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MARCELA BELCHIOR GOMES DE MATOS SACOLEJAR NO ÔNIBUS: DESLIZES DA COMUNICAÇÃO NA PERFORMANCE EM TRÂNSITO SÃO PAULO – SP 2010

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MARCELA BELCHIOR GOMES DE MATOS

SACOLEJAR NO ÔNIBUS: DESLIZES DA COMUNICAÇÃO NA PERFORMANCE EM TRÂNSITO

SÃO PAULO – SP 2010

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MARCELA BELCHIOR GOMES DE MATOS

SACOLEJAR NO ÔNIBUS: DESLIZES DA COMUNICAÇÃO NA PERFORMANCE EM TRÂNSITO

Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Estudos Pós-

Graduados em Comunicação e Semiótica (PEPGCOS) da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) para obtenção do

título de Mestre em Comunicação e Semiótica com concentração na

área de Signo e Significação nas Mídias.

Orientador: professor Doutor José Amálio de Branco Pinheiro.

São Paulo – SP

2010

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MARCELA BELCHIOR GOMES DE MATOS

SACOLEJAR NO ÔNIBUS: DESLIZES DA COMUNICAÇÃO NA PERFORMANCE EM TRÂNSITO

São Paulo, 7 de outubro de 2010.

BANCA EXAMINADORA

Professor Doutor José Amálio de Branco Pinheiro

(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP)

Professor Doutor John Cowart Dawsey

(Universidade de São Paulo – USP)

Professora Doutora Jerusa de Carvalho Pires Ferreira

(Pontifícia Universidade de São Paulo – PUC-SP)

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Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

pelo apoio financeiro concedido a este trabalho.

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RESUMO

Título: Sacolejar no ônibus: deslizes da comunicação na performance em trânsito.

Este trabalho discute performances apresentadas durante o trajeto regular de ônibus

públicos na cidade de Fortaleza, no Ceará. São vendedores, pedintes e artistas que

percorrem os veículos em busca do encontro do o público-passageiro em troca de

dinheiro, utilizando, para isso, recursos do corpo, da voz, na relação com o espaço

urbano. Nosso objetivo é a identificação e a análise das linguagens e dos processos

comunicacionais e socioculturais nessas apresentações. Para isso, este trabalho

identifica os contextos temporal e espacial em que se dá o fenômeno estudado; analisa

as intervenções dessas performances na caracterização dos espaços públicos e na

dinâmica dos movimentos urbanos; aponta e analisa as linguagens, mediações e

processos comunicacionais de que são compostos os atos performáticos; investiga os

aspectos e atuações do corpo e da voz nas performances. Buscando compreender o

intrincado de relações que se revelam nos processos socioculturais e comunicacionais

nos quais nosso objeto está inserido, nos apoiamos em quatro conceitos básicos de

análise: performance, tratando-o como a linguagem de base que torna possível a

construção de nosso objeto; oralidade, verificável no fundamento da maioria das

interpelações comunicacionais que estudamos; corpo, já que ele é a mídia da qual

tratamos e por meio da qual são identificados alguns dos principais elementos de

expressividade das performances; e movimento urbano externo, num esforço por

compreender as especificidades da inserção das performances estudadas em seu local de

atuação. A partir de tal análise, defendemos que a ação performática apresentada

durante o percurso de transportes públicos pelas ruas redesenha a cidade e as relações

simbólicas no espaço urbano ao possibilitar uma forma particular de encontro com o

público expectador em sua interpelação comunicacional. Sustentam nossa pesquisa

Teorias Culturalísticas da Comunicação, Antropologia Urbana, Mestiçagem e

Semiótica, com autores como Canclini, Martín-Barbero, Delgado, Gruzinski, Pinheiro,

Lótman e Zumthor. Nossa pesquisa de campo, com base etnometodológica, reuniu

corpus coletado in loco entre os anos de 2004 e 2010, constando registros em formato

audiovisual de performances em encenadas nos transportes da cidade.

Palavras-chaves: performance; ônibus; espaço urbano; corpo; voz.

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ABSTRACT

Title: To put into motion in the bus: slips of the communication in the performance in

transit.

This work argues performances presented during the regular passage of public buses in

the city of Fortaleza, in the Ceará. They are selling, beggars and artists who in exchange

for cover the vehicles in search of the meeting of the o public-passenger money, using,

for this, resources of the body, the voice, in the relation with the urban space. Our

objective is the identification and the analysis of the languages and the communications

processes and sociocultural processes in these presentations. For this, this work

identifies the contexts secular and space where if of the o studied phenomenon; it

analyzes the interventions of these performances in the characterization of the public

spaces and in the dynamics of the urban movements; it points and it analyzes the

languages of the communication, linkings and processes of that the performering acts

are composites; it investigates the aspects and performances of the body and the voice in

the performances. Searching to understand the intricate one of relations that if disclose

in the sociocultural and comunicacionais processes in which our object is inserted, in

supports them in four basic concepts of analysis: performance, treating it as the base

language that becomes possible the construction of our object; orality, verifiable in the

bedding of the majority of the comunicacionais interpellations that we study; body,

since it is the media which we deal with and by means of which some of the main

elements of expression of the performances are identified; e external urban movement,

in an effort for understanding the particular aspects of the insertion of the performances

studied in its place of performance. From such analysis, we defend that the presented

performering action during the passage of public transports for the streets redesigns the

symbolic city and relations in the urban space when making possible a particular form

of meeting with the expectador public in its comunicacional interpellation. They support

our research Cultural Theories of the Communication, Urban Anthropology,

Mestization and Semiotics, with authors as Canclini, Martín-Barbero, Delgado,

Gruzinski, Pinheiro, Lótman and Zumthor. Our research of field, with etnomethodology

base, congregated collected corpus in leases enters the years of 2004 and 2010,

consisting registers in audiovisual format of staged performances in in the transports of

the city.

keyswords: performance; bus; urban space; body; voice.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1 COM LICENÇA, PESSOAL

1.1 Ziguezagueando no rebuliço urbano: a performance como evento – P. 12

1.2 Frenesi semiótico na comunicação do espaço público – P. 18

1.3 Molejo na convivência plural no transporte coletivo – P. 35

2 TENSÕES DA MOBILIDADE MESTIÇA EM TRÂNSITO

2.1 Desvio, atravessamento e costura na composição de novos alcances – P. 46

2.2 Montagens elásticas – P. 61

2.3 Composições de corpos, carro e instrumentos na presença ritualística – P. 71

3 DESLIZES DO AGIR CAMBALEANTE

3.1 Modulações do imprevisto: performance como ruído e ruídos que deslocam a

performance – P. 80

3.2 Travessias de vozes que se articulam – P. 89

3.3 Encadeamentos corporais do equilibrista – P. 100

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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INTRODUÇÃO

Para defrontar-se com as performances em ônibus da cidade em suas vastas e diversas

possibilidades, é preciso abandonar-se no vaivém do urbano e fazer parte do traçado

invisível que se faz por suas ruas. Dizemos isso porque, ao propormos um estudo científico

sobre atividades que estão num constante escorregar por entre os esbarrões da sociabilidade

citadina, somos impelidos a também errar pelos carros, à procura daquelas interpelações.

Essa circunstância de que somos partícipes da dança social urbana confere ao fenômeno

estudado neste trabalho mais um texto cultural: o que de também somos fiadores do tecido

poético que se entremeia no espaço público da metrópole a partir da ocupação dos veículos

em movimento.

A proposta deste estudo foi construída a partir de uma profunda inquietação que se

manifestou e fortaleceu-se a cada exibição diante de nós nos ônibus da cidade, no enlace de

vários locais de Fortaleza. Era quase impossível ficar inerte a tal provocação, cotidiana e

intrusiva. A abordagem performática de vendedores, pedintes, cantores, palhaços e outros

personagens nos veículos em movimento transgride sentidos no momento de sua interação

com o outro. Tal atravessamento é estimulado por mediações simbólicas coletivas e

recíprocas, num composto alvoroçado e buliçoso de significações em contínuo ir e vir.

Então, aliamos anseios pessoais de um flanar pela cidade a problematizações sobre a

comunicação urbana.

O andar de ônibus passou a ser, para nós, uma atividade cujos pontos de referência

eram móveis, voláteis, súbitos. Escolhe-se uma rota mirando-se o instante em que está

iminente a execução de uma performance. Assim, ao vislumbrar um sujeito que dá indícios

da intenção de interpelar os passageiros, ruma-se para o carro a que ele se dirige e

acompanha-se todo o ato. Esta dinâmica nos conduz a caminhos antes desconhecidos e

trajetos sempre renovados, já que, muitas vezes, nessa corrida pela concomitância com o

performer, não se prevê até onde seguiremos.

Nosso contato com a performance se dá observando com atenção quem entra nos

ônibus. Em seguida, acompanha-se seu percurso, muitas vezes realizando registro

audiovisual, até a separação. Daí, novamente a mesma sequência, compreendendo, assim

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como Canevacci (1993), que o caminhar é uma modalidade de observação que permite a

incursão, de fato, no território público, pronto a um perder-se, desenraizado. Nossa maneira

de pesquisa de campo é semelhante ao método de encontro com o público desempenhado

pelo próprio performer.

Esse se perder pela cidade dentro dos transportes públicos ultrapassa os limites do

objeto individualizado, para permear, também, o desenho por nós realizado. Nosso corpo,

enquanto agente de pesquisa, acaba por funcionar como um cruzamento entre várias das

performances, unindo esses fios na tecedura de uma rede simbólica de trânsito pelas ruas e

avenidas. Percorrer a cidade nos ônibus em busca de um defronte com a performance não é

somente uma metodologia de trabalho de campo, é também linguagem por nós escolhida

para dialogar com o espaço urbano e com nosso objeto de pesquisa, reunindo formas de

percepção cognitiva. Interessa o exame atento dos atos, de seu entorno e de suas condições

como captação das propriedades do nosso objeto.

Outro método por nós utilizado é a simples ocupação de um carro em cujo percurso a

frequência de apresentações performáticas é intensa. Aguarda-se, então, a possível presença

do performer, que pode ocorrer uma, duas, dez vezes, bem como nenhuma. O

enfrentamento casual é intrínseco ao ambiente no qual a pesquisa se insere, até mesmo

devido ao aspecto de curta duração das performances. Não há garantia, nem circunstância

preestabelecida, não há planejamento que dê conta, apenas tentativas de confronto.

Esse face-a-face é, de certo modo, aleatório, quando o caso é sentar e aguardar que o

ambiente seja irrompido. No entanto, não se pode verificar uma casualidade de um todo, na

medida em que já trabalhamos sob a verificação de quais linhas de ônibus são mais

passíveis de que se dê a ocorrência. Não se programa, não se marca encontros com o

performer, nem mesmo impulsionados pelo dever da pesquisa. Ao contrário, é este mesmo

“dever” que nos distancia de um acordo prévio com o performer para que seja possível uma

entrevista, um registro anteriormente pretendido. Isso revela em nosso objeto de estudos um

caráter deslizante, desviante e inconstante, propriedade inevitável em sua natureza.

Entretanto, não há modo mais fiel e revelador do que este, em que a dinâmica de

pesquisa se adapta à realização da cotidianidade. Nossa presença interfere, inevitavelmente,

naquele ambiente e naquele momento, mas de maneira tênue, em que se mantêm

intrínsecos à pesquisa os aspectos de livre vontade da performance. Assim sendo,

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trabalhamos a partir de um modelo naturalista para um trabalho de campo etnográfico1, no

qual nos inserimos in loco, em observação direta não obstrutiva2.

E “fiel”, salientamos, até certo ponto. Isto porque, embora procuremos nos deparar

com, observar e apreender uma amostra de nosso objeto de estudos, o que se constrói, por

nós, é um relato sob nossa perspectiva. E, como lembra Hillman (1993), a cidade é uma

história que se conta para nós à medida que caminhamos por ela. Daí, então, inventariarmos

e descrevermos minuciosamente, interpretando e narrando, evidenciando que nosso ponto

de vista e observação individual, dialogando com diversos outros saberes, estão imersos e

representados em nosso relato.

Importante, ainda, é atentar para o relato alheio. Dizemos isto porque perceber as

minúcias das relações urbanas que se interligam umas às outras também requer

conversações interpessoais. Um sujeito confronta com uma performance e narra a outro,

que pode nunca se deparar com tal ato ou vivenciar a coincidência de também cruzar a

performance que lhe foi relatada. Afinal, andar de ônibus é prática comum entre a maioria

da população, sendo importante atentar e considerar, em certa medida, as experiências e as

narrativas de seus habitantes, atores do mosaico cultural e social que forma a cidade e

possibilita seus movimentos. Mesmo considerando esses relatos para a construção de nosso

pensamento, a análise direta desta investigação se voltará às performances que foram por

nós percebidas em contato direto.

As performances em cena nos transportes coletivos podem ser vistas como operações

de subversão de condutas sociais, numa engenhosa intervenção no que lhe é alheio,

proliferada nas bordas3 das culturas. São estilos complexos de conviver e habitar os espaços

de uma interação urbana que dispõe de tão amplos recursos de articulações

1 A etnografia é uma atividade perceptiva baseada num aproveitamento intensivo, porém metódico, da capacidade humana de receber impressões sensoriais, cujas variantes estão destinadas a serem organizadas de maneira significativa. Entender o fato social como em contínua atividade e assumir o pesquisador como membro daquele ambiente (Garfinkel, 2006). O trabalho etnográfico consiste numa imersão física exaustiva ao objeto, com o propósito de analisá-lo sob aparato teórico, posteriormente (Delgado, 2007). 2 Entende-se “observação direta não obstrutiva” como o método de registro pelo qual o pesquisador busca uma conduta observável, evitando ao máximo a eventual incidência que possa exercer sobre seu objeto. Sem pretensão de anular interações (o que seria impossível, uma vez que o pesquisador está integrado àquele meio), a proposta é de uma olhada discreta sobre seu objeto. 3 Apoiamo-nos no conceito de “cultura das bordas” desenvolvido por Pires Ferreira, enfatizando uma produção “que não está no centro, aquilo que fica numa faixa de transição entre uns e outros, entre as culturas tradicionais reconhecidas como folclore e a daqueles que detêm maior atualização e prestígio, uma produção que se dirige, por exemplo, a públicos populares de vários tipos, inclusive àqueles das periferias urbanas” (PIRES FERREIRA, 1990: 169).

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comunicacionais, dando cabo a um fluir plural de formas de interpelar, de narrar, de

representar e de reconstruir ambientes midiáticos.

Portanto, nossa tarefa não se limita a identificar e descrever os elementos

componentes nesses atos performáticos, mas compreender o intrincado de relações que se

revelam nos processos socioculturais e comunicacionais nos quais nosso objeto está

inserido � sem cair na problemática busca por uma “identidade” ou por “uma” autoria de

determinada expressão. Nessa direção, trabalhamos com um olhar atento sobre a existência

de um transbordar barroco e um confluir mestiço � em sua coexistência múltipla,

conflitante, ativa e criativa � nos fatores que permeiam as performances, dotando-as de um

fazer heterogêneo em sua composição e manifestação, além de evitar dicotomias sobre os

diversos modos de atuação dos sujeitos nesses espaços.

Aliamos a isso um estudo sobre as tramas dos movimentos urbanos, que redesenham

as formas de interação no espaço público e de ressiginificação de expressões do cotidiano �

problema fundamental na nossa discussão. Até porque as performances que este trabalho

estuda se dão a partir do deslocamento das ruas para os transportes públicos urbanos,

aspecto de importância primordial para a compreensão de algumas de suas especificidades.

O que verificamos são processos de ressiginificação desses espaços enquanto zonas

de sociabilidade e comunicabilidade, estimulados pelo intervir performático. Os locais onde

são apresentados os atos performáticos são fundamentais para a análise de tais fenômenos,

se inseridos no propósito central de nossa análise, que é o exame das linguagens e dos

processos comunicativos dessas performances em diálogo com o ambiente midiático onde

estão situadas.

O que se observa, a cada apresentação, são atos comunicativos que comportam

importantes indicativos dos usos que aqueles atores sociais fazem de elementos da nossa

cultura. São transfiguradas expressões em constantes recriações de linguagens. O corpo de

cada performer, em seus variados aspectos, é sua própria mídia. Ao mesmo tempo, as

performances são mediações de um traçado social mais amplo. Sendo assim, a problemática

principal de nossa investigação se apóia na seguinte pergunta: em que medida a intervenção

performática em trânsito subverte condutas de comunicação urbana ordinárias e interfere

em ambientes midiáticos do transporte público?

