sahlins, m. cultura na prática (5) - adeus aos tristes tropos

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1\ [1 1\ ~INI "I\/~ "I'N PC, ': Em meio a toda a excitação gerada pela nova antropoloin ITII(')(iv,l, com sua celebração da impossibilidade de compreender sistema ti ';\ 1\\ 'til! 11 elusivo Outro, um tipo diferente de prosa etnográ6ca tem-se d s .nvolvhlu mais em surdina, quase sem que saibamos estar adotando sua lin 'U:'l',! 111, I certamente sem tanta angústia epistemológica. Refiro-me aos 11 LI 1)\('11) !)' trabalhos de etnogra6a histórica cujo objetivo é sintetizar a xp 'ri li L, I1 campo de uma comunidade através de uma investigação de S 11 p:IS :11111 a etnogrnfin no contexto da mod rnn IJi târi« lIlUlldittl l Para JJ(lrn(~1 'oh» A razão pela qual o antrop61ogo estuda a história é <lu' ,'01111'1111 ' I1II retrospectiva, depois de observar a estrutura c SLI::tSlr:1Il.~/i)l'III,I\, I' I1 possível conhecer a natureza da estrutura. BERNAI S. IIN, II HI I * Este artigo foi originalmente escrito e apresentado como a Décima N n I ( "'11 ferência Anual Edward e Nora Ryerson, na Universidade de Chi a 'o '1,1 I) di abril de 1992. Publicado no Journal of Modern History, n. 65, Mar h, 1( ( :\.

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Adeus aos tristes tropos

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Page 1: Sahlins, M. Cultura Na Prática (5) - Adeus Aos Tristes Tropos

1\ [1 1\ ~INI "I\/~ "I'N PC, ':

Em meio a toda a excitação gerada pela nova antropoloin ITII(')(iv,l,

com sua celebração da impossibilidade de compreender sistema ti ';\ 1\\ 'til! 11

elusivo Outro, um tipo diferente de prosa etnográ6ca tem-se d s .nvolvhlumais em surdina, quase sem que saibamos estar adotando sua lin 'U:'l',! 111, I

certamente sem tanta angústia epistemológica. Refiro-me aos 11 LI 1)\('11) !)'

trabalhos de etnogra6a histórica cujo objetivo é sintetizar a xp 'ri li L, I1campo de uma comunidade através de uma investigação de S 11 p:IS :11111

a etnogrnfin no contexto da mod rnn IJi târi« lIlUlldittll

Para JJ(lrn(~1 'oh»

A razão pela qual o antrop61ogo estuda a história é <lu' ,'01111'1111'I1II

retrospectiva, depois de observar a estrutura c SLI::tSlr:1Il.~/i)l'III,I\, I' I1

possível conhecer a natureza da estrutura.

BERNAI S. IIN, II HI

I

* Este artigo foi originalmente escrito e apresentado como a Décima N n I ( "'11

ferência Anual Edward e Nora Ryerson, na Universidade de Chi a 'o '1,1 I) diabril de 1992. Publicado no Journal of Modern History, n. 65, Mar h, 1( ( :\.

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1111I11111111.tI.11. .11/',11111.1dll.ld.l~ O' 'dl! 1III'Imd.1 /\111 I i .1N.II I, d I Illdll1\ ~i.t d.I.~1111,1.101'.1 (11(o, d.I Ai.i.1 M 'I i lioll," 'ti I Afl i .1 V 111lI.dll,lllll(('~M' lipo til- 1110 hj~(/'l'j:t. Mas :'1' .nns :tlglll1S /'1'1l l'lll 'sI' LtI 1\:11'11'Y

;Oltll,) ':111 ()111:1J'rr,J 1111 .on :11' ,'J"l'ryTurn 'l'-apUI11 .nrnram . 11S-

U lima tn rafia que in rp r t mp e a tran rrna ãOIlSll'ói uma G rma di tinta de se conhecer o objeto antropológico, com a

possil ilida I de mudar o modo como é pensada a cultura (Cohn, Comaroff. ;( 111:11'ff, 1992; T. Turner, 1991), Este capítulo associa-se a esse projeto

ele .tn rafia histórica como gênero antropológico determinado, Em parti-ulnr, u gostaria de oferecer algumas justificativas teóricas para o retorno acrtns áreas do mundo, como a América do Norte e a Polinésia, que há muito

y m sendo desdenhadas pelos eenógrafos, desde que se descobriu, nas déca-das d 1930 e 1940, que elas eram "aculturadas", É que esses povos soube-ram desafiar seu rebaixamento antropológico, assumindo a responsabilidade.ultural por aquilo que os estava afligindo, As próprias maneiras como as so-'i dades se modificam têm sua autenticidade característica, de modo que

a modernidade global amiúde se reproduz como diversidade local.

11

Quando eu era aluno de graduação - nos tempos do Paleolítico Supe-1'1 r -, meus professores já anunciavam a morte da etnografia. Era como se a[ rofecia de Marx de que a hegemonia ocidental é o destino humano estivesseao alcance da mão, A burguesia, por meio do rápido aprimoramento dosinstrumentos de produção e comunicação - proclamava o Manijesto comunis-ta-, atraía todas as nações, "inclusive as mais bárbaras", para a "civilização",

Os preços baratos de suas mercadorias são a artilharia pesada comque ela derruba todas as muralhas chinesas, com que força capitularo ódio intensamente obstinado que os bárbaros alimentam pelosestrangeiros, Ela obriga todas as nações, sob pena de extinção, aadotar o modo de produção burguês; obriga-as a introduzir emseu meio aquilo a que chama civilização, isto é, a se tornaremburguesas, elas próprias, Numa palavra, ela cria um mundo à suaprópria imagem, (Marx e Engels, 1959, P: 11)

o 504 o

1'>,',,111,I 111111",dlli 111'11 lltilll 11111,11I1 1,,111di 1111lI~tI,tlid.,dl, 111111VI"/. IIIH .\11,/ 1lllllm,II1 ,,1(~l.ly,1 11111111111t 111',11,11'1(1111 .1 11111111\\il .1. I IIc, (i:1 ti '~S,I.1I111.1.~llpl1\\.1dos Pl[) IllIm h.u.u.» j. pl .~lIpl)l 1111\''\1)1111111111111S univ .rsal, 11111:1'1'0(,'1:1 'l'i:lIl1l":I I) I .., 'jo, '111' :tl',' ulh.uulo c Iltl iv Im '111'par, a rrnn I, iportunidnd '. N ) '1l[:llllO, a 111'li 101':1(()I 11,1~ .I11ItI I

mai ir ni a 11. me lida '111que a muralha da ;hil1:1 se I' 'v '!:t 11.10IllItilllvuln r vcl.A ntrário, limit ' h" iviliza .\()" ',1'1111.111111,corno urna restriçâo à dcmanda e a trân il da 111L' ad ri.s,amlll,"It,IIIII',11êxito em ua veneranda função, qu (scgund r') 'J';l:I I, IlI.1I1! I dlllado de dentro os chineses, e não a de manter "bárbaros" 1< I:tdo di 1111I

(1940), E, mesmo quando as coisas estrangeiras u S r 'S bihhn Io 1111seguem conquistá-Ia, sua reprodução e seus signifi ad s 10 ais IOI',1!achinesam, O capital e as mercadorias do Ocidente não avauçam 011111cilidade por meio de efeitos de demonstração, A idéia de qu 'o r:11':11lmesmo refrão referente à China - tem circulado na Europa h~ tr S S '.( 11I11:todas aquelas centenas de milhões de consumidores à espera Ia' li S 1111\,nicas, depois, dos produtos têxteis de algodão, dos faqueiro de n 'o, I('vIIII

veres e navios e, mais recentemente, de jipes, perfumes e televi I' 'S, ;( 111111versão burguesa moderna da busca do Eldorado, o sonho de abrir a :ltill.1para os produtos fabricados no Ocidente persiste, sem se deixar al :II~'I p ·111fracasso perene em transformá-Ia em realidade. Exceto que, agora, (11 '111.1l1y,1

de descobrir uma passagem para Catai pelo Noroeste aparec lHO 11111.1tentativa igualmente frustrante de converter os corações e ment S nsi: \ i( 0'1,

Consideremos esta notícia récente do New York Times:

"Antigamente havia um aspecto missionário, com uma dir torinque tinha a visão de um imenso mercado de consumidores - s:1h·como é, dois bilhões de axilas precisando de desodorante", disseMatts Engstrom, presidente da California Sunshine Inc, uma mpresa de alimentos com grandes negócios na China, "Mas, de: olsda Praça da Paz Celestial, eles se deram conta de que esse é 1I111projeto a longo prazo e, mesmo assim, a menos que se esteja \1:1área certa, não há como ter sucesso," (Apud Kristoff, 1990)

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'1;11111)111(i,( 111I) qll 'O i '1IIil,t.I\.\(III,IÍ.~ 1,)"),1111"I,"lIll.llldClI('!lII,I~

Ia il11't'!':1':10 doh:d li!) , uro 1\10111'lHO '11\ 111' ':'.~:I"IIOV,I(lld uu uuuuli.rl''vai-s' I, mp u I nUI11S .m-nún 'I'e de 1110vim'llIOS S '1':11':\1iSlas '111p '-

quena escala, que marcham sob a band ira da aut n mia ultural. LI S 'ráque essas afirmações de "identidade étnica" são apenas - para ad tarrn acaracterização freudiana das identidades do Leste Europeu - o narcisismodas pequenas diferenças? É presumível que as exigências de independênciacultural sejam apenas temporárias. A longo prazo, as forças hegemônicas dosistema capitalista mundial deverão prevalecer. Mais uma vez, uma outraciência do futuro,

I A autoconsciência cultural que se vem desenvolvendo entre as antigasIvítimas do imperialismo é um dos fenômenos mais notáveis da históriamundial no fim do século XX. A "cultura" - a palavra em si, ou algum equi-valente local- está na boca de todos. Tibetanos e havaianos, ojibway, k:wakiutl

e esquimós, casaquistaneses e mongóis, aborígines australianos, balineses,caxemirianos e maori da Nova Zelândia, todos descobrem ter uma "cultura".

