fugiram do fogoforam atingidos pelas flechas e os que temiam as flechas, foramqueimados pelo fogo. O desespero foi grande e, ao que tudoindica, deve ter causado tamanho susto aos holandeses que osfizeram abandonar a fortaleza de Santo Antônio. Sem dúvida,uma vitória e tanto para os habitantes da Bahia que, antes mes-mo de se articularem, puderam gozar uma derrota dos invaso-res (Id., ibid.).

42 Esse comportamento destoa das conhecidas formas de atuação indígena,nesse caso é provável que se tratasse de índios desalojados de seusaldeamentos localizados na área intramuros que reagiram a tomada desuas terras. Adiante voltarei a essa questão para fazer um paralelo entrea leitura dos cronistas em relação às atitudes dos índios, e o que suasatitudes representavam em sua própria cultura.

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Mas não só os índios assustaram os holandeses nos primei-ros dias de ocupação; segundo Aldemburgk, após a tentativafrustrada de cooptar os moradores, o coronel Van Dorth resol-veu cuidar dos “portugueses que diariamente alarmavam nossoacampamento com escaramuças”. Nesse sentido, o coronel ho-landês ordenou que se trabalhasse na fortificação do territórioconquistado, construindo trincheiras, baluartes, etc. (ALDEM-BURGK, 1961, p. 174-5). Certamente, os portugueses a que serefere a fonte holandesa eram uma generalização para descre-ver o outro, no caso o inimigo. Pois não temos notícia de por-tugueses atuando sozinhos durante a ocupação, mas sim emcompanhia dos índios, como no ataque que fizeram na regiãode São Bento, quando alguns portugueses acompanhados deíndios flecheiros, cativaram dois holandeses e mataram sete ouoito, dentre os quais, um capitão (VIEIRA, 1955, p. 162).

Geralmente, estes ataques aconteciam quando os holan-deses resolviam sair dos limites citadinos, o que era considera-do um grande atrevimento pelos cronistas portugueses e espa-nhóis. Tudo leva a crer que os arredores da cidade tornaram-seum espaço bastante movimentado após a ocupação da cidade-la, desde os primeiros dias até a expulsão dos holandeses. Erajustamente nesse espaço que aconteciam os principais confron-tos entre colonos portugueses e holandeses.

Esses acontecimentos em torno da cidade tiveram momen-tos diferentes. Primeiro os episódios casuais, os embates fortui-tos, a ausência de estratégias e de pontos demarcados. Depois,com a articulação dos refugiados, os arredores da cidade se trans-formaram num verdadeiro campo de batalha em que luso-bra-sileiros tomaram suas posições, construíram suas trincheiras,forjaram seus esconderijos, enfim, demarcaram o território.

No primeiro momento, além dos ataques fortuitos acimamencionados, ocorreram alguns episódios envolvendo os es-cravos negros que parecem ter se aproveitado da situação para

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buscar um destino melhor, ou mesmo para se vingarem dosmaus tratos de seus senhores. Não é raro encontrar na docu-mentação referência a escravos que passavam de um lado paraoutro do campo de batalha com a finalidade de encontrar me-lhores condições de vida. É o caso do escravo Bastião, que en-trou na cidade, mas não ficou por que lhe proibiram o uso dofacão que carregava na cintura, ameaçando-o de enforcamentocaso não entregasse a arma. O escravo resolveu fugir da cidadecom outros dois ou três negros, porém, encontrou com seisholandeses na saída da cidade. Temendo a forca, Bastião sacoude seu facão e “escondeu em o peito de um” e correu em dispa-rada pelo caminho que ia para o Rio Vermelho. Perseguido pelosholandeses, Bastião, como bom conhecedor da região, os con-duziu até um atoleiro onde matou quatro e prendeu um (SAL-VADOR, 1982, p. 365). Num outro momento, Bastião aparececombatendo os holandeses junto aos colonos.

Não teve a mesma sorte de Bastião um escravo que erapropriedade de um serralheiro, que encontrando seu senhornuma roça nos arredores da cidade, o esbofeteou, “dizendo quejá não era seu senhor, senão escravo” e cortou a cabeça de seudono, no que foi ajudado por outros negros e quatro holande-ses. Talvez como prova de sua lealdade aos invasores, o escravolevou a cabeça de presente para o general holandês, o qual deu-lhe duas patacas de recompensa e depois mandou que o enfor-cassem, dizendo “que quem fizera aquilo ao seu senhor tam-bém o faria a ele, se pudesse” (Id., ibid.).

Esses dois casos se encaixam perfeitamente no que a histo-riografia da escravidão chama de resistência escrava. SegundoJoão Reis e Flávio Gomes, onde houve escravidão também houveresistência. De maneiras variadas, os escravos buscaram resis-tir à opressão do cativeiro, fosse ela comandada por portugue-ses ou holandeses (REIS & GOMES, 1996). No caso particularda invasão holandesa, com toda a desorganização provocada

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pelos combates, creio que foi um momento propício para a re-sistência escrava, especialmente para aqueles que viviam nacidade, que parecem ter tido alguma margem de liberdade paraoptar entre fugir da cidade ou aderir aos holandeses – o que,segundo a documentação, muitos acabaram fazendo. Se na fugada cidade alguns tomaram outro rumo, seguindo para algumquilombo que porventura existisse, ou fundando algum novo,ou até mesmo se valendo dos vários aldeamentos indígenas daregião, não sabemos. Os do Recôncavo também devem ter seaproveitado, em menor escala, da confusão para fugir ou nego-ciar uma melhor condição de existência, principalmente nasocasiões em que os invasores investiram contra a região. En-tretanto, em função da ausência de fontes que contemple esteassunto, ficamos limitados a fazer conjeturas, sendo, o maisprudente, afirmar que os escravos negros tenderam, de manei-ra geral, à adesão ao invasor, provavelmente acreditando queteriam melhor destino.

Das poucas referências feitas aos escravos negros, consta asua demasia na Terra Batávica, onde formaram inclusive umacompanhia, cujas principais funções eram vigiar os colonos,guiar os invasores e conduzir os soldados feridos ou mortos.Como veremos adiante, os negros tiveram participação funda-mental na passagem dos holandeses pela Bahia. Quase sempredo lado dos holandeses, os negros aparecem nos relatos seis-centistas como guias ou responsáveis pelas tarefas mais pesa-das, como roçar terrenos, carregar mantimentos, etc. Em meioaos combates e à guerra de nervos existente entre as partes,foram os escravos quem mais sofreram, pois, nenhum dos doislados hesitou em aplicar-lhes duros castigos: açoite, enforca-mento, mutilação dos seus corpos, entre outros.

Provavelmente, ainda no mês de maio, a resistência já ha-via iniciado sua articulação, ocupando os arredores da cidade,imprimindo, dessa maneira, uma ferrenha vigília aos invasores.

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Como já foi mencionado no tópico anterior, a primeira ação deimpacto dos refugiados aconteceu a 13 de junho, dia de SantoAntônio. Referi-me a este episódio citando trechos dos relatosde Vieira e frei Vicente. Comparando-os com os relatos dosholandeses, as informações se encaixam. Entretanto, de acordocom Laet e Aldemburgk, o ataque dos colonos deu-se nummomento em que o governador Van Dorth estava ausente dacidade, comandando pessoalmente uma companhia de 300 sol-dados visando conquistar Morro de São Paulo. O ataque da re-sistência, justamente quando o inimigo estava desfalcado deseu coronel e 300 soldados, teria sido mera coincidência? Paraos holandeses, não. Laet afirmou em seus Anais que o inimigo“parece ter tido notícia da expedição do governador”, fato queo teria encorajado a se aproximar das “muralhas da cidade comum grande número de soldados, negros e índios” (LAET, 2001,p. 74). O mesmo entendimento da situação teve Aldemburgk,para quem, “quando os portugueses e índios selvagens derampela partida [do coronel] conduzindo a tropa, acometeram acidade de São Salvador e nossas guarnições” (ALDEMBURGK,1961, p. 175).

Neste caso específico, as suspeitas holandesas parecem pos-suir fundamentos, pois uma boa observação do movimento noporto seria suficiente para perceber que grande quantidade dehomens deixou a cidade. Já outros momentos da presença ho-landesa na Bahia confirmaram a máxima de Sun Tzu, general-filósofo chinês do século IV a.C., para quem “não há lugar ondea espionagem não tenha sido aplicada” (TZU, 2002, p. 110).Vejamos o que Vieira relatou sobre o assunto em sua Carta Anua:

Ajudavam muito, para os nossos saberem as sa-ídas dos inimigos, três portugueses que o senhorBispo trazia na cidade, um deles bem exercita-do na língua holandesa, os quais, com passapor-

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te que tinham do holandês, entravam e saíamlivremente; mas, sendo-lhes achada uma carta,em que sua senhoria mandava perdão aos re-beldes que se quisessem sair, depois de mortosna cidade os penduraram a S. Bento em umapicota por cadeias de ferro, e em cima a senten-ça escrita em pergaminho, a qual dizia: “Quecondenava à morte, a Manuel Gonçalo de Al-meida e Francisco de Figueiredo, por serem tre-dos ao Conde Maurício, e com seu passaporteentrarem e saírem da cidade a tratar negóciosdos portugueses”. (VIEIRA, 1955, p. 169-70)

A primeira parte do trecho citado deixa bem claro que oscolonos conheciam os passos dos holandeses, o que só vem aconfirmar as afirmações de Laet e Aldemburgk. Em seguida, ojesuíta nos informa os nomes de dois espiões que foram desco-bertos quando levavam uma carta de perdão aos que quisessemsair da Terra Batávica. Condenados á morte, seus corpos foramexpostos em São Bento, ou seja, num lugar onde os refugiadospudessem ver o que aconteceria aos traidores. Outro aspectoimportante da informação de Vieira diz respeito aos passapor-tes concedidos pelos holandeses para os habitantes que quises-sem entrar na cidade ocupada. Esse mecanismo utilizado pelosinvasores possivelmente não só com o intuito de conquistarnovas adesões, mas também como estratégia de comercializar,parece ter sido uma moeda de dois lados, pois permitia a espio-nagem inimiga, como fica patente no trecho citado. Ainda so-bre este caso, vejamos como Laet e Aldemburgk narraram oacontecido, respectivamente:

Na entrada de agosto, tornou à cidade o ditoAlmeida, blasonado que tinha plenos poderes

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para fazer com os nossos um pacto sobre a li-berdade do comércio interno entre os nossos eos portugueses, o que não passava de pura ma-nha; pois, às ocultas, trazia o perdão dos portu-gueses que residiam entre os nossos, e tambémdos negros, que estavam na cidade, e secreta-mente lhes indicava de que modo nos haviamde abandonar. Porém esta traição foi oportuna-mente descoberta, e presos Almeida e seus cúm-plices. (LAET, 2001, p. 76)

[...] vieram a cidade dois embaixadores dosportugueses e um preto, a tratar com o nossocoronel; admitimos a audiência [...], sucedeu caira um deles o chapéu que, apanhado pela orde-nança do fiscal e por ela apalpado, pareceu con-ter algo de suspeito [...]. Narrou o fiscal o ocor-rido ao coronel e, examinando o chapéu doembaixador e separando o forro de seda, foramneles encontradas diversas cartas dirigidas aosnossos negros; à vista disso, os dois emissários eseu escudeiro foram presos e torturados. (AL-DEMBURGK, 1961, p. 188)

Certamente, o Almeida a quem Laet se referiu era o mes-mo Manuel Gonçalo de Almeida citado por Vieira. Nas pala-vras do diretor da WIC, podemos observar o interesse dos ho-landeses em negociar com os habitantes. Por esse motivo lheseram concedidos os tais passaportes. Antes da prisão em agos-to, Almeida já havia estado na Terra Batávica, provavelmentecolhendo e passando informações sem que fosse percebido pe-los invasores. Embora não cite os nomes dos espiões apanha-dos, não restam dúvidas de que Aldemburgk estava se referin-do às mesmas pessoas. O curioso nos dois relatos é que nenhum

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deles admitiu a condenação à morte dos colonos – omissão umtanto estranha, pois seria bastante natural que os traidores pa-gassem com a perda da vida e fossem execrados publicamente.

A brecha deixada pelos holandeses ao concederem os pas-saportes parecia ser bem utilizada pelos refugiados – ao menosé o que podemos deduzir das informações contidas nas fontes.Vejamos o caso de Lourenço de Brito que, com licença dos ho-landeses, foi visitar Mendonça Furtado, que estava prisioneiro.Em conversa realizada na nau em que o governador estava pre-so, acertaram que naquela noite iriam duas jangadas, com doisíndios remeiros, para resgatá-lo do cativeiro. Embora o resul-tado não tenha sido satisfatório, pois mais uma vez os índiosderam um “urro” semelhante ao que fizeram no Carmo, aler-tando a guarda holandesa, o episódio é revelador do quanto ospassaportes eram aproveitados pelo comando da resistência (CF.SALVADOR, 1982, p. 365).

Mesmo quando os passaportes pareciam beneficiar os ho-landeses, pois também poderia haver colonos ou escravos deci-didos a colaborar, de maneira geral, não funcionaram a favordos invasores. Foi o caso de um negro que afirmou aos holan-deses que haveria um grande ataque à cidade, o que fez comque se preparassem para a defesa e o aguardaram impaciente-mente sem que nada acontecesse, “a não ser haver o inimigoacometido de noite, com seus índios selvagens, as nossas senti-nelas perdidas (?), sem resultado algum”. Ao que tudo leva crer,a informação do escravo não passou de um artifício da resis-tência para confundir os invasores ou armação do próprio es-cravo com o intuito de ser aceito e valorizado pelos holandeses(ALDEMBURGK, 1961, p. 189).

Diante da impossibilidade de retomar a cidade, os refugia-dos passaram a investir com maior vigor nas emboscadas. Comas companhias dispostas da maneira como descrevi anterior-mente, os refugiados conquistavam sucessivas vitórias com o

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passar do tempo. Como seria cansativo descrever aqui todas asbatalhas que aconteceram durante a ocupação holandesa, e tam-bém por não ser esse o objetivo deste capítulo, farei referênciaapenas a alguns combates de maior relevância para que possa-mos perceber como a estratégia da resistência conseguiu sitiaros holandeses dentro dos muros da cidade.

De todas as vitórias dos refugiados, talvez a de maior rele-vância tenha sido a de 17 de julho de 1624, quando o coronelholandês, Van Dorth, foi morto numa emboscada. Vejamoscomo este episódio foi narrado. Primeiro com Aldemburgk:

O Sr. General [...] [foi] surpreendido pelos índi-os selvagens, portugueses e pretos, e ferido, bemcomo seu cavalo, de muitas flechas ervadas. Omesmo sucedeu ao tambor, em cujo corpo sefincou uma flecha, tendo então a ordenança tra-zido a notícia à nossa gente [...]. Avançamos ra-pidamente [...], e achamos primeiro o cavalo doSr. general, caído e eriçado de flechas, e logoadiante, o corpo e a cabeça do nosso chefe, quearrancamos aos desumanos e satânicos selvagens,já ambas aquelas partes mutiladas, com falta dosnarizes, orelhas, mãos e outras porções mais que,ou os portugueses conduziram em grande tri-unfo ao seu acampamento, ou os selvagens de-voraram... (Idem, p. 178)

Observe que apesar de afirmar que o general foi surpreen-dido por índios, negros e portugueses, o restante do relato só serefere a ações dos índios. Vamos ao relato de Laet:

[...] depois do meio dia, saiu da cidade o gover-nador com alguns dos cinquenta homens, as-

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sim de pé como de cavalo, para visitar pessoal-mente e observar mais de perto os caminhos esítios vizinhos, pelo fundamento que fazia denão encontrar então inimigos por esses lugares.Mas, como cavalgasse um pouco à parte dos seus,ainda não se havia afastado das muralhas maisde um tiro de colubrinas e já os indígenas, queestavam escondidos nos bosques e nos matos,surgiam inopinadamente, e com flechas e ar-mas de arremesso assim mal feriam o valentecabo, que caiu do cavalo, e logo eles lhe corta-ram a cabeça e ofenderam o corpo horrorosa-mente. Chegada a cidade a nova deste inespera-do e triste caso, saíram os negros, que estavamao nosso serviço, e não somente tomaram o ca-dáver àqueles bárbaros, como impediram queacabasse miseravelmente às mãos deles os queacompanhavam o coronel. (LAET, 2001, p. 78)

Aqui, sequer aparecem portugueses ou negros, a morte deVan Dorth teria sido obra apenas dos índios que utilizavamapenas flechas e armas de arremesso. Vejamos agora o que re-latou frei Vicente:

O coronel [...] saiu a cavalo a ver a fortaleza deSão Felipe, que dista uma légua da cidade, e àtornada se adiantou dos holandeses e negros quetrazia em sua guarda, levando só em sua com-panhia um trombeta em outro cavalo, onde lhessaiu Francisco de Padilha com Francisco Ribei-ro, (..), cada um com sua escopeta e, acertandomelhor os tiros do que acertou o coronel [...],lhes mataram os cavalos, e depois de os verem

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derribados e com os pés ainda nos estribos de-baixo dos cavalos, matou o Padilha ao coronel eo Ribeiro ao trombeta. E logo chegaram os ín-dios selvagens de Afonso Rodrigues da Cacho-eira [...], cortando-lhes os pés e mãos e cabe-ças... (SALVADOR, 1982, p. 367-8)

De acordo com relato do franciscano, os personagens prin-cipais da cena deixam de ser os índios, que chegaram após amorte do general, sendo esta provocada por ferimento a bala enão a flechadas como afirmaram Laet e Aldemburgk. Tambémcontradizendo os dois primeiros trechos citados, os protago-nistas passam a ser o capitão Francisco Padilha e seu primo.Agora observemos a narrativa do padre Vieira:

[...] vindo do porto de São Felipe, vizinho a NossaSenhora do Montesserate, o seu coronel ou go-vernador, homem intrépido e afamado em umae outra guerra, naval e campal, assim em Flan-dres como nas armadas, acompanhados de cemsoldados de guarda, rebentaram os nossos deuma emboscada contra eles, e um remeteu como governador, que vinha a cavalo, e o derrubou.Tanto que este caiu, caiu com ele o ânimo aospés dos soldados que o acompanhavam... (VI-EIRA, 1955, p. 167)

Vieira não indica quem tirou a vida do governador, prefe-re comentar o desastre que foi para os holandeses a perda doseu general. Entretanto, a expressão “rebentaram os nossos”,pode estar sugerindo índios, haja vista que não é raro o jesuítase referir aos nativos aldeados chamando-os de “nossos índi-os”. Em caso desta hipótese ser acertada, o relato de Vieira rei-

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teraria o que foi dito pelos holandeses. Por fim, vejamos o queTamoyo de Vargas escreveu a respeito:

[...] em uma avançada que fez o coronel Van-Dort ao lugar que chamão Agua dos meninos,adiantando-se para reconhecer os portuguezes,cahio do cavallo que havião ferido e espantadoas frechas de alguns negros encobertos pelosmatos do sitio, e chegando o capitão FranciscoPadilha, cabo das estancias do Rio Vermelho emfrente da cidade, matou-o ardidamente corpo acorpo, e a um seu trombeta, levando ao bispo acabeça do mesmo coronel em testemunho deseu valor... (VARGAS, 1947, p. 73)

Neste caso, os índios, aqui designados de negros, deram ocombate inicial, ficando o ataque ao governador holandês acargo do capitão Francisco Padilha, que entrou no corpo a cor-po com Van Dorth.