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Damos ênfase em Fortaleza, no Ceará. Escolha que não se deu de forma aleatória.

Além de abrigar o início desta pesquisa, ainda em 2004, quando fomos provocados a

escrever um artigo científico para uma disciplina no curso de graduação em Comunicação

Social na Universidade Federal do Ceará (UFC), essa cidade dispõe de amostra

significativa do fenômeno estudado. Sendo a quarta capital brasileira em número

populacional e de grande extensão territorial, Fortaleza se configura em um nível complexo

de relações urbanas e comunicacionais. É zona de grande confluência de atividades e de

pessoas, com fluxo diário de uma densa fatia de seus habitantes e da população de sua

Região Metropolitana, com forte tendência para o convívio em áreas públicas. Seus

transeuntes utilizam largamente os ônibus4, na medida em que fortalezenses não dispõem

de sistema de metrô, os trens não cortam os centros urbanos da cidade e as vans não

trafegam por tão extensa área da cidade. É Fortaleza, também, local de amostragem

representativo do grande número de desempregados que adotam as atividades informais de

economia, como as vendas que se dão nos ônibus da malha urbana5.

Partindo do propósito de compreender tanto as linguagens quanto os processos

comunicacionais nos quais se insere nosso objeto de estudos, nossa pesquisa se apóia sobre

quatro conceitos básicos de análise. O primeiro deles é performance, tratando-o como a

linguagem de base que torna possível a construção de nosso objeto. O segundo é oralidade,

verificável no fundamento da maioria das interpelações comunicacionais que estudamos.

Depois, consideramos primordial discutir corpo, já que ele é a mídia da qual tratamos

(mídia primária, portanto) e por meio da qual são identificados alguns dos principais

elementos de expressividade das performances. Por último � em ordenação, aqui, mas não

em importância �, introduzimos o debate sobre movimento urbano externo, num esforço por

compreender as especificidades da inserção das performances estudadas em seu local de

atuação, assunto que abrirá o debate deste estudo, logo no primeiro capítulo. Não nos

aproximamos de teorias do Urbanismo, da Geografia Urbana. Nossa proposta é observar a

coordenação das práticas comunicacionais dentro da movimentação da urbanidade.

4 De acordo com a Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza S/A (Etufor), somente no ano de 2007, foram registradas 295,7 milhões de passagens pagas. 5 Do total da População Economicamente Ativa na capital, 53% exercem ocupação informal, somando 490 mil trabalhadores; segundo dados do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT) do Governo do Estado do Ceará. Não entraremos na discussão sobre mercado de trabalho e economia informal, nesta Dissertação, nos voltando aos aspectos teóricos e empíricos relativos à Comunicação.

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É importante ressaltar, ainda, que não utilizamos o conceito de performance na

perspectiva de “gênero de arte” � que se desenvolveu a partir de experiências desde o final

do século XIX, passando pelo movimento em torno nas vanguardas européias do início do

século XX, se consolidando apenas na década de 1960, como nos aponta Glusberg (2003).

Nosso olhar se molda a partir de uma “condição performática”, conforme desenvolve

Zumthor (2000).

Sustentados por esse aparato teórico, estudamos as combinações entre códigos, textos,

séries e sistemas culturais e linguagens que compõem nosso objeto de pesquisa �

considerando que esses elementos atuam em conjunto e se entrecruzam, enquanto cumprem

suas funções comunicativas, inseridos num processo social e cultural. Situamos as

performances encenadas nos transportes públicos a partir do universo conceitual de

mediações. Partindo da percepção dessas pontes que formam uma rede de relações,

inserções e traduções, investigamos os processos comunicacionais a partir da cultura. Ao

mesmo tempo, trabalhamos considerando na cultura propriedades comunicativas.

Uma dessas mediações é o próprio processo cultural, intrincado por sistemas

dinâmicos de trocas informacionais que formam circuitos simbólicos. Por ele, se articulam,

social e teoricamente, as práticas comunicativas. Martín-Barbero (2003) acrescenta que

esse caráter da cultura é produtor de significações, superando uma mera circulação de

informações. Tanto emissor quanto receptor (embaçados um no outro, superando uma

classificação dualista) é percebido como decodificador, mas também como produtor de

mensagem. Sendo assim, analisamos as performances com base na comunicação, mas

“desterritorializando” sua visão, como se refere Martín-Barbero (2002), fazendo uma

análise interdisciplinar, evitando reduzir a comunicação à linguagem. Afinal, uma prática

comunicacional está inserida em processos sociais, culturais, antropológicos, semióticos.

Portanto, o percurso para o entendimento de significações no nosso objeto de pesquisa

é tratado imerso no conjunto de funcionamento da sociedade e sua produção social. Essa

postura evita, por exemplo, que se limite o estudo das linguagens ao âmbito linguístico e

que se perceba processos e contextos que perpassam as performances. É na articulação

desses vários campos de conhecimento que os estudos em Comunicação, afinal, imprimem

sua especificidade. E na cultura se obtém uma expressão sensível desse intercâmbio.

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Essa porção teórica cruza, neste trabalho, a metodologia de análise da Semiótica da

Cultura, já que esta disciplina examina a movimentação entre linguagens e textos,

acionando, portanto, diferentes códigos e processos semióticos (MACHADO, 2007: 61).

Essa metodologia científica dispõe de uma combinação de princípios que comporta o

exame dos vários níveis de comunicações dialógicas para a formação de sentido � questão

de base na nossa pesquisa.

Dentro deste campo metodológico, a teoria lotmaniana é a que mais se aproxima das

demandas de análise de nosso objeto de estudos, contemplando o exame sobre as séries e

textos culturais. A começar pelo preceito de que os elementos que integram um sistema

semiótico não podem ser analisados isoladamente. Eles funcionam, segundo Lótman

(1996), imersos num “continuum semiótico”, denominado semiosfera. É neste espaço que

se dispõe um conjunto de distintos textos e de linguagens, que se conectam uns aos outros;

um universo heterogêneo, de processos dinâmicos, dotado de mecanismos de produção de

informação e de processos de semiose. Partindo da compreensão de cultura como

informação (LÓTMAN, 1996), estes princípios funcionam como suporte para um conjunto

de ferramentas de análise no qual Lótman apoia sua análise no âmbito cultural, com

mecanismos informacionais, de geração de sentido, de estabilização e desestabilização da

cultura, de fluxos e conexões de textos, entre tantos.

As performances estudadas se dão em alguns dos espaços de maior circulação da

população numa cidade, se inserindo arbitrariamente (e legitimadamente) no cotidiano das

pessoas, cruzando seu trajeto, busquem elas ou não aquele encontro. Sendo assim,

configuram neste trabalho como debate imprescindível as relações estabelecidas pelas

experiências e traçados de seus habitantes, protagonistas do mosaico sociocultural que

enreda o urbano e possibilita seu caráter de fluxo (PINHEIRO, 2004).

Nosso objetivo é a identificação e a análise das linguagens e dos processos

comunicacionais e socioculturais em performances encenadas nos ônibus públicos urbanos.

Para isso, este trabalho identifica os contextos temporal e espacial em que se dá o fenômeno

estudado; analisa as intervenções dessas performances na caracterização dos espaços

públicos e na dinâmica dos movimentos urbanos; aponta e analisa as linguagens, mediações

e processos comunicacionais de que são compostos os atos performáticos; investiga os

aspectos e atuações do corpo e da voz nas performances. A hipótese deste trabalho é de que

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a ação performática apresentada durante o percurso de transportes públicos pelas ruas

redesenha a cidade e as relações simbólicas no espaço urbano ao possibilitar uma forma

particular de encontro com o público expectador em sua interpelação comunicacional.

Não nos propomos a, neste estudo, analisar as formas de recepção do público-

passageiro diante do ato performático � embora façamos parte, em grande medida, desse

público. Contudo, tratamos de performance e, como tal, ela não atua isolada no corpo de

seu executor, sendo constituída no diálogo enunciador-enunciado. Sendo assim, a

participação desse ouvinte perpassa trechos de nossa análise.

No primeiro capítulo, discutiremos como a performance se insere na comunicação

urbana como uma interpelação inesperada, como subversora não apenas de um espaço

físico, conferindo grande visibilidade e estabelecendo uma relação direta com o outro, mas

também atravessando relações de poder e códigos de convivência no local público. E é esse

ambiente, verificaremos, que possibilita tal estilo de intervenção, uma vez que o espaço

urbano externo se desenvolve por meio de permanentes renovações das articulações entre

seus sujeitos. Trataremos do ato da caminhada e dos processos de deslocamentos

desenrolados nas performances, as variadas linguagens com as quais se trabalha para

percorrer as ruas da cidade e atingir o público-passageiro. Discutiremos, ainda, de quais

modos podemos perceber as relações sociais e comunicacionais no interior do transporte

coletivo.

No capítulo seguinte, analisaremos como essas mesclas móveis que são verificadas na

comunicação no espaço público participam na elaboração da estética e do discurso político

da performance, verificando os vários personagens que se apresentam nos ônibus em

movimento. Problematizaremos quais relações de poder se desenrolam providenciadas e

evidenciadas a partir do ato de intervenção performática e pensar suas aproximações a

condutas de subversão. O debate se estenderá, ainda, debruçado nos aspectos de as

performances se constituírem expressões que não se encontram sob os holofotes da

comunicação em sociedade. Apresentará, ainda, discussão sobre os aspectos rituais que as

performances conferem às ações da cotidianidade.

No terceiro capítulo, debatemos sobre os deslizes da performance como ruído no

trajeto do ônibus e dos ruídos do urbano naquelas apresentações. Analisaremos como a

performance se adapta ao longo de sua apresentação às interferências do veículo em

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movimento: os rearranjos do corpo e da voz diante do sacolejo e da superabundância

barroca do transporte coletivo. Investigaremos os papéis da presentificação do corpo e da

voz na construção de um enredo. Que implicâncias acarreta uma paisagem sonora que

entrecorta constantemente as emissões vocais do performer e um espaço de apresentação

em permanente renovação, interferindo na visibilidade e no posicionamento daquele ato

performático? Além de analisar os procedimentos de estranhamento e sedução para o

encontro com o outro.

A divisão entre os temas dos capítulos é apenas uma forma didática e de mais fácil

comunicação com o leitor acerca do conteúdo desta pesquisa. Destacamos, porém, que este

mesmo conteúdo é flexível e que os elementos priorizados em cada bloco passeiam uns

pelos outros. Afinal, o estudo sobre um ato performático requer um olhar amplo, que

perceba as conexões entre diversas linguagens. É preciso analisar as atuações do corpo, as

emissões vocais e outras intervenções sonoras, a ocupação do espaço, as comunicações

entre intérprete e ouvinte. Em performances apresentadas em transportes públicos, cada um

desses elementos se integra aos outros e, numa trama complexa, conferem movimentos nos

sentidos do ato.

Uma separação brusca desses vários fatores que se conectam tornaria nosso trabalho

irrealizável. Afinal, correríamos o risco de uma análise que reduziria a obra e isolaria

elementos de um objeto que se configura exatamente pela combinação entre diversas

linguagens. Numa performance, assim como em demais objetos da cultura, cada elemento

só existe na relação com outro6. Como uma justaposição de fragmentos, emergindo de uma

montagem de seus elementos. Tempo, lugar, finalidade da transmissão, ação do locutor,

resposta do público, tudo isso importa para a comunicação e constrói a ação performática

(ZUMTHOR, 2000).

Pensemos nesses recortes capitulares, então, como uma tentativa de nos aproximar

dos vários aspectos que compõem nossa pesquisa. Contudo, considerando sempre suas

articulações com os demais fatores desse composto cultural que serão abordados com mais

profundidade em seus capítulos específicos. E, para abrir o debate, percebamos como as

6 Conforme enfatizou Amálio Pinheiro, em aula ministrada no dia 11 de março de 2009, na disciplina “Ambientes midiáticos e processos culturais: das oposições aos mosaicos mestiços”.

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performances apresentadas se instalam nos transportes públicos como uma contingência da

comunicação urbana.

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1 COM LICENÇA, PESSOAL

1.1 Ziguezagueando no rebuliço urbano: a performance como evento

Ronco de motor. No sacolejar do ônibus público metropolitano, a jujuba, a bala de

gengibre, a caneta, o santinho, a canção. Custam um real, um vale transporte, qualquer

trocado serve. Passa-se o chapéu ou o copinho descartável. Estende-se a mão. Distribui o

bilhete de letras tortas. Rebola, faz graça ou se inflama. Ergue-se a voz, exibe-se o corpo e

atravessa. Não apenas o carro, mas a cidade em sua materialidade e em seu imbricado

simbólico do borbulhar urbano. Falar em performance no transporte público é tratar de

intervenção na viagem urbana que, ao olhar mais distante, parece “ordinária”, mas que atua

sob contínuas reconfigurações do espaço comunicacional, atribuindo-o novos sentidos a

partir do ato performático.

A peregrinação de carro em carro, em busca do encontro com o público-passageiro,

desenha uma rede simbólica e indicial entre os espaços da metrópole que trabalha em

contínuas recombinações possibilitadas pelo fluxo da corporeidade nos aparelhos da

cultura. Comungam da especificidade de traçar o caminho de suas performances em

transportes públicos, por trilhas sem destino certo, mas delineadas por pontos de breves

paradas, os ônibus. Linhas que se dissolvem instantaneamente, dada a locomoção dos

veículos e o caráter de passagem dos performers � e o que não está de passagem?

Sendo assim, inicio este texto contrariando parte da pergunta que impulsiona nossa

pesquisa: em que medida a intervenção performática em trânsito subverte condutas de

comunicação urbana ordinárias e interfere em ambientes midiáticos do transporte

público? Não se pode tratar o andar de ônibus como uma ação social ordinária, já que o

trajeto do transporte público está imerso num frenesi urbano em que não cessam as

incorporações e o rebuliço semiótico. Nela constam aspectos de periodicidade, de fato.

Entretanto, contrariando a ainda não de todo superada tese estruturalista, o mais importante

não é observar o invariável, mas ultrapassar a superfície e tratar uma estrutura em diálogo

com o processo, de forma fractal, até se dar conta de que o que parece uma trama rotineira

faz parte do burburinho de pequenos jogos urbanos. Mesmo o mais habitual aspecto da

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convivência no espaço público urbano não está livre da intervenção, que é também usual,

mas diversa e apontando para várias direções.

Existe mesmo esse tal “ordinário”? Talvez se confunda a ordenação dos percursos das

máquinas com os percursos dos atores sociais. Máquinas e sujeitos, mais do que aquilo, se

cruzam e conferem ainda mais agilidade à geração de vínculos comunicacionais. Pensar em

regularidade na convivência entre os sujeitos que percorrem as linhas de ônibus da cidade é

não perceber que se trata de uma complexa circularidade de interposições. Ou, nas palavras

de Delgado, podemos dizer que se trata de uma “ordem oscilante” (2007: 41), a partir da

qual os espaços urbanos registram fluxos organizados e identificáveis, apesar de serem

dinâmicos e terem uma qualidade de instabilidade (2007: 131). O que possibilita isso é a

busca pelo encontro com o outro.

Devemos destacar, também, que, mesmo a convivência urbana sendo uma atividade

de configuração tão inconstante, há determinados elementos mais prováveis do que outros.

Sabe-se quando e onde uma linha de ônibus trafega, mas nada garante que um performer

vai entrar no veículo, nem se sabe como deverá ser essa abordagem. Nesse sentido, fica

difícil projetar um espaço que funciona sob a permanente interferência de eventualidades.

Não devemos deixar de examinar que se trata de uma transgressão aos sentidos, tão

necessária à manutenção da comunicação no espaço urbano. Percebamos, portanto, marcas

dessa perspectiva, partindo de alguns exemplos.

Embora apresentem aspectos em comum, esses atos performáticos se manifestam sob

heterogêneas composições. Do pregão melódico que anuncia mercadorias à venda, ao canto

de lamento pela situação de miséria. Da abordagem irreverente de transformistas, a um

depoimento de história de vida. Gorete é cega, conta seus trinta e tantos anos de idade e

toca flauta durante o percurso de ônibus em Fortaleza, no Ceará. Ela sobe as escadas do

veículo pela porta contrária a dos passageiros pagantes. Apoiada na barra de metal que

sustenta os primeiros assentos do veículo, a performer exibe canções de uma cultura

tradicional, como um antigo sucesso de forró, ou desempenha o recente tema musical da

telenovela mais assistida. Depois, ela caminha por todo o veículo, recolhendo moedas.

