saindo do silêncio: mulheres negras educadas no vale do guaporé
TRANSCRIPT
SAINDO DO SILÊNCIO: MULHERES NEGRAS EDUCADAS NO VALE DO GUAPORÉ NO SÉCULO XX
Paulo Sérgio Dutra IE - UFMT - [email protected] Patrícia Marques de Souza IE - UFMT- [email protected]
Nailza da Costa Barbosa Gomes IE – UFMT – [email protected] Mary Diana da Silva Miranda IE - UFMT - [email protected]
Resumo
O presente trabalho é desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória do Programa de Pós-Graduação do Instituo de Educação da Universidade Federal do Mato Grosso. O estudo apresenta resultados parciais de uma pesquisa em que se analisa a formação profissional recebida pelas professoras negras que atuaram na instrução pública no Vale do Guaporé. Os ideais de nacionalismo, eugenia e higienismo são proposições para a análise da educação recebida pelas professoras negras formadas e que atuaram na instrução pública nas décadas de trinta e quarenta na educação guaporeana; época em que esses ideais eram intensos nos discursos dos intelectuais responsáveis pelo futuro da educação brasileira construindo a nação. Este estudo parte das fontes históricas, iconográficas e relatos orais em que se pretende entender a história da educação do Vale do Guaporé através da memória dessas professoras e como os ideais nacionalistas às influenciaram. Utiliza-se, ainda, trabalhos acadêmicos realizados sobre professoras negras que atuaram na região guaporeana no início do século XX e documentos oficiais da época. Esta pesquisa traz algumas indagações acerca do período em que as professoras negras receberam a instrução para atuar nas escolas da região. Tais indagações referem-se ao percurso das professoras negras como alunas, assim como as suas práticas pedagógicas e relações com a comunidade. Os documentos registram a presença de adolescentes negras, que foram educadas em instituição religiosa mantida pelo frade franciscano Dom Francisco Xavier Rey e que passaram a atuar como professoras e agentes de saúde na região.
Palavras-chave: educação e formação docente, eugenia, nacionalismo, higienismo.
1
SAINDO DO SILÊNCIO: MULHERES NEGRAS EDUCADAS NO VALE DO GUAPORÉ NO SÉCULO XX
Paulo Sérgio Dutra IE - UFMT - [email protected] Patrícia Marques de Souza IE - UFMT - [email protected]
Nailza da Costa Barbosa Gomes IE – UFMT – [email protected] Mary Diana da Silva Miranda IE - UFMT- [email protected]
Este artigo é parte do resultado de uma pesquisa oral e documental, desenvolvida junto
ao Grupo de Pesquisa Educação e Memória (GEM), da Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT), cujo objetivo é analisar a educação recebida pelas professoras negras, educadas
numa escola criada pelo Frei Dom Francisco Xavier Rey1 para vencer o analfabetismo na
região do Vale do Guaporé na década de 30 a partir dos ideais de nacionalismo, eugenia e
higienismo.
O interesse por esse objeto de estudo surgiu a partir do conhecimento da existência
da escola que foi fundada por Dom Rey no ano de 1933, direcionada à preparação de meninas
negras, provenientes de famílias pobres que residiam nas povoações ao longo do Vale do
Guaporé para atuar nas suas localidades de origem como professoras.
Para construir este estudo, recorreu-se à entrevista estruturada onde as professoras
falavam de suas histórias com interrupções quando necessário, e num segundo momento
1 - Dom Francisco Xavier Rey, nasceu na França no dia 29 de junho de 1902, ingressou no noviciado dos Franciscanos da Terceira Ordem Regular de São Francisco, em Ambbialet e foi ordenado sacerdote em Albi no dia 23 de junho de 1929.
Iniciou sua vocação missionária em São Luiz de Cáceres em Mato Grosso e fundou a Missão de Guajará-Mirim. Foi nomeado prelado a 25 de julho de 1931, tomando posse da Prelazia recém criada em 25 de janeiro de 1932.
Em 1932, Dom Rey criou um projeto progressista de educação para meninas negras em Guajará-Mirim em que gerações de educadoras foram formadas e indicas para assumirem escolas nas povoações ao longo do Vale do Guaporé. No final da década de 50 outras escolas foi criadas nas proximidades de Costa Marques na Ilha das Flores encurtando as viagens e tempo das futuras educadoras formadas ali. Dom Rey viveu seus últimos anos nessa escolas falecendo em 1984.
2
optou-se pela entrevista semi-estruturada para evidenciar através desses relatos os pormenores
a serem esclarecidos para compreensão da história da formação dessas professoras. Utilizou-
se também um álbum fotográfico encontrado com imagens que revelam o cotidiano das
professoras negras na época, fontes documentais encontrada no Arquivo Público de Mato
Grosso, e no banco de dados do GEM – Grupo de Pesquisa em Educação e Memória do IE
-Instituto de Educação da UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso. Para completar a
busca por pistas que subsidiasse melhor o trabalho, recorreu-se também a trabalhos
acadêmicos produzidos a respeito das historiografias de povoamentos encravados no Vale do
Guaporé2.
Como, o pano de fundo, traz o processo educacional de mulheres negras educadas
no Guaporé, contudo, se faz necessário compreender a educação das mulheres no tocante ao
período que corresponde a Primeira República. Nesse sentido, Muller (1999), parafraseando
Freyre (1943), afirma que as mulheres que faziam parte da sociedade colonial tomavam
conhecimentos dos acontecimentos sociais através das conversas com suas criadas que tinham
transito livre socialmente. A situação das mulheres das classes abastadas geralmente era mais
difícil, só saiam de casa quando se casavam, nem mesmo podiam escolher com quem se casar,
seus matrimônios eram frutos de casamento arranjados, os quais o futuro marido deveria
pertencer à mesma classe que a noiva, isto posto era inevitável acontecer o casamento. No
entanto para Muller (1999);
Os movimentos do final do século3, entre eles a campanha abolicionista e republicana, ao atualizarem os ideais de igualdade e liberdade, abriram um campo fértil para a defesa da educação da
2 O vale do Guaporé está encravado no noroeste mato-grossense tendo como marco principal o Rio Guaporé que nasce na extremidade setentrional da Serra dos Parecis em Mato Grosso, seu curso tem um total de 1.717 Km, sendo 1.500 navegáveis que corre em direção ao norte do Brasil, onde se encontra com o Rio Mamoré. Tanto os rios Guaporé e Mamoré marcam a fronteira entre Brasil e Bolívia. A extensão das terras guaporeanas é formada por bases sedimentares integrando o relevo do Vale do Guaporé destacando-se as Serras dos Parecis e Pacaás Novos. É nesse espaço que se desenvolve uma das experiências mais significativas sobre educação de mulheres negras na instrução pública no decorrer do século XX.