• Durante séculos, é possível que mal a tenham percebido, mas agora, comodisse o papua ao antropólogo, "se não tivéssemos o kastom, seríamos iguaisaos homens brancos". Maurice Godelier fala-nos de evoluésentre outro povoda Nova Guiné (os baruya) - policiais, professores e outros habitantes ur-

I banos -, que, vinte anos atrás, haviam-se esquivado das iniciações tribais,

LEara retomar às aldeias em 1979, a fim de corrigir essa falta ritual:

E foi um deles que (...) explicou publicamente a todos os homensda tribo e aos jovens iniciandos que as iniciações tinham de con-tinuar, porque era preciso força para resistir à vida nas cidades e àfalta de trabalho ou de dinheiro; as pessoas tinham que se defen-der. Em minha presença, ele gritou: "Temos de encontrar forçasem nossos costumes; temos de nos basear no que os brancos cha-mam de cultura." (1991, p. 395)

Talvez seja verdade (como dizia Pascal) que três graus de latitude façama diferença entre o certo e o errado, mas, no que concerne à modernaconsciência da "cultura", nada se modifica muito em uma metade inteira doglobo (na longitude). Consideremos as observações de TerryTurner sobre a

~~506

tlllI ,,'llllll'il,d liI 11111111111,11111111\1doi ti 1,111.1di 1'lIHl,IIII 11111111ti 1111'IIIOl\olll!'t ,li '1111'~I.IV"'II1I~,lIldl),I l',d,1 1,11'"1111/',111~,I '11111111t" I 1I1""1' 1\ i,I,II),\ 10 111111,~II,ldilioll.li~, i'lllll,ivl', 1l',di'"I~,lIId,l~ 11'1111)1111.1que tinham d 'sel'l-! Wiid:I,~":111111l'l"'s 'IV.II':I'vid.I', 11"()I~,I' \'.1'(1111td 1111das' muni I. I·s so .inis ninp ~t(I c c 1, p. 50 ),

N ~ S r if nelas da dif r n as ulturais, l:d xnuo '11'0111I Id,l 111)osturnes tradi õcs distintos, p dem existir ' .xi 'tiram illd'p '11dlllll'lIll 1111

da presença européia. O que distingue o "culturali m "ntunl '(1111)1"1'"111111chamá-lo) é a afirmação do estilo de vida pr pri I indivf 1\10 <llllll 11111valor superior e um direito político, em oposiçã pr i arn .ru ':t lIllI,1[lI' li' Iestrangeira imperial. Mais do que uma expres ã 1 "i lcnti Ind' (11\11t"

uma noção normal das ciências sociais que consegu mp( br 'I \I ',('llIld,do movimento -, essa consciência cultural, como taml '1)1 nhs('1 VOII'IIIIIIIIa respeito dos caiapó, envolve a tentativa do povo de c ntrolar HII:"~11111111com a sociedade dominante, incluindo o controle sobr m 'io.~Il~(111\1Ipolíticos até aqui usados para vitimá-Ias. O império contra-ala :1. 1':~I.II'\lI'assistindo a um movimento mundial espontâneo de de afio uluunl, I 1\ li'significado pleno e cujos efeitos históricos ainda estão p r S r ti .t '1'I1IÍ 11,11111

Os intelectuais do Ocidente, com excessiva freqüência, l!ll1) S' Ihl'" 1\1a descartar os significados como triviais, supondo que as af rrna ' )('Sdi I1111tinuidade cultural são espúrias. Na visão acadêmica corrente, h:1I1Wdll11'11.1',cimento é uma típica "invenção da tradição" - embora nãnosprezar os maori ou os havaianos, uma vez que toda c trnd i~ I ", \.111"inventadas" no e para os objetivos do presente. (Esse desm ruido (,1111illll.1lista, aliás, embora pretenda ser gentil com os povos, tem G it ) dt, .11"'1".11as continuidades lógicas e ontológicas implicadas nas di fer I1lt:S111,11)11.1como as sociedades interpretam e reagem à conjuntura imp ria] iSI:1.St Ih I Imos que conceber a cultura como algo que está sempre e ap nas IllII 1.111111para não cometer o pecado mortal do essencialismo, não hav d n:1<1:1(]11l',Ipossa chamar de identidade, ou mesmo de sanidade, e muiu 1\1('110',d,continuidade.) Seja como for, essa "cultura" maori ou havaia 11;\n: (J t~ 1d,,,11ricamente autêntica, por ser um valor reificado e intere sad ,I or \('1 .1111uma ideologia consciente do que um estilo de vida, cuj n I 'li lu .rl 111li1

v 507 v

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li, d, 1 (1111,.1 1111'u.ili 1.1',d'l 11'1 .l~ (tlllIl', 1I.1tiV.1\ I) 111t1l11lillI il.llIllllI ill,ldV! llidll, Id 1.1\ti 'I mllllll .., ,llllil\m ~.Io ti ,I, 'IIVltlvid,l\ ,I p,lI!1ld.1 • 11'ri \1 ia uluni.rl: \1111:1disli\1 ao «llli a pel" 'bida do, OlHO I, vi~la tI,l111i111':\ I:t dOll1 ina~'n(), s 'não t:lm b .m '1\1I n ,/1 io d ssn. No :1 .roporro I'

'llllIOIIlII, ( s visitam 'S sã r bid P r d n rina d hula-h da malasd ' "pulha" d piá li ,gingand a m de lânguidas guitarras espanholas,uumn 'Xl r ã d "e pírito de aloha' singularmente havaiano. Uma culturado IUI'" I , d ipo hoje largamente vendida como material aborígine. Alémti isso, ~ r. m a obsessões dos missionários calvinistas norte-americanos - os••/IIisbe1', c mo os chamava Mark Twain - que fizeram da sexualidade um'11Ibl ma da havaianidade. Agora, portanto, os havaianos não têm nada a

((I'/' '(' enâo recriar-se à imagem que os outros fabricaram deles.Por outro lado, afirma-se que os povos indígenas só assumem sua distância

cultural ao desenvolverem formas complementares ou invertidas da ordemI nial. Por isso, o historiador pode encontrar um público preparado para a

afirmação de que só recentemente, depois da virada do século XX, os fijia-nos elaboraram e objetivaram seus famosos costumes de reciprocidade gene-I~<lizada, chamados kerekere - eJTIparte, aceitando a definição colonial queIhes é dada como "organizados comunalmente" e, o que é mais importante,agindo de forma reativa aos ainda mais famosos instintos comerciais dosh mens brancos, Reificando o seu desenvolto dar e receber mercadorias, osfijianos puderam representar-se como generosos, em contraste com o egoísmodos colonizadores (Thomas, 1992a, p. 64-85; cf. Thomas, 1992b, p. 213-232). Similarmente, um antropólogo afirma que o reino javanês de Surakartapôde sobreviver sob a dominação holandesa deslocando suas demonstraçõesde poder das arenas fatídicas da Realpolitik para inofensivos rituais deasamento (Pemberton, 1989).

Todavia, ainda que essas teses fossem historicamente exatas, elas con-tinuariam a ser culturalmente insuficientes, uma vez que, em circunstânciascoloniais similares, os samoanos não praticaram o kerekere nem os balinesesapenas se casaram, Volto reiteradamente a este ponto: a "tradição" aparecemuitas vezes na história moderna como uma modalidade culturalmenteespecífica de mudança. A troca fijiana, ou kerekere, é também um bom

<) 508 <)

, '"\plll d.1 !ti 11111111',1til I ( ,ti 111l'il.1t1.1 11111'11111(1'111 I Ijll "'111111I tilodo !loll\ 11\I',lld'l d, I II.IVII \1111111,1111ti",! \111111dl,,',1 ')'1111\11I 111111111'I'(t c ,7, p, I ). 1)11101"1111.1(11j0l'tl.dt.\ tI:ll'litl ",I\'\ • , II "~.1I1d '.llI'I)il ( :Ullll,qu nã lh\ ai '1\ "10: 1111111'[1':10Sal( S los Nuh:dl( 1'\10S (')H'». ( "di. Iiodo mi i n:iri s . '0111'I' iant is, desde i!l( 'io do s {"tio , , 11.11NtJtftlll1cem provas abundam d qll tum 10/"(Jr('/"('f'C 'ra ()11S i '111'111'111praticado na época da mesma maneira m I s ril nas 'tlwl'I·:dl.I·,1I1l1dernas - o "esrnolar" fijiano, tal como o /eere/urefi lira n SI 'XIOS "i.~I('1I tIle tal como é definido num dicionário rnissionári de J 850 -, '011101:111111111,

além disso, indicam, historicamente, o que seria de c esp rar I( l,i ':1111'1111,que a incapacidade dos brancos de participar do kerekere I v li os (lji.IIIlI' Iinterpretá-los como egoístas (por insistirem em comprar V'11 I,,' , . 11.111

que o egoísmo dos brancos tenha levado os fijianos a se inrcrprcmrcm coruugenerosos (inventando o kerekere). Assim, quando os rnishes ass '1'.\11.1111,11/chefe terem ido até lá por amor aos fijianos e para salvá-Ias, h ,(', ,,!lj 1,1

que isso não é possível:

"Vocês vêm para cá e só fazem comprar e vender, e nós d c l:llllO~comprar. Quando pedimos uma coisa, vocês dizem 'não'. '11111fijiano dissesse 'não', nós o mataríamos, vocês não sab m disso?Nós (de Bau) somos uma terra de chefes. Temos muita riqu ",.:t.(...) Nós a temos sem comprar; detestamos comprar e d t Sl:llllmo tatu (o cristianismo)." Ele terminou pedindo uma faca para 11111de seus amigos, o que, depois dessa conversa, julguei l1,clholrecusar, o que fiz da maneira mais respeitosa possível. (Lyth, 'lo/W//Iand Feejean Reminiscences (doravante TFR), vol. 2:74-76)

"Esmolar", como observou um dos primeiros com r ia 11I 'S nOI\!americanos, "é o pecado infernal de todos eles, e os dois x s 11.11111('\tam em "Cery Cery fuckabede, como o chamam." "Cery Cery fu /"(/(m// 1111a imortal transcrição feita por Warren Osburn, em 1835, da expr .ssno (tji.lllitkerekere vakaviti, que significa "pedir alguma coisa do jeito fijian " 'Xpll'~ ,111esta que também prova que os fijianos objetivavam a práti m 'S .~ .11111dos primeiros missionários e décadas antes da fundação da I nin, ('11"1111.1

não antes de séculos de contato e intercâmbio com pessoas d outros ",1111111

<) 509 <)

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dI "11.1dll I' 11I111I 111111',I, I 1111111111I) 1,1( ).,1111111,/0/11/11I1. \ I di ),1111111dI I H \ ).

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toriografia dispõ - e a presurnir qu a história é fcita p I nh r S 01 niai, [uc tudo o que é necessário saber sobre as disposiçõe sociais do próprioP vo, ou até sobre sua "subjetividade", são as disciplinas externas que lhe fo-ram impostas - as normas coloniais de classificação, enumeração, tributação,educação e saneamento. A principal atividade histórica que resta aos domi-nados é interpretar erroneamente os efeitos desse imperialismo como consti-tuindo suas próprias tradições culturais. Pior do que isso, sua falsa consciênciacultural é normativa: em nome da prática ancestral, as pessoas constroemuma cultura essencializada - uma herança supostamente imurável, protegidadas contestações de uma verdadeira existência social. Com isso, elas repetemcomo tragédia a comédia de erros acerca da coerência dos sistemas simbólicos,que, supostamente, teriam sido cometidos por uma geração anterior e maisingênua de antropólogos.

