2. a teologia eucarística de cesare giraudo - dbd puc rio · a teologia eucarística de ... joão...

29
2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo 2.1. Introdução A liturgia em sua celebração não é, por primeiro, um objeto de se com- preender intelectualmente, uma coisa de se tomar para analisar ou para des- montar. A primeira coisa a se fazer consiste em deixá-la falar e escutá-la com simpatia. É como se faz com as obras de arte: o essencial não é seccioná-la e discutí-la, mas contemplá-la, escutá-la, deixar que ela nos fale de si, por si mesma. Por ser a Eucaristia, em primeiro lugar, uma celebração litúrgica, faz-se necessário partir da sua ação cultual para apreender sua dimensão teológica. E sendo a Eucaristia a celebração memorial do Mistério Pascal, momento síntese de toda a obra da salvação, a mútua relação entre Bíblia e liturgia pode ser con- siderada o lugar de origem da relação entre liturgia e teologia. Estamos habitu- ados a acreditar que a liturgia se refira à Bíblia para lê-la, citá-la, se inspirar nela. Mas é preciso também levar em consideração que aquela, ao menos par- cialmente, encontra a sua origem na liturgia (Jorns, 1992-1, p.55-78). Numerosas passagens bíblicas provêem, de fato, da assembléia litúrgica; tais são salmos do Antigo Testamento, como também hinos do Novo Testa- mento, criados para o louvor de Deus pelo seu povo reunido. Partindo da relação entre Bíblia e liturgia, entre acontecimento narrado e sua celebração memorial, compreende-se logo que a relação entre teologia e liturgia é intrínseca. A teologia não deve somente indicar à liturgia o conteúdo da fé que ela deve exprimir; ao contrário, a liturgia veicula igualmente uma inteligência da fé, e a teologia deve ter interesse em compreendê-la. A tradição litúrgica conhece a propósito um adágio famoso que, em la- tim, se enuncia com as palavras lex orandi-lex credendi. O essencial do adágio está no movimento do pensamento enunciado, movimento que vai da oração ao conteúdo da fé. O adágio não se limita aos textos; a sua penetração se estende às ações litúrgicas e à estrutura das celebrações. Cada ato litúrgico é portador de um significado teológico: o lugar das lei- turas, por exemplo, indica que a oração se inicia com a escuta de um Outro, que vem a nós; o reunir-se dos cristãos, a Eucaristia dominical, ensina que são

Upload: vothuy

Post on 28-Apr-2018

216 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo

2.1. Introdução

A liturgia em sua celebração não é, por primeiro, um objeto de se com-

preender intelectualmente, uma coisa de se tomar para analisar ou para des-

montar. A primeira coisa a se fazer consiste em deixá-la falar e escutá-la com

simpatia. É como se faz com as obras de arte: o essencial não é seccioná-la e

discutí-la, mas contemplá-la, escutá-la, deixar que ela nos fale de si, por si

mesma.

Por ser a Eucaristia, em primeiro lugar, uma celebração litúrgica, faz-se

necessário partir da sua ação cultual para apreender sua dimensão teológica. E

sendo a Eucaristia a celebração memorial do Mistério Pascal, momento síntese

de toda a obra da salvação, a mútua relação entre Bíblia e liturgia pode ser con-

siderada o lugar de origem da relação entre liturgia e teologia. Estamos habitu-

ados a acreditar que a liturgia se refira à Bíblia para lê-la, citá-la, se inspirar

nela. Mas é preciso também levar em consideração que aquela, ao menos par-

cialmente, encontra a sua origem na liturgia (Jorns, 1992-1, p.55-78).

Numerosas passagens bíblicas provêem, de fato, da assembléia litúrgica;

tais são salmos do Antigo Testamento, como também hinos do Novo Testa-

mento, criados para o louvor de Deus pelo seu povo reunido.

Partindo da relação entre Bíblia e liturgia, entre acontecimento narrado e

sua celebração memorial, compreende-se logo que a relação entre teologia e

liturgia é intrínseca. A teologia não deve somente indicar à liturgia o conteúdo

da fé que ela deve exprimir; ao contrário, a liturgia veicula igualmente uma

inteligência da fé, e a teologia deve ter interesse em compreendê-la.

A tradição litúrgica conhece a propósito um adágio famoso que, em la-

tim, se enuncia com as palavras lex orandi-lex credendi. O essencial do adágio

está no movimento do pensamento enunciado, movimento que vai da oração ao

conteúdo da fé. O adágio não se limita aos textos; a sua penetração se estende

às ações litúrgicas e à estrutura das celebrações.

Cada ato litúrgico é portador de um significado teológico: o lugar das lei-

turas, por exemplo, indica que a oração se inicia com a escuta de um Outro,

que vem a nós; o reunir-se dos cristãos, a Eucaristia dominical, ensina que são

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 2: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

19

o verdadeiro povo de Deus (qahal IHWH), a Igreja; a imposição das mãos ma-

nifesta que se trata de um dom, invocação do Espírito Santo.

O adágio lex orandi-lex credendi evidencia que a liturgia não se esgota

na sua ação material. Pois, a liturgia não é um puro ofício que a Igreja deve

cumprir para render culto a Deus, mas é algo de inteligente, rico de significado,

portador do mistério da salvação. Mas o nosso espírito, formado na racionali-

dade teológica, não está habituado a considerar as simples realidades da liturgi-

a. Todavia, devemos reconhecer que a sua compreensão não é infusa, não se

concretiza por si. Ela é toda mistagógica.

Nos diversos setores da reflexão teológica destes últimos decênios emer-

giu, com renovado vigor, o termo “mistagogia”, tão caro à tradição litúrgica da

antiguidade cristã. O Catecismo da Igreja Católica o aplica à catequese litúrgi-

ca nestes termos: “A catequese litúrgica tem em vista introduzir no mistério de

Cristo (ela é mistagogia), procedendo do visível para o invisível, do significan-

te para o significado, dos sacramentos para os mistérios [...]” (n. 1075). A re-

descoberta do método mistagógico é um fruto precioso do retorno aos Padres

que caracteriza a Igreja da atualidade no seu empenho catequético-pastoral.

Nem todas as Igrejas antigas tinham o mesmo conceito de mistagogia,

sobretudo em relação aos tempos e aos destinatários. Podemos, porém, afirmar

que para os Padres a mistagogia é “um ensinamento organizado para fazer en-

tender aquilo que os sacramentos significam para a vida, mas que supõem a

iluminação da fé que brota dos sacramentos e aquilo que se aprende vivendo de

acordo com o que os sacramentos significam para a vida” (Augé, 2002, p.77).

A mistagogia não é somente um ensinamento organizado, um conjunto

pedagógico, nem ela mesma é antes de tudo um instrumento de pedagogia. A

dimensão mistagógica pertence estruturalmente à ação ritual cristã enquanto

contemplação do mistério. É a celebração mesma que é propriamente mistago-

gia ou “experiência dos mistérios”.

Isto significa que ela consiste em introduzir os participantes na inteligên-

cia do mistério celebrado; pois, se apóia na experiência da celebração. O dever

do mistagogo consiste em pôr à luz toda a riqueza do sentido implícito do que é

celebrado. Por isso, a catequese litúrgica, a mistagogia, não faz outra coisa que

explicitar os significados daquilo que está passando pela experiência. Ela rejei-

ta inculcar nos ânimos idéias e conceitos, antes de terem sido percebidos na

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 3: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

20

celebração. Isso os Padres levavam muito em conta quando organizavam suas

catequeses mistagógicas dos sacramentos que eram ministradas depois da re-

cepção dos sacramentos. Era preciso ser iniciado sacramentalmente primeiro

para ter acesso ao mistério. E isso, sobretudo, pela convicção de que os sacra-

mentos eram acontecimentos, não noções. Era preciso vivê-los; a explicação

vinha depois. É o que diz São Cirilo de Jerusalém:

Desde há muito tempo desejava falar-vos, filhos legítimos e muito amados da Igreja, sobre estes espirituais e celestes mistérios. Mas como sei bem que a vista é mais fiel que o ouvido, esperei a ocasião presente, para encontrar-vos, depois desta grande noite, mais preparados para compreender o que se vos fala e levar-vos pelas mãos ao prado luminoso e fragrante deste paraíso (Cirilo de Jerusa-lém, 1977, p.20).

Ao se pôr em relevo o adágio da lex orandi-lex credendi, não se está di-

zendo tudo sobre a relação teologia-liturgia. Esta sublinha a direção de influên-

cia que vai da liturgia à teologia. Seria ingênuo pensar que a teologia, de sua

parte, não continuará a influenciar a liturgia. João Paulo II, em sua carta apos-

tólica de comemoração dos vinte e cinco anos da Sacrosanctum Concilium,

afirma: “a fidelidade aos ritos e aos textos autênticos da liturgia é uma exigên-

cia da lex orandi, que deve estar sempre conforme a lex credendi” (João Paulo

II, 1988, n.10). A afirmação, certamente, é correta. Entretanto, a utilização das

palavras de um adágio, cuja originalidade consiste em sublinhar o movimento

inverso, é revelador da forte mentalidade que subjaz à concepção da liturgia e,

em conseqüência, à sua celebração eucarística.

Nesta breve introdução à abordagem metodológica que faremos do nosso

tema neste capítulo, queremos afirmar uma prioridade epistemológica da ação

litúrgica sobre as formulações teológicas, da celebração sobre as especulações

intelectuais. De fato, a celebração antecedeu a elaboração teológica.