3 Por tratar de uma obra escrita no ano de 1999, a autora refere-se ao século passado, para tanto se lê século XIX.
3
mulher e de sua participação mais ativa na sociedade. (MULLER, 1999, p. 97-98).
Muller (1999), diz que o ingresso da mulher no mundo público, sua afirmação
profissional e política pressupunham o princípio de uma promoção que passava pela aquisição
de certa competência doméstica: a mulher sendo competente no seio da família, capaz de
racionalizar as atividades domésticas, zelar pela saúde de sua prole e de seu cônjuge, de
acordo com os preceitos da ciência, era capaz também de bem desempenhar-se, no domínio
público. Sobre o ponto de vista de intelectuais da época a autora enfatiza; “Higienistas e
positivistas, partindo desse ponto de vista, defendiam o papel positivo que a mulher poderia
desempenhar no seio da família e, que, através dos filhos, poderia influenciar nos destinos da
sociedade”.(MULLER, 1999, p.98).
A autora revela que, a primeira lei do ensino primário promulgada no Brasil,
aconteceu em 1827, e previa a existência de professoras; mas portanto era vedado à elas o
ingresso às escolas de ensino superior, no entanto essas podiam exercer o magistério primário.
A autora ainda coloca que muitos intelectuais da época; como Almeida de Oliveira, Manoel
Francisco Correia e Félix Ferreira defendiam a presença das mulheres no magistério. Rui
Barbosa, entretanto, externou sua opinião num parecer no ano 1882 defendendo claramente a
presença feminina no ensino primário.
Portanto, interessa-nos investigar como as professoras negras chegaram à instrução
pública no Vale do Guaporé; interessa também compreender através de seus relatos orais,
quais implicações as discussões sobre a formação da nação brasileira baseado no pensamento
nacionalista incorreram sobre o período em que essas professoras negras receberam a
instrução, especificamente nas ações educacionais estabelecidas na escola de Dom Rey. Não é
diferente o nosso interesse sobre as suas práticas escolares.
Dávila (2006), apresenta uma discussão sobre a formulação as políticas educacionais
higiênicas, a feminização do magistério e as tentativas de branqueamento da população
brasileira, no entanto reforça que;
4
Os lideres dos reformadores educacionais que construíram ou expandiram os sistemas de escolas públicas pelo Brasil no período entreguerras não eram só pedagogos. Na verdade, poucos tinham treinamento pedagógico. Eles eram médicos e cientistas sociais atraídos pela perspectiva de utilizar a educação pública como arena para a ação social. Esses reformadores estabeleceram uma visão de valor social que privilegiam aparência, comportamento, hábitos e valores brancos, de classe média. (D’ÁVILA, 2006, P. 32).
A feminização do magistério no início do século XX, mostra a construção de um outro
panorama, para a participação das mulheres nos espaços antes ocupados por homens. No
Guaporé, as professoras negras experienciaram situações divergentes das situações
vivenciadas por outras professoras educadas em outras partes do país, como afirma Muller
(1999, p. 201) enfatizando que “ela lutou muito para ser aceita como produtora de
significados e dar legitimidade à sua inserção profissional”. Não obstante, em relação às
professoras negras dos Guaporé, elas puderam iniciar um trabalho, aguçar a curiosidade,
mexer com o imaginário das pessoas das localidades.
Elas eram orientadas porque no colégio das irmãs tinham enfermeiras também, elas eram orientadas também nessa parte de enfermagem, também de educação física, então naquele lugar que elas estavam, elas eram todas (tudo) elas eram tudo, não eram todas, então, elas eram professoras, enfermeiras, conselheiras, sabe? Tudo isso elas faziam, certo, então, quando havia uma briga onde não tinha delegado elas iam apaziguar, sabe? Tudo isso acontecia. (Professora Alexandrina Gomes em entrevistas em janeiro de 2009)
Elas pertenciam ao universo de pessoas de maior status na região, em outras, eram as
de maior status. Quando a população queria alguma coisa pedia para as professoras, elas eram
consultadas, faziam às vezes de muitos outros sujeitos responsáveis ora pela incumbência dos
religiosos, ora pela ausência dos médicos, ou ainda por mediar conflitos judiciais. Então as
experiências cotidianas da professoras negras no Guaporé por muitos anos estiveram nas
5
mesmas proporções de qualquer outro poder; elas exerciam poderes que influenciavam a
comunidade nas decisões, eram porta-vozes de suas angústias e alegrias, eram modelos a
serem seguidos, coordenavam diversas situações exigindo-lhes uma conciliação e solução
final para os acontecimentos. Em alguns depoimentos isso fica evidenciado que o espírito de
liderança era pré-requisito para ocupar um cargo, e isto era evidente na atuação de muitas
delas;
(...)1982 foi uma eleição assim fora, ai o próprio, não, não houve eleição ainda, foi criado o estado ai ficou, mas eu ainda era a responsável por área (da educação), ai quando passou a estado ai o governador, que não tinha prefeito né, chegou lá e falou “você vai ser a secretária municipal”, porque ele gostou muito do meu trabalho porque eu andava pelas escolas, porque modéstias à parte eu fazia um bom trabalho. Perto desses professores; porque eu tinha pena deles, cada feriazinha eles vinham aqui para Guajará para se atualizar, eles tinham curso de férias em julho e janeiro, os coitados não descansavam, com a minha ida para lá, ai, já apareceram professores com o terceiro grau ai a gente já dava o curso para eles lá em Costa Marques e eu tinha pena deles por que eles não recebiam material (...)(grifos meus), (Professora Alexandrina Gomes em entrevistas em agosto de 2008).
Através desse depoimento manifestam-se, de maneira clara, as atribuições das
professoras negras que foram exercer o magistério nas povoações do Guaporé contrastando
com as colocações de Muller (1999) no que se refere à legitimação para as mulheres de suas
conquistas. Como bem colocou a autora, as professoras gozavam de uma autonomia maior
que as concedidas às mulheres de sua época, talvez no Guaporé essa autonomia tenha
excedido a esse sentido e sido experienciada em plenitude ou com vasão maior.
Essas possibilidades foram vivenciadas pelas professoras negras do Guaporé ao longo
de décadas, até esvaírem-se, as capacidades para continuar a atuar no magistério. Faz-se
necessário, compreender de onde saiu tanta cumplicidade que as fizessem senhoras de seu
tempo; dois fatores são primordiais para a compreensão da importância dessas professoras na
atuação além do magistério em suas povoações. Primeiro, as reconstituições das tradições
religiosas durante décadas; segundo, a escola de Dom Rey que funcionava numa dinâmica
6
progressista.