São cinco relatos variando em torno do mesmo tema. Aquestão mais controversa é saber que participação os indígenastiveram nesta importante derrota dos holandeses. Meros coad-juvantes ou protagonistas? Em dois relatos, produzidos pelosinvasores, os índios foram os responsáveis pela queda do coro-nel. Em outros dois, um do franciscano nascido na Bahia e ou-tro do cronista oficial da armada restauradora, o grande feitoteria sido obra de um dos capitães de emboscadas. No relato dopadre Vieira, a menos que admitamos a hipótese acima levan-tada, a informação foi omitida. Que conclusões podemos tirardessas controvérsias? Considerando verdadeiros os relatos ho-landeses, pudemos supor que houve uma tentativa, por partedos cronistas ibero-brasileiros, de valorizar os oficiais da resis-tência, atribuindo a eles os louros de uma vitória significativa,

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não admitindo os índios como verdadeiros executores da ação.Por outro lado, ainda que menos provável, é possível especularque os cronistas holandeses não quisessem expor aos seus leito-res que um coronel, experimentado em várias guerras na Euro-pa, tenha caído numa emboscada preparada por um capitãopatenteado de improviso.

Outro aspecto dos trechos citados que merece destaque éa descrição dos indígenas. Além de seres selvagens e desuma-nos satânicos, os índios seriam soldados cruéis que mutilavame devoravam suas presas. Aliás, esta leitura perpassa todos osepisódios em que houve a participação indígena. Em um dosenfrentamentos ocorridos nos arredores da cidade, grande nú-mero de holandeses foram mortos. Retornando no dia seguintepara resgatar os corpos e dá-lhes um enterro decente, consta-tou-se que faltavam alguns corpos, os quais teriam “sido devo-rados pelos índios selvagens, jacarés e cães” (ALDEMBURGK,1961, p. 186). Ou seja, os índios estavam para os holandeses – emuitas vezes para os portugueses também – na mesma catego-ria que animais. Nesse sentido, é comum encontrarmos inter-pretações de certas atitudes indígenas como coisa comum àssuas culturas. O que não era. A mutilação do corpo e mesmo aantropofagia só fazia sentido enquanto um ritual. Desconhe-cem-se índios cortando pedaços dos corpos dos inimigos e de-vorando-os ainda no campo de batalha.

Mesmo quando se tratava de vingança, como afirmou opadre Vieira ao narrar as primeiras reações indígenas aos ho-landeses, os índios que habitavam a atual região metropolitanade Salvador, os Tupinambás, não se interessavam apenas emmatar seus desafetos, era preciso matá-los e comê-los para quea vingança estivesse completa. Mas sempre em forma de ritual.Como afirmou Carlos Fausto, o maior objetivo das expediçõesguerreiras era fazer cativos para serem executados e comidosem praça pública. Havia uma necessidade de se socializar a vin-

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gança. Para que esse tipo de atitude fizesse sentido na culturaTupinambá, era necessário que todos se vingassem, jamais se-ria da maneira narrada pelos cronistas citados.43

O que pode muito bem ter acontecido nas batalhas ocor-ridas durante a ocupação holandesa, é que as partes do corpodo inimigo fossem valorizadas pelos comandantes da resistên-cia como prova das vitórias em combates, e/ou estratégia paraanimar os soldados, que vendo a desgraça do inimigo, se forta-leceriam. Dessa maneira, a participação indígena, que foi fun-damental para o avanço dos colonos sobre os holandeses, deveser analisada cuidadosamente para que a visão dos colonizado-res não atropele o significado da cultura nativa.

Em parte, o exagero com que as ações indígenas foram nar-radas deve-se ao pavor que elas imprimiam aos holandeses e aoêxito que conquistavam em favor dos refugiados. Nas palavrasde Vieira:

[...] os índios flecheiros das nossas aldeias; anteseram a principal parte do nosso exército, e quemais horror metia aos inimigos, porque, quandoestes saíam e andavam pelos caminhos mais ar-mados e ordenados em suas companhias, [...],viam subitamente sobre si uma nuvem choven-do flechas, que os trespassavam [...] não se atrevi-am a resistir, porque, enquanto eles preparavamum tiro de arcabuz ou mosquete, já tinham nocorpo despedidas do arco duas flechas, sem ou-tro remédio senão o que davam aos pés, virandoas costas; mas nem este lhes valia, porque, se elescorriam as flechas voavam e, descendo como aves

43 Sobre a cultura Tupinambá, ver FAUSTO, 1992, p. 381-396.

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de rapina, faziam boa presa; e ainda que não ma-tavam algumas vezes de todo, todavia, comomuitas eram ervadas, ia o veneno lavrando pordentro até certo termo, em que lhes dava o últi-mo da vida. (VIEIRA, 1955, p. 179-80)

O fato é que, com ajuda dos índios, os capitães das embos-cadas obtinham valiosas vitórias sobre os holandeses. A cadacombate, novo sucesso. Os refugiados se sentiam tão confian-tes de si que, em certa ocasião, enfrentado os invasores nas pro-ximidades de São Bento, cativaram alguns negros que habita-vam a Terra Batávica. Um desses negros teve um destino infeliz.Arrancaram-lhe as mãos e dependuraram em seu pescoço umamensagem para os holandeses, na qual desafiavam os inimigospara um confronto aberto, sem emboscadas. Os holandeses acei-taram e se dirigiram para São Pedro com cerca de quatrocentossoldados armados. Os colonos se assustaram com o tamanho daforça dos oponentes, e após rápida reflexão, decidiram que

[...] lhes era menos sofrível perder a vida, que porem risco a honra. Com esta determinação inves-tiram á porfia ao inimigo, e com uma força tãoimpetuosa que a não puderam sofrer os holande-ses, nem se atreveram a sustentar o campo, e logoviraram as costas; para que se entenda e veja bemque o tomarem uma vez a cidade foi mais fra-queza nossa, causada de pecados, que esforço seu,pois os que então uma vez, sem pelejar, lhes fugi-ram, agora tantas vezes os faziam fugir pelejan-do. (Idem, p. 174-5)

Embora as informações acima pareçam mais uma vezdotadas do já conhecido exagero de Vieira, caso tenha ocorrido

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nesses termos, podemos dizer que com a iniciativa partindodos refugiados, o episódio demonstrou que a resistência já nãose satisfazia em barrar a progressão do inimigo pelo território,passando da defesa por meio de emboscadas para um confrontoem campo aberto, ou seja, a resistência contra-atacava. A rebo-que, a fonte reitera a ideia de que a cidade estava com sua defe-sa desarticulada quando da investida holandesa.

Não só nos arredores da cidade as batalhas foram favorá-veis aos refugiados. Diversas vezes os holandeses foram recha-çados no Recôncavo e na ilha de Itaparica. Nesta última, osinvasores costumavam ir para se abastecer de azeite de baleia.Numa dessas idas para carregar azeite, resolveram seguir até oengenho de Gaspar de Azevedo, que distava uma légua da praia.Lá chegando, solicitaram ao proprietário que moesse cana queeles lhe dariam os negros e o mais que fosse necessário. Os ho-landeses só não contavam com a chegada de Afonso Rodriguesda Cachoeira, que, juntamente com seu “gentio”, matou oito aflechadas e arcabuzadas e ainda tomou-lhes uma lancha (cf.SALVADOR, 1982, p. 372).

É importante notar que a mobilidade das companhias deemboscada contou muito para o êxito da resistência. Capitãescomo Afonso Rodrigues da Cachoeira, Francisco Padilha, Ma-nuel Gonçalves, entre outros, pareciam estar presentes em to-das as partes. Apesar de possuírem seus postos fixos, eles sedeslocavam conforme a necessidade, chegando mesmo a sairdos arredores da cidade e se dirigirem para o Recôncavo oupara a ilha de Itaparica.

Além dos socorros recebidos de Portugal e da competên-cia do comando da resistência, contribuíram para o fortaleci-mento dos colonos a carestia na cidade ocupada e a irresponsa-bilidade do coronel holandês Albert Schouten. Pois, quandoem princípios de 1625 escasseavam os alimentos na Terra Batá-vica, a tal ponto que os soldados passaram a comer cães, gatos e

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até lagartos, provocando, em decorrência da falta de gatos, umapraga de ratos tão desagradável que não era possível dormirsem que as ratazanas mordessem as pessoas, o coronel, emcompanhia de outros oficiais, festejava o carnaval a bordo dosnavios de guerra. Segundo Aldemburgk:

Esses folguedos e banquetes [duraram] por maisde oito dias a fio, em alguns dos quais dispara-ram, dos navios e da bateria junto à ribeira, sal-vas de bala de grossa artilharia, de 50, 80, 100 e120 tiros, em parte dirigidos para o alto da mon-tanha da cidade, o que produziu considerávelinquietação nos alojamentos. (ALDEMBURGK,1961, p. 199-200)

Ao que tudo indica, o comandante das tropas invasorasprocurava manter um costume comum nas Províncias Unidas,o gosto pelas festas, em que se consumiam quantidades exorbi-tantes de comida e bebida. Segundo Paul Zumthor, o banquetee a bebedeira constituíam manifestações fundamentais do vín-culo social. Dessa maneira, qualquer pretexto valia para queum banquete fosse oferecido. Mesmo com os protestos da Igre-ja e do Estado, respectivamente contra o apego às coisas terre-nas e ao desperdício, a tradição se manteve por todo séculoXVII (ZUMTHOR, 1989, p. 213).

O momento escolhido pelo capitão para festejar e mantertradições foi infeliz. Enquanto desperdiçava munição com fes-tas, estava a caminho da Bahia a armada conjunta das Coroasportuguesa e espanhola. A chegada dessa armada, quando osholandeses se encontravam completamente encurralados nacidade, enfrentando várias limitações, trouxe alento aos refu-giados e pânico aos sitiados que, como veremos no capítuloseguinte, não sustentariam suas posições por muito tempo.

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3. Da retomada à reorganização

3.1. A retomada da Bahia

Conforme afirmei no capítulo anterior, a ocupação da Bahiarepresentava apenas parte dos planos holandeses. Já em 1623,numa proposta apresentada ao Príncipe de Orange por Jan An-dries Moeerbeck, ficava claro que os planos da WIC eram bas-tante ambiciosos e, no caso do Brasil, visavam todo o territórioda América portuguesa. Moerbeeck recomendou ao príncipe aocupação e fortificação da Bahia e Pernambuco, considerados osprincipais pontos econômico-militares da colônia portuguesa eque, se bem guarnecidos, acrescidos de algumas fortificações emlocais estratégicos ao longo do litoral, seriam suficientes paramanter a posse de toda a colônia. Nesse sentido, fica evidenteque a Bahia era apenas o começo (MOERBEECK, 1942, p. 30).

As ações holandesas após a invasão da Bahia também apon-taram para o tamanho da operação que os mesmos intentavamrealizar para controlar a produção açucareira e abalar o poderioibérico. A decisão de enviar forças para ocupar Angola, quandoa posse efetiva da Bahia não era uma realidade, é uma evidên-cia cabal de que as Províncias Unidas, por meio da WIC, havi-am projetado uma ofensiva em pontos diferentes do globo per-tencentes à Espanha. E a certeza do sucesso era tão grande quesequer perceberam que a realização da primeira etapa, a ocu-pação da Bahia, não era tarefa tão fácil quanto o ato da invasão.

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De acordo com o historiador inglês Charles Boxer, os ho-landeses acreditavam que a manutenção da Bahia seria tarefafácil, pois pensavam que a reação espanhola, em se tratando deuma possessão portuguesa, não teria a mesma intensidade queuma resposta a ataques em territórios do próprio império espa-nhol. Ou seja, o ataque a uma colônia portuguesa seria tratadocomo assunto de somenos pela administração filipina. Prova-velmente, pesou para essa opinião a pouca atenção dada pelaEspanha à perda de Ormuz, possessão portuguesa tomada pe-los anglo-persas em 1622 e que teve como reação espanholameros protestos endereçados ao rei inglês Jaime I. Entretanto,o mesmo historiador demonstra que essa ideia não era unani-midade nas Províncias Unidas, lembrando que Willem Usse-lincx, idealizador da WIC, era contrário à invasão da Bahia,argumentando que não seria presa tão fácil e que o poder dastropas holandesas seria insuficiente para garantir a posse dacapital portuguesa na América (BOXER, 1973, p. 59).

O tempo mostrou que Usselincx era uma voz conscientenas Províncias Unidas, pois a notícia da queda da Bahia provo-cou alarde na Península Ibérica, resultando numa corrida parapreparar a reação ao ataque holandês. Portanto, ao que tudoindica – motivados por relatos de viajantes como Ruiters, queindicava apenas as deficiências da América portuguesa (cf.RUITERS, 1966), ou embalados por conselhos equivocadoscomo os de Moerbeeck, que esperava apoio dos portuguesesem função da insatisfação desses com a União Ibérica – os ho-landeses minimizaram a reação da Espanha e Portugal dianteda iminência de perder a rica região que fortalecia as finançasdesses dois reinos, bem como não calcularam – ou “pagarampara ver” – a importância que Felipe IV daria ao assunto em faceàs disputas que envolviam a Espanha e as Províncias Unidasdesde 1585, quando essas últimas declararam-se independen-tes da primeira. Em função dessas disputas, a retomada da Bahia

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ganhou cores patrióticas e tomou dimensão mundial. Passe-mos então a repercussão da notícia da perda de Salvador naPenínsula Ibérica.

Portugal tomara conhecimento da queda da Bahia em 26de julho de 1624 por meio de carta enviada de Pernambucopelo então governador-geral em exercício, Matias de Albuquer-que. Segundo o padre Bartolomeu Guerreiro, nesse mesmo diaa notícia seguiu para o monarca espanhol, que considerou

[...] por si, e por seus conselhos de estado, e guer-ra os dannos públicos, e secretos, as perdas dosSenhorios, e vassalagens, e direitos de sua Realfazenda, nam só na Coroa de Portugal, mas muytomais na de Castella; e a quebra da reputação desuas armas, poder, e grandeza, se os inimigos sus-tentassem com firmeza a praça que ganharão”.(GUERREIRO, 1966, p. 23, grifo meu)

A perda da reputação, preocupação imediata para uma na-ção envolvida em diversos conflitos internacionais como era ocaso da Espanha (ver DURANT, s.d ), também apareceu quan-do o conselho de estado português se apressou em expor aomonarca espanhol a necessidade de uma rápida providência nosentido de expulsar os holandeses da Bahia. De acordo com ocronista oficial da coroa espanhola, Tamoyo de Vargas, o con-selho teria alertado Felipe de que

[...] uma vez que estabelecido o inimigo naque-llas partes, não só rezultaria quebra ao comerciode ambas as Índias, senão ao de todas as mais con-quistas dessas coroas, com prejuízo considerávelde toda monarchia, e perda de sua reputação,em cuja conservação tanta conta se deve ter, por

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consistir nella a parte mais nervoza de suas for-ças”. (GUERREIRO, 1966, p. 80)

É notável que os portugueses apelaram para questões deordem patrióticas da Espanha, pois sabiam que abalar a reputa-ção daquele império significava para os espanhóis a quebra deuma imagem forte e poderosa construída à custa das conquistase dominação de outros territórios, inclusive, o próprio ImpérioPortuguês. Certamente, o conselho sabia que a maneira de to-car o monarca espanhol era mostrar os riscos que tal ocupaçãotrazia para a Espanha, enfatizando o quão desonroso seria oêxito dos holandeses para a reputação espanhola, ou seja, a ideiade que expulsar os holandeses da Bahia equivaleria a uma de-monstração de força da Espanha transitou com bastante ênfaseentre os bastidores da organização da armada restauradora.