Cesare Giraudo7, em suas obras, propõe uma teologia eucarística que, se-

7 Autor sobre o qual estaremos fundamentando nossa argumentação, Cesare Giraudo, SJ, nas-ceu em Roccavione (Cuneo, Itália) em 1941. Completada a formação fisosófica no Aloisianum de Gallarete e a teológica na Faculdade de Lyon-Fourvière, obteve o doutorado em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. Seu contato com a tradição religiosa da Costa-Leste de Madagascar, onde exerceu o ministério pastoral, estimulou seus estudos sobre a teologia dos sacramentos. É professor ordinário de teologia dogmática no Pontifício Instituto Oriental de Roma. Ensina como professor convidado na Pontifícia Faculdade Teológica de Nápoles e na Pontifícia Universidade Gregoriana. Depois de sua tese doutoral La struttura letteraria della

preghiera eucarística, (Analecta Bíblica 92, 1980, reimpresso em 1989), publicou Eucaristia

per la Chiesa (Aloisiana 22, 1989) e Preghiere eucaristiche per la Chiesa di oggi (Aloisiana p.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 4: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

21

gundo o exemplo dos Padres da Igreja, parte da lex orandi para daí explicitar o

mistério celebrado. Trata-se, porém, como a teologia é praticada hoje, de uma

mistagogia realizada ao nível da reflexão crítica e sistemática.

Para justificar a posição metodológica de Giraudo, partiremos, como ele

o faz, da contraposição entre os dois tipos de teologia que caracterizam em

grandes traços cada um dos dois milênios8 do cristianismo.

2.2. Dois tipos de tratados eucarísticos

Dois milênios, duas metodologias eucarísticas, dois tipos de tratados (Gi-

raudo, 2003, p. 1-13) nos oferecem o pano de fundo histórico para entender a

evolução da teologia sacramental, e, especialmente, da teologia eucarística.

2.2.1. Uma teologia a partir da lex credendi

Os tratados sobre a eucaristia escritos nos últimos quatro séculos apre-

sentam a teologia da eucaristia sob a exclusiva ótica reflexiva a partir de uma

série de princípios de fé.

As duas principais problemáticas teológicas, que mais empenharam os

estudiosos nos períodos pré e pós Concílio de Trento, foram a presença real nas

espécies consagradas e a eucaristia como sacrifício. Em relação à primeira, o

Concílio se situa como ponto de chegada de toda a problemática medieval com

a doutrina da presença real e da transubstanciação; quanto à segunda, se com-

porta como ponto de partida da disputa teológica que ocupou os séculos se-

guintes.

O Concílio de Trento se comporta em relação à problemática sacrifical da

mesma forma que a época patrística quanto à problemática da presença real.

Um e outro afirmam o dado da fé sem, contudo, se ocupar do como. Os Padres

afirmam que o pão e o vinho eucarísticos são “a carne e o sangue daquele Jesus

encarnado”.

Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos ensinamentos e se lavou no banho

23, 1993) e In unum corpus. Tratatto mistagogico sull’eucaristia (Edizioni San Paolo, 2001). Colabora em revistas teológicas italianas e do estrangeiro com estudos sobre liturgia, teologia dos sacramentos, inculturação da linguagem e da pastoral. 8 Giraudo fala milênio, não na acepção cronológica, mas na acepção teológica. Portanto, milê-nio teológico.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 5: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

22

que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive conforme o que Cristo nos ensinou. De fato, não tomamos essas coisas como pão comum ou bebido ordinária, mas da maneira como Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne por força do Verbo de Deus, teve carne e sangue por nossa salvação, assim nos en-sinou que, por virtude da oração ao Verbo que procede de Deus, o alimento so-bre o qual foi dita a ação de graças – alimento com o qual, por transformação, se nutrem nosso sangue e nossa carne – é a carne e o sangue daquele mesmo Je-sus encarnado.9

Os Padres se atêm a uma visão global do mistério, sem se indagarem so-

bre as possíveis modalidades de tal presença.

Será o contato com um modo novo de se situar diante do mistério euca-

rístico a manifestar-se desde o século IX, quando os povos germânicos recém-

convertidos irrompem na cena do pensamento teológico10, a levantar o proble-

ma e tentar explicar as modalidades relativas à mudança ocorrida.

O Concílio de Trento, com a grande sessão XIII de 1551, fecha a ques-

tão, afirmando: “O santo Sínodo ensina e professa aberta e simplesmente que,

no sublime sacramento da santa Eucaristia, depois da consagração do pão e do

vinho, nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, está

contido verdadeira, real e substancialmente sob a aparência das coisas sensí-

veis”, ou seja, seu corpo, sangue, alma e divindade11 e que tal presença se opera

através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância do pão no

corpo e de toda substância do vinho no sangue, permanecendo só as espécies

do pão e do vinho” 12. A problemática sacramental, já amplamente tratada, rea-

parece onze anos mais tarde na pequena sessão XXI de 1562, que se ocupa

sobretudo da questão relativa à comunhão sob as duas espécies. Ainda em

1562, ocorre a grande sessão XXII, que expõe a doutrina sacrifical da missa.

Nela se afirma, contra as teses dos reformadores, “que na missa se oferece a

9 Justino de Roma: I Apologia 66, p. 1-2. Paulus, São Paulo, 1995 (Patrística). 10 “A imediatidade e a extroversão genuína dos germanos... fez com que a primeira controvér-sia de pensamento, ligada ao nome dos carolíngios, acontecesse não de forma reflexa e auto-controlada, mas com uma intervenção imediata e ao mesmo tempo criativa. Assim, pelo séc. IX, chegou-se à primeira controvérsia eucarística em torno à interpretação dos textos de Agos-tinho, sem nem sequer suspeitar que toda a problemática que derivava dela não tomava origem nos textos, mas na forma germânica de pensamento. Essa imediatidade conferiu à controvérsia uma vivacidade e uma impetuosidade tais, que os conteúdos do pensamento antigo aderiram quase sem suturas ao pensamento germânico; mas sofreram também uma mutação profunda, não obstante a permanência da língua latina e frequentemente também dos respectivos concei-tos formais” (Gerken, 1977, p. 106; in Giraudo, 2003, nota 2, p. 416). 11 Denzinger-Hünermann (2007, n.1636). 12 Id, n.1652.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 6: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

23

Deus um sacrifício no sentido verdadeiro e próprio” 13.

Sem prestar atenção às vicissitudes históricas do Concílio de Trento, que

impossibilita os padres conciliares apreender a natureza sacramental e sacrifi-

cal da missa como uma realidade única, os manualistas dividiram-se em dois

grupos que se moviam em direções opostas. Uns fazendo confluir na problemá-

tica da grande sessão XIII a pequena sessão XXII, puseram-se a tratar separa-

damente (a) a eucaristia como sacramento da presença real e (b) a eucaristia

como sacrifício. Outros, atendo-se às diversas problemáticas discutidas nas três

sessões, trataram separadamente (a) a eucaristia como presença real, (b) a euca-

ristia como sacramento, (c) a eucaristia como sacrifício. Por isso, o estudo da

eucaristia acabou por esfacelar-se em duas ou três abordagens distintas e, de

fato, autônomas.

Esta breve sondagem nos mostra que, do Concílio de Trento em diante, a

teologia do mistério eucarístico aparece profundamente dividida em, pelo me-

nos, duas grandes problemáticas, constituindo tratados autônomos dentro da-

quele que deveria ser unitário.

Esta panorâmica traçada nos permite, sobretudo, constatar como toda a

teologia eucarística pré e pós tridentina, por um complexo de circunstâncias

histórico-dogmáticas que moldaram o II milênio teológico, tenha perdido de

vista a dimensão dinâmica da eucaristia e se tenha reduzido a uma visão estáti-

co-especulativa que observamos até hoje.

Em conclusão, a metodologia do segundo milênio produziu uma teologia

eucarística estudada na escola, tendo como paradigma Pedro Lombardo, o

Mestre das Sentenças e pai da escolástica. Com a grande sistemática escolásti-

ca, a prática litúrgica do segundo milênio teológico no Ocidente deixou de lado

a compreensão de unidade da anáfora cristã, limitando-se a recitar o Cânon

Romano como uma série de orações independentes e restringindo-se ao relato

institucional como lugar da consagração, como se bastasse ao sacerdote pro-

nunciar as palavras “Isto é meu corpo” e “Este é o cálice do meu sangue”, com

a intenção de produzir este sacramento.

O teólogo especulativo do segundo milênio perdeu de vista o conjunto e

comportou-se como um relojoeiro desajeitado, que se põe a manipular, des-

13 Denzinger-Hünermann (2007, n.1751).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 7: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

24

montar e classificar seu objeto de estudo para sistematizá-lo. Contudo, enquan-

to leva adiante em sua mesa de trabalho a acurada medição de cada componen-

te, não se dá conta de que o relógio já não existe, desde o momento em que

toda a dinâmica precedente se enrijeceu na paralisação das peças que tem em

mãos. Com esse método de pesquisa, a teologia sistemática acabou por reduzir

o mistério do altar a um sistema que responde a uma dinâmica de tipo mecani-

cista.

Para libertar-se desses condicionamentos, Cesare Giraudo se propõe a-

bandonar a metodologia parcial e estática do milênio especulativo que a produ-

ziu, para redescobrir a metodologia global e dinâmica que era típica dos Pa-

dres: estudar a eucaristia na Igreja, em torno do altar.

2.2.2. Uma teologia a partir da lex orandi

Ponto de partida obrigatório para quem queira percorrer o longo caminho

que conduz aos enunciados tridentinos no tocante à presença real e à transusbs-

tanciação é o tratado De corpore et sanguine Domini [Sobre o corpo e o sangue

do Senhor], de Pascásio Radberto (+858), abade de Corbie, que os modernos

consideram a primeira monografia científica sobre a eucaristia (Giraudo, 2003,

p. 416). Até então, os Padres, apesar de conhecerem este tipo de argumentação

reflexa14, se abstinham de usá-la em relação aos sacramentos, pois só sabiam

falar deles recorrendo àquela metodologia positiva documentada nas cateque-

ses mistagógicas15. À especulação objetivante e parcializante que se imporá,

sobretudo no Ocidente, de Radberto em diante, se contrapunha a teologia glo-

balizante dos séculos patrísticos, quando os Padres especulavam no culto e a

partir do culto. As catequeses mistagógicas dos Padres se apresentam como

verdadeiros tratados de teologia global e dinâmica, nas quais a lex credendi

irrompe de maneira vital da imediata compreensão da lex orandi.

