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SALMO 91: UMA EXALTAÇÃO DE YHWH PROTETOR Ruben Marcelino Bento da Silva RESUMO O artigo analisa o Salmo 91, que exalta YHWH como Deus protetor judaico. A partir da metodologia de exegese histórico-crítica, propõe-se um estudo dessa peça literária, assinalando- se a crítica textual, a análise literária, a análise da redação e a análise da forma. PALAVRAS-CHAVE: YHWH; Divindade protetora; Salmo 91; Bíblia judaica. ABSTRACT This article analyzes Psalm 91, which exalts YHWH as the Jewish protector God. Using the historical-critical methodology of exegesis, a study of this literary piece is proposed, pointing out the textual criticism, literary analysis, analysis of writing and formal analysis. KEY WORDS: YHWH; Protective divinity; Psalm 91; Jewish Bible. Introdução O artigo pretende apresentar uma breve análise exegética histórico-crítica do Salmo 91. Em primeiro lugar, procurar-se-á, através da crítica textual, estabelecer o texto hebraico para a exegese. A seguir, realizar-se-á uma análise literária do Salmo 91. Após a segmentação, apresentar-se-ão uma proposta de tradução e um esquema estrutural, seguindo-se uma discussão de sua integridade e coesão. Depois, proceder-se- á à análise da redação, situando a composição em seu contexto literário atual. Por fim, será feita a análise da forma e procurar-se-á determinar o ambiente de origem do texto. Doutorando em Teologia pela Faculdades EST, São Leopoldo, RS. Mestre em Teologia pela Faculdades EST, São Leopoldo, RS. Licenciado em Letras pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, RJ. Este artigo foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq Brasil. E-mail: [email protected]. Agradeço à Prof a . Ms. Marie Ann Wangen Krahn pela tradução do resumo do artigo para a língua inglesa

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Page 1: SALMO 91: UMA EXALTAÇÃO DE YHWH PROTETOR

SALMO 91: UMA EXALTAÇÃO DE YHWH PROTETOR

Ruben Marcelino Bento da Silva

RESUMO

O artigo analisa o Salmo 91, que exalta YHWH como Deus protetor judaico. A partir da metodologia de exegese histórico-crítica, propõe-se um estudo dessa peça literária, assinalando-

se a crítica textual, a análise literária, a análise da redação e a análise da forma.

PALAVRAS-CHAVE: YHWH; Divindade protetora; Salmo 91; Bíblia judaica.

ABSTRACT

This article analyzes Psalm 91, which exalts YHWH as the Jewish protector God. Using the

historical-critical methodology of exegesis, a study of this literary piece is proposed, pointing

out the textual criticism, literary analysis, analysis of writing and formal analysis.

KEY WORDS: YHWH; Protective divinity; Psalm 91; Jewish Bible.

Introdução

O artigo pretende apresentar uma breve análise exegética histórico-crítica do

Salmo 91. Em primeiro lugar, procurar-se-á, através da crítica textual, estabelecer o

texto hebraico para a exegese. A seguir, realizar-se-á uma análise literária do Salmo 91.

Após a segmentação, apresentar-se-ão uma proposta de tradução e um esquema

estrutural, seguindo-se uma discussão de sua integridade e coesão. Depois, proceder-se-

á à análise da redação, situando a composição em seu contexto literário atual. Por fim,

será feita a análise da forma e procurar-se-á determinar o ambiente de origem do texto.

Doutorando em Teologia pela Faculdades EST, São Leopoldo, RS. Mestre em Teologia pela Faculdades

EST, São Leopoldo, RS. Licenciado em Letras pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, RJ. Este

artigo foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico,

CNPq – Brasil. E-mail: [email protected]. Agradeço à Profa. Ms. Marie Ann Wangen Krahn pela tradução do resumo do artigo para a língua inglesa

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1 Crítica textual1

Em 1a, somente o texto grego da Septuaginta2 traz, antes do particípio bveyO

(yōšēb: “aquele que se senta”), o enunciado (ainos ōdēs Dauid),

que traduz a dedicatória hebraica dwId"l. rAmz>mi ryvi (šîr mizmôr ledāwid) – “Um cântico,

um salmo para Davi”.3 Tão somente variando as fórmulas de dedicação em que aparece

a expressão (tō Dauid: “para Davi”), a LXX consagra ao filho de Jessé quase

todas composições reunidas no quarto (90 [89] – 106 [105])4 dos cinco livros de que se

constitui o volume dos Salmos: 91 (90), 93 (92), 94 (93), 95 (94), 96 (95), 97 (96), 98

(97), 99 (98), 101 (100), 103 (102) e 104 (103). Dessas, o TM dedica a Davi somente os

Salmos 101 e o 103. Não fornece, portanto, assim como os demais testemunhos, apoio

para o cabeçalho introduzido pela Septuaginta no Salmo 91. É possível que os redatores

gregos tenham resolvido consagrar essa composição ao “mais belo dos cantores de

Israel” (2Sm 23,1) tendo em vista algumas expressões que aparecem vinculadas a ele

em outros lugares. Um exemplo é 91,1b.4a, em que os substantivos lce (sēl: “sombra”) e

@n"K' (kānāp: “asas”) são usados como metáforas para a proteção da divindade. Esses dois

termos aparecem formando uma única expressão com esse mesmo sentido no Salmo

17,8: ^yp,n"K. lceB . (besēl k

enāpeykā), “sob a sombra das tuas asas”. Esse salmo recebe o

cabeçalho dwId"l. hL'piT . (tepillâ l

edāwid), “uma oração para Davi”. Outro exemplo é 91,7:

“Cairá do teu lado um milhar e dez milhares do teu lado direito, a ti não se achegará”.

Essas palavras fazem lembrar a canção com que as mulheres receberam Davi quando

retornou do combate em que matara Golias: “Saul matou seus milhares e Davi seus dez

milhares” (1Sm 18,7). Ainda outro exemplo é 91,11, em que a proteção de YHWH está

ligada à expressão wyk'a'l.m; (mal‟ākāw), “os seus emissários”. Nos Salmos 34,8 e 35,5.6,

1 O Texto Hebraico Massorético (TM) e o aparato crítico que discute as variantes verificadas em outros

textos hebraicos e versões encontram-se em ELLIGER; RUDOLPH, 1990, p. 1174. Os manuscritos que

representam o TM possuem um elevado padrão de uniformidade textual, resultado de um rígido sistema

de preservação e transmissão adotado por escribas judeus na Idade Média, os massoretas (FRANCISCO,

2003, p. 131). 2 Usar-se-á também, neste trabalho, o numeral LXX (70) para referir-se à Septuaginta. 3 Para a transliteração dos termos hebraicos adotada, cf. BOTTERWECK; RINGGREN, 1986, p. xxi. No

caso do grego, cf. BROWN, 2000, p. 1. 4 “A enumeração diferente [em relação ao TM] ocorre pelo fato de que a LXX considera tanto os Sl 9 e

10 quanto os 114 e 115 como um único salmo e decompõe cada um dos Sl 116 e 147 em dois salmos”

(ZENGER, 2003, p. 308, 314). As numerações em colchetes, na indicação do conteúdo do quarto livro, e

nos parênteses, na listagem dos salmos com a dedicatória (tō Dauid), é aquela que consta na

LXX.

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3

que contêm o cabeçalho dwId"l. (ledāwid: “para Davi”), aparece a expressão correlata hw"hy>-

%a;l.m; (mal‟ak yehwāh: “o emissário de YHWH”) indicando o cuidado e o livramento

divino.5 Portanto, manter-se-á a leitura do TM, a qual omite o cabeçalho.