Primeiro o lado de cá, por onde entrou, depois o lado de lá, abordando cada qual de sua,

agora, plateia por meio de leves toques nos ombros. “Uma esmolinha para a ceguinha”, diz,

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repetidas vezes, com a mão estendida. Quem não a viu ou ouviu tocar o instrumento,

imerso na polifonia agitada do ônibus, agora é interceptado pelo contato táctil com ela.

Já um grupo de músicos imigrados do Peru, integrantes do Hermanos Salazar, se

divide entre vários carros e arrecada quantia razoável ao irromper a ressonância caótica que

transita no interior do veículo, acompanhado de melodias advindas das cordas de banjos e

flautas peruanas. “Bamboleo, bambolea / Porque mi vida, yo la prefiero vivir asi”7, cantam,

de pé, apoiados na lateral dos assentos, no corredor do ônibus, dividindo o espaço com

quem atravessa de um ponto a outro do carro. A performance instrumental é integrada a um

movimento corporal composto de um rebolado engenhoso, pois entrecortado pelos

solavancos do veículo.

Percorrer ônibus metropolitanos também faz parte da tática de encontro com o

público praticada pelo grupo de rapazes da Casa de Recuperação Manassés. A instituição,

com sedes em várias capitais do Brasil, desenvolve projeto de tratamento de jovens

dependentes químicos por meio, principalmente, da doutrina cristã evangélica. Suas

atividades são sustentadas por meio da venda de canetas, acompanhadas de mensagens

religiosas, que os performers leem em voz alta, nos transportes públicos. “Este irmão

ajudou. Aleluia, irmão!”, proferem, quando da venda, ultrapassando os limites da

indiferença, pela força da vocalidade, carregada de certa função de poder sobre o

comportamento e o destino daquelas pessoas.

Em outro carro, um rapaz discursa, por dinheiro, para comprar um remédio:

“Gardenal”. E enfatiza: “Se eu não tomar esse remédio, eu fico doido, que nem cachorro

doido”, trajado com seu par de chinelas Havaianas e camisa surrada do Banco do Brasil.

Foi uma das poucas frases que nossa presença compreendeu, durante o encontro, em

pesquisa de campo para este trabalho. Tratava-se de alguém que não articulava bem as

palavras e aquela deficiência era o que colaborava em grande parte para a persuasão do

público-passageiro. Não importava tanto o que dizia, o interesse vinha do estranhamento

que aquele sujeito provocava. A comunicação, estilhaçada, se efetivando pela força da

vocalidade (CERTEAU, 1994: 257).

7 Música Bamboleo, interpretada pelo grupo Gipsy Kings, executada durante performances dos Hermanos Salazar.

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Aposentado, com “não sei quantos” filhos e divorciado, um senhor peregrina com a

carteira de identidade e o documento da previdência social para comprovar a própria

miséria a desconhecidos. Seu corpo é imposto à frente do público, ombros baixos, andar

lento, em tom dramático. O que se apresenta é a própria história de vida, transfigurada à

performatização. Outro homem expõe marcas deixadas no próprio corpo por cirurgias,

motivadas por acidentes e doenças, em troca de ajuda financeira. Levanta a camisa e assim

permanece, de peito exposto e estufado, os braços flexionados segurando a roupa, enquanto

narra seus percursos. Observando-se que o que interessa ao nosso trabalho não é uma

performance concebida como gênero artístico. Trata-se, sim, de uma condição performática

que é conferida ao pedinte, cantor, pregador, vendedor, seja lá, no momento de sua exibição

pública.

De jeans, peruca e nariz de palhaço, um garoto exalta: “Pessoal, eu estou aqui porque

eu participo do Programa Fome Zero8”. Faz uma breve pausa e prossegue: “Fome zero lá

em casa”. Depois disso, continua sua fala com gracejos pelos próximos dez ou quinze

minutos, aproximadamente. “Eu não vou parar de falar enquanto vocês não me ajudarem.

Podem até me jogar pela janela, se não gostarem da minha apresentação, mas, se gostarem,

por favor, me aplaudam”, performatiza, provocando seu interlocutor. Também utilizando o

processo cômico, um rapaz exclama: “Caiu!”, sobressaltam-se os passageiros. Continua:

“Caiu!”. E arremata: “Caiu! Caiu o preço da jujuba!”, num típico jargão publicitário.

Restringir esses atos comunicativos a estratégias de venda ou de mendicância, a meios

meramente retóricos e fins exclusivamente financeiros seria destituir o objeto estudado de

sua grande complexidade expressiva. As interpelações de performers em transportes

públicos urbanos são compostas por um repertório abundante de linguagens e dispositivos

que medeiam as relações desses atores sociais com suas expressões comunicacionais,

inseridos numa densa trama cultural9.

8 www.fomezero.gov.br. De acordo com o Governo Federal, o Fome Zero é um projeto que propõe assegurar o direito humano à alimentação adequada às pessoas com dificuldades de acesso aos alimentos, como estratégia de promover segurança alimentar e conquista de cidadania. Acesso em 27 de abril de 2008. 9 Entendemos o arcabouço de elementos que compõem as performances estudadas por nosso trabalho a partir dos processos de mestiçagem. Apoiados no arcabouço teórico que sustenta o termo, como com os autores Gruzinski (2001) e Martín-Barbero (2002), será possível perceber as movimentações nas fronteiras entre culturas, averiguar processos de adaptação de práticas comunicacionais e estudar processos de criação mestiça, especialmente na América Latina. Além disso, consideraremos a noção de hibridação, discutida por Canclini. De acordo com o autor, hibridações são “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”

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Senhoras e senhores estamos aqui Pedindo uma ajuda por necessidade Pois tenho um irmão doente em casa Qualquer trocadinho é bem recebido Vou agradecendo, antes de mais nada, Àqueles que não puderem contribuir Deixamos também o nosso muito obrigado Pela boa vontade e atenção dispensada Vou agradecendo antes de mais nada

Bom dia passageiros É o que lhes deseja A miséria S/A Que acabou de chegar Bom dia passageiros É o que lhes deseja A miséria S/A Que acabou de falar Lhes deseja , lhes deseja Lhes deseja , lhes deseja10

Concluindo esse bloco de exemplos recolhidos em nossas pesquisas de campo,

citemos Manoel11, menino que soma uns doze anos de idade e apresenta-se sempre de short,

camiseta e com pés descalços. Possui um olhar arrebatadoramente arregalado e a boca

entreaberta, quase sempre. Possui força e energia na voz como poucos, num “gasguito”

brado de atenção para si. “Com licença, motorista”. O pequeno percorre, cambaleante com

os ziguezagues da viagem, o longo caminho de ofertas, do primeiro ao último assento antes

da catraca. Pacotes de jujuba sobre minhas pernas, sobre várias pernas. Sobre uma criança,

(CANCLINI, 2006: XIX). Canclini aponta que a expansão urbana intensificou a hibridação cultural (com destaque para os países latino-americanos), na medida em que se identifica uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, plural, instável, em constantes cruzamentos e renovada por interações do local com redes nacionais e transnacionais de comunicação, por modificações dos vínculos entre privado e público ― traço de fundamental importância para compreender nosso objeto de pesquisa. Sob essa fundamentação teórica, tratamos as performances em transportes públicos como produto de uma combinação de repertórios culturais, que se dão por meio de resistências e conflitos e que requer olhares sob diversos ângulos. Embora “hibridação” e “mestiçagem” sejam termos que possam gerar tênues confrontos teóricos, são conceitos que permitem seu uso conjunto numa mesma pesquisa. 10 Música “Miséria S/A”, composta por Pedro Luís. 11 Sendo um dos poucos performers dos quais conhecemos o nome, utilizo o pseudônimo Manoel para obedecer a norma legal de preservação da imagem da criança e do adolescente, presente no Capítulo II, artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que diz “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”; além de tratar de forma ética as fontes de pesquisa deste trabalho.

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que segura com todo cuidado a caixinha de balas. Mais uma vez o mesmo ato? Essa cena já

se tornou parte do ambiente diário de encontros e desencontros nos ônibus de Fortaleza,

numa composição de sons que mesclam a melodia ruidosa típica do trânsito nas ruas da

cidade, a música arremessada das caixas de som do veículo, as vociferações de cada

personagem do espaço ao discurso do pedinte/vendedor de balas, que, novamente, declama

sua vida:

Senhoras e senhores passageiros, gente Me desculpe seu tiver lincomodano É porque eu estou aqui trabaian Porque o meu pai vive muit’doente no hospital As duasé um real ou é um vale transporte Eu agradeço de coração Vão com Deus e boa viagem (sic) 12

O garoto recolhe bala por bala entregue a cada passageiro, realiza algumas vendas e

salta do ônibus na parada mais próxima, pronto para mais uma apresentação. Confronto

entre elementos de um discurso barroquizado, onde interpõem-se os pormenores do

ônibus. Seus sons, esbarrões, sacolejos perfazem sua superabundância imagética que, como

nos diz Sarduy (s/d: 9), cria um contraponto rítmico para o movimento da realidade, que é

reconstruída. A frases proferidas pelo menino, sua força vocal, criam ritmos próprios, e se

apresentam aproximações com o que o autor indica como contendo em si mesmo planos de

significação.

Mesmo com um texto verbal pré-estabelecido, esses performers são improvisadores.

Ao tratarem do ônibus como território de abordagem comunicativa, eles têm de lidar com

os deslizamentos que a ocupação de um veículo em movimento acarreta. A busca pelo

equilíbrio vai além do sentido físico do corpo, que se apoia na estrutura do carro e tenta

impor sua postura, durante o trajeto por todo o corredor e por várias ruas da cidade. Eles

também têm de realizar constantes readaptações da voz, da circulação corporal dentro do

carro, da interferência do lado de fora na parte interior veículo, na cortesia entre eles, o

trocador e o motorista do ônibus, nos jogos de poder e visibilidade naquele espaço, além de

12 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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se combinar de acordo com “respostas do público”, construindo uma performance que

incorpora todos esses aspectos em seu repertório para poder ser desempenhada.

No próximo ônibus, é provável que o performer parta do mesmo discurso verbal,

assim como também se depare às várias inserções de elementos oriundos do mover-se

urbano, em trânsito e no trânsito. A abordagem no ônibus deve ser breve. Enquanto ela é

desempenhada, o público-passageiro se transmuda. Uns sentam, outros levantam. Muitos

só percebem traços da performance. Vários ambientes são construídos no breve instante em

que se dá o encontro possibilitado pela intervenção performática. Como afirmou, certa vez,

Pinheiro, no circular da urbanidade novas formas de convivência vão se compondo,

entremeadas num erotismo moderno e num melodrama13. Isso nos exige discutir, então, o

que faz do ônibus metropolitano, transitando pelo espaço público urbano, ser palco de tal

complexidade para esse estilo de convivência social.

1.2 Frenesi semiótico na comunicação do espaço público

No espaço público urbano a efervescência de signos se dá com grande intensidade e

liberdade. Nele, as contínuas combinações provocam sempre uma demanda por releituras.

Esse fervilhar atribui mobilidade estética e de poder político14. Para tentar compreender as

possibilidades sociais, culturais e comunicacionais do espaço urbano externo, comecemos

com uma interpretação que Bachelard faz sobre as diferenças entre o estar no interior e o

estar no exterior, que ele associa a locais com tendências a introversão e extroversão dos

sentidos, respectivamente.

Ao tratar da casa enquanto morada, o autor escreve que o local fechado tem

significados de proteção e contribui para razões ou ilusões de estabilidade. É, ainda,

imaginada como “um ser concentrado” e que nos leva a uma “consciência de centralidade”

(BACHELARD, 1993: 36). Segundo ele, o espaço interno nos assegura valor de

13 De acordo com Amálio Pinheiro, em 18 de agosto de 2009, durante reunião do Grupo de Pesquisa “Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem”, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 14 Segundo Amálio Pinheiro, na aula do dia 18 de março de 2009, na disciplina “Ambientes midiáticos e processos culturais: das oposições aos mosaicos mestiços”.

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imobilidade, de segurança e de solidão, seja sofrida ou desejada. Sendo assim, podemos

pensar esse ponto de vista não somente relacionado a sensações do indivíduo, como

também a possibilidades de mobilidade na representação de sentidos, ou seja, o espaço

interno, fechado, privado, é menos dotado de tendências às variações e conexões lançadas

pelos sujeitos sociais em esferas de cultura. Enquanto Bachelard escreve que o espaço

interior estimula um encontro consigo mesmo, distante da cadência do abalroar de sujeitos

do espaço público, Calvino (1990: 38), narra15 as trocas com o outro em diversas

circunstâncias, seja numa atividade de trabalho, de lazer ou de passagem. Estas

reciprocidades só são possibilitadas pelo convívio dos indivíduos nos espaços externos das

cidades.

Sendo assim, o primeiro destaque a fazer é que o espaço exterior é o local do

acontecimento: “el imperio infinito de las escapatorias y las deserciones, de los encuentros

casuales e de las posibilidades de emancipación” (DELGADO, 2007: 29). Antes de discutir

as relações performáticas nos ônibus metropolitanos, é preciso compreender, então, que

elas se dão no urbano, um espaço social que se organiza continuamente, a partir do

deslocamento dos indivíduos. Delgado aponta como característica singular dessa zona de

convivência a proliferação de emaranhados, compostos de usos, impostações, retificações e

adequações contínuas e mútuas, que emergem não de pontos fixos, mas de um

agrupamento polimorfo e inquieto de sujeitos, destinado a dissolver-se de imediato

(DELGADO, 2007: 11). O espaço urbano16 seria, então, não uma construção fixa, coisa ou

objeto, mas uma atividade, uma ação interminável, experiência massiva de deslocamento e

de estranhamento, em duplo sentido de desconhecimento mútuo e de formulação de novos

recursos, cujos protagonistas se diluem entre esses usuários que reinterpretam a forma

urbana a partir das formas de um ir e vir por suas veredas (idem).

15 Em As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino, o famoso viajante veneziano Marco Pólo descreve a Kublai Khan, a quem serviu durante muitos anos, as inúmeras cidades do imenso império do conquistador mongol. Marco Pólo narra os lugares por onde passa descrevendo as simbologias, as trocas entre seus moradores, tratando dos locais como de vibrantes pluralidades e transformações. 16 Considerando que o “urbano” difere de “cidade”. Segundo Delgado (2007: 11), a cidade é um sítio, um local onde se levantam construções e se forma um conjunto complexo de infra-estruturas, onde vive uma população mais numerosa. Já o urbano se define como as práticas recorridas nesses espaços, movidas por seus habitantes em permanente diálogo com o ambiente físico. O espaço urbano se faz, sim, das fachadas dos edifícios, dos monumentos, mas também da hora, das condições climáticas, se é dia de festa ou de trabalho, assim como de seus odores, cores, sonoridades � tudo isso em contínua troca com seus transeuntes.

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En otras palabras, la idiosincrasia funcional y sociológica del espacio urbano no está - no puede estar - preestabelecida en el plan, no puede responder mecánicamente a las direccionalidades y los puntos de atracción prefigurados por los diseñadores, puesto que resulta de un número inmenso e inmensamente variado de movimientos y ocupaciones transitorias, imprevisibles muchas de ellas, que dan lugar a mapas móviles y sin bordes. (DELGADO: 2007, 13).

Portanto, a partir de Delgado, entendemos que no espaço urbano existe uma

coerência lógica e uma coesão prática, porém nada parecido a um desenrolar por meio de

um código único e longe da ideia de progressão. A versatilidade dos acontecimentos é

inumerável e decorre da mescla que constantemente ali se registra entre continuidade e

oscilação (DELGADO, 2007: 17).

Nesse sentido, a comunicação urbana tende a atuar como um dos principais

componentes na subversão de códigos e geração de novos sentidos na metrópole, local de

urbanidade específico de que trata nosso trabalho. Canevacci, em analogia entre polifonia

citadina e polifonia musical, compartilha da noção de espaço urbano pretendida por

Delgado e descreve que a cidade “se caracteriza pela sobreposição de melodias e

harmonias, ruídos e sons, regras e improvisações cuja soma total, simultânea ou

fragmentária, comunica o sentido da obra” (CAVEVACCI, 1993: 18). O autor aponta que a

comunicação urbana se desenrola de forma dialógica. Segundo ele, o observador da cidade

deve tentar compreender “discursos “bloqueados” nas estruturas arquitetônicas, mas

vívidos pela mobilidade das percepções que envolvem, numa interação inquieta dos vários

expectadores com os diferentes papéis que desempenham” (CANEVACCI, 1993: 22).