Típico desta teologia dinâmica é a contínua referência ao momento ritual,

qual explicação primeira do dado teológico. De fato, são características as ex-

pressões que envolvem mistagogo e neófitos numa mesma busca de inteligên- 14 Que os Padres conheciam bem tal metodologia comprovam sobretudo as controvérsias teo-lógicas e trinitárias dos primeiros séculos. 15 São as catequeses que nos primeiros séculos eram feitas durante a oitava da Páscoa àqueles que foram batizados na Vigília Pascal e, portanto, estavam em condições de receber a iniciação aos mistérios cristãos, ou seja, aos sacramentos. O termo mistagogia significa justamente inici-ação aos mistérios = sacramentos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 8: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

25

cia da fé. A propósito, observemos algumas dessas expressões na mistagogia

sobre os Sacramentos de Santo Ambrósio (Ambrosio, 1972): “chegamos à fon-

te [1,4]... te aproximaste [1,9]... entraste [1,10]... foste interrogado... respondes-

te e entraste na água [2.20]... saíste da fonte [3,4]... vieste até o altar [4,8]”.

Tais expressões e tantas outras semelhantes, mais que simples artifício li-

terário de estilo oral, falam da imprescindível centralidade do momento cultual

em relação ao aprofundamento teológico.

Experimentemos esta metodologia, continuando a observar como Santo

Ambrósio imposta o seu tratado mistagógico sobre os sacramentos da iniciação

cristã, articulado em seis discursos na oitava da Páscoa: “Examinemos agora o

que seja aquilo que se chama batismo. Vieste à fonte, nela desceste, deste aten-

ção ao sumo sacerdote, aos levitas e viste o presbítero na fonte. O que é o ba-

tismo?” (Ambrosio, 1972, 2,26).

Em seguida, disserta sobre a relação primordial a partir da relação–tipo

que é Gn 2-3, e fala da sentença divina, devido ao pecado, que submeteu o ho-

mem à morte; sentença que o homem por si só não poderia cancelar. Apresen-

ta, assim, o batismo como remédio dado ao homem:

Todavia, para que a fraude ou as insídias do diabo não prevalecessem neste mundo, encontrou-se o batismo” [2,18].... Para desfazer a trama do diabo neste mundo, foi encontrado o meio pelo qual o homem vivo morresse e depois vivo ressurgisse ... Trata-se da vida vivente do corpo, quando ele viesse à fonte e en-trasse na fonte ... Portanto, a fonte é como uma sepultura (Ambrosio, 1972, 2,19).

E prossegue:

Foste interrogado: Crês em Deus Pai onipotente? Respondeste: Creio. E entraste na água, isto é, foste sepultado. De novo te perguntaram: Crês em nosso Senhor Jesus Cristo e na sua cruz? Respondeste: Creio. E entraste na água. Foste assim sepultado com Cristo. Com efeito, aquele que é sepultado com Cristo, ressurge com Cristo. Pela terceira vez te perguntaram: Crês no Espírito Santo? Respon-deste: Creio. E entraste na água pela terceira vez, a fim de que a tríplice confis-são absolvesse as inúmeras faltas da vida passada (Ambrosio, 1972, 2,20).

E explica:

É, portanto, morte, não na realidade de morte corporal, mas simbólica. Quando entras na água, recebes um símbolo da morte e da sepultura, recebes o sacra-mento de sua cruz, pois Cristo pendeu na cruz e o seu corpo foi nela fixado com cravos (Ambrosio, 1972, 2,23).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 9: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

26

Interpela ainda:

Entraste na água e vieste até o sacerdote. O que ele te disse? Deus Pai onipoten-te, que te regenerou pela água e pelo Espírito e te perdoou os teus pecados, ele também te unja para a vida eterna. Vês para que foste ungido: para a vida eterna (Ambrosio, 1972, 2,24).

Ao retomar a mistagogia no dia seguinte, Santo Ambrósio recorda aos

neófitos: “Assim também no batismo, do momento que é imagem da morte,

quando sais da água e ressurges, sem dúvida torna-se imagem da ressurreição”

[3,2].

Segue, agora, falando do sigilo espiritual que eles receberam:

Depois da fonte, resta ainda ser feita a perfeição, quando, pela invocação do sa-cerdote, infunde-se o Espírito, o Espírito da sabedoria e da inteligência, o Espí-rito do conselho e da força, o Espírito do conhecimento e da piedade e o Espíri-to do temor dado (Is 11,2-3), que são como que as sete virtudes do Espírito (Ambrosio, 1972, 3,8).

Mais além, Santo Ambrósio, inspirando-se em Jo 9,716, sintetiza o per-

curso feito pelo neófito:

Tu foste, te lavaste, vieste ao altar, começaste a ver o que antes não vias, isto é, pela fonte do Senhor e pelo anúncio da paixão do Senhor os teus olhos foram abertos. Tu que parecias ter o coração cego, começaste a ver a luz dos sacra-mentos (Ambrosio, 1972, 3,15).

Ao término da mistagogia do dia, os neófitos são despedidos com as se-

guintes palavras:

Portanto, caríssimos irmãos, viemos até o altar, a assunto mais rico. Por esse motivo, dada a hora, não podemos começar a explicação completa, pois esse tratado é mais longo. Basta por hoje o que foi dito. Amanhã, se ao Senhor agra-dar, trataremos dos sacramentos em si (Ambrosio, 1972, 3,15).

No dia seguinte, Santo Ambrósio, retoma o ensinamento: “Viestes até o

altar, olhaste os sacramentos postos sobre o altar e te admiraste dessa própria

criatura; todavia, é uma criatura solene e conhecida” (Ambrosio, 1972, 4,8).

Pondo-se no lugar do neófito, o bispo interpreta suas interrogações e ce-

dendo a uma exigência de exatidão, considera a consagração unicamente em

16 “E lhe disse: Vai lavar-te na piscina de Siloé (que quer dizer enviado). O cego foi, lavou-se e voltou vendo”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 10: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

27

relação às palavras institucionais17. “Talvez digas: meu pão é comum. Mas este

pão é pão antes das palavras sacramentais; depois da consagração, o pão se

transforma em carne de Cristo” (Ambrosio, 1972, 4,14).

Mais adiante, traz uma primeira conclusão: “Aprendeste, portanto, que o

pão se transforma em corpo de Cristo, e que é o vinho, que é a água que se der-

rama no cálice, mas que pela consagração celeste se transforma em sangue”

(Ambrosio, 1972, 4,19).

Depois desta explicação pontual, que isolada do contexto agradará muito

aos teólogos do II milênio teológico, intervém uma nota de elevada teologia

global e dinâmica:

Talvez digas: não vejo aparência18 de sangue. Mas há o símbolo19. Do mesmo modo como assumiste o símbolo da morte, assim também bebes o símbolo do precioso sangue20, para que não haja nenhum horror de sangue derramado21 e, no entanto, se realize o preço da redenção22. Aprendeste, portanto, que aquilo que recebes é o corpo de Cristo (Ambrosio, 1972, 4,20).

Tal exigência de clarificação, que ele mesmo suscitou nos neófitos, Am-

brósio responde reproduzindo toda a parte do cânon romano que vai do pedido

pela transformação das oblatas até o pedido pela transformação dos comungan-

tes, pedidos que enquadram a narração da instituição onde se repetem as pala-

vras de Cristo. Vejamos sua mistagogia (Ambrosio, 1972, 4,21-27):

Faze para nós com que esta oferta seja aprovada, espiritual, aceitável, porque é a figura do corpo e do sangue de nosso senhor Jesus Cristo [Epiclese sobre as o-blatas].

17 Com relação à eucaristia, os Padres da Igreja levam adiante ao mesmo tempo dois tipos de abordagem. Num primeiro momento se preocupam em atrair a atenção dos neófitos sobre a diferença substancial que existe entre o sacramento da eucaristia e os sacramentos do batismo e da crisma. Enquanto no batismo e na crisma, o que produz o efeito sacramental é, respectiva-mente, a água que permanece água e o óleo que permanece óleo, na eucaristia, pelo contrário, não é o pão e o vinho, mas o corpo e o sangue do Senhor sob o véu dos sinais sacramentais. Então, num segundo momento, os Padres da Igreja se preocupam por re-situar o fato da pre-sença real – provisoriamente extrapolado com finalidade didática – no quadro da dinâmica anafórica, lendo, portanto, a eficácia das palavras da instituição à luz do pedido epiclético. Giraudo (2003, p. 10, nota 11). 18 Aqui o termo latino species designa a aparência externa de uma coisa que cai sobre os senti-dos. 19 O termo latino similitudo como também figura se refere a uma noção altamente técnica, que exprime o nosso modo sacramental, justamente através da mediação do sinal figurativo, de representar a morte e ressurreição do Senhor. 20 A expressão “símbolo do precioso sangue” designa a nossa participação sacramental na morte de Cristo. 21 De fato, não seria possível comungar diretamente do sangue, sem a mediação do sinal figura-tivo. 22 O preço da redenção é o sangue de Cristo, isto é, sua morte salvífica.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 11: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

28

O qual, antes de sua paixão, tomou o pão em suas santas mãos, olhou para o céu, para ti, Pai santo, Deus todo-poderoso e eterno, deu graças, o abençoou, o partiu, e partindo o deu a seus apóstolos e discípulos, dizendo: Tomai e comei disso todos, porque isto é o meu corpo que será partido para muitos. Presta a-tenção. Do mesmo modo, tomou também o cálice depois da ceia, antes de sua paixão, olhou para o céu, para ti, Pai santo, Deus todo-poderoso e eterno, deu graças, o abençoou, deu a seus apóstolos e discípulos, dizendo: Tomai e bebei disso todos, porque este é o meu sangue ... Conhece então qual é a grandeza do sacramento. Vê o que ele diz: Todas as vezes que fizerdes isso, fazei-o em mi-nha memória, até o dia em que eu retornar [Relato da instituição].

E o sacerdote também diz: Celebrando, pois, a memória de sua gloriosíssima paixão, da ressurreição dos infernos e da ascensão ao céu, nós te oferecemos es-ta hóstia imaculada, hóstia espiritual, hóstia incruenta, este pão santo e o cálice da vida eterna [Anamnese].