Em 1b, a Peshita6 substitui o imperfeito hitpalel !n"Alt.yI (yitlônān), “ele

pernoitará”, pela expressão ( : “será louvado”). O aparato crítico propõe a

retroversão do siríaco para o imperfeito hitpolel !nEArt.yI (yitrônēn) – “ele será aclamado”

– mas mantém-na como incerta. Além de a proposta não receber apoio dos demais

testemunhos, a associação da raiz verbal !yli (lîn: “pernoitar”) com o substantivo lce (sēl:

“sombra”) no contexto do oferecimento de hospedagem para a noite pode ser

encontrada em outro lugar: em Gn 19,2.8, narra-se como Ló convida os dois emissários

de YHWH7 para pernoitarem em sua casa e a maneira pela qual tenta defendê-los, por

se acharem à sombra do seu teto, dos homens de Sodoma. Manter-se-á, por conseguinte,

a leitura do TM.

Em 2a, a LXX corrige a forma verbal hebraica para rm;aOy (yō‟mar), “ele dirá”.

Trata-se certamente de uma tentativa de harmonização com o sujeito do verbo !yli (lîn),

“pernoitar”, que está na 3a pessoa do singular. Manter-se-á a leitura do TM.

No versículo 3, em primeiro lugar, remete-se a Os 9,8, onde o substantivo vWqy"

(yāqûš: “passarinheiro”) aparece vocalizado vAqy" (yāqôš). Não há necessidade de

ocupar-se com essa variação. Em seguida, assinala-se que vários manuscritos hebraicos

medievais, a LXX e a Peshita acrescentam a conjunção W (û: “e”) antes da expressão

rbdm (mdbr). O acréscimo não altera o sentido do texto, pelo que a leitura do TM pode

ser mantida. Por fim, a LXX, a versão grega de Símaco8 e a Peshita possivelmente

leram rb;D>mi (middebar; [apó lógou], “da palavra”) em lugar de rb,D<mi

(middéber: “da pestilência”), assim como, no versículo 6, fez-se outra leitura da mesma

expressão. Pode tratar-se aqui de uma alteração voluntária com o objetivo de apagar a

5 Para outros exemplos, cf. BRIGGS; BRIGGS, 2004, p. 279. 6 Tradução siríaca do século II da Era Comum (EC) provavelmente (FRANCISCO, 2003. p. 208).

7 Optou-se por verter o tetragrama sagrado que representa o nome do Deus israelita, hw"hy> (yehwāh),

utilizando apenas as consoantes correspondentes no alfabeto latino, sem representação vocálica, haja vista

o silêncio quanto à sua pronúncia decorrente da reverência do povo judeu (KELLY, 1998, p. 55s). 8 Surgida no século II EC, manteve estrita fidelidade ao original, ao lado de representar uma composição em grego de elevada qualidade literária (FRANCISCO, 2003, p. 195).

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referência provável a uma deidade maligna personificada.9 Vocalizando o termo como

rb;D>mi (middebar), passa-se apenas a fazer menção de um dito imprecatório que poderia

ter sido proferido contra o interlocutor do salmista. Logo, a leitura do TM deve ser

preferida.

Em 4a, o aparato crítico indica que se deve ler wyt'rob.a,B. (be‟ebrōtāw: “com as

suas penas”) em lugar de Atr'b.a,B. (be‟ebrātô: “com a sua pena”), conforme se observa na

LXX e na Peshita. Tendo em vista a construção paralela com o dual wyp'n"K. (kenāpāw: “as

suas asas”), a mudança é preferível. Seguir-se-á, assim, a leitura do aparato crítico.

Em 4b, a expressão ATmia] hr"xesow>) hN"ci (sinnâ wesōhērâ ‟

amittô: “[São] um

escudo e um muro a sua sustentação”) é considerada uma provável adição que deveria

ser transposta para o final do versículo 7. De fato, essa frase fica isolada entre as

estruturas de paralelismos em 4a e em 5s:

wyt'rob.a,B.

A

Com as suas penas,

%l' %s,y"

B

tapar-te-á 4a

wyp'n"K.-tx;t;w>

A‟

e, debaixo das suas asas,

hs,x.T,

B‟

abrigar-te-ás.

hl'y>l"+ dx;P;ämi ar'ytiâ-al{ 5a

A Não estremecerás do espanto da noite,

`~m'(Ay @W[ïy" #xeªme÷ 5b

B da flecha (que) voa de dia,

%l{=h]y: lp,aoåB' rb,D,miâ 6a

A‟ da pestilência (que) anda na escuridão,

`~yIr")h\c' dWvïy" bj,Q,ªmi÷ 6b

B‟ da epidemia (que) arruína (ao) meio-dia.

9 É dessa maneira que G. del Olmo Lete (TOORN; BECKING; HORST, 1999, p. 231s) interpreta a

ocorrência de rb,D< (déber) aqui.

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5

Todavia, tratando-se de uma inserção posterior que não aparece deslocada do

lugar que ocupa no TM em nenhum outro testemunho, parece mais adequado mantê-la

desse modo. De mais a mais, se permanecer após 4a, não perde o caráter de expressão

metafórica da proteção de YHWH no que se refere às circunstâncias arroladas nos

versículos 5, 6 e 7.

Ainda em 4b, a LXX, seguida pela Peshita, em lugar do substantivo hr'xeso

(sōhērâ; neste trabalho, traduzido por “um muro”), lê (kuklōsei se),

“rodear-te-á”. O aparato crítico propõe a retroversão do grego para o imperfeito qal

^r>x's.t i (tishārkā) – “rodear-te-á” – mas mantém-na como incerta. É provável que, por

ser difícil a tradução do substantivo10

, os redatores da LXX preferiram ater-se ao

significado básico da raiz verbal e, então, “esclareceram” a leitura:

(hoplō kuklōsei se hē alētheia autou) – “a sua verdade rodear-te-á com

um escudo”. Por ser a mais difícil, manter-se-á a leitura do TM.

Em 5a, poucos manuscritos hebraicos medievais, o texto da LXX do Códice

Sinaítico11

e a Peshita acrescentam a conjunção W (û) antes da expressão #xeme (mēhēs:

“da flecha”). O acréscimo não altera o sentido do texto, pelo que manter-se- á a leitura

do TM.

Em 6a, a LXX e alguns documentos que dependem dela (a versão grega de

Áquila12

e a Peshita) leem (apo pragmatos), o que corresponderia a rb'D"mi

(middābār: “da coisa”). Como no versículo 3, pode tratar-se de um mecanismo para

apagar a referência provável à ação de uma deidade maligna personificada,

substituindo-a pela indicação de uma circunstância trágica manifesta especificamente à

noite. Permanecerá a leitura do TM.

Em 6b, a Peshita lê (wmn rw ’: “e do vento”) em lugar de bj,Q,mi

(miqqéteb: “da epidemia”). Pode haver aqui nova tentativa de fazer desaparecer o nome

de uma divindade causadora de mal, bj,q, (qéteb), pondo em seu lugar a noção de um

evento natural, talvez o ar quente durante o sol do meio-dia, cujos raios seriam capaz de

10 Essa questão será discutida na tradução do Salmo 91. 11

Datado do século IV EC, o Códice Sinaítico (a ou 01) foi descoberto em 1859 no mosteiro de Santa

Catarina do Monte Sinai por Constantin von Tischendorf. Encontrado em bom estado de conservação,

esse manuscrito reproduz integralmente o texto do Novo Testamento e parcialmente o do Antigo

Testamento (MAINVILLE, 1999, p. 31s). 12 “Áquila (cerca de 130 [EC]): foi estudante do rabino Aquiba e fez uma tradução literalíssima [...]” (SIMIAN-YOFRE, 2000, p. 56).