Incluímos, ainda, que esse duplo processo de seleção e de tradução se encontra não só nas

expressões de nossa arquitetura, mas em todos os aspectos que se dispõem nessa interação

e participam da contínua construção e reconstrução do urbano, inclusive, portanto, na

dinâmica social dos transportes coletivos.

Inserido no seu ambiente físico e social de atuação, o espaço urbano, as ações

performáticas em transportes públicos revestem-se de uma rede de relações simbólicas

específicas. Nesses locais, as relações funcionam como um diagrama, composto por

permanentes combinações entre os espaços e seus transeuntes. É nesse contínuo redesenho

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que Delgado (2007) caracteriza os movimentos urbanos como dotados de uma

“exuberância informativa”. São moldados por processos de sociabilidade, em cenários de

conflitos, formas de conhecimento e de interpelação. É no exterior que ocorrem encontros

casuais; é ele que possibilita o entrar e o sair (cada um remetendo a uma forma de conduta

e de percepção); que permite associações e interações entre estranhos � práticas

comunicativas complexas e aceleradas que partem da convivência nas ruas. De acordo com

o autor, o transeunte faz mais do que ir de um ponto a outro de um pedaço do urbano;

fazendo-lo, ele “poetiza a trama citadina” (DELGADO, 2007: 70).

A começar pelo ato de caminhar. O percorrer as ruas, subindo e descendo de

transportes coletivos, como exercício para a prática comunicacional, possibilita um campo

de visibilidade único e uma mobilidade interativa (CANEVACCI, 1997). Ao entrar num

ônibus pela porta contrária dos demais passageiros (não pagando passagem, sob

autorização do motorista), por exemplo, o performer subverte um “código de circulação”

praticado pelo restante da população naquele espaço e dinamiza uma corrente de direção

executada pelos transeuntes17. Essa subversão se dá, ainda, quando a performance se instala

num local programado para ser passagem. Para captar a atenção do público, o performer se

interpõe num momento e num ambiente considerados de fluxo, numa corrente contrária a

que ele se direciona.

Essa “contracircularidade” contribui para uma mudança importante na participação

do performer naquele ambiente social. Além disso, nos faz começar a compreender o

porquê de as performances serem executadas em transportes públicos e não em ruas da

cidade. Afinal, uma mudança no suporte implica mudança no restante das relações, não

apenas no caso de uma recolocação de determinadas práticas performáticas � como, no

caso, de um teatro para a rua ou como de uma praça ou de uma esquina para o ônibus �,

como também na criação de uma performance já para aquele local de execução.

É que, na medida em que aquele performer disside de um acordo de formas de

ocupação de determinado local, ele passa a ser mais visto. A abordagem no carro em

movimento, em sua corporeidade literal, extrapola a visibilidade, já bastante intensa, dos

locais fixos do território externo. Certa “errância” das apresentações performáticas pelos

17 É importante destacar, ainda, que a recorrência das performances em Fortaleza é mais intensa nas zonas de centro, em bairros de maior poder aquisitivo e confluência da população. Discutiremos mais esse aspecto adiante.

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espaços (também itinerantes) potencializa sua exposição, ainda mais em uma circunstância

de imprevisibilidade, rompendo uma impressão de regularidade.

Podemos pensar, portanto, no caminhar como uma das linguagens exercidas pelos

performers que se apresentam em ônibus da cidade. Em sentido literal do termo, Delgado

nos indica que o caminhar é uma prática culturalmente metódica, uma ação social, já que

precisa reafirmar constantemente a orientação aos demais e a incorporação dessa orientação

à própria conduta (2007: 132). Dentro dessa noção, os canais pelos quais transitam os

sujeitos, as vias de movimento que suscitam o espaço urbano, são fenômenos

convencionalizados e submetidos a procedimentos e protocolos associados sempre aos

princípios da percepção sensível que estabelecem um direito de propriedade provisional

dessa via, da linha de locomoção projetada (idem). Ainda nas palavras do autor, a

caminhada é exercida em condições ordinárias ou excepcionais e pode ser concebida e

praticada como campo de visibilidade.

Entretanto, não é caminhando que o performer exerce sua apresentação. A caminhada

é recurso para se chegar até o próximo ônibus. O passo a passo funciona, nesse caso, como

linguagem que une as várias ações performáticas de um único sujeito enunciador,

costurando um histórico de deslocamentos e colaborando para uma legitimação social da

atividade.

Não apenas. O ato de caminhar, na interpretação de Certeau, é espaço de enunciação.

Ele associa a comunicação na urbanidade aos modos de expressão linguísticos,

considerando a caminhada como o ato de agir urbano, bem como o falar sendo o ato de

exercer a língua. O caminhar, para o autor, exerce tríplice função enunciativa, sendo um

processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre, uma realização espacial do

lugar e implica relações entre posições diferenciadas, ou seja, “contratos” pragmáticos sob

a forma de movimentos (CERTEAU, 1994: 177). Traduzindo tal perspectiva para nosso

objeto de estudos, percebemos que as três funcionalidades apontadas pelo autor se unem,

na ação performática em trânsito, em uma, apenas: a de reforçar a interpelação diante do

outro.

Sendo assim, ao caminhar, o performer, de fato, se apropria da topografia citadina e

realiza espacialmente aquele lugar, mas protagoniza isso sob a pretensão de efetivar as

relações entre posições diferentes, sempre � fundindo as funções enumeradas por Certeau.

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A linha simbólica construída ao longo do dia pelo performer que percorreu vários carros

em movimento pelas ruas da cidade pode ser apreciada como contendo, em certa medida,

uma intencionalidade de ocupação de determinado local, ou seja, as escolhas não são de um

todo aleatórias.

Isto pode ser percebido quando observamos as linhas de ônibus em que as

abordagens performáticas são mais recorrentes. Veículos que trafegam por bairros dos

centros urbanos de Fortaleza, que abrigam zonas de confluência da população, como

regiões de grande movimento comercial, de estabelecimentos que oferecem serviços,

extensas avenidas; que cortam ruas que contêm shoppings, centros de programação

cultural, ou, até, bairros residenciais, mas de alto poder aquisitivo, além das bandas

próximas aos terminais de baldeação, são onde se pode deparar com as performances com

mais facilidade. Em zonas periféricas da cidade é difícil encontrar tal abordagem18.

Até porque, como discute o próprio autor, o caminhante faz suas próprias realizações

de percurso. E, assim sendo, o repertório de locais por onde passam e os ônibus que os

performers ocupam se revelam um cruzamento entre os trechos de maior transição da

população de Fortaleza e os carros que dispõem de melhor acesso (levando-se em conta a

lotação de passageiros, o percurso que o veículo fará nos próximos instantes e a autorização

do motorista � ou a burla da restrição de ocupação do veículo), em permanente negociação

com a escolha pessoal de cada performer, carro a carro. O conjunto das possibilidades de

percursos desse transeunte seria, então, reatualizado continuamente, na forma como se

desloca e na invenção de novos caminhos, criando algo descontínuo, o que Certeau chama

de “retórica da caminhada”.

Da mesma forma, o caminhante transforma em outra coisa cada significante espacial. E se, de um lado, ele torna efetivas algumas somente das possibilidades fixadas pela ordem construída (vai somente por aqui, mas não por lá), do outro aumenta o número dos possíveis (por exemplo, criando atalhos ou desvios) e o dos interditos (por exemplo, ele se proíbe de ir por

18 As informações são relatadas como observações da pesquisadora em trabalho de campo. Não há estatísticas formais ou qualquer tipo de quantificação de apresentações performáticas e as linhas de ônibus mais ocupadas formuladas por nosso trabalho. Trabalhamos, portanto, com tendências e uma interpretação do fenômeno em sua generalidade, neste caso.

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caminhos considerados lícitos ou obrigatórios) (CERTEAU, 1994: 177-178).

Partindo disso, Certeau prossegue indicando que a caminhada afirma, lança suspeita,

arrisca, transgride, respeita etc., as trajetórias pelas quais o transeunte comunica, não sendo

possível reduzí-las ao seu traçado gráfico. “Todas as modalidades entram aí em jogo,

mudando a cada passo, e repartidas em proporções, em sucessões e com intensidades que

variam conforme os momentos, os percursos, os caminhantes” (CERTEAU, 1994: 179). A

retórica da caminhada, segundo o autor, envolve o tratamento de símbolos e códigos no

traçado urbano, construindo maneiras de ser e de fazer (1994: 179-180). O que define e

instaura essa linguagem, portanto, é o “efeito de encontros de ocasiões sucessivas que não

cessam de alterá-la e de usá-la como o brasão de outra, ou seja, o que carreia aquilo que

surpreende, atravessa ou seduz seus percursos” (1994: 180-181).

Os performers traçam seu próprio caminho, sim, mas perseguindo uma linha

imaginária formada pelo transitar dos ônibus na cidade, cruzando estilos de caminhada do

público-passageiro, das máquinas e dos usos que ele mesmo faz do espaço urbano, em

busca da comunicação mais eficaz. Essa mesma dinâmica de deslocamentos é o que

permite a cada passante observar, mas ser também observado, simultaneamente, em vias

públicas, coordenando ações recíprocas entre si de acessibilidade e cooperação

(GOFFMAN, 1974).

Nessa reconfiguração semântica do circular urbano instaurada pela performance, os

ônibus são cenários, os passageiros são plateia, o performer é o provocador daquela

comunicação e o andar é a possibilidade de encontro físico, cada elemento funcionando

como um ponto unido um ao outro, entrelaçando um tecido de representação do urbano e

indo além da formação de uma geografia física daquele espaço vivenciado, desencadeando

também uma “geografia poética” (CERTEAU, 1994: 185).

Então, podemos afirmar que o percorrer esses espaços de ônibus é uma possibilidade

de ocupação e comunicação do social que muda a estrutura narrativa, não apenas no relato

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da percepção sobre a cidade19, mas no relato sobre si, que passa, então, a incorporar no seu

discurso as intempéries e triunfos do movimento.

E a jornada não se restringe ao lado de fora. Dentro do veículo, a performance

executada também contém uma marcha, desta vez em linha reta, de cá a lá do corredor do

ônibus, enquanto se arremata a mercadoria (física ou simbólica) oferecida. Esse movimento

implicaria sucessões diacrônicas de pontos de participação dos transeuntes e dariam cabo

às ações táticas de encontro com o outro de que fala Certeau (1994). Discutiremos essas

ações em seus pormenores no segundo capítulo deste trabalho.

O que faz a comunicação urbana funcionar através de tantas variações de

possibilidades e circulação significante de códigos? Os processos de formação dessa

dinâmica do encontro urbano se dão a partir de uma profunda mestiçagem cultural,

exercendo o fazer comunicacional forte papel nesse enredo. Martín-Barbero (2002) destaca

que esses movimentos de interação e “reterritorialização cultural” desembocam numa

“cultura popular urbana”, caracterizada por modos próprios de aglutinação de crenças e

comportamentos e de lidar com os problemas coletivos. Essa constante reconstrução é

atividade indispensável aos processos comunicacionais. Percebamos, então, parte das

transições culturais incorporadas por essas experiências “topográficas” e sociais da

comunicação no espaço público metropolitano.

Podemos observar alguns dos aspectos dessa reconfiguração a partir de um cotejo

entre as execuções performáticas nas praças públicas e as interpelações nos veículos em

movimento. Alguns dos principais pontos de apresentações de performances foram praças

públicas e feiras livres, com o comércio funcionando como um dos principais elementos

aglutinadores da população nesses espaços, sendo os mercados e feiras livres compostos

por uma “sobreposição de odores, de cores, de produtos, de pessoas, que despertam os

sentidos para a surpresa”, além de seu elemento ornamental funcionar como um

enriquecedor dos sentidos daqueles que percorrem para consumir (RENNÓ, 2006: 32-33).

Bakhtin (1993), analisando aspectos da praça pública no contexto da Idade Média,

aponta que algumas das particularidades da vida naquele espaço eram os espetáculos na

19 “Na Atenas contemporânea, os transportes coletivos se chamam metaphorai. Para ir para o trabalho ou voltar para casa, toma-se uma “metáfora” ¾ um ônibus ou um trem. Os relatos poderiam igualmente ter esse belo nome: todo dia, eles atravessam e organizam lugares; eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles fazem frases e itinerários. São percursos de espaços. Vendo as coisas assim, as estruturas narrativas têm valor de sintaxes espaciais” (CERTEAU, 1994: 199).

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rua. As praças são por ele compreendidas como locais abertos à cotidianidade,

caracterizados por um tipo particular de comunicação, ausentes das construções formais de

linguagem.

O autor retrata a praça pública como ponto de convergência de abordagens de caráter

não-oficial e de liberdade, sendo espaço expressivo de “certos fenômenos da linguagem

familiar”, como grosserias, juramentos e maldições exclamados entre indivíduos, até o

reclame de saltimbancos e comerciantes, numa mistura de gêneros interpelativos e tomadas

de palavra, “que é por vezes difícil traçar um limite preciso entre eles”. “Os camelôs que

vendiam drogas eram também comediantes de feira; os “pregões de Paris” eram colocados

em versos e cantados com diversas melodias; o estilo dos discursos dos charlatães (sic) de

feira não se distinguia em nada do estilo dos vendedores de romances de quatro centavos”

(BAKHTIN, 1993: 132).

Sendo assim, segundo o autor, é neste espaço onde a população goza de um direito de

““exterritorialidade” no mundo da ordem e da ideologia oficiais” (idem). Outro aspecto

importante conferido às relações entre pessoas na praça pública, citado por Bakhtin, são os

espetáculos de rua, onde paródias e travestimentos eram, muitas vezes, expressos em

linguagem vulgar, onde charlatões ativavam seus gestos, artimanhas, destrezas e

habilidades no falar e no contar. Em que superlativos se acumulam em excesso nos

argumentos dos vendedores e os reclames gritados ao público são concebidos numa forma

ritmada e rítmica.

Como podemos pensar que isso se relaciona com as performances que hoje são

exibidas nos transportes públicos urbanos? Ainda que considerando as transformações

sucedidas nos últimos séculos, há de se observar que muitos aspectos medievos se revelam

em costumes nas sociedades atuais, incluindo em países da América Latina, em seus

aspectos diacrônicos e etnográficos � embora inseridos em universos semânticos diversos20.

20 Gilberto Freyre relata, por exemplo, a performance de vendedoras de doces, em pregões melódicos oriundos de Portugal que, chegados ao Brasil, se incorporaram aos fazeres da nova pátria e sucederam simbioses no processo de intersecção de culturas, desencadeando um fazer performático que transita por gerações: “Um costume conservado de Lisboa do século XVI foi o de negras com panelas, balaios e tabuleiros de doce, que saíam pelas ruas do Rio, da Bahia, do Recife apregoando sua alféola, seu alfenim, seu doce. Também o de venderem o seu cuscuz ou seu arroz-doce – no Brasil, à sombra de alguma gameleira grande, sobre tabuleiros apoiados em armações de pau abertos em X. Um manuscrito português do século XVI fala de vendedoras de doces acordando os meninos de Lisboa com seus pregões: “Como os meninos as ouvem da cama, se levantam chorando por dinheiro a seus pais e mães”. Exatamente isso se repetiria no Brasil, geração após geração, até os nossos dias. As negras cantando: “Eh! Alfenim” ou “Eh! Bolo”; os

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Esses locais permanecem como importantes espaços de comunicação e sociabilidade

entre indivíduos ainda hoje. Contudo, a distribuição dessas zonas se modifica e outros

espaços funcionam como local de confluência de inúmeras manifestações sociais, culturais,

artísticas, comunicativas. Dentre eles, os transportes públicos. Da praça, onde os

performers ficam à mostra e o público transita, passa-se, também, a atuar em ônibus, por

exemplo, onde a “plateia” acaba por ficar à espera do ato performático.

Até hoje, a praça é considerada espaço de coletividade e de interpelação

comunicacional, muitas vezes referenciada como espaço de grande proximidade e

familiaridade21. Há relatos sobre a Praça do Ferreira (uma das mais expressivas da capital

do Ceará), já chamada simplesmente de feira-nova (MENEZES, 2000: 47), em fins do

século XIX, como espaço de convergência da população que, em dias de feira, se revestia

do falario dos feirantes ao apregoarem a excelência de suas mercadorias (GIRÃO: 1979) �

se conservando como local de grande convivência até hoje. Em meados de 1940, por

exemplo, nas zonas residenciais, eram os leiteiros, padeiros, gazeteiros, aguadeiros,

vendedores de doce, sorveteiros, verdureiros, que desfilavam ao longo das ruas e davam

conta das sonoridades performáticas22.