E te pedimos e suplicamos para que aceites esta oferta no teu sublime altar pelas mãos dos teus anjos, assim como dignaste aceitar as ofertas do teu servo o justo Abel, o sacrifício do nosso patriarca Abraão e o que te ofereceu o sumo sacer-dote Melquisedec [Epiclese sobre os comungantes].

Embora sublinhando vigorosamente a eficácia operativa das palavras de

Cristo, Ambrósio não as isola do contexto oracional em que estão. Valendo-nos

ainda de uma imagem, podemos dizer que, em relação à eucaristia, o olho de

Ambrósio capta a cada instante a inteira dinâmica eucarística. Efetivamente, a

partir da consagração Ambrósio vê a epiclese e, a partir da epiclese, vê as pala-

vras da consagração. Enquanto está dirigindo toda a sua atenção à narração da

instituição, não perde de vista a anamnese, que estabelece uma relação interati-

va entre a oferta do pão-cálice sacramental e o memorial da morte-ressurreição

do Senhor. Sobretudo não perde de vista os dois componentes epicléticos que

expressam a finalidade última de nossas eucaristias, atestando que a “figura23

do corpo e do sangue do Senhor nosso Jesus Cristo” está orientada à transfor-

mação escatológica dos comungantes.

Para os Padres, a celebração da eucaristia se apresentava a eles como i-

magem, semelhança, símbolo, tipo, sacramento, mistério da paixão-morte-

ressurreição do Senhor; por isso, diziam que a eucaristia é imagem, semelhança

etc., da paixão-morte do Senhor ou que na eucaristia a paixão-morte do Senhor

está presente em imagem, em semelhança, em etc24.

Em conclusão, a expressão clássica dessa nova abordagem - que é, no en-

tanto, uma antiga e venerável metodologia - pode ser encontrada no primeiro

23 O termo figura é sinônimo de sacramento. 24 O exame do significado de cada termo nos dará a prova disso. Marsili et al (1983, p. 48-62).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 12: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

29

milênio teológico, com os Padres e suas catequeses mistagógicas, que constitu-

íram um itinerário-modelo para a teologia sacramental. Elas se apresentam

como verdadeiros tratados de teologia global e dinâmica, nos quais a lex cre-

dendi irrompe de modo vital da imediata compreensão da lex orandi. Para os

Padres e para o teólogo do I milênio, o lugar privilegiado em que estudavam os

sacramentos é a igreja. O altar é o verdadeiro mestre. É a lex orandi que senta

na cátedra, para dizer a todos o que é a eucaristia. Por isso, na busca de enten-

dimento do que celebravam, os Padres encontravam no culto e, a partir dele, o

lugar de produzir teologia (norma da oração que estabelece a norma da fé),

tornando-se o altar o verdadeiro mestre e a oração eclesial a fonte da inteligên-

cia do que se faz nos sacramentos.

Portanto, não perguntaremos ao homem da especulação reflexa o que ele diz da eucaristia. Perguntaremos, em primeiro lugar, à Igreja em oração, reunida sob a presidência do bispo ou do presbítero a celebrar o memorial da morte e ressur-reição do Senhor. Inspirando-nos na metodologia mistagógica de Ambrósio, perguntaremos por isso: 'o que é a eucaristia'? E ouviremos o mistagogo res-ponder: 'Trata de ver com que palavras se celebra a eucaristia!25.

2.3. A lex orandi, lugar teológico

A compreensão teológica da celebração significa reconhecer a liturgia

como “lugar teológico” Por isso a nossa tarefa agora é de precisar os conceitos

de lex orandi e de “lugar teológico”.

2.3.1. A liturgia, celebração da fé

A liturgia constitui um riquíssimo testemunho da fé da Igreja, como vi-

mos acima, à disposição de todos. O dogma encontra-se na liturgia, assimilado,

contemplado e traduzido nos ritos e nas orações. As ações litúrgicas são a fé

confessada, aceita, tornada oração e louvor, reforçada pela unidade de toda a

comunidade, pela comunhão com toda a Igreja. Nada, na liturgia, escapa desse

caráter expressivo da fé. O cerimonial, a estética, as imagens, a música, a arte

em todas as suas formas, tudo está a serviço do mistério, a serviço da fé (Cas-

singena-Trevedy, 2004-3, p.121-143). Na liturgia a fé se faz verdade ao alcan-

ce de todos, e para isso lança mão de todos os recursos, tendo em vista cativar a

25 Ambrosio de Milão (De sacramentis 2, 16. SC 25, p. 82-83 ; in Giraudo, 2003, p. 21). Essa pergunta, referida ao Batismo, é adaptada à eucaristia.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 13: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

30

inteligência, inflamar a vontade, enriquecer a imaginação, fortalecer as convic-

ções mais profundas26.

Mas a liturgia não é um testemunho fossilizado, pertencente ao passado.

Inclusive quando se examinam os livros litúrgicos antigos e se estudam os for-

mulários que já estão fora de uso não se pode prescindir, para sua correta inter-

pretação, do fato de que são textos que acompanham uma ação, que fazem par-

te dela. E se nos perguntarmos em que momento verdadeiramente a liturgia

expressa a fé, temos que dizer que é quando ela é celebrada, ou seja, quando se

faz memória, quando se rendem graças, quando se intercede, quando se atuali-

za o mistério de salvação. A celebração é, portanto, o momento expressivo,

ritual e sacramental da fé que confessamos. É nesse nível do sinal e do rito, da

assembléia e da ação, num determinado lugar e no marco de um tempo celebra-

tivo ou festivo que se dá o encontro do homem com o mistério, com a pessoa

de Jesus ressuscitado, que já está fora das dimensões históricas do espaço e do

tempo.

A celebração é, pois, âmbito e lugar do encontro objetivo com o mistério

da fé e, não só no nível da sensibilidade subjetiva ou da experiência religiosa. E

uma vez que a fé não é só uma dimensão intelectual, pois compromete o ho-

mem todo, toda a pessoa, a celebração litúrgica torna possível a união de todo o

nosso ser com o objeto da fé, ou seja, com o Deus vivo revelado por Jesus Cris-

to e comunicado no Espírito Santo. Participar da celebração litúrgica implica

não só confessar a fé, mas também vivê-la. Na expressão litúrgica a fé alcança

sua configuração mais plena e se converte em autêntica entrega do homem a

Deus.

A expressão do ato de fé na liturgia orienta plenamente o homem para a realida-de do ato salvador em Jesus e ao mesmo tempo, e precisamente por este cami-nho, a obra salvadora penetra na vivência humana da fé. O Deus da salvação es-tá presente e atuante apenas em e pelo homem que se expressa perante Deus. Na liturgia e por ela a totalidade da pessoa humana dirige-se para Deus (trans-ascendência). Por isso a liturgia é a harmoniosa comunicação do homem religi-oso com Deus, e de Deus com o homem religioso. Não se discute que nesta co-municação Deus toma a iniciativa. Já que se fala de um momento ativo (o sím-bolo como expressão do homem) e passivo (o mesmo símbolo como expressão de Deus), pode-se dizer que a fé se concretiza na liturgia e por ela, como tam-bém que a fé nos é concretizada na liturgia e por ela (Lukken, 1973-2, p. 150-151).

26 “A fonte da teologia é a fé da Igreja, não só a fé explicitada em dogmas e outras verbaliza-ções, mas também a fé vivida concretamente em obras, nos símbolos, nos ritos” (In Schillebe-eckx, 1968, p. 189-192).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 14: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

31

Dito isso, estamos afirmando que a liturgia é expressão da fé da Igreja.

Isso tem importantes conseqüências não só para a vivência da fé na celebração,

como também para a reflexão sobre os mistérios da fé celebrados na liturgia. A

liturgia assume assim a função de lócus theologicus da fé da Igreja. Trata-se de

uma conseqüência da liturgia como expressão da fé. O Padre Marsili assim

formulava essa conseqüência:

“Precisamente porque a liturgia é expressão da fé, quase que inevitavelmente assume funções de teologia, enquanto re-pensamento da realidade da fé, con-templada no plano da atualização ritual. Nesse sentido, deve-se reconhecer que a liturgia tem uma característica teológica essencial, que jamais será abandona-da: a de ser uma formulação de fé repensada e expressa em função do culto” (Marsili, 1972, p. 456).

2.3.2. Liturgia, lex orandi-lex credendi

A metodologia mistagógica dos Padres da Igreja, conforme nos tem de-

monstrado Santo Ambrósio, apresenta a lex orandi como mestra da fé ao con-

siderar a liturgia como fonte de autoridade para compreender a revelação. O

axioma “a norma do orar estabelece a norma do crer” [lex orandi-lex credendi]

sintetiza bem esse ensinamento patrístico (Taborda, 2003, p.77).

Para entender toda a riqueza contida nesse axioma, síntese de uma meto-

dologia praticada pelos Padres, revitalizada no início do século XX e recupera-

da por Giraudo e outros para a construção de uma teologia eucarística, é útil

conhecer o processo de sua formulação.

O axioma aparece no “Pequeno catálogo da graça de Deus” [Indiculus de

gratia Dei] ou “Capítulos da graça” [Capitula gratiae], texto da Cúria Romana

(435-442), atribuído ao papa Celestino I, na seguinte formulação: “para que a

norma do orar estabeleça a norma do crer” [ut legem credendi lex statuat sup-

plicandi] 27. A investigação histórica levou ao verdadeiro autor: Próspero de

Aquitânia, leigo de formação teológica, que esteve em Marselha por ocasião da

fundação do Mosteiro de Lérins. Próspero, contudo, jamais se tornou monge.

