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EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL SACRAMENTUM CARITATIS DE SUA SANTIDADE BENTO XVI AO EPISCOPADO, AO CLERO ÀS PESSOAS CONSAGRADAS E AOS FIÉIS LEIGOS SOBRE A EUCARISTIA FONTE E ÁPICE DA VIDA E DA MISSÃO DA IGREJA Introdução [1] O alimento da verdade [2] O desenvolvimento do rito eucarístico [3] O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia [4] Finalidade do documento [5] I PARTE EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO A fé eucarística da Igreja [6] Santíssima Trindade e Eucaristia O pão descido do céu [7] Dom gratuito da Santíssima Trindade [8] Eucaristia: Jesus verdadeiro Cordeiro imolado A nova e eterna aliança no sangue do Cordeiro [9] A instituição da Eucaristia [10] A figura deu lugar à Verdade [11] O Espírito Santo e a Eucaristia Jesus e o Espírito Santo [12] Espírito Santo e celebração eucarística [13] Eucaristia e Igreja Eucaristia, princípio causal da Igreja [14] Eucaristia e comunhão eclesial [15]

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EXORTAO APOSTLICA PS-SINODAL

SACRAMENTUM CARITATIS

DE SUA SANTIDADE BENTO XVI

AO EPISCOPADO, AO CLERO S PESSOAS CONSAGRADAS

E AOS FIIS LEIGOS SOBRE

A EUCARISTIA FONTE E PICE DA VIDA E DA MISSO DA IGREJA

Introduo [1]

O alimento da verdade [2] O desenvolvimento do rito eucarstico [3] O Snodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia [4] Finalidade do documento [5]

I PARTE EUCARISTIA, MISTRIO ACREDITADO

A f eucarstica da Igreja [6]

Santssima Trindade e Eucaristia

O po descido do cu [7] Dom gratuito da Santssima Trindade [8]

Eucaristia: Jesus verdadeiro Cordeiro imolado

A nova e eterna aliana no sangue do Cordeiro [9] A instituio da Eucaristia [10] A figura deu lugar Verdade [11]

O Esprito Santo e a Eucaristia

Jesus e o Esprito Santo [12] Esprito Santo e celebrao eucarstica [13]

Eucaristia e Igreja

Eucaristia, princpio causal da Igreja [14] Eucaristia e comunho eclesial [15]

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Eucaristia e Sacramentos

Sacramentalidade da Igreja [16]

I. Eucaristia e iniciao crist Eucaristia, plenitude da iniciao crist [17] A ordem dos sacramentos da iniciao [18] Iniciao, comunidade eclesial e famlia [19]

II. Eucaristia e sacramento da Reconciliao Sua ligao intrnseca [20] Alguns cuidados pastorais [21]

III. Eucaristia e Uno dos Enfermos [22]

IV. Eucaristia e sacramento da Ordem Na pessoa de Cristo cabea [23] Eucaristia e celibato sacerdotal [24] Escassez de clero e pastoral vocacional [25] Gratido e esperana [26]

V. Eucaristia e Matrimnio Eucaristia, sacramento esponsal [27] Eucaristia e unidade do Matrimnio [28] Eucaristia e indissolubilidade do Matrimnio [29]

Eucaristia e escatologia

Eucaristia, dom para o homem a caminho [30] O banquete escatolgico [31] Orao pelos defuntos [32]

A Eucaristia e a Virgem Maria [33]

II PARTE EUCARISTIA, MISTRIO CELEBRADO

Norma da orao e norma de f [34] Beleza e liturgia [35]

A celebrao eucarstica, obra de Cristo inteiro

Cristo inteiro: cabea e corpo [36] Eucaristia e Cristo ressuscitado [37]

Arte da celebrao [38]

O bispo, liturgista por excelncia [39] O respeito pelos livros litrgicos e pela riqueza dos sinais [40]

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Arte ao servio da celebrao [41] O canto litrgico [42]

A estrutura da celebrao eucarstica [43]

Unidade intrnseca da aco litrgica [44] A liturgia da palavra [45] A homilia [46] Apresentao das oferendas [47] A Orao Eucarstica [48] Saudao da paz [49] Distribuio e recepo da Eucaristia [50] A despedida: Ite, missa est [51]

Participao activa

Autntica participao [52] Participao e ministrio sacerdotal [53] Celebrao eucarstica e inculturao [54] Condies pessoais para uma participao activa [55] Participao dos cristos no catlicos [56] Participao atravs dos meios de comunicao [57] Participao activa dos doentes [58] A solicitude pelos presos [59] Os migrantes e a participao na Eucaristia [60] As grandes concelebraes [61] A lngua latina [62] Celebraes eucarsticas em pequenos grupos [63]

Celebrao interiormente participada

Catequese mistaggica [64] A reverncia Eucaristia [65]

Adorao e piedade eucarstica

A relao intrnseca entre celebrao e adorao [66] A prtica da adorao eucarstica [67] Formas de devoo eucarstica [68] O lugar do sacrrio na igreja [69]

III PARTE EUCARISTIA, MISTRIO VIVIDO

Forma eucarstica da vida crist

O culto espiritual [70] Eficcia omnicompreensiva do culto eucarstico [71] Viver segundo o domingo [72] Viver o preceito dominical [73]

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O sentido do repouso e do trabalho [74] Assembleias dominicais na ausncia de sacerdote [75] Uma forma eucarstica da existncia crist, a pertena eclesial [76] Espiritualidade e cultura eucarstica [77] Eucaristia e evangelizao das culturas [78] Eucaristia e fiis leigos [79] Eucaristia e espiritualidade sacerdotal [80] Eucaristia e vida consagrada [81] Eucaristia e transformao moral [82] Coerncia eucarstica [83]

Eucaristia, mistrio anunciado

Eucaristia e misso [84] Eucaristia e testemunho [85] Jesus Cristo, nico Salvador [86] Liberdade de culto [87]

Eucaristia, mistrio oferecido ao mundo

Eucaristia, po repartido para a vida do mundo [88] As implicaes sociais do mistrio eucarstico [89] O alimento da verdade e a indigncia do homem [90] A doutrina social da Igreja [91] Santificao do mundo e defesa da criao [92] Utilidade dum Compndio Eucarstico [93]

Concluso [94-97]

INTRODUO

1. Sacramento da Caridade, (1) a santssima Eucaristia a doao que Jesus Cristo faz de Si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. Neste sacramento admirvel, manifesta-se o amor maior : o amor que leva a dar a vida pelos amigos (Jo 15, 13). De facto, Jesus amou-os at ao fim (Jo 13, 1). Com estas palavras, o evangelista introduz o gesto de infinita humildade que Ele realizou: na viglia da sua morte por ns na cruz, ps uma toalha cintura e lavou os ps aos seus discpulos. Do mesmo modo, no sacramento eucarstico, Jesus continua a amar-nos at ao fim , at ao dom do seu corpo e do seu sangue. Que enlevo se deve ter apoderado do corao dos discpulos vista dos gestos e palavras do Senhor durante aquela Ceia! Que maravilha deve suscitar, tambm no nosso corao, o mistrio eucarstico!

O alimento da verdade

2. No sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado imagem e semelhana de Deus (Gn 1, 27), fazendo-Se seu companheiro de viagem. Com efeito, neste sacramento, Jesus torna-Se alimento para o homem, faminto de verdade e de liberdade. Uma vez que s a verdade nos pode tornar verdadeiramente livres (Jo 8, 36), Cristo faz-Se alimento

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de Verdade para ns. Com agudo conhecimento da realidade humana, Santo Agostinho ps em evidncia como o homem se move espontaneamente, e no constrangido, quando encontra algo que o atrai e nele suscita desejo. Perguntando-se ele, uma vez, sobre o que poderia em ltima anlise mover o homem no seu ntimo, o santo bispo exclama: Que pode a alma desejar mais ardentemente do que a verdade? (2) De facto, todo o homem traz dentro de si o desejo insuprimvel da verdade ltima e definitiva. Por isso, o Senhor Jesus, caminho, verdade e vida (Jo 14, 6), dirige-Se ao corao anelante do homem que se sente peregrino e sedento, ao corao que suspira pela fonte da vida, ao corao mendigo da Verdade. Com efeito, Jesus Cristo a Verdade feita Pessoa, que atrai a Si o mundo. Jesus a estrela polar da liberdade humana: esta, sem Ele, perde a sua orientao, porque, sem o conhecimento da verdade, a liberdade desvirtua-se, isola-se e reduz-se a estril arbtrio. Com Ele, a liberdade volta a encontrar-se a si mesma .(3) No sacramento da Eucaristia, Jesus mostra-nos de modo particular a verdade do amor, que a prpria essncia de Deus. Esta a verdade evanglica que interessa a todo o homem e ao homem todo. Por isso a Igreja, que encontra na Eucaristia o seu centro vital, esfora-se constantemente por anunciar a todos, em tempo propcio e fora dele (opportune, importune: cf. 2 Tm 4, 2), que Deus amor.(4) Exactamente porque Cristo Se fez alimento de Verdade para ns, a Igreja dirige-se ao homem convidando-o a acolher livremente o dom de Deus.

O desenvolvimento do rito eucarstico

3. Contemplando a histria bimilenria da Igreja de Deus, sapientemente guiada pela aco do Esprito Santo, admiramos cheios de gratido o desenvolvimento ordenado no tempo das formas rituais em que fazemos memria do acontecimento da nossa salvao. Desde as mltiplas formas dos primeiros sculos, que resplandecem ainda nos ritos das Antigas Igrejas do Oriente, at difuso do rito romano; desde as indicaes claras do Conclio de Trento e do Missal de So Pio V at renovao litrgica querida pelo Conclio Vaticano II: em cada etapa da histria da Igreja, a celebrao eucarstica, enquanto fonte e pice da sua vida e misso, resplandece no rito litrgico em toda a sua multiforme riqueza. A XI Assembleia Geral Ordinria do Snodo dos Bispos, que decorreu de 2 a 23 de Outubro de 2005 no Vaticano, elevou um profundo agradecimento a Deus por esta histria, reconhecendo nela a guia activa do Esprito Santo. De modo particular, os padres sinodais reconheceram e reafirmaram o benfico influxo que teve, na vida da Igreja, a reforma litrgica actuada a partir do Conclio Ecumnico Vaticano II.(5) O Snodo dos Bispos pde avaliar o acolhimento que a mesma teve depois da assembleia conciliar; inmeros foram os elogios; como l se disse, as dificuldades e alguns abusos assinalados no podem ofuscar a excelncia e a validade da referida renovao litrgica, que contm riquezas ainda no plenamente exploradas. Trata-se, em concreto, de ler as mudanas queridas pelo Conclio dentro da unidade que caracteriza o desenvolvimento histrico do prprio rito, sem introduzir artificiosas rupturas.(6)

O Snodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia

4. Alm disso, necessrio sublinhar a relao do recente Snodo dos Bispos sobre a Eucaristia com o que sucedeu durante os ltimos anos na vida da Igreja. Antes de mais, devemos pensar no Grande Jubileu do ano 2000, com o qual meu amado predecessor, o servo de Deus Joo Paulo II, introduziu a Igreja no terceiro milnio cristo; o Ano Jubilar teve, sem dvida, uma caracterizao intensamente eucarstica. Depois, no se pode esquecer que o Snodo dos Bispos foi precedido e, em certo sentido, preparado tambm pelo Ano da Eucaristia, estabelecido com grande clarividncia por Joo Paulo II para toda a Igreja; teve incio com o Congresso Eucarstico Internacional em Guadalajara no ms de Outubro de 2004 e terminou a

23 de Outubro de 2005, no final da XI Assembleia Sinodal, com a canonizao de cinco beatos que se distinguiram, de forma particular, pela sua piedade eucarstica: o bispo Jos Bilczewski, os sacerdotes Caetano Catanoso, Sigismundo Gorazdowski e Alberto Hurtado Cruchaga, e o religioso capuchinho Flix de Nicsia. Graas aos ensinamentos propostos por Joo Paulo II na Carta Apostlica Mane nobiscum Domine (7) e s preciosas sugestes da Congregao para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,(8) numerosas foram as iniciativas que as dioceses e as diversas realidades eclesiais empreenderam para despertar e aumentar nos crentes a f eucarstica, para melhorar o cuidado das celebraes e promover a adorao eucarstica, para encorajar uma real solidariedade que, partindo da Eucaristia, atingisse os necessitados. Por ltimo, preciso mencionar a importncia da ltima Encclica do meu venerado predecessor, a Ecclesia de Eucharistia,(9) deixando-nos atravs dela uma segura referncia do Magistrio quanto doutrina eucarstica e um derradeiro testemunho do lugar central que este sacramento divino ocupava na sua vida.

Finalidade do documento

5. Esta Exortao Apostlica ps-sinodal tem por objectivo recolher a multiforme riqueza de reflexes e propostas surgidas na recente Assembleia Geral Ordinria do Snodo dos Bispos a comear dos Lineamenta at s Propositiones, passando pelo Instrumentum laboris, as Relationes ante et post disceptationem, as intervenes dos padres sinodais, auditores e delegados fraternos , com a inteno de explicitar algumas linhas fundamentais de empenho tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarstico. Consciente do vasto patrimnio doutrinal e disciplinar acumulado no decurso dos sculos volta da Eucaristia,(10) neste documento desejo sobretudo recomendar, acolhendo o voto dos padres sinodais,(11) que o povo cristo aprofunde a relao entre o mistrio eucarstico, a aco litrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia enquanto sacramento da caridade. Com esta perspectiva, pretendo colocar esta Exortao na linha da minha primeira Carta Encclica a Deus caritas est , na qual vrias vezes falei do sacramento da Eucaristia pondo em evidncia a sua relao com o amor cristo, tanto para com Deus como para com o prximo: O Deus encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que motivo o termo agape se tenha tornado tambm um nome da Eucaristia; nesta, a agape de Deus vem corporalmente a ns, para continuar a sua aco em ns e atravs de ns .(12)

I PARTE

EUCARISTIA, MISTRIO ACREDITADO

A obra de Deus consiste em acreditar n'Aquele que Ele enviou (Jo 6, 29)

A f eucarstica da Igreja

A f eucarstica da Igreja

6. Mistrio da f! : com esta exclamao pronunciada logo a seguir s palavras da consagrao, o sacerdote proclama o mistrio celebrado e manifesta o seu enlevo diante da converso substancial do po e do vinho no corpo e no sangue do Senhor Jesus, realidade esta

http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jp-ii_apl_20041008_mane-nobiscum-domine_po.htmlhttp://www.vatican.va/edocs/POR0245/_INDEX.HTMhttp://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20051225_deus-caritas-est_po.html

que ultrapassa toda a compreenso humana. Com efeito, a Eucaristia por excelncia mistrio da f : o resumo e a smula da nossa f .(13) A f da Igreja essencialmente f eucarstica e alimenta-se, de modo particular, mesa da Eucaristia. A f e os sacramentos so dois aspectos complementares da vida eclesial. Suscitada pelo anncio da palavra de Deus, a f alimentada e cresce no encontro com a graa do Senhor ressuscitado que se realiza nos sacramentos: A f exprime-se no rito e este revigora e fortifica a f .(14) Por isso, o sacramento do altar est sempre no centro da vida eclesial; graas Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo! (15) Quanto mais viva for a f eucarstica no povo de Deus, tanto mais profunda ser a sua participao na vida eclesial por meio duma adeso convicta misso que Cristo confiou aos seus discpulos. Testemunha-o a prpria histria da Igreja: toda a grande reforma est, de algum modo, ligada redescoberta da f na presena eucarstica do Senhor no meio do seu povo.

Santssima Trindade e Eucaristia

O po descido do cu

7. O primeiro contedo da f eucarstica o prprio mistrio de Deus, amor trinitrio. No dilogo de Jesus com Nicodemos, encontramos uma afirmao esclarecedora a tal respeito: Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unignito, para que todo o homem que acredita n'Ele no perea, mas tenha a vida eterna. Porque Deus no enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele (Jo 3, 16-17). Estas palavras revelam a raiz ltima do dom de Deus. Na Eucaristia, Jesus no d alguma coisa , mas d-Se a Si mesmo; entrega o seu corpo e derrama o seu sangue. Deste modo d a totalidade da sua prpria vida, manifestando a fonte originria deste amor: Ele o Filho eterno que o Pai entregou por ns. Noutro passo do evangelho, depois de Jesus ter saciado a multido pela multiplicao dos pes e dos peixes, ouvimo-Lo dizer aos interlocutores que vieram atrs d'Ele at sinagoga de Cafarnaum: Meu Pai que vos d o verdadeiro po que vem do cu. O po de Deus o que desce do cu para dar a vida ao mundo (Jo 6, 32-33), acabando por identificar-Se Ele mesmo a sua prpria carne e o seu prprio sangue com aquele po: Eu sou o po vivo que desceu do cu. Quem comer deste po viver eternamente. E o po que Eu hei-de dar a minha carne que Eu darei pela vida do mundo (Jo 6, 51). Assim Jesus manifesta-Se como o po da vida que o Pai eterno d aos homens.

Dom gratuito da Santssima Trindade

8. Na Eucaristia, revela-se o desgnio de amor que guia toda a histria da salvao (Ef 1, 9-10; 3, 8-11). Nela, o Deus-Trindade (Deus Trinitas), que em Si mesmo amor (1 Jo 4, 7-8), envolve-Se plenamente com a nossa condio humana. No po e no vinho, sob cujas aparncias Cristo Se nos d na ceia pascal (Lc 22, 14-20; 1 Cor 11, 23-26), toda a vida divina que nos alcana e se comunica a ns na forma do sacramento: Deus comunho perfeita de amor entre o Pai, o Filho e o Esprito Santo. J na criao, o homem fora chamado a partilhar, em certa medida, o sopro vital de Deus (Gn 2, 7). Mas, em Cristo morto e ressuscitado e na efuso do Esprito Santo, dado sem medida (Jo 3, 34), que nos tornamos participantes da intimidade divina.(16) Assim Jesus Cristo, que pelo Esprito eterno Se ofereceu a Deus como vtima sem mancha (Heb 9, 14), no dom eucarstico comunica-nos a prpria vida divina. Trata-se de um dom absolutamente gratuito, devido apenas s promessas de Deus cumpridas para alm de toda e qualquer medida. A Igreja acolhe, celebra e adora este dom, com fiel obedincia. O mistrio

da f mistrio de amor trinitrio, no qual, por graa, somos chamados a participar. Por isso, tambm ns devemos exclamar com Santo Agostinho: Se vs a caridade, vs a Trindade .(17)

Eucaristia: Jesus verdadeiro Cordeiro imolado

A nova e eterna aliana no sangue do Cordeiro

9. A misso, que trouxe Jesus entre ns, atinge o seu cumprimento no mistrio pascal. Do alto da cruz, donde atrai todos a Si (Jo 12, 32), antes de entregar o Esprito Jesus diz: Tudo est consumado (Jo 19, 30). No mistrio da sua obedincia at morte, e morte de cruz (Fil 2, 8), cumpriu-se a nova e eterna aliana. Na sua carne crucificada, a liberdade de Deus e a liberdade do homem juntaram-se definitivamente num pacto indissolvel, vlido para sempre. Tambm o pecado do homem ficou expiado, uma vez por todas, pelo Filho de Deus (Heb 7, 27; 1 Jo 2, 2; 4, 10). Como j tive ocasio de afirmar, na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si prprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salv-lo o amor na sua forma mais radical .(18) No mistrio pascal, realizou-se verdadeiramente a nossa libertao do mal e da morte. Na instituio da Eucaristia, o prprio Jesus falara da nova e eterna aliana , estipulada no seu sangue derramado (Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc 22, 20). Esta finalidade ltima da sua misso era bem evidente j no incio da sua vida pblica; de facto, nas margens do Jordo, quando Joo Baptista v Jesus vir ter com ele, exclama: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (Jo 1, 29). significativo que a mesma expresso aparea, sempre que celebramos a Santa Missa, no convite do sacerdote para nos abeirarmos do altar: Felizes os convidados para a ceia do Senhor. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo . Jesus o verdadeiro cordeiro pascal, que Se ofereceu espontaneamente a Si mesmo em sacrifcio por ns, realizando assim a nova e eterna aliana. A Eucaristia contm nela esta novidade radical, que nos oferecida em cada celebrao.(19)

A instituio da Eucaristia

10. Deste modo, a nossa reflexo foi deter-se na instituio da Eucaristia durante a ltima Ceia. O facto teve lugar no mbito duma ceia ritual, que constitua o memorial do acontecimento fundador do povo de Israel: a libertao da escravido do Egipto. Esta ceia ritual, associada com a imolao dos cordeiros (Ex 12, 1-28. 43-51), era memria do passado, mas ao mesmo tempo tambm memria proftica, ou seja, anncio duma libertao futura; de facto, o povo experimentara que aquela libertao no tinha sido definitiva, pois a sua histria ainda estava demasiadamente marcada pela escravido e pelo pecado. O memorial da antiga libertao abria-se, assim, splica e ao anseio por uma salvao mais profunda, radical, universal e definitiva. neste contexto que Jesus introduz a novidade do seu dom; na orao de louvor a Berakah , Ele d graas ao Pai no s pelos grandes acontecimentos da histria passada, mas tambm pela sua prpria exaltao . Ao instituir o sacramento da Eucaristia, Jesus antecipa e implica o sacrifcio da cruz e a vitria da ressurreio; ao mesmo tempo, revela-Se como o verdadeiro cordeiro imolado, previsto no desgnio do Pai desde a fundao do mundo, como se l na I Carta de Pedro (1, 18-20). Ao colocar o dom de Si mesmo neste contexto, Jesus manifesta o sentido salvfico da sua morte e ressurreio, mistrio este que se torna uma realidade renovadora da histria e do mundo inteiro. Com efeito, a instituio da Eucaristia mostra como aquela morte, de per si violenta e absurda, se tenha tornado, em Jesus, acto supremo de amor e libertao definitiva da humanidade do mal.