A argumentação do cronista oficial da Coroa espanhola,acerca dos motivos pelos quais o monarca espanhol deveria re-vidar o ataque holandês, também passou pela discussão dosvalores da pátria espanhola:

Quando o estado do Brazil, assim pelo que ren-de a estas coroas, e enriquece seus reinos, comopor ser o posto mais apropriado para a execuçãodos desígnios do inimigo, não devesse ser comtanta providência reparado, devia-o sem dúvi-da para refrear o orgulho da liberdade da gente,que arrogante com a de sua consciência, presu-me-se senhora de quem devia reconhecer porsuperior... (Idem, p. 79)

Fica patente que Tamoyo de Vargas enxergou na invasãoda Bahia um ato de desafio dos “rebeldes” holandeses. Noentendimento do cronista, a retomada da Bahia teria valor na

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medida em que serviria para desacelerar a ambição das Provín-cias Unidas. Nesse sentido a restauração da Bahia se tornavauma alegoria patriótica capaz de demonstrar ao mundo e aosholandeses, em especial, a superioridade espanhola. Entretan-to, mesmo afirmando que esses motivos deveriam ser o sufici-ente para uma resposta espanhola, Vargas não se furtou de lem-brar a importância financeira e o significado estratégico-militarda região perdida. Esse último, que não podemos dissociar dosentido patriótico do episódio (pois incorria em visível perigopara o Império Espanhol), possuía força razoável na Espanha.Se para os portugueses seria um prejuízo sem tamanho perder aBahia em função da importância comercial, para o monarcaespanhol se delineava um quadro ameaçador para o seu impé-rio, pois, as intenções holandesas residiam na instituição de umabase militar plantada no mais importante porto do AtlânticoSul. Afinal, os ataques à América espanhola seriam bem maisfáceis a partir de Salvador. Além disso, a baía de Todos os San-tos serviria como porto de saída para os navios holandeses, dan-do-lhes vantagens na disputa do comércio com as Índias (BO-XER, 1973, p. 70).

Ao contrário da indiferença que os holandeses esperavamque houvesse por parte da Espanha, as primeiras manifestaçõesoficiais da Coroa espanhola frustraram os planos da WIC, poisa maioria dos relatos dá conta de que Felipe IV ordenou quePortugal enviasse para o Brasil, o mais rápido possível, ajudaaos colonos que resistiam na Bahia. A administração filipinanão se fez de rogada e tomou providências para efetivar a ordemde formação de uma armada de socorro. Enquanto seguia umaajuda provisória para a Bahia, as duas Coroas preparavam umaarmada com poderio eficiente para retomar a capital colonial.44

44 Dentre outros ver: VARGAS, 1947; GUZMAN, s.d., GUERREIRO, 1966.

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Da leitura do relato de Vargas, notamos que Felipe IV procu-rou encaminhar suas ações de duas maneiras: uma por meio doapelo religioso e outra através da força militar. No primeirocaso, escreveu aos bispos e padres mais importantes do reinopara que

[...] se tenha particular cuidado de encommen-dar affectuosa e instantaneamente a Deos nossoSenhor o bom successo [...] de todas a minhasrezoluções, que na paz e na guerra se dirigem aomaior serviço e gloria de sua divina magestade,e ao bem publico de toda a igraja catholica destamonarchia...” (VARGAS, 1947, p. 81)

O monarca espanhol não perdeu a oportunidade de ratifi-car a ligação do poder monárquico com o poder divino, perme-ando, dessa maneira, os preparativos da restauração da Bahiade um significado religioso que possuía como objetivo clarocolocar os católicos ibéricos contra os protestantes heréticosdo norte europeu.45 Com essa medida, Felipe não só reforçavao discurso contrarreformista que colocava as Províncias Uni-das na condição de “províncias rebeldes” por ter se insurgidocontra o rei católico, mas também buscava garantir recursospara preparar a força restauradora. A ideia de colocar os padresrealizando missas e procissões, orando pelo sucesso das armasibéricas, não visava apenas ajuda espiritual. Cada novena, ser-mão, etc., deveria findar-se “com a oração e colecta que emsemelhantes occasiões se costuma” (VARGAS, 1947, p. 81, gri-fo meu). Infelizmente não sabemos o efeito que tal pedido sur-tiu na Espanha, porém, no caso português, a Igreja respondeu

45 Sobre a importância da religião católica no Estado espanhol verDURANT, s.d., p. 73.

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aos apelos do monarca colocando em prática a sua vontade.Segundo o relato do padre Bartolomeu Guerreiro, foram feitasas seguintes doações para o apresto da Armada de Portugal:dois mil cruzados provenientes de doações da Igreja ofertadaspor D. Miguel de Castro, arcebispo de Lisboa, quatro mil cru-zados doados em serviços não especificados pelo Bispo eleitode Coimbra Dom João Manoel, dois mil cruzados doados peloBispo da Guarda Dom Francisco de Castro, mil e quinhentoscruzados do Bispo do Porto Dom Rodrigo da Cunha e mil cru-zados doados pelo Bispo do Algarve Dom João Coutinho. Nacontribuição que a cidade de Lisboa deu a Armada, o cronistaindica que dos cem mil cruzados doados houve também a par-ticipação da Igreja (GUERREIRO, 1966, p. 35-37).

No que diz respeito à arregimentação da força militar, orei ordenou

[...] que com a maior brevidade se posessem aponto alguns navios bem artilhados, [...] com pro-porcionado numero de gente de guerra, e quantomais parecesse forçoso para ganhar tempo, ele-gendo-se para o governo [...] pessoas dignas deque tanto importava, e que disposto tudo se aguar-dasse o primeiro aviso do estado em que se acha-va o inimigo, para que, se conviesse augmentaras forças da armada, não tivesse isto delonga”.(VARGAS, 1947, p. 82)

A mobilização para a formação da armada foi intensa emilhares de voluntários se apresentaram. Os cronistas da ar-mada foram unânimes em afirmar que membros da fina flor danobreza ibérica, especialmente a portuguesa, se dispuseram aservir sem nenhuma remuneração. De acordo com Boxer, “la-tifundiários opulentos e municipalidades fizeram generosos

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donativos para custear a expedição, não se deixando ficar atráso alto clero e os mosteiros ricos” (BOXER, 1973, p. 70-71).Nomes como Rodrigo D. Manoel de Moura Corte Real, DomLuis de Sousa, Dom Pedro Coutinho, Dom Affonso Furtado deMendonça entre outros compunham a lista de duques, condes,marqueses e ex-governadores que fizeram doações em dinhei-ro, armas, munições, navios, soldados, etc. Essa intensa partici-pação de fidalgos e nobres portugueses explica porque a cam-panha para restaurar a Bahia ficou conhecida como a jornadados vassalos. O padre Bartolomeu estimou o total em dinheiro,serviços, alimentos, fretes de navio, armas e munições doadospela Igreja, por comerciantes e particulares em cerca de 234mil cruzados, excetuando o valor gasto pela Fazenda de suamajestade (GUERREIRO, 1966, p. 37). Da parte espanhola con-vém ressaltar que inúmeros militares com larga experiência deguerra, posicionados em pontos estratégicos, como Flandres eGibraltar, foram convocados para liderar as tropas da armadarestauradora. Esta decisão demonstra a importância que FelipeIV dera ao assunto, bem como indica o empenho do monarcaespanhol em mostrar ao mundo que não aceitaria pacificamen-te tão ousado desafio.

Cumprindo as determinações do rei, as preparações da ar-mada tomaram fôlego com a escolha dos melhores navios dasarmadas portuguesa e espanhola, de pessoas com experiênciano mar, como D. Fadrique de Toledo, escolhido para comandá-la, D. João Fajardo de Guevara, como almirante general da ex-pedição e outros com competência e experiência para assumi-rem tamanha empreitada. Além disso, foram recrutados osdemais “homens de mar e de guerra” que deveriam compor orestante da Armada. Outra determinação real era a recupera-ção do território perdido o mais rápido possível em função danecessidade de manter a fama da força espanhola, caso contrá-rio, ficaria visível ao mundo a debilidade defensiva das colôni-

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as ultramarinas. E no caso da Bahia, em particular, daria senti-do às vozes portuguesas que criticavam a União Ibérica, poisseria mais uma demonstração de que a Espanha dava poucaatenção às possessões portuguesas, haja vista a já mencionadaperda de Ormuz. Nesse sentido, a pressa recomendada na orga-nização da Armada foi embalada pelo desejo de demonstrar aosinimigos e/ou críticos que a Coroa estava atenta e vigilante, é oque sugere a pena de Tamoyo de Vargas:

Apresuravam os votos de todos o breve despa-cho da armada, por julgar-se cada dia com no-vos fundamentos que em sua brevidade consis-tia a segurança da restauração desta praça, porisso que não obstante ser esta monarchia tão ricade terras marítimas, parece impossível a inteiraconservação de todas, a não ser mediante a re-putação, ou tendo cada uma dellas em si o quenecessitar para sua defesa, consistindo esse cré-dito em que saibão seus inimigos – que a qual-quer parte que forem, não poderão ahi manter-se, por terem forçosamente de ser desalojadosdonde estiverem, pelas armas de seu rei [...].(VARGAS, 1947, p. 85)

A pressa também era motivada por notícias de que a Ho-landa preparava reforços para as tropas que ocupavam a Bahia.Quando Portugal e Espanha preparavam suas armadas, chega-ram notícias de que os holandeses já haviam mandado trintagaleões com quatro mil mosqueteiros para se fortalecerem. Es-sas notícias, somadas ao temor de que a Inglaterra pudesse aju-dar a Holanda, compeliram os países ibéricos a apressarem ain-da mais os preparativos para que a Armada chegasse a Salvadorantes do reforço holandês, pois da diligencia desses preparos

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dependeria: “ou a total ruína, ou a conservação daquella coroa,atendendo-se a que se acaso se desse lugar ao inimigo para for-tificar-se de novo, sendo socorrido da Holanda e da Inglaterra,como podia temer-se, era o damno irreparável” (Idem, p. 86)

Embora tenha sido prefixado o dia 4 de setembro de 1624para a saída das armadas, nenhuma das duas havia se lançadoao mar antes de novembro. Ao que tudo leva a crer, dificulda-des relativas à formação dessa força naval, que dependia dachegada de embarcações que estavam dispersas pelos quatrocontinentes, somadas a condições climáticas não muito favorá-veis, atrasaram constantemente a saída da armada. Os meses deoutubro, novembro e dezembro foram consumidos pelos tra-balhos que visavam concluir o apresto e reunir as esquadrasdas Armadas de Portugal e Espanha, com o intuito de se en-contrarem e seguirem juntas para a Bahia.

Também nesse período seguiam as especulações em tornodos reforços enviados pelos holandeses à Bahia. Só em janeiroportugueses e espanhóis ficaram sabendo que a Holanda aindanão havia mandado sua Armada para Salvador e que os inimi-gos se encontravam fragilizados pela ação da resistência, en-tendendo assim que as notícias veiculadas anteriormente nãopassaram de estratégia do inimigo para intimidar a Coroa espa-nhola. Essa notícia causou grande alívio, pois não obstante apressa da Coroa para a preparação da armada, pensavam estarem desvantagem no quesito tempo, achando que os holandesesjá haviam se lançado ao mar. Mais ainda, além de ficarem sa-bendo que os holandeses não conseguiram enviar reforço paraa Bahia, os luso-espanhóis tiveram ciência também de que asforças dos inimigos estavam diminuídas graças aos “damnosordinarios que recebia da gente da terra”. (VARGAS, 1947, p.99) No conhecimento da debilidade das forças holandesas naBahia residia mais um motivo para a pressa ibérica: aproveitara fragilidade do inimigo para vencê-lo rapidamente.

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Convém ressaltar que apesar da determinação de FelipeIV em retomar a Bahia, parece que em Portugal, especialmenteos setores insatisfeitos com a perca da autonomia desde 1580,entenderam que a restauração da Bahia era uma boa ocasiãopara demonstrar à Espanha, ao mundo e aos próprios portu-gueses que o sentimento patriótico ainda corria nas veias doslusitanos de boa cepa.

Da leitura dos cronistas ibéricos, nota-se que havia algu-ma “picuinha” durante a formação das armadas. Nada explíci-to, mas nas entrelinhas observamos que existia uma certa com-petição entre as duas Coroas, havia o desejo de uma se sobrepora outra no que diz respeito aos esforços para compor a armada.Essa competição estava pautada, por um lado, no interesse es-panhol em demonstrar a preocupação da administração filipi-na com Portugal e suas possessões e, por outro lado, no desejoportuguês de reanimar o brio patriótico anterior a 1580. Dessamaneira, é significativo que o padre Bartolomeu Guerreiro te-nha lamentado, em sua relação da restauração da Bahia, queparecia “faltar aquelle valor antigo com que em melhores tem-pos não largavam os portugueses as forças que hua vez se ga-nharão” (GUERREIRO, 1966, p. 23). Ao que parece, este tem-po saudosamente exaltado pelo religioso insinuava que as glóriaslusitanas se esvaíam com a continuidade da União Ibérica.

A grande participação do clero, acima mencionada, é umaboa demonstração do quanto a restauração da Bahia mexeu comos interesses de setores de Portugal insatisfeitos com a UniãoIbérica. Pois, de acordo com a historiadora Jacqueline Hermann,a oposição dos religiosos portugueses à união das duas Coroasuniu jesuítas e dominicanos, as duas maiores ordens religiosaspresentes em Portugal. Segundo Hermann, os ataques estran-geiros que se intensificaram no Brasil após os embargos filipi-nos (referidos no primeiro capítulo deste trabalho) acirraramos ânimos dos pregadores, que viram na Espanha as causas das

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desgraças do seu reino. E mesmo depois da retomada da Bahia,que inegavelmente teve as forças espanholas como um dos pro-tagonistas, os pregadores deixaram de reforçar o valor dos por-tugueses e, em agosto de 1625, o dominicano Simão Correiainsistia que o reino de Portugal era de Cristo e fora por eleescolhido para levar sua mensagem a outros povos (HERMANN,1998, p. 221-223). Dessa maneira, não era possível imaginarque um reino escolhido por Cristo para propagar sua mensa-gem pelo mundo continuasse dominado por outro reino que,do ponto de vista religioso, era inferior. Com essas informaçõesfica fácil entender o empenho dos referidos religiosos em garan-tir grandes somas para a formação da armada de Portugal.

Ao que tudo indica, os espanhóis perceberam o esforçoluso em demonstrar eficiência na formação de sua armada eprocuraram minimizá-lo, às vezes sem nenhum pudor. Veja-mos o relato de Valencia Y Guzman:

En la ciudad de Lisboa por parte de los ministrosde la corona de Portugal y por la del general de laarmada portuguesa Dom Manuel de Menezes sehicieron otras muchas prebenciones y aprestos[...] aparejandose para la jornada em consideraci-on de ser el Brasil conquista de aquel Reino todoslo cavalleros títulos y fidalgos del asucosta y commuchos criados que llebaban com placas de sol-dados que sirbieram muy bien en la ocasion [...]de lo qual se dio Su Magestad por muy serbido,los condes de bimioso, y de taroca, y el conde deSan Juan de la pesquera, com sus dos hijos se asen-taron luego, y tras ellos toda la nobleza que si porsus nombres se hubiera de decir era menestermayor memória que la mia y mas paciência de laque yo tengo, basta decir fueron todos que quedo

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Portugal desierto... (GUZMAN, s.d., p. 121-123,grifo meu)

Embora não esteja explícito, notamos que o cronista espa-nhol procurou desprezar o empenho de Portugal na prepara-ção da armada, insinuando inclusive que os portugueses nãofaziam mais que sua obrigação visto que o objeto de disputa eraresultado de suas conquistas. Demonstrando clara má vontadeem relatar os trabalhos que se faziam em Portugal, o cronistadesabafa que não teria paciência para listar todos os nobres queparticipavam da armada portuguesa, preferindo, de maneiraardilosa, afirmar que Portugal ficou deserto em função do guar-necimento da armada. Uma óbvia tentativa de diminuir o rei-no português. Entretanto, ao que parece Portugal contava comgente de sobra, de maneira que, segundo Joaquim Serrão, foiordenado que se dispensassem os criminosos fugidos da Justiçaem função do espantoso número de voluntários que haviam seapresentado (SERRÃO, 1968, p. 194). Na verdade, os governa-dores do reino estavam preocupados com a quantidade de pes-soas que desejavam participar da jornada da Bahia, tanto queem 12 de novembro de 1624 consultaram o Conselho da Fa-zenda para saber da quantidade de pessoas que estavam assen-tadas na armada da Bahia, ordenando que se parecesse àqueleórgão que havia bastante gente, que não assentasse mais nin-guém (Consulta do Conselho da Fazenda...).

Até mesmo no que diz respeito à partida das armadas, por-tugueses e espanhóis parecem ter disputado a primazia, senãovejamos o que escreveu Tamoyo de Vargas ao se referir à ante-cipação da largada da armada portuguesa:

Havia já dias que a armada de Castela aguarda-va tempo favorável para fazer-se de vela, quan-do soube a 28 que em o dia 22 [de novembro]

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tinha desaferrado de Lisboa a de Portugal, comdirecção às ilhas de Cabo-verde, por ser-lheimpossível também por falta de tempo, encor-porarse-lhe mais perto, de sorte que as dilaçõesapenas dependentes do mesmo tempo, que to-dos os dias esperançava a saída, erão mais peno-sas, até que a 14 de Janeiro aproveitou-se o seumelhoramento para darem à vela. (VARGAS,1947, p. 99-100)

O cronista espanhol tentou justificar a primazia da arma-da lusitana pelos fatores climáticos, no entanto, temos que, con-siderar que apesar de todo o esforço de Portugal, a força navalespanhola era muito mais poderosa, pois contava com as es-quadras do Estreito de Gilbratar, Biscaia, Quatro Vilas e Nápo-les, o que certamente contribuiu para seu atraso, pois levoumais tempo a ser concluída.46 Seja como for, a antecipação por-tuguesa parece estar relacionada a uma “questão de prestígio”,como afirmou Boxer (BOXER, 1973, p. 75), pois sinalizava oempenho do reino menor. Em todo caso, creio que temos queconsiderar também que pela decisão da administração filipina,a armada conjunta possuía uma hierarquia, segundo a qual,acima de todos, no comando, estava D. Fadrique de Toledo; nafalta deste assumiria o comando outro espanhol, D. Juan Fajar-do. Só na ausência dos dois primeiros o general português assu-miria o comando das operações. Desse modo, antecipar-se àarmada hispânica teria sido a maneira que D. Manuel de Me-nezes encontrou para mostrar aos espanhóis a competência lusa.