Depois viajou a Roma em 431, para obter de Celestino I uma carta contra as

heresias dos mosteiros da Provença. Voltou a Marselha, onde permaneceu até a

morte de João Cassiano, quando se mudou para Roma. Lá se pôs a serviço do

Papa Leão Magno. 27 Embora, sintaticamente, encontremos o adágio em uma oração subordinada, a norma do orar

é a premissa maior para a argumentação do autor (Taborda, 2003, p. 74).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 15: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

32

Discípulo de Agostinho, Próspero teve como contexto vital a polêmica do

semipelagianismo28 que atribuía ao homem o início da fé [initium fidei] para

salvaguardar o livre arbítrio e a prática do ascetismo. O Indiculus recorre à au-

toridade dos papas, fazendo uma coletânea de textos para provar a necessidade

da graça para o início da fé, não comprometendo, com isso, o livre arbítrio29.

O argumento de Próspero para provar a iniciativa da graça de Deus para

o início da fé é exatamente a norma da oração, por isso escreve:

Além dessas decisões invioláveis da beatíssima Sé Apostólica, com as quais os piedosíssimos Padres, rejeitando o orgulho da pestífera novidade, nos ensinaram a atribuir à graça de Cristo tanto os inícios da boa vontade, quanto os progressos devidos a esforços louváveis e a perseverança neles até o fim, consideremos também os sacramentos das súplicas sacerdotais, que, transmitidos pelos após-tolos, são celebrados uniformemente em todo o mundo e em toda Igreja católi-ca, para que a norma do orar estabeleça a norma do crer [ut legem credendi

lex statuat supplicandi] 30.

Nesse texto, tem-se o claro testemunho da liturgia como fonte de conhe-

cimento teológico, pois Próspero considera os “sacramentos das súplicas sacer-

dotais” argumento e norma para o crer. A conversão como dom ou graça é efei-

to da oração da Igreja, que suplica a Deus por todos, indistintamente. É uma

norma que nasce da súplica da comunidade [lex supplicandi]; e mais, uma or-

dem [ordo suplicationis], segundo a palavra de Paulo a Timoteo (2Tm 2, 1-6)31

comentada na obra de Próspero “Sobre a vocação de todos os povos” [De voca-

tione omnium gentium]. Isso significa que a obrigação de suplicar a Deus por

todos obriga a crer na graça para todos32.

28 Pelágio (+427) nega a necessidade da graça para a realização do bem. Agostinho absolutiza a necessidade da graça. Os semipelagianos procuram um meio termo, considerando necessário o esforço ascético e espiritual. Por isso, o ser humano deve tomar a inciativa para obter a graça. Próspero, envolvendo-se na polêmica contra os semipelagianos, mantém contato espistolar com Agostinho que lhe envia duas obras: “A predestinação dos santos” [De predestinatione sanctorum] e “O dom da perseverança” [De dono perseverantiae] (In Taborda, 2003, p. 72). 29 Próspero de Aquitânia: De gratia Dei et libero voluntatis arbítrio, 8 (Pastorale Liturgica 51, p. 209-210 – in Denzinger-Hünermann, 246). A obra é mais conhecida como “indiculus de gratia Dei” e também chamada de “Capitula de gratia”. (In Taborda, 2003, p. 72, nota 4). 30 Todo o capítulo 8 do “indiculus de gratia Dei” pode ser lido em Denzinger-Hünermann, 246. 31 “Eu recomendo, pois, antes de tudo, que se façam pedidos, orações, súplicas e ações de gra-ças, por todos os homens, pelos reis e todos os que detêm a autoridade, a fim de que levemos uma vida calma e serena, com toda piedade e dignidade. Eis o que é bom e aceitável diante de Deus, nosso salvador, que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus, que se deu em resgate por todos” (2Tm 2, 1-6). 32 “Ao tentar identificar a lex supplicandi que deve determinar a lex credendi, os liturgistas, a partir dos exemplos dados por Próspero, muitas vezes pensaram tratar-se de uma ação litúrgica concreta, a oração universal da Sexta-feira Santa, cujas intenções apresentam notável seme-

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 16: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

33

“Na Igreja católica deve-se cuidar sobremaneira de manter o que foi crido em toda parte, sempre e por todos [quod ubique, quod semper, quod ab omnibus

creditum est]. Pois é verdadeira e propriamente católico o que – como o mostra a força mesma e a etimologia do nome – abraça quase universalmente tudo. Mas isso acontecerá só se seguirmos a universalidade, a antiguidade, o consenso unânime. Seguiremos a universalidade, se afirmarmos que é verdadeira só a fé que a Igreja inteira professa por todo o orbe terrestre; a antiguidade, se de ne-nhum modo nos afastamos do sentido que manifestamente abraçaram nossos santos antepassados e pais; seguiremos igualmente o consenso unânime, se, em relação a essa mesma antiguidade, nos ativermos às definições e às sentenças de todos, ou pelo menos de quase todos, os sacerdotes e mestres”33.

A liturgia é lugar teológico quando segue os seguintes critérios: a funda-

mentação escriturística, o uso da Igreja ou sensus Ecclesiae, a prática litúrgica,

especialmente, desde a origem apostólica, conhecida por todas as Igrejas no

mundo todo, e o conteúdo da prece, como diz Taborda (2003, p.76). “A norma

permite, portanto, concluir que a lex orandi é o próprio sensus fidelium, a uni-

versalidade no tempo e no espaço daquilo que a Igreja, conduzida pelo Espírito

Santo, faz ao orar” (Taborda, 2003, p. 76).

Celebrando a vida da comunidade em Cristo, os Padres sempre reconhe-

ceram a liturgia como fonte da teologia. Em uma palavra, a idade patrística

floresceu considerando a liturgia como autoridade, em virtude do uso eclesial

que forjava o sentido de ser Igreja.

A autoridade da liturgia para os Padres é tal que impõe a obrigação da obser-vância dos ritos, palavras e usos para a adesão às crenças implicadas neles. Os Padres recorrem, pois, à liturgia quando crêem oportuno inculcar tal obrigação (Vagaggini, 1959, p. 572).

Na questão da validade do batismo dos hereges, em que discordavam Ci-

priano e o papa Estêvão, o ponto essencial de base para as reflexões era a auto-

ridade da liturgia em uso nas Igrejas. Nas dispustas trinitárias, a liturgia foi

essencial. Nesse caso, Orígenes usou as preces anafóricas contra os modalistas

e Basílio, a doxologia na sua obra De Spiritu Sancto (15-17) 34.

lhança com a lista fornecida por Próspero. Entretanto, considerando mais de perto o texto, vê-se que a lex em questão não é um texto litúrgico, nem qualquer uso ou determinada maneira de orar, mas a “ordem” de Paulo, em 1 Tm 2,1-2, para que se interceda por toda a humanidade. O texto é, aliás, uma simples recomendação, mas Próspero o interpreta como ordem, lei, preceito, obrigação. É a lex supplicandi ou o ordo suplicationis”. (In Taborda, 2003, p. 75). 33 Vicente de Lérins, Commonitorium 2 (PL 50, 640). (In Giraudo 2003, p. 17-18). 34 “En la controversia sobre la validez del bautismo conferido por los herejes, que puso en oposición a San Cipriano y al papa San Esteban, uno de los puntos esenciales, incluso tal vez el punto esencial, fue precisamente el de la autoridad del uso litúrgico relativo a las respectivas iglesias. En las luchas trinitarias, el recurso a la autoridad de la liturgia tuvo una parte impor-

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 17: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

34

Optato de Mileve e Agostinho contra os donatistas e Jerônimo contra Vi-

gilâncio tampouco deixaram de recorrer à autoridade da liturgia para ensinar a

comunidade (Vagaggini, 1959, p.575). Contudo, foram Agostinho e seu discí-

pulo Próspero de Aquitânia, no debate com Pelágio e os semipelagianos, que

consagraram o axioma lex orandi-lex credendi.

Giraudo propõe recuperar essa experiência patrística da liturgia como lu-

gar teológico. Contudo, antes de fazer esse caminho, é fundamental tomar

consciência de um perigo nesse método mistagógico. A relação entre teologia e

liturgia nos coloca diante de um problema epistemológico de fronteira. Esta-

mos relacionando dois campos diferentes, e não podemos ignorar “o caráter

próprio da liturgia, que não é racional e discursivo (próprio da teologia), mas

simbólico, existencial e celebração do mistério. Se, porém, é preciso manter a

diferença de linguagem dos dois âmbitos distintos, a celebração e a doutrina,

levanta-se o problema de como relacionar liturgia e teologia, como a liturgia,

que, por natureza, é simbólica, comunitária, pode ser fonte adequada de conhe-

cimento teológico” (Taborda, 2003, p. 80). É importante respeitar os âmbitos

lingüísticos e, sobretudo, deixar a liturgia respirar teologia pelos seus poros

próprios.

2.3.3. A liturgia, ortodoxia da fé

O que acabamos de dizer sobre a liturgia, como portadora da fé da Igreja

em expressões concretas, nos obriga a considerar também outro aspecto impor-

tante: trata-se da pureza doutrinal dos textos litúrgicos.

A preocupação com a ortodoxia na liturgia não é nova, como a história o

demonstra. Nos primeiros séculos, quando se improvisavam os textos dentro de

um esquema fixo, apelava-se à tradição apostólica como garantia de pureza

doutrinal, e textos, como o da Tradição Apostólica, eram propostos como mo-

delo de ortodoxia. Mais tarde, quando começaram a formar-se os principais

ritos litúrgicos locais, era suficiente a referência a uma sede episcopal, especi-

almente àquela de onde se originara a evangelização, para que a totalidade do

tante. Orígenes, por ejemplo, recurría a las preces anafórica en sus discusiones contra los mo-dalistas. El recurso a los textos litúrgicos trinitarios estuvo al orden del día en la controvérsia contra los arrrianos e anti-arrianos. El caso más célebre es la controvérsia sobre el sentido de la doxologia liturgica como la conocemos por médio de los capítulos 15-17 de la obra De Spiritu Sancto, de San Basílio”. (Vagaggini ,1959, p. 574-575).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 18: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

35

rito fosse considerada válida no plano da fé (Neunheuser, 1972).

A difusão do Rito Romano pela Europa, durante a Idade Média, decorreu

não só do esgotamento da capacidade criadora em algumas áreas, mas princi-

palmente da convicção de que a liturgia de Roma gozava de singular pureza

doutrinal.