Agora, já mais experientçs, trocamos nossa ingenuidade pela melan-colia. Na esteira do colonialismo, a eenografia só pode contemplar a tristezados trópicos (tristes tropiques). Tal como as favelas precárias onde moram aspessoas, aqui estão fragmentos de estruturas culturais antigas e novas, remon-tados em formas corrompidas da imaginação ocidental. Como isso é conve-niente para os teóricos da desconstrução pós-moderna do Outro! Além disso,

~ os novos etnógrafos podem concordar com os sistematizadores do mundo,como concorda James Clifford com Eric Wolf, quanto à incoerência daschamadas culturas - e, portanto, quanto à incoerência do conceito de culturados antropólogos. Tanto uns quanto outros são também críticos do imperia-lismo: os pós-modernistas o censuram pelos projetos arrogantes de totali-zação eenográfica, e os sistematizadores do mundo, pela impossibilidadeempírica de realizá-Ias. No entanto, será que todos esses tristes tropos dahegemonia ocidental e da anarquia local, do contraste entre um sistema mun-dial poderoso e a incoerência cultural das pessoas, não imitam, no planoacadêmico, o mesmo imperialismo que pretendem desprezar? Como ataque

o 510 o

I i1\li I',I111.\tiI 'I tlllIl til \I, .11I 1\111ti 1I I I1111"I 11 1" I til I1111• I I . I I~I 111,11I11Illi,l, ' ,11.11111111111I}III11111'111I1 di 111111'111111111,111'11111'101111,1,

'I<HI()snlltllltilt.1111,I dl'~llltil,,1t1I}II ',I' ,ti1.1\1'1\',0/111'O' I"IVII'. ,'111V II1\dldas onqllist!ls pl.1I1'(.\1i,l\ do ,lpil.tli.'dllOi 111I~11111',',,11.',(',111,!1I1, I ,,1111\

rccnblnu hnmn ti' ( ", 'SSilllisllloS '1IIilll '111.11"qu ',d '111,1\1,i1.1\int 11'\mtle ideol gi as sutis, dissolve li vi Ia lclcs nunu: vi.~a( gloh:tI I, IOlllill,II"III,torna completa a conquista ([991, p. 152).'lhmb 111não se ti v' 'SI!1Il'\ 1'1111

o Ocidente deve seu próprio sentirncnt de sup 'ri ri lati' 'l"IIII:1I ,1111111invenção do passado, uma invenção tão flagrante que dev 'ria r.1Z·1' '1IIItlI .cer os nativos europeus quando chamam outros povos d Ulllll':tlllll'lIl

falsificados.

lU

Nos séculos XV e XVI, na Europa, um punhado de intelectuais c .1111I I

nativos reuniu-se e começou a inventar suas tradições e a si mesm S, l '111,11111.,fazer reviver o saber de uma antiga cultura que eles afirmavam S 'I 11111.1realização de seus ancestrais, mas que não compreendiam plenarn nte, 111111vez que, durante muitos séculos, essa cultura estivera perdida e suas 11111',11,1'encontravam-se corrompidas ou esquecidas. Também fazia séculos qLI' (1\\ 1Iropeus se haviam convertido ao cristianismo; mas isso não os impediu, 111',I'momento, de reivindicar a restauração de sua herança pagã, Eles v II:I\'i,1111"praticar as virtudes clássicas e até invocariam os deuses pagãos. Ain Ia :I~~i111naquela situação - a grande distância entre os intelectuais aculturad ),~I' 1\I,1passado efetivamente irrecuperável-, a nostalgia não era o que c 5111111,1.1ser, Os textos e monumentos que eles construíram eram, muitas v Z ·s, 1.11símiles depurados de modelos clássicos. Eles criaram uma tradição c nsc il'lIl1de cânones fixos e essencializados. Escreviam história no estilo de ívio, v Isos num latim afetado, tragédia de acordo com Sêneca e comédia a III()d.,de Terêncio; decoravam as igrejas cristãs com fachadas de templo I; .~~illl·e, de modo geral, seguiam os preceitos da arquitetura romana, cal 011111estabelecidos por Vitrúvio, sem perceber que esses preceitos eram ''''1',11Tudo isso veio a ser chamado de Renascença, na história européia, pOI I1I

dado origem à "civilização moderna".

o 511 o

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() Ii"\ 111,111~( pntl di'I,11 ,\ '11.1()1/111,111\11111,1"plll,~Il,II!111,1111111/11lod,l.I

,~Oll hiSI(')j'j ':I? ( 1I,IIIdo ON curop 'w/ inv '111:1111SlIas lradi ' ) \' uni 0, 1111'OS

I\OS purt ) 'S -, rrntu-sc d 'um aut nti o r 'nas imcnto iulrurul, dos primór-dios I, um futur pr grcssista. Quando outr s povos o faz !TI, era a- e de11111sinal de decadência cultural, de uma recuperação artificial qu ó pode

produzir simulacros de um passado morto.

Por outro lado, a lição histórica poderia ser a de que nem tudo está

perdido.

IV

A escolas de hula-hula (halua hula) têm florescido no Havaí desde o

início da década de 1970. Muitas funcionam sob a proteção de Laka, a antiga

deusa do hula-hula, são dirigidas por professores inspirados (kumu) e obser-

vam vários rituais de treinamento e exibição. As escolas de hula-hula são um

componente significativo do que alguns participantes gostam de chamar de

"renascença havaiana". I

Não há nisso nada de essencializado. Há rodo tipo de diferenças entre as•escolas, no que concerne aos estilos musicais e de movimentação, nos rituais

e nas afirmações sobre o que é moderno e o que é "havaiano". Muitas discussões

giram em torno das implicações da oposição à cultura do haole (homem

branco). No entanto, o hula-hula, como sinal de havaianidade, daquilo que

é indígena, não é de ontem, nem tampouco é uma mera construção da Agência

Havaiana de Visitantes e dos interesses lascivos dos haole.O hula-hula funciona

como uma forma de cooptação cultural há mais de cento e cinqüenta anos-

uma significância, além disso, que já estava inscrita nos significados das

peiformancesantes que os primeiros brancos pusessem os pés nas ilhas. Aliás,

esses primeiros visitantes haole, o capitão Cook & cia., foram recebidos com

uma grande dose de hula-hula aparentemente lascivo.

''As mulheres jovens passam a maior parte do tempo cantando e dançando,

coisa de que parecem gostar muito", observou David Samwell, um poeta

galês menor e cirurgião do Discovery, durante a estada de Cook na ilha do

Havaí, no início de 1779 (Beaglehole, 1967, p. 1.181). A estada de Cook

v 512 v

1111111idilll 111111)Mal :dlil i, li I '~IIv,d tI"ll 11111111,11111,,1dll ,111111,dI \I 11111',111tit' I ,j dl'pmlo li11, voha 1\0 Ano Novo P,II.II IIIIV,II 111('11.1 1I1!,1I1111111I11111

r ',iSll'O, para r 'l mal' a mulh 'I' 'o reino qu 'li)1':1I1I IÍI'at!os ti lI' plll \1111I i" li

que veio do nada (cf. M. Sahlins, 1985b), A visita ti' LOllO '1':1I'illl:dllllllll

mediada e popularmente celebrada pela dança d hula-liuln, cru "~IH'(l.il I'

danças sexualmente excitantes das moças. É claro que n 111rodo IlId,1 111111

havaiano era desse tipo, mas Samwell coletou, em 1779, duns C:II\I, 1\' ti

hula-hula que eram suficientemente amorosas. Era assim qLl . as 1\1111111'1

atraíam o deus - se é que sua performance não significava, na v r lad " \11\\1 I

samento sagrado do tipo frazeriano. Mas, ao se aproximar o final \0 Mal ,ddl i,o rei governante sacrifica Lono, mandando-o de volta para Kahil i, :\ 1111I

ultramarina e fonte ancestral da vida, num afastamento que :111:\ p,ll.I I

humanidade os benefícios da passagem do deus.

Humanizando e apropriando-se dos poderes seminais de Lono, 11 11111.1

hula das mulheres expressa uma função geral de sua sexualidn Iv, !l111 I

justamente a de mediar essas traduções entre deus e homem - ou, '11\ 1\'111111

polinésios, entre os estados tapu (tabu) e noa (livres). Daí a ambig!lid,ltll

essencial das mulheres, de um certo ponto de vista teológico: seus po I '1'(".111

corromper o deus equivaliam às condições de possibilidade da vida hlll\1:11101

Daí também, como participantes da humanidade, seus poderes de S\lhVI'1

são cultural. O parto em si era uma forma dessa mesma capacidad . dt' iII

troduzir o divino no mundo humano, especialmente o de uma cri~tll(;iI ti I

realeza. Por conseguinte, os nascimentos nobres eram ocasiões ex .\ '1\I "

para o hula-hula, assim como o eram a chegada de visitantes nobre . o '11

tretenimento oferecido a eles. E todas essas apresentações de hula-hul.r,inclusive a sedução anual de Lono, tinham a mesma finalidade geral-:I 11I

mesticação do deus. Mas observe-se que, dentro desse contexto, os va 101 "

específicos variavam desde o resgate de um rei nativo e benéfico, a (11'1I1,t

trágica de Lono espoliado, até a neutralização do rei estrangeiro, im:lgl'lll

clássica do usurpador - aquele que liquida Lono.

Daí a função histórica do hula-hula: seu aparecimento reiterado ao 1<11/',11

de dois séculos de dominação dos haole, em defesa do ancien régime , 'SIII

cificamente, de uma monarquia havaiana cujos poderes foram contesmdu«

v 513 v

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dl',.d, II dll 1111111111,1~,IJ',r.ltl.l ,lIi.lllt,,1 ('11111'"il'do/,o:. Jlt)hll', pillV 'Jlldl)~ ,Ild,~,.illll. 111111(1111,111111'1l:III!)Sjllll'it:IIlOS, Adaplalldoa (-ti ':1 jlrol'SI.IIt(':!osPI'()jl'lOs ti' :111101id:1(1' huvaianos, o hefcs aprcn I rarn :1 pr m v 'I' seus

0111 r 'i:tis:'t lista do rei. Com base nas concepções tradicionais dePC) ler sagrado, no estabelecimento de vínculos com Kahiki, essa competição.ntrc chefes governantes no plano das proezas comerciais exacerbou enor-m 'mente o "impacto" do sistema mundial na cultura havaiana, Os efeitos his-tóricos do capitalismo não foram diretamente proporcionais a sua força ma-l rial, uma simples questão de física. A imensa dívida acumulada peloshefes constituiu, antes, uma medida do impulso conferido pelos poderes

criativos do mana às forças destrutivas do capital. Os compradores- e osagentes estrangeiros do sistema mundial desempenharam o papel lendáriodos "tubarões que viajam terra adentro" - estrangeiros vorazes vindos de além-mar - e transformaram o rei numa versão histórica de Lono.