A figura deu lugar Verdade

11. Como vimos, Jesus insere a sua novidade (novum) radical no mbito da antiga ceia sacrificial hebraica. Uma tal ceia, ns, cristos, j no temos necessidade de a repetir. Como justamente dizem os Padres, figura transit in veritatem: aquilo que anunciava as realidades futuras cedeu agora o lugar prpria Verdade. O antigo rito consumou-se e ficou definitivamente superado mediante o dom de amor do Filho de Deus encarnado. O alimento da verdade, Cristo imolado por ns, ps termo s figuras (dat figuris terminum).(20) Com a sua ordem Fazei isto em memria de Mim (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 25), pede-nos para corresponder ao seu dom e represent-Lo sacramentalmente; com tais palavras, o Senhor manifesta, por assim dizer, a esperana de que a Igreja, nascida do seu sacrifcio, acolha este dom desenvolvendo, sob a guia do Esprito Santo, a forma litrgica do sacramento. De facto, o memorial do seu dom perfeito no consiste na simples repetio da ltima Ceia, mas propriamente na Eucaristia, ou seja, na novidade radical do culto cristo. Assim Jesus deixou-nos a misso de entrar na sua hora : A Eucaristia arrasta-nos no acto oblativo de Jesus. No s de modo esttico que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinmica da sua doao .(21) Ele arrasta-nos para dentro de Si .(22) A converso substancial do po e do vinho no seu corpo e no seu sangue insere dentro da criao o princpio duma mudana radical, como uma espcie de fisso nuclear (para utilizar uma imagem hoje bem conhecida de todos ns), verificada no mais ntimo do ser; uma mudana destinada a suscitar um processo de transformao da realidade, cujo termo ltimo a transfigurao do mundo inteiro, at chegar quela condio em que Deus seja tudo em todos (1 Cor 15, 28).

O Esprito Santo e a Eucaristia

Jesus e o Esprito Santo

12. Com a sua palavra e com o po e o vinho, o prprio Senhor nos ofereceu os elementos essenciais do culto novo. A Igreja, sua Esposa, chamada a celebrar o banquete eucarstico dia aps dia em memria d'Ele. Deste modo, ela insere o sacrifcio redentor do seu Esposo na histria dos homens e torna-o sacramentalmente presente em todas as culturas. Este grande mistrio celebrado nas formas litrgicas que a Igreja, guiada pelo Esprito Santo, desenvolve no tempo e no espao.(23) A propsito, necessrio despertar em ns a conscincia da funo decisiva que exerce o Esprito Santo no desenvolvimento da forma litrgica e no aprofundamento dos mistrios divinos. O Parclito, primeiro dom concedido aos crentes,(24) activo j na criao (Gn 1, 2), est presente em plenitude na vida inteira do Verbo encarnado: com efeito, Jesus Cristo concebido no seio da Virgem Maria por obra do Esprito Santo (Mt 1, 18; Lc 1, 35); no incio da sua misso pblica, nas margens do Jordo, v-O descer sobre Si em forma de pomba (Mt 3, 16 e par.); neste mesmo Esprito, age, fala e exulta (Lc 10, 21); e n'Ele que Jesus pode oferecer-Se a Si mesmo (Heb 9, 14). No chamado discurso de despedida referido por Joo, Jesus pe claramente em relao o dom da sua vida no mistrio pascal com o dom do Esprito aos Seus (Jo 16, 7). Depois de ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da paixo, pode derramar o Esprito (Jo 20, 22), tornando os seus discpulos participantes da mesma misso d'Ele (Jo 20, 21). Em seguida, ser o Esprito que ensina aos discpulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo tinha dito (Jo 14, 26), porque compete a Ele, enquanto Esprito da verdade (Jo 15, 26), introduzir os discpulos na verdade total (Jo 16, 13). Segundo narram os Actos, o Esprito desce sobre os Apstolos reunidos em orao com Maria no dia de Pentecostes (2, 1-4), e impele-os para a misso de anunciar a boa nova a todos os

povos. Portanto, em virtude da aco do Esprito que o prprio Cristo continua presente e activo na sua Igreja, a partir do seu centro vital que a Eucaristia.

Esprito Santo e celebrao eucarstica

13. Neste horizonte, compreende-se a funo decisiva que tem o Esprito Santo na celebrao eucarstica e, de modo particular, no que se refere transubstanciao. fcil de comprovar a conscincia disto mesmo nos Padres da Igreja; nas suas Catequeses, So Cirilo de Jerusalm recorda que invocamos Deus misericordioso para que envie o seu Santo Esprito sobre as oblaes que apresentamos a fim de Ele transformar o po em corpo de Cristo e o vinho em sangue de Cristo. O que o Esprito Santo toca, santificado e transformado totalmente .(25) Tambm So Joo Crisstomo assinala que o sacerdote invoca o Esprito Santo quando celebra o Sacrifcio: (26) semelhana de Elias, o ministro atrai o Esprito Santo para que, descendo a graa sobre a vtima, se incendeiem por meio dela as almas de todos .(27) extremamente necessria, para a vida espiritual dos fiis, uma conscincia mais clara da riqueza da anfora: esta, juntamente com as palavras pronunciadas por Cristo na ltima Ceia, contm a epiclese, que invocao ao Pai para que faa descer o dom do Esprito a fim de o po e o vinho se tornarem o corpo e o sangue de Jesus Cristo, e para que a comunidade inteira se torne cada vez mais corpo de Cristo .(28) O Esprito, invocado pelo celebrante sobre os dons do po e do vinho colocados sobre o altar, o mesmo que rene os fiis num s corpo , tornando-os uma oferta espiritual agradvel ao Pai.(29)

Eucaristia e Igreja

Eucaristia, princpio causal da Igreja

14. Atravs do sacramento eucarstico, Jesus compromete os fiis na sua prpria hora ; mostra-nos assim a ligao que quis entre Ele mesmo e ns, entre a sua pessoa e a Igreja. De facto, o prprio Cristo, no sacrifcio da cruz, gerou a Igreja como sua esposa e seu corpo. Os Padres da Igreja meditaram longamente sobre a semelhana que h entre a origem de Eva do lado de Ado adormecido (Gn 2, 21-23) e a da nova Eva, a Igreja, do lado aberto de Cristo mergulhado no sono da morte: do seu lado trespassado narra Joo saiu sangue e gua (Jo 19, 34), smbolo dos sacramentos.(30) Um olhar contemplativo para Aquele que trespassaram (Jo 19, 37) leva-nos a considerar a ligao causal entre o sacrifcio de Cristo, a Eucaristia e a Igreja. Com efeito, esta vive da Eucaristia .(31) Uma vez que nela se torna presente o sacrifcio redentor de Cristo, temos de reconhecer antes de mais que existe um influxo causal da Eucaristia nas prprias origens da Igreja .(32) A Eucaristia Cristo que Se d a ns, edificando-nos continuamente como seu corpo. Portanto, na sugestiva circularidade entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a prpria Igreja que faz a Eucaristia,(33) a causalidade primria est expressa na primeira frmula: a Igreja pode celebrar e adorar o mistrio de Cristo presente na Eucaristia, precisamente porque o prprio Cristo Se deu primeiro a ela no sacrifcio da Cruz. A possibilidade que a Igreja tem de fazer a Eucaristia est radicada totalmente na doao que Jesus lhe fez de Si mesmo. Tambm este aspecto nos persuade de quo verdadeira seja a frase de So Joo: Ele amou-nos primeiro (1 Jo 4, 19). Deste modo, tambm ns confessamos, em cada celebrao, o primado do dom de Cristo; o influxo causal da Eucaristia, que est na origem da Igreja, revela em ltima anlise a precedncia no s cronolgica mas tambm ontolgica do amor de Jesus relativamente ao nosso: ser, por toda a eternidade, Aquele que nos ama primeiro.

Eucaristia e comunho eclesial

15. A Eucaristia , pois, constitutiva do ser e do agir da Igreja. Por isso, a antiguidade crist designava com as mesmas palavras corpus Christi o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarstico e o corpo eclesial de Cristo.(34) Bem atestado na tradio, este dado faz crescer em ns a conscincia da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. Oferecendo-Se a Si mesmo em sacrifcio por ns, o Senhor Jesus preanunciou de modo eficaz no seu dom o mistrio da Igreja. significativo o modo como a Orao Eucarstica II, ao invocar o Parclito, formula a prece pela unidade da Igreja: ... participando no corpo e sangue de Cristo, sejamos reunidos, pelo Esprito Santo, num s corpo . Esta passagem ajuda a compreender como a eficcia (res) do sacramento eucarstico seja a unidade dos fiis na comunho eclesial. Assim, a Eucaristia aparece na raiz da Igreja como mistrio de comunho.(35)

O servo de Deus Joo Paulo II, na sua Encclica Ecclesia de Eucharistia, tinha j chamado a ateno para a relao entre Eucaristia e communio: falou do memorial de Cristo como sendo a suprema manifestao sacramental da comunho na Igreja .(36) A unidade da comunho eclesial revela-se, concretamente, nas comunidades crists e renova-se no acto eucarstico que as une e diferencia em Igrejas particulares, in quibus et ex quibus una et unica Ecclesia catholica exsistit nas quais e pelas quais existe a Igreja Catlica, una e nica .(37) precisamente a realidade da nica Eucaristia celebrada em cada diocese ao redor do respectivo Bispo que nos faz compreender como as prprias Igrejas particulares subsistam in e ex Ecclesia. De facto, a unicidade e indivisibilidade do corpo eucarstico do Senhor implicam a unicidade do seu corpo mstico, que a Igreja una e indivisvel. Do centro eucarstico surge a necessria abertura de cada comunidade celebrante, de cada Igreja particular: ao deixar-se atrair pelos braos abertos do Senhor, consegue-se a insero no seu corpo, nico e indiviso .(38) Por este motivo, na celebrao da Eucaristia, cada fiel encontra-se na sua Igreja, isto , na Igreja de Cristo. Nesta perspectiva eucarstica, adequadamente entendida, a comunho eclesial revela-se realidade catlica por sua natureza.(39) O facto de sublinhar esta raiz eucarstica da comunho eclesial pode contribuir eficazmente tambm para o dilogo ecumnico com as Igrejas e com as Comunidades eclesiais que no esto em plena comunho com a S de Pedro. Na realidade, a Eucaristia estabelece objectivamente um forte vnculo de unidade entre a Igreja Catlica e as Igrejas Ortodoxas, que conservaram genuna e integralmente a natureza do mistrio da Eucaristia. Ao mesmo tempo, a relevncia dada ao carcter eclesial da Eucaristia pode tornar-se elemento privilegiado tambm no dilogo com as Comunidades nascidas da Reforma.(40)

Eucaristia e Sacramentos

Sacramentalidade da Igreja

16. O Conclio Vaticano II lembrou que os restantes sacramentos, assim como todos os ministrios eclesisticos e obras de apostolado, esto vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com efeito, na santssima Eucaristia est contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto , o prprio Cristo, a nossa Pscoa e o po vivo que d aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Esprito Santo: assim so eles convidados e levados a oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e todas as coisas criadas .(41) Esta relao ntima da Eucaristia com os demais sacramentos e com a existncia crist compreende-se, na sua raiz, quando se contempla o mistrio da prpria Igreja como sacramento.(42) A este respeito, o referido Conclio afirmou que a Igreja, em Cristo, como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da ntima unio com Deus e da unidade de todo o gnero humano .(43) Ela, enquanto povo como diz So Cipriano reunido na unidade do Pai e do Filho e do Esprito Santo ,(44) sacramento da comunho trinitria.

http://www.vatican.va/edocs/POR0245/_INDEX.HTM

O facto de a Igreja ser universal sacramento da salvao (45) mostra que a economia sacramental determina, em ltima anlise, o modo como Jesus Cristo nico Salvador, por meio do Esprito, alcana a nossa vida na especificidade das suas circunstncias. A Igreja recebe-se e simultaneamente exprime-se nos sete sacramentos, pelos quais a graa de Deus influencia concretamente a existncia dos fiis para que toda a sua vida, redimida por Cristo, se torne culto agradvel a Deus. Nesta perspectiva, desejo sublinhar aqui alguns elementos, assinalados pelos padres sinodais, que podem ajudar a identificar a relao dos diversos sacramentos com o mistrio eucarstico.