46 Nenhum dos relatos a que tive acesso especifica o nome de cada uma dasquatro vilas, sabemos apenas se tratar de vilas castelhanas. VerVARGAS, 1947, p. 100.

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Independente das razões que motivaram a pressa de Por-tugal, o fato é que a Armada portuguesa teve que esperar cercade 52 dias pelos espanhóis. Durante esse tempo enfrentou asvicissitudes do mar, perdendo um dos galeões, que naufragoucausando prejuízos materiais e comprometimento dos recursoshumanos, pois vários homens morreram em decorrência dasfebres. Finalmente, em 12 e fevereiro de 1625, a Armada daEspanha chegou a Cabo Verde e puderam seguir viagem rumoà Bahia, mas não sem as já mencionadas querelas entre portu-gueses e espanhóis. Esses últimos, sabemos por meio de seucronista oficial, continuaram a menosprezar a força lusa, afir-mando que navegaram rumo à Bahia numa velocidade menorque aquela que poderiam imprimir, pois a armada portuguesaenfrentava dificuldade em segui-los (VARGAS, 1947, p. 125).

Não obstante a queixa dos espanhóis, em 29 de março de1625, véspera do domingo de páscoa, a força naval luso-espa-nhola chegou à Bahia. Teria sido a maior armada que atraves-sara o Atlântico até então. Sua força estava disposta da seguintemaneira (ver tabela à página seguinte):

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Os holandeses que ocupavam Salvador, ao avistarem as 52embarcações, tiveram dúvidas a respeito de sua origem: seriamespanholas ou holandesas? Aldemburgk relata que nem com oauxílio de óculos de alcance conseguiram esclarecer a dúvida.Só posteriormente, com o retorno do navio holandês que faziaa vigília da entrada da baía de Todos os Santos ao porto, osinvasores tiveram a confirmação de que se tratava da armadade socorro luso-espanhola. À tarde, com o cair do sol, os ho-landeses visualizaram com nitidez a força que chegava da Eu-ropa. Nas palavras de Aldemburgk, “surgiu, a todo o pano, aarmada espanhola por trás do Forte de Santo Antônio, ondehavia desembarcado gente, distribuiu-se em forma de meia-lua através da baía de Todos os Santos e lançou ferros de talmodo que da nossa parte nem um cão poderia escapar” (AL-DEMBURGK, 1961, p. 201-202).

A chegada da armada restauradora estragou a Páscoa dosholandeses, que tiveram de abandonar os preparativos da festapara trabalharem noite e dia no intuito de se defenderem dosataques que se avizinhavam. No mar, os navios foram coloca-dos o mais próximo possível da ribeira. Em terra, foram levan-tados parapeitos, paliçadas, trincheiras, etc., numa clara de-monstração de que a urbis, mesmo com os trabalhos defortificação promovidos pelos holandeses durante a ocupação– descritos no capítulo anterior – não estava apta a resistir con-tra tamanha força. Ademais, é preciso lembrar que as forçasholandesas estavam desorganizadas, seja pela ação dos colonosque resistiam e impunham baixas ao exército invasor, seja pelopróprio erro de cálculo dos holandeses, que enviaram navios etropas para a África, ou mesmo pela relativa incompetência docomando holandês. Nesse sentido, podemos imaginar o pavorque a armada luso-espanhola causou aos holandeses.

Pavor de um lado, festa do outro. Segundo Vieira, apóstantas orações, penitências, ladainhas e procissões rogando a

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Deus misericórdia, os céus atenderam aos pedidos dos colonosportugueses, trazendo, “no dia da redenção do mundo”, a re-denção dos habitantes da Bahia (VIEIRA, 1955, p. 181-182). Ojesuíta não poderia deixar de registrar a chegada da armadasem relacioná-la com as questões religiosas, tão ao seu estilo.Além do mais, aproveitava para dizer aos seus superiores queos padres não desanimaram em momento algum – pelo contrá-rio, diante de tantas vicissitudes, colaboraram da maneira quepodiam, incentivando as pessoas com orações.

Frei Vicente do Salvador, que ainda continuava prisionei-ro dos holandeses, narrou que quando da chegada dos luso-espanhóis, os invasores aproximaram suas embarcações o má-ximo que puderam das fortalezas e afundaram três dos naviosmercantes que aprisionaram durante o tempo que ocuparam acidade. A intenção era que essas embarcações freassem o avan-ço dos navios pertencentes à armada ibérica –relato que corro-bora a versão de Aldemburgk. Aliás, não só sobre os aspectosacima descritos os relatos convergem, também no que diz res-peito às primeiras ações da armada e reações dos holandeses, oscronistas seiscentistas concordam. Segundo esses cronistas, ahistória da presença holandesa na Bahia, após a chegada da ar-mada luso-espanhola, seguiu mais ou menos o seguinte itine-rário: desembarque das forças ibéricas para reconhecimento doterritório e montagem de postos estratégicos para atacar os in-vasores; ataque surpresa dos holandeses às tropas luso-espa-nholas que se encontravam repousando em São Bento; deser-ção de alguns ingleses e franceses que estavam entre osholandeses; o levante dos soldados holandeses contra o coman-dante das tropas; e, finalmente, a rendição dos invasores a 30de abril de 1625.

Segundo Antônio Vieira, os luso-espanhóis desembarca-ram sem problemas, pois afora a cidade, os portugueses “tinhamtudo por seu” (Id., ibid.). As palavras do jesuíta vêm a confir-

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mar o que aventei no capítulo anterior acerca do período daresistência: tiveram uma

[...] atuação extremamente positiva, sem a qualos trabalhos da jornada restauradora teriam sidomuito maiores, senão impossíveis, pois poucodepois de restaurada a capital colonial, a frotade socorro holandesa chegou à Bahia, porém jáera tarde demais, só lhes restou, bater em reti-rada. (VIEIRA, 1955, p. 183)

Desembarcados em segurança, as primeiras ações ibéricasforam avaliar as condições de defesa e ataque dos inimigos eescolher os locais onde estalariam suas tropas para dar combateaos holandeses. Após o reconhecimento do território, foramdefinidos cinco locais de onde deveriam partir os ataques:

• O quartel do Carmo, comandado por D. Fadrique deToledo. Nesse local ficaram parte dos soldados da com-panhia comandada pelo português Antonio Moniz Bar-reto e da companhia composta por soldados castelhanos,comandada por D. João de Orelhana.

• Ainda com pessoas das duas companhias citadas acimase formou uma segunda bateria no Sítio das Palmeirasque, ao que tudo indica, ficava em frente aos muros dacidade, mais precisamente defronte ao dique construídopelos holandeses.

• O terceiro posto de combate, cuja localização não ficoumuito clara, (ao que indica frei Vicente, estava um pou-co adiantado ao de D. Fadrique, muito próxima da cida-de, “fronteiriça ao colégio dos padres da Companhia”)

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esteve a cargo de D. Francisco de Moura, até então go-vernador da Bahia, que comandava 1400 portugueses e400 índios aos quais somaram-se 200 soldados levadosde Pernambuco por Jerônimo Cavalcanti de Albuquer-que.

• O quarto ponto foi estabelecido em São Bento, onde sealojaram três companhias, uma de portugueses coman-dada pelo Almirante da Armada lusitana, D. Franciscode Almeida, uma companhia de castelhanos comandadapelo mestre de campo D. Pedro Osório e uma terceira,composta por soldados italianos comandados pelo mes-tre de campo Carlo Caracciolo, o marquês de Torerecu-sa.

• O quinto e último ponto, considerado bastante ofensivopor causar grandes danos ao inimigo, era pela parte damarinha, no qual os homens de D. Manuel de Menezes,general da Armada de Portugal, armaram três platafor-mas e bombardearam seis embarcações que estavam sobo domínio holandês. A atuação desse general tambémfoi fundamental por facilitar o transporte de artilharia,munições e alimentos aos “quartéis”.47

Sobre o posto comandado por D. Francisco de Moura, cha-ma atenção a descrição que dele fez o franciscano Salvador,considerando-o como uma bateria muito arriscada, “donde osholandeses batiam com seis peças, e de parte a parte se faziamuito dano” (SALVADOR, 1982, p. 399). O que teria concor-rido para essa bateria ficar a cargo dos que já se encontravam

47 Conforme o relato de GUERREIRO, 1966, p. 71 e SALVADOR, 1982, p.397-399.

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na Bahia? Teria pesado a experiência do período de resistência,ou simplesmente, por uma questão hierárquica foram coloca-dos na vanguarda do pelotão de D. Fadrique, tendo sido utili-zados ao mesmo tempo como escudo e abre-alas das tropas docomandante maior? Qualquer afirmação será mera suposiçãovisto que os relatos não dão maiores informações sobre estaguarnição.

Voltando aos preparativos, as tropas que ficaram respon-sáveis pelo posto de São Bento foram surpreendidas pelos ho-landeses que, aproveitando um descuido dos soldados entrin-cheirados, saíram da cidade e atacaram os espanhóis que seencontravam no local. O saldo desse ataque para os luso-espa-nhóis foi grande quantidade de mortos e feridos. Do lado dosholandeses as informações são escassas e desencontradas, mascertamente o resultado foi bem mais positivo do que aqueleobtido pelos restauradores. Em verdade, o episódio parece tersido uma emboscada preparada pelos holandeses – teriam apren-dido com os colonos? – para os soldados da armada. SegundoVieira, os soldados da armada que se dirigiram para São Bentofizeram pouco caso dos holandeses por perceberem que esta-vam em muito maior número. Entretanto, narra o jesuíta:

[...] não advertindo que o inimigo quanto maisdesprezado mais ousado, [...] começaram a sealojar nas casas de S. Bento, desarmados e comoquem estava em sua casa, descansando do tra-balho que tiveram em andar uma légua até aque-le posto.

Vendo os da cidade o inimigo, botaram umamanga de duzentos ou trezentos arcabuzeiros, quede repente os acometeram, estando descuidadosde tal ousadia; saiu logo cada um com as armasque a pressa lhe ofereceu, e investiram os mais

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com piques. Os inimigos disparando os arcabu-zes, se iam retirando para a porta da cidade, e osnossos, e os nossos seguindo-os; mas, tanto queos descobriu a artilharia da porta, recolhendo-seem salvo os holandeses, deram fogo a umas peçasque, espalhando um chuveiro de balas, pregos eferro miúdo, fizeram grande estrago em muitossoldados e alguns soldados castelhanos de muitaimportância e valor na guerra. (VIEIRA, 1955, p.182-183)

A documentação diverge quanto ao número de espanhóismortos em decorrência da batalha. Aldemburgk fala em algunscentos, Frei Vicente do Salvador contou mais de oitenta, umarelação anônima apontou quarenta (Restauração da Cidade doSalvador, p. 102-103). Seja como for, a verdade é que essa in-vestida dos holandeses, primeira e última depois da chegada daarmada, consternou os luso-espanhóis que lamentaram a mor-te de muitos nobres. Não obstante Vieira ter atribuído o desas-tre ao descuido dos soldados que menosprezaram seus rivais,provavelmente os homens que para ali se dirigiram estavamexaustos depois da travessia do Atlântico e do transporte dematerial para guarnecer aquele posto. Nesse sentido, os espa-nhóis tomaram a mesma decisão que os holandeses quando dainvasão da cidade, pararam para descansar no mosteiro de SãoBento, próximo à entrada da cidadela, para na sequência atacá-la. Porém, os holandeses não repetiram o gesto dos colonosportugueses, ao contrário, precipitaram-se sobre a guarniçãodispersa.

Após esse episódio, os holandeses confinaram-se na cidadee passaram a se defender dos intensos ataques luso-espanhóis,que obrigavam os invasores a trabalharem incessantementepara reparar os estragos que a artilharia restauradora promovia.

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Segundo frei Vicente, os holandeses passavam a noite tapandocom sacos de terra os buracos feitos no muro pelos ibéricos.Aldemburgk, por sua vez, registrou que os ataques obrigavamos holandeses a repararem as trincheiras, parapeitos e bateriassem pausas, chegando um momento em que “mercadores, cai-xeiros e assistentes passaram a costurar sacos, que cinquentahomens para isso escalados, enchiam de terra, a fim de comeles taparem as brechas” (SALVADOR, 1982, p. 396).

Por mais de vinte dias os holandeses enfrentaram os ata-ques da Armada e, em meio a esses acontecimentos, os luso-espanhóis tiveram notícias de que junto aos inimigos havia in-gleses e alemães que desejavam desertar, alegando que osholandeses os trouxeram enganados para a Bahia. Os espanhóistambém receberam informações de um francês que os inglesese franceses que estavam do lado dos holandeses estavam pres-tes a se rebelar, pois os holandeses se fortificavam, enquantoeles se expunham ao perigo. Em relação a esses franceses, sónos momentos finais, já rendidos, os holandeses tomaram co-nhecimento de que muitos deles haviam se passado para o ladooposto e continuaram entre eles com o objetivo de levaremnotícias ao acampamento adversário. Portanto, os espanhóisestavam mais informados do que acontecia na urbis do quepoderiam supor os invasores. Há notícias também de que umalemão se passou para o lado dos espanhóis e teria informadoque os holandeses haviam enforcado um francês e um portu-guês por suspeitarem que desejavam se passar para o outro lado(Restauração da Cidade do Salvador, p. 105 e 214). Vejamos oque narrou Aldemburgk sobre esses episódios:

Durante esse aperto, um inglês, [...] tomado pelodesespêro, bandeou-se para o lado dos espanhóis;o mesmo praticou, [...] um francês; dois cama-radas deles, um francês e um português, foram,

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ao anoitecer, conduzidos à casa-forte do capi-tão, e, como por bem nada quisessem confessar,postos a tratos declararam que pretendiam dei-tar fogo à pólvora, junto da guarda do pé da es-tacada, e bem assim entregar aos espanhóis aguarda da ribeira junto à trincheira de madeira.Por isso, foram ambos, de noite, castigados coma forca. (ALDEMBURGK, 1961, p. 206-207)

É evidente que essas pessoas se apavoraram com a chega-da da Armada e, ao se verem diariamente alvejadas pelo fogoda artilharia luso-espanhola, já debilitados pelas ações anterio-res da resistência, buscaram salvar a própria pele, apelando paraa clemência dos portugueses e espanhóis ao usar o argumentode que foram enganados pelos holandeses.

A divisão e o desespero do lado holandês não se fazia no-tar apenas entre ingleses, franceses e portugueses. Os ataquesda Armada alteravam também os ânimos dos próprios invaso-res que ficaram atônitos com uma ordem inusitada do coronelArnt Schouten:

[proibiu] sob pena corporal, que os nossos con-tinuassem a escaramuçar, e que os candesta-bres(?) de nenhum modo disparassem suas pe-ças contra os espanhóis, e também que ocupás-semos novas obras avançadas; para escarmentodos que pretendessem infringir essa proibição,resolveu estatuir um exemplo. (Idem, p. 208)

Ao que parece, o coronel reconheceu a derrota e tomouuma decisão sensata diante do poderio luso-espanhol. Entre-tanto, se essa suposição for correta, o coronel esqueceu de co-municar a decisão aos soldados, que não interpretaram dessa

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forma, pois, enxergaram no coronel um traidor que deveria serdeposto e castigado, como o fizeram, utilizando-se inclusive deviolência física, derrubando-o a golpes de mosquetes. A reaçãodos soldados também se estendeu àqueles que eles entendiamcomo cúmplices do coronel – os membros do Conselho Secreto– prendendo-os e saqueando suas mancebas em cuja casa o co-ronel havia colocado uma sentinela. Com isso, os soldados con-seguiram a nomeação de um outro coronel e a continuidade dadefesa holandesa aos ataques da Armada (ALDEMBURGK,1961, p. 208). Entretanto, enfraquecidos que estavam, os ho-landeses não conseguiram sustentar por muito tempo a cidade.Menor poder militar, deserções, insubordinação das tropas,enfim, tudo conspirava contra os holandeses que àquela alturaoravam pela chegada do socorro holandês. Como este só che-garia tarde demais, restou aos holandeses a rendição.

A rendição dos holandeses apresenta uma relevante dis-cordância entre o relato de Aldemburgk e os demais relatosseiscentistas. Vale a pena conferir. Conforme o relato de Al-demburgk, havia por parte dos holandeses a decisão de luta-rem até o último momento, quando se retirariam para um pai-ol com centenas de tonéis de pólvora e, se vencidos, lançariam“em nome de Deus, fogo á pólvora e voaríamos todos pelosares” (Idem, p. 210). Segundo esse cronista, os holandeses de-sejavam que os espanhóis tomassem de assalto a cidade, poisestavam certos de que ao se verem obrigados a lutar casa a casa,os espanhóis estariam em desvantagem. Ainda de acordo como relato de Aldemburgk, as propostas de rendição que os espa-nhóis fizeram ao inimigo teriam frustrado as expectativas dosholandeses de darem cabo dos hispânicos durante um possívelassalto a cidade. Acompanhemos a narrativa:

[o exército espanhol marchou] para um e outrolado, de sorte que nutrimos grande esperança de

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irem os sitiantes nos dar terrível assalto; continu-amos, por isso, a atirar-lhes com a artilharia emosquetaria.