No Concílio de Trento, como conseqüência da reforma protestante, pro-

curou-se oferecer à Igreja alguns livros litúrgicos válidos e seguros, livres de

superstições e de falsos devocionalismos. O Concílio não chegou a realizar a

tarefa, confiando-a ao Papa. São Pio V promulgou o missal em 1570 e, dois

anos antes, o breviário, unificando totalmente o rito romano (Cattaneo, 1978, p.

360-378).

Por isso, quando se desencadeia a reforma litúrgica desejada e ordenada

pelo Vaticano II, a revisão dos livros constitui uma tarefa prioritária. Os tem-

pos mudaram muito em relação à situação que a Igreja vivia nos dias de Tren-

to. Por isso, sem descartar a preocupação doutrinal, a reforma litúrgica guiou-

se por uma intenção mais pastoral e ecumênica. O princípio era formulado des-

te modo pelo próprio Concílio: “o texto e as cerimônias devem ordenar-se de

tal modo, que de fato exprimam mais claramente as coisas santas que eles sig-

nificam e o povo cristão possa compreendê-las facilmente, na medida do possí-

vel, e também participar plena e ativamente da celebração comunitária” (SC

21). Todos eles foram objeto de um cuidadoso e detalhado exame não só nas

comissões do Consilium, como também da Congregação para a Doutrina da

Fé35.

Alguns autores vêem esse fato, que não é novo na história da liturgia,

com certa suspeição e lamentam que a liturgia, que eles chamam de “theologia

prima” por ser anterior à “theologia secunda” ou reflexão dogmática, seja con-

dicionada por esta; e, assim, que a “orthodoxia prima” ou o louvor correto que

cabe à liturgia e que é mais rica e mais eficaz do que qualquer outra formula-

ção da fé, dependa finalmente da “orthodoxia secunda” ou correta formulação

doutrinal. Esses autores acusam a “orthodoxia secunda” (numa palavra, o dog-

ma) de ter-se convertido numa sentinela que vive a espreitar a expressão da fé

na liturgia. E para que não haja dúvida quanto ao alvo dos ataques, afirmam:

35 Isso é comprovado, estudando-se as centenas de “schemata” dos diferentes “coetus” do “Consilium” e da Sagrada Congregação para o Culto Divino. (In Bugnini, 1983).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 19: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

36

“A expressão litúrgica da fé submete-se, em última instância, à aprovação da

Congregação para a Doutrina da Fé, que tende facilmente a desconfiar e a frear

a expressão litúrgica viva, dada sua unilateral concepção da ortodoxia” (Luk-

ken, 1979, p.157). Involuntariamente, reaparece aqui a peculiar interpretação

do adágio lex orandi-lex credendi feita pelos modernistas, à qual aludiremos

posteriormente.

A revisão dos livros litúrgicos atuais, em suas edições típicas e nas edi-

ções oficiais traduzidas para as línguas modernas, exigiu um grande esforço

para se conseguir que os textos e a organização dos ritos evidenciassem a fé e,

ao mesmo tempo, a robustecessem e a alimentassem.

Tudo isso demonstra o condicionamento mútuo que existe entre a fé e a

liturgia, e, naturalmente, as conseqüências que decorrem do fato de se adotar

diante dele uma atitude de respeito e fidelidade ou, ao contrário, uma atitude de

indisciplina e leviandade. Não é só uma questão de autoridade e de fidelidade,

mas também de que a Igreja possa reconhecer como sua a fé que se expressa na

celebração.

2.3.4. A liturgia, theologia e orthodoxia prima

Antigamente a Igreja, sobretudo no Oriente, falava da liturgia como theo-

logia prima e da reflexão dogmática como theologia secunda. E a palavra or-

thodoxia significa, antes de tudo, genuíno louvor (ortho-doxia) na liturgia, en-

quanto somente no sentido derivado significa doutrina verdadeira. Assim

poderíamos falar de uma orthodoxia prima e uma orthodoxia secunda.

As expressões theologia prima e orthodoxia prima apontam a liturgia

como o lugar primordial em que se realiza a verdadeira fé. E como tal, a litur-

gia é a primeira fonte e norma para a doutrina. Na liturgia da Igreja realiza-se a

fé na forma mais original, penetrante e fiel. Por meio deste conjunto de pala-

vras, símbolos e ritos, que apelam ao homem em todas as suas faculdades, é

concretizada em Jesus e por seu Espírito a doação real de Deus ao homem e do

homem a Deus. Este encontro profundo e harmonioso dá-se exatamente medi-

ante a expressão total da liturgia, e não pode realizar-se desta maneira por ou-

tros caminhos; daí ser a expressão litúrgica notavelmente mais rica do que

qualquer outra expressão teórica da fé em dogmas e definições. A reflexão teo-

lógica e a formulação da doutrina encontrarão, portanto, seu terreno fertilizante

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 20: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

37

na expressão total da fé na liturgia.

Aos poucos esta visão ficou obscurecida na Igreja. Desde o Concílio de

Trento, principalmente, a liturgia e a teologia se afastaram uma da outra cada

vez mais. Esse afastamento chegou até a tal ponto, que os teólogos refletiram

de modo puramente especulativo sobre os sacramentos, sem considerar os tex-

tos e os ritos da liturgia como fonte primária de seu raciocínio.

Em conseqüência, o nosso adágio ficou esquecido, até que no século

XIX, Prosper Guéranger (+ 1875), um dos iniciadores do movimento litúrgico,

o ressuscitou, fazendo valer não só no sentido de Próspero, da lex orandi à lex

credendi, mas também num sentido novo, invertendo o adágio, ou seja, a lex

credendi determina a lex orandi.

A partir dessa perspectiva, o adágio começa a ser usado em documentos

pontifícios. Pio IX emprega-o na bula Ineffabilis Deus, de 8 de dezembro de

1854, para fundamentar o dogma da imaculada conceição, proclamado por essa

bula36. Pio XI emprega o adágio na encíclica Quas primas, de 11 de dezembro

de 1925, com a qual institui a festa de Cristo Rei37, e na constituição apostólica

Divini cultus, de 20 de dezembro de 1928, sobre a liturgia e o canto gregoria-

no38. Pio XII recorre ao adágio na encíclica Divino afflante Spiritu, de 30 de

setembro de 1943, sobre a Sagrada Escritura39 e na constituição apostólica Mu-

nificentissimus Deus, de 1º de novembro de 1950, com que proclamou o dog-

ma da assunção de Nossa Senhora40.

Mas foi na encíclica Mediator Dei, de 1947, que abordou diretamente o

axioma. Primeiramente rejeita a interpretação modernista de G. Tyrrell que, a

partir do adágio, entende a liturgia como experiência da verdade: se uma dou-

trina na liturgia produz frutos de piedade e vida cristã, a Igreja a aprova; caso

contrário, a rejeita. A vivência religiosa subjetiva se tornaria norma de fé. Ex-

plicando o adágio, Pio XII o usa em duas mãos: a lex orandi-lex credendi se

torna também lex credendi-lex orandi. Ou seja: encontra nele dois sentidos

distintos: por um lado, como vinha sendo assumido em sentido tradicional, a

liturgia justifica a doutrina; por outro, tira daí a conseqüência de que então o

36 Acta et decreta Sacrorum Conciliorum recentiorum. Collectio Lacensis VI, Friburgi Brisgoviae: Herder, 1882, p. 836-843 (aqui: 837). In Taborda, 2003, p. 78, nota 21. 37 Acta Apostolicae Sedis (AAS) 17 (1925), p. 598. 38 AAS 21 (1929), p. 33-34. 39 AAS 35 (1943), p. 311. Denzinger-Hünermann, 2007, 3828. 40 AAS 42 (1950), p. 758-760 e p. 769.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 21: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

38

magistério deve regrar o uso litúrgico. Ao princípio de que a lei do suplicar

deve estabelecer a lei do crer [legem credendi lex statuat supplicandi] acres-

centa sua inversão: a lei do crer deve estabelecer a lei do suplicar [lex credendi

legem statuat supplicandi]41.

De Clerck considera essa inversão do adágio uma concepção não tradi-

cional e tão unilateral como a de Tyrrell, criticada por Pio XII. Entretanto, Wa-

inwright mostrou que o controle da liturgia com fins dogmáticos pertence à

tradição da Igreja, foi praticada na antiguidade, é usual na Igreja Católica e

também conhecida nas Igrejas oriundas da Reforma 42. Essa inversão do axio-

ma se fixa mais na liturgia como forma de transmitir determinada idéia e não

como celebração do mistério, conforme os três critérios de Próspero: funda-

mentação bíblica, uso imemorial e universal da Igreja, conteúdo da prece.

2.3.5. A liturgia, lugar teológico

A expressão “lugar teológico” evoca a problemática de um momento da

ciência teológica, mais precisamente o da teologia argumentativa. Ela remonta

a Melchior Cano (+ 1560), cuja obra intitulada “De Locis Theologicis” siste-

matiza a questão dos lugares teológicos. Ele pretendia escorar sua autoridade

nos “tópicos” de Aristóteles, propondo alguns lugares especiais que são como

os domicílios locis de todos os argumentos teológicos, quer para provar, quer

para refutar todas as argumentações. Dentre os dez lugares que ele cita, não se

encontra a liturgia. Talvez a liturgia não seja um lugar teológico no sentido

habitual desta palavra. No entanto, em todas as épocas, vozes autorizadas, co-

mo os Padres da Igreja, sublinharam sua importância como testemunho da fé

da Igreja. Ignorar essa condição da liturgia acarretou conseqüências históricas

tanto para a teologia como para a liturgia, visto que o livro de Cano foi durante

séculos uma obra fundamental e determinante para a metodologia teológica.

O termo liturgia passou a cobrir apenas uma parte de seu conceito inicial

e o notável desenvolvimento de uma teologia científica coincidiu com um de-

plorável enfraquecimento do sentido litúrgico, abafado pelas preocupações

com obrigações canônicas e pela proliferação de um cerimonialismo rubricista.