I. Eucaristia e iniciao crist

Eucaristia, plenitude da iniciao crist

17. Se verdadeiramente a Eucaristia fonte e pice da vida e da misso da Igreja, temos de concluir antes de mais que o caminho de iniciao crist tem como ponto de referncia tornar possvel o acesso a tal sacramento. A propsito, devemos interrogar-nos como sugeriram os padres sinodais se as nossas comunidades crists tm suficiente noo do vnculo estreito que h entre Baptismo, Confirmao e Eucaristia; (46) de facto, preciso no esquecer jamais que somos baptizados e crismados em ordem Eucaristia. Este dado implica o compromisso de favorecer na aco pastoral uma compreenso mais unitria do percurso de iniciao crist. O sacramento do Baptismo, pelo qual somos configurados a Cristo,(47) incorporados na Igreja e feitos filhos de Deus, constitui a porta de acesso a todos os sacramentos; atravs dele, somos inseridos no nico corpo de Cristo (1 Cor 12, 13), povo sacerdotal. Mas a participao no sacrifcio eucarstico que aperfeioa, em ns, o que recebemos no Baptismo. Tambm os dons do Esprito so concedidos para a edificao do corpo de Cristo (1 Cor 12) e o crescimento do testemunho evanglico no mundo.(48) Portanto, a santssima Eucaristia leva plenitude a iniciao crist e coloca-se como centro e termo de toda a vida sacramental.(49)

A ordem dos sacramentos da iniciao

18. A este respeito, necessrio prestar ateno ao tema da ordem dos sacramentos da iniciao. Na Igreja, h tradies diferentes; esta diversidade patente nos costumes eclesiais do Oriente (50) e na prtica ocidental para a iniciao dos adultos,(51) se comparada com a das crianas.(52) Contudo, tais diferenas no so propriamente de ordem dogmtica, mas de carcter pastoral. Em concreto, necessrio verificar qual seja a prtica que melhor pode, efectivamente, ajudar os fiis a colocarem no centro o sacramento da Eucaristia, como realidade para qual tende toda a iniciao; em estreita colaborao com os Dicastrios competentes da Cria Romana, as Conferncias Episcopais verifiquem a eficcia dos percursos de iniciao actuais, para que o cristo seja ajudado, pela aco educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais at chegar a assumir na sua vida uma orientao autenticamente eucarstica, de tal modo que seja capaz de dar razo da prpria esperana de maneira adequada ao nosso tempo (1 Pd 3, 15).

Iniciao, comunidade eclesial e famlia

19. preciso ter sempre presente que toda a iniciao crist caminho de converso que h-de ser realizada com a ajuda de Deus e em constante referncia comunidade eclesial, quer quando o adulto que pede para entrar na Igreja, como acontece nos lugares de primeira evangelizao e em muitas zonas secularizadas, quer quando so os pais a pedir os sacramentos para seus filhos. A este respeito, desejo chamar a ateno sobretudo para a

relao entre iniciao crist e famlia; na aco pastoral, sempre se deve associar a famlia crist ao itinerrio de iniciao. Receber o Baptismo, a Confirmao e abeirar-se pela primeira vez da Eucaristia so momentos decisivos no s para a pessoa que os recebe mas tambm para toda a sua famlia; esta deve ser sustentada, na sua tarefa educativa, pela comunidade eclesial em suas diversas componentes.(53) Quero sublinhar aqui a relevncia da Primeira Comunho; para inmeros fiis, este dia permanece, justamente, gravado na memria como o primeiro momento em que se percebeu, embora de forma ainda inicial, a importncia do encontro pessoal com Jesus. A pastoral paroquial deve valorizar adequadamente esta ocasio to significativa.

II. Eucaristia e sacramento da Reconciliao

Sua ligao intrnseca

20. Os padres sinodais afirmaram, justamente, que o amor Eucaristia leva a apreciar cada vez mais tambm o sacramento da Reconciliao.(54) Por causa da ligao entre ambos os sacramentos, uma catequese autntica acerca do sentido da Eucaristia no pode ser separada da proposta dum caminho penitencial (1 Cor 11, 27-29). Constatamos certo que, no nosso tempo, os fiis se encontram imersos numa cultura que tende a cancelar o sentido do pecado,(55) favorecendo um estado de esprito superficial que leva a esquecer a necessidade de estar na graa de Deus para se aproximar dignamente da comunho sacramental.(56) Na realidade, a perda da conscincia do pecado engloba sempre tambm uma certa superficialidade na compreenso do prprio amor de Deus. muito til para os fiis recordar-lhes os elementos que, no rito da Santa Missa, explicitam a conscincia do prprio pecado e, simultaneamente, da misericrdia de Deus.(57) Alm disso, a relao entre a Eucaristia e a Reconciliao recorda-nos que o pecado nunca uma realidade exclusivamente individual, mas inclui sempre tambm uma ferida no seio da comunho eclesial, na qual nos encontramos inseridos pelo Baptismo. Por isso, como diziam os Padres da Igreja, a Reconciliao um baptismo laborioso (laboriosus quidam baptismus),(58) sublinhando assim que o resultado do caminho de converso tambm o restabelecimento da plena comunho eclesial, que se exprime no abeirar-se novamente da Eucaristia.(59)

Alguns cuidados pastorais

21. O Snodo lembrou que dever pastoral do bispo promover na sua diocese uma decisiva recuperao da pedagogia da converso que nasce da Eucaristia e favorecer entre os fiis a confisso frequente. Todos os sacerdotes se dediquem com generosidade, empenho e competncia administrao do sacramento da Reconciliao.(60) A propsito, procure-se que, nas nossas igrejas, os confessionrios sejam bem visveis e expressivos do significado deste sacramento. Peo aos pastores que vigiem atentamente sobre a celebrao do sacramento da Reconciliao, limitando a prtica da absolvio geral exclusivamente aos casos previstos,(61) permanecendo como forma ordinria de absolvio apenas a pessoal.(62) Vista a necessidade de descobrir novamente o perdo sacramental, haja em todas as dioceses o Penitencirio.(63) Por ltimo, pode servir de vlida ajuda para a nova tomada de conscincia desta relao entre a Eucaristia e a Reconciliao uma prtica equilibrada e conscienciosa da indulgncia, lucrada a favor de si mesmo ou dos defuntos. Com ela, obtm-se a remisso, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados, cuja culpa j foi apagada .(64) O uso das indulgncias ajuda-nos a compreender que no somos capazes, s com as nossas foras, de reparar o mal cometido e que os pecados de cada um causam dano a toda a comunidade; alm disso, a prtica da indulgncia, implicando a doutrina dos mritos infinitos de Cristo bem como

a da comunho dos santos, mostra-nos quanto estejamos, em Cristo, intimamente unidos uns aos outros e quanto a vida sobrenatural de cada um possa aproveitar aos outros .(65) Dado que a forma prpria da indulgncia prev, entre as condies requeridas, o abeirar-se da confisso e da comunho sacramental, a sua prtica pode sustentar eficazmente os fiis no caminho da converso e na descoberta da centralidade da Eucaristia na vida crist.

III. Eucaristia e Uno dos Enfermos

22. Jesus no Se limitou a enviar os seus discpulos a curar os doentes (Mt 10, 8; Lc 9, 2; 10, 9), mas instituiu para eles tambm um sacramento especfico: a Uno dos Enfermos.(66) A Carta de Tiago testemunha a presena deste gesto sacramental j na primitiva comunidade crist (5, 14-16). Se a Eucaristia mostra como os sofrimentos e a morte de Cristo foram transformados em amor, a Uno dos Enfermos, por seu lado, associa o doente oferta que Cristo fez de Si mesmo pela salvao de todos, de tal modo que possa tambm ele, no mistrio da comunho dos santos, participar na redeno do mundo. A relao entre ambos os sacramentos aparece ainda mais clara quando se agrava a doena: queles que vo deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes, alm da Uno dos Enfermos, a Eucaristia como vitico .(67) Nesta passagem para o Pai, a comunho no corpo e sangue de Cristo aparece como semente de vida eterna e fora de ressurreio: Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no ltimo dia (Jo 6, 54). Uma vez que o sagrado Vitico desvenda ao doente a plenitude do mistrio pascal, preciso assegurar a sua administrao.(68) A ateno e o cuidado pastoral por aqueles que se encontram doentes redunda, seguramente, em benefcio espiritual de toda a comunidade, sabendo que tudo o que fizermos ao mais pequenino, ao prprio Jesus o faremos (Mt 25, 40).

IV. Eucaristia e sacramento da Ordem

Na pessoa de Cristo cabea

23. O vnculo intrnseco entre a Eucaristia e o sacramento da Ordem deduz-se das prprias palavras de Jesus no Cenculo: Fazei isto em memria de Mim (Lc 22, 19). De facto, na viglia da sua morte, Ele instituiu a Eucaristia e ao mesmo tempo fundou o sacerdcio da Nova Aliana. Jesus sacerdote, vtima e altar: mediador entre Deus Pai e o povo (Heb 5, 5-10), vtima de expiao (1 Jo 2, 2; 4, 10) que Se oferece a Si mesma no altar da cruz. Ningum pode dizer isto o meu corpo e este o clice do meu sangue seno em nome e na pessoa de Cristo, nico sumo sacerdote da nova e eterna Aliana (Heb 8-9). O Snodo dos Bispos j se ocupara, noutras assembleias, do sacerdcio ordenado tanto no que diz respeito identidade do ministrio,(69) como formao dos candidatos.(70) Na presente circunstncia importa-me, luz do dilogo realizado no mbito da ltima assembleia sinodal, sublinhar alguns valores que tm a ver com a relao entre o sacramento eucarstico e a Ordem. Antes de mais nada, necessrio reafirmar que a ligao entre a Ordem sacra e a Eucaristia visvel precisamente na Missa que o bispo ou o presbtero preside na pessoa de Cristo cabea (in persona Christi capitis).