Pela mesma lógica cultural, o período da volta de Lono, o Makahiki,foi transformado pelos partidários do rei num festival de rebelião. Durantedé~adas, depois que ele deixou de ser celebrado de acordo com os rituais cos-tumeiros da renovação do mundo, a temporada do Makahiki transformou-se numa oportunidade para renovações improvisadas de costumes havaia-nos - expressos na e como a restauração de poder real. 3 Ao longo de tudoisso, o hula-hula, juntamente com práticas complementares de jouíssance,proporcionou continuidades de forma e significado. Aliás, o hula-hula foi aúnica representação do Makahiki em 1820-1821, ano que se seguiu à famosa"revolução religiosa" que, em princípio, havia abolido todas essas "idolatrias"e cerimônias. Durante várias semanas, entre dezembro e fevereiro, os missio-nários fizeram relatos desaprovadores sobre pessoas que dançavam nos pá-tios de Honolulu "em honra do rei", Kamehameha lI, e diante da imagemdo deus do hula-hula (provavelmente Laka). A ebulição revelou-se o prelúdiode uma série de contra-revoluções libertinas 'nofim da década de 1820 einício da de 1830, todas eclodindo igualmente na época da cerimônia tra-dicional do Makahiki e convocando seus sentimentos e práticas para a causapolítica do jovem rei, Kamehameha m. Além do hula-hula, os antigos jogos

divertimentos do Ano Novo foram revividos, com seus efeitos ampliados

1'111lill.lI, 1I I',' 111111',,1',dll 111111til!', /1,101" ( ) 1I i dil',1I1I1I1I111111111111111til .11(,111'11)l' 1 '111I H.' /, li il.lll1lo 'I '11111~11.l111ill illlll P,II 11111('111I H \ 111111111111\1,I I'dIÍ 111,1ti ,I.IS11'11111111I.I~ClI,\SI' lI,ds 11111SII,I '1'111.1dI' p.d I' 111,1'(111111\do.' ,lI ,r ..~ 1·i.~I:IO,~1't'1111ido. ,A "1'1:1:111111':1,1'/, :dl(JIÍlII()d,l.~ 1.\I'll)jld(, \I", I li

vinistus I' .("1' '111'S :'t_~I' 'I:. ) 's S 'XlI:IÍ_~ , onvo ou aS pl'mtll Ilt:IS ti! l louulult:pnr:1 (:IZ'r '111:1 '01'1' ti ' sun :1111:1111- do IIIOIt1'1110,As 'xlI:tI,d:ld ' r '111I1 11.1,mais 1IIt1 V''/" fi i :I la '1)1 prol (1:1 alisa da humnuidud«: Ilill.1 IOI""ias isas noa, s gundo a p ã d s hav: ian s, pois, 1\0 tO"1 'Xl\l '"1 \1

vi ntc, esses acontccimen ignift aram, ab liçâ dos 1:ll>lI1I(l'iSI,IUNI (Iretorno da ordem havaiana. E tudo isso 115. f i m ra f lin siutl (')111,1: IIIalgumas ocasiões, a posse sexual da terra p 10 rei evoluiu pnra umu :1111111.11,,11'de seus direitos soberanos sobre as terras e, em mais de urna OpOl'1llltid .•d ,sua oposição carnavalesca aos chefes cristãos beirou o conflito arlll,lt!n I' 111todas elas, porém, o rei foi solicitado a ceder, No desenlace, COl1l0 IUIIII (Idetalhes históricos curiosos, ele reviveu o destino do deus suplanta In,

A partir de 1830, ou antes, os chefes cristãos proscrev J'al11 IH'I illlllcamente o hula-hula e, de 1851 em diante, ele foi coibido p I' l-i, /\1111tanto, escolas clandestinas continuaram a funcionar no intcri 1',:\1 '. v 111.1rem a ser abertamente sancionadas - pelos reis. Proibindo ( mpnn I imento dos estrangeiros, Karnehameha V, em 1866, permitiu qu . () I)()VIIchorasse a morte de sua irmã à moda antiga, que incluía dan :1S d,' 111111hula. MarkTwain conseguiu ter acesso a uma dessas performances.

Eu morava a três quarteirões do sobrado palaciano de madeiraquando Vitória estava sendo pranteada e, durante trinta 110il 'S

seguidas, a cerimônia do luto (pow-wow) impediu-me O S0I10,Durante todo esse tempo, a Princesa cristianizada, mas 1111':11mente impura, foi velada no palácio. Entrei, uma noite, e vi '11tenas de selvagens seminus, de ambos os sexos, batendo seus uunbores lúgubres, lamentando-se e gemendo sob o estranho e int 'liSO

brilho de inúmeras tochas, e, enquanto um grande bando de 111\1lheres gingava e meneava seus corpos flexíveis nos movi 111'lHOScomplexos de uma dança lasciva chamada hula-hula, eles ent :lVí\I)1um acompanhamento em sua língua nativa. Perguntei ao fllh ) d~'um missionário o que significava a letra. Ele disse que ela clchrnvn

<) 514 <) <) 515 <)

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,d,.,lllI~ ti 1111'\ I' I 1 ,I 1111.1\ I(',il.l\ .Idlldl.ldm 11,1/,1illl '\,1 11li111,1,11l.~i.~lilias I' '1'1'III1I,IS,111,1.\('I, tiL,.,' q"'.1 1('11.1('1.1i11d,·((· 11I , ti '1I1:1i~para s r traduzi ln; que as qunlidad 'S .orp: ruis 'X' .lcruc eramimpossíveis de mencionar e que era rnclh r deixar por conta daimaginação as habilidades tão enaltecidas e glorificadas, Disse ain-da que, sem dúvida, o rei estaria sentado onde pudesse ouvir e des-frutar dessas expressões pavorosas, (1963, p. 24)

O hula-hula foi especialmente beneficiado pela proteção real durante oreinado restaurador de Kalakaua (1871-1891). O rei Kalakaua patrocinouperformances espetaculares em sua instalação e na comemoração de seu qüin-quagésimo aniversário. Depois que o Havaí foi anexado pelos Estados Uni-dos, as funções convencionais do hula-hula dividiram-se entre a domes ti-cação comercializada dos estrangeiros, no setor turístico, e as escolas do inte-rior, menos sujeitas a inovações modernizantes. O hula-hula da atual renas-cença havaiana é uma "invenção" desenvolvida sobretudo a partir das escolasdo interior. Mas não é simplesmente uma invenção colonial- uma fabrica-ção ocidental da havaianidade, ou uma fabricação havaiana em respostaao Ocidente - que uma certa historiografia colonial, ansiosa em fazer debobos os ernógrafos e transformar em vítimas os membros da populaçãonativa, ou vice-versa, inclina-se prematuramente a descobrir.

Não é que a finalidade de uma etnografia histórica seja apenas dar liçõessalutares de continuidade cultural. O propósito mais importante é sinte-tizar a forma e a função, a estrutura e a variação, como um processo culturalsignificativo, decorrente de uma ordem cultural específica e não de uma ló-gica prática eterna. As funções práticas das instituições vão aparecer comorelações dotadas de significado entre formas constituídas e contextos his-tóricos: como a maneira pela qual o hula-hula e o festival Makahiki - o hula-hula, por suas traduções do tapu em noa, o Makahiki, por suas reminiscên-cias da soberania perdida - foram efetivamente contrapostos a uma classedominante cristianizada.

v

Por sua vez, o sistema mundial, como cultura, é igualmente arbitrário.(; Mas sua familiaridade nos permite alimentar a fantasia de uma ordem trans-

o 516 O O 517 O

1',1111111I di 1111111.111.1,11'11IlltI" I 11111111111111'1'1111111 d 1.lII'III.dl&l.I&l1111.11111.",I'nl 11m .lllinl"1l ,lIlhlllll,lIllll,lIl,l 't 111111.11,1111111,""

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O capitalismo ocidental, em sua totalidade, é um arranj ult u: ,ti VIIdadeiramenteexótico, tão bizarro quanto qualquer outro, mar a I( IH'I,I 111,sunção da racionalidade material numa vasta ordem de relaçõ s Siillhl',III.tSomos demasiadamente enganados pelo aparente pragmatism 1:1I t'lldlll,,111e do comércio. Toda a organização cultural de nossa economi: p '1'1\\,111IIinvisível, mistificada como a racionalidade pecuniária pela qual se ,'(',di',111seus valores arbitrários. Todas as idiotices da vida moderna, d si, 11III"/~'

man e os tênis Reebok até os casacos de vison e os jogadores de I 'ill,·III,I'1'11ganham sete milhões de dólares por ano, passando pelas lnn 11011111McDonald's e pelas Madonnas e outras armas de destruição em mnss.r, 111111'esse curioso esquema cultural aparece para os economistas, ainda assir», (1111111o efeito transparente de uma sabedoria prática universal. No entant o, ,11111.produtores, que perpetram esses gostos em nome do interesse al .~II':111ldi'lucro, têm de estar impregnados pela ordem de valores culturaisdaquilo que vende. O fetichismo deles é um clássico fetichism da IIH'II Idoria: os valores significativos são compreendidos como valores P' \\11i.111I1Mas, enfim, a economia de mercado, ao atrelar uma idéia absoluta cl ' I,II111nalidade a uma lógica relativa de signos, inaugura uma era (realrn 111') 1011l0ld"de liberdade simbólica.

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1'1111,111111,11.111d 1111'1111111111111,qll.llllloll' .IV.IIII,.l!lo·,IIIOdllll)" dll( )lldl 111 " I \1,.dll.IIIIIOIII \11 I ~\I) I'C,llll' 1'1101,)\111100111~II.I\I ..dll.1 m s1II1I11nl\SI1111.11001.dld.ld't'lOlI IlIi .I,lod,1 .ss.r razao pdli ':111IlI' 'XpOSL:1

,1,lIgIIIII.1.\lIhv 'I'S:!o .ultural.

VI

~Olll() tnlvcz li sesse Bakhtin, as mercadorias do Ocidente transfor-111.1111S' 'I)) 01 j 'l d palavras alienígenas - ou não só de palavras, mas deIndo 11111dis L1r alienígena. Nas hinterlândias planetárias, os poderes dot.lpil.d :11':11' m como forças de outros universos. Mas, embora possam estar11.1p 'ril 'ria d sistema mundial, as pessoas não são (para adotarmos a irna-1\ '111ti . Marx) seres solitários acampados fora do universo. São seres sociais,I IJlllill '111' de si como pessoas sociais de certos tipos. São pais, primos cru-z.ulos, chefes, membros do clã do Urso, anciões, mulheres casadas, iroqueses0\1 iibctanos: pessoas que funcionam em determinadas relações de paren-I 'S o, gênero, comunidade e autoridade - relações que implicam, portanto,dir it s e obrigações específicos, amizades e inimizades; conduta que sematerializa, por conseguinte, e~ modalidades de troca e formas de riquezaI 'Gnidas -, donde seres sociais que funcionam com base em noções cós-

111 i a do poder, instintos cotidianos de moralidade, aptidões de percepçãosd .tivas, formas relativas de saber e, de modo geral, grandes recursos culturaisti' respeito próprio. Não estamos lidando com pessoas que não têm nada euno são nada. Para dizê-lo nos termos da semântica de Volosinov, as for-ma capitalistas, nesses contextos alienígenas, adquirem novos acentos10 ais. E, pelo menos aqui, a síntese com Saussure revela-se útil; os novosa cn tos são também valores posicionais cujas relações diferenciais com ou-Irn categorias do esquema indígena constituem lógicas dos efeitos possí-v .is de "forças" intrusivas.