No Vale do Guaporé houve possibilidades para a recriação de valores relacionados à
negritude já que a população das localidades guaporeanas vinha de um longo processo de
reconstituição dessas potencialidades e dos mecanismos de afirmação. As festividades
religiosas configuram-se como uma das maneiras de se constituir como sociedade com
valores em contraposição ao pensamento eugênico da época, segundo Silva (2002);
(...) o povo de Vila Bela já nasce mergulhado nessas narrativas e práticas religiosas e continuam comemorando e rememorando essas práticas pelo resto de sua vida.
Os santos, como já foi dito, revelam e garantem um modelo de vida na região do Guaporé. Apossar-se do santo, adotá-lo no nome, aprender sua reza, devotá-lo com festas, todos esses rituais são a certeza que o homem guaporeano tem para constituir e conservar sua verdadeira história, e que em muitos momentos, se confundem com a história desses santos. (SILVA, 2002, p. 112).
Essas festividades foram recriadas ao longo das comunidades estabelecidas no Vale do
Guaporé atingindo até mesmo povoações bolivianas. Entretanto, talvez sem a recriação dessas
festividades religiosas, a história dessas povoações tivesse sido outra. Estabelece-se aqui, uma
metáfora entre as passagens da reconstituição de seus valores nessas localidades e os ideais da
época, caso, não tivessem “vestidos com as roupas e as armas de Jorge” simbolizando a capa
e espada de São Jorge no catolicismo e Xangô4 o Santo Guerreio no panteon Iorubá dos
Orixás. Postula-se ainda que, não teriam conseguido manter suas tradições para seus
coetâneos, caso a escola de Dom Rey tivesse tomado as proporções que o pensamento
educacional exigia nas décadas de trinta e quarenta.
Para melhor compreender como a contraposição ao pensamento educacional eugênico
nas primeiras décadas do século XX se deu, apresentamos aqui três experiências onde esta
contraposição pode ser identificada nas relações dessas professoras negras com suas
comunidades. Primeiro a experiência da Professora Verena Leite Ribeiro formada no 4 Divindade dos raios e trovões. Tem como missão através da sua opulência justiceira, legislar em favor dos
menos e dos mais afortunados. Sua saudação é: Kawó-kabiyyésíle!
7
Colégio Santa Terezinha que atuou em Vila Bela da Santíssima Trindade, segundo a
experiência da Professora Isabel Oliveira de Assunção que atuou em Limoeiro, Santa Rosa e
depois encerrou sua carreira em Guajará-Mirim e terceiro trataremos da experiência e das
dinâmicas as quais a Professora Alexandrina do Nascimento Gomes vivenciou atuando na
região de Costa Marques.
Como foram educadas numa época em que os ideais de nacionalismo, eugenia e
higienismo foram proposições para a construção de uma educação que refletisse o ideal de
nação nas décadas de trinta e quarenta, analisaremos os resultados de tais ideais nas práticas
das professoras elencadas para a construção deste texto. É nítido, em alguns aspectos essas
idéias em suas práticas, seus discursos e simbologias. É evidente que em alguns casos esses
ideais não conseguiram se quer comprometer as experiências de tradição religiosas; outro
elemento importante foi em decorrência da educação recebida na escola de Dom Rey não
permitindo que as comunidades negras estabelecidas em diversas localidades ao longo do
Vale do Guaporé fossem suprimida pelo ideal de branqueamento. Isto fica explicito em
situações reveladas nos relatos das entrevistadas; a Professora Isabel de Oliveira enfatizou;
Eu mesmo trabalhando encontrei meninos assim, que não sentava junto porque o outro era negrinho, ai eu chamava ele, ele batia no negrinho, o negrinho chorava, ai eu ia lá conversava com ele, chamava os dois juntos junto de mim e eu dizia pra ele “eu sou sua professora?” Ele sacudia a cabeça que sim, “eu estou lhe ensinado a ler e escrever e amanhã você vai ser um homem, na vida não vai? Ele dizia que sim, “me diz uma coisa essa professora que esta te ensinado ela é branca?”Ele dizia que não, “então porque você chama seu coleguinha de negro? Você está sendo... Quem está lhe ensinando é uma negra, eu aqui sou sua professora, sua mãe, viu?”, “eu conversava muito com eles, viu?”. (grifos meus), (Professora Isabel de Oliveira em entrevista em agosto de 2008)”.
Nesse relato observa-se a atuação da professora como mediadora de um conflito
estabelecido nas relações cotidianas. Imagina-se que talvez esses meninos, ou as meninas
tenham vivenciado esses embates diariamente na educação guaporeana; contudo o que mais
8
chama a atenção é quando o negro é colocado numa perspectiva positiva, como ponto de
referência na fala da professora “me diz uma coisa, essa professora que está te ensinado, ela
é branca?”, “quem está lhe ensinado é uma negra”; nesse momento ela abriu possibilidades
para a reflexão, fazer a criança tomar partido, reconhecer aspectos até então, que não eram
percebido em relação ao sujeito negro. A conduta da professora Isabel de Oliveira não é
própria do pensamento educacional da época; visto que ideais de branqueamento e da
degeneração eram intensos nos discursos dos intelectuais responsáveis pelo futuro da
educação brasileira construindo a nação.
Diante dessa perspectiva, na educação ofertada nessa escola, os princípios explícitos
no ideal educacional de Afrânio Peixoto, Lourenço Filho e Fernando Azevedo nas políticas
educacionais formuladas para a educação brasileira nas primeiras décadas do século XX, não
chegavam até as alunas de Do Rey, como explicita a indagação feita por Paulo Dutra em
entrevista em janeiro de 2009:
Paulo - Professora eu falava agora pouco com a senhora sobre a questão dos ensinamentos, então diziam que o Brasil, diziam não, está escrito; vários autores já escreveram dizendo que no Brasil entre os anos de 30 até 50, a educação era eugênica, ou seja, eles ensinariam comportamento de branco, a história do branco, valorizariam tudo do branco em detrimento aquilo que é do negro. Até falavam que o negro era degenerado, se o negro se casasse com uma branca o filho nasceria degenerado herdaria aquilo que não bom o que a senhora pensa, o que a senhora viu, a senhora chegou a estudar algo sobre isso?