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debilitar o corpo e provocar doenças (WEISER, 1994, p. 465). Uma outra maneira de

entender o siríaco (rw ’) seria como uma manifestação destrutiva do próprio Deus

(cf. Jó 4,9) ou então uma personificação desta na forma de um intermediário (cf. 1Rs

22,20-23). De qualquer maneira, fica preservada a unicidade de YHWH. Diante, pois,

da hipótese de que a leitura da Peshita representa uma correção teológica, manter-se-á o

TM.

A LXX, ainda em 6b, em lugar do imperfeito qal dWvy" (yāšûd: “arruína”) que

aparece no TM, lê (kai daimoniou: “e o demônio”), que equivaleria ao

hebraico dvew> (wešēd: “e o šēd”

13). Parece haver aqui uma ocorrência de metátese, isto é,

troca na ordem das letras da palavra (no caso, o w). A eliminação do y faz pensar,

contudo, numa correção intencional. Reconhecendo no termo bj,q, (qéteb) o nome de

uma antiga divindade14

, o redator da tradução grega resolveu fornecer uma interpretação

mais adequada ao seu ponto de vista teológico, a saber, a unicidade de YHWH. Sendo

assim, reforçou a ideia de que bj,q, (Qéteb) é um demônio. Permanecerá, então, a leitura

do TM.

Em 9a, o aparato crítico propõe que se leia ^s,x.m; (mahsekā: “teu abrigo”) em

vez de, com o TM, ysi_x.m; (mahsî: “meu abrigo”). A sugestão parece querer preservar o

paralelismo de membros por meio do ajuste do sufixo pronominal para a 2a pessoa

masculina do singular em 9a assim com está em 9b:

C B A

^s,x.m; – hw"hy>

9a o teu abrigo (é) YHWH

C‟ B‟ A‟

13 A palavra šēd provavelmente vem do acádico šêdu, que fazia referência às entidades protetoras dos palácios reais assírios, representadas como touros alados colossais de cabeça humana (Brown; Driver;

Briggs, 1978, p. 993; RITTER, p. 2010). Na Bíblia judaica, os šēdîm são colocados em oposição a

YHWH (cf. Dt 32,17; Sl 106,37). 14 Tanto o paralelismo entre as expressões ~m'Ay @W[y" #xeme (mēhēs yā„ûp yômām)/“da flecha (que) voa de

dia” e ~yIr"h\c' dWvy" bj,Q,mi (miqqeteb yāšûd sāhorāyim)/“da epidemia (que) arruína (ao) meio-dia” como a

estrutura que se verifica em Dt 32.24a – yriyrIm. bj,q<w> @v,r< ymexul.W b['r' yzEm . (mezê rā„āb ûlhumê réšep

weqéteb merîrî)/“enfraquecidos de fome e devorados pelo Réšep e pelo Qéteb amargo” – associam bj,q<

(Qéteb) com @v,r< (Réšep) [#xe é a flecha de @v,r<]. De acordo com P. Xella, Réšep era um antigo deus

cananeu da batalha e das doenças, as quais ele espalhava através de seu arco e suas flechas. Possuindo um

caráter ambivalente, podia ferir mas também curar. Réšep e Qéteb seriam, portanto, duas divindades

cananeias transformadas, na Bíblia judaica, em demônios malignos voadores que acompanhavam YHWH em sua ação destrutiva (TOORN; BECKING; HORST, 1999, p. 673, 701, 703).

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7

^n<)A[m. T'm.f;ä !Ay©l.[,÷

9b a tua morada puseste (Em) ‘Elyôn

Provavelmente, a proposta do aparato crítico pretende ainda harmonizar o

versículo 9 com o bloco 91,3-13, o qual se dirige integralmente à 2a pessoa masculina

do singular. A leitura do TM é a mais difícil porque destoa do conjunto. Sendo assim,

deve ser preferida.

Em 9b, a LXX e a Quinta ( )15

leem (katafugēn sou), que

traduz o hebraico ^Z<W[m' (mā„ûzzekā: “o teu refúgio”), em lugar de ^n<A[m. (me„ôneka: “a

tua morada”), conforme o TM. Segundo Carl Schultz, palavra zA[m' (mā„ôz) indica

lugares de refúgio naturais ou feitos pelo homem, por exemplo, uma fortaleza na

montanha (HARRIS; ARCHER JR.; WALTKE, 1998, p. 1089). Embora o substantivo

que aparece no TM, !A[m' (mā„ôn), seja usado para descrever ruínas abandonadas que

passaram a ser ocupadas por animais selvagens (HARRIS; ARCHER JR.; WALTKE,

1998, p. 1092), é também empregado várias vezes para designar o Templo de Jerusalém

como morada de YHWH (p.ex. 2Cr 36,14s; Sl 26,8). Não há maiores razões para optar

pela leitura da LXX, que pode representar uma correção, dada a ambiguidade de sentido

de !A[m' (mā„ôn), ou uma tentativa de harmonização com os substantivos hs,x]m; (mahaseh:

“abrigo”) e hd"Wcm. (misûdâ: “cidadela”) em 91,2a.

Em 10b, muitos manuscritos hebraicos medievais e o Targum, em lugar da

leitura do TM, ^l,h\a'B. (be‟āh

olekā: “à tua tenda”), trazem ^yl,h'aoB. (be

‟ōhāleykā: “às tuas

tendas”). Não se trata de uma alteração tão importante, razão pela qual a versão do TM

será mantida.

Em 13a, no tocante ao substantivo lx;v; (šahal: “leão”), que aparece no TM, a

LXX (seguida pela Peshita) apresenta a leitura (aspida), acusativo singular de

(aspis: “áspide”). O aparato crítico propõe a retroversão do grego para o

particípio masculino hebraico lxezO (zōhēl: “rastejando”, “rastejante”), porém mantendo-a

como incerta. Essa alteração é problemática porque desfaz o quiasmo que há entre os

dois membros do versículo:

15 A Quinta é um dos textos bíblicos em grego que Orígenes de Alexandria usou para compor a sua

Héxapla, concluída em torno de 250 EC. A Héxapla dispunha, em seis colunas paralelas, o texto hebraico

consonantal, o texto hebraico transliterado em letras gregas, a versão grega de Áquila, a versão grega de Símaco, a Septuaginta (Quinta) e a versão grega de Teodocião (FRANCISCO, 2003, p. 190, 197).

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8

!t,p,w" lx;v;-l[;

A

Sobre o leão e a serpente peçonhenta 13a

%rod>Ti

B

pisarás,

smor>Ti

B‟

pisotearás 13b

!yNIt;w> rypiK.

A‟

o leãozinho e a cobra grande.

Além disso, o paralelismo entre os substantivos lx;v; (šahal: “leão”) e rypiK.

(kepîr: “leãozinho”) aparece em duas outras passagens, cujo contexto é poético: Jó 4,10

e Os 5,14. Por outro lado, não há ocorrências de paralelismo entre lxezO (zōhēl:

“rastejando”, “rastejante”) e !t,p, (péten: “serpente peçonhenta”) na Bíblia judaica,

tampouco entre lxezO (zōhēl) e !yNIt; (tannîn: “cobra grande”). Há, porém, entre !t,p, (péten)

e !yNIt; (tannîn) em um texto também poético: Dt 32,33.

Mas como explicar a leitura da LXX? A resposta pode estar na relação entre a

raiz verbal %r:d" (dārak: “pisar”) e o substantivo !t,p, (péten). É provável que o redator do

texto grego a julgasse de maior plausibilidade, ou seja, “pisar uma serpente venenosa”

seria mais fácil que “pisar um leão”. Por essa razão, e haja vista uma conveniente

semelhança consonantal, modificou lx;v; (šahal) para lxezO (zōhēl), formando um

paralelismo com !t,p, (péten). Logo, há motivos suficientes para preferir a variante do

TM.