Todas as tardes, a Praça era ocupada por populares, vendedores ambulantes, carregadores, catraeiros, doidos, mendigos e desempregados em geral que formavam o que os jornais da época chamavam de cabroeira. Ficavam ali, esperando que passasse pela praça algum marreta. Quando identificavam alguém, começavam a vaiar sem piedade, muitas vezes

meninos chorando por dinheiro para comprar alfenim e bolo. É pena que não exista o registro musical dos pregões brasileiros – ou afro-brasileiros – de doces, de bolos, de frutas: assunto para um estudo interessantíssimo, não só do ponto de vista folclórico como sociológico, além de psicológico. Pregões, muitos deles, meio tristonhos, as últimas vogais se arrastando moles, sem ânimo, no silêncio dos meios-dia ou dos fins da tarde: “Geléia! É de araçááá!”, “Sorvete! É de macarujááá!”. Mas com essa tristeza toda, alvoroçando os meninos e até os velhos gulosos: “Eh, vem o freguês!”” (FREYRE, 1997: 84). 21 Como se verifica nesta passagem do livro Fortaleza e a crônica histórica: “A esta altura, quase posso dizer: Fortaleza sou eu – os meus hábitos, as minhas emoções, a minha memória, as minhas obrigações, o meu suor, as minhas andanças diárias e a passos calmos, como é o meu feitio, por estas ruas e praças que são como que uma continuação da minha própria casa” (GIRÃO, 2000: 67). 22 “Durante o dia inteiro, seja a pé ou postados em carroças, os vendedores preenchem e colorem a rotina da vizinhança, com seus cantos langorosos e sem pressa, contrastando o ruído estridente e lacônico das buzinas. (...) A própria norma culta da língua fica suspensa no passo cadenciado dos ambulantes, sofrendo as inflexões pachorrentas de palavras entoadas diariamente centenas de vezes: ‘toicim’ (toucinho), ‘laranja do Piôi’ (Piauí), ‘guiabada’” (SILVA FILHO, 2006: 80-83).

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cercando-o e lhe atirando palavras de insulto (LEITÃO, 2000: 200-201).

Hoje, seus bancos estão sempre lotados daqueles que batem papo, em interação com

vendedores ambulantes, transeuntes, ativistas políticos, performers de vários estilos,

sempre tendo seu cenário alterado pela montagem de uma feira, um show de música, um

festival de cinema. Também a Praça José de Alencar � ponto de saída e chegada de muitos

performers nos ônibus da cidade � figura como exemplo representativo do fervilhar da

sociabilidade do espaço urbano que há décadas se reconstrói e que atua como ícone do

encontro entre a população de Fortaleza, como observamos em pesquisas de campo para

este trabalho e conforme escreve Silva Filho no trecho adiante:

Na praça José de Alencar, por exemplo, ambulantes e vendedores de sanduíche estão lado a lado com homens que pregam o evangelho, passantes, engraxates, pedintes, mototaxistas, batedores de carteira, desempregados, policiais, bêbados e “artistas de rua” – com suas atrações que mais lembram pequenos circos ao ar livre. (...) Para estes habitantes, por vezes ligados à economia informal, o espaço público conserva uma grande vitalidade e se presta a um leque de atividades – moradia, trabalho, lazer, compras, troca de informações, esporte, alimentação, sociabilidade (SILVA FILHO, 2001: 41).

Delgado (2007) aponta ruas e praças como figurando como instituições sociais,

cenários em que desconhecidos se relacionam em feitos microscópios ou grandiosos e

desenrolados por cada pessoa que participa daquele ambiente. Segundo o autor, nas ruas se

desenvolvem formas próprias de aprendizagem e de sociabilidade, cujos protagonistas não

estão associados entre si por laços involuntários � membros de uma família, por exemplo

�, não compartilham ordens formais estáveis, nem possuem uma mesma visão de mundo ou

sentimentos identitários que permitiria reconhecê-los como uma comunidade (2007: 128).

O que há são relações entre pessoas que não se conhecem, ou se conhecem pouco, e que

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sobrepõem suas participações umas às outras, construindo uma convivência enquanto se

vivencia a urbanidade.

Sendo assim, os encontros entre pessoas durante o ato performático num ônibus

metropolitano vão além do confronto entre performer e público-passageiro. Em alguns

episódios, em pesquisa de campo para este trabalho, por exemplo, nos deparamos com mais

de um performer que dividia o carro em suas interpelações e complexificava, ainda mais,

as circunstâncias comunicativas daquele momento. Certa vez, partindo do terminal de

ônibus da Parangaba, em Fortaleza, um rapaz alto, esguio, com boné e óculos escuros

voltados para trás da cabeça e uma camisa com a impressão “JESUS” escrita em letras

grandes justo no peito, que se apresentava como um dos integrantes da Casa de

Recuperação Manassés, citada anteriormente23, iniciou sua performance.

Vocês me perdoem incomodar o silêncio da viagem de vocês. Meu nome é Júlio César, eu sou natural da Bahia, capital Salvador, sou da Casa de Recuperação Manassés e vou passar na mão de vocês essas canetinhas, mas sem compromisso algum, e vou falar sobre a obra Manassés. Para aquelas pessoas que vêm acompanhando nosso trabalho, façam a gentileza aí, ó, de segurar o nosso informativo24.

O ônibus lotado chacoalhava os passageiros e o performer colocava força na perna

posicionada mais à frente para se manter de pé enquanto distribuía o kit de informativo e

caneta aos acomodados nos assentos do veículo. Foi enquanto o rapaz percorria as fileiras

em que se encontrava o público que se começou a escutar as primeiras notas do som da

sanfona, funcionando como trilha sonora daquele ato. Era um outro performer, cego, que se

23 Os integrantes da Casa de Recuperação Manassés têm adicionado em seus discursos durante intervenção nos ônibus a informação de que falsos membros estariam se apresentando também nos trajetos dos carros e utilizando as causas da instituição para se beneficiar nas vendas. Conforme eles mesmos indicam e nós observamos, o uniforme dos “autênticos” representantes da casa é azul e eles andam com crachá no pescoço. Pessoas têm confeccionado outras camisas, brancas, com o nome “JESUS” estampado, e se apresentado como integrantes da casa. As mensagens por escrito que são vendidas juntamente com as canetas pelos membros da instituição são, então, fotocopiadas e vendidas da mesma forma. Este performer do qual nosso exemplo trata está caracterizado como o representante “falso” da casa de recuperação. Observando que, até entre os próprios performers, uma reprodução de um estilo e de uma maneira de abordagem está presente. Discutiremos mais sobre esse aspecto adiante. 24 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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posisionara ao lado do trocador do transporte coletivo, apoiado na estrutura de metal do

último acento, onde começaria sua “microperegrinação” de cantoria performática naquele

retângulo em deslocamento:

Não posso respirar Não posso mais nadar A terra está morrendo Não dá mais pra plantar Se plantar não nasce Se nascer não dá Até pinga da boa é difícil de encontrar Cadê a flor que estava aqui Poluição comeu E o peixe que é do mar Poluição comeu E o verde onde é que está Poluição comeu Nem Chico Mendes sobreviveu25.

A fala do rapaz transformara-se, nesse instante, num rumor enquanto a música do

sanfoneiro se sobrepunha. Os dois sons se misturavam e ambos prosseguiam sua

interpelação, simultaneamente, um à frente do público e o outro num canto do fundo do

veículo. Os passageiros viam o rapaz da Manassés, mas escutavam a cantoria do velho

cego. Alguns se viravam para trás para enxergar um pouco de cada. Passageiros pediam

licença a um e a outro, para atravessar até a porta de saída ou ao banco vago para sentar.

Nos intervalos da canção, enquanto o músico avançava um pouco mais à frente do

carro � “Vamos ajudar o ceguinho. Vamos cooperar” �, o mais jovem conseguia elevar seu

alcance ao público: “Jesus não agradou a todos. Se puderem colaborar, eu agradeço (...)”. E

lá ia o velho cego novamente, desta vez com uma canção de namoro:

Eu arranjei uma menina Tão linda e comecei a namorar Era um namoro arrochado Que eu fiquei todo abestado Não sabia nem falar

25 Idem. O performer interpreta a música “Xote ecológico”, de Zezinho Barros.

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Ela era uma morena dos olhinhos esverdeados Do corpo bem calculado Tinha um cabelo grande, nós saímos do forró E ficou só nós dois só Só nós dois no nane nane E nane nane nane nane nane nane forró se acabou Todo mundo se mandou E eu fiquei com meu amor Só nós dois no nane nane E nane nane nane nane nane nane E nane nane nane nane nane nane26

O rapaz começava a se aproximar do cego sanfoneiro, em seu deslocamento dentro

do veículo para recolher as moedas do público, enquanto negociava com um passageiro

aqui e acolá a cor da caneta que seria comprada. Durante a comercialização ambulante, um

senhor tratava de gingar ombros e quadris para conseguir se encaixar e passar por entre os

dois performers. O espremido no corredor do ônibus obrigou uma pausa no fazer do

sanfoneiro. Foi quando o “Manassés”, ele mesmo, depositou uma de suas moedas na mão

do velho tocador e sentou no assento ao lado, figurando, agora, como parte do auditório e

interlocutor de outra performance.

Esse não é o único exemplo. Registramos, também, a participação conjunta de um

vendedor de balas e um outro membro da casa Manassés (este trajado com o uniforme

oficial da instituição). Diferentemente do caso anterior, em que os dois performers

compartilharam do mesmo instante de tempo em quase toda a interpelação comunicacional,

agora houve um revezamento, estendendo a duração em que o público-passageiro era

abordado. O primeiro deles, o ex-dependente químico que vendia canetas, exibiu seu

discurso mesclando os benefícios da doutrina cristã evangélica aos predicativos das canetas

à venda:

Muita gente pensa que a gente prega a palavra de Deus para vender caneta. Não. A caneta é apenas uma consequência. A caneta é apenas uma consequência do nosso trabalho, porque a palavra de Deus é que me retirou do mundo das drogas. Eu tenho que falar

26 Idem. O performer interpreta a música “Só no nane nane”, de Sirano.

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porque Jesus foi quem me salvou. Então, o que vocês têm em mão são canetas de ponta fina, ponta média e ponta grossa. Atrás dela, você vai encontrar um marcador de páginas, além de frases evangélicas que vocês podem ler. Serve até para mim27.

Ele não havia terminado sua venda, ainda recolhendo de volta as canetas deixadas

sobre as pernas dos passageiros quando o outro vendedor ambulante iniciou sua abordagem

dentro do veículo. O performer da casa de recuperação, então, sentou-se em um dos

assentos e passou a assistir ao pregão do vendedor ambulante, que oferecia jujuba e balas

de gengibre, uma por vez, cada uma com seu próprio pregão. “Gengibre para a garganta só

paga um real o pacote!”, “Quatro pacotinhos de jujuba só paga um real! Quatro! Um é

trinta, duas é cinquenta, quatro é um real!”, exibia a mercadoria, virando o corpo de um

lado a outro, de um lado a outro do ônibus e caminhando do motorista ao trocador várias

vezes. Os seis minutos de interpelação dos dois perfomers durante aquele trajeto parecem

um tempo de curta duração, mas, considerando o ambiente do ônibus, aquilo representa

uma abordagem extensa no decorrer do traslado de um transporte público pelas ruas da

cidade.

Analisando os exemplos, podemos afirmar que, na medida em que o ônibus se mostra

espaço de um curso abundante de apresentações performáticas, ele incorpora características

de um comércio livre praticado em mercados e praças públicas? Nos apoiando em Martín-

Barbero (2002), destacamos que espaços como as praças públicas perdem parte de seu

caráter de encontro, passando a adquirir mais intensamente propriedades de fluxo. Dentro

da dinâmica urbana, os transportes públicos também se reconfiguram. Fundamentalmente

com caráter de trânsito, esses meios adquirem, em certa medida, aspectos de convergência

e de expressividade da população no dia-a-dia das grandes cidades, que, hoje, mais do que

impulsionadas a atuar a partir do encontro entre indivíduos, experimentam a velocidade da

circulação pelos espaços e possibilidades comunicativas (MARTÍN-BARBERO, 2002:

286). Mas não apenas como meros ambientes físicos de interação. A abertura para novas

perspectivas de comunicação e outras dinâmicas entre os sujeitos nestes espaços

27 Registro realizado pela pesquisadora, em pesquisa de campo para este trabalho.

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representam, segundo o autor, brechas que dão cabo a um desabrochar de novas ordens no

espaço urbano (MARTÍN-BARBERO, 2002: 275).

Pues de lo que habla esse estallido es tanto de las renovadas formas de marginación y exclusión social como de los nuevos modos de estar juntos desde los ciudadanos experimentan la heterogénea trama sociocultural de la ciudad, la enorme diversidad de estilos de vivir, de modos de habitar, de estructuras del sentir y del narrar. (...) Heterogeneidad simbólica e inacabarcabilidad de la ciudad, cuya expresión más cierta está en los cambios que atraviesan los modos de experimentar la pertenencia al territorio y las formas de vivir la identidad (MARTÍN-BARBERO, 2002: 276-277).

O autor afirma que hoje a cidade experimenta uma desespacialização, em que seus

locais são ressignificados em espaços de fluxos e em canais, equivalendo a uma produção e

consumo sem localização e sob um regime de velocidade. Outra mudança é um

descentramento, que opera sob a proposta de que uma cidade não mais se restringe aos

centros de interação, mas está configurada a partir de circuitos conectados em redes, cuja

topologia supõe a equivalência de todos os lugares e com uma desvalorização daqueles

lugares que funcionavam como centro, como as praças. Além disso, a cidade vivencia uma

desurbanização, que se apoia na ideia da redução progressiva da cidade que é realmente

usada pelos cidadãos, conduzindo a um desuso por parte da maioria da população dos

espaços públicos carregados de significação durante muito tempo (MARTÍN-BARBERO,

2002: 286-288).

A partir dessa perspectiva, portanto, os transportes públicos funcionam sob um novo

parâmetro, passando a incorporar maior número e grande variação de modos de interação

entre os sujeitos. E essas novas condições do vivenciar urbano se dão por meio de um

impulso de intercâmbio social instantâneo e acelerado, dotado de visibilidade e

corporeidade, capaz de operar enlaces que antes eram realizados nas praças, por exemplo,

construindo um espaço comunicacional que conecta territórios e sujeitos � contudo, com

menos aglomeração e periculosidade de um encontro intenso, sendo, agora, breve e

operando a partir da possibilidade do subir e descer do ônibus.

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Esse caráter de trânsito exige-nos, a partir de agora, destacar um gosto pelo “lado de

fora”, especialmente verificável com muita intensidade entre populações latino-americanas.

Mas seriam os ônibus locais internos ou externos? Apoiando-nos em Delgado (2007), os

ônibus constituiriam locais semipúblicos, dotados de sede, embora não assentados, mas que

são espaços comunicacionais. O autor acrescenta que os transportes públicos se incluiriam

nos cenários onde é possível estabelecer ação social e interação entre desconhecidos que

estão reunidos num mesmo ponto e num mesmo momento28. E é dessa possível confluência

de instantes entre estranhos que vai se desencadear o potencial comunicativo do transporte

público.

Um real aí é um real Um real aí É um real aí é um real Um real Vendo pilha, bateria, fita-cassete, biscoito Paçoca, doce-de-abóbora Doce-de-coco, rádio-relógio Despertador do sono Não vendo é sonho Mas pode pedir Se não tenho Sei quem terá Vendo pano pra cortina Vendo verso, vendo rima Carta pro rapaz e carta pra menina Eu vendo provas de amores Por minha poesia e fantasia Quanto vai pagar? Um real aí é um real Um real aí É um real aí é um real Um real Com quantos reais se faz uma realidade Preciso muito sonho pra sobreviver numa cidade Grande jogo de cintura Entre estar esperto e ser honesto Há um resto que não é pouca bobagem Um real aí é um real Um real aí É um real aí é um real Um real29

28 Visão que supera a classificação de Augé (1994), que trata os transportes como “não-lugares”, atribuindo-lhes uma ideia restrita de espaço de passagem, de não-convivência, sem história e destituído de sociabilidade. 29 LUÍS, Pedro; MARANHÃO, Rodrigo. Rap do Real.

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1.3 Molejo na convivência plural no transporte coletivo

O transatlântico mesclado Dlendlena e esguicha luz Postretutas e famias sacolejam.30

Um espaço múltiplo. Em que pessoas de vários cantos da cidade se reúnem por

breves momentos. O ônibus, local de transição entre o ponto de partida e o ponto de

chegada, que ultrapassa a noção de “não-lugar” de Augé (1994) e se torna espaço de

cruzamento num universo de misturas. Em que a generosidade de combinações entre as

ações dos indivíduos em conjunto com o percorrer urbano já se percebe na própria

etimologia da palavra. Do francês voiture omnibus, derivada do dativo latino omnibus (de

omnis-e), ônibus quer dizer “para todos” (CUNHA, 1982: 561).