Professora Alexandrina - Eu não li nada sobre isso e nem tão pouco na escola foi falado sobre isso, agente estudava tanto sobre o negro quanto sobre os brancos, inclusive Zumbi, a senzala essas coisas ai, mais falar de, de... (grifos meus) (Professora Alexandrina do Nascimento Gomes em entrevista em janeiro de 2009)
Tais atitudes, comportamentos e maneira de se colocar diante de situações que
sugerissem conflitos cotidianos; advém das experiências educacionais adquiridas nas escolas
criadas por Dom Rey, o Colégio Santa Terezinha fundado em 1933, que anos depois, passou a
9
chamar-se Instituto Nossa Senhora do Calvário, e a escola Rural Governador Mader
construída em Ilha das Flores5, tinham como função formar educadoras para “suprir as
comunidades” como relatou uma das nossas entrevistadas. O Colégio Santa Terezinha era
organizado a princípio com carteiras e bancos construídos a partir das caixas de madeiras que
vinham com alimentos e materiais. Havia dormitórios, refeitórios e salas de aulas. Em 1933,
a escola para internas começou a funcionar recebendo as meninas que vieram de diversas
partes do Vale do Guaporé. O número chegou a trinta meninas e completaram a classe com
duas adolescentes de Guajará-Mirim e uma da estrada de Ferro somando trinta e três alunas.
A proposta de educação do Colégio Santa Terezinha, além dos ensinamentos básicos, capacitavam meninas para serem, líderes nas suas comunidades, agentes de saúde, para prestar pequenos socorros e fazer atendimentos primários (GONÇALVES. 2000. p. 46)
Em 1935, Dona Pretinha a primeira professora das adolescentes e diretora da escola,
adoeceu e viajou para Manaus para tratar-se; vieram então, as primeiras religiosas para dar
continuidade ao trabalho de Dom Rey. O bispo comprou um terreno ao lado da escola para
ampliar o colégio. A nova construção foi um barracão construído de madeira e coberto de
tabuinha.
Em relação ao conteúdo aprendido no Santa Terezinha, disseram as entrevistadas
sobre as professoras “Ah! Elas ensinavam tudo era um ensino perfeito” enfatizou a Professora
Alexandrina do Nascimento Gomes, e assegurou, “elas ensinavam Geografia, elas ensinavam
Ciências, ensinavam História Geral, agente sabia todas as capitais desses países que eram
perguntados na sala de aula, sabe?”. De acordo com a Professora Patrícia Gomes “A irmã
São Rafael dava Matemática, a irmã Maria Augustinho dava Português, Estudos Sociais,
naquele tempo separava né, era Estudos Sociais, Geografia, Português e Matemática”.
Em relação à formação de professores no final da década de 30, era responsabilidade
5 Ilha das Flores localiza-se nas proximidades de Costa Marques onde foi fundada a segunda escola de formação de professoras por Dom Rey na década de 60, a Escola Rural Governador Mader. Nesse trabalho não discorreremos sobre a experiência educacional realizada nesta escola, mas atesta-se através de informações que a experiência realizada na escola Rural Governador Mader teve repercussão tanto quanto as experiências vivenciadas no Colégio Santa Terezinha.
10
do estado. O Regulamento de Ensino de 1942; evidencia que tanto o Liceu Cuiabano quanto
o Liceu Campo-grandense conforme regulamentava o Decreto n. º 112, de 29/12/1937, eram
responsáveis pela formação do professores no estado de Mato Grosso. Para tanto havia o
curso especializado para professores no Liceu Cuiabano (Artigo 1º e 4º do Decreto Citado) e
a escola normal estadual de Campo Grande funcionaria em anexo ao Liceu Campo-grandense
de acordo com o Decreto n. º 229 de 27/12/1938, com um curso especializado para formação
de professores com a duração de um ano.
No curso especializado, para a formação do professor primário, contava com um
currículo que compreendia, o ensino das seguintes disciplinas: Didática, Prática de Ensino,
História da Educação, Escrituração Escolar, Psicologia Geral e Educacional, Pedagogia,
Biologia Aplicada a Educação; Higiene da Criança e Higiene Escolar, Domiciliar e Rural;
Trabalhos Manuais (Artigo 4º do Decreto Citado).
No Colégio Santa Terezinha, a Professora Isabel de Oliveira esclarece em seu relato
que as avaliações eram realizadas no final do ano, havia provas escritas e provas orais “No
fim do ano quando nos íamos entrar de férias, então tinha as provas escritas e orais, nessa
prova oral, tinha a prova escrita e era tudo corrigido, não tinha esse negócio de dar peixada
não errou, errou”.
Nascidas ao longo do Vale do Guaporé entre 1910 e 1935 elas cresceram e mantinham
suas dinâmicas de vida sem muitas perspectivas em relação ao “mundo das letras”, apenas
contribuíam ou observavam através das experiências cotidianas “o fazimento”, a manutenção
das suas práticas culturais e os valores que eram ensinados pelo mais velhos. São mulheres
fortes, astutas, sábias e guerreiras testemunhando a saga da educação no “Vale Negro6”.
Foram professoras, prefeitas, juízas de paz, leitoras de cartas e secretarias de educação. Elas
desafiaram o inóspito, recriavam suas práticas e instruíam-se, através de cartas à distância às
6 A região do Vale do Guaporé é uma região de população historicamente, de maioria negra e indígena, a presença do branco é fruto a partir das constantes migrações para a extração da borracha. Essa percepção é visível no cotidiano da população local. De Vila Bela a Guajará-Mirim são muitas as povoações, comunidade, vilas e cidades que ainda mantém características étnicas relacionadas ainda a presença do negro e do indígena, outro fator importante é a presença do boliviano na composição dessas populações. Isto explica o termo “Vale Negro” utilizado para designar a região do Vale do Guaporé.
11
vontades de “se aprender”. São mulheres de vontades maiores; que assumiram um grande
compromisso em colocar uma população, daquelas localidades no reino de domínios do
conhecimento. Formaram suas sucessoras, serviram e servem de espelho, tanto para a alma
quanto para a vida. Qualquer pessoa que anda pelas ruas de Guajará-Mirim, visto que a
população nativa é em proporção ainda relevante na cidade, ouve-se sempre frases. “Eu devo
muito a Professora Alexandrina”, “Ela foi minha professora, excelente professora”, “sou bem
colocado hoje porque aprendi muito com a Professora Isabel”, “A Professora Patrícia foi a
minha melhor professora”, “Sem elas o que seria do Guaporé?” E por ai vão as falas sendo
reproduzidas num solene coro em louvor às mestras negras que romperam com o
analfabetismo ao longo do Vale do Rio Guaporé.