Seria possível sugerir um princípio subalterno elementar de historiografia:o d que nenhuma asserção de uma disciplina imperialista pode ser aceitacorno um evento da história colonial sem a investigação etnográfica de suapr, tica. Não podemos simplesmente equiparar a história colonial à história

v 518 v

dll OIOlll/,ldll1l 'III! IlIlId•• I di 111'11111dll I' 1,1.1,1111111IlLd \.1011111111."1111Itlc ."III\,ld,l.

VII

n 'l 'I' urna oposiçiio sirnpl 'S 'IH!" o itknl" (J I 'SIO '. sob IIll1iloaspectos uma sup .rsimplif a 5. . 'Ihrnl m não x nvém : hisl(')I'i:t (lll)ll"d

ser representada como uma e nfr nta 5. mani lU '/S(:1 I, povos illdll',11101com as forças imperialistas, para ver qual d le n guir, :lpl'Ol'l i.1Iculturalmente do outro. Diversos antropól go - entr lcs Urll "Iili'.l', I,AnnStoler,JohnComaroffeGregDening-en inararn-n a r"olllll'olll,\I.1oposição binária costumeira como um campo histórico rriádi o, ti 11'ill !tIlurna complexa zona intercultural em que as diferenças cul ur: is s:to I'l.tlllIradas na prática política e econômica (Trigger, 1975; Stoler, 198Si COll1,lIn/!1989; Dening, 1980). ''A praia", como a chama Dening - embora plllllse tratar-se igualmente da plantation ou da cidade - em que "nativc s" t' ''!

trangeiros" elaboram seus mal-entendidos funcionais em língua rioulivndas. Existem aí "estruturas da conjuntura" complexas, como as alian as I'Ilatravessam as fronteiras étnicas e correlacionam oposições no in: 'I'iol d.1sociedade colonial com diferenças políticas no seio da popula fio 111l.tIPensemos na freqüência com que a rivalidade entre protestantes :t1<'11illl,foi posta por latino-americanos ou ilhéus do Pacífico a serviço d S\I:\,\PII')prias disputas históricas. Já mencionei algo dessa natureza no H:lV:lf. lJIIIconflito recorrente entre o rei e os chefes aristocráticos, tradici nnlm '1111travado como a aquisição de poderes estrangeiros-e-divinos, jun ou xr, IICIséculo XIX, às disputas acerbas na comunidade baole entre comer ialll ~I

missionários. Considerando-se os verdadeiros herdeiros da ética pr l 'SI .11111,os homens do comércio competiram explicitamente com o cl 'I'( 1H'1.1condução da missão civilizadora e pelo controle da devoção dos hav:d:11I1I(que também implicava o controle de seu trabalho). Como os chefes r 'ligio~1Ificaram do lado dos missionários e o rei beberrão ladeou os comer i:lIltl'~, (Iefeito foi um quiasma intercultural, uma estrutura que potencial iZ()\I li'

conflitos entre os havaianos por meio das diferenças de interesse ')1Ili' li'

v 519 v

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"'/olr.1 viii VI1',,1 A 111I'I',I,I,.dl 11111,1111111'011,,111\111'111111',1,1111'1,1',111i1l1i/ldI'Sdoi ouu.r, I) 'li :, '1IIIII'II!II'I(JMI!~dlllldo, Olllp '1i~,I() 1'01'1\1.11111'/,,1'1IIr'os1101.v 'is do (I.IV:t( 111-diunt :1:1 'Ulllltl:lÇ;IO .iu in mta I, :11'1i 'os ti' luxonll';ll1g .iros .spc ialm .ntc duram a ra de farcur d mér i d ândalo(1.11'01() 111'r ad d antão. A pessoas dos chefes podiam ser metonirni-.uu '111' stcndida às terras estrangeiras no céu além do horizonte, esten-

didns até a hina e a Inglaterra, por meio da importação de roupas elegantesl' d ' móveis e aparelhos domésticos aparatosos. A China e a Inglaterra,~lIbSIituírarn a amiga Kahiki, terra dos deuses, e, nesse momento, o caráter

vis« S los produtos estrangeiros passou a evocar o brilho celestial dos antigosr ,i:; (v r capítulo 13). Terá sido essa a origem da camisa havaiana?

É claro que houve exigências estritamente funcionais de produção para() mercado, adaptações que tocaram profundamente os alicerces da socie-dade indígena. E significados e inclinações econômicas estrangeiros aporta-rarn na praia junto com as mercadorias, No entanto, os estudiosos da his-tória do Pacífico às vezes se surpreendem com a facilidade com que a famosa)enetração" do capitalismo pôde realizar-se com relativamente pouco esforço,violência ou ameaça.

VIII

Não raro, seguiram-se a isso as doenças e a destruição, mas elas nãoconstituíram o meio de acesso aos desejos da população local nem o meio dodeslocamento de sua mão-de-obra para o comércio. Não que os ilhéus (assimcomo os chineses) tenham dado aos ocidentais motivos para se congratularempelos "efeitos de demonstração" de seus artigos claramente superiores, umavez que a demanda local logo se tornou mais seletiva do que eclética e envolveunoções bastante exóticas de utilidade. Daí o florescente comércio oitocentista

de dentes de cachalote em Fiji e de cobertores da baía de Hudson no Noroesteda América, bem como o de sedas chinesas e casimiras inglesas no Havaí.

Esse foi um período de "desenvolvimento" indígena, como tentarei explicardentro em pouco, durante o qual todos esses produtos estrangeiros enri-queceram as autoconcepções nativas. Assim, seria muito fácil concluir, com

o 520 o

h,l',l 111111111I1Vld.1I11di 1" .'1,1 .1(111 I '11tllllll flll,lll t". 1111I "11111111I d"I wul iurl", 1 111111111\11111111111'1111,11,11,11111di",1 11\1'111 11,111111."1.11,1 1II111;1<1:1111\111.11111''''111(I lilllill, illl!'I',IIII,ldl 11\11I11,"ld,\l1

A( 'lias 11111hll'V '1,11 111'\ç,.,ol!n',1 illl '1'11 I.ldeoll ,I () 'I 1\ i.llldllll,11 ,visi qu', aqui, 'St;\lllOS 111:1isim '1't's,~:ld()sII.IS ('1()11\-irus, ( . plillq\l 'I 1IIIIdll,tão ed nã uvir '11) SO fim Ias Ia lainhas P)S xrrutumlistus sobre 11 ,11,11Icontestado e instável da I gi a ultural, s brc atcc rias p 'r "P<; ) '~1(1I1 111diferentes para mulher s e h men, hcfe e pl b us, ri I t r 'S, ".,(,1,tld. 1.1ou aquela, ontem e hoje, Ainda assim, nem tudo na ntcnda '()Il ( '~(,11111

o que prova, mais uma vez, que estarnos aqui para parafr scar I urkh 1111,Inão para sepultá-lo. Por mais polifônica ou heterogló ica «li . ~I jol I

monografia, não se pode legitimamente inserir uma "voz" jap n 'S:I 11111111etríografia sioux, Para que as categorias possam ser contestadas, é !lI!! i ,11,

antes de tudo, haver um sistema comum de inteligibilidade, que Si.' (.'11111111,1aos fundamentos, aos meios, aos modos e às questões da discordân 'j;t, S '1101difícil entender como uma sociedade poderia funcionar, e menos aind.r : 1i

mo se poderia constituir qualquer conhecimento dela, se nas difer I :lS 11.111houvesse alguma ordem dotada de sentido, Se, com respeito a um d,I""evento ou fenômeno, as mulheres de uma comunidade dizem uma ()i,~:I! I1homens dizem outra, não será por que homens e mulheres têm p si<;o' diferentes num mesmo universo social de discurso e têm dele uma xp 'ri 11\IIdiferente? Será que as diferenças no que dizem homens e mulher S J),I<I ~,III

expressões das diferenças sociais na construção do gênero? Se assim r( 1', ' 1\11uma forma não-contraditória - atrever-nas-íamos a dizer, uma formn 101.1lizante - de descrever as contradições, um sistema de e nas diferença? I;i11'1I11parêntese: voltemos à disputa de fronteiras.

Refiro-me à idéia, atualmente em moda, de que não há nada \11possa proveitosamente chamar de "cultura" - não existe tal entidad I' ,i II oi

da -, uma vez que os limites das supostas "culturas" são indeterrninndos (permeáveis, uma ausência de fechamento que indica, mais uma v '1., 111111ausência de sistema, Paradoxalmente, esse argumento interpreta erron :1111'1111o poder cultural de inclusão como incapacidade de manutenção de um li11li I! ,Baseia-se numa subestimação do escopo e da sistematicidade da ul: 111.1'•

o 521 O

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1/11 ~,I() M 1111'1('dI' ,dll,III/'.( 11 I,IIIIIIV(1.•,tI I, 1'1111,111111,,11',1/(' di' iu 1\111oh, 'I()~'P '~SO:lS~str:lllh()s 1'1111,1.11,0'" 101\i ,1111'1111' o '11'111..s. No lIl' 011 ('1111,10

. irnpcrialism id .ntul - a LlI1i':1 1111\11':1que não f( i d ·s OI1SII'IIÍ [n p .latroca da vanguarda, uma vez que recém sua ocrên ia essen ial c m n llti acomo um sistema de poder -, o europeu, para as populações locais, nunca écompletamente um estranho. Como disse Marilyn Strathern sobre a Mela-nésia, "Foi uma certa surpresa, para os europeus, perceber que seu adventonão chegava a ser uma surpresa" (1990, p. 25). Os povos do Ocidente nãotêm o monopólio das práticas de englobamento cultural, nem estão diantede amadores no jogo de "construir o outro". Toda sociedade de que a históriatem conhecimento é uma sociedade global, toda cultura é uma ordem cos-mológica; e, ao incluírem o universo dessa maneira em seu esquema cultu-ral- como os maori ou os aborígines australianos incluem a ordem da natu-

reza na ordem do parentesco -, as pessoas atribuem a seres e coisas que estãoalém de sua comunidade imediata um lugar definido em sua reprodução.