Entretanto, saiu toda a gente das baterias etrincheiras em volta da cidade, saudou-nos ama-velmente e fez, com chapéus e toalhas, sinais dequerer parlamentar, vindo à cidade o tambor doregimento espanhol, ao encontro do qual envia-mos nosso tambor-mor [...] Logo se nos apresen-taram para parlamentar um mestre-de-campo [...]e um tenente-coronel dos espanhóis, os quaistrouxemos vendados à cidade. (ALDEMBURGK,1961, p. 210)

A descrição chega a ser cômica. Nem com muita boa vonta-de podemos imaginar portugueses e espanhóis (principalmenteesses últimos), que atravessaram o Atlântico para demonstrarsua força ao mundo, acenando amavelmente para os holande-ses. Nem mesmo o diretor da WIC Laet acreditou nas versõesque os holandeses deram da rendição da Bahia. De maneirageral, o relato de Laet concorda com o que escreveram portu-gueses e espanhóis. A saber, que os holandeses enviaram umemissário aos espanhóis portando uma carta do coronel Kiff:

Nós, o coronel e mais oficiais do conselho destacidade de São Salvador, havendo sabido que vos-sa excelência requerera um dos nossos tamborespara propor negociação, mandamos o portadordesta para o fim de saber quais são as intençõesde V. Exc., e fiamos de V. Exc. Que, segundos osusos da guerra, nô-lo restituirá. (Carta do coro-nel Ernste Kiff a D. Fadrique Toledo em 28 deabril de 1625. Apud. LAET, 2001, p. 127)

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Ninguém das tropas luso-espanholas havia requerido ho-landês algum. À exceção de Aldemburgk, todos os outros cro-nistas entenderam que tal atitude não passou de um teatro dosinvasores a fim de se renderem honrosamente. E, ao que tudoleva a crer, os comandantes da armada restauradora tambémperceberam que se tratava de uma estratégia do inimigo e res-ponderam da seguinte forma: “daquele exercito nenhúma cha-mada havia-se feito, porem que se os sitiados, segundo os uzosem taes caos (casos ?), tinhão que diser-lhe, como não fossecontra o serviço de S. Magestade, ouvil-os-ia com cortezia”(VARGAS, 1947, p. 168).

A resposta de D. Fadrique, demonstrando intenção de ne-gociar, era o sinal que os holandeses esperavam para acordarcom o referido general a rendição holandesa. Entre os dias 28 e30 de abril, aconteceram várias reuniões por parte dos dois la-dos, cada um apresentando suas intenções por meio de cartas.Após os primeiros contatos, que transcorreram da maneira aci-ma descrita, os holandeses entregaram a D. Fadrique, ainda nodia 28 de abril, uma segunda carta avisando da decisão de serederem, bem como as condições em que desejavam fazê-lo, asaber, dentre outros: deixar a cidade em três semanas, temposuficiente para preparar os navios que os transportariam de voltaàs Províncias Unidas, levar consigo toda a artilharia e muni-ção, recolhimento das naus da armada luso-espanhola para de-trás do forte São Felipe, afim de que suas embarcações tivessempassagem livre, concessão para que levassem os bens conquis-tados ou saqueados durante a ocupação da cidade (Idem, p. 170).De maneira geral, os holandeses intencionavam retirar-se decabeça erguida e garantir algum lucro para as tropas, uma es-pécie de alento pelos onze meses de ocupação frustrada. Se nãoera possível assegurar lucros à WIC, ao menos individualmen-te aquela empreitada deveria trazer algum benefício.

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No dia seguinte, 29 de abril, D. Fadrique respondeu queera impossível atender os referidos pedidos e tratou de deixarclaro que sua posição era muito superior, descrevendo toda aforça que estava em terra e nos navios, pronta para desembar-car. Nesse caso, o general espanhol sugeriu ao general holan-dês que aproveitasse a benevolência católica de deixá-lo re-tornar à Europa com vida (VARGAS, 1947, p. 172; LAET, 2001,p. 128).

Das exigências de D. Fadrique, os holandeses relutaramem aceitar sair da cidade desarmados, o que estendeu as nego-ciações por mais um dia quando, a 30 de abril, chegaram aspartes a um acordo que, entre outros pontos, estabelecia: a en-trega da cidade no mesmo estado em que se achava na data daassinatura do acordo com tudo que nela estivesse, a revista asoldados e quem mais saísse da cidade; garantia, por parte deD. Fadrique que nenhum soldado do exército luso-espanholafrontaria os holandeses; concessão de embarcações para queos invasores retornassem à sua terra; depois de embarcados, ossoldados receberiam armas necessárias para retornarem à Eu-ropa. Antes do embarque, só os capitães poderiam usar espadas(VARGAS, 1947, p. 176-177; LAET, 2001, p. 130).

Toda a negociação da rendição dos holandeses foi bastan-te tensa, o que exigiu muita sagacidade dos comandantes. Arelutância holandesa em entregar as armas provocou reaçõesentre os luso-espanhóis que, sentindo-se mais fortes, devemter pressionado o alto comando para prosseguir com as bata-lhas a fim de imprimir uma vitória histórica aos holandeses.Entretanto, a estratégia de resolver a disputa por meio da ne-gociação se mostrou bastante sensata e evitou a perda de mui-tas outras vidas. Nesse sentido, é possível que espanhóis e por-tugueses tenham feito essa opção em virtude dos riscos que umassalto a cidade ofereceria. Além disso, é preciso considerar queos luso-espanhóis possuíam informantes no interior das mura-

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lhas e que certamente conheciam o poder do arsenal de que osholandeses dispunham naquele momento.48

Acordada a rendição, os espanhóis foram os primeiros aentrar na cidade e, conforme denunciam diversas fontes, ossoldados responsáveis pela retomada de Salvador não vacila-ram em saquear o que restava nos escombros. De acordo comfrei Vicente do Salvador, os espanhóis repartiram “os despojosdas mercadorias e fazendas, que os holandeses haviam tomadoaos mercadores, pelos soldados da armada. [...] o que haviamdeixado os inimigos lhes levaram os amigos que vieram para ossocorrer e remediar” (SALVADOR, 1982, p. 411). O padre Bar-tolomeu Guerreiro aproveitou o incidente para valorizar o ca-ráter dos portugueses afirmando que “a milícia Portugueza, senão deu por achada de outros interesses, mais q(eu) do mesmoserviço de sua Magestade, honra e reputação da Coroa de Por-tugal” (GUERREIRO, 1966, p. 111). Já o cronista oficial da ar-mada espanhola, Tamoyo de Vargas, preferiu enfatizar, comoobrigava a sua função oficial, as providências tomadas pelo co-mando das tropas no sentido de acabar com as desordens. Se-gundo Vargas,

[...] crescia progressivamente o desconcerto, eserião mais funestos os seus resultados se o go-vernador Sanfeliche, depois de haver guarneci-do a casa do governador, e o collegio da compa-nhia, onde o inimigo havia guardado o que tinhade mais preciozo, não fosse immediatamente ao

48 Segundo frei Vicente, os holandeses entregaram quando da rendição,entre outras coisas, os seguintes armamentos: 216 peças de artilharia, 35pedreiros, 500 quintais de pólvora, balas, bombas, granadas e outrosartifícios de fogo em abundância, 1.568 mosquetes, 133 escopetas, etc.Cf. SALVADOR, 1982, p. 404.

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quartel do Carmo communicar o ocorrido ao ge-neral, pois que entrando a noite nada ficaria se-guro na cidade [...]. (VARGAS, 1947, 178-179)

O general teria ordenado, sob ameaça de pena de morte,que os soldados retornassem aos seus postos e autorizou os ofi-ciais a enforcar quem estivesse fora de suas companhias (Id.,ibid.). Isso é o que diz um relato oficial; na prática não sabemosaté que ponto a ordem do comandante foi seguida, se é que elarealmente existiu – afinal, por determinação do próprio Fadri-que Toledo, as tropas espanholas foram as primeiras a entrar nacidade recuperada. Porque essa primazia? Mais uma provoca-ção com a armada portuguesa ou havia outros interesses, comosugeriu o padre Bartolomeu Guerreiro? Talvez os dois.

Por seu turno, os holandeses aguardaram os preparativosdas embarcações que os conduziriam a Europa, assistindo to-das as comemorações que se fizeram pela retomada da Bahia,sendo também testemunhas da reação dos jesuítas, que

[...] fizeram vir da almiranta para terra uma bar-ca inteiramente carregada de quadros sacros emandaram açoitar e fustigar pelos frades os púl-pitos dos quais tinham pregado o sacerdote neer-landês, bem como desenterrar os cadáveres detodos os nossos para levá-los para fora das portas,deixando apenas de profanar o corpo do Sr. VANDORT, sobre cujo túmulo pendiam o seu escu-do, espada e esporas, debaixo de um manto develudo carmesim; e assim restabeleceram o cultode sua religião em S. Salvador, na Bahia de Todosos Santos”. (ALDEMBURGK, 1961, p. 213)

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Tomando por verdadeiras as palavras desse holandês, te-mos aí a demonstração do aspecto religioso da campanha derestauração da Bahia, ou seja, a mobilização em torno da ex-pulsão dos hereges e a restituição da hegemonia da fé católica.Esse aspecto foi lembrado, como não poderia deixar de sê-lo,pelo padre Gaspar Dascenção, da Ordem dos Pregadores, nosermão que fez na primeira missa após a rendição dos holande-ses, rezada a 5 de maio de 1625. O religioso refrescou a memó-ria dos fiéis, ali representados por generais e capitães da arma-da luso-espanhola, ressaltando que estavam ali comemorandoa vitória da fé católica sobre os hereges. Para isso, retomou osmotivos que haviam levado a população ibérica a atravessar ooceano para reaver a Bahia, colocando como aspecto central damotivação o valor da religião católica:

Como erão hereges os tiranos, o que principal-mente se sentio forão os agrauos de Deos, & desua Igreja santa: & como filhos fieis seus, logo seoffereceraõ todos à impresa de vir castigar estesagrauos, co guerra de fogo, & sangue, com tantavontade de offerecer a vida aos perigos da mor-te, pella honra de seu Deos, & seruiço de seuRey, como os obrigaua a pureza da fé em queviuião, & a fidelidade de coração, & animos quedevião a vassalos de tão catholico Rey; partirãotodos aos perigos da guerra, como se fossem aomais seguro da vida.”49

49 Sermam que pregou o padre frey Gaspar Dascenção da Ordem dosPregadores na Sé da Bahia de todos os Santos na cidade do Saluador. Naprimeira Missa que se disse, quando se derão as primeiras graças publi-cas, entrada a Cidade pela vitoria alcançada dos Olandeses a 5 de Mayode 1625. Impresso em Lisboa, 22 de Outubro de 1625.

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Para além das questões religiosas, característica marcantedo século XVII, e das argumentações de ordem patriótica, épossível notar através da documentação que interesses pessoaistambém compuseram o rol de motivações daqueles que se dis-puseram a vir para a Capital Colonial expulsar os holandeses.Após a restauração da Bahia, muitos voluntários que foram ci-tados pelos cronistas como verdadeiros heróis que contribuí-ram para a formação da armada com investimentos do própriobolso, aparecem na documentação dos arquivos espanhóis eportugueses pedindo mercês ao rei pelo serviço prestado à Co-roa. Assim, nomes como o do general da armada portuguesa,D. Manuel de Menezes, D. Affonso de Noronha (membro doConselho de Estado), D. Rodrigo Lobo, Ruy Barreto de Moura,entre outros, solicitaram ao rei algum tipo de favor por ter co-laborado na retomada da Bahia.50

Solicitações de benefícios reais foram uma constante naadministração ibérica. De acordo com Schwartz, era bastantecomum se recompensar com um cargo na burocracia estatalpessoas que prestavam algum serviço à Coroa (SCHWARTZ,1979, p. 57). O caso do padre João Roda Monteiro, que requisi-tava para si os benefícios que Francisco Pereira Vargas teriadireito por ter prestado serviços nas Armadas do Reino, é umindicativo da frequência desses recursos e demonstra a possibi-lidade de extensão dos benefícios reais a parentes distantes dequem realmente teria prestado serviços à Coroa. Os referidosbenefícios pertenciam por herança a Antonia Monteiro CorteReal, viúva de Francisco. Entretanto, Antonia renunciou aosbenefícios a que possuía de direito e o padre Roda Monteiro,seu sobrinho, solicitou-os para si. (Requerimento do Padre JoãoRoda Monteiro. AHU. Ls. 3-4, fl. 1)

50 Sobre as informações acerca da formação da armada ver GUERREIRO,1966 e SERRÃO, 1968, p. 199-202.

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Em 1624, segundo Roda Moneteiro, Francisco Vargas em-barcou numa armada enviada pela Coroa portuguesa para aju-dar nos combates aos holandeses que haviam ocupado a Bahia.Desembarcou na Torre de Garcia d’Avila, e marchou doze lé-guas, na condição de Capitão de Infantaria e da gente de guer-ra, até o Arraial (Salvador) onde se travavam as lutas com oinimigo. Lá chegando, permaneceu com sua companhia até arestauração da Cidade, tendo participado em todas as embos-cadas e encontros que houve com as tropas rivais. Ajudou naconstrução de trincheiras e fortificações e serviu na mais peri-gosa das frentes das batalhas, o quartel do Carmo.

A estratégia utilizada pelo padre Roda Monteiro para con-seguir os benefícios de Francisco foi listar, uma por uma, asarmadas em que o último embarcou, argumentando que o de-funto não recebeu em vida pelos serviços prestados, deixando aesposa “sem nenhum remedio por gasttar tudo o que tinha emserviço del mag(esta)de” (Idem. Ls. 64-5, fl. 3). Roda Monteirodescreveu com mais acuidade o empenho de Francisco na jor-nada da Bahia – certamente pela sua importância –, afirmandoinclusive que seu tio teria vindo para a Bahia na primeira ar-mada de socorro enviada por Portugal, informação que vai deencontro ao relato do padre Bartolomeu Guerreiro, no qual onome de Francisco Pereira Vargas só aparece na segunda ar-mada enviada pela Coroa (GUERREIRO, 1966, p. 33). ComoRoda Monteiro fez questão ainda de citar que Francisco per-maneceu na Bahia até sua restauração, é provável que o religi-oso estivesse valorizando a participação do tio na reconquistada Bahia para assim aumentar as possibilidades de receber oque requeria, o que, para seu alívio, aconteceu.

Se a solicitação de mercê à Coroa por pequenos serviçosera procedimento usual, a Jornada dos Vassalos propiciou umambiente muito frutífero para pedidos de benefícios. Dentre asvárias petições e requerimentos, eu gostaria de salientar o

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pedido do almirante Dom Francisco de Almeida (Requerimen-to do Almirante Dom Francisco Almeida. AHU.), que, diferen-te do padre Monteiro, solicitou benefícios antes mesmo de em-barcar para a Bahia. Dom Francisco de Almeida se encontravaem Madri, no ano de 1624, tentando provar que foi suspensoda Armada da Coroa de Portugal injustamente, e pleiteava re-ceber os atrasados dos dois anos durante os quais ficara afasta-do do cargo de almirante. Foi quando teve início a formação daJornada da Bahia e D. Francisco de Almeida deixou de lado acobrança de seus atrasados para embarcar na Jornada. Porém,argumentando ter muitas despesas, solicitou ao Rei que pagas-se um ano do seu soldo adiantado, lembrando que o mesmo jáhavia sido feito para D. Manuel de Menezes, o general da Ar-mada portuguesa.

Talvez D. Francisco tivesse perdido as esperanças de rece-ber seus atrasados e, sabendo do precedente de D. ManuelMenezes, tratou de pedir um adiantamento e seguir para a Bahia.A decisão foi acertada, pois Almeida acabou conseguindo oadiantamento do soldo. E mais ainda, consta do relato de Bar-tolomeu Guerreiro que Francisco de Almeida veio para a Bahiacomo Almirante e mestre de campo, ou seja, conseguiu tam-bém reaver seu cargo (GUERREIRO, 1966, p. 40). Segundo Jo-aquim Serrão, depois de restaurada a Bahia, D. Francisco deAlmeida obteve “sucessão” de duas comendas que já detinha(SERRÃO, 1968, p. 201).

Pedidos de mercê à parte, a retomada de Salvador por par-te dos luso-espanhóis foi motivo de grandes comemorações tan-to na Bahia de Todos os Santos como nos países ibéricos e tevesignificado especial para os espanhóis que conseguiram derro-tar os holandeses na América. Agora que já conhecemos ospormenores dessa jornada, vejamos um trecho de uma peça quenarra sucintamente o episódio da presença holandesa na Bahia,com ênfase na vitória ibérica. Trata-se de uma cena do 3º ato

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da peça intitulada La Perdida Y Restauración de La Bahia deTodos Los Santos, de autoria de Juan Antonio Correa, portuguêsde biografia um tanto quanto duvidosa.

FAMA: Solte-me, Espanha!ESPANHA: Não solto, até que me digas,

Fama, para onde vais.FAMA: Se me obrigas pela força, não direi.ESPANHA: E queres passar por mim, tão ale-

gre e tão ligeira, sem me dizer, boa amiga, quala causa disso tudo?

FAMA: Fica atenta.Já sabes, Espanha ilustre, como Maurício, da

Holanda, despachou contra o Brasil, em segredo,forte armada.

O vento foi favorável e tomou nas suas asasaquelas tôrres portáteis feitas aladas esquadras.Um dia, - quem pensaria? – pois nunca são asdesgraças que sucedem aos mortais previstas ouesperadas, - aportaram à Bahia, onde os de cá to-mam armas pondo toda diligência em evitar-lhesa entrada.

À frente, o Governador mais o filho se desta-cam; Como, porém, do inimigo as fôrças se avan-tajavam, seu valor não aproveita e, depois de milfaçanhas, presos os dois num navio o General osdespacha a dar a nova a Maurício entre a genteque lhe manda.

Em seguida, também eu, batendo as velozesasas, levei a nova ao teu Rei Felipe Quarto deEspanha. E aquele que as quatro partes do mun-do governa e guarda sente a ofensa feita a Deus,prepara gente à vingança.