As adolescentes vindas de muitas localidades a beira do Guaporé se formaram
professoras e foram designadas para lecionar em muitas dessas localidades, como: Rolim de
Moura do Guaporé, Limoeiro, Pedras Negras, Santa Rosa, Santa Fé, Porto Murtinho, Santo
Antônio e Vila Bela da Santíssima Trindade; educando os futuros comerciantes, funcionários
públicos e núcleos familiares.
Essas primeiras professoras do Vale do Guaporé, instruídas na escola de Dom Rey,
educaram as comunidades a começar por suas famílias. Famílias de irmãs professoras; ex-
alunas que substituíram suas professoras; e outras que exerceram a profissão fazendo suas
sucessoras. Algumas se aposentaram e outras anos depois de exercer a docência, nas esferas:
federal, estadual e municipal retardaram a chamada aposentadoria negando-se, cair no
esquecimento e querendo eternizar aquilo para o qual foram formadas nas primeiras turmas
“ser professoras”.
12
PROFESSORA VERENA LEITE RIBEIRO.
Indicada por Dom Rey para assumir a docência na instrução pública nas primeiras
escolas criadas no Vale do Guaporé, a professora Verena Leite Ribeiro teve sua história
contada em Viva Bela Verena: a saga de uma professora negra na memória de uma
comunidade da mesma cor por Gonçalves (2000), que reconstrói a trajetória desta professora
onde sua relação com a comunidade é expressa através de uma ancestralidade mítica.
Professora, enfermeira e líder religiosa Verena Leite Ribeiro foi uma educadora à frente de
sua época.
Verena Leite de Brito, como veremos, desempenha papel importantíssimo nessa conjuntura de mudanças sociais. Para melhor compreendermos o processo social de construção da ancestralidade mítica, vamos seguir, resgatar os aspectos biográficos de sua trajetória como mulher, professora, rezadeira e enfermeira numa comunidade negra em movimento. (GONÇALVES, 2000, p. 39).
Em Silva (2002), que desenvolveu um estudo sobre a influência da oralidade na
memória e na cultura dos vilabelenses, advoga a importância do trabalho desenvolvido pela
Professora Verena Leite Ribeiro perante a sua comunidade e destaca que;
No espaço escolar sua pedagogia tomava um outro rumo, pois sua ação centrava-se no aluno, que era o centro do processo pedagógico. Concebendo esse aluno como um sujeito histórico, Verena não perdia de vista o contexto em que esse aluno estava inserido: uma comunidade étnica imbuída de uma visão coletiva na qual os seus membros, além do respeito às diferenças da cada um, primava, também, pela visão de complementaridade. Sendo assim, os seus alunos se reconheciam como sujeito, juntamente com a comunidade, nesse processo cultural de transmissão de conhecimento. (SILVA, 2002, p. 189).
Mediante as colocações do autor pode-se confrontar a prática desta professora como
uma contraposição aos ideais eugênicos veiculados na primeira república; Dávila (2006) deixa
13
claro em sua obra as características eugênicas e nacionalistas, construídas através dos
intelectuais da época a respeito da educação para a formação da nação brasileira. Uma
professora negra distanciando suas práticas do pensamento racista, refazendo pensamentos e
estratégias para contribuir na construção dos sujeitos sob sua tutela, assegurando a
continuação e fortalecimento dos valores de sua comunidade. A Professora Verena segundo
Silva (2002) convencia os seus pares a se envolver no objetivo de educar as crianças da
cidade e no objetivo de criar um novo espaço público escolar. Verena soube adequar os
conteúdos dessa escola a realidade de sua comunidade. Gonçalves (2000) enfatiza que Verena
além de ser excelente alfabetizadora, não admitia que nenhuma criança saísse de sua escola
sem saber ler, escrever e fazer as quatro operações, pois procurava a todo o momento motivar
os seus alunos, propiciando-lhes um processo de ensino-aprendizagem que os levassem
também à superação da inibição e timidez utilizando estratégias como o teatro, a história e a
música. Assim Silva (2002), destaca a importância da liderança desta professora;
Essa grande mulher não foi uma professora comum. Sábia, soube fazer de sua escola um mecanismo de afirmação, também da identidade étnica do povo negro de Vila Bela. Sua ação educativa ajudava a formar o membro dessa comunidade negra, enquanto sua escola não constrangia seus alunos, mas sim os respeitava, valorizando sua capacidade de aprendizagem, sem jamais castigá-los. Seu poder e autoridade não se centravam no uso da violência, mas sim na competência e sensibilidade para com os valores de sua comunidade. Assim, na ação pedagógica demonstrava respeito comunitário e encarava os membros dessa comunidade como pessoas de uma realidade concreta. Desta forma, a escola não deveria mudar essa realidade, mas sim servi-la. Pois, para ela, o que deveria definir as ações e os objetivos da escola era a comunidade e não o contrário. (...) Ela se revela, assim, a grande líder da comunidade, pois era mestra no trato dos interesses de sua comunidade e de seus pares. Por isso, ela ganha um grande destaque neste vasto e rico acervo oral dos negros de Vila Bela. A oralidade lhe designa lugar de honra em sua memória. (SILVA, 2002, p. 191).
Durante trinta e três anos segundo Gonçalves (2000) a escola em que a Professora Verena Leite Ribeiro atuou manteve em Vila Bela uma educação voltada para sua etnia, uma educação de negros para negros.
14
PROFESSORA ISABEL DE OLIVEIRA.
A professora Isabel de Oliveira Assunção mesmo que não tenha sido uma das
primeiras professoras indicadas para o magistério nas primeiras escolas criadas nas
localidades ao longo do rio Guaporé assistiu, constatou e guardou em sua memória as
passagens as quais a protagonização dos fatos, dos feitos, dos episódios e dos acontecimentos
os quais muitas destas professoras experienciaram.
No entanto, em Bosi (1994) o conceito de memória é utilizado para demarcar o lugar
do “velho” na sociedade, como aquele que detém os segredos do passado, numa visão idílica,
rememorar, reviver e dar aos seus, o deleite ao contar a história e mostrar os nuances entre o
“agora e o antes”. A autora faz uma desmistificação das verdades entre, a contada pela
história oficial e guardada na memória que tem um valor diferente para a sociedade, mas não
valor menor.
Nesta perspectiva de memória e identidade, em alude (BOSI, 1994), a Professora
Isabel contará os nuances das arrumações em família, das ansiedades antes da partida para a
escola, das curiosidades em relação à nova experiência para as adolescentes nesta primeira
escola. Relembrará as experiências na sala de aula, o aprender bem para responder as
expectativas em relação ao futuro das futuras professoras, a formação e designação para as
localidades as quais elas haviam saído para cumprir o aprendizado do futuro ofício “serem as
professoras do Guaporé”.