Em 16b, o aparato crítico propõe o imperfeito hifil WhwEr>a;w> (we‟arwēhû: “e

embriagá-lo-ei”) em lugar do imperfeito hifil Whaer>a;w> (we‟ar‟ēhû: “e fá-lo-ei ver”), a

leitura do TM, porém chama a atenção para o Sl 50,23, onde se observa a expressão

~yhiil{a/ [v;yEB. WNa,r>a; (‟ar‟ennû beyēša„ ‟

elōhîm : “fá-lo-ei ver com a largueza de Deus”).

Apesar dessa ocorrência, a proposta é plausível, uma vez que hw"r" (rāwâ: “embriagar-

se”16

) forma um paralelismo metafórico com [;bef' (śābē„a: “fartar-se”17

), no que se

16 KIRST, 1988, p. 224. Dahood (1968, p. 329, 334) segue essa proposta ao traduzir 16b assim: and (will)

make him drink deeply of my salvation (“e fá-lo-ei beber profundamente de minha salvação”). 17 Segundo Bruce K. Waltke (HARRIS; ARCHER, JR.; WALTKE, 1998, p. 1463), a raiz possui o sentido usual de “estar satisfeito por ter-se alimentado”.

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9

refere à liberalidade divina. Portanto, já que não destoa do estilo e nem da teologia do

autor, será adotada em lugar do TM.

2 Análise literária

Na tradução18

apresentada a seguir, procurou-se, tanto quanto possível,

respeitar a ordem original das palavras. A segmentação do texto obedeceu às indicações

do acento massorético disjuntivo atnah (b+), que é o principal acento divisor do

versículo.

!Ay=l.[, rt,seäB. bveyO 1a

Quem se sentar sob a cobertura19

de ‘Elyôn20

`!n")Alt.yI yD;ªv;÷ lceîB. 1b

sob a sombra de Šadday pernoitará.

yti_d'Wcm.W ysiäx.m; hw"hyl;â( rm;ªao 2a

Direi para YHWH: Meu abrigo e minha cidadela,

`AB*-xj;b.a, yh;ªl{a/÷ 2b

meu ’Elōah. Apoiar-me-ei

21 nele.

18 Essa tradução do Salmo 91 foi extraída de SILVA, Ruben Marcelino Bento da. Louvor ao Guardião da

Cama: Uma Análise do Salmo 91 à Luz da Veneração à Divindade Protetora Bés. In: COLÓQUIO DE

HISTÓRIA, 4, 2010, Anais Eletrônicos. Recife: FASA, Universidade Católica de Pernambuco, 2010. p. 421-

432. Para este artigo, ela foi revista e ampliada. 19 Em Brown; Driver; Briggs (1978, p. 711s), os significados básicos para rt,se (sēter) são covering

(“cobertura”), hiding-place (“esconderijo”) e secrecy (“segredo”). Para a ocorrência do termo em Sl 91,1,

especifica-se hiding-place. Todavia, levando-se em conta que, no mesmo dicionário, a raiz rt;s' (sātar) é

traduzida por hide, cujo sentido pode ser “encobrir”, e que também covering já foi arrolado como sentido

válido para o substantivo hebraico, optou-se pela tradução em português “cobertura”. A razão disso é

enfatizar a formulação construída com a palavra lce (sēl), “sombra”. 20 Preferiu-se deixar sem tradução nomes ligados, no passado, a outras divindades (‘Elyôn, Šadday,

’Elōah) e usados aqui em paralelo com YHWH. Mantê-los em sua forma original pretende sinalizar um

fenômeno histórico-cultural de reunião de várias divindades em uma só. Como em outros casos na Bíblia

judaica (Gn 17,1; Sl 77,11s; Jó 6,4), trata-se aqui do final de um processo de assimilação, pelo qual

nomes de múltiplos deuses passaram a denotar um único Deus, YHWH. ‘Elyôn (“Altíssimo”), por

exemplo, teria sido uma divindade celeste em Ugarit, na Fenícia (cf. Is 14,13s), um epíteto do deus da fertilidade Baal. No encontro com as religiões de Canaã, o Deus israelita YHWH pode ter apropriado essa

designação de Baal (GERSTENBERGER, 1981, p. 161s, 171s). O nome Šadday, por sua vez, costuma

ser vinculado à raiz dd:v' (šādad), “agir violentamente com” (to deal violently with), resultando daí a

tradução “Todo-Poderoso” (BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1978, p. 994s). Outra possibilidade de

compreendê-lo, conforme Brown; Driver; Briggs (1978, p. 994), seria recorrer à raiz hd"v' (šādâ),

“umedecer” (to moisten), e ao substantivo ~yId:v' (šādayim), “seios” (breast). Chouraqui (1995, p. 34, 171)

apoia a leitura “Deus dos seios fecundos”, assinalando que os empregos de Šadday no livro de Gênesis

ocorrem em meio a promessas de fecundidade. Desse modo, evoca-se, para a interpretação da divindade, a ideia da amamentação e, por conseguinte, da maternidade.

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10

`tAW*h; rb,D,îmi vWqªy" xP;îmi ^l.yCi(y:â aWhå yKiÛ 3

Porque ele arrancar-te-á22

da armadilha do passarinheiro, da pestilência

destruidora23

.

hs,_x.T, wyp'än"K.-tx;t;(w> %l'â %s,y"å Ÿ wyt'rob.a,B. 4a

Com as suas penas, tapar-te-á e, debaixo das suas asas, abrigar-te-ás.

`AT*mia] hr'äxesow>) hN"ßci 4b

(São) um escudo24

e um muro25

a sua sustentação26

.

hl'y>l"+ dx;P;ämi ar'ytiâ-al{ 5a

Não estremecerás27

do espanto28

da noite,

`~m'(Ay @W[ïy" #xeªme÷ 5b

da flecha29

(que) voa de dia,

21 Schökel (1997, p. 97s) destaca, em primeiro lugar, o aspecto físico descrito pela raiz verbal xj;B' (bātah), “apoiar-se em algo”, do qual se deriva o sentido mais abstrato de “sentir-se seguro”. 22 Em Koehler; Baumgartner (1995, p. 717), fornecem-se para a raiz lc;n' (nāsal), no grau hifil, as

seguintes acepções: to tear from (“rasgar de”); to remove, withdraw (“remover”); to pull out (“puxar para

fora”, “arrancar”), save (“salvar”). 23 Em Brown; Driver; Briggs (1978, p. 217), destructive pestilence. 24 O vocábulo hN"ci (sinnâ) refere-se a um escudo grande, retangular, que cobria toda a parte da frente do

corpo. Outra palavra, !gEm' (māgen), indicava um tipo de escudo redondo e menor, usado pela infantaria

ligeira e por oficiais (HARRIS; ARCHER, JR.; WALTKE, 1998, p. 279). 25 Em Koehler; Baumgartner (1995, p. 750), para hr"xeso (sōhērâ), é dada a acepção wall (“muro”),

inclusive com referência a Sl 91,4. Embora R. D. Patterson (HARRIS; ARCHER, JR.; WALTKE, 1998,

p. 1307) traduza o substantivo como “escudo pequeno”, o qual seria usado no combate corpo a corpo,

apresenta, como alguns dos sentidos básicos para a raiz rx;s' (sāhar), “circundar” e “rodear”. Schökel e

Carniti (1998, p. 1159) dizem que a tradução de hr"xeso (sōhērâ) é incerta, mas sugerem que se refira a

“algo que rodeia”, especificando, como possibilidades, “escudo” e “muralha”. A preferência pela

tradução “muro” justifica-se ainda pela suposição de um paralelismo com o substantivo hd"Wcm. (mesûdâ),

“cidadela”, que aparece em 91,2a. 26 No qal, o grau simples, a raiz verbal !m;a' (‟āman) comunica a ideia básica de sustento ou firmeza. De

acordo com Charles L. Feinberg (HARRIS; ARCHER, JR.; WALTKE, 1998, p. 85-87), ela é usada com

o sentido de braços fortes que amparam uma criança necessitada. Desse significado fundamental,

derivam-se as noções de certeza e verdade, pelas quais geralmente traduz-se o substantivo tm,a, (‟émet). 27 Uma das possibilidades para a etimologia de arEy" (yārē‟) arroladas por H. F. Fuhs (BOTTERWECK;

RINGGREN, 1990, p. 291) deriva a palavra da raiz semítica r„, cujo significado fundamental seria to

tremble (“estremecer”). Chouraqui (1998, p. 139) traduz a forma verbal ar"yti (tîrā‟) por “estremecerás”. 28 Em Koehler; Baumgartner (1996, p. 922), o substantivo dx;P; (pahad) recebe, como primeiras acepções,

trembling (“trêmulo”), dread (“espanto”). Brown; Driver; Briggs (1978, p. 808) também fornecem, como

primeira opção de tradução, dread. Kirst (1988, p. 193) traz: tremor, pavor, susto, temor, medo, terror.