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Apronta a armada que sabes...E a quem deste tua Armada? Ao castelhano

valor, que é digno de eterna fama: Dom Fadriquede Toledo, general de tua esquadra. Dom JoãoFajardo, almirante, vem nessa força galharda,em que o Marquês de Coprani Mestre de Cam-po assinalas.

O Reino de Portugal não se descuida, - que ascausas de seu Rei são causas suas, - e assim juntaforte armada. A Dom Manuel de Menezes, porseu valor, é confiada e a tão valente soldado o reibem pôde confiá-la. Almirante é Dom Franciscode Almeida, de cuja espada, pelo Antártico e peloÁrtico, conhece o mundo as façanhas. A Antô-nio Muniz Barreto Mestre de Campo destacam,que é pessoa em que concorrem discreção, pru-dência e armas. Aqui já sabes, também, que porsoldados embarcam os mais ilustres e nobres, bra-vo amor, coragem brava: Dom Alonso de Noro-nha com sua idade avançada se assenta como sol-dado, ouvindo ao rei a chamada. Teles, Manri-ques, Gusmões, Toledos, Osórios, Vargas, os Pi-mentéis e os Mendonças, [...] condes, marqueses,senhores, como tu sabes, Espanha.

Assim, todos embarcados, as velas aladas, lar-gam e, entre montanhas de espuma, do mar doNorte ao Sul passam. Chegam por fim à Bahia,depois de longa jornada, com façanhas valorosasque gravei nas minhas asas, para tê-las pelo mun-do, entre as nações publicadas.

Por isso não me detenho e te digo: Adeus,Espanha. Ao teu rei, eles serviram: Vou cantarsuas façanhas. (CORREA, p. 130-133)

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Encontrada na Biblioteca Nacional de Madrid, existemmais dúvidas do que certezas acerca da referida peça. De acor-do com J. Carlos Lisboa, se desconhece se foi encenada algumavez. De seu autor, sabe-se pouco: era português e talvez tenhaparticipado da jornada restauradora. E sobre o ano de sua com-posição, Lisboa apenas afirma que foi escrita antes de 1670, semexplicar o motivo desta data limite. Entretanto, se considerar-mos as palavras do próprio tradutor acerca do efeito positivodas peças de teatro para divulgar os fatos nacionais na Espanha,é provável que a peça pertença aos anos imediatamente poste-riores à retomada de Salvador, se não ao mesmo ano.51 Inde-pendente do ano em que foi escrita, a peça reforça as intençõesde alardear a vitória da Espanha e a satisfação pelo êxito daJornada dos Vassalos com a retomada da Bahia. No entanto,insisto em ressaltar que o grande sucesso atribuído as suas açõesna reconquista da cidade de Salvador deve levar em considera-ção que a resistência dos colonos antes da chegada da Armadaenfraqueceu os holandeses, facilitando aos espanhóis e portu-gueses o êxito nos combates. Todas as emboscadas que acaba-ram sitiando os holandeses na cidade serviram para fragilizaros invasores, portanto, por vários meses a resistência barrou oavanço do inimigo. Enquanto Portugal e Espanha preparavamsuas armadas, colonos portugueses, índios e negros tiverampapel fundamental na desarticulação da investida holandesa eprepararam o terreno para as ações finais da Armada que deramcabo do inimigo. E mesmo depois da chegada dos luso-espa-

51 Sobre os resultados das peças na divulgação dos acontecimentos, Lisboaafirmou: “A peça em si valia mais que essas Relações [os relatos dos cro-nistas] todas, pois possuía a virtude de caminhar direto para o povo, oseu público, pondo à vista dele, (mesmo dos analfabetos, que não leriamtais Relações e que eram legião) em pé, em ação, as figuras de proa dafaçanha, animando no palco os capitães ilustres cujos nomes corriam deboca em boca”. Apud CORREA, 1961, p. XVI.

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nhóis, os colonos continuaram firmes no propósito de expul-sar os holandeses. Segundo Antônio Vieira, os padres envia-ram os índios dos aldeamentos e também os escravos dos pa-dres (que a essa altura eram poucos em função da grandequantidade dos que aderiram aos invasores em busca de li-berdade), para ajudarem a gente da armada no desembarqueda artilharia e para participarem ao cerco da cidade (VIEIRA,1955, p. 187-188).

Resta saber como teria ficado a cidade do Salvador quedurante onze meses foi submetida ao domínio holandês. Passe-mos às ações dos espanhóis no momento pós-restauração e àanálise do processo de reorganização da cidade após a expulsãodos holandeses.

3.2. Administrando o caos

A retomada da cidade não significava, obviamente, o retorno ànormalidade. Muitas medidas precisavam ser tomadas para quea capital colonial voltasse a ser o centro da América Portugue-sa. Na ausência de um governador-geral, a administração dacidade permaneceu sob a égide da administração militar atéagosto de 1625 (RUY, 1996, p. 117). Nesse tempo, sob o co-mando de D. Fadrique de Toledo, a administração buscou re-solver questões imediatas, como decidir o destino dos escravosencontrados em posse dos holandeses, e também procurou en-caminhar questões de maior alcance, como a guarnição e forti-ficação da capital após a partida da armada.

De acordo com os relatos seiscentistas, foram encontradoscerca de 600 negros entre os holandeses: alguns que fugiram deseus donos esperando, como afirmei acima, encontrar melhorescondições de vida, bem como muitos que foram aprisionadosainda nos navios que chegavam de Angola e foram apreendidos

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pelos holandeses. A administração espanhola julgou que deveriacastigar aqueles que se envolveram com os inimigos por vontadeprópria, condenando à morte seis deles que serviam como cabose capitão na companhia de negros referida no capítulo anterior.Os demais foram restituídos aos seus donos, estabelecendo-seum prazo para que as pessoas reclamassem por seus escravos;extrapolado o prazo, os cativos seriam vendidos em praça públi-ca, juntamente com aqueles apresados nas embarcações apreen-didas durante a ocupação (ver SALVADOR, 1982, p. 404 e 411;VARGAS, 1947, p. 181, 192; GUERREIRO, 1966, p. 112).

Chama atenção que a pena de morte resumiu-se a aproxi-madamente um por cento dos escravos encontrados, o que in-dica que essas punições tiveram caráter muito mais exemplardo que qualquer outra coisa. O mesmo acontecendo com qua-tro ou cinco portugueses acusados de traição, especialmentepor serem cristãos-novos. Ou seja, esses castigos objetivaramdemonstrar para a sociedade o que poderia acontecer a quemtraísse o rei. Nesse caso, também notamos o número reduzidode cristãos-novos punidos com a pena capital, pois os relatosfalam que cerca de 250 aderiram aos holandeses. Especialmen-te no que diz respeito aos cristãos-novos, acredito que a conde-nação esteve muito mais relacionada à busca de um bode expi-atório por parte dos espanhóis do que a uma punição oriundade julgamento criterioso.

Por um relatório produzido em 1632 pelo vigário da Sé deSalvador, Manuel Temudo, concluiu-se que os cristãos-novoscondenados à morte por Fadrique Toledo eram pobres e miserá-veis; os mais abastados foram protegidos pelo desembargadorAntão de Mesquita. Pergunta-se: por que um desembargadorcom prestígio na corte arriscaria sua reputação defendendo cris-tãos-novos acusados de conspirarem contra o próprio rei? Tal-vez por interesses financeiros, mas nesse caso restaria entenderporque o general espanhol, sedento por um culpado, puniu

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apenas cinco num universo maior que duas centenas (númerotambém questionável, pois certamente existiam nessa contaportugueses que não eram cristãos-novos)?

Parece-me que a resposta está na falta de provas contun-dentes contra os cristãos-novos enquanto um grupo homogê-neo, até porque não o eram. Nesse sentido, as punições deToledo teriam sido contra uma minoria desapadrinhada queefetivamente aderiu aos holandeses, mas que não pode seracusada de ter confabulado com eles para facilitar a invasãoda cidade, pois não representava de forma alguma o universodos cristãos-novos da capital colonial, mas que garantia à Es-panha retirar de si o peso da responsabilidade pela queda deSalvador.52 No que diz respeito à defesa de Salvador, Fadriquede Toledo e sua equipe se preocuparam em deixar a cidade se-gura o suficiente para se defender de qualquer ataque que porventura viesse a acontecer. Para tanto, ordenou o reparo dosfortes e da muralha da cidade e equipou-a com artilharia emunição. Percorreu todo o recôncavo e pontos de desembar-que pessoalmente a fim de recomendar o aumento da seguran-ça das fortificações ali existentes; para tanto, fez com que ospróprios soldados da armada, unidos às pessoas da região, des-sem início aos trabalhos (ver VARGAS, 1947, p. 191-192).

Para guarnecer a capital, D. Fadrique se reuniu com oshomens mais experientes de seu exército para decidir o núme-ro de soldados que deixaria na cidade. A princípio aventaram anecessidade de dois mil homens, retirados dos contingentes daarmada. Entretanto, o general ponderou que dois mil soldadosseria mais desserviço do que alívio para a terra, pois a situação

52 Inquérito realizado sob as ordens do Vigário da Sé do Salvador, ManuelTemudo, para averiguar quais os portugueses que durante a invasão ho-landesa da Bahia permaneceram com os inimigos. Apud NOVINSKY,1992, p. 74.

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da capital era caótica em função dos meses de ocupação e daslutas pela restauração da cidade. Nesse sentido, em 22 deJunho de 1625, D. Fadrique de Toledo registrou provisão esta-belecendo que:

Porquanto está resoluto, que convem para segu-rança, e defensa desta Cidade do Salvador, quepossuía o Hollandez rebelde, de quem a recupe-rei ficarem nelle de presídio mil Soldados Portu-guezes repartidos em dez companhias, a que senomearam Capitães [...]; mando ao Provedor-morda Fazenda de Sua Magestade desta Cidade, queora serve o dito Officio, e adiante o servir, e aosmais Officiaes da Fazenda Real seus superiores,ou Inferiores, a quem a execução desta minhaOrdem Possa pertencer, que façam lista das ditasdez Companhias, e do Sargento-mor Pedro Cor-rêa da Gama Governador dellas, sentando-lhesseus soldados pela forma, que se usa nos mais pre-sídios da Coroa de Portugal, e se lhes paguemseus soldos assim, e da maneira, que se costumafazer nas mais partes deste Estado... (Registro deProvisão que passou Dom Fadrique de ToledoOsorio... APEB )

A decisão de deixar mil soldados da armada portuguesaparece ter levado em conta o fato da colônia ser possessão por-tuguesa, bem como, segundo Vargas, para evitar rivalidadesentre lusos e espanhóis (VARGAS, 1947, p. 191) Podemos con-siderar ainda um possível interesse espanhol em preservar suastropas para combaterem em outras partes. Atentando para asdificuldades que a capital enfrentava naquele momento, ponde-rou-se que mil homens seriam mais convenientes à realidade.

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De fato, a desorganização administrativa e fazendária dacidade era imensa, de maneira que já seria difícil reorganizar aurbis levando em consideração apenas sua população. Portan-to, não é difícil imaginar os apertos que passou a populaçãocom o acréscimo de um corpo militar considerável como o quedeixou D. Fadrique – ainda mais quando sabemos que a produ-ção açucareira do Recôncavo, lastro da economia da capital,estava proibida desde que D. Marcos assumira o comando daresistência. Para frei Vicente, o que restou na cidade após osaque dos holandeses e dos restauradores espanhóis foi con-sumido pelos mil soldados que Toledo deixara (SALVADOR,1982, p. 411).

Ainda sobre o corpo militar deixado por D. Fadrique, Var-gas informa que muitos dos capitães nomeados para comandaras companhias que permaneceram em Salvador eram membrosda armada luso-espanhola que se destacaram nas lutas pela res-tauração da Bahia e alguns homens da terra que demonstraramvalor e prestaram bons serviços ao rei. Segundo o cronista ofi-cial, o objetivo de entregar o comando de algumas companhiasa pessoas da terra era “para que com o premio destes se animas-sem os mais a imital-os no que se podesse offerecer” (VAR-GAS, 1947, p. 191). Conforme Vicente do Salvador, os capitãesescolhidos entre a gente da terra foram Francisco de Padilha,Manuel Gonçalves, Antonio de Moraes e Pero Mendes, todoscapitães das emboscadas ou assaltos no tempo da resistência(SALVADOR, 1982, p. 411). Infelizmente encontrei apenas trêsregistros de patentes de capitães de companhias, todos de pes-soas que serviam na armada restauradora, homens com largaexperiência em Flandres, África e outras partes do mundo.53

53 Sobre os registros de patentes dos capitães das referidas companhias verLivro Segundo [das] Provisões. Arquivo público do Estado da Bahia.Seção Colonial e Provincial – 255. Nele encontramos o registro (cont.)

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Registro de companhia entregue a morador da colônia, só en-contrei um, concedido em 12 de março de 1626 a Felipe deMoura de Albuquerque – que saíra de Pernambuco para acudira Bahia quando da ocupação holandesa – em substituição a Si-mão Leite d’Amaral (Patentes, Provisões e Alvarás, p. 15, 16).

Montadas essas companhias, era necessário um comandan-te responsável por todas elas. A escolha do nome para ocuparesse cargo deveria levar em consideração dois requisitos bási-cos para essa finalidade: prática e experiência militar. Assim,em 19 de junho de 1625, Fadrique de Toledo fez a opção pelosargento-mor Pedro Correa da Gama para assumir a função deGovernador da Gente da Guerra com um soldo mensal de 65escudos. Pedro Corrêa contava a seu favor 36 anos de serviço asua majestade, dentre os quais destacavam-se 24 anos servindoem Flandres na respectiva condição de soldado, alferes e capi-tão, cuja atuação havia-lhe rendido bastante experiência e pro-gressão na carreira militar. Sua boa atuação como sargento-mordo Terço da Armada de Portugal na recuperação de Salvadorcertamente contribuiu para sua indicação como comandantedas companhias que guardariam a cidade (Registro de patentedo sargento mor Pedro Correa da Gama. APEB.). No comando

53 (cont.) de patentes de três capitães de companhias: Francisco GuedesPinto, com 19 anos de serviços prestados a sua Majestade, cinco nas arma-das de Portugal, três em África e onze em Flandres como soldado, sargen-to e alferes, e naquele momento servia na Companhia de Dom Franciscod’Almeida, almirante da Armada de Portugal; Manuel Lopes, que estandoservindo a Coroa há 26 anos, primeiro na Armada do Mar Oceano, edepois nos Estados de Flandres, assumindo as funções de soldado e sar-gento, naquele ano de 1625 encontrava-se servindo de Alferes naCompanhia do Capitão Ruy Barreto de Moura na jornada do Brasil;Fernão Leite do Amaral, que prestava serviços à Sua Majestade há oitoanos, quatro nas Armadas de Portugal e os demais na Armada do Estreitode Gibraltar, servia naquele momento como ajudante do sargento-mordo Terço do Mestre de Campo Dom João de Orelhana na jornada do Brasil.

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geral, foi nomeado capitão-mor e governador da terra, D. Fran-cisco de Moura.

Dom Fadrique preocupou-se também com a preparaçãodas embarcações que levariam as tropas restauradoras de voltaa Europa. Segundo Tamoyo de Vargas, esses trabalhos foramdifíceis em função da carência de recursos, tanto em espéciequanto em produtos e materiais para o provimento do necessá-rio. Vargas lamentou que as dificuldades desfaziam todo o em-penho do general, descrito da seguinte forma:

[enviou] a Pernambuco o commissario ThomazAguirre em busca de farinha de trigo, azeite, ebiscoito, e á Boipeba, e outras partes por farinhade mandioca, fasendo um deposito de gado paracarne fresca e salgada, sem esquecer-se de tudoquanto a industria poderia lançar mão para estefim, bem que sempre com novos embaraços, poisnão tendo a terra nem recebendo de fora maisdo que pode consumir, erão sempre escassas asprovisões. Achava-se já velha, avariada e semsubstância a farinha de trigo, que existia remet-tida de Portugal; faltavão padeiros e fornos parao fabrico, e sendo por isso mais proveitosa a demandioca, chegou-se a reunir desoito mil no-vecentos e trinta e quatro alqueires deste gêne-ro, afora outros com os quaes todos, e encurta-das as rações prevenio-se tudo quanto respeita-va á provisão... (VARGAS, 1947, p. 192-193,grifo meu )

Não obstante as lamurias de Vargas quanto às dificuldadesdo general para aprestar a armada, a população da capital colo-nial certamente não sofreu menos em função dos preparativos

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da viagem de volta dos luso-espanhóis. Em tempo de tantasdificuldades, inclusive alimentar, como salienta o trecho des-tacado da citação, não deve ter sido nada fácil para a populaçãover alimentos que abasteceriam a cidade serem destinados parao provimento das embarcações. Era o ônus da restauração dacidade pesando sobre a população em geral, que certamente seviu oprimida diante da obrigação de partilhar o pouco que existiacom o abastecimento da armada que levaria de volta os restau-radores. Seja como for, a partida da armada, programada para25 de julho foi retardada por motivos climáticos e só ocorreu a2 de agosto.

As ações de D. Fadrique apenas principiaram as providênciasque a cidade necessitava para recuperar sua posição de cabeçado Brasil. Nas palavras de Affonso Ruy, Salvador após a expul-são dos holandeses era uma cidade “onde tudo era escombros,desolação e miséria” (RUY, 1996, p. 117). Na verdade, os admi-nistradores da capital possuíam uma árdua tarefa pela frente:reorganizar a capitania da Bahia, administrando o caos em queestavam imersos, abrigando um corpo de mil soldados “planta-dos” de uma só vez na cidade desestruturada e com a missão defortificar Salvador, resgatando o prestígio de centro da colônia.Nesse contexto, a Câmara Municipal teve atuação fundamen-tal na medida em que suas ações interagiam com os problemasdiários enfrentados pela população. Dessa maneira, as Atas daCâmara, contendo as vereanças daqueles dias conturbados, tor-naram-se fontes indispensáveis para entendermos a reorgani-zação da capital da América Portuguesa.