Oswald de Andrade bem retrata no poema “O bonde”31, acima transcrito, o amálgama

que se forma do compartilhamento entre sujeitos tão diferentes e que se entremeiam

durante ao itinerante bamboleante num mesmo transporte público32. E é a cada parada de

ônibus que o repertório de protagonistas daquela comunicação “errante” se transfigura, 30 ANDRADE, Oswald de. Obras completas. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1972. 3ª edição. Volume VII. Página xxxi. 31 O poema, escrito em 1918, nos foi apresentado em 2009 por Amálio Pinheiro, durante aula da disciplina “Ambientes midiáticos e processos culturais: das oposições aos mosaicos mestiços”, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (COS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Embora a vida urbana no início do século XX, em que a população se deslocava por meio de bondes, fosse bem diferente do que podemos observar hoje, com ônibus, carros, metrôs e outros tipos de transportes públicos e particulares, a convivência nesses espaços continua a representar uma intersecção de sujeitos diversos, em contínua oportunidade de comunicação intensa de experiências do cotidiano e formação de interessantes modos de interação social. 32 Em texto intitulado Sociologia do bonde, Gilberto Freyre � comentando o livro De bonde, do português João Chagas, publicado em Lisboa em 1897 sobre o bonde no Brasil � retrata que o transporte público era, já no final do século XIX, espaço de convivência da população, muito além de um mero meio de deslocamento, como podemos observar no seguinte trecho: “Observou o político português que “no vasto perímetro da cidade” (Rio de Janeiro) era então o bonde “o meio prático, barato e cômodo” de que toda gente se utilizava para se transportar, não somente de casa para o trabalho e do trabalho para casa, como da casa para a igreja, para o teatro, para a escola, para a academia: e de regresso à casa de todos esses lugares. Toda a gente, note-se bem; e não apenas uma classe de gente. (...) era principalmente nos bondes que o brasileiro comprava bilhetes a indivíduos espantosamente ágeis em subir aos veículos em movimento; acrobacia em que se era mais discreto, embora a paixão por ele não fosse menos generalizada: tanto nos bondes, de regresso do trabalho a casa, um dos assuntos principais era qual dos passageiros ganhara no bicho; e porque, em virtude de que tabela ou de que sonho. Quase sempre era em virtude de sonho: em torno da interpretação dos sonhos ou de seus símbolos se prolongavam conversas das quais participavam indivíduos de diferentes classes, raças e profissões, democraticamente reunidos pelo bonde e pela paixão pelo jogo de bicho” (STIEL, 1984: 62-63).

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unindo população e espaço urbano, se apresentando como importante modo do viver na

cidade.

É naquele ambiente que grande parte da população se encontra em instantes de uma

“aproximação distante”, individual e ao mesmo tempo coletiva, num corriqueiro ir e vir por

pontos da cidade. Uns conversam, outros cochilam, alguns observam o embaço da urbe que

agora corre, muitos se isolam com seus fones de ouvidos. Os que leem sentam-se ao lado

dos que têm pressa. Tem gente que faz crochè, outros que preferem a algazarra em turma.

Desde o tempo dos bondes, quando o carnaval começava sobre as rodas33 ou as moças

paqueravam os condutores34, até hoje, quando o veículo pende para um lado e outro com as

torcidas que rumam para o estádio de futebol e os motoristas trocam olhares pelo retrovisor

com suas “escovas”35. Passageiros também enfrentam juntos problemas de um sistema de

transporte público ainda mal estruturado e que dificulta um deslocamento eficaz no

33 Como mostra o texto de Sandra Cavalcanti, de 1979, intitulado Sábado de Carnaval: “Maria adorava Carnaval. Meses antes começava a debater conosco sobre a sua fantasia. Debate mesmo. Hawaiana? Índia? Pirata? Maria Antonieta? Naquele ano ela saiu de cigana. Estava animadíssima principalmente porque arrumara um namorado. O rapaz da padaria do largo do França. Para nós o Carnaval também funcionava. Púnhamos as nossas fantasias e íamos para um bloquinho que se formava na rua. Batíamos lata, cantávamos as marchinhas do ano, fazíamos até uma coleta de fundos para comprar serpentina e lança-perfume. Mas havia uma coisa que nos atraía mais do que tudo isso. É que as mulheres podiam, nos dias de folia, andar penduradas no estribo do bonde! O nosso bondinho de Santa Tereza, dirigido por motorneiro amigo e fiscalizado por cobradores muito familiares, o nosso bondinho deixava que a gente também fizesse nossas artes. O bonde foi uma grande instituição carnavalesca! Era o próprio transporte da alegria e da descontração!” (STIEL, 1984: 237). 34 Assim narra Raimundo Ramos (Ramos Cotôco) no poema Estribilho: “Se o bonde passa,/ Está na janela;/ Se o bonde volta,/ Ainda ‘stá ella.../ Namora a todos,/ E’ um horror:/ Aos passageiros,/ E ao conductor./ Todas ellas, sem excepção,/ Têm as mangas dos casacos,/ De viverem nas janellas,/ Todas cheias de buracos./ Algumas eu tenho visto/ Correrem lá da cozinha/ Co’a bocca cheia de carne,/ Sujo o rosto de farinha./ Outras, de manhã bem cedo,/ Acordam atordoadas,/ Vem o bonde.../ ellas lá surgem/ Co’as caras enferrujadas./ As parelhas já conhecem/ Estas moças de janelas;/ Quando passam se demoram/ Para olharem para ellas./ Conheço algumas que moram/ Aonde o bonde não passa,/ Que gritam, fazendo troça:/ Esta rua é uma desgraça!/ Não passa o bonde,/ Está na janella:/ O dia inteiro/ Ahi passa ella:/ Aos transeuntes/ Olha com ardor,/ Namora á todos:/ E’ um horror! (sic)” (RAMOS, 2006: 107-108). 35 Conforme nos mostra o seguinte trecho de entrevista do ex-motorista de ônibus Antônio Nunes Viveiros às pesquisadoras Patrícia Menezes e Luciana Cardoso, em 17 de dezembro de 2003: “É, quando um motorista arranja uma namorada ele chama escova. Arranjei uma escova e a paquera é escova também. Já tem gente que sabe que a mulher do cara vem dentro do ônibus pra pegar a outra. (...) É só paquera se namorar é só fora, mas lá mesmo no ônibus é só paquera aí se marca um encontro. (...) Acontece mais pelo retrovisor quando vem pra frente pega na mão, deixa um bilhetinho com telefone. É marcado pelo retrovisor central aí se der certo o telefone, olha eu vou deixar aqui ela anota e quando vai passando é bom dia, tudo bem, aí pega na mão e deixa o número do telefone”. (FEDERAÇÃO, 2003-2004). A paquera no ônibus é, ainda, retratada em entrevista concedida pelo ex-trocador de ônibus Edmar Honorato de Sousa, em 17 de dezembro de 2003, às mesmas pesquisadoras: “Mas era só aquilo ali, por que tinha muitas delas que queriam paquerar só para descontar, a gente dispensar a passagem dela. Quando encontrava a gente em outro local se fazia que nem conhecia. Mas eu cheguei a notar algumas vezes que mais era interesse, porque às vezes tinha aquelas que não tinha condição financeira e que faziam amizade com cobrador e motorista só para que não cobrasse a passagem delas (sic)” (FEDERAÇÃO, 2003-2004).

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transitar diário. Confusão de tempos e de caminhos próprios, que se cruzam numa fresta do

cotidiano. Ir de ônibus é um perder-se nas ruas, perder-se em si e perder-se no outro.

De todos os meios de transporte coletivos do espaço urbano no Brasil, ele é o que

reúne maior número de usuários no atravessar da cidade. Não os metrôs, que pegam um

atalho pelo subsolo e operam com maior rigor na entrada e saída de usuários, além de

trabalharem numa viagem mais rápida e desprovida do sacolejar socializável. Não os trens,

que percorrem zonas de pouca urbanidade. Não as vans, que espremem um grupo pequeno

de passageiros num espaço retraído e desprovido de uma maior cooperação e interação

entre os passageiros; lá não cabe um ir e vir. É o ônibus o lugar do conflito, da crise, das

conexões36. E é nesses espaços de grande circulação da população de Fortaleza que se dão

performances em trânsito, se inserindo arbitrariamente (e legitimadamente) no meio do

caminho das pessoas, interferindo nos modos de percepção de seu trajeto, busquem elas ou

não aquele encontro.

O uso dos transportes coletivos em Fortaleza inicia sua história em 1873 com o

funcionamento do primeiro trem (MENEZES, 2000: 56). Em 1880, foi inaugurada a

primeira linha de bondes puxados a burros da metrópole (STIEL, 1984: 121). Os bondes

saíram de circulação em 1947, na capital. Eram outras épocas da história dos transportes

públicos, nos anos em que motorista era chamado de motorneiro e era vestido com kepe,

paletó e gravata; trocador era nomeado de condutor. A primeira linha de ônibus foi

instalada em 1928, com seis ônibus da Empresa Pedreira que circulavam pela cidade.

Somente em 1967, Fortaleza conhece o sistema de ônibus elétrico, que foi desativado em

1972. “O advento do automóvel favoreceu o crescimento acentuado de Fortaleza, como

também reforçou seu fracionamento. Em termos de transporte, a cidade conheceu

praticamente tudo. Todas as modalidades experimentadas tinham no Centro a área de

referência e o espaço privilegiado de geração de fluxos de passageiros” (CAPELO, 2006:

56).

36 Em Fortaleza, todos os dias, quase um milhão de pessoas passam parte de seu dia dentro do ônibus, numa população que hoje soma 2,4 milhões de pessoas (segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE), acomodada numa frota de 553 mil carros, segundo reportagem publicada no jornal O POVO, em 5 de junho de 2008, intitulada Uma rotina de sufoco e perda de tempo, assinada por Mariana Toniatti. Considerando que, principalmente, o que mais nos interessa não são os números, mas os tipos de relações que se estabelecem na circunstância estudada.

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Nas muitas mudanças desde o começo do século XX até os dias atuais, quando a

“ramuna”, “baratinha”, “caminhoneta”, “pata-choca”37 e bondes deram lugar aos ônibus, o

ambiente durante o percurso dos passageiros já foi testemunha de várias situações38.

Entretanto, é difícil encontrar registros de performers ambulantes que atuavam em ônibus

da cidade nos documentos da história dos transportes na cidade, mas sabe-se que já em

1967 a entrada de pedintes e vendedores de balas foi proibida em transportes públicos da

capital39. A proibição em forma de lei persiste até hoje, por meio da Lei dos Transportes,

do ano de 199240. Ainda assim, a presença de vários tipos de performers nos transportes é

comum41. Isso nos faz questionar, portanto, quais seriam as possibilidades e os recursos de

interpelação comunicacional que estão contidas na relação com os ônibus e que permitem

tal transgressão.

Os ônibus, segundo Delgado, são espaços comunicacionais baseados na dispersão,

além de formas de vida social não assentadas que se constroem numa lógica semelhante às

ruas ou às praças, permitindo o encontro entre estranhos. Funcionam, ainda, como espaço

de discurso e ação social, uma “posibilidad pura de reunir, arena para que la interacción

humana lleve a cabo su trabajo de producción ininterrumpida e interminable de lo social”

37 Apelidos de tipos de transportes coletivos públicos, da primeira metade do século XX. 38 FEDERAÇÃO das empresas de transportes rodoviários dos estados do Ceará, Piauí e Maranhão. Salão do trabalho nos transportes: linha do tempo nos transportes. Fortaleza: Cepimar, 2004. 39 Idem. 40 Regulamento do Serviço de Transporte Coletivo do Município de Fortaleza, lei nº 7.163, de 30 de junho de 1992. 41 No ano de 2002, foi fundada a Associação dos Vendedores Ambulantes dos Terminais de Ônibus de Fortaleza (Avatof), uma entidade que agrega quarenta e dois profissionais dos sete terminais de Fortaleza e regulariza a venda nos locais. A iniciativa partiu de um grupo de ambulantes que, até 2001, atuava clandestinamente nos postos de embarque e desembarque dos ônibus. Marciano Jorge dos Santos, vendedor ambulante desde os nove anos de idade e vice-presidente da associação, conta que eles sofriam de forte coibição e tinham que pagar propina aos agentes de segurança. “Eram três reais por dia”, relata. Depois de um ano de negociações e recursos judiciais, a Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza S/A (Etufor), a partir de resolução do Ministério Público, concedeu permissão para o trabalho dos vendedores, embora a lei que proíbe sua entrada nos ônibus ainda vigore. Hoje, os vendedores ambulantes cadastrados na associação têm livre acesso aos terminais, mediante pagamento da passagem. Eles devem trafegar somente nas plataformas onde ficam os postos das linhas de ônibus e não podem entrar nos veículos para vender; ainda que muitos burlem essa norma. “A gente vai dando um jeitinho. Conversa com o motorista, vê se ele é legal e vai entrando”, aponta o vendedor. São oito vendedores autorizados atuando no terminal da Parangaba, sete no terminal do Papicu, cinco no terminal de Antônio Bezerra, cinco no terminal da Lagoa, sete no terminal do Siqueira, sete no terminal de Messejana e três no terminal do Conjunto Ceará. Os associados podem permanecer nos terminais durante todos os dias da semana, durante quaisquer horários; devem estar devidamente trajados com o uniforme da Avatof, que é composto de camisa e crachá; e vender somente artigos de bombonière. Todos os ambulantes cadastrados na associação devem ter idade a partir de dezoito anos; ou dezesseis, com autorização dos pais ou responsáveis. Ainda assim, estes devem permanecer exercendo a atividade por um período máximo de quatro horas diárias.

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(DELGADO, 2007: 70). Sendo assim, o ato de ocupação de um veículo coletivo que

percorre o espaço público abre debate sobre o público e o privado.

De acordo com o autor, este entrar e sair se convertem em atos simbólicos em que se

expressam outras oposições: o interior e o exterior, o profundo e o superficial, o essencial e

o aparente, o intrínseco e o extrínseco, o privado e o público. (DELGADO, 2007: 30). No

entanto, dentro e fora não correspondem, necessariamente, a cenários físicos concretos.

Pelo interior, o autor afirma que vigoram princípios de previsibilidade, franqueza,

estabilidade e reconhecimento entre os sujeitos. Contrariamente, o exterior se associa a

formas de organização instáveis, à desfiliação, à casualidade, à indeterminação e à

mobilidade (DELGADO, 2007: 32). No entanto, ressaltamos que não estamos mais

debatendo o espaço público enquanto ruas e esquinas, praças e calçadas, como discutimos

anteriormente, mas, sim, o transporte coletivo urbano. Sendo assim, seria, então, o ônibus o

dentro ou o fora? Percebamos, nesses locais, as marcas de uma mescla entre o interior e o

exterior, caracterizando uma mestiçagem entre os modos de experiência sensorial na

cidade.

Conforme nos aponta Delgado (2007: 35), há duas formas de vida social. A primeira

delas é a dotada de sede, cujos atores principais são coletivos humanos que têm algum tipo

de congruência, que podem remeter sua existência a um ponto mais ou menos fixo no mapa

da cidade. A outra seria uma sociabilidade não assentada, em que os sujeitos têm lugar nos

lados de fora, incluindo aqueles interiores construídos que funcionam como corredores ou

instâncias e que funcionam sob a lógica da rua ou da praça, como as estações de metrô,

salas de espera ou centros comerciais. São locais semipúblicos dedicados ao ócio ou ao

encontro.

De acordo com nossa análise, os ônibus apresentam aspectos dessa vida social não

dotada de sede. Esses transportes não são o meio da rua. Apresentam muitas das

características do encontro que se faz no espaço público, como as associações entre

estranhos e relações desencadeadas mediante dispositivos e recursos de interação, em toda

a sua fluidez e interferências. No entanto, ao mesmo tempo, estão construídos a partir de

uma estrutura física que o isola do espaço exterior. Eles têm porta. Estão abertos à entrada

de todos, mas isso é feito mediante um contrato, seja verbal, seja financeiro, organizado a

partir de uma conduta legal e estatal. Sendo assim, não devemos pensar nos ônibus a partir

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da dicotomia entre “lugar” e “não-lugar”, contradizendo a tese de Augé42 sobre os locais

que, segundo ele, são desprovidos de sociabilidade e memória. Cabe aqui, portanto, tratar

essas perspectivas de forma relativa, avaliando aquilo que se relaciona ao estar dentro de

um ônibus público metropolitano.