Andrew Bowling (HARRIS; ARCHER, JR.; WALTKE, 1998, p. 1209) esclarece que dx;P; pode referir-se

tanto a uma forte sensação de medo ou pavor como à fonte externa que provoca o pavor. A fim de

ressaltar o aspecto físico comunicado pela palavra hebraica, optou-se por vertê-la através do vocábulo

“espanto”. Essa opção de tradução é também observada em Schökel e Carniti (1998, p. 1157, 1164). A

expressão hl'y>l' dx;P; (pahad lāylâ) poderia fazer alusão ao sintoma decorrente do ataque de um demônio

noturno, talvez tyliyli (Lîlît), nome relacionado, segundo M. Hutter (TOORN; BECKING; HORST, 1999,

p. 520), ao substantivo hl'y>l' (“noite”) por etimologia popular. 29 Como já foi dito, os substantivos #xe (hēs: “flecha”), rb,D< (Déber: “pestilência”) e bj,q, (Qéteb:

“epidemia”) designavam, na origem, divindades, símbolos vinculados a elas ou demônios relacionados à

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11

%l{=h]y: lp,aoåB' rb,D,miâ 6a

do Déber (que) anda na escuridão,

`~yIr")h\c' dWvïy" bj,Q,ªmi÷ 6b

do Qét eb30

(que) arruína (ao) meio-dia.

^n<+ymiymi hb'îb'r>W @l,a,ª Ÿ^’D>Cimi lPoÜyI 7a

Cairá do teu lado um milhar e dez milhares do teu lado direito,

`vG")yI al{å ^yl,ªae÷ 7b

a ti não se achegará.

jyBi_t; ^yn<åy[eB. qr;â 8a

Somente com teus olhos observarás

`ha,(r>Ti ~y[iäv'r> tm;ÞLuviw> 8b

e a retribuição dos malvados verás.

ysi_x.m; hw"åhy> hT'äa;-yKi( 9a

Porque tu (és) YHWH, meu abrigo.

`^n<)A[m. T'm.f;ä !Ay©l.[,÷ 9b

(Em) ‘Elyôn puseste a tua morada.

h['_r' ^yl,äae hN<åaut.-al{) 10a

Não sucederá contra ti o mal

`^l<)h\a'B. br;îq.yI-al{ [g:n<©w>÷ 10b

e o flagelo31

não se ajuntará32

à tua tenda.

%L"+-hW<c;y> wyk'a'l.m;â yKiä 11a

Sim, instruirá os seus emissários quanto a ti,

`^yk,(r'D>-lk'B. ^ªr>m'v.li÷ 11b

para guardarem-te em todas as tuas pisadas.

doença, à guerra e à morte. De acordo com Kilpp (2002, p. 28s), na Bíblia judaica, há a tendência de fazer desaparecer a divindade ou o demônio e apenas referir-se aos fenômenos naturais associados. 30 Quando relacionado etimologicamente com ocorrências da raiz na literatura targúmica e no árabe, o

substantivo bj,q, (Qéteb) tem recebido o significado de “aquilo que é cortado”. Contudo, geralmente lhe

tem sido dado o sentido básico de “destruição”. As traduções por “peste”, “pestilência”, “epidemia”

apoiam-se no uso em paralelo com outros substantivos como rb,D< (Déber) e @v,r< [Réšep] (TOORN;

BECKING; HORST, 1999, p. 673; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1978, p. 881). 31

De acordo com Leonard J. Coppes (HARRIS; ARCHER, JR.; WALTKE, 1998, p. 918), o substantivo [g:n< (nega„) designa o golpe físico com que um suserano castigava um vassalo. Sugere também a punição

infligida pela divindade. Em Levítico 13s, refere-se a doenças contagiosas. A tradução “flagelo” justifica-

se por tratar-se de uma palavra que possui tanto o sentido de “tortura” como de “enfermidade”. 32 A raiz br:q' (qārab) indica a posição mais próxima e íntima do objeto (HARRIS; ARCHER, JR.;

WALTKE, 1998, p. 1367). Pode ter conotação sexual (SCHÖKEL; CARNITI, 1998, p. 590).

Page 12: SALMO 91: UMA EXALTAÇÃO DE YHWH PROTETOR

12

^n>Wa+F'yI ~yIP:ïK;-l[; 12a

Sobre as palmas das mãos carregar-te-ão,

`^l<)g>r; !b,a,äB' @GOàTi-!P, 12b

para que não batas33

teu pé em uma pedra.

%ro=d>Ti !t,p,äw" lx;v;ä-l[; 13a

Sobre o leão e a serpente peçonhenta34

pisarás,

`!yNI)t;w> rypiäK. smoßr>Ti 13b

pisotearás o leãozinho e a cobra grande35

.

Whje_L.p;a]w: qv;x'â ybiä yKiÛ 14a

Sim, prendeu-se em mim fortemente36

e eu trá-lo-ei para fora do perigo37

.

`ymi(v. [d;îy"-yKi( WhbeªG>f;a]÷ 14b

Pô-lo-ei em um lugar alto38

porque penetrou39

o meu nome.

hr'_c'b. ykiînOa'-AM)[i WhnE©[/a,w>) ŸynIae’r'q.yI 15a

33 A raiz @g:n" (nāgap: “bater”, “golpear”, “ferir”) é um sinônimo para [g:n" (“tocar”, “ferir”, “lesar”), de onde

provém o substantivo [g:n< (nāga„: “golpe”, “lesão”, “flagelo”) que aparece em 91,10b. 34 A tradução de !t,p, (péten) por “serpente peçonhenta” ou “cobra venenosa” (a venomous serpent) segue

Brown; Driver; Briggs (1978, p. 837) e Harris; Archer, Jr..; Waltke (1998, p. 1252). Segundo Schökel e

Carniti (1998, p. 1166), !t,p, “[...] é nome genérico de ofídio venenoso”. Em Kirst (1998, p. 202),

oferecem-se “cobra” e “víbora”. 35 O significado de !yNit; (tannîn) é incerto. De acordo com Ronald F. Youngblood (HARRIS; ARCHER,

JR.; WALTKE, 1998, p. 1651), refere-se a qualquer grande réptil; aqui, a uma cobra grande

especificamente. É possível traduzi-lo também por “crocodilo”, opção indicada em Kirst (2003, p. 268) e assumida por Chouraqui (1998, p. 141). Desse modo, a bênção de YHWH protetor assegura que o fiel

pisoteará o leãozinho e o crocodilo. Esse é um retrato que se reconhece de imediato numa estela de

esteatita, exposta no Museu Britânico, na qual se vê o menino Hórus, filho de Ísis, pisando sobre

crocodilos, as mãos agarrando serpentes e, sobre sua cabeça, a efígie de Bēs (KEEL, 1978, figura XXVIII