Os vereadores decidiram sobre várias questões: cobrançade impostos, fuga de escravos, tabelamento de preços, valoresdos fretes dos navios, etc. Logo a 9 de agosto de 1625, os mem-bros da Câmara reuniram-se para estabelecer os valores que osproprietários de escravos deveriam pagar aos capitães que res-gatassem escravos fugidos. Os valores variavam de acordo com

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o local onde o escravo fosse encontrado: quanto mais distante,maior o preço (Vereação de nove de Agosto iby ao sabbado. In:Documentos Históricos do Arquivo Municipal [daqui em di-ante DHAM], p. 4). Essa determinação é um indicativo de queos escravos não foram completamente controlados pelos res-tauradores e, aproveitando-se da confusão do momento, conti-nuavam a perambular em busca de sorte melhor.

Pela vereação de 27 de agosto de 1625, somos informadosque as posturas54 da Câmara haviam se perdido com a ocupaçãodos holandeses, bem como da necessidade de reproduzir umacópia que se encontrava em poder do escrivão da AlmotaçariaJoão Mendes Pacheco (Vereação de quarta feira vinte e settedias do mez de Agosto do anno de mil seis cento vinte e cinco.DHAM, p. 5). Nessa sessão os vereadores decidiram reeditar asposturas que precediam a ocupação dos holandeses. A ata dessasessão evidencia uma informação muito divulgada acerca dapresença holandesa na Bahia: os invasores destruíram os docu-mentos públicos e de instituições religiosas de Salvador. Entre-tanto, trata-se de uma questão muito delicada na medida emque observamos que a ausência desses documentos abriu dis-cussões acerca da posse de terras na capital colonial.

Teriam sido mesmo os invasores que destruíram os referi-dos documentos ou foram colonos interessados em tirar vanta-gem da confusão? Faltam provas que permitam responder a talquestão, porém, é verdade que a ausência de tais documentosgeraram situações um tanto quanto estranhas, como a dos ir-mãos da Santa Casa da Misericórdia, que se reuniram para sa-ber ao certo quem pertencia à irmandade, pois os documentos

54 Conjunto de leis que versavam sobre os mais variados aspectos damunicipalidade. Nas posturas de 1625, observa-se maior ênfase naregulamentação do comércio e limpeza pública.

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haviam sido queimados pelos holandeses. Não sabemos o re-sultado dessa reunião, mas independente de qual tenha sido, écurioso que numa instituição religiosa de uma Salvador aindaem formação, portanto com uma população não tão grande, osirmãos tivessem tal tipo de dúvida (Ver Livro primeiro de ter-mos de Irmão. [s.d.], fl. 1. ASCMB).

As querelas judiciais decorrentes do sumiço dos documen-tos duraram muito tempo. Em 1630, por exemplo, os benediti-nos procuravam assegurar seus direitos de favorecidos pelo tes-tamento de Manoel Nunes Paiva, entretanto, o documento “seperdera [...] com a entrada dos holandeses” (Livro velho doTombo..., p. 105). Já a família do tenente Salvador Vieira, queservia no forte de Santo Antônio e se refugiou no sertão porocasião da invasão holandesa, continuava sem solução para seusproblemas no ano de 1654. A família reclamava a posse de ses-marias no atual bairro da Barra, mas não faltou quem afirmasseque Salvador Vieira nunca possuiu sesmaria alguma (Idem, p.244-246). Diante da ausência de provas restam dúvidas: quan-tos reivindicaram terras que nunca possuíram?

Em meio a tais debates, a Câmara prosseguia suas ativida-des, sendo que a questão que passou a ter maior relevância di-zia respeito ao sustento das despesas da cidade, sempre superi-or à receita. Nesse aspecto observamos que a Coroa deixara oônus da reorganização para os colonos, que precisavam se des-dobrar para pagar os impostos ao rei, assumir prejuízos de or-dem particular ao mesmo tempo em que reordenavam a cida-de, e ainda precisavam arcar com as despesas das tropas quepermaneceram na Bahia.

Essa última questão representava uma das principais, se-não a principal, consequência da ocupação holandesa de 1624-25. Conforme destaquei no primeiro capítulo deste trabalho, adefesa da colônia sempre estivara sujeita à criatividade e im-provisação dos colonos, a Coroa só ordenava e recomendava que

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se executasse suas determinações da maneira que fosse possível.No período pós-ocupação, embora a Coroa continue sem maio-res investimentos na área defensiva, percebe-se uma mudançanesse aspecto, pois um corpo militar profissional fora deixadona colônia e deveria ter um soldo mensal a ser pago com a arreca-dação de impostos. Essa nova obrigação movimentou as sessõesdo Conselho Municipal, cujos vereadores se viram às voltas paraauferir recursos capazes de pagar os ordenados dos soldados dareferida companhia, ao mesmo tempo em que tentavam reorga-nizar a cidade por meio de medidas administrativas.

A fim de enfrentar esses efeitos desastrosos do pós-restau-ração, a Câmara tomou uma série de medidas visando o au-mento de receita. Desse modo, encontramos em dezembro de1625 um registro de provisão emitido pelo governador interi-no, D. Francisco de Moura, atendendo a um requerimento dosoficiais da Câmara e de outras autoridades coloniais em que seordenava:

[...] que se tomasse o dinheiro, que houvesse dosdireitos dos escravos de Angola [...] para sustentodo Presídio por não haver outra cousa, de que sepossa fazer, e se evitarem as desordens, que docontrário se podem seguir, e se acudir a tão gran-de necessidade, e de serviço de Sua Magestadepelas razões apontadas no dito assento. Hei porserviço de Sua Magestade, e por esta ordeno, emando em virtude do dito assento a Ventura deFrias Salazar Provedor-mor da Fazenda de SuaMagestade deste dito Estado, que logo, e comeffeito, e sem dilação alguma faça tomar todo odinheiro [...]poder dos direitos dos ditos escra-vos, e carregar em receita ao Thesoureiro Geraldas rendas de Sua Magestade para se despender

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no sustento do dito Presídio somente o que cum-prirá, e faça cumprir sem dúvida alguma, dandoas Ordens necessárias para o dito dinheiro se to-mar com a clareza, e distincção necessária demaneira, que sempre conste o que se lhe tomou,e se carregou para se dar conta a Sua Magestade”.(Registro de provisão de 23 de Dezembro de 1625.APEB)

Essa provisão foi a primeira referência oficial que encon-tramos acerca das dificuldades decorrentes das despesas com astropas de defesa deixadas por D. Fadrique de Toledo, referidasno documento como presídio. Ela evidencia as preocupaçõesque a administração colonial passou a ter no momento pós-restauração em função da defesa da cidade. A novidade agoraera que a Coroa não deixava a cargo da colônia a montagem detropas, isso já estava feito. O que os colonos precisavam naque-le contexto era sustentar a força defensiva composta não maispelos cerca de 160 homens do período anterior à invasão ho-landesa, mas, por mil soldados.

Em 1626, não sabemos em que mês, os oficiais da Câmara,imersos nas dificuldades financeiras, se dirigiram diretamenteao rei:

Vossa Magestade faça mercê aos moradores da-quela cidade [Salvador] e seu distrito que nãopaguem direito de seus produtos nestes primei-ros dous annos, visto perderem a meia safra deassucares do anno de 623 e toda a de 624 e muitaparte da de 1625, e visto terem a metade da casa-ria daquela cidade derribada e os que em pé fica-rão os soldados espanhóes não deixaram portanem fechadura e houve saque geral dado pelos

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ditos espanhóes e ficarão todos os moradores dacidade desbaratados de todos os seus bens e ha-vendo mister muita fazenda para reedificar suascasas e moveis de seu uso” (Representação dosoficiais da Câmara da cidade de Salvador, datadade 1626. In: Catálogo de Documentos, p. 1-39).

Por se tratar de uma representação encaminhada direta-mente ao monarca, talvez signifique que os vereadores já havi-am tentado obter a mercê desejada por outros canais e não con-seguiram o resultado esperado. Apesar da demonstração depreocupação com os moradores, é pouco provável que a Câma-ra estivesse apreensiva com detalhes como o mobiliário da po-pulação. Os vereadores estavam empenhados era em garantir asuspensão do pagamento de impostos que cabiam à Coroa paraaqueles que possuíam algum tipo de comércio, priorizando opagamento dos tributos municipais, buscando dessa forma re-ter na colônia todo o capital resultante do comércio e assimencaminhar o possível no sentido de administrar o caos resul-tante da ocupação holandesa. Entretanto, para pleitear tais ques-tões, os vereadores colocavam em primeiro plano as dificulda-des que a população enfrentava.

A situação era tão delicada que, segundo Affonso Ruy, di-ante da falta de navios, da redução de açúcar para exportaçãonos armazéns e consequentemente da crise que atingia o co-mércio colonial, a Câmara não mais esperou pelas demoradasresoluções reais e decretou moratória aos comerciantes que es-tavam em atraso com o fisco metropolitano (RUY, 1949, p. 153).Mas isso não resolvia os problemas da Câmara, que continuavacom dificuldades para sustentar os soldados do presídio, comodemonstra a vereação de 21 de fevereiro de 1626, em que osvereadores enviaram um requerimento ao governador D. Fran-cisco de Moura com o seguinte conteúdo:

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Os officiaes da Câmara desta Cidade do Salva-dor, que este anno de mil, seiscentos vinte e seisservimos como protetores do opremido, e amo-lestado povo com os novos tributos, que pagampara o prezidio desta terra, [...] fazemos saber aVossa Senhoria [...] a cuja ordem está o dito pre-zidio, seja justo e conveniente, que Vossa Senho-ria informe a Sua Magestade da impossibilidadedesta terra, cauzada dos grandes roubos que ne-lla fizerão os Inimigos, e rebeldes hollandezes,por honde se não pode sustentar guarnição algu-ma com os tributos injustamente postos, com osquaes se perdera necessário comercio desta Bahia[...]; se vai continuando com a cobrança das no-vas impozissoens, somentes consentidas por esteanno, que se acabará no fim de julho, que vem, epassado o dito tempo o não havemos de consen-tir, nem o povo o quer por nenhuma via, vistomiserável estado em que esta terra está, por ondetambém desta nossa rezolussão avizamos a SuaMagestade, para que como Católico Rey, e Se-nhor ponha nella os olhos da Sua Real Clemên-cia e quando o dito Senhor seja servido, que oprezidio assista lhes mande dar provimento àcusta da sua fazenda, para que nós não achemosdepois com mil homens, sem sustento para ellese assim esperamos, que Vossa Senhoria faça nes-te particular todas as advertências, que lhe con-vem ao serviço de Deos, e o de Sua Magestadeassim o requeremos, e protestamos a Vossa Se-nhoria com toda a efficacia de direito, e estamosrezollutos, que passado o ditto anno a lenvantar-mos as dittas impozissões, então nas conssentir-

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mos mais, antes desde agora as havemos por ale-vantadas, e assim o requeremos, e protestamos aVossa Senhoria [...]. (Traslado do mando do ter-mo de vereança de vinte e um de fevereiro de1626. DHAM, p. 24-25.)

Não se trata apenas de um pedido, mas, de uma resolução,ou melhor, de uma ameaça por parte dos vereadores, pois, semostraram decididos a suspender os impostos caso a cobrançanão fosse interrompida após o prazo determinado para sua vi-gência. Nota-se que não foi aventada a possibilidade do nãopagamento das taxas na vigência determinada, só no caso doprazo ser estendido. D. Francisco de Moura, ao tomar conheci-mento do requerimento, respondeu que nada podia fazer a nãoser avisar ao rei da decisão dos vereadores, coisa que alegou játer feito, mas que faria novamente (Id., ibid.)

Como provável resposta, Sua Majestade decidiu abolir oTribunal da Relação da Bahia a 31 de março de 1626, com oobjetivo de canalizar as verbas destes para a esfera militar. Se-gundo Stuart Schwartz, existia um debate antigo nos países ibé-ricos a respeito do avanço da burocracia. Conforme esse histo-riador, na metrópole e nas colônias portuguesas acumulavam-sequeixas de abusos dos magistrados e, na medida em que ata-ques estrangeiros proliferavam, provocando inúmeras derrotasaos exércitos lusos na Ásia e América, levantaram-se várias vozescontra atividades intelectuais sob a alegação de que nada pro-duziam. Sob a mira dessas vozes, os magistrados. Com a reali-dade nada alentadora da Bahia pós-restauração, aumentou ocoro que criticava a existência do Tribunal da Relação no Bra-sil, pois a carência de recursos exigia medidas urgentes. E nadamais apropriado a tempos tão difíceis do que cortar gastos comsalários e despesas extras que não eram essenciais para a defesado território. Desse modo, a extinção da Relação teria sido a

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parcela de contribuição da Coroa para amenizar a carência derecursos da colônia (cf. SCHWARTZ, 1979, cap. 10).

Entretanto, a migração das verbas da justiça para os mili-tares parece não ter sido suficiente, pois prosseguia a impaci-ência com a falta de recursos para a manutenção dos soldados ecom a consequente necessidade de continuar a cobrança deimpostos para essa finalidade. Desse modo, a Câmara, a 14 deagosto de 1626, por meio do Procurador do Conselho, PedroFerreira de Maya, solicitou aos oficiais daquela instituição quemandassem “chamar a gente do povo, para com elles trataremo como se havia de alevantar o tributo, e o modo porque sehavia de sostentar os soldados, enquanto não vinha o Governa-dor Geral” (Vereação aos quatorze de Agosto de mil, seis cen-tos e vinte e seis. DHAM, p. 47).

A denominação genérica de “gente do povo” não nos per-mite indicar com precisão qual o público que os vereadorespretendiam alcançar, certamente os comerciantes e produto-res que arcavam com as imposições sobre produtos como vinho,açúcar, algodão e fumo.55 O certo é que em 22 de agosto daque-le mesmo ano o chamado da Câmara foi atendido por mais decem pessoas que compareceram para discutir a situação dosimpostos que vinham sendo cobrados para o sustento das tropas– impostos estes cujo prazo determinado para a arrecadação já

55 De acordo com a vereação de 21 de fevereiro de 1626, era cobrado atéquatro vinténs por caixa de açúcar, um cruzado por rolo de fumo equatro vinténs por uma arroba de algodão. In. DHAM. Op. Cit, p. 26.Não obstante termos encontrado referências a apenas esses produtos,creio que a cobrança das imposições para sustentar o presídio seestendesse a diversos produtos que circulavam na capital baiana. No quese refere à expressão gente do povo, Boxer afirmou que se tratava dechefes de família abastados e respeitados e, em alguns casos representan-tes de corporações como ourives, armeiros, tanoeiros, pedreiros, etc. Cf.BOXER, 1969, p. 306.

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havia vencido um mês antes daquela discussão, mas que conti-nuaram sendo cobrados por todo o mês de agosto.

Quanto à ausência do governador mencionado na citação,tratava-se de Diogo Luiz de Oliveira, nomeado GovernadorGeral por Carta Régia desde 26 de fevereiro de 1625 para subs-tituir D. Francisco de Moura, que ocupara o cargo interina-mente. Porém, o novo Governador só chegou a Salvador emmeados de janeiro de 1627, tomando posse no dia 27 daquelemesmo mês (SERRÃO, 1968, p. 202-04). A demora de Oliveiraem chegar à Bahia certamente complicou ainda mais as difíceiscondições dos colonos, pois a cobrança dos impostos era esten-dida além do prazo previsto, sob a alegação de que se esperavaa chegada do novo governador para tomar outras providênciasem substituição à arrecadação dos impostos vigentes. Dessa for-ma, as expectativas em torno da chegada do novo representan-te da Coroa embalavam as esperanças de melhoria das condi-ções de vida da população. Entretanto, à medida que essachegada não se efetivava, desfaziam-se tais expectativas e oscolonos viam-se diante de situações que precisavam de resolu-ções urgentes. Esse foi o caso da mencionada reunião do dia 22de agosto de 1626, cujo objetivo era decidir o que fazer com oimposto já vencido e que continuava sendo cobrado. E já que ogovernador não chegava para tomar as devidas providências eo silencio do rei se fazia sentir, a Câmara, juntamente com osque foram chamados a decidir sobre o caso, concluíram que oimposto deveria ser suspenso, conforme haviam ameaçado emfevereiro de 1626.

Apesar da determinação de suspender a cobrança das im-posições, os presentes temiam a reação da tropa em caso defalta de pagamento. Nesse sentido, buscaram outra alternativaque não interrompesse o pagamento dos soldos da soldadesca.Decidiram então que toda a capitania deveria contribuir com ovalor referente a dois meses de arrecadação do dito imposto,

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ou seja, o equivalente a seiscentos mil reis, com a finalidade desustentar os soldados durante os meses de setembro e outubro.Essa contribuição seria dada na forma de empréstimo a ser pagopelo Governador Geral, que àquela altura já se encontrava emPernambuco (Assento, que se fez sobre o alavantamento dostributos com o povo chamado. DHAM, p. 48-50).