A doutrina da Igreja considera a ordenao sacerdotal condio indispensvel para a celebrao vlida da Eucaristia.(71) De facto, no servio eclesial do ministro ordenado, o prprio Cristo que est presente sua Igreja, como cabea do seu corpo, pastor do seu rebanho, sumo sacerdote do sacrifcio redentor .(72) Certamente o ministro ordenado age tambm em nome de toda a Igreja, quando apresenta a Deus a orao da mesma Igreja e, sobretudo, quando oferece o sacrifcio eucarstico .(73) Por isso, necessrio que os

sacerdotes tenham conscincia de que, em todo o seu ministrio, nunca devem colocar em primeiro plano a sua pessoa nem as suas opinies, mas Jesus Cristo. Contradiz a identidade sacerdotal toda a tentativa de se colocarem a si mesmos como protagonistas da aco litrgica. Aqui, mais do que nunca, o sacerdote servo e deve continuamente empenhar-se por ser sinal que, como dcil instrumento nas mos de Cristo, aponta para Ele. Isto exprime-se de modo particular na humildade com que o sacerdote conduz a aco litrgica, obedecendo ao rito, aderindo ao mesmo com o corao e a mente, evitando tudo o que possa dar a sensao de um seu inoportuno protagonismo. Recomendo, pois, ao clero que no cesse de aprofundar a conscincia do seu ministrio eucarstico como um servio humilde a Cristo e sua Igreja. O sacerdcio, como dizia Santo Agostinho, um servio de amor (amoris officium),(74) o servio do bom pastor, que oferece a vida pelas ovelhas (Jo 10, 14-15).

Eucaristia e celibato sacerdotal

24. Os padres sinodais quiseram sublinhar como o sacerdcio ministerial requer, atravs da ordenao, a plena configurao a Cristo. Embora respeitando a prtica e tradio oriental diferente, necessrio reiterar o sentido profundo do celibato sacerdotal, justamente considerado uma riqueza inestimvel e confirmado tambm pela prtica oriental de escolher os bispos apenas de entre aqueles que vivem no celibato, indcio da grande honra em que ela tem a opo do celibato feita por numerosos presbteros. Com efeito, nesta opo do sacerdote encontram expresso peculiar a dedicao que o conforma a Cristo e a oferta exclusiva de si mesmo pelo Reino de Deus.(75) O facto de o prprio Cristo, eterno sacerdote, ter vivido a sua misso at ao sacrifcio da cruz no estado de virgindade constitui o ponto seguro de referncia para perceber o sentido da tradio da Igreja Latina a tal respeito. Assim, no suficiente compreender o celibato sacerdotal em termos meramente funcionais; na realidade, constitui uma especial conformao ao estilo de vida do prprio Cristo. Antes de mais, semelhante opo esponsal: a identificao com o corao de Cristo Esposo que d a vida pela sua Esposa. Em sintonia com a grande tradio eclesial, com o Conclio Vaticano II (76) e com os Sumos Pontfices (77) meus predecessores, corroboro a beleza e a importncia duma vida sacerdotal vivida no celibato como sinal expressivo de dedicao total e exclusiva a Cristo, Igreja e ao Reino de Deus, e, consequentemente, confirmo a sua obrigatoriedade para a tradio latina. O celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria e dedicao, uma bno enorme para a Igreja e para a prpria sociedade.

Escassez de clero e pastoral vocacional

A propsito da ligao entre o sacramento da Ordem e a Eucaristia, o Snodo deteve-se sobre a dolorosa situao que se tem vindo a criar em diversas dioceses a braos com a escassez de sacerdotes. Isto acontece no s em algumas zonas de primeira evangelizao, mas tambm em muitos pases de longa tradio crist. Para a soluo do problema contribui certamente uma distribuio mais equitativa do clero; mas, para isso, preciso um trabalho de sensibilizao capilar. Os bispos empenhem nas necessidades pastorais os institutos de vida consagrada e as novas realidades eclesiais, no respeito do respectivo carisma, e solicitem todos os membros do clero a uma disponibilidade maior para irem servir a Igreja nos lugares onde houver necessidade, sem olhar a sacrifcios. (78) Alm disso, o Snodo debruou-se tambm sobre os cuidados pastorais a ter principalmente com os jovens para favorecer a sua abertura interior vocao sacerdotal. A soluo para tal carestia no se pode encontrar em meros estratagemas pragmticos; deve-se evitar que os bispos, levados por compreensveis preocupaes funcionais devido falta de clero, acabem por no realizar um adequado discernimento vocacional, admitindo formao especfica e ordenao candidatos que no

possuam as caractersticas necessrias para o servio sacerdotal.(79) Um clero insuficientemente formado e admitido ordenao sem o necessrio discernimento dificilmente poder oferecer um testemunho capaz de suscitar noutros o desejo de generosa correspondncia vocao de Cristo. Na realidade, a pastoral vocacional deve empenhar a comunidade crist em todos os seus mbitos.(80) Obviamente, no referido trabalho pastoral capilar, est includa tambm a obra de sensibilizao das famlias, muitas vezes indiferentes se no mesmo contrrias hiptese da vocao sacerdotal. Que elas se abram com generosidade ao dom da vida e eduquem os filhos para serem disponveis vontade de Deus! Em resumo, preciso sobretudo ter a coragem de propor aos jovens o seguimento radical de Cristo, mostrando-lhes o seu encanto.

Gratido e esperana

26. Enfim, necessrio ter maior f e esperana na iniciativa divina. Apesar da escassez de clero que se verifica em algumas regies, no deve esmorecer jamais a confiana de que Cristo continua a suscitar homens que no hesitam em abandonar qualquer outra ocupao para dedicar-se totalmente celebrao dos mistrios sagrados, pregao do Evangelho e ao ministrio pastoral. Nesta ocasio, desejo dar voz gratido da Igreja inteira por todos os bispos e presbteros que cumprem, com fiel dedicao e empenho, a prpria misso. Naturalmente, este agradecimento da Igreja estende-se tambm aos diconos, a quem so impostas as mos no em ordem ao sacerdcio mas ao ministrio .(81) Como recomendou a assembleia do Snodo, dirijo um obrigado especial aos presbteros fidei donum que edificam a comunidade, com competncia e generosa dedicao, anunciando-lhe a palavra de Deus e repartindo o po da vida, sem pouparem as suas energias ao servio da misso da Igreja.(82) Por fim, preciso agradecer a Deus pelos numerosos sacerdotes que tiveram de sofrer at ao sacrifcio da vida por servir a Cristo. Neles se manifesta, com a eloquncia dos factos, o que significa ser sacerdote a fundo; trata-se de comoventes testemunhos que podero inspirar muitos jovens a seguirem por sua vez a Cristo e gastarem a sua vida pelos outros, encontrando precisamente assim a vida verdadeira.

V. Eucaristia e Matrimnio

Eucaristia, sacramento esponsal

27. A Eucaristia, sacramento da caridade, apresenta uma relao particular com o amor do homem e da mulher unidos em matrimnio. Aprofundar tal relao uma necessidade do nosso tempo.(83) Vrias vezes o Papa Joo Paulo II teve ocasio de afirmar o carcter esponsal da Eucaristia e a sua relao peculiar com o sacramento do matrimnio: A Eucaristia o sacramento da nossa redeno. o sacramento do Esposo, da Esposa .(84) Alis, toda a vida crist tem a marca do amor esponsal entre Cristo e a Igreja. J o Baptismo, entrada no povo de Deus, um mistrio nupcial; , por assim dizer, o banho de npcias que precede o banquete das bodas, a Eucaristia .(85) Esta corrobora de forma inexaurvel a unidade e o amor indissolveis de cada matrimnio cristo. Neste, em virtude do sacramento, o vnculo conjugal est intrinsecamente ligado com a unio eucarstica entre Cristo esposo e a Igreja esposa (Ef 5, 31-32). O consentimento recproco, que o marido e a esposa trocam entre si em Cristo constituindo-os em comunidade de vida e de amor, tem tambm uma dimenso eucarstica; com efeito, na teologia paulina, o amor esponsal sinal sacramental do amor de Cristo pela sua Igreja, um amor que tem o seu ponto culminante na cruz, expresso das suas npcias com a humanidade e, ao mesmo tempo, origem e centro da Eucaristia. Por isso, a Igreja manifesta uma particular solidariedade espiritual a todos aqueles que fundaram a sua

famlia sobre o sacramento do Matrimnio.(86) A famlia igreja domstica ( 87) um mbito primrio da vida da Igreja, especialmente pelo papel decisivo que tem na educao crist dos filhos.(88) Neste contexto, o Snodo recomendou tambm o reconhecimento da misso singular que tem a mulher na famlia e na sociedade, misso esta que h-de ser protegida, salvaguardada e promovida.(89) A sua dimenso de esposa e me constitui uma realidade imprescindvel, que nunca deve ser desprezada.

Eucaristia e unidade do Matrimnio

28. precisamente luz desta relao intrnseca entre Matrimnio, famlia e Eucaristia que se podem considerar alguns problemas pastorais. O vnculo fiel, indissolvel e exclusivo que une Cristo e a Igreja e tem expresso sacramental na Eucaristia, est de harmonia com o dado antropolgico primordial segundo o qual o homem deve unir-se de modo definitivo com uma s mulher, e vice-versa (Gn 2, 24; Mt 19, 5). Nesta linha de pensamento, o Snodo dos Bispos debruou-se sobre a prtica pastoral que deve ser seguida com as pessoas originrias de culturas onde praticada a poligamia, que recebem o anncio do Evangelho: quantos vivem em tal situao e se abrem f crist devem ser ajudados a integrar o seu projecto humano na novidade radical de Cristo; no percurso do catecumenado, Cristo alcana-os na sua condio especfica e chama-os verdade plena do amor passando atravs das renncias que so necessrias para chegarem comunho eclesial perfeita. A Igreja acompanha-os com uma pastoral imbuda simultaneamente de suavidade e de firmeza,(90) mostrando-lhes sobretudo a luz dos mistrios cristos que se reflecte sobre a natureza e os afectos humanos.