Somente nos séculos XVII e XVIII a liturgia começa a despontar como ciência.

41 AAS 39 (1947) p. 541). 42 Wainwright (1980, p. 251-271; in Taborda, 2003, p. 79)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 22: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

39

A partir desse momento a liturgia será apresentada como lugar teológico. En-

tretanto, não haverá, na prática, consenso entre os teólogos. Ela continuará a

ser considerada como confirmação de teses dogmáticas.

Por essa razão, ainda hoje, muitos autores não apresentam a liturgia como

lugar teológico. O grande teólogo da liturgia, Salvatore Marsili, referindo-se a

essa questão, escreve:

Hoje, porém, parece-nos que esta seja uma questão felizmente superada, como e porque foi superada aquela da Escritura lócus theologicus. Digo: como e por-que, pelo fato que a descoberta da profunda ligação intercorrente entre a Escri-tura e a Liturgia põe esta ao lado daquela em recíproca relação com a Teologia. O lócus theologicus fazia da Escritura nem mais nem menos um dos vários pon-tos de apoio de uma certa tese teológica, isto é, de uma certa posição de pensa-mento, tornando-se elemento de confirmação de autoridade de uma determinada maneira de ver conceitualmente o dado da fé. Em situação totalmente análoga – ainda que o recurso a essa fosse muito menor e menos freqüente, para não dizer nulo – se encontrava a Liturgia. Hoje nem a Escritura nem a Liturgia são um lu-gar - uma mina de ouro da qual extrair testemunhos em favor de uma determi-nada tese de teológia, mas são, seja mesmo em posição diversa e interdependen-te – a Escritura se revela e se atua na Liturgia – fonte verdadeiras e própria de teologia (Marsili, 1972, p. 458).

Também, outros teólogos declaram: “O supremo valor da liturgia não é da

ordem de um arsenal de argumentos, mas no fato que ela é a didascália da Igreja. Ela

incorpora e traduz ao máximo o sentido católico da Igreja” (Congar, 1967, p.160). E

prossegue Dalmais (1964, p.100): “É preciso elevar a liturgia para além da noção de

lugar teológico, até à noção mesma de teologia”.

Portanto, tendo presente este rastro de concepção que carrega a expressão

“lugar teológico”, podemos concordar em que, na busca de uma formulação

apta para expressar a preeminência lógica da oração da Igreja sobre as formu-

lações dogmáticas correspondentes, a preferência deve ser dada ao axioma le-

gem credendi lex statuit supplicandi (a norma do suplicar estabelece a norma

do crer). Contudo, deve-se dizer que o axioma não pode ser interpretado sim-

plesmente como se o uso litúrgico nos fornecesse a norma da fé.

Orientando-nos por Próspero de Aquitânia (in Taborda, 2003), o criador

do axioma em sua forma consagrada, poderíamos indicar três passos para o uso

adequado da liturgia como lugar teológico. Deve-se, primeiramente, perguntar

a que lex, a que lei de Escritura a prática litúrgica em questão obedece. Num

segundo passo, cabe observar como a Igreja, ao concretizar essa prática litúrgi-

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 23: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

40

ca em realizações particulares que a universalizam, responde aos dados escritu-

rísticos que a fundamentam. Um terceiro passo seria interrogar como a liturgia,

com seus ritos e textos, celebra aquela “lei” da Escritura. Além disso, seria

preciso levar em consideração como se pode e deve ser fiel àquela “lei”, res-

pondendo às necessidades dos cristãos de hoje ou das pessoas que chegam à fé

a partir de determinado ambiente cultural completamente estranho ao mundo

mediterrâneo de cultura semítico-helenistica (inculturação da liturgia) (Tabor-

da, 2003, p. 81).

Assim Beauduin (1912/1913) parafraseava a antiga fórmula: “Dizei-me

como orava Agostinho em Hipona, Ambrósio em Milão, Isidoro em Sevilha,

Gregório em Nissa, Crisóstomo em Constantinopla, e vos diremos todo o Cre-

do de suas respectivas Igrejas”.

Nesse sentido, a escola da lex orandi nos fará penetrar na teologia da eu-

caristia a partir das riquezas da liturgia, especialmente da oração eucarística.

Giraudo nos conduzirá no retorno a essa metodologia dos Padres e mostrará

sua relevância calcada no testemunho histórico que pudemos constatar na leitu-

ra acima.

2.4. Do método estático da lex credendi ao método dinâmico da lex orandi

Um motivo pelo qual Giraudo retoma a teologia da lex orandi, encontra-

se no duplo mal-estar, celebrativo e especulativo (Giraudo, 2003, p.1), vivido

pelos cristãos de hoje, herança da teologia estática do segundo milênio. Para

verificar esse mal-estar celebrativo nas assembléias litúrgicas, basta ver que

ainda grande parte dos cristãos católicos continuam celebrando a eucaristia, ou

“assistindo a missa”, reduzindo-a à consagração.

Esse mal-estar de ordem celebrativa, segundo Giraudo, tem suas raízes

profundas no mal-estar de ordem especulativa. A atual práxis celebrativa é her-

deira de uma teologia sacramental feita nos “bancos de uma sala de aula” (Gi-

raudo, 2002, p.9). A especulação teológica se tornara um laboratório para des-

cobrir e apresentar “idéias claras e distintas” a respeito da eucaristia. A

pergunta fundamental era explicar a presença de Cristo na eucaristia com seu

corpo, sangue, alma e divindade.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 24: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

41

A fim de compreender melhor a dinâmica do mistério eucarístico, os teólogos latinos - aqui temos em mente a Pedro Lombardo (+1160), o pai da Escolástica -comportaram-se como um relojoeiro, que com finalidade de apossar-se dos se-gredos de um relógio em perfeito funcionamento, apressa-se em desmontá-lo. Contudo, enquanto leva adiante em sua mesa de trabalho a acurada medição de cada componente, não se dá conta de que o relógio já não existe, desde o mo-mento em que toda a dinâmica precedente se enrijeceu na paralisia das peças que tem em mãos. Sem metáfora, com seu método de pesquisa, a teologia sis-temática acabou por reduzir o mistério do altar a sistema, a um sistema que res-ponde a uma dinâmica de tipo mecanicista. Foi exatamente essa que induziu o teólogo especulativo a seccionar, separar, desunir, manipular, desmontar, cortar e classificar até o limite dos recursos lógicos o fato sacramental, sempre obvia-mente na tentativa sincera de aclarar, organizar, sistematizar (Giraudo,2003, p. 5).

2.4.1. O método estático

Dentre os métodos que, durante a época pós-tridentina, presidiram a ela-

boração do tratado “Sobre a Eucaristia” [De Eucharistia], deve ser menciona-

do, sob uma denominação genérica, o método regressivo ou estático (Giraudo,

1990, p.870). Essa forma de lidar com o estudo da teologia sacramental, herda-

da de Pedro Lombardo, configurou, agora obrigatoriamente, a lex credendi.

Os limites desse gênero de estudo podem ser facilmente reconhecidos.

Não é próprio desse gênero elucidar a inteligência do mistério da eucaristia a

partir das Escrituras [norma normans non normata] e, menos, da oração eclesi-

al [lex orandi].

Utilizava-se o seguinte método: sobre a base das declarações do Magisté-

rio, a preocupação era analisar os documentos conciliares, extrair as afirmações

capitais e, em seguida, organizar essas afirmações para formar um sistema

“claro e distinto” que possibilitaria a defesa contra todas as objeções formula-

das por um adversário. As Sagradas Escrituras, por sua vez, eram utilizadas

para fazer as amarrações das definições elaboradas.

Como esse método tratava as Escrituras Sagradas? Sem dúvida os autores dos manuais clássicos se propuseram, nas suas teorias, a abordar os textos revela-dos, após estarem seguros de poder interpretá-los conforme toda a Tradição; de fato, eles os utilizam em função das necessidades para demonstrar sua tese. [...] Contentavam-se em garimpar nas Sagradas Escrituras versículos, semiversícu-los ou ainda fragmentos isolados (Giraudo, 1990, p.871).

A eucaristia se tornou “missa”, um rito estudado com veneração em defe-

sa da fé, por teólogos como J. A. Franzelin, Ad. Tanquarey e I Filograssi, ex-

poentes em sua época (Giraudo 2003, p. 3-5).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 25: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

42

2.4.2. O método progressivo

O domínio do método regressivo ou estático nos tratados pós-tridentinos

levou, como reação da teologia moderna, ao método progressivo na teologia

sacramental. Esse método tem suas raízes na teologia histórica e, por isso, é um

método histórico. Parte dos textos bíblicos, passa pelos Padres e faz uma busca

histórica pelo desenvolvimento dos dogmas e declarações conciliares, com as

intervenções do magistério em diferentes estágios da reflexão teológica.

Um expoente significativo desse método é Alexander Gerken (1973, in

Giraudo, 2002, p.872), responsável pela recuperação de um sério estudo bíbli-

co-histórico de teologia sacramental eucarística. Apesar de todo o ganho desse

método, ele apresenta limites. Se o pêndulo estava em movimento acentuado

para um lado, agora girou fortemente para outro. Assim, com o método históri-

co, caímos no perigo de ver as Escrituras como prolegômenos ou introdução,

úteis sem dúvida, mas passíveis de esquecimento na medida em que se adentra

no processo de argumentação. Outro limite que esse método progressivo com-

partilha com a teologia regressiva ou estática é a falta de qualquer referência

metodológica à oração da Igreja ou lex orandi, a qual, governada [normata]

pelas Escrituras, governa [normans] a fé da comunidade eclesial.

Na busca de um maior entendimento do mistério da eucaristia, esses dois

métodos esqueceram-se do essencial. Não deram conta de trabalhar com as

colunas do edifício sacramental: as “Sagradas Escrituras” e a lex orandi. Sim-

plesmente não conseguiram articular essas duas colunas-mestra de uma teolo-

gia sacramental.