Divindades ou inimigos, ancestrais ou afins, os Outros, sob vários as-• pectos, são as condições necessárias de existência de uma sociedade. Comofontes de poder e bens culturais, embora também possam ser perigosos, essesseres vindos do além representam o estado de dependência em que se encon-tram todos os povos. Todos têm de construir sua existência em relação acondições externas, naturais e sociais, que eles não criaram nem controlam,

mas que não podem evitar. Eles são coagidos de algum modo, ainda que nuncado único modo possível, pela passagem das estações, pelas chuvas anuais,pelos costumes e ações de seus vizinhos. Nesses aspectos, nenhuma cultura ésui generis. E a fabricação mais ou menos consciente da cultura, em respostaa "pressões" externas imperativas, é um processo normal- dialético ou eis-

mogênico, talvez, mas não patogênico.

IX

Com o advento do Estado colonial, aparecem diferenças nos modos deinvenção e reprodução culturais. É interessante notar que, do ponto de vistade muitos povos colonizados, é esse momento de dominação, a assunção do

<) 522 <)

I/dll/I'oIII1,dl 11111,1/"1 111111111 111111,1.\'1111'"1111111111111111111,111111'1,lp,II('( illll'l1l1l 111111111dll 11111111111111.111I) 111111\111(11111,11111Iilll di " 11111111""l'ar;iOS '1IIOIIl'U" <11.1I0"II',1.llId I\ljlllll,l 11,11ti ',\1111,1do I ,!.tlldn 1I11111dll1111

in] 'ia Ia pOI' S~'II prÓl'1 il) :qwl't' 'illll'1I10 1\(·/, 11111.1'pil:lllin II'Il' '.\11111'"''mente pI'O luziu 1I1l1ll1\l1ld:III~':I11:1Ill:!li 1:ld ,do ( '111pOhi tll)l'i 0, 1'.1111111mula õe extremadas (ma' nã raras), nada 'SI:lV:I:I onwc 'li I) :111((' d,l "ticoberta" eur péia (de lu are nhe id s p '1:1humanidn I, pOI Il1il 11111),senão meramente uma reprodução e táti a de fi rrnas '\ratli 'IOII:li, li, ,1111',1.11que, a partir do momento em que nel ap rt li o prir» .iro ' pllll,ld 1\

ou comerciante ocidental, a história dos povos tornou-se h is: <'>I'i:1(,I t 11.r]adulterada pela cultura dos estrangeiros. No entanto, flj ianos, '(ll \10 111111111outros povos colonizados, representam de outra man ira a I'Uptur.t 111\(1'1111I"antes da bandeira" e "depois da bandeira", dizem el s, referi ndo ~l .111. I I

belecimento da dominação britânica. Esses são o a.c. e o d. . <.I\: SII,I111'1[1111I

mundial- "antes da Colonização" e "depois da Colonizaçã "- ':1 .111'(,1111uma percepção diferente das qualidades culturais do tempo e da I1wd.lIlI,11

"Antes" era a época em que eles estavam sob seu próprio c rurolc utlllll "I.Os produtos e até as pessoas do Ocidente podiam ser englobados POI ,,( \Iprojetos de "desenvolvimento". A riqueza estrangeira subsidiava PIOI!'IIIculturais nativos: a realeza no Havaí, os festejos cerimoniais em 1 )IlilJll' I' 111terras altas da Nova Guiné, a caça e a guerra nas planícies norte-anu-i i .1111,ou os potlatches na Costa Noroeste. Isso ajuda a explicar por que . 'rt,l~I III Ide proveniência européia - não apenas os cavalos, o tabaco, o fac )t'.\ 1111I"tecidos, mas até o cristianismo - ainda são percebidas localmente COI11() 111I1I1I

"tradicional". Elas dizem respeito ao tipo de reação indígena ao idcu: 1/"chamamos de "desenvolvi-gente" [develop-man] (capítulo 13). Esst' 1 '111111capta uma forma indígena de lidar com o capitalismo, um m mt'II10 1',1sageiro que, em alguns lugares, conseguiu sobreviver por mais d UIlI .'01(\ \11,O primeiro impulso comercial das pessoas é ficarem não iguais a nós 111i1~111011iguais a si mesmas. Elas coloc~m os produtos estrangeiros a servi o dt' idl I Idomésticas, da objetificação de suas próprias relações e suas c \1' 'p~ 111' "boa vida. Introduzidos na órbita do sistema mundial capitalista, 'ssn 111/,111,1global de racionalidade econômica, os habitantes das terras alias In r~11 I

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(1111111I. I111111I '. III 'I 1Ii.l./' , I 11111'111d, ,lIg11'1.1'11I1111I.d 111111,11S1I~.II,11111'11.11"11'.11,111',111.11',(I1IV1/'IIllt'~ '11111ni I' "li 111" '" I' '," .. , .u t 1011,11't l/IW.~('·I(·III1"111111.1111,.1rvl.m IlIlIlOS Iorum OIlIid)S ' mnis '011.hus dl: 111:1Ir ,_!'t-I'oli! (Ol'ilfll I1II ,III.ISII '.~S·S (' .stivais J" 111'S d qu jamais se fizera 11 s

bons V ,111S t 'lIlpO.~,1':11':1lIã falar d con uma liberal de novidades corno a.rvcja e a arn enlatada. Por mais que reclamem os burocratas neocolo-

niai ou os economista do desenvolvimento, isso não constitui "desperdício"nem "atraso": trata-se, precisamente, de desenvolvimento, do ponto de vistado povo em questão - sua própria cultura, em escala maior e melhor. "Sabe oque n6squeremos dizer com desenvolvimento?", perguntou um líder do povokewa ao etnógrafo: "Queremos dizer a construção da linhagem, a casa-dos-homens, a matança de porcos. Foi isso que fizemos" (josephides, 1985, p. 44).

x

Naturalmente, num Estado colonial que se relaciona com a populaçãodominada mediante técnicas combinadas de disciplina, repressão e persuasão,as condições de reprodução cultural são radicalmente alteradas para pior. Esse

é um período de humilhação, no qual a prosa política e econômica da domi-nação é comumente aprimorada por uma poesia cristã da degradação hu-mana. Os missionários norte-americanos costumavam queixar-se incessan-temente de que o problema dos havaianos era que lhes faltava desprezo sufi-ciente por si mesmos. Comendo, rindo e copulando em demasia, sem nuncatrabalhar muito, os ilhéus simplesmente não conseguiam compreender quãopodres eram. Toda a cosmologia judaico-cristã da condição humana, de umanatureza humana intrinsecamente corrompida pelo pecado e da vida enten-dida corno castigo, todo esse sistema de ódio a si mesmo, tinha de ser impostoa eles - "o ódio furioso, vingativo, da vida", como o chamou Nietzsche, "a

vida abominando a si mesma". Só então, quando estivessem suficientementeenojados com eles mesmos, é que eles estariam prontos para se tornar iguala nós, "civilizados".

Em boa parte do mundo, entretanto, o projeto cultural universalizantedo Ocidente não se sai tão bem. O período de subordinação é uma "dominação

v 524 v

~ 11I1111','11111111.11',11111111di~( :11/1,1( 1II111.11,111 1.11111IIdlllll,tI , 111.11.1.1,1

P .l.1.\ o IIU',MH'~ til! 1':',1.1tiq 111l!1\i.d .1111',11111111.11I' 11111I 111/111,d tI.11'1)I' 111.11,111al- 111. de outro modo, 11.10p()d'l i.1", I dllllllll"d.l. N.I d!llltill.II,.III·, 111

hegemonia, es rcv 'lIha,':1 vida da sod ,<1:111"ivil nuu ',I !I0cll' ,',('1illll iramente absorvida pela atividad I ESI ndo" (11 H' , p. ' H 1 . ( ) I'('/',i111' I"lonial é "duplamente alienado" da p pula':!o nativa, uuuo COIIIO ~11.1I1geiro quanto como estatal: é urna "ext malid: de nbs luta". S 'OIOllil,ldlladaptam-se a suas imposições medianc permuta - m Iiva Ins Iv ,~II.I',tradições culturais. Daí a sublimação da guerra nas trocas eJ'il11()l1i:IÍ,~"1111cargo-cult que subsume a experiência colonial numa teoria nativa dos 111deres ancestrais, para citar exemplos bem conhecidos da Oceania. N() (,111,,Ihumilhação do povo é uma faca de dois gumes, voltada contr a d mill,II,,1I1estr,:ngeira, como no atual "culturalisrno" ou na "invenção da trad i ;\0". N 1palavras de Amílcar Cabral,

(...) a cultura revelou-se a própria base do movimento de liberta :io.Somente as sociedades que preservam suas culturas são capaz s dl'se mobilizar e de se organizar para lutar contra a dominação cstrangeira. Quaisquer que sejam as formas ideológicas ou idealísti ":lS

que assuma, a cultura é essencial para o processo histórico. (...) 1'"uma vez que a sociedade que realmente consegue livrar-se do ju ,()estrangeiro retoma ao caminho ascendente de sua própria cultura,a luta pela libertação é, acima de tudo, um ato cultural. (1973, p. I I)

E de que outro modo podem as pessoas reagir ao que lhes é il1fli/'.idllsenão inventando sobre sua própria herança, agindo de acordo ()1l1,\11.1,próprias categorias, sua lógica e seu entendimento? Digo" inventando' pOl' I1Ia resposta pode ser totalmence improvisada, algo que nunca se viu 11'111,('imaginou antes, e não apenas uma repetição reflexa de costumes ant igll.\. /\"tradição", nesse caso, funciona como um padrão pelo qual as pes :1S m 'd, 111a aceitabilidade da mudança, como observou Lamont Lindstrorn s )Im' !l',

ilhéus de Tanna (1982, p. 316-329). A continuidade cultural, pOI'!:1I11l!,aparece na e como a forma de mudança cultural. As inovaçõe I· '(ll 1('111

logicamente - embora não de maneira espontânea e, nesse ent.i 10, 11.10necessariamente - dos princípios de existência do próprio pov . '!htd i 111nalismo sem arcaísmo.

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1\11.111111111111111.11111111111.111111V I .1 (1)11111111V 11111I.lili.lIl1) "111.11111111.11111"'111. "~I I>.d\l III\1ill) h 11111.1l IlIlhil\,1 .111ti . valor .~ illt!lg(·II.I.\ (1111.1il1/111 lIli.1 11.111"·S.I".Afllllt!,Hlo numa 'I'and I OIII'()J1:t, ti 'pois ti' um 'X '-

1('Il\~' jnnrnr, c :'1)()I1I:1l1dOpam O lu 1:11' de destaque upa I P r uma g la-ti ·il':1 '111sua sala, ·1 d LIum rri o ati feito para Hanson disse: "Le ma'a

omida) na g lad ira - voilà Ia vie tahitienne" (1970, p. 62).