[apêndice de imagens entre as páginas 242 e 243]). Bēs era uma divindade popular egípcia, representada

pela imagem de um pigmeu barbudo de aparência leonina que trazia na cabeça um cocar e na face, uma

careta. Protetor do quarto de dormir e das parturientes, afastava demônios, serpentes e escorpiões. As

descobertas arqueológicas sugerem que a veneração desse deus esteve bastante difundida na Palestina

durante as Idades do Bronze Recente (1550 – 1150 AEC) e do Ferro (1150 – 586 AEC). Logo, não é

impossível que essa formulação do Salmo 91 tenha sido apropriada pelo culto de YHWH do âmbito da

religiosidade ligada a Bēs. Para maiores informações sobre Bēs, cf. SILVA, 2012, p. 43-49. 36 Em Koehler; Baumgartner (1994, p. 362), o primeiro sentido apresentado para qv;x' (hāšaq) é to be very

attached to (“estar fortemente preso a”). Em seguida, to love somebody (“amar alguém”). 37 Em Koehler; Baumgartner (1996, p. 931), o primeiro sentido para o grau piel (ativo intensivo) de jl;P' (pālat) é to bring out (“trazer para fora”), isto é, to save (“salvar”). 38 O sentido do grau piel de bg:v' (šāgab) aqui é tornar seguro ou inacessível, proteger, defender (SCHÖKEL,

1997, p. 636). 39

No comentário sobre a ocorrência de [d:y" (yāda„) em Gn 4,1, Chouraqui (1995, p. 66) esclarece que essa

raiz, cujo sentido é “conhecer por experiência concreta”, é usada com muita frequência para relações sexuais

íntimas entre casais. Ressalta ainda: “O rigor do sentido concreto de „penetrar‟, com a ambivalência desta

expressão, parece mais próximo do hebraico do que o eufemismo „conhecer‟, propagado em todas as

traduções.” No comentário ao Salmo 91, traduz, portanto, a forma verbal hebraica do mesmo modo (CHOURAQUI, 1998, p. 141).

Page 13: SALMO 91: UMA EXALTAÇÃO DE YHWH PROTETOR

13

Clamará a mim e responder-lhe-ei; no aperto, eu mesmo (estarei) com ele,

`Whde(B.k;a]w:) WhceªL.x;a]÷ 15b

retirá-lo-ei e fá-lo-ei vultoso40

.

Wh[e_yBif.a; ~ymiy"â %r,aoå 16a

(Com) prolongamento de dias fartá-lo-ei

`yti(['WvyBi( WhwEr>a;w>÷ 16b

e embriagá-lo-ei com minha largueza41

.

O Salmo 91 e as composições anterior e posterior possuem contornos bem

marcados.

O Salmo 90 recebe um cabeçalho: ~yhil{a/h'-vyai hv,mol. hL'piT . (tepillâ l

emōšeh ‟îš

hā‟elōhîm), “Uma oração para Moisés, o homem de Deus” (90,1). Esse tipo de frase

designativa falta no Salmo 91, porém os dois primeiros versículos indicam o assunto do

poema: YHWH é uma divindade protetora. Já o Salmo 92, por outro lado, apresenta

cabeçalho: tB'V;h; ~Ayl. ryvi rAmz>mi (mizmôr šîr leyôm haššabbāt), “Um salmo, um cântico

para o dia de sábado” (92,1).

No Salmo 90, o texto é composto para ser proferido por um grupo de pessoas

em uníssono. Isso pode ser percebido pelo uso exclusivo, por parte do eu-lírico42

, da 1a

pessoa do plural (“nós”). A divindade é a destinatária do poema. No Salmo 91, ouvem-

se, pelo menos, três declamadores: o primeiro, uma espécie de “arauto”, declara de que

maneiras a divindade agirá em favor daquele que se coloca sob a proteção dela (91,1.3-

8.19-13); o segundo é o protegido, o qual responde às declarações do primeiro

declamador com expressões de confiança na divindade (91,2.9a); o terceiro declamador

apresenta-se como a própria divindade, que faz promessas ao seu protegido (91,14-16).

No Salmo 92, o eu-lírico divide-se em dois declamadores que se alternam na exaltação

das obras e da justiça de YHWH e na afirmação da prosperidade dos justos. O primeiro

declamador (92,2-4.8s.13s) é coletivo, o que é sugerido pelo discurso em 3a pessoa com

40 O grau piel da raiz db;K' (kābad) traduz-se como “fazer pesado”, no sentido de “honrar”. Usa-se aqui o

adjetivo “vultoso” por comunicar bem, ao mesmo tempo, as acepções literal (“volume”) e metafórica

(“honra”) expressas pelo termo hebraico. O sujeito “vultoso”, portanto, é alguém honrado, distinto,

importante. Para o piel, Brown; Driver; Briggs (1978, p. 457), relacionam tanto to make heavy (“fazer

pesado”) como to honour (“honrar”). 41 A tradução segue o sentido da raiz no árabe, “alargar” (HARRIS; ARCHER, JR.; WALTKE, 1998, p.

680). Por isso, a fim de compor um paralelo com 16a, verteu-se o substantivo h['Wvy> (yešû„â) por

“largueza”, isto é, liberalidade, generosidade. 42 O eu-lírico toma a palavra no texto poético a fim de expressar seus sentimentos e suas emoções (PEREIRA; PELACHIN, 2004, p. 24).

Page 14: SALMO 91: UMA EXALTAÇÃO DE YHWH PROTETOR

14

uma ocorrência da 1a pessoa do plural (92,14b); o segundo declamador (92,5-7.10-

12.15s) é individual, pois predomina o discurso na 1a pessoa do singular.

No Salmo 90, a divindade é chamada pelos seguintes nomes: yn"doa] (‟adōnāy:

“meu Senhor” [90.1, 17a]), lae (“’Ēl” [90,2b]), hw"hy> (“YHWH” [90,13a]) e Wnyhel{a/

(‟elōhênû: “Nosso ’

Elōhîm” [90.17a]). No Salmo 91, a divindade recebe estas

designações: !Ayl.[, (“‘Elyôn” [91.1a, 9b]), yD;v; (“Šadday” [91,1b]), hw"hy> (“YHWH”

[91,2a, 9a]), yh;l{a/ (‟elōhay: “Meu ’

Elōah” [91,2b]), ysix.m; (mahsî: “Meu abrigo” [91,2a,

9a]) e ytid"Wcm. (mesûdātî: “Minha cidadela” [91,2a]). No Salmo 92, denomina-se a

divindade hw"hy> (“YHWH” [92,2a.5a.6a.9.14a.16a]), !Ayl.[, (“‘Elyôn” [92,2b]), Wnyhel{a/

(‟elōhênû: “Nosso ’

Elōhîm” [92,14b]) e yrIWc (sûrî: “Minha rocha” [92,16b]).

O Salmo 90 possui como tema a fragilidade do ser humano perante a

perpetuidade de YHWH. Conforme indicado anteriormente, a matéria do Salmo 91 é a

atividade protetora de YHWH em favor daquele que se põe sob seu cuidado. O Salmo

92, destinado para o culto no sábado, exalta as obras e a justiça de YHWH, afirma a

prosperidade dos justos e decreta a ruína dos ímpios.