Portanto, falar de dois milênios, em teologia sacramental, é recuperar um

processo histórico de duas metodologias teológicas diferentes, e passar do mé-

todo estático ao método dinâmico.

No segundo milênio, a busca do entendimento da celebração eucarística

aconteceu a partir da “escola”, lugar de explicação e elucidação. É exatamente

nas escolas que os cristãos especulam sobre as normativas da fé [lex credendi],

atentos à cátedra do professor.

[...] os olhos dos presentes se movem 'num percurso simples em linha reta': o mestre olha os alunos, os alunos olham o mestre; ninguém olha para a igreja, ninguém olha para o altar. Quando o mestre e os alunos se encontrarem na igre-ja para rezar, suas mentes terão presente o que foi declarado na escola, pois lo-

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 26: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

43

gicamente primeiro estudam, depois rezam, rezam conforme o que estudam, re-

zam como estudam (Giraudo, 2002, p.9).

Essa visão escolástica dominou a teologia eucarística como método teo-

lógico do segundo milênio. Conseqüentemente, o interesse pelo conjunto da

oração eucarística foi simplesmente colocado de lado, em função das palavras

consecratórias [ipsissima verba]. A tradição sempre foi consciente da impor-

tância do relato institucional como coração da anáfora43. Contudo, a novidade

elaborada pela teologia sacramental pós-patrística perdeu de vista a dinâmica

oracional que constituía o louvor da comunidade. Em íntima relação com a

reação antiberengariana, os teólogos e liturgistas reduziram o louvor eclesial a

uma fórmula de demonstração da presença real de Cristo no pão e no vinho. O

rito da consagração foi absolutizado como “ação sagrada” instituída no Cená-

culo, primeira missa de uma série ritual (Giraudo, 2003, p. 455).

Giraudo recorda que, apesar desse marco do mestre Berengário, devemos

ir mais a fundo nessa mudança de perspectiva. A perda de compreensão da

dinâmica estrutural-literária da oração eucarística está para além de Berengário,

se deve ao “impacto do pensamento germânico coisificante” 44, que prevaleceu

na mentalidade do mundo cristão no segundo milênio.

Sem dúvida, faltam aos neoconvertidos ocidentais (germânicos) a com-

preensão original da oração de matriz bíblica e a linguagem realístico-

simbólica própria da dinâmica oracional judaica. A estrutura literária estava

impregnada na mente do crente de tradição judaica. Não eram necessários for-

mulários. Havia uma ausência de textos canônicos, pois os Pais transmitiam a

fé pela celebração “de cor”. Um axioma rabínico revela a importância de ter

em mente (não por escrito) a estrutura a seguir na oração: “Aquele que põe por

43 Habitualmente diz-se que o relato institucional ou consagração é o coração da oração euca-rística. Sem dúvida! Contudo, Giraudo nos convida a ampliar esse entendimento e, partindo da escola da lex orandi, afirma que devemos falar de dois corações na oração eucarística: o relato institucional e a epiclese. Para melhor entender isso, deve-se abandonar a imagem de coração e pensar em dois “centros dinâmicos” da oração eucarística, dois centros dinâmicos que regem a sinfonia oracional (Giraudo, 2003, p. 541). 44 “A partir do século VIII estreitam-se os laços da Gália com Roma no campo litúrgico. O que influi certamente foi a admiração que se sentia pela liturgia papal e também o interesse dos políticos como Pepino e Carlos Magno em aliar-se com Roma em todos os setores. A adoção da liturgia romana foi feita com extrema reverência: conservaram-se inicialmente tal qual (fes-tas de santos romanos, cerimônias papais simplificadas, até os nomes das estações quaresmais de Roma). Não a “adaptaram”, mas a “adotaram” sem mais, inclusive a língua latina. Mas aos poucos a criatividade dos franco-germanos, naquele tempo bem mais exuberante que a romana, que já começava a decair, exerceu progressivamente uma influência em direção contrária: o refluxo da Gália a Roma (Aldazábal, 2002, p. 179).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 27: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

44

escrito as bênçãos, é como se queimasse a Torah” (Giraudo,1981, p. 205).

O que dominou, entretanto, no II milênio foi a cultura gótica, a missa

dramática, em que a força da imaginação reinou pela representação espetacular

do sagrado. Emolduradas pelas alegorias, as cerimônias com seus ministros,

cores e paramentos levavam os fiéis a desejarem ver a Cristo. Os ritos e a ima-

ginação se concentravam na consagração. A hóstia guiava o olhar e o coração

da assembléia. A compreensão estático-devocional determinou todo o segundo

milênio e, mesmo com o Vaticano II, até nossos dias, o aspecto dinâmico-

sacramental está longe de ser vivido pelas comunidades cristãs.

No convite ao processo de conversão feito por João Paulo II na sua carta

encíclica Tertio Míllennio Adveniente (n.33), os cristãos são convocados a re-

fletir sobre os modos de pensar e agir, verdadeiras formas de antitestemunho.

Assumido o convite do Pontífice, Giraudo se pergunta: essa purificação

pode ser referida também ao nosso modo de viver e pensar a eucaristia ? (Gi-

raudo, 1996, p.164-156). Certamente. E, para Giraudo, o caminho de conversão

inclui o retorno à teologia global e à dinâmica mistagógica dos Padres.

Nessa metodologia do primeiro milênio, a celebração é o lugar de enten-

dimento do sacramento, pois a preocupação é orante e não especulativa. Os

cristãos da Igreja dos primeiros séculos primeiro rezavam e depois criam, re-

zavam para poder crer, rezavam para saber como e o que deveriam crer.

Tentemos imaginar-nos um dos Padres, por exemplo, Ambrósio de Milão, en-quanto explica a eucaristia a seus discípulos preferidos, os neófitos. O mistago-go - aquele que introduz na compreensão do sacramento - não se coloca no cen-tro da cena, mas ao lado. No centro está o altar, já que estamos na igreja e o altar é o verdadeiro mestre. Com o olhar material, mestre e discípulos se olham: o mistagogo olha com amor para os neófitos e os neófitos olham com confiança para o mestre. Mas, com o olhar teológico, mestre e discípulos olham o altar que não perdem de vista um só instante. É a lex orandi - que se 'senta' na cáte-dra, para dizer a todos o que é eucaristia. Os olhares dos presentes se movem, portanto, não num percurso simples em linha reta, mas num ‘percurso em triân-gulo’: enquanto materialmente vão do mistagogo aos neófitos e vice-versa, teo-logicamente, de ambas as partes, estão fixos no altar (Giraudo, 2002, p. 9-10).

No movimento mistagógico e orante, a comunidade vai mergulhando

numa teologia da práxis e da vida. Nesse movimento, pode-se refazer o cami-

nho em direção à teologia sacramental do primeiro milênio e redescobrir a vida

que brota do mistério da Ceia do Senhor.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 28: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

45

2.5. Conclusão

Sem dúvida, não faltou talento ou inteligência aos Padres da Igreja, para

construir uma boa teologia dialética. Para termos uma idéia disso, basta visi-

tarmos as páginas patrísticas a respeito do mistério da Trindade, da encarnação,

das noções de natureza e pessoa. Contudo, quando se tratava de teologia sa-

cramental e, especialmente, da eucaristia, a forma de se exprimir não era outra

senão a celebração litúrgica.

Aos olhos dos Santos Padres, o mistério sacramental jamais poderia se trans-formar em objeto de especulação teórica e sistemática. Para Ambrósio de Milão, Cirilo de Jerusalém, Teodoro de Mopsuéstia e os outros grandes nomes do Ori-ente e Ocidente, a única especulação possível sobre o fato sacramental é indis-sociável da oração da Igreja com que ela celebra (Giraudo, 1980, p.874).

A autoridade da lex orandi é indiscutível na teologia dos Santos Padres.

Bem conhecida no período patrístico, sua formulação é feita a partir da Palavra,

lida e interpretada na assembléia orante, lugar de profissão dos crentes.

Nas orações eucarísticas, as Sagradas Escrituras não aparecem para de-

fender teses especulativas, não são resultado de garimpagem indiscriminada de

versículos, semiversículos e fragmentos isolados. A Palavra domina e vivifica

toda a oração da assembléia, que compreende o mistério a partir do mistério, ao

redor do altar.

O que Giraudo se propõe é retomar essa metodologia dos Padres em teo-

logia eucarística, levando a sério o axioma lex orandi-lex credendi.

Os teólogos e os liturgistas do I milênio, como os antigos orantes, captam per-feitamente a analogia que existe entre estrutura literário-teológica e estrutura ar-quitetônica. Instintivamente aprendem que o formulário oracional é como a es-trutura de um edifício e percebem-lhe a articulação dinâmica dos elementos e os respectivos jogos de forças. Diante de um formulário oracional reagem não com um olhar parcial e de detalhes, mas com um olhar totalizante, e de compreensão global daquela organização de elementos diferenciados e reciprocamente orde-nados que chamamos precisamente estrutura literária (Giraudo, 1989, p.598).

É, pois, exatamente nessa dinâmica oracional encontrada nas anáforas e

valorizada na teologia mistagógica dos Padres que se quer redescobrir a euca-

ristia e sua estrutura literário-teológica. Isso significa, em termos concretos,

que apenas remetendo-se todo docilmente à escola da lex orandi, numa leitura

atenta das anáforas se poderá estabelecer para a fé cristã hoje, a compreensão

dinâmica e global do mistério eucarístico.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA
Page 29: 2. A teologia eucarística de Cesare Giraudo - DBD PUC RIO · A teologia eucarística de ... João Paulo II, ... através “daquela admirável e singular mudança de toda a substância

46

O percurso histórico na teologia sacramental, nestes dois milênios, nos

fez entender a necessidade de tomar um caminho diferente, metodicamente

falando, daquele característico no segundo milênio de teologia eucarística.

Portanto, redescobrir a eucaristia só será possível se pudermos penetrar

na estrutura dinâmica própria às orações eucarísticas. É o que pretendo fazer,

seguindo o caminho aberto por Giraudo, isto é, estabelecer a estrutura literário-

teológica das anáforas.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521447/CA