I

Note-se que, para as pessoas em questão, o sincretismo não é uma'( ntradição de seu culturalismo - das reivindicações nativas de autenticidade. autonomia -, mas, antes, sua condição sistemática. O principal, é claro, é

sobreviver; é nisso que decididamente consiste a política, decididamente.Mas o movimento quase nunca contempla um retorno utópico aos temposprirnevos e aos estilos ancestrais. A cultura tradicional tem seus valoresSlI periores, mas as geladeiras, os motores de popa e os televisores não se en-

ntram entre eles, O culturalismo moderno inclui a demanda da posse des-,as coisas ou, mais exatamente, domesticá-Ias. Os defensores da cultura na-tiva dispõem-se a fazer concessões úteis à cultura dominante e até a utilizarsuas técnicas e ideais - no processo de distinguir os deles. Os havaianos, ospovos da Amazônia ou os australianos nativos se dizem os melhores ecolo-gistas do mundo, os amigos originais da terra (mãe). Mas, não estarão elesapenas agindo como críticos substitutos da sociedade ocidental, enganandoe anulando a si mesmos pela mistificação de valores ocidentais como culturasnativas? Essa não parece ser a interpretação correta, mesmo admitindo quehá uma ambigüidade peculiar no moderno movimento cultural- que, vistopela esquerda, pode ser interpretado como uma resistência política e, vistopela direita, como uma traição ideológica. O que estou tentando fazer aqui éficar acima da confusão, pois me parece que a política local torna-se o meioou a expressão de um processo maior de transformação estrutural: a formaçãode um sistema mundial de culturas, de uma Cultura das culturas - comtodas as características de uma estrutura de diferenças.

No fim das contas, em qualquer setor local do sistema global, atransformação assume a aparência dual de assimilação e diferenciação. A

v 526 v

IIIIPIlI.II,.IIIIIH.d .\111 Id.1 1 111111,111111,1I111dllll,1I ,111111111111\1,1111111111111111'1"1

qll(' M di 1.1111.1" 1.1, .I \111,111.111,111//1/1//'/ /1111/1111111111111I d.1 1\1 1"111111.1

IllllSi :1. I ),d .1I .\ di M u h.u 1 ,(' ( I ti· 1" .1~ 1111111.1111,.1( ,I dil,·I(·III,.1 " .I,S .nvolv '11\ jllll\:l~ 11.1111\1\1'111,1Ilistc')I 1:11I11111t11.II,\lh.\ 'I V,I~,III '111 1'''.1, 11,1C rnbinnr- . om :IS "hs 'IV.H;)·S I '·I'·l'Iy'lillll·r solll . li tllI:disllI\I 11111111,11

do rp s, das aldeias ' Ia s i 'da I· .m ' 1,:111m '.1i:IP( 1111_Id.111V Iexternarn n . bra ril 'ir s in ruam .ntc In li s. (~ il11 'ressa"l 'qll 'm 1 "11diosos anteriorc do quc hoje é pc!' bid m "inversão ""1 III ,11"

disposição dos povos contactados para elab rar s a pc L S tilsuas respectivas tradições - tenham visto a inversão ul rural ()111011111(11"líbrio estrutural. Lembremo-nos de que, originalmcnte, r' oly 1\.111 1111

definiu a "cismo gênese complementar" como um fenômcn dc n uluu:« 111,

E argumentou, em Naven, que esses processos de difcrcnciaçao 11111111.11'1ralmente são limitados ou contrabalançados, sob pena da S -p:lI':t,.IO 1Il111pleta e da destruição potencial (1935, p. 178-183, 1958). J:, e a, 11:'1llll.II" li 1111•a idéia de como as estruturas se deslocam e são transformada nas 111)/111/1

logiques de Lévi-Strauss. Aqui, mais uma vez, as oposiçõe n r os povoque entram em contato são contrabalançadas pelas semelhan as.: nu li ti I

que cada um se esforça por ser tão bom quanto o outro em' mo 111 ·111111do que ele - e, portanto, igual e diferente dele. "J:, como se, n pl:IIIO doicrenças e das práticas, os mandan e os hidatsa houvessem con li i 10 \I '1".1nizar suas diferenças num sistema", escreveu Lévi-Strauss num t XIO 1:11111111

sobre os mitos e ritos de povos vizinhos (1971b, p. 163). Os mie s '1\1~iI1Iam da sabedoria de tribos vizinhas que se mantêm suficientemcni . di.~t.111I1

para serem independentes, ao mesmo tempo que suficientemcru 1'1') 111101

para serem interdependentes.É claro que, dado o atual discurso teórico e moral d d mill.H,.11I I

sujeição, desencavar relíquias estranhas como o "equilíbrio estrut urn!" 011 I"complementaridade estrutural" deve parecer irresponsável, s nnn plllll icamente perverso. Talvez fosse melhor apenas ignorarmos o c nl: x iuu 11111antropológico acumulado. Essa tática popular é chamada d "p <'I i. 1111

turalismo'' .

v 527 v

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1'/11 IIIIII!! l,Idn, 11, IIIII/I(',~ d,1 wllt,1 )',11,1/<1,1/I(),•• I'llllll,1I11 qlll .11'01(11 I

d:1 ttdllll':1 (.< 1111\11'Ill("~NO SII'lIll1/'a!. 1':111W'l.tI:1 k'/'/'uba Ia dosiSlt'/llillIllllltli:")

qu ' ~ hoj 'lima I' ':1Iid[l lc irr 'v rslv ,I ti' sua vi Ia,:(' inv '/1 Õ 's i inv .rsô 'Sdatradição dos pov s 10 ais podem ser entendidas como t ntativas de riar umespaço cultural diferenciado no seu interior, E as ações que são, ao mesmotempo, indigenizantes e modernizanres, parecem mais estruturais do que ape-nas hipócritas, Roger Keesing e outros frisam que os líderes de movimen-tos modernos de renascimento cultural são, quase sempre, as pessoas maisaculturadas e de maior sucesso no mundo comercial cujos valores elas repu-diam ostensivamente, Não faz muito tempo, passei quase um dia inteirocom uma dessas pessoas nas montanhas da região centro-sul de Formosa, umartista austronésio do povo paiwan, articulado r de um movimento de renas-cimento estético que é, para ele, o meio para um projeto ainda maior derestauração cultural. Quando lhe perguntei por que queria voltar às tradiçõespaiwan, respondeu-me com uma crítica ao materialismo e ao individua-lismo modernos, do tipo que se pode ouvir em muitos lugares do Terceiro

•Mundo: a vida do dinheiro é inumana, comparada à cultura paiwan. E fezessa afirmação enquanto comia um filé num restaurante ocidental da cidadechinesa de Ping Dong, restaurante que era uma espécie de clube ao qual elepertencia e ao qual me havia levado com sua jovem esposa chinesa, descendoas montanhas no jipe que havia recentemente-mmprado - com recursosda receita de suas duas lojas, onde ele vende seu trabalho e outros produtosétnicos, inclusive tecidos da Indonésia e da Índia, No entanto, não havia nadade cínico nesse homem, muito pelo contrário; e, como todas as outras coisas~ue ele fazia, sua movimentação entre culturas era mais graciosa do quemcongruente. Mas, afinal, quem estaria em melhor posição para mediar umarelação intercultural? E, tal como os ecologistas polinésios ou o chefe ama-zônico que, no Brasil, vira uma câmera de vídeo para o representante daFundação Nacional do Índio, será que o artista paiwan não faz da assimilaçãoda cultura dominante um meio de sustentar a diferença?

Se tudo isso faz algum sentido, se o mundo está se transforrnando emuma Cultura das culturas, o que precisa ser estudado etnograficamente é aindigenização da modernidade - ao longo do tempo e em todos os seus altos

v 528 v

I 1I,lIxOS di.I!t(1 i, o', li 'di, I' 111,tii 1I11i!'." di 111 I.!vi 1',11111'11I ,II,,,ti

I/lV'I1 fi{) d:1 Iladi\,III, ( ) 1,11'1""11/1111 1)( Idl II"d ( di ,",,111 pl,1I11 1.11111,1111

não é um 1 gi li unlv 1, ••11d('IIII1I!:tm,,1 uluu.rl. !\IIII,d,lll),~ 1111~illll' 1/1111'

sido dernasiadnm '1111 d/'lllil1:1dl),~, hi.~I()I'i()I''''; fll ,I (' ('I/lo"'l':dl uruc /111,11111

suas exigên i. i 1111 'l'i:1Ís, Á [u SL:Í( :lgol'i/ < s:dJl'I' OlllO ,I, II (·lnhOl',ltln II11

outras multipli j [nd S III eu rais,

XII

Os primeiros cinqüenta anos de desenvolvi-gente apiralism 1\1 I ij I

mais ou menos de 1800 a 1850, atingiram níveis de canibalismo SI'III 111111

dentes, com isso confirmando um certo pesadelo totêrnico qll' I '111.11011111I

tado a imaginação ocidental, pelo menos desde a época em qll ' S:lIIIO ÁJ',II

tinho o formulou: o de que, em se dando rédea livre à vcnalidudv luuu til I,

os peixes grandes devoram os peixes pequenos, Vimos que s l11()d~'IIIII~ 1111

goeiros acadêmicos do sistema mundial deram excessivo l' d i Io : 1111l.1 drmosquetes europeus pelo sândalo e pelos pepinos-do-mar I) 'ais ()I\III ,I 1,\

zão dos desenvolvimentos inter-relacionados da guerra, anil nlisino (' 101

mação do Estado na Fiji do século XIX (capítulo 12).4 Dizem qu ' o poli 'I

de fogo dos mosquetes e as necessidades de mão-de-obra do ll1 ~I' in dll

pepino-do-mar teriam feito a fortuna política dos reinos de Bau, I vwn I

outros semelhantes; no entanto, esses Estados poderosos já haviam ,11111

gido sua forma histórica e grande parte de sua dominação tcrri 101'i:II .11111

da chegada de qualquer europeu, e com certeza muito ante d o '()I\ 1 '11 ill

do pepino-do-mar, na década de 1830, introduzir um núm I' :'1 1" i; vul dimosquetes nas guerras fijianas, Na verdade, o controle do cornér io o('i<l 111111

por Bau e Rewa deveu-se a sua dominação nativa, e não o inv I'SO, 11111.1VI"

que nenhum deles dispunha de recursos significativos de sândalo 0\1 IWpil1t'

do-mar em seus próprios territórios, Quanto aos mosquet '111: I1 <111\1

dos pelos fijianos, eles tampouco foram decisivos em suas ucrrns, NIIIII

riamente sujeitos a negar fogo na umidade dos trópicos 1":11i \.'IIII'jll

neutralizados pelas mudanças nas fortificações, os mosqu t ',d' qll.dlJlIll

forma, não foram utilizados com grande precisão nem ef i 11'i:1 p ,111, 1

v 529 v

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ji,III()~, N 1110',1110''111 11 1111110111111I !tI 1,1' 'pillll,~ dll 111.11,pl'11.11110,Silll OS ti 'I I 'S lk b.1I '1,111"(, "'!',1I',11I1,I Piji ,I(:i bOi bOlOl':-'110 ild i() 111,," ulo

IX, f rum a ~ rue dl ti 'S 'I1V lvi-a .ruc in li 'na. M xl: da I olfli a ti 'lapa

escala, meio para tabclecer e romper alianças, preço de um assassinato ude uma vítima canibal, os dentes de baleia alimentaram os esquemas trans-cendentais de dominação - a idéia de uma ordem fijiana universal- contem-plados pelos chefes dominantes ambiciosos da época, especialmente emBau (ver capítulo 12).