Podemos afirmar, então, que os ônibus são um semi-fora ou um semi-dentro, de

acordo com a classificação de Delgado. Trata-se de lugares semipúblicos, em que os

usuários mantêm entre si uma relação pouco formalizada e participam de uma interação

relativamente focalizada. E são esses locais, como aponta o autor, espaço absoluto de (e

para) o discurso e a ação sociais, âmbito para a exibição constante e generalizada, uma

sociedade de “olhadas”, de visibilização máxima, acessível a partir de uma perspectiva

móvel (e exercida durante e graças a essa mobilidade), uma “posibilidad pura de reunir,

arena para que la interacción humana lleve a cabo su trabajo de producción ininterrumpida

e interminable de lo social” (2007: 70), como nas performances que são executadas

diariamente naquele espaço.

Posibilidad espacial pura, es el resultado de codificaciones que nascen y se desvanecen constantemente, en una tarea innumerable. Lo que luego queda no son sino restos de una sociabilidad naufragada constantemente, nacida para morir al poco, y para dejar lo que queda de ella amontonándose en una vida cotidiana hecha toda ella de pieles mudadas y de huellas. Alrededor del viandante sólo está el tiempo y sus despojos, metáforas que ya no significan nada, pero que quedan ahí, evocando para siempre su sentido olvidado (DELGADO, 2007: 73).

42 Augé (1994) contrapõe as ideias de lugar às de não-lugar, conferindo ao primeiro um princípio de sentido, que seja identitário, relacional e histórico, onde as relações antropológicas se dão por meio de “convivências de linguagem” e “regras não formuladas do bem-viver”, onde seu habitante vive na história daquele local. Enquanto que o não-lugar seria um espaço que não se pode definir como identitário, nem relacional, nem histórico, como as vias aéreas, ferroviárias, rodoviárias, os meios de transporte, os aeroportos, as estações e as estações aeroespaciais, as grandes cadeias de hotéis, os parques de lazer e as grandes superfícies da distribuição. Os não-lugares seriam, então, os “pontos de trânsito e as ocupações provisórias (...), onde se desenvolve uma rede cerrada de meios de transporte que são também espaços habitados, onde o frequentador das grandes superfícies, das máquinas automáticas e dos cartões de crédito renovado com os gestos do comércio “em surdina”, um mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero” (AUGÉ, 1994: 74).

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Diante dessa discussão, podemos afirmar que os ônibus são ambientes midiáticos.

Considerando que a palavra “ambiente” tem a mesma origem da palavra portuguesa

“ambos”, tendo o sentido de “ambivalente”, “de um e de outro”, “de ambos os lados”,

caracterizando uma distribuição dos protagonistas dessa construção da irradiação midiática

nos ônibus43. “As coisas se misturam. (...) Um ambiente midiático é caracterizado por um

espaço onde vários elementos emitem e recebem informação entre si. Emitimos e

recebemos o tempo todo”44. E essa não é uma condição desencadeada apenas pelas

performances que são apresentadas, mas já vem construída nas possibilidades espaciais

daquele local. Os cartazes com anúncios publicitários fixados nas paredes do transporte, os

televisores instalados em muitos dos carros, as telas com imagens animadas do trajeto e

indicação das próximas paradas, câmeras de segurança, o som do rádio, por exemplo, são

elementos da força midiática daquelas quatro paredes sobre rodas. “Fale ao motorista

somente o indispensável”, “É proibido fumar no interior desse veículo”, “Assento

reservado a idosos, deficientes físicos, gestantes e pessoas com crianças de colo”.

A partir da perspectiva dos usos dos espaços para o fazer comunicacional,

consideramos que o formato do ônibus é aproveitado nas performances em estratégias de

alcance e interpelação. Vejamos como isso se dá.

Segundo Harry Pross45, um dos aspectos do jogo comunicacional é um recorte do

espaço, sendo a configuração básica desse espaço o retângulo, seja ele um cartaz, uma tela

de cinema ou de TV, de computador, de celular ou, acrescentamos, o espaço interno do

ônibus. É por lá que os performers circulam e se posicionam de forma que sua visibilidade

seja mais efetiva, além de explorarem um ir e vir dentro da máquina. Para Pross, conforme

tradução de Baitello Júnior, as laterais mais longas do retângulo facilitam a dicotomização

daquele campo e, portanto, uma polarização, por exemplo, daquilo que chama maior

43 Conforme nos indicou Norval Baitello Júnior, em aula ministrada no dia 12 de março de 2009, na disciplina de “Teorias culturalísticas da comunicação”, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (COS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 44 Como nos indicou Norval Baitello Júnior, em aula ministrada no dia 19 de março de 2009, na disciplina de “Teorias culturalísticas da comunicação”, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (COS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 45 A teorização do retângulo proposta pelo comunicólogo alemão Harry Pross nos foi traduzida livremente por Norval Baitello Júnior, em aula ministrada no dia 21 de maio de 2009, na disciplina “Teorias culturalísticas da comunicação”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sendo assim, citaremos a tradução oral da discussão de que faz Pross sobre o espaço retangular.

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atenção e daquilo que chama menor atenção. Há, então, uma hierarquização do campo

simbólico, sendo um meio de tornar visível e invisível, ao mesmo tempo. Os sujeitos

performáticos elegem a área do início dos assentos do veículo, à frente de quase todos os

passageiros, o local de sua apresentação. Se imaginarmos o espaço físico do ônibus visto de

cima, percebemos que é justamente a zona de maior visibilidade do retângulo segundo os

saberes da comunicação gráfica.

E, em quase todos os casos, eles estão de pé, enquanto a maioria dos participantes

daquele ambiente está sentada. Essa configuração pode representar mais do que um acesso

à visibilidade, significando também uma ritualização do jogo de exibição e ostentação

corporal diante do outro – muitas vezes, alguns performers ficam de pé, com corpo ereto e

braços abertos, apoiados na estrutura metálica do veículo, o que nos remete à posição de

crucifixão.

O retângulo, conforme Pross, valoriza a vertical, que se torna sempre a referência na

distribuição dos elementos participantes daquele local, mesmo quando não é palpável ou

visível. Os campos de jogos são todos retangulares, assim como o jogo de persuasão, de

convencimento, que é executado dentro dos ônibus, durante a interpelação performática.

Segundo o autor, o retângulo é o espaço que privilegia o sentimento de nós, que se alimenta

das incursões no mundo do outro, que visa buscar maneiras de derrotar o outro e fortalecer

os vínculos internos do “nós”. E um dos sentimentos do “nós” é o de pertença, de se sentir

parte do grupo. “Toda comunicação tem a ver com a inserção ao campo do outro para

domesticá-lo. E isso tudo está no retângulo”.46

A área retangular, ainda de acordo com Pross, cria zonas de contaminação, no sentido

de projetar o “nós” sobre o “outro”. E um dos efeitos dessa dicotomização é a auto-

indulgência. Aquele corpo que performatiza diante da plateia, no canto de maior

visibilidade, se impõe por cima e ostenta sua causa e sua imagem. “A gente passa a se ver

de uma maneira condescendente. A gente projeta o mal do mundo no outro”.47 E essa auto-

indulgência gera uma auto-referência, desenrolando uma apologia de si mesmo.

46 Norval Baitello Júnior, citando Harry Pross, durante aula ministrada no dia 21 de maio de 2009, na disciplina “Teorias culturalísticas da comunicação”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 47 Idem.

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Verifiquemos, então, como participa o espaço físico do ônibus no processo comunicativo

desencadeado pela abordagem performática.

No momento da apresentação das performances, o veículo não se transforma num

cenário ambientado para um espetáculo. Este se dá no ambiente regular do veículo, em suas

intempéries e em seus aspectos de maior garantia de visibilidade do sujeito da enunciação.

O espaço cênico da apresentação é moldado pela circunstância, sem qualquer alteração no

espaço físico em suas características imagéticas.

O ônibus se molda como palco de apresentação na medida em que os sujeitos da

enunciação se fazem atores performáticos daquele ambiente. Luzes e sons da cidade que

pulsa do lado de fora das janelas do ônibus participam ativamente do cenário e possibilitam

um entremear da cena urbana externa ao momento de intervenção desencadeado dentro do

veículo. O palco, que, num teatro convencional, teria formato retangular, ou circular, no

caso de uma apresentação de arena, acrescenta-se de novas possibilidades, já que a

ocupação do performer também se dilui em vários cantos do veículo. Os movimentos do

carro que percorre as ruas trazem uma paisagem que se transmuda nas janelas. A cada

lance de vista ao lado de fora, nos entremeios do espetáculo, o cenário externo é diferente.

Enquanto o veículo se desloca e atravessa diversos panoramas da cidade, a

performance se desenrola em tramas diversas, uma para cada performer. Cabe ao público-

passageiro aceitar as provocações e se permitir a novas percepções daquela cena, que une o

frenesi dramático da zona metropolitana a uma interpelação de grande proximidade com o

ouvinte daquela apresentação, possibilitada pela interposição entre cenário e espectadores

dentro do carro.

Observemos o seguinte exemplo: é em um dos terminais de ônibus de Fortaleza

(cidade onde se encontra o corpus de minha análise), no Ceará, onde se dá o cruzamento

entre várias linhas de ônibus e passageiros trocam de carro, que um rapaz estabelece seu

ponto de partida para a peregrinação por vários veículos da região. De calça comprida,

chinelas e camiseta, ele se posiciona logo no início do corredor do ônibus, à frente dos

assentos, onde quase todos os passageiros possam vê-lo. Apoia os dois braços nas barras de

metal dos assentos do veículo e balança o corpo para frente e para trás, para frente e para

trás. Quando o movimento pendular do próprio corpo suaviza, é vez de os pés se revezarem

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no contato com o chão do veículo, num discreto compasso de marcha ou de intenso

desconforto. Observemos o texto verbal de sua intervenção:

Senhoras e senhores. Com licença a vocês, cidadãos. E me perdoem, meus irmãos, se eu “tiver” incomodando. Mas, meus amigos, eu tô aqui desse jeito, falano e pedino a rocês, é que eu sou doente, eu não posso trabaiá, eu não sou aposentado. É que eu sou doente mental, tenho poblema de epilepsia e mal de Parkinson. (...) Eu só recebo três [remédios] e compro um, que é o cloridrato. (...) Ele é uma droga forte e é proibido tá vendeno ele. Eu não posso nem andar com eles amostrano que eu posso ser até preso. Dá pra rocês me ajudá? Rocês veem que eu peço ajuda de rocês é por precisão, é por necessidade, não é pra mim beber cachaça, nem é pra mim beber droga. É pra mim ajudá a minha mãe comprar meus remédio e comprar as coisa pra dentro de casa. Me dê uma ajuda, por favor? Qualquer ajuda seeeeerve. [Ele estende a vogal, ao pronunciar a palavra] [O performer recolhe moedas, ao longo do ônibus]. Senhoras e senhores, obrigada a rocês que me ajudaram. Obrigado, tombém, a quem não pôde me ajudar. Que Deus nos abençoe, que nos livre do mal. Amém (sic)48.

A intervenção em performance refaz códigos de ocupação do urbano, ao utilizar o

transporte coletivo para uma apresentação performática e também interfere naquele

ambiente midiático, porém não alterando o percurso do carro. Que aspectos devemos

discutir para pensar a complexificação daquele ambiente midiático? Primeiramente,

debatendo a noção de teatralidade, considerando que o corpo do performer não é critério

absoluto nem elemento único da ideia de “teatralidade”, sendo o ato teatral um

reconhecimento de um espaço de ficção49.

Zumthor, citando Josette Feral, aponta que há significativa diferenciação entre

“teatralidade” e “espetacularidade”. O primeiro termo se encaixa quando o espaço ficcional

se enquadra de maneira programada, enquanto o segundo se refere a quando a programação

não se dá. Partindo dessa noção, observa-se que não é possível assistir a uma apresentação

48 Registro realizado pela pesquisadora, em pesquisa de campo para este trabalho. 49 Conforme aponta Paul Zumthor, em Performance, recepção, leitura (p. 47), citando proposições de Josette Feral, em artigo publicado em 1988, na revista Poétique.

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de qualquer performer que ande pelos veículos públicos da cidade de forma planejada.

Suas intervenções não têm horário programado, carro certo a ocupar, nem cenário a se

montar. O grau de previsibilidade não é elemento com o qual se pode contar.

No caso do pedinte que performatiza seu pedido de ajuda aos passageiros, a

verificação de teatralidade depende da presença do corpo do ator. Um ônibus é apenas um

meio de transporte até que seja atribuído àquele ambiente midiático a condição de cenário

para uma ação performática. O ônibus realiza seu percurso diário, os passageiros requerem

seu serviço para se deslocar de um canto a outro da cidade, regularmente. Mas quando o

performer irrompe o espaço e inicia seu processo performancial, o ambiente se transmuda.

Posso, então, pensar em teatralidade, neste caso? Segundo a conceitualização de Feral,

citada por Zumthor, nem tanto. Isto porque entra em cena outro aspecto importante na

diferenciação das duas performances: a intencionalidade.

É a intenção do performer que poderá, assim, conferir se há uma ação de teatralidade

ou de espetacularidade. E, partindo disso, o espectador também precisa partilhar da

intenção de teatro à sua frente. “A condição necessária à emergência de uma teatralidade

performancial é a identificação, pelo espectador-ouvinte, de outro espaço; a percepção de

uma alteridade espacial marcando o texto. Isto implica alguma ruptura com o “real”

ambiente, uma fissura pela qual, justamente, se introduz essa alteridade” (ZUMTHOR,

2000: 49).

O pedinte não narra uma história na forma de um texto teatral previamente

construído. Ele se apresenta como dando um depoimento sobre uma situação real por que

passa. Se há encenação ou não, sabe-se lá. O que se mostra, então, não é uma teatralização,

mas uma performatização, ou seja, uma expressão cênica entre atuante, texto e público

(COHEN, 2002: 28), que lhe confere a espetacularização. E é dessa condição performática

que emanam (e os constroem) os estilos de comunicar que incorporam máscaras, saberes e

modos de fazer mestiços, de forte caráter apelativo e persuasivo, conforme verificaremos

nos próximos capítulos.

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2 TENSÕES DA MOBILIDADE MESTIÇA

2.1 Desvio, atravessamento e costura na composição de novos alcances

(...) Com licença, pessoal. Pessoal, gostaria de pedir um minuto da atenção de vocês para mostrar esse meu trabalho. Essas balas de gengibre que eu acabei de entregar para cada um de vocês, elas são uma bala muito conhecida, mas, para quem ainda não conhece, eu vou dizer pra que é que ela serve. Ela é uma bala de gengibre medicinal, cem por cento natural, que ajuda você a melhorar duma gripe, tosse, dor na garganta, irritação, rouquidão, deixando o hálito da gente sempre puro. Ela nas farmácia está custando um real e sessenta centavos, com dez unidade. Na minha mão, ela, com quinze unidade, você adquire por apenas um real. Ela tem de sabor de menta, de cravo com canela e gengibre natural. Mas, para quem não gosta da bala de gengibre, eu tenho uma bala de maracujá e a bala de café. Além de vocês tarem ajudando na saúde de vocês, vocês estarão ajudando um trabalhador também. Obrigado pera atenção e tenham uma boa viagem (sic) [grifo meu] 50.

O título atribuído ao primeiro capítulo deste trabalho é importante expressão de um

debate que se instaura quando consideramos que a performance itinerante se desenrola por

meio de mesclas móveis que atravessam sentidos e modos de fazer. Considerar o “com

licença, pessoal” apenas uma representação de um consentimento dado ao intérprete pelo

ouvinte permitindo sua passagem física pelo carro não desvela as implicações de que tal

irrupção faz parte.

É um pedir que não aguarda resposta, que interrompe, que se impõe e que atravessa

normas morais, legais, políticas. Pedido de licença que já se faz dentro de uma

permeabilidade que pulula do fazer urbano, imiscuído de fluidez entre as relações de poder,

de comunicabilidade, de coerção, de persuasão. A evocação irrompe o espaço midiático do

ônibus em sua dimensão sonora, táctil, visual ― social, política ― e, através de sua

50 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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presencialidade, une corpos, transpõe oposições e evidencia uma relação entre esferas que,

a um olhar de superfície, poderiam ser excludentes.