A Professora Isabel de Oliveira foi indicada para auxiliar a sua irmã Paula de Oliveira
na povoação de Limoeiro, mas relata que ficou poucos meses tendo que ir atender a povoação
de Santa Rosa onde construíram uma escola coberta de palha e com assoalho para a nova
professora.
Para mostrar a sua dinâmica na atuação enquanto professora, a Professora Isabel
relatou sobre os dons nato, os quais ela e seus irmãos desenvolveram e colocaram a serviço da
comunidade, tanto escolar quanto do lugar.
15
De família numerosa a Professora Isabel de Oliveira aprendeu com um de seus irmãos
a dominar alguns instrumentos musicais que juntamente com o aprendizado na escola de Dom
Rey colocou em prática nas suas aulas, comemorações festivas, datas alusivas e outras.
Aprendeu tocar, violão, e diz,
(...) Eu não tinha grande especialidade assim no pandeiro, mas eu batia pandeiro, aprendi a tocar tamborim aquele baquesinho do tamborim (faz os gestos de quem esta tocando), agora acordeom eu lutei muito, mas não fui com o acordeom; agora o violão e o cavaquinho eu toquei muito...(Professora Isabel de Oliveira em entrevista em janeiro de 2009)
Estas habilidades valeram-lhes alguns títulos como animadora de comunidade, festas
familiares e de professora dinâmica já que essas habilidades foram utilizadas nas atividades
docentes.
Como afirma MULLER (1999) é a professora primária que no século XIX e século
XX, vai desenvolver o ideal de nacionalismo através da educação; isso fica explicito nos
relatos da Professora Isabel de Oliveira quando ela demonstra as suas habilidades em ensaiar
quadrinhas, hinos referentes às datas em comemoração e a realização de “Alvoradas” em
alusão ao Dia da Pátria;
(...) no sete de setembro nós fazíamos assim uma demonstração pro povo que ia assistir a festa, então agente ensaiava alguma coisa pra animar aquele dia, isso eu peguei do colégio, levei do colégio (grifos meus) e junto com a minha irmã Paula acabei de aperfeiçoar. Então agente ensinava quadrinhas assim, meninos recitavam, outros declamavam sobre o Dia da Pátria e agente conscientizava ele bem no sentido de fato o que significava aquela festa de sete de setembro. Não se fazia festa sem agente explicar para os meninos o porque, o que aconteceu no sete de setembro, quem foi (...) Então era uma aula de conhecimentos gerais. Então ensaiávamos canção, ensaiávamos música, ensaiávamos assim dança e nós acompanhávamos assim os alunos a cantar aquelas poesias, aquelas coisas todas, mas quando era no dia da apresentação para o público, então, nós chamávamos aqueles violeiros bem treinados para fazer um ensaio com os meninos e nós ficávamos coordenando lá, porque agente fazia até aquele palco e corria o pano e tudo isso aprendi no colégio... (Professora Isabel de Oliveira em entrevista em janeiro de 2009)
16
O ensino e valorização de aspectos referentes ao nacionalismo ficam evidente nas
palavras da professora em relação ao que se aprendia no Colégio Santa Terezinha “eu peguei
do colégio, levei do colégio”, “o que agente aprende, agente leva e faz também”. Essas as
práticas foram encontradas nos discursos de algumas destas professoras no cotidiano de sua
atuação. A professora ainda, em seus relatos, apresenta alguns hinos relacionados às datas
pátrias, tais como: Hino da Canção dos Soldados, a Nossa Senhora a Padroeira do Brasil, da
Independência, da Proclamação da República e da Bandeira. A professora Isabel de Oliveira
encerra nossa conversa dizendo “então vamos entoar o hino tal, não era eu quem tirava, era
ele quem tirava numa voz só; o hino da Proclamação da Republica, eles sabiam todos os
hinos”.
De acordo com seus relatos em relação aos ideais eugênicos, estes não chegaram até
seus ensinamentos recebidos na escola de Dom Rey, e tão pouco a sua sala de aula. Ela coloca
que havia preconceito muitas vezes entre as internas, e que tanto Dom Rey, quanto Dona
Pretinha intervia. Presume-se, que, se havia uma intervenção por partes de ambos é porque
sabiam que aquilo, ou tal comportamento, não correspondia aos objetivos da escola em
exercício e para qual ela fora criada; “as idéias educacionais eugênicas” até então em
vigência; neste grupo escolar não havia aportado. Contudo, o preconceito e a discriminação
estavam latentes no comportamento de brancos, pardos ou negros e a qualquer momento
poderia explodir nas tensões cotidianas vivenciadas por estes sujeitos.
Mas à parte isso, como Verena Leite Ribeiro, a professora Isabel de Oliveira Assunção
também envolvia seus pares nas resoluções das problemáticas as quais a comunidade escolar
passava; “às vezes chegavam e diziam, olha professora esta acontecendo assim, assim e
assim; eu convocava os pais e conversava com eles a esse respeito”, “mas só que eu, quando
eu ia a Porto Velho levava tudo isso, lá conversava com a minha diretora de educação”.
Finaliza.
Aposentada e aos 81 anos a Professora Isabel de Oliveira Assunção reside em
Guajará-Mirim exercendo atividades voltadas para o zelo com sua família e atividades
17
religiosas envolvendo as antigas Filhas de Maria na Diocese de cidade.
PROFESSORA ALEXANDRINA DO NASCIMENTO GOMES
Nascida em 1934 na povoação de Independência, Alexandrina do Nascimento Gomes
completou sete anos em Pedras Negras. Lá, permaneceram por alguns dias até que puderam se
mudar, em Pedras Negras ela teve seus primeiros contatos com a educação foram com as
Professoras Antônia Quintão e Eremita Cordeiro que reunia as crianças do local e colocavam
para fazer “ginástica”, ensinava-lhes cantos. Essa experiência com essas primeiras professoras
aguçava-lhes mais o desejo em tornar-se professora.