A conclusão do Salmo 90 faz-se com uma fórmula de bênção e uma súplica

(90,17): WhnEn>AK WnydEy" hfe[]m;W Wnyle[' hn"n>AK Wnydey" hfe[]m;W Wnyle[' Wnyhel{a/ yn"doa] ~[;nO ŸyhiywI (wîhî

nō„am ‟adōnāy ‟

elōhênû „ālênû ûma„

aśeh yādênû kôn

enâ „ālênû ûma„

aśeh yādênû

kônenēhû), “E seja o favor do Senhor, nosso ’

Elōhîm, sobre nós, e o fazer de nossas

mãos firma sobre nós, e o fazer de nossas mãos, firma-o”. O Salmo 91 termina com a

fala de YHWH, o qual faz promessas ao seu protegido (91,14-16). Encerra o Salmo 92

uma declaração feita na 1a pessoa do singular sobre a justiça de YHWH: AB ht'l'w>[;-aOlw>

yrIWc (sûrî welō‟ „aw

elātâ), “Minha rocha e não (há) injustiças nele”.

O conteúdo do Salmo 91 pode ser separado em três partes principais: abertura

(1s), desenvolvimento do tema (3-13) e encerramento (14-16). É possível ainda

identificar sete seções organizadas na forma de um quiasmo concêntrico:

ABERTURA

I – Promessa ao que se coloca sob a proteção de YHWH (1-2) A

ARAUTO DE YHWH (1

o DECLAMADOR): Sentar-se sob a cobertura de ‘Elyôn assegura

o pernoite sob a sombra de Shadday (1).

Page 15: SALMO 91: UMA EXALTAÇÃO DE YHWH PROTETOR

15

PROTEGIDO DE YHWH (2o DECLAMADOR): YHWH é para ele abrigo, cidadela e

apoio (2).

DESENVOLVIMENTO DO TEMA

II – As manifestações de YHWH em favor de seu protegido (3-4) B

ARAUTO DE YHWH:

II.1 – Livramento (3):

II.1.1 – Da armadilha do passarinheiro;

II.1.2 – Da pestilência destruidora.

II.2 – Abrigo sob as asas divinas (4a).

II.3 – Sustentação (4b).

III – As ameaças que YHWH afastará de seu protegido (5-8) C

ARAUTO DE YHWH:

III.1 – O espanto da noite (5a);

III.2 – A flecha que voa de dia (5b);

III.3 – A pestilência que anda na escuridão (6a);

III.4 – A epidemia que arruína ao meio-dia (6b);

III.5 – A mortandade (7ab);

III.6 – A impunidade dos malvados (8ab).

IV – Declarações sobre “YHWH protetor” (9) X

PROTEGIDO DE YHWH: YHWH é para ele abrigo (9a).

ARAUTO DE YHWH : O protegido pôs sua morada em ‘Elyôn (9b).

V – As ameaças que YHWH afastará de seu protegido (10) C’

ARAUTO DE YHWH:

V.1 – O mal não sucederá ao protegido (10a);

V.2 – O flagelo não se juntará à tenda do protegido de YHWH (10b).

VI – As manifestações de YHWH em favor de seu protegido (11-13) B’

ARAUTO DE YHWH:

VI.1 – A guarda dos emissários de YHWH (11s);

VI.2 – A prevalência sobre animais perigosos (13ab).

ENCERRAMENTO

VII – As promessas de YHWH ao seu protegido (14-16) A’

YHWH (3o DECLAMADOR):

VII.1 – Resgate do perigo porque se prendeu fortemente em YHWH (14a);

VII.2 – Colocação em lugar alto porque penetrou o nome divino (14b);

Page 16: SALMO 91: UMA EXALTAÇÃO DE YHWH PROTETOR

16

VII.3 – Resposta ao clamor e companhia na aflição (15a);

VII.4 – Resgate da aflição e honraria (15b);

VII.5 – Prolongamento de dias (16a);

VII.6 – Largueza (16b).

O texto da composição apresenta-se bastante coeso. Conforme foi observado

na delimitação da unidade literária, as mudanças nas pessoas do discurso ao longo do

Salmo 91 podem ser explicadas como resultado da possível intenção do autor de que a

composição fosse recitada por pelo menos três declamadores. A diagramação do

conteúdo revelou a presença de um quiasmo concêntrico, cujo elemento central é um

versículo constituído de dois membros paralelos que ressaltam a fé em YHWH como

protetor.

Na análise da crítica textual, chamou-se a atenção para 4b, que seria uma

provável adição e deveria ser transposta para depois do versículo 7. Entretanto, segundo

a argumentação exposta, sendo mantida após 4a, não perde o caráter de expressão

metafórica da proteção de YHWH no que se refere às circunstâncias arroladas nos

versículos 5, 6 e 7. Não representa, portanto, alteração tão significativa do fluxo textual.

3 Análise redacional

O Salmo 91 faz parte das composições do quarto livro que integra o volume

dos Salmos (90 – 106). Antecedendo o conjunto 93 – 100, os Salmos do reinado de

YHWH (ZENGER, 2003, p. 314), aloja-se entre o Salmo 90, que recebe a designação

hL'piT . (tepillâ: “oração”) no cabeçalho, mas já foi catalogado como “lamentação

comunal” (GOTTWALD, 1988, p. 490), e o 92, cujo cabeçalho classifica-o com as

nomenclaturas rAmz>mi (mizmôr: “Um salmo”) e ryvi (šîr: “Um cântico”), porém a análise

literária moderna identifica-o como “cântico de ação de graças individual”

(GOTTWALD, 1988, p. 491).

Pode-se dizer que esses três salmos constituem uma espécie de preparação

litúrgica para a celebração da realeza de YHWH. No Salmo 90, lamentam-se as faltas

cometidas e as desgraças trazidas pela ira da divindade, seguindo-se, logo após, súplicas

por sua piedade e seu amor. O Salmo 91 anuncia àquele que se coloca sob a proteção de

YHWH o livramento de calamidades variadas. Por fim, o Salmo 92 é um cântico de

Page 17: SALMO 91: UMA EXALTAÇÃO DE YHWH PROTETOR

17

júbilo por causa das obras de YHWH que testemunham o seu amor e a sua fidelidade

para com o justo.

Desse modo, o contexto menor do Salmo 91 é formado pelos Salmos 90 e 92.

Já que, com o 90 e o 92, prepara a celebração de YHWH como rei, é plausível

delimitar o contexto maior do Salmo 91 no bloco 90 – 100 ([90 – 92] + [93 – 100]). A

função do Salmo 91 aí é proporcionar a fé pela catequese, isto é, alentar, com o anúncio

da proteção divina, aquele que suplica a piedade e o amor de YHWH em meio às

desgraças.

É significativo que o Salmo 92 utilize a imagem dos justos como “árvores

plantadas na casa de YHWH”. Desse modo, fecha, no Templo de Jerusalém, o ciclo de

preparação litúrgica para a aclamação do rei YHWH, a qual é também encerrada com a

entrada triunfal pelas portas do santuário, seguida pela declaração: “Porque YHWH é

bom, seu amor é perpétuo” (100,4.5a).

4 Análise da forma

De acordo com Gottwald (1988, p. 493), o Salmo 91 é um “salmo de

sabedoria”, destinado à instrução. Esse autor descreve a categoria, inscrita no conjunto

dos gêneros literários de instrução e de meditação, desta maneira:

Existe número considerável de salmos [...] que ostentam características

familiares de escritos de sabedoria: (1) palavras-chave como “sabedoria”,

“temor de Iahweh”, destinatários como “filhos”; (2) artifícios retóricos, como

técnicas de perguntas e respostas, ditos numéricos, macarismos (“feliz aquele

que...”); (3) tom acentuado de ensino e de admoestação; (4) preocupação com

o sofrimento injusto, os ricos perversos, guia e proteção divinas dos piedosos [grifo nosso], e os dois caminhos, de obediência que conduz à vida e de

desobediência que conduz à morte.