Em 7 de dezembro daquele mesmo ano, a Câmara voltavaa se reunir, tendo como pauta a continuidade da arrecadaçãodos impostos em benefício do presídio, visto que a decisão to-mada em agosto não fora cumprida. Coube, mais uma vez, aoProcurador do Conselho requerer a suspensão do imposto, ale-gando que o Governador Geral já se encontrava na Colônia,bem como, os prejuízos decorrentes da cobrança dos impostos,haja vista que navios (principalmente aqueles carregados comvinhos) que se dirigiam a Salvador, ao tomarem conhecimentoda cobrança dos referidos impostos, mudavam o rumo das suasnaus indo na direção de outras capitanias. Dessa vez a Câmarase esquivou de tomar qualquer decisão e propôs que se conti-nuasse arrecadando o imposto até a chegada do Governador.Entretanto, a reação dos que estavam presentes obrigou a Câ-mara a mudar de posição, pois, “sendo lido ao povo, que pre-zente estava se erguerão todos a grandes vozes, dizendo; quenão consentião em tal declaração, nem que o tributo se cobras-se mais de hoje em diante [...]” (Vereação de 7 de Dezembro de1626. DHAM, p. 57-60; RUY, 1949, p. 153-154). Naquele mo-mento, a população de Salvador demonstrava claramente que asituação a que vinha sendo submetida havia extrapolado todosos limites, a pressão exercida fez com que a Câmara enfim de-cidisse pela supressão do imposto.

Suspensos os impostos, a população não estava totalmentelivre da responsabilidade com os soldados. Em outubro de 1627,portanto já com a presença do Governador Geral em Salvador,a Câmara voltou a se reunir para decidir a construção de um

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quartel que deveria abrigar os referidos soldados, visto que jáhavia três anos que os mesmos estavam na cidade e ainda ocu-pavam as casas que lhes foram dadas no bairro de Nossa Senho-ra da Ajuda. Ora, foram casas de moradores, que desde a inva-são haviam sido obrigados a abandoná-las e não tiveram comoretornar no momento pós-restauração. Esses moradores cobra-vam providencias das autoridades, alegando que suas casas ha-viam sido tomadas e durante todo o tempo em que os soldadosocuparam os imóveis não lhes foram pagos nenhum aluguel(Auto que mandarão fazer os officiaes da Câmara em presençado senhor Governador Geral... DHAM, p. 137-9). Como se nãobastasse, foi colocado, durante a reunião mencionada, que apopulação não poderia se omitir diante dessa situação. Todosdeveriam ajudar a encontrar uma solução para a questão, pois,seria muito mais opressor se tivessem que tomar novas casasem outros locais para abrigar os soldados.

Diante disso, foi acordado sem unanimidade que deveri-am construir um quartel “onde paresser, que menos opressãofará dos muros adentro com satisfassão dos donos dos chaons; eque para o dito efeito herão contentes de contribuírem volun-tariamente, cada hum, com aquilo que poder, e quizer; [...]”(Acto da junta que se fez sobre se haver de fazer o quartel.DHAM, p. 776-7).

Essa ajuda voluntária, no entanto, não era tão espontâneaassim, e em 4 de dezembro de 1627 a população foi chamadanovamente a colaborar com a construção do quartel. A preo-cupação para que as obras tivessem inicio e não fossem inter-rompidas estava presente nas decisões do Conselho. Os verea-dores previam que os gastos com as obras que fossem sendorealizadas e os pagamentos dos trabalhadores seriam pagos deacordo com o que fosse cobrado. Ou seja, tudo o que os mora-dores prometeram, seria cobrado pelo procurador da cidadeAntonio Mendes, nomeado especialmente para essa “missão”

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conforme ata de 2 de novembro de 1627 (Assento que se fezsobre a pessoa, que há de cobrar o dinheiro das pessoas, queprometerão para o quartel. DHAM, p. 78-79). E no caso do quefoi prometido não ser suficiente para pagar as despesas com oquartel, ficava decretado pelo Governador que se usasse o ren-dimento do imposto do vinho.

Em novembro do ano de 1628, o governador recorreu aomencionado imposto, não para empregá-lo nas obras do quar-tel, mas, para pagar os soldos atrasados dos soldados. Para isso,proibiu toda e qualquer venda de vinhos que não fossem pro-venientes do estoque destinado à arrecadação da receita paraaquela finalidade:

[...] foi dito que o Senhor Governador Diogo Luizde Oliveira o mandara chamar ( ao Juiz AntonioCastanheira) ontem a sua casa e ao Procuradordo Conselho Domingos Fonseca Pinto e lhes dis-sera como elle não tinha dinheiro com que se-corressem aos Soldados que havia dias estavãopor pagar nem quem lho emprestasse nem outroremédio mais que valerçe de huma pipas de vi-nho que aos Contratador da impozissão haviãovindo da Ilha da madeira e que para se fazer de-llas dinheiro com abrevidade pedia hera neces-sário fazerse estanque nos mais vinhos para estespoderem ter vazão e porque o cazo hera precizonem havia outro remédio mandarão se fizesse odito estanque e se publicasse para que se não ven-desse outro vinho senão este para socorrer a ditanecessidade e isto para emquanto durarem se aspipas de vinho. (Auto sobre o estanque de vinho.DHAM, p. 111-12

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Chama a atenção nesse episódio o fato de que, segundoAfonso Ruy, o Governador Diogo Luiz de Oliveira ao encon-trar na Bahia todo o clima de insatisfação popular decorrentedos encargos para provimento dos soldados, teria concedidoauxílio direto do Tesouro para pagamento dos soldados. A ati-tude do Governador estaria relacionada ao desejo de amenizara dura situação da capital da colônia. No entanto, as boas in-tenções do governador não foram suficientes para sensibilizara chancelaria, que, imune aos dissabores da colônia se manteveem silencio demonstrando reprovação diante das ordens dogovernador. – restando a Diogo Luiz manter a arrecadação eaos colonos a continuidade das obrigações (ver RUY, 1949, p.156-58).

Em 8 de novembro de 1629, com o objetivo de decidiremsobre o local de construção do quartel para abrigar os soldados,os vereadores, mais uma vez, anunciaram medidas que deixa-vam a população em situação muito desconfortável. Foi o casode Manoel Mendes Moreira, um dos presentes na reunião quea Câmara realizou. Diante da decisão de desapropriar terrenosque lhes pareciam convenientes para a construção do quartel emelhor defesa da cidade, só restou a esse morador, dono de umdos referidos terrenos, manifestar seu protesto diante de tama-nha arbitrariedade quando o Conselho resolveu que “as pesso-as a quem pertencessem os ditos chãos requeressem avalia del-les, se parecesse a Sua Magestade para lhes mandar pagar” (Autoque mandarão fazer os officiais da Câmara... DHAM, p. 137-9).Certamente o descontentamento diante de situações como essanão atingia só os proprietários dos locais onde foram edificadasas casas destinadas aos soldados, todo o preço pago pela cons-trução do quartel ficou sob a responsabilidade da populaçãoque, com certeza, não tivera o mesmo sentimento que teve opedreiro Pedro Gonçalves de Mattos ao se declarar satisfeitocom o recebimento de trezentos e oitenta e sete mil, novecen-

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tos e vinte reis pelo pagamento dos seus serviços na construçãodo referido quartel (Quitação que deo Pedro Gonçalves de Mat-tos... DHAM, p. 139-40).

Em meio às providências que iam sendo tomadas pelas au-toridades, dois meses após a posse de Diogo Luis de Oliveira, acapital colonial foi surpreendida, em março de 1627, pelas em-barcações holandesas sob o comando do conhecido e temidoPieter Heyn. Os inimigos de Espanha novamente aprisiona-ram navios no Porto de Salvador e subtrairam-lhes as cargas detabaco, couro, algodão e açúcar. Heyn permaneceu na baía deTodos os Santos cerca de vinte e quatro dias, numa clara de-monstração de que os perigos da guerra com os holandeses ain-da rondavam a América Portuguesa.56 Diante dessa nova ame-aça, a Câmara tratou de convocar a população para a tomada deprovidencias necessárias àquelas circunstâncias:

[...] e despacharão algumas petições, e acordarão,que todo o Paderio fizesse pão de oito onças, e aovinho da Canária se venda conforme a bondadedelle, e que se passe mandado para os moradores,que tem rede, e saveiros, que pesquem, e fassãosalgas; e que visto a necessidade, que há enquan-to os Inimigos ocupam esta Cidade de pessoa, quefaça dilligencia sôbre os mantimentos, que vem aella, e que há de prezente; assentarão que o Vere-ador, o Licenciado Jeronymo de Burgos provessesobre isso com poderes de Almotacé [...] (Verea-ção de 06/03/1627. DHAM, p. 69)

56 Sobre esse episódio consultar, dentre outros, VARNHAGEM, 1955;SERRÃO, 1968; SALVADOR, 1982.

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Dessa vez, a cidade encontrava-se guarnecida e com a po-pulação aparentemente decidida a evitar qualquer tentativa dedesembarque dos holandeses, que acabaram ficando restritosao porto – o que por si só, como afirmei acima, garantiu lucrosaos invasores e prejuízos ao comércio da capital.

A despeito das intenções de Pieter Heyn, se objetivava ounão invadir novamente Salvador, o episódio demonstrava aimportância da guarnição da cidade. Todos os inconvenientesacima mencionados em função da presença das tropas deixadaspor D. Fadrique mostravam-se necessários. Em verdade, ob-servava-se, por meio do ataque de 1627, que as providênciascom a defesa não poderiam esmorecer. Era preciso garantir asegurança do porto, pois com a paulatina retomada das ativida-des comerciais e consequentemente da movimentação da zonaportuária da cidade, a baía de Todos os Santos não poderia con-tinuar exposta a ataques de corsários e piratas – especialmenteporque o Atlântico continuava sendo frequentado pelas em-barcações holandesas.

A cidade de Salvador e seu recôncavo ainda não havia serefeito completamente das atribulações decorrentes da ocupa-ção de 1624 quando os holandeses retornaram à colônia em1630, desta vez ocupando Pernambuco. As consequências des-sa nova investida foram enormes para a Bahia e, embora nãofaçam parte dos objetivos desse trabalho, cabe ressaltar que acapital colonial, que passou a segunda metade da década de1620 tentando se adequar aos transtornos causados pela pre-sença holandesa em seu território, viu-se obrigada a ajudar acapitania de Pernambuco. Para os colonos da capitania da Bahia,foi especialmente pesado resolver os problemas relacionados àmoradia e ao pagamento de salários ao enorme contingente desoldados que permaneceu na cidade após a restauração. A par-tir de 1630, além dessas obrigações continuarem a pesar no bolsoda população de Salvador, a administração da capital se viu

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compelida a dar abrigo aos comerciantes que fugiram de Per-nambuco e a receber cada vez mais soldados que chegavam dametrópole para socorrer os colonos que resistiam na capitaniaocupada.

Junte-se a tudo isso, os riscos que os colonos de Salvadorcorriam de uma nova invasão, como a tentativa frustrada co-mandada por Maurício de Nassau em 1638. A defesa diantedesse ataque evidenciou que, apesar das dificuldades, o sistemadefensivo da capital havia melhorado consideravelmente. Ade-mais, a capitania da Bahia já demonstrava sinais de recupera-ção econômica e, mais do que nunca, a cidade de Salvador de-sempenhou sua função de Capital da América Portuguesa emoposição a Recife, capital da América Holandesa.

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Considerações finais

Quando me propus a estudar a presença holandesa na Bahia, aideia inicial era produzir um texto que contemplasse o impactoda invasão de 1624 na vida dos colonos, tanto durante a ocupa-ção quanto após a expulsão dos holandeses. Queria escreversobre as relações estabelecidas pelos habitantes entre si, na con-dição de refugiados, bem como que tipo de relação teria existi-do entre os habitantes da capital colonial e os invasores holan-deses. Interessava-me saber também como os escravos haviamse comportado durante o período de ocupação. Entretanto, oscontatos com as fontes foram apontando novas perspectivas,ou mesmo demonstrando a impossibilidade de abordar deter-minadas questões.

Fui percebendo que me ater apenas à ocupação e suas con-sequências seria um equívoco, pois o episódio da presença ho-landesa na Bahia apresentava possibilidades bem mais amplasque permitiam pensar não só as relações sociais, mas também acidade de Salvador enquanto capital da América Portuguesa.

Ao analisar a rapidez com que a cidade foi tomada pelosholandeses, a ideia de que Salvador era uma cidade fortalezacomeçou a me inquietar.57 Como podia uma “cidade fortaleza”

57 Vale ressaltar que ainda hoje essa idéia é corrente em escolas, nos pontosturísticos da cidade e em boa parte da literatura sobre a formação dacidade do Salvador.

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ser tão facilmente invadida e ocupada? Na busca por essa respos-ta, pude constatar o quanto a invasão de 1624 era útil para fazeruma análise da formação da cidade de Salvador, tomando comobase a sua estrutura administrativa e atentando especialmentepara as questões relacionadas à defesa – não à defesa apenasenquanto construções militares, mas enquanto determinaçõesreais que visavam assegurar a possessão territorial portuguesa.

Ao concluir minhas pesquisas, creio que a noção de Salva-dor enquanto fortaleza resultou da leitura do Regimento deTomé de Souza, onde está claro que o rei determinava ao Go-vernador Geral que construísse uma cidade forte. Entretanto,existe uma grande distância entre o que está escrito no Regi-mento de 1548 e o que foi posto em prática ao longo da históriada cidade de Salvador, pois nem sempre ordem dada significaordem cumprida. Ademais, temos que considerar aí a pobrezado Estado português e a dimensão de suas possessões no mun-do para compreender que, apesar das determinações reais indi-carem o tipo de ação atribuída aos seus funcionários, a carênciade recursos obrigava o Estado português a flexibilizar suas or-dens, aceitando, dessa maneira, o expediente da improvisaçãona administração de suas colônias ultramarinas.

Diante dessa realidade, a administração colonial não conse-guiu fazer de Salvador uma cidade forte. Pelo contrário, desdeo século XVI encontramos documentos que demonstram o quan-to a capital era insegura e o quanto as fortificações que existiameram impotentes diante dos ataques de piratas e corsários. Assim,procurei demonstrar que o fracasso da defesa de Salvador dian-te dos holandeses esteve relacionada à debilidade defensiva dacolônia, resultante da carência de recursos da Coroa Portuguesa.

Não obstante considerar que a carência de recursos e aconsequente improvisação da administração colonial tenhamsido fundamentais para a desarticulação da defesa de Salvadorem 1624, busquei evidenciar ao longo do texto que os colonos

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souberam se reorganizar no refúgio e imprimiram uma efici-ente vigília que garantiu a não efetivação da ocupação holan-desa, pois os invasores ficaram restritos à cidadela. Essa açãofundamental dos colonos foi pouco ressaltada nos relatos seis-centistas e nas obras que se refeririam ao assunto em geral –isso porque a armada luso-espanhola, com status de maior ar-mada que atravessara o Atlântico até então, ofuscou a atuaçãoda resistência.

Em todo caso, quando observamos os passos seguintes dosholandeses no Brasil – a ocupação de Pernambuco – verifica-mos que uma preocupação constante dos invasores foi não fi-carem restritos ao litoral, sem acesso para o interior, semelhanteao que ocorrera na Bahia. Tudo leva a crer que a ocupação daBahia serviu de aprendizado para os holandeses, uma vez que,ocupada a cidade de Olinda, os invasores resolveram incendiá-la a fim de que não sofressem reveses semelhantes aos que en-frentaram em Salvador. Nesse sentido, concentraram-se emRecife, considerada por eles mais apropriada para a defesa.

Outro aspecto relevante percebido na trajetória dessa pes-quisa diz respeito à participação dos indígenas nas lutas contraos holandeses durante a invasão e principalmente no períododa ocupação. Foi na fase da resistência que os índios se destacaramnos combates e impuseram certo temor aos holandeses. Acre-dito que os invasores tenham ficado tão impressionados com odesempenho dos índios durante os onze meses que permane-ceram na Bahia que, ao retornarem à América Portuguesa em1630 para invadir a capitania de Pernambuco, procuraram,como afirmou o historiador José Antonio Gonçalves de MeloNeto, no seu livro Tempo dos Flamengos, manter a amizadedos índios a todo custo. Esse é mais um indício de que a invasãoda Bahia se constituiu em um aprendizado para os holandeses.

Já para os habitantes de Salvador, os episódios de 1624-25representaram, além das perdas materiais inerentes à guerra,

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um árduo sacrifício para reorganizar a capital e sua vida cotidiana.Vimos que os colonos possuíam consciência da debilidade defensivae cobravam constantemente ações da Coroa para solucionar esseproblema. Entretanto, quando a metrópole, por meio de D.Fadrique de Toledo, deixou um efetivo de mais de mil homenspara guarnecer a Bahia, atribuiu a responsabilidade da manu-tenção dessas tropas aos colonos. Ou seja, a metrópole final-mente resolveu montar uma tropa regular de tamanho consi-derável para defender a capital colonial, mas deixava o ônusdessa tarefa para os bolsos dos colonos, o que não os agradou.

Mesmo não atendendo as expectativas dos colonos, queesperavam que a Coroa assumisse os custos da defesa, é notórioque os habitantes, principalmente os comerciantes e produto-res, ainda que sob protestos, tenham se submetido a todas astaxações destinadas ao sustento dos soldados. Estava explícitonessa atitude o temor de que, por falta de pagamento e alimen-tação, essas tropas se revoltassem, causando transtornos para acidade.

Observamos que com a invasão holandesa de 1624 a Co-roa percebeu a urgência de melhorar o sistema defensivo dacolônia, e essa foi sem dúvida a principal consequência da pre-sença holandesa na Bahia. Após 1625, a população da capitalcolonial permaneceu em constante discussão acerca dos recur-sos destinados para sustentar a defesa da cidade. E por mais quehouvesse reclamações e protestos, as taxações eram renovadasano após ano, prosseguindo inclusive além de 1630 em funçãodo ataque a Pernambuco, quando Salvador desempenhou maisque nunca sua função de capital colonial, recebendo e orga-nizando tropas para enviar em socorro dos colonos que resis-tiam na capitania ocupada. Salvador serviu como ponto de apoio,recebendo soldados vindos do reino e comerciantes fugidosde Pernambuco. Era a capital assumindo seu papel de “cabeçado Brasil”.

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