Esse Com licença, pessoal não apenas se enuncia, como ainda convoca e coage seus

interlocutores a quem dirige a palavra ao rompimento de preceitos e regulamentações,

chamando e exibindo um fazer astucioso. Ambivalente, ele se dispõe a violar, mas

propondo, com isso, um ajustamento, uma concordância. O público e o privado se

aproximam, o formal e o informal se complementam, o oral e o escrito se interpenetram.

E esse passear pelos sentidos pode dar-se no deslocamento do performer entre os

carros, no trajeto dos passageiros, na reiteração do discurso ou, ainda mais, dentro da

própria fala e da gestualidade do intérprete, durante única execução51. Trabalhamos com a

perspectiva de que as performances se apresentam, portanto, dentro de um processo de

mobilidade semântica, se desenvolvendo através de informações diferentes e traduzindo-as

às próprias circunstâncias de enunciação.

Debatemos, no capítulo anterior, a intensidade com que se dão as articulações

sígnicas no espaço urbano e a permeabilidade do convívio nos transportes públicos e como

isso sugere a criação de novos modos de ocupar e comunicar. Agora, precisamos somar a

essa discussão outros conflitos que perpassam a “contracircularidade” da performance,

desta vez no seu âmbito de organização social e política, buscando compreender em que

medida se faz essa violação a que acabamos de nos referir e entre quais termos se fazem

combinações.

Nesse sentido, retomemos o exame da relação da performance com o espaço urbano.

Sendo local de intensa conexão e criação, de liberdade de encontro e uma evidenciação da

pluralidade dos sujeitos e do agir, o espaço urbano é palco de tensões, já que também

atravessado por pressupostos de disciplina e cidadania (MATOS, 2002: 33-34). Podemos

perceber tal aspecto também a partir de estudos sobre a expansão urbana, que nos indica

que essa experiência, no século XX, ajudou a intensificar as mesclas culturais e a costurar

redes em que se dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, sempre em renovação

(CANCLINI, 2006: 285).

51 E considerando, ainda, nosso processo de interpretação semiótica, construído como resultado de nossa interação com o objeto de estudo, conforme nos salienta Schnaiderman (1979: 84).

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No espaço urbano externo, conforme Canclini, interesses mercantis cruzam-se com os

históricos, estéticos e comunicacionais. Vê-se uma reorganização social do poder, que

passa de vertical e bipolar para descentralizado e multideterminado, em certa medida. Tem-

se um entrelaçamento das relações umas nas outras, evidenciando uma obliquidade e

tornando fluido o alcance de uma alteridade; faze-se das vias diagonais as mediações para

uma prática transformadora (CANCLINI, 2006: 301). Delgado acrescenta que esses

movimentos do urbano, feitos de fluxos e informações com forte dinâmica, podem gerar

uma reterritorialização cultural e política ao articular uma luta por espaço (2007: 151-152).

Tais experiências se aproximam de formas próprias de comunicação, que tendem a facilitar

interações no anonimato e a modificar vínculos entre privado e público.

E como isso se processa na performance em trânsito? Primeiramente, podemos dizer

que os aspectos de semi-fora ou semi-dentro que classificam o ônibus enquanto local dão

abertura a utilizações provisórias como espaços próprios pelos seus usuários, tensionando

regulamentações entre público e privado. Vejamos: o ônibus é um transporte oferecido por

uma empresa privada, porém utilizado para um serviço público e regulamentado por

acordos entre os dois setores. O veículo oferece entrada livre, porém mediada por um

contrato verbal ou financeiro, como já indicamos anteriormente. E essa liberdade também

tem restrições, já que trocador e motorista têm plenos poderes para convidar à saída o

usuário que não atender a certos preceitos de comportamento.52

Delgado (2007: 39) nos diz que o externo não é uma zona com propriedades

imanentes, mas uma organização singular da coexistência que emana de um “meio

ambiente comportamental”. Nesse sentido, verificamos que a performance no ônibus, ainda

que efêmera, se instala a partir de uma certa permanência e de uma apropriação transitória

do espaço público; no caso, de um transporte público. Ali não é o meio da rua. Ainda

assim, aquela intervenção toma o espaço e chama a si por uma força ilocutória, num jogo

de poder e comunicação, que se estica num vaivém de proibições e permissões. A

performance é passagem e é parada. Ela faz, por instantes, do corredor do ônibus seu

próprio palco; arbitrariamente atribui aos passageiros um estado de plateia, que não têm

como desviar o olhar ao chamado do performer. Instalada no carro em movimento, ela

52 Como no caso de embriagados, que dificilmente conseguem permanecer no veículo ou, em outras circunstâncias, em que haja dúvidas sobre as intenções do passageiro quanto a pagar sua passagem ou indícios de pretensões de furtar ou assaltar no veículo.

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privatiza o espaço público do ônibus como sendo o seu lugar de exibição, e, ao mesmo

tempo, evidencia que aquele veículo, propriedade privada, pode ser tão público quanto uma

calçada.

Tais relações amalgamadas da comunicação urbana se manifestam, ainda, por

exemplo, em cruzamentos de personagens na apresentação do performer. O rapaz que diz

sofrer o mal de Parkinson, a mãe que precisa de leite para o filho, o desempregado que

procura oportunidade. Ele corporifica algo ou alguém. Contudo, dificilmente de forma

isolada. Vários papéis são incorporados durante o traspassar o carro, numa trama de

personas. O trabalhador é também o malandro, o mendigo. O vagabundo é também o

cidadão. O transgressor reivindica a ordem, busca o estabelecido. Artista? Vendedor?

Pedinte? Eles são vários e podem se transmudar a cada olhar, ou a cada veículo.

A persona, é importante destacar, se refere mais a uma construção arquetípica do que

teatral (COHEN, 2002: 107-108). É uma galeria de personagens, que podem emergir de

uma roupagem, de uma postura, de um discurso ou da própria circunstância em que se dá a

apresentação. Para tornar-se referente, transforma-se o corpo, a face, a voz, constrói-se uma

imagem através de si mesmo. Na performance, a persona se apresenta mais como pessoa,

menos como personagem ― no teatro, essa relação é inversa (COHEN, 2002: 110). Ainda

assim, não há atuação ou representação absoluta, conforme argumenta o autor:

(...) alguém nunca pode estar só “atuando”: primeiro, porque não existe o estado de espontaneidade absoluta; à medida que existe o pensamento prévio, já existe uma formalização e uma representação. Mesmo que a personagem seja auto-referente (o ator representando a si mesmo). Ainda assim haverá o desdobramento. Segundo, porque sempre que estamos atuando (e isto é extensível para todas as situações da vida) existe um lado nosso que “fala” e outro que observa (COHEN, 2002: 96).

A citação que inicia este texto pode nos ajudar a discutir essa questão. Isso porque

consideramos que o performer a que se refere o trecho transcrito mescla em seu discurso

propriedades de, pelo menos, três personas: o trabalhador, na medida em que se apresenta

como exercendo uma atividade produtiva (Pessoal, gostaria de pedir um minuto da atenção

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de vocês para mostrar esse meu trabalho); o vendedor, quando exalta os benefícios da

mercadoria que oferece (Ela é uma bala de gengibre medicinal, cem por cento natural, que

ajuda você a melhorar duma gripe, tosse, dor na garganta, irritação, rouquidão, deixando

o hálito da gente sempre puro. Ela nas farmácia está custando um real e sessenta centavos,

com dez unidade. Na minha mão, ela, com quinze unidade, você adquire por apenas um

real); mas também, curiosamente, de pedinte, quando arremata sua comunicação

destacando que comprar as balas de gengibre é um ato de ajuda, de compaixão, movido por

um sentimento de comoção (Além de vocês tarem ajudando na saúde de vocês, vocês

estarão ajudando um trabalhador também). Sendo assim, se pensarmos em fronteiras entre

o trabalhar e o pedir, dizemos que elas são móveis, fluidas. Vejamos este outro exemplo:

Boa tarde, pessoal! Desculpa eu estar aqui lhe incomodando, estou aqui trabalhando vendendo uma jujuba, só custa apenas cinquenta centavos. O chocolate custa apenas vinte e cinco centavos. Gente, estou aqui trabalhando é para poder comprar o remédio da minha irmã que se encontra em casa. Gente, a minha irmã, ela sofre de problema do rim e da hérnia e ela é deficiente de uma perna. Gente, estou aqui trabalhando é para poder comprar a alimentação para dentro de casa. Gente, vocês não sabem como é ruim a gente amanhecer o dia, ver a irmã da gente chorando por um pedaço de pão e a gente não ter com o que comprar. Gente, se vocês puderem abrir o coração de vocês; quem puder fazer essa caridade, eu agradeço. Fique com Deus; uma boa viagem para todos vocês; muito obrigado pela atenção de vocês; que Deus ilumine todos os caminhos de vocês; dê paz e felicidade para todos vocês (sic)53.

Estaria esta performer trabalhando ou pedindo? Para analisar melhor esta relação,

precisamos discutir as ideias de trabalho e mendicância. Em condições capitalistas (Marx

apud GIANOTTI, 1983: 85), e na esfera econômica, consideramos a noção de trabalho

como uma força destinada à produção de um bem ou de uma mercadoria, a fim de obter

valores de troca. Numa dimensão social, esse sentido se amplia, levando em conta, também,

modos de produção que objetivam criar valores de uso, pensando no trabalho como meio

53 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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para se atingir um fim. Nessas condições, o trabalho pode não estar associado,

necessariamente, à concepção de um bem material, podendo ainda gerar valores, ideias e o

próprio processo de trabalho, que é, também, preparado para ser consumido.

Portanto, tendo em vista que a performance em trânsito não implica a criação de um

produto, se exercendo, principalmente, num esforço com um ideal a atingir, um objetivo a

ser alcançado (a performance para chamamento do público; o chamamento do público para

a persuasão; a persuasão para um compartilhamento de causa; um compartilhamento de

causa para a venda; e a venda de mercadorias para obtenção de dinheiro), podemos concluir

que a interpelação executada carro a carro tende a nos remeter a uma noção de ofício, de

ocupação. E não somente jujuba e chocolate estão sendo cambiados; a venda se dá,

também, no plano do discurso, sendo os passageiros persuadidos a compartilhar uma causa,

dentro de um sentido de ajuda, de ação política e social (“Gente, se vocês puderem abrir o

coração de vocês; quem puder fazer essa caridade, eu agradeço”).

Soma-se a isso que, no discurso performático, a noção de trabalho pode ser vista

como o resultado de um investimento de ações, de ideias e de determinado desempenho.

Percebemos tal construção quando o performer justifica sua ação de venda direta a

passageiros enfatizando seu objetivo (“para poder comprar o remédio da minha irmã que se

encontra em casa”, “para poder comprar a alimentação para dentro de casa”) e exaltando

uma virtude envolvida na ação de trabalhar54, reafirmando certo “eu poderia estar matando,

54 Uma referência ao estilo de comunicação da performance em trânsito: no Brasil, uma ideia de trabalho como virtude se fortaleceu na Era Vargas (1930-1945), em que o discurso de valorização do trabalho ganhou novas proporções e o Estado Novo atingia a classe trabalhadora à proporção que “reconhecia” suas dificuldades e valorizava seu papel na sociedade. Com o novo discurso oficial do Governo e a mudança de perspectivas da classe operária, a população desenvolveu outras formas de relacionamento com o poder e com os setores mais favorecidos da sociedade brasileira. Todos os dias eram enviadas correspondências ao presidente Getúlio Vargas, com textos de personagens que se apresentavam como participantes de “um triste quadro de precária situação social”, pedindo uma ajuda, geralmente um emprego ou aumento salarial, registrando suas formas de pensar e argumentar sobre o momento político e social (FERREIRA, 1997: 24). Os trabalhadores utilizavam argumentos para barganhar a própria dominação e contornar as dificuldades, “formulados pelos proprietários do poder, para tirar proveito e conseguir o almejado emprego” (FERREIRA, 1997: 25). As palavras mais utilizadas nos textos das correspondências eram justiça, direito, ajuda, trabalho, fé, misericórdia, honra, honestidade, amparo e a expressão “sou um pai de família”. Dentro dos padrões culturais e sociais da atualidade, é possível traçar uma relação entre esses trabalhadores e performers itinerantes, à medida que exaltam a própria condição para obter reconhecimento e ajuda. Considerando-se sujeitos da sociedade, eles apreendem a realidade e procuram meios de usá-la a seu favor. O desempregado se apresenta como sujeito de superação, que se desvia de um caminho de crime e costura formas não criminosas de ganhar dinheiro. Com crianças, o discurso tende muito a uma tomada de posição de chefe de família, já que o “pai está doente no hospital”. Analisando a prática do intérprete performático, a partir de uma referência da atuação dos trabalhadores do Estado Novo, podemos afirmar que eles tendem a se apropriar, então, de um discurso oficial da situação de pobreza e o ressignificam, de acordo com seus interesses materiais e

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eu poderia estar roubando, mas estou aqui trabalhando”, conforme podemos perceber na

seguinte fala:

(...) Preciso comprar comida para a minha casa. Tenho que ajudar meus irmãos, mas não tenho daonde tirar dinheiro. Se é de mim cheirar cola ou, até mesmo, roubando, fazendo coisa errada, eu estou, pelo menos, trabalhando. Tô tentando vender cada pacotinho por cinquenta centavos. Nós acredita que cinquenta centavos não vá fazer falta no pão de cada dia de nenhum de vocês não, mas vai nos ajudar muito (...) [sic].55

Diferentemente, o conceito de mendicância sugere um pedido, um ganho sem gastos,

uma recompensa sem oferta de algo material. Mendigar é uma forma de “obtenção da

sobrevivência e se dá no limite possível do processo de expropriação do trabalho nas

sociedades de classes”, sendo, portanto, “ausência-de-trabalho” ou “não-trabalho”

(ARAÚJO, 1996: abstract).

Se o termo “mendigar” sugere um pedido sem geração de troca material, mas, sim, de

um oferecimento unilateral, em que o doador de um bem oferta algo a alguém sem

exigência de troca, como se situa a performer citada (p. 50) em meio a esses conceitos de

trabalho e não-trabalho? O comprar, no caso, como enfatizamos anteriormente, não seria

apenas um ato de consumo de um bem com características atrativas, mas, também, um ato

político, uma ação social, uma atitude de ajuda ao próximo, pois, comprando aquele bem, o

passageiro estará, antes, “ajudando um trabalhador a sobreviver”, como podemos perceber

na intervenção de um rapaz que vende pastilhas de eucalipto. Ele ocupa o veículo, anuncia

que vai distribuir a mercadoria entre os passageiros e depois volta à fala, explicando do que

se trata. Ele conclui a distribuição, se escora, de pé, no segundo assento da fileira do

corredor do carro e retira mais dois pacotes do produto, enquanto inicia sua fala.

Verifiquemos o seguinte trecho de sua interpelação:

simbólicos. O contexto de “marginalidade”, de desfavorecimento econômico e social não impede que os vendedores busquem meios alternativos e defendam seus interesses, formulando “um projeto próprio, autônomo e alternativo ao poder”. Utilizando como argumento uma própria história de vida, ele atinge “o meio de superar a pobreza, individual e coletiva, (...) pela valorização do trabalho, permitindo, assim, a melhoria de vida do conjunto da sociedade” (FERREIRA, 1997: 31), criando novos locais de atuação e formas de operação de linguagens. 55 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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Pessoal, esse pacotinho que eu entreguei na mão de cada um de vocês, com certeza, muitos de vocês já deve conhecer e, pra quem ainda não conhece, esse aqui, pessoal, [sacode dois pacotinhos da bala] é um dos mais novos lançamentos da Docile: a deliciosa [sacode] partilha [sic] em goma de eucalipto. E esse pacotinho, pessoal [sacode], da nova partilha em goma de eucalipto, ela [sic] combate alguns males da garganta, como tosse, rouquidão, pigarro na garganta, irritação [sacode] na garganta e também ela refresca e purifica o hálito. E esse pacotinho [sacode], pessoal, da nova partilha [sic] em goma de eucalipto, ela custa apenas cinquenta centavos a unidade, três por um real e quatro por um vale transporte. E ao adquirir um pacotinho [sacode] desse, que se encontra na sua mão, além de você estar levando uma mercadoria de ótima qualidade, você vai estar cuidando da saúde da sua garganta e vai estar ajudando um jovem trabalhador. [“Muito obrigado”, interrompe, brevemente, sua fala, para concluir uma venda com um passageiro ao lado] Então, pessoal, a quem poder [sic] me ajudar, sentir no seu coração que um real, um vale-transporte ou, até mesmo, cinquenta centavos ― se não