Eucaristia e indissolubilidade do Matrimnio

29. Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja, compreende-se por que motivo a mesma implique, relativamente ao sacramento do Matrimnio, aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro no pode deixar de anelar.(91) Por isso, mais que justificada a ateno pastoral que o Snodo reservou s dolorosas situaes em que se encontram no poucos fiis que, depois de ter celebrado o sacramento do Matrimnio, se divorciaram e contraram novas npcias. Trata-se dum problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social contemporneo que vai progressivamente corroendo os prprios ambientes catlicos. Os pastores, por amor da verdade, so obrigados a discernir bem as diferentes situaes, para ajudar espiritualmente e de modo adequado os fiis implicados.(92) O Snodo dos Bispos confirmou a prtica da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de no admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condio de vida contradizem objectivamente aquela unio de amor entre Cristo e a Igreja que significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, no obstante a sua situao, continuam a pertencer Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperana de que cultivem, quanto possvel, um estilo cristo de vida, atravs da participao na Santa Missa ainda que sem receber a comunho, da escuta da palavra de Deus, da adorao eucarstica, da orao, da cooperao na vida comunitria, do dilogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicao ao servio da caridade, das obras de penitncia, do empenho na educao dos filhos.

Nos casos em que surjam legitimamente dvidas sobre a validade do Matrimnio sacramental contrado, deve fazer-se tudo o que for necessrio para verificar o fundamento das mesmas. H que assegurar, pois, no pleno respeito do direito cannico,(93) a presena no territrio dos tribunais eclesisticos, o seu carcter pastoral, a sua actividade correcta e pressurosa; (94)

necessrio haver, em cada diocese, um nmero suficiente de pessoas preparadas para o solcito funcionamento dos tribunais eclesisticos. Recordo que uma obrigao grave tornar a actuao institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessvel aos fiis .(95) No entanto, preciso evitar que a preocupao pastoral seja vista como se estivesse em contraposio com o direito; ao contrrio, deve-se partir do pressuposto que o ponto fundamental de encontro entre direito e pastoral o amor pela verdade: com efeito, esta nunca abstracta, mas integra-se no itinerrio humano e cristo de cada fiel .(96) Enfim, caso no seja reconhecida a nulidade do vnculo matrimonial e se verifiquem condies objectivas que tornam realmente irreversvel a convivncia, a Igreja encoraja estes fiis a esforarem-se por viver a sua relao segundo as exigncias da lei de Deus, como amigos, como irmo e irm; deste modo podero novamente abeirar-se da mesa eucarstica, com os cuidados previstos por uma comprovada prtica eclesial. Para que tal caminho se torne possvel e d frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abenoar estas relaes para que no surjam entre os fiis confuses acerca do valor do matrimnio.(97)

Vista a complexidade do contexto cultural em que vive a Igreja em muitos pases, o Snodo recomendou ainda que se tivesse o mximo cuidado pastoral com a formao dos nubentes e a verificao prvia das suas convices sobre os compromissos irrenunciveis para a validade do sacramento do Matrimnio. Um srio discernimento a tal respeito poder evitar que impulsos emotivos ou razes superficiais induzam os dois jovens a assumir responsabilidades que depois no podero honrar.(98) Demasiado grande o bem que a Igreja e a sociedade inteira esperam do Matrimnio e da famlia fundada sobre o mesmo para no nos comprometermos a fundo neste mbito pastoral especfico; Matrimnio e famlia so instituies cuja verdade deve ser promovida e defendida de qualquer equvoco, porque todo o dano a elas causado realmente uma ferida que se inflige convivncia humana como tal.

Eucaristia e escatologia

Eucaristia, dom para o homem a caminho

30. Se certo que os sacramentos so uma realidade que pertence Igreja peregrina no tempo( 99) rumo plena manifestao da vitria de Cristo ressuscitado, igualmente verdade que, sobretudo na liturgia eucarstica, nos dado saborear antecipadamente a consumao escatolgica para a qual todo o homem e a criao inteira esto a caminho (Rm 8, 19s). O homem criado para a felicidade verdadeira e eterna, que s o amor de Deus pode dar; mas a nossa liberdade ferida extraviar-se-ia se no lhe fosse possvel experimentar, j desde agora, algo da consumao futura. Alis, para poder caminhar na direco justa, o homem necessita de estar orientado para a meta final; esta, na realidade, o prprio Cristo Senhor, vencedor do pecado e da morte, que Se torna presente para ns de maneira especial na celebrao eucarstica. Deste modo, embora sejamos ainda estrangeiros e peregrinos (1 Pd 2, 11) neste mundo, pela f participamos j da plenitude da vida ressuscitada. O banquete eucarstico, ao revelar a sua dimenso intensamente escatolgica, vem em ajuda da nossa liberdade a caminho.

O banquete escatolgico

31. Reflectindo sobre este mistrio, podemos dizer que Cristo, com a sua vinda, Se colocou em sintonia com a expectativa presente no povo de Israel, na humanidade inteira e fundamentalmente na prpria criao. Com o dom de Si mesmo, inaugurou objectivamente o

tempo escatolgico. Cristo veio chamar unidade o povo de Deus que andava disperso (Jo 11, 52), manifestando claramente a inteno de congregar a comunidade da aliana para dar cumprimento s promessas feitas por Deus a nossos pais (Jer 23, 3; 31, 10; Lc 1, 55.70). Com o chamamento dos Doze nmero que evoca as doze tribos de Israel e o mandato que lhes confiou na ltima Ceia, antes da sua paixo redentora, de celebrarem o seu memorial, Jesus manifestou que queria transferir, para a comunidade inteira por Ele fundada, a misso de ser, na histria, sinal e instrumento da reunificao escatolgica que n'Ele teve incio. Por isso, em cada celebrao eucarstica, realiza-se sacramentalmente a unificao escatolgica do povo de Deus. Para ns, o banquete eucarstico uma antecipao real do banquete final, preanunciado pelos profetas (Is 25, 6-9) e descrito no Novo Testamento como as npcias do Cordeiro (Ap 19, 7-9) que se ho-de celebrar na comunho dos santos.(100)

Orao pelos defuntos

32. A celebrao eucarstica, na qual anunciamos a morte do Senhor e proclamamos a sua ressurreio enquanto aguardamos a sua vinda gloriosa, penhor da glria futura, quando mesmo os nossos corpos sero glorificados. Ao celebrarmos o memorial da nossa salvao, refora-se em ns a esperana da ressurreio da carne juntamente com a possibilidade de encontrarmos de novo, face a face, aqueles que nos precederam com o sinal da f. Nesta linha, queria, juntamente com os padres sinodais, lembrar a todos os fiis a importncia da orao de sufrgio, particularmente a celebrao de Missas, pelos defuntos para que, purificados, possam chegar viso beatfica de Deus.(101) Sempre que descobrimos de novo a dimenso escatolgica presente na Eucaristia, celebrada e adorada, somos apoiados no nosso caminho e confortados na esperana da glria (Rm 5, 2; Tt 2, 13).

A Eucaristia e a Virgem Maria

33. Da relao entre a Eucaristia e os restantes sacramentos juntamente com o significado escatolgico dos santos mistrios, irrompe o perfil da vida crist, chamada a ser em cada instante culto espiritual, oferta de si mesma agradvel a Deus. E, se verdade que nos encontramos todos ainda a caminho rumo plena consumao da nossa esperana, isto no impede de podermos j agora reconhecer, com gratido, que tudo aquilo que Deus nos deu, se realizou perfeitamente na Virgem Maria, Me de Deus e nossa: a sua assuno ao cu em corpo e alma , para ns, sinal de segura esperana, enquanto nos aponta a ns, peregrinos no tempo, aquela meta escatolgica que o sacramento da Eucaristia desde j nos faz saborear.

Em Maria Santssima, vemos perfeitamente realizada tambm a modalidade sacramental com que Deus alcana e envolve na sua iniciativa salvfica a criatura humana. Desde a anunciao ao Pentecostes, Maria de Nazar aparece como uma pessoa cuja liberdade est completamente disponvel vontade de Deus; a sua Imaculada Conceio revela-se propriamente na docilidade incondicional palavra divina. A f obediente a forma que a sua vida assume em cada instante perante a aco de Deus: Virgem escuta, Ela vive em plena sintonia com a vontade divina; conserva no seu corao as palavras que lhe chegam da parte de Deus e, dispondo-as maneira de um mosaico, aprende a compreend-las mais a fundo (Lc 2, 19.51); Maria a grande Crente que, cheia de confiana, Se coloca nas mos de Deus, abandonando-Se sua vontade.(102) Um tal mistrio vai crescendo de intensidade at chegar ao pleno envolvimento d'Ela na misso redentora de Jesus; como afirmou o Conclio Vaticano II, assim avanou a Virgem pelo caminho da f, mantendo fielmente a unio com seu Filho at cruz. Junto desta esteve, no sem desgnio de Deus (Jo 19, 25), padecendo acerbamente com o seu Filho nico, e associando-Se com corao de me ao seu sacrifcio, consentindo com

amor na imolao da vtima que d'Ela nascera; finalmente, Jesus Cristo, agonizante na cruz, deu-A por me ao discpulo, com estas palavras: mulher, eis a o teu filho (Jo 19, 26-27) .(103) Desde a anunciao at cruz, Maria Aquela que acolhe a Palavra que n'Ela Se fez carne e foi at emudecer no silncio da morte. Ela, enfim, que recebe nos seus braos o corpo imolado, j exnime, d'Aquele que verdadeiramente amou os Seus at ao fim (Jo 13, 1).

Por isso, sempre que na liturgia eucarstica nos abeiramos do corpo e do sangue de Cristo, dirigimo-nos tambm a Ela que, por toda a Igreja, acolheu o sacrifcio de Cristo, aderindo plenamente ao mesmo. Justamente afirmaram os padres sinodais que Maria inaugura a participao da Igreja no sacrifcio do Redentor .(104) Ela a Imaculada que acolhe incondicionalmente o dom de Deus, e desta forma fica associada obra da salvao. Maria de Nazar, cone da Igreja nascente, o modelo para cada um de ns saber como chamado a acolher a doao que Jesus fez de Si mesmo na Eucaristia.

II PARTE

EUCARISTIA, MISTRIO CELEBRADO

Em verdade, em verdade vos digo: No foi Moiss que vos deu o po que vem do cu; meu Pai que vos d o verdadeiro po que vem do cu (Jo 6, 32)

Norma da orao e norma de f

34. O Snodo dos Bispos reflectiu demoradamente sobre a relao intrnseca entre f eucarstica e celebrao, pondo em evidncia a ligao entre a norma da orao (lex orandi) e a norma de f (lex credendi) e sublinhando o primado da aco litrgica. necessrio viver a Eucaristia como mistrio da f autenticamente celebrado, bem cientes de que a inteligncia da f (intellectus fidei) sempre est originariamente em relao com a aco litrgica da Igreja :(105) neste mbito, a reflexo teolgica no pode prescindir jamais da ordem sacramental instituda pelo prprio Cristo; por outro lado, a aco litrgica nunca pode ser considerada genericamente, prescindindo do mistrio da f. Com efeito, a fonte da nossa f e da liturgia eucarstica o mesmo acontecimento: a doao que Cristo fez de Si prprio no mistrio pascal.