Outras nomenclaturas têm sido sugeridas. Sellin e Fohrer (1977, p. 414, 423),

por exemplo, consideram-no um “poema sapiencial e didático”. Noronha (2007, p. 169)

prefere “salmo sapiencial”. Já Monloubou (1996, p. 66) propõe “salmo de proteção

divina”. Raguer (1998, p. 33), de opinião semelhante, sugere “oráculo que promete a

proteção divina”. O comentário de Schökel e Carniti (1998, p. 1159) arrola ainda mais

possibilidades:

Se atendermos ao tema e ao desenvolvimento, este salmo é sem dúvida um

ato de confiança. Se atendermos a critérios e indícios formais, assomam

gêneros diversos a partir do salmo. Os comentadores, tomando algum ou

Page 18: SALMO 91: UMA EXALTAÇÃO DE YHWH PROTETOR

18

alguns dos indícios, elevam-nos à categoria definitória, em instrutiva

divergência de diagnósticos: liturgia de enfermo, liturgia de asilo no templo,

liturgia real, liturgia de entrada no templo, exortação sapiencial, catequese.

Cada tentativa de catalogação apóia-se em algum dado certo e lança mão de

alguma conjetura. A maioria das propostas orienta-se para a liturgia, a qual

pode ser o gênero ou a situação: um texto que fixa as fases da cerimônia ou

um texto que se recita em contexto cultual. A referência litúrgica é provocada

pela mudança de vozes no salmo.

Dos pareceres expostos acima, emergem ao menos três categorias básicas:

salmo sapiencial, salmo de proteção divina, liturgia. Todavia, parece claro que o tema

do Salmo 91 é a proteção divina. Retomando a estrutura proposta anteriormente para

essa composição, será que poderia servir como modelo literário para o gênero “salmo de

proteção divina”?

Pode ser feita uma tentativa com o Salmo 121, o qual Monloubou (1996, p. 66)

e Raguer (1998, p. 33) reúnem na mesma classificação que dão ao Salmo 91. No quadro

comparativo abaixo, percebe-se, de fato, que os conteúdos de ambos organizam-se

basicamente nos mesmos elementos, com exceção de o quiasmo não ser concêntrico no

caso do Salmo 121. É comum, inclusive, a presença de mais de uma voz.

SALMO 91 SALMO 121

ABERTURA

I. Promessa ao que se coloca sob a proteção de YHWH A

I.1 [Arauto de YHWH]: Sentar-se sob

a cobertura de ‘Elyôn assegura o

pernoite sob a sombra de Shadday

(1)

I.1 [Protegido de YHWH]: Elevando

os olhos para os montes, pergunta

por seu socorro (1)

I.2 [Protegido de YHWH]: YHWH é

para ele abrigo, cidadela e apoio (2)

I.2 [Protegido de YHWH]: Declara

que seu socorro vem de YHWH (2)

DESENVOLVIMENTO DO TEMA

[Arauto de YHWH]: [Arauto de YHWH]:

II. As manifestações de YHWH em favor de seu protegido B

II.1 Livramento (3) II.1 O guarda de Israel, que não dorme

nem cochila, não deixará seu pé

tropeçar (3s)

II.1.1 Da armadilha do

passarinheiro

II.1.2 Da pestilência destruidora

II.2 Abrigo sob as asas divinas (4a) II.2 YHWH guarda-o (5)

II.3 Sustentação (4b) II.3 YHWH é sua sombra à sua direita

(5)

III. As ameaças que YHWH afastará de seu protegido C

III.1 O espanto da noite (5a) III.1 O sol que fere de dia (6)

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19

III.2 A flecha que voa de dia (5b) III.2 A lua que fere de noite (6)

III.3 A pestilência que anda na escuridão

(6a)

III.4 A epidemia que arruína ao meio-dia

(6b)

III.5 A mortandade (7ab)

III.6 A impunidade dos malvados (8ab)

IV. Declarações sobre “YHWH protetor” X

IV.1 [Protegido de YHWH]: YHWH é

abrigo para ele (9a)

IV.2 [Arauto de YHWH]: O protegido

pôs sua morada em ‘Elyôn (9b)

[Arauto de YHWH]:

V. As ameaças que YHWH afastará de seu protegido C’

V.1 O mal não lhe sucederá (10a) YHWH irá guardá-lo de todo mal

(7a)

V.2 O flagelo não se juntará à sua tenda

(10b)

VI. As manifestações de YHWH em favor de seu protegido B’

VI.1 A guarda dos emissários de YHWH:

os pés do protegido não tropeçarão

(11s)

YHWH guardará a garganta (vida)

dele (7b)

VI.2 A prevalência sobre animais

perigosos (13ab)

ENCERRAMENTO

[YHWH]:

VII. As promessas de YHWH ao seu protegido A’

VII.1 Resgate do perigo porque se prendeu

fortemente em YHWH (14a)

YHWH guardará sua entrada e

saída, agora e sempre (8)

VII.2 Colocação em lugar alto porque

penetrou o nome divino (14b)

VII.3 Resposta ao clamor e companhia na

aflição (15a)

VII.4 Resgate da aflição e honraria (15b)

VII.5 Prolongamento de dias (16a)

VII.6 Largueza (16b)

Quanto ao ambiente social de origem do Salmo 91, sugeriu-se que fora

destinado ao culto no Templo de Jerusalém, provavelmente no período pós-exílico

(SELLIN; FOHRER, 1977, p. 423). A frase de abertura (“Quem se sentar sob a

cobertura de ‘Elyôn sob a sombra de Šadday pernoitará”), se comparada com Sl 27,4s43

,

por exemplo, sugeriria o Segundo Templo como local de origem da composição. Não é

de estranhar que o sacerdócio comprometido com a exclusividade de YHWH e de seu

43 Observar a presença do vocábulo lk'yhe (hêkāl: “templo”) e da expressão Alh\a' rt,seB. (besēter ‟āholô:

“sob a cobertura de sua tenda”).

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20

culto no santuário de Jerusalém (REIMER, 2009, p. 48-50) estivesse também

interessado em tornar aquele local o dispensador autorizado de medidas “profiláticas”.

A assimilação de algumas divindades (‘Elyôn, Šadday, Bēs[?]) por YHWH, o

rebaixamento de outras à categoria de demônios ou nomes genéricos para

acontecimentos naturais (Réšep, Déber e Qéteb) e o empoderamento de YHWH como

Deus único, cujo poder é manifesto na terra por meio de emissários (mal‟ākîm, no

hebraico; ângueloi, no grego), são fenômenos que parece terem assumido contornos

mais incisivos no período pós-exílico, isto é, a partir do final do século VI AEC.44

Considerações finais

Com sua breve exegese, este artigo quer estimular outras investigações sobre o

Salmo 91. É plausível perguntar que influência teve sobre a literatura judaica posterior.

O livro de Tobias, que deve datar do início do século II AEC (LÍNDEZ, 2006, p. 30),

parece desenvolver, em forma narrativa, várias de suas imagens: Deus envia o anjo

Rafael para curar Tobit e Sara (Tb 3; Sl 91,10-12); Rafael guia Tobias à Média e ajuda-

o a dominar um grande peixe que queria devorar seu pé (Tb 6; Sl 91,11-13); com as

instruções de Rafael, Tobias livra Sara do demônio Asmodeu que atacava na noite de

núpcias (Tb 8; Sl 91,5s.10s); Tobias presencia a derrota dos assírios (Tb 14; Sl 91,8).

Sem dúvida, a poesia do Salmo 91 continuará a enriquecer a espiritualidade de

tantos quantos quiserem refletir acerca de sua exaltação a YHWH protetor.

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44 Um excelente estudo sobre como as memórias do Antigo Israel relativas às suas divindades foram

moldadas pelo monoteísmo que se configurou entre os judeus no exílio e no pós-exílio acha-se em SMITH, 2006.

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Artigo recebido em 05.11.2012

Artigo aprovado em 22.12.2012