O desejo de ser professora para a Professora Alexandrina Gomes surgiu na infância
quando via as professoras recém formadas na escola de Dom Rey chegar para visitar as
localidades em companhia do padre na ocasião “das desobrigas7”, segundo a Professora
Alexandrina a euforia era tanta, a fascinação excedia o mundo real e elas passavam através da
imaginação tomar o posto das professoras visitantes,
(...) e a gente viu as professoras (Patrícia, Angelina, que são minhas irmãs Basília e eu, éramos quatro meninas seguidinhas umas das outras, tinha um homem antes) e a gente brincava de professora, cada uma correspondia a uma professora, agente pegava cobertor, lençol enrolava assim e fazia saia comprida, eu sou Antônia Quintão, a outra era Eremita, a outra era aquela casada que falei... Estela Casara, a outra era Verena (grifos meus) e assim por diante e a gente brincava e tinha aquele desejo de ser professora, então foi uma vocação que nasceu desde criança eu não tinha nem sete anos que quando meu pai, meus pais se mudaram daquele lugar. (Professora Alexandrina do Nascimento Gomes em entrevista em agosto de 2008)
Em 1949 a professora Alexandrina esclarece que a Professora Maria de Jesus
Evangelista mandou algumas poesias para ser lidas e recitadas no sete de setembro;
7 Época em que Dom Rey seguia viagem pelo rio Guaporé para levar a confissão, comunhão e o batismo às populações das localidades do Vale do Guaporé.
18
(...) eu conheci a professora Jesus ali no Santo Antônio, eu não me lembro se ela era uma das primeiras professoras, em 1949 ela chamou e mandou umas poesias para a gente decorar e interpretar, o sete de setembro era festejado nestes lugares” inclusive a professora Antônia, ela intrudoziu desde de lá de Rolim de Moura uma alvorada do dia seis para o dia sete de madrugada que cantava os hinos, os meninos saiam na rua tocava o tambor e cantava os hinos brasileiros, os hinos da aeronáutica, da marinha do exército todos esses hinos e o hino da bandeira e conseguiam, (...) (Professora Alexandrina do Nascimento Gomes em entrevista em agosto de 2008).
Em 1953, antes de iniciar sal vida acadêmica, a Professora Alexandrina do
Nascimento Gomes teve experiências com diversos tipos de trabalhos ajudando a família no
que precisava e revela, por exemplo, que o exercício em dedicar-se a vários tipos de culturas
fazia de sua família poder desfrutar de uma posição social vantajosa na vizinhança “tem gente
que não acredita hoje! Nós naquela época éramos classe média alta porque ninguém tinha o
que nós tínhamos, só tinha um tio do meu pai”, trabalhavam com o gado leiteiro, nos meses
de maio a julho seu pai dedicava-se ao corte da seringa, a partir de agosto quando chagava a
seca trabalhavam na lavoura “ fazíamos quatro atividades sem prejudicar uma a outra”, e
assegura ainda;
(...) Nós tínhamos leite, tínhamos arroz pra vender, comer, banana, a única fruta que meu pai vendia era banana nós tínhamos lima, laranja, tangerina, manga, abacate, abacaxi, melancia que a gente não aguava só tinha naquela época chuvosa,...Vendia arroz, macaxeira, farinha, o pessoal, os seringalistas pedia ou encomendavam farinha pro meu pai e ele fazia aqueles sacos de farinha ele plantava a vontade mesmo assim. (Professora Alexandrina do Nascimento Gomes em entrevista em agosto de 2008)
A Professora Alexandrina vivenciou as primeiras experiências educacionais de
alfabetização em família, os recursos naturais foram seus materiais pedagógicos, a
correspondências serviu como ligação entre suas aflições na procura do aprender e a
Professora Patrícia Gomes, que exercia o magistério em Costa Marques. Alexandrina Gomes
destaca que ainda estava na companhia da família e que aprendia com as orientações dadas
por sua irmã por cartas à distância, não poupava nem mesmo as visitas que também
respondiam a suas indagações. Relatou uma visita de um primo seu que havia ensinado-lhes a
19
separar as sílabas, ele utilizou a areia para exemplificar. A Professora Alexandrina do
Nascimento Gomes estudou na escola de Dom Rey, passou por Belo Horizonte onde iniciou o
ensino superior no curso de Administração Escolar em Pedagogia com especialização em
administração Escolar e concluiu em Porto Velho; foi designada para trabalhar no Vale do
Guaporé como responsável na área da educação na região de Costa Marques.
Pelo seu envolvimento na educação em Costa Marques foi convidada para exercer a
função de secretária de educação. Anterior a sua atuação como secretária de Educação, os
professores da região de Costa Marques iam fazer cursos de formação e aperfeiçoamento no
chamado “curso de férias8” em Guajará-Mirim nos meses de janeiro e fevereiro; em março
tinham que voltar assumir sua função de docente. Ao assumir o posto, a Professora
Alexandrina Gomes conseguiu com que esse curso de formação passasse a ser oferecido em
Costa Marques trabalhando a serviço de sua comunidade e melhorando a situação do
professor.
Ocupou o cargo do prefeito, quando o substituindo, a convite do mesmo por várias
vezes no decorrer do ano de 1983, respondendo pelas funções de secretária de educação; e da
prefeitura;
Era o prefeito é quem me convidava, me dava uma portaria, inclusive eu tenho as portarias (...) Ele me dava à portaria e eu assumi umas seis vezes, seis vezes eu tenho certeza que assumi; me parece que assumi mais vezes, não sabe! Eu ficava responsável por duas secretarias, que dizer duas secretarias não, duas incumbências, a secretaria de educação e respondia no lugar do prefeito na prefeitura. (Professora Alexandrina do Nascimento Gomes em entrevista em janeiro de 2009)
Quando exerceu a função de prefeita na prefeitura de Costa Marques, era responsável
em receber autoridades e zelar para que seu trabalho fosse satisfatório para a sua comunidade.
Recebia autoridades, governador, presidente; eu não sei dizer se era SUNAB, sei lá, era um nome assim; eu não me recordo, eu sei que ele era ligado com a produção da borracha inclusive foi fundada uma usina
8 A respeito da implantação do “curso de férias” ver Muller (1999, p. 137-138)
20
beneficiadora de borracha só que esta usina foi muito festejada no dia e tudo; mas depois acabou em nada sabe, não deram continuidade ao trabalho e essa pessoa vivia em nível de Brasília; esse moço que veio à Costa Marques. Também agente recebeu vários senadores, senadores não; vários deputados e senadores mesmo.(Professora Alexandrina do Nascimento Gomes em entrevista em janeiro de 2009.).
Tratamos aqui da saga vivenciada pela Professora Alexandrina Rodrigues Gomes que
passou por várias experiências educacionais e exerceu cargos no executivo. A Professora
Alexandrina teve grande importância nas experiências com educação por toda a região de
Costa Marques seguindo até as bandas do rio Cabixi quando da sua atuação na secretaria de
educação deste município, a professora era uma cidadã vale-guaporeana e sua cor não
impediu de romper com os preconceitos. Competente, mantendo relação de empatia com o
outro, destemida em relação às ousadias na educação, continuou a descobrir professoras para
suceder outras, visitou escolas longínquas, correu o Guaporé em barco a quilômetros.