Uma prova? Lévi-Strauss fala do químico que, depois de sintetizar cui-dadosamente o cloreto de sódio no laboratório e confirmar sua composiçãopelos testes padronizados, leva-o à boca e o prova, só para ter certeza de que ésal. Uma boa prova do valor histórico dos dentes de baleia é que, etnografi-camente, é possível prová-los. Não só porque os dentes de baleia continuama organizar a vida fijiana - as alianças matrimoniais, o respeito aos chefes, ouqualquer kerekere "pesado" de mercadorias ou pessoas - e não só porque asformas rirualizadas de sua troca continuam a ser expressões pouco alteradasde uma transação de benefícios divinos. Há também o preço extraordina-'riam ente alto dos dentes de baleia nas lojas de penhores de Suva, a capital. Opoder do dente de baleia se evidencia em suas transformações históricas.

Não muito longe de Suva, no vilarejo de Cautâtâ, Poate Matairavulamostrou-me, alguns anos atrás, um pequeno baú de madeira guardado nocanto mais distante do quarto da direita, nos fun&s de sua casa "de estiloeuropeu". Esse espaço era o equivalente moderno da parte mais tabu da antigacasa fijiana (o loqz), onde o chefe da família dormia com sua mulher e ondeas formas reprodurivas de riqueza eram armazenadas, inclusive o inhamereservado para a semeadura e as armas que proporcionavam vítimas canibais.O baú de madeira, explicou Matairavula, era a "cesta do clã" (kato ni mataqalz),onde era guardado o tesouro coletivo em dentes de baleia. Sendo transmitidojuntamente com a chefia do clã, o baú era uma garantia de salvaguarda. En-quanto se mantivesse intacto, disse Matairavula, o vanua- a terra, incluindoo povo - seria preservado. Em 1984, Matairavula estava me mostrando umexemplo de uma antiga "cesta de Estado" (kato ni tu), de um tipo tal que (aoque eu saiba) não foi antropologicamente registrado nessa parte de Fiji desde

1111111111111111.111111,11111)I (l, I I 1111111I 11I11 di 111111111I I1di r 1111111,

11111.1,li 11LI 1'111 1111,1di ( '.1111.I,A dllll.d I' plll ,li, I "ti t\1.1I,IiI,1 111.1I 1111Iillll,11.11I1,11.\111

11I111',,1~klll"I,IIII"I~, IIdtllll'II\(~IIl() o ",', dll I 1.1,11,111li\(, ('1,111111111111••.dllil o h.I\'1 I -ri r.u ti '111', Il' hul -iu. I.~~()llllllJl(·Ii.1 .H) ,11.111111,1i "111'0111ti I

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cs on lid num, v lha paSl:1 ti' x uro pr '10. (~r:!l11()s:1ti ·I'g,1 ,10 1.1.tldl 11para (U li rc 1 dum bau an i1U l r ',ti Ifí 10 r' i 'li c rr ,i 1'1 l' liV I11.11111, Iurr gávamo d nt d baleia m n "b 'ij "(/Ii r('~/II'I:~II) 111) I ,ld,1 'I

Minha própria presença com homem bran n aml o ~·I·illltllli.d di 11.111não era propriamente uma novidade histórica. Ao orurárin, 1'111111111111

mover-me de maneira indescritível com toda a crnaranhacl.t ItI 111111,1,brancos e fijianos oitocentistas que havia ocorrido nc .spn o. A 111111\11também era palpável na cerimônia: fomos obrigado usar roupa: (1)""1,1"tradicionais" no campo de Bau. Essa roupa tradicional cr: li li saro "1',111dialgodão de estampa florida. Cristão, sim, mas de "antes da ba n I 'j 1';1", 111tória também se fez presente em todas as aldeias que foram I .vur 11.111111tribuição em dentes de baleia para a reserva do poder dos r is \\lVIIl'i 111'II1Bau. As pessoas de Cautâtâ estavam presentes por serem trad i i n:lis 1\" 111 i11Ida fronteira do reino de Bau. Trata-se de um status que elas não l'SlJlI I I 111Um estudo recente indicou que, dentre os vilarejos dos terri Iórim di 1\.111Cautâtâ tem o mais alto índice de alistamento nas forças arma 1:11>fIji.III.1

Quanto às forças armadas fijianas, até os dois golpes de lado 1" ,11111\111em 1987 sob a liderança do coronel Rabuka, a grande fama d .ss . t')«"lt 11111Ia de esteio da força de paz da ONU no Líbano e no Sinai. Assim, d('11111 disegundo golpe, quando Fiji se retirou da Comunidade Britâni ti c, 11111I I'abandonou as comemorações do aniversário da rainha, que dia prOl 1111111111coronel Rabuka, admirador dos militares israelenses, com U,1Ui 11.1 illll.tI li

Fiji? - o Yom Kippur. Disseram-me que, em 1987, podiam-se V'I ,'111 11camisetas que traziam gravada na frente a inscrição YOM KIl P I~, '11111 111.11111e, nas costas, DIA NACIONAL DE FI]!, em inglês. Nesse mesmo ano, () IIII'IJ1111

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I OIClIIII I' ,d!li! ,I /oi '1III'm~,ld!l 111110Illh I 1.1',1I1l11i,1~AIIIJ.I(I.I~ dI Piji I

'()1I1()1ft! 'I' I '/:l!O 1.111:1:10 11I/lll:I' 'l'jll1 l1i,1"ll'adi 'i 11:11" IIj:ISti '1\ ri~() 'S

e ~ c granas, publi adas nos j mais, a nada s 'as emelharn Lal1C quanr nposse dos antigos reis guerreiros, Mas, afinal, "expiação" seria uma tradução

adequada para o ritual adequado (i soro) que pede perdão às autoridades

tradicionais pelos atos de usurpação - por meio do oferecimento de dentes

de baleia,

111111,111.11'''' 1111111111,111I 11,111111.11'111, 1111111111,11"111,I 1"1/ I 1,1111111

11111'111\ :lvll.I .11',11.1IIIIII\', I 111111.1\111 11,1 I 11\111,d.III1II' I '.I, ,/d, I

IlIdlllllld,II" 1I!t', ) 111('/1111~,d,'1 /1111,I~old!'II' IrlIIII.lI~ \11.1"I VI1.1111

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1,11110 SII:IS1()I'I1I!1S[c nuu cil':lsl'sp' '(11 !I,~,Aqui.] OI'\,IIl\O, 1111111,111111'1',1.1111

Iti~I" ri 'a - uma ;lIH 'r;dl:l [uc S' 'SI 'n 1:1, lig,l/\los, pOl' \/111>doi ' Ild"

h: um m lodo para 011 ilinr ri forma :I f"un ~ numn Il'>gi :1 do " IllIdll,

p:ll':1 ti S obrir as [irn .nsõ r .lativam '111' invarianr 'S ' 11111\: V ·i'l li I

trut uras, para te tal' a p t 11 ialidad s

.squ ma culturais, para pe r e vai rizlances ,dessemodo,permitirumadecriçã b mfundam'III:1d,ld.1 I"dll,

uliurais como sistemas de diferença, No que con rnc a IOd,l I 11 I,problemas antropológicos modernos e pós-modernos, a hisió: i,l I I I 1I1I

Mas jáse foi o tempo de umaemografiaqueeraaarqu'olo ri:1 do VIV'111

buscando sob a superfície conturbada da modernidade s v 'st! rio ti II111I

existência prístina e "primitiva". As culturas assim rev ladas 'SlaV;1111di' 11\1

fossilizadas, mas o estavam, acima de tudo, em vis ta dum m O I ) (I . I 1I1111I

cimento que as abstraía da vida e da história, Esse tipo de ctn gl':d 1:11'1,111111

vocação nostálgica, inspirada em conceitos teóricos de pr gr .sso q!1l

formavam percepções de outros em vislumbres de uma época I assud,1 ,I,que os outros não fossem "aculturados", Agora, a história n s I 'SI '11.1 Icochilos dogmáticos, As velhas oposições conceituais em q LI S' ('Ulli 1.111111

tou a etnografia científica estão-se desfazendo: descobrim S :l

dade na mudança, a tradição na modernidade e até os costurn s no

Ainda assim, nem tudo o que era sólido agora desmancha no ar, '01110 ," ,\1

prematuramente uma certa antropologia pós-modernista. Re tarn as ti 111'/1Ili, I

distintivas, as diferenças culturais,

XIII

Numa tese genial do Ensaio acercado entendimento humano, John Locke

diz que conhecemos as coisas, necessariamente, em termos relacionais, por

sua "dependência" de outras coisas (IV, 6, 11), Por mais absolutos e íntegros

que nos pareçam os objetos da percepção, eles "não passam de servos de

outras partes da natureza", Suas qualidades, ações e poderes observáveis

"devem-se a algo externo a eles; e não conhecemos nenhuma parte tão com-

pleta e perfeita da natureza que não deva a seus vizinhos o ser que tem e as ex-

•celências deste," Essa observação tem aplicações de importância crucial na

antropologia - mesmo admit'indo que os filósofos nunca ficaram muito

contentes com essas "qualidades secundárias, mediatamente percebidas",

Locke deduziu a implicação fundamental de que é impossível esgotar a des-

crição empírica de qualquer objeto, uma vez que suas propriedades só po-

dem ser conhecidas pela interação com um número indefinido de outros

objetos, Decorre daí que a objetividade dos objetos'é-construída pelo homem,

ou seja, por uma seleção historicamente relativa e por uma valorização sim-

bólica de apenas alguns dos possíveis referenciais concretos, As descrições

essencializadas não são fantasias platônicas apenas dos antropólogos; são

condições culturais gerais da percepção e da comunicação humanas,

O que tem maior pertinência direta aqui é o fato de Locke estar também

dizendo que conhecemos os atributos das coisas historicamente. Conhecemos

as coisas pelas mudanças que elas instauram em outras coisas ou recebem

destas. Conhecemos o sol por seu poder de derreter e branquear a cera, assim

como conhecemos a cera por derreter-se ao sol e endurecer no frio, por poder

Notas

2

Para uma história geral do hula-hula, ver Barrere, Pukui ' I t:lly, 1'11\11

Cf. nota 1 do capítulo 8. (N. da E.)

<) 533 <)o 532 o

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V'I 01, 101.110', tI.I\ IC'volt,I" 1111111. 111"11.1', 1'111 M. .1111111\, 11)1) ,

A pl'Op<sito d.1. ti I1('.' t )('~ .rqui I 'V,III1.11 1." ~I)I)I ',I lti~II'IIi.1 Ilji.lll.l, V 'I' Olllli.,1977 c R utledgc, I 5.

/

<) 534 <)