Beleza e liturgia

35. A relao entre mistrio acreditado e mistrio celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teolgico e litrgico da beleza. De facto, a liturgia, como alis a revelao crist, tem uma ligao intrnseca com a beleza: esplendor da verdade (veritatis splendor). Na liturgia, brilha o mistrio pascal, pelo qual o prprio Cristo nos atrai a Si e chama comunho. Em Jesus, como costumava dizer So Boaventura, contemplamos a beleza e o esplendor das origens.(106) Referimo-nos aqui a este atributo da beleza, vista no enquanto mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcana, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de ns mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocao: o amor.(107) J na criao, Deus Se deixa entrever na beleza e harmonia do universo (Sab 13, 5; Rm 1, 19-20). Depois, no Antigo Testamento, encontramos sinais grandiosos do esplendor da fora de Deus, que Se manifesta com a sua glria atravs dos prodgios realizados no meio do povo eleito (Ex 14; 16, 10; 24, 12-18; Nm 14, 20-23). No Novo

Testamento, realiza-se definitivamente esta epifania de beleza na revelao de Deus em Jesus Cristo: (108) Ele a manifestao plena da glria divina. Na glorificao do Filho, resplandece e comunica-se a glria do Pai (Jo 1, 14; 8, 54; 12, 28; 17, 1). Mas, esta beleza no uma simples harmonia de formas; o mais belo dos filhos do homem (Sal 45/44, 3) misteriosamente tambm um indivduo sem distino nem beleza que atraia o nosso olhar (Is 53, 2). Jesus Cristo mostra-nos como a verdade do amor sabe transfigurar inclusive o mistrio sombrio da morte na luz radiante da ressurreio. Aqui o esplendor da glria de Deus supera toda a beleza do mundo. A verdadeira beleza o amor de Deus que nos foi definitivamente revelado no mistrio pascal.

A beleza da liturgia pertence a este mistrio; expresso excelsa da glria de Deus e, de certa forma, constitui o cu que desce terra. O memorial do sacrifcio redentor traz em si mesmo os traos daquela beleza de Jesus testemunhada por Pedro, Tiago e Joo, quando o Mestre, a caminho de Jerusalm, quis transfigurar-Se diante deles (Mc 9, 2). Concluindo, a beleza no um factor decorativo da aco litrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do prprio Deus e da sua revelao. Tudo isto nos h-de tornar conscientes da ateno que se deve prestar aco litrgica para que brilhe segundo a sua prpria natureza.

A celebrao eucarstica, obra de Cristo inteiro

Cristo inteiro: cabea e corpo

36. A beleza intrnseca da liturgia tem, como sujeito prprio, Cristo ressuscitado e glorificado no Esprito Santo, que inclui a Igreja na sua aco.(109) Nesta perspectiva, muito sugestivo recordar as palavras de Santo Agostinho que descrevem, de modo eficaz, esta dinmica de f prpria da Eucaristia; referindo-se precisamente ao mistrio eucarstico, o grande santo de Hipona pe em evidncia como o prprio Cristo nos assimila a Si mesmo: O po que vedes sobre o altar, santificado com a palavra de Deus, o corpo de Cristo. O clice, ou melhor, aquilo que o clice contm, santificado com as palavras de Deus, sangue de Cristo. Com estes [sinais], Cristo Senhor quis confiar-nos o seu corpo e o seu sangue, que derramou por ns para a remisso dos pecados. Se os recebestes bem, vs mesmos sois Aquele que recebestes .(110) Assim, tornamo-nos no apenas cristos, mas o prprio Cristo .(111) Nisto podemos contemplar a aco misteriosa de Deus, que inclui a unidade profunda entre ns e o Senhor Jesus: De facto, no se pode crer que Cristo esteja na cabea sem estar tambm no corpo, pois Ele est todo inteiro na cabea e no corpo (Christus totus in capite et in corpore) .(112)

Eucaristia e Cristo ressuscitado

37. Visto que a liturgia eucarstica essencialmente aco de Deus (actio Dei) que nos envolve em Jesus por meio do Esprito, o seu fundamento no est merc do nosso arbtrio e no pode suportar a chantagem das modas passageiras. Vale aqui tambm, sem dvida, a advertncia de So Paulo: Ningum pode pr outro fundamento diferente do que foi posto, isto , Jesus Cristo (1 Cor 3, 11). O Apstolo das Gentes certifica-nos ainda, referindo-se Eucaristia, que no nos comunica uma doutrina pessoal, mas aquilo que, por sua vez, tinha recebido (1 Cor 11, 23); de facto, a celebrao da Eucaristia implica a Tradio viva. A Igreja celebra o sacrifcio eucarstico obedecendo ao mandato de Cristo, a partir da experincia do Ressuscitado e da efuso do Esprito Santo. Por este motivo, a comunidade crist, desde os seus primrdios, rene-se para a fraco do po (fractio panis) no dia do Senhor. O dia em que Cristo ressuscitou dos mortos, o domingo, tambm o primeiro dia da semana, aquele em que

a tradio do Antigo Testamento contemplava o incio da criao. O dia da criao tornou-se agora o dia da nova criao , o dia da nossa libertao, no qual fazemos memria de Cristo morto e ressuscitado.(113)

Arte da celebrao

38. Durante os trabalhos sinodais, foi vrias vezes recomendada a necessidade de superar toda e qualquer separao entre a arte da celebrao (ars celebrandi, isto , a arte de celebrar rectamente) e a participao plena, activa e frutuosa de todos os fiis: com efeito, o primeiro modo de favorecer a participao do povo de Deus no rito sagrado a condigna celebrao do mesmo; a arte da celebrao a melhor condio para a participao activa (actuosa participatio).(114) Aquela resulta da fiel obedincia s normas litrgicas na sua integridade, pois precisamente este modo de celebrar que, h dois mil anos, garante a vida de f de todos os crentes, chamados a viver a celebrao enquanto povo de Deus, sacerdcio real, nao santa (1 Pd 2, 4-5.9).(115)

O bispo, liturgista por excelncia

39. Se verdade que todo o povo de Deus participa na liturgia eucarstica, uma funo imprescindvel, relativamente correcta ars celebrandi, compete todavia queles que receberam o sacramento da Ordem. Bispos, sacerdotes e diconos, cada qual segundo o prprio grau, devem considerar a celebrao como o seu dever principal.(116) Antes de mais ningum, o bispo diocesano: de facto, como primeiro dispensador dos mistrios de Deus na Igreja particular que lhe est confiada, ele o guia, o promotor e o guardio de toda a vida litrgica .(117) Tudo isto decisivo para a vida da Igreja particular, no s porque a comunho com o bispo condio para que seja legtima uma celebrao no respectivo territrio, mas tambm porque ele mesmo o liturgista por excelncia da sua Igreja.(118) Compete-lhe salvaguardar a concorde unidade das celebraes na sua diocese; por isso, deve ser preocupao do bispo fazer com que os presbteros, os diconos e os fiis compreendam cada vez melhor o sentido autntico dos ritos e dos textos litrgicos, levando-os deste modo a uma activa e frutuosa celebrao da Eucaristia .(119) De modo particular, exorto a fazer tudo o que for necessrio a fim de que as celebraes litrgicas realizadas pelo bispo na catedral se desenrolem no respeito cabal da arte da celebrao, para que possam ser consideradas como modelo por todas as igrejas espalhadas no territrio.(120)

O respeito pelos livros litrgicos e pela riqueza dos sinais

40. Ao ressaltar a importncia da arte da celebrao, consequentemente pe-se em evidncia o valor das normas litrgicas.(121) Aquela deve favorecer o sentido do sagrado e a utilizao das formas exteriores que educam para tal sentido, como, por exemplo, a harmonia do rito, das vestes litrgicas, da decorao e do lugar sagrado. A celebrao eucarstica frutuosa quando os sacerdotes e os responsveis da pastoral litrgica se esforam por dar a conhecer os livros litrgicos em vigor e as respectivas normas, pondo em destaque as riquezas estupendas da Instruo Geral do Missal Romano e da Instruo das Leituras da Missa. Talvez se d por adquirido, nas comunidades eclesiais, o seu conhecimento e devido apreo, mas frequentemente no assim; na realidade, trata-se de textos onde esto contidas riquezas que guardam e exprimem a f e o caminho do povo de Deus ao longo dos dois milnios da sua histria. Igualmente importante para uma correcta arte da celebrao a ateno a todas as formas de linguagem previstas pela liturgia: palavra e canto, gestos e silncios, movimento do corpo, cores litrgicas dos paramentos. Com efeito, a liturgia, por sua natureza, possui uma tal

variedade de nveis de comunicao que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade. A simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos, comunicam e cativam mais do que o artificialismo de adies inoportunas. A ateno e a obedincia estrutura prpria do rito, ao mesmo tempo que exprimem a conscincia do carcter de dom da Eucaristia, manifestam a vontade que o ministro tem de acolher, com dcil gratido, esse dom inefvel.

Arte ao servio da celebrao

41. A profunda ligao entre a beleza e a liturgia deve levar-nos a considerar atentamente todas as expresses artsticas colocadas ao servio da celebrao.(122) Uma componente importante da arte sacra , sem dvida, a arquitectura das igrejas,(123) nas quais h-de sobressair a coerncia entre os elementos prprios do presbitrio: altar, crucifixo, sacrrio, ambo, cadeira. A este respeito, tenha-se presente que a finalidade da arquitectura sacra oferecer Igreja que celebra os mistrios de f, especialmente a Eucaristia, o espao mais idneo para uma condigna realizao da sua aco litrgica; (124) de facto, a natureza do templo cristo define-se precisamente pela aco litrgica, a qual implica a reunio dos fiis (ecclesia), que so as pedras vivas do templo (1 Pd 2, 5).

O mesmo princpio vale para toda a arte sacra em geral, especialmente para a pintura e a escultura, devendo a iconografia religiosa ser orientada para a mistagogia sacramental. Um conhecimento profundo das formas que a arte sacra conseguiu produzir, ao longo dos sculos, pode ser de grande ajuda para quem tenha a responsabilidade de chamar arquitectos e artistas para comissionar-lhes obras de arte destinadas aco litrgica; por isso, indispensvel que, na formao dos seminaristas e dos sacerdotes, se inclua, entre as disciplinas importantes, a Histria da Arte com especial referimento aos edifcios de culto luz das normas litrgicas. Enfim, necessrio que, em tudo quanto tenha a ver com a Eucaristia, haja gosto pela beleza; dever-se- ter respeito e cuidado tambm pelos paramentos, as alfaias, os vasos sagrados, para que, interligados de forma orgnica e ordenada, alimentem o enlevo pelo mistrio de Deus, manifestem a unidade da f e reforcem a devoo.(125)

O canto litrgico

42. Na arte da celebrao, ocupa lugar de destaque o canto litrgico.(126) Com razo afirma Santo Agostinho, num famoso sermo: O homem novo conhece o cntico novo. O cntico uma manifestao de alegria e, se considerarmos melhor, um sinal de amor .(127) O povo de Deus, reunido para a celebrao, canta os louvores de Deus. Na sua histria bimilenria, a Igreja criou, e continua a criar, msica e cnticos que constituem um patrimnio de f e amor que no se deve perder. Verdadeiramente, em liturgia, no podemos dizer que tanto vale um cntico como outro; a propsito, necessrio evitar a improvisao genrica ou a introduo de gneros musicais que no respeitem o sentido da liturgia. Enquanto elemento litrgico, o canto deve integrar-se na forma prpria da celebrao; (128) consequentemente, tudo no texto, na melodia, na execuo deve corresponder ao sentido do mistrio celebrado, s vrias partes do rito e aos diferentes tempos litrgicos.(129) Enfim, embora tendo em conta as distintas orientaes e as diferentes e amplamente louvveis tradies, desejo como foi pedido pelos padres sinodais que se valorize adequadamente o canto gregoriano,(130) como canto prprio da liturgia romana.(131)

A estrutura da celebrao eucarstica

43. Depois de ter recordado os elementos fundamentais da arte da celebrao relevados durante os trabalhos sinodais, desejo chamar a ateno mais especificamente para algumas partes da estrutura da celebrao eucarstica, que necessitam de um cuidado particular no nosso tempo, a fim de permanecermos fiis inteno profunda da renovao litrgica que o Conclio Vaticano II quis em continuidade com toda a grande tradio eclesial.