Atualmente está aposentada e vive na cidade de Guajará-Mirim.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O leitor pode estar se perguntando o que viria caracterizar essa experiência com
educação de meninas negras no extremo oeste brasileiro como em “enclave”; em primeiro
lugar temos aqui um local onde “por não haver” a presença do poder público do ponto de
vista educacional nas povoações ao longo da Guaporé ou no seu interior se confirmava à falta
de responsabilidade do Estado. Em segundo lugar, os esforços efetivados para perceber a
realidade da população daquelas localidades não partem do poder público, a igreja que outrora
formava um poder maior que o poder público; agora desvendava através da navegação e
investidas no interior das localidades mata adentro, conhecimentos a respeito do número de
habitantes, das dinâmicas em relação às práticas para a sobrevivência das populações e
encontrou uma multidão que necessitava dos cuidados em relação ás “luzes da instrução
21
pública”.
Diante dessa perspectiva, nessa experiência com educação, não se pode retirar o
“mérito” da Igreja nas ações tecidas para vencer o analfabetismo no Guaporé. Gonçalves
(2000) coloca que Dom Francisco Xavier Rey, tomando ciência das condições de vida das
comunidades pobres, foi capaz de formular e implantar um programa progressista de
assistência educacional e religiosa, para combater a exclusão social, o abandono e a
irresponsabilidade do Estado. Ouvir a comunidade e requerer a sua anuência para levar as
meninas para uma escola fundada para sua educação, conseguir a cooperação das
comunidades para mantê-las no internato, sensibilizar o poder público local para a
necessidade de receber subvenção já que aquela experiência em contrapartida cumpria o papel
da estado em relação a propor ações para educação das crianças dessas localidades. O que
torna essa experiência diferente das outras vivenciadas em outras localidades brasileiras?
Temos um contingente de meninas negras a serem educadas, elas serão sujeitos de sua própria
ação, sabe-se que dependendo da concepção adotada pelo agente de ensino a formação do
sujeito terá caráter conservador ou libertário, portanto como afirmou Gonçalves (2000) a
educação recebida pelas adolescentes do Guaporé era de caráter “progressista” e se traduzira
em fomento de emancipação da mulher negra guaporeana, visto que muitas foram designadas
a ocupar cargos de prestígios nas localidades onde exerceram o magistério.
Entende-se também que se elas podiam optar, em ouvir a comunidade, dialogar, e em
conjunto encontrar soluções para os seus problemas; até mesmo abdicar do sistema de
punição perpetuados na educação brasileira como forma de coação para que o aluno
aprendesse, pode-se nesses aspectos encontrar a contradição entre o pensamento de educação
vigente nas décadas de 30 e 40, sobretudo no sentido de uma educação centrada nos ideais
eugênico-higienista.
Quanto aos ideais do nacionalismo, não se pode deixar de considerar que desse ponto
de vista, ali, no Guaporé, a educação cumpriu seu papel, repassando os valores do patriotismo,
do ufanismo em relação aos símbolos que reverenciam a nação.
22
No Guaporé, frisa-se que tal comportamento, em manter as crianças fora da escola era
por ausência do poder público. Entretanto, com a criação das primeiras escolas por Dom Rey
avalia-se que isso não poderia mais existir (crianças fora da escola); o panorama do
analfabetismo ganha outra configuração, a sociedade guaporeana sai desta situação para dar
formação aos seus futuros cidadãos, isso fica evidente no relato da Professora Isabel de
Oliveira em que afirma: “eu, por exemplo, já tenho alunas que são universitárias, outros são
funcionários do governo, professores e professoras, enfim”. Também fica evidente que essa
prática aplicaria aos seus; no momento em que ela resolve pedir transferência para atuar como
professora na cidade de Guajará-Mirim “eu nesse tempo pedi a transferência para Guajará-
Mirim alegando a necessidade do estudo dos meus filhos”.
As primeiras professoras que atuaram na instrução pública no Vale do Guaporé foram
protagonistas de uma ação educadora. Através dos relatos, muitas ainda estão presentes:
fortes, lúcidas e persistentes nas vivências das localidades ao longo dos rios Guaporé e
Mamoré contribuem com suas falas, seus exemplos, suas experiências que foram constituídos
num ato de desbravamento do outro lado do extremo oeste brasileiro no decorrer do século
XX. Reinventaram suas práticas, utilizaram o espaço natural, os diálogos com os transeuntes
que visitavam as localidades, trocando suas experiências e seus saberes. Para essas
professoras, Dom Rey teve uma presença marcante ao efetivar os canais de construção de uma
educação progressista para a sociedade guaporeana; face às luzes da educação e a formação
intelectual daquela população bem como a ascensão das mulheres negras assegurando o papel
de liderança por muitas delas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço Branco – estudo
antropológico de Vila Bela. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 344.
BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A.
23
Queiroz/EDUSP, 1987.
CUNHA, L. N. A população negra nos conteúdos ministrados no curso normal nas escolas
públicas primárias de Pernambuco, de 1919 a 1934. In: ROMÃO, J. (Org.). História da
educação do negro e outras histórias. Brasília. Ministério da Educação, Secretária de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. 221-238.
DÁVILA, Jerry. Diploma de Brancura: política social e racial no Brasil. – 1917 – 1945. São
Paulo: Ed. Unesp, 2006. 400 p.
DIOCESE DE GUAJARÁ-MIRIM. História da Diocese de Guajará-Mirim. Guajará-
mirim, 2002.
DIWAN, Pietra. Raça pura – uma história da eugenia no Brasil e no mundo.São Paulo:
Editora Contexto, 2007.
GOMES. P. de A. A educação escolar no Território Federal do Guaporé. 2006. 147 f.
Dissertação (Mestrado História da Educação) - Universidade Federal do Mato Grosso,
Cuiabá, 2006.
GONÇALVES, Marlene. Viva Bela Verena: a saga de uma professora negra na memória
de uma comunidade da mesma cor. Ceilândia, DF: Idea editora, 2000. 126 p.
MULLER. Maria Lúcia, As construtoras da nação: Professoras primárias na Primeira
República Niterói: Intertexto, 1999.
_______ . A cor da escola. Cuiabá, MT: Entrelinhas/EdUFMT, 2008.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das Raças: Cientistas, instituições e questão
racial no Brasil 1870 – 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
24