Unidade intrnseca da aco litrgica

44. Antes de mais, necessrio reflectir sobre a unidade intrnseca do rito da Santa Missa, evitando, tanto nas catequeses como na modalidade de celebrao, que se d ensejo a uma viso justaposta das duas partes do rito: a liturgia da palavra e a liturgia eucarstica para alm dos ritos iniciais e conclusivo esto entre si to estreitamente ligadas que constituem um nico acto de culto .(132) De facto, existe uma ligao intrnseca entre a palavra de Deus e a parte eucarstica: ao ouvirmos a palavra de Deus, nasce ou refora-se a f (Rm 10, 17), enquanto, na parte eucarstica, o Verbo feito carne d-Se a ns como alimento espiritual; (133) assim, a partir das duas mesas, a da palavra de Deus e a do corpo de Cristo, a Igreja recebe e oferece aos fiis o po de vida .(134) Por isso, deve ter-se constantemente presente que a palavra de Deus, lida e anunciada na liturgia pela Igreja, conduz Eucaristia como a seu fim conatural.

A liturgia da palavra

45. Juntamente com o Snodo, peo que a liturgia da palavra seja sempre devidamente preparada e vivida. Recomendo, pois, vivamente que se tenha grande cuidado, nas liturgias, com a proclamao da palavra de Deus por leitores bem preparados; nunca nos esqueamos de que, quando na igreja se l a Sagrada Escritura, o prprio Deus que fala ao seu povo, Cristo presente na sua palavra que anuncia o Evangelho .(135) Se as circunstncias o recomendarem, pode-se pensar numas breves palavras de introduo, que ajudem os fiis a tomar renovada conscincia do momento. Para ser bem compreendida, a palavra de Deus deve ser escutada e acolhida com esprito eclesial e cientes da sua unidade com o sacramento eucarstico. Com efeito, a palavra que anunciamos e ouvimos o Verbo feito carne (Jo 1, 14) e possui uma referncia intrnseca pessoa de Cristo e modalidade sacramental da sua permanncia: Cristo no fala no passado mas no nosso presente, tal como Ele est presente na aco litrgica. Neste horizonte sacramental da revelao crist,(136) o conhecimento e o estudo da palavra de Deus permitem-nos valorizar, celebrar e viver melhor a Eucaristia; tambm aqui se mostra em toda a sua verdade a conhecida assero: A ignorncia da Escritura ignorncia de Cristo .(137)

Para isso, necessrio ajudar os fiis a valorizarem os tesouros da Sagrada Escritura presentes no Leccionrio, por meio de iniciativas pastorais, de celebraes da palavra e da leitura orante (lectio divina). Alm disso, no se esquea de promover as formas de orao confirmadas pela tradio: a Liturgia das Horas, sobretudo Laudes, Vsperas, Completas e ainda as celebraes das Viglias. A orao dos salmos, as leituras bblicas e as da grande tradio apresentadas no Ofcio Divino podem levar a uma experincia profunda do acontecimento de Cristo e da economia da salvao, capaz por sua vez de enriquecer a compreenso e a participao na celebrao eucarstica.(138)

A homilia

46. Pensando na importncia da palavra de Deus, surge a necessidade de melhorar a qualidade da homilia; de facto, esta constitui parte integrante da aco litrgica ,(139) cuja funo favorecer uma compreenso e eficcia mais ampla da palavra de Deus na vida dos fiis. Por isso, os ministros ordenados devem preparar cuidadosamente a homilia, baseando-se num adequado conhecimento da Sagrada Escritura .(140) Evitem-se homilias genricas ou abstractas; de modo particular, peo aos ministros para fazerem com que a homilia coloque a palavra de Deus proclamada em estreita relao com a celebrao sacramental (141) e com a vida da comunidade, de tal modo que a palavra de Deus seja realmente apoio e vida da Igreja.(142) Tenha-se presente, portanto, a finalidade catequtica e exortativa da homilia. Considera-se que oportuno oferecer prudentemente, a partir do Leccionrio trienal, homilias temticas aos fiis que tratem, ao longo do ano litrgico, os grandes temas da f crist, haurindo de quanto est autorizadamente proposto pelo Magistrio nos quatro pilares do Catecismo da Igreja Catlica e no recente Compndio: a profisso da f, a celebrao do mistrio cristo, a vida em Cristo, a orao crist.(143)

Apresentao das oferendas

47. Os padres sinodais chamaram a ateno tambm para a apresentao das oferendas. No se trata simplesmente duma espcie de intervalo entre a liturgia da palavra e a liturgia eucarstica, o que faria, sem dvida, atenuar o sentido de um nico rito composto de duas partes interligadas; realmente, neste gesto humilde e simples, encerra-se um significado muito grande: no po e no vinho que levamos ao altar, toda a criao assumida por Cristo Redentor para ser transformada e apresentada ao Pai.(144) Nesta perspectiva, levamos ao altar tambm todo o sofrimento e tribulao do mundo, na certeza de que tudo precioso aos olhos de Deus. Este gesto no necessita de ser enfatizado com descabidas complicaes para ser vivido no seu significado autntico: o mesmo permite valorizar a participao primeira que Deus pede ao homem, ou seja, levar em si mesmo a obra divina perfeio, e dar assim pleno sentido ao trabalho humano que, atravs da celebrao eucarstica, fica unido ao sacrifcio redentor de Cristo.

A Orao Eucarstica

48. A Orao Eucarstica o ponto central e culminante de toda a celebrao ; (145) merece ser convenientemente ressaltada a sua importncia. As diversas Oraes Eucarsticas contidas no Missal foram-nos transmitidas pela Tradio viva da Igreja e caracterizam-se por uma riqueza teolgica e espiritual inesgotvel; os fiis devem poder ser capazes de apreci-la. A isto mesmo nos ajuda a Instruo Geral do Missal Romano, quando lembra os elementos fundamentais de cada Orao Eucarstica: aco de graas, aclamao, epiclese, narrao da instituio, consagrao, anamnese, oblao, intercesses e doxologia final.(146) Em particular, a espiritualidade eucarstica e a reflexo teolgica so iluminadas se se contempla a profunda unidade que existe, na anfora, entre a invocao do Esprito Santo e a narrao da instituio,(147) quando se realiza o sacrifcio que o prprio Cristo instituiu na ltima Ceia .(148) De facto, por meio de invocaes especiais, a Igreja implora o poder do Esprito Santo, para que os dons oferecidos pelos homens sejam consagrados, isto , se convertam no corpo e sangue de Cristo, e para que a vtima imaculada, que vai ser recebida na comunho, opere a salvao daqueles que dela vo participar .(149)

Saudao da paz

49. A Eucaristia , por sua natureza, sacramento da paz. Na celebrao litrgica, esta dimenso do mistrio eucarstico encontra a sua manifestao especfica no rito da saudao da paz. Trata-se, sem dvida, dum sinal de grande valor (Jo 14, 27). Neste nosso tempo pavorosamente cheio de conflitos, tal gesto adquire mesmo do ponto de vista da sensibilidade comum um relevo particular, pois a Igreja sente cada vez mais como sua misso prpria a de implorar ao Senhor o dom da paz e da unidade para si mesma e para a famlia humana inteira. A paz , sem dvida, uma aspirao radical que se encontra no corao de cada um; a Igreja d voz ao pedido de paz e reconciliao que brota do esprito de cada pessoa de boa vontade, apresentando-o quele que a nossa paz (Ef 2, 14) e pode pacificar de novo povos e pessoas, mesmo onde tivessem falido os esforos humanos. A partir de tudo isto, possvel compreender a intensidade com que frequentemente sentido o rito da paz na celebrao litrgica. A este respeito, porm, durante o Snodo dos Bispos foi sublinhada a convenincia de moderar este gesto, que pode assumir expresses excessivas, suscitando um pouco de confuso na assembleia precisamente antes da comunho. bom lembrar que nada tira ao alto valor do gesto a sobriedade necessria para se manter um clima apropriado celebrao, limitando, por exemplo, a saudao da paz a quem est mais prximo.(150)

Distribuio e recepo da Eucaristia

50. Outro momento da celebrao, que necessita de meno, a distribuio e a recepo da sagrada comunho. Peo a todos, especialmente aos ministros ordenados e queles que, devidamente preparados e em caso de real necessidade, estejam autorizados para o ministrio da distribuio da Eucaristia, que faam o possvel para que o gesto, na sua simplicidade, corresponda ao seu valor de encontro pessoal com o Senhor Jesus no sacramento. Quanto s prescries para a correcta prtica do mesmo, vejam-se os documentos recentemente emanados; ( 151) todas as comunidades crists se atenham fielmente s normas vigentes, vendo nelas a expresso da f e do amor que todos devemos ter por este sublime sacramento. Alm disso, no seja transcurado o tempo precioso de aco de graas depois da comunho: alm da entoao dum cntico oportuno, pode ser muito til tambm permanecer recolhidos em silncio.(152)

A propsito, desejo chamar a ateno para um problema pastoral com que frequentemente nos deparamos no nosso tempo: em determinadas circunstncias como, por exemplo, nas Missas celebradas por ocasio de matrimnios, funerais ou acontecimentos anlogos, encontram-se presentes na celebrao, alm dos fiis praticantes, outros que talvez h anos no se aproximam do altar ou se encontram numa situao de vida que no permite o acesso aos sacramentos; outras vezes acontece que esto presentes pessoas de outras confisses crists ou at de outras religies. Circunstncias semelhantes verificam-se tambm em igrejas que so meta de turistas, sobretudo nas cidades de grande valor artstico. Ora, salta aos olhos a necessidade de encontrar formas breves e incisivas para alertar a todos sobre o sentido da comunho sacramental e sobre as condies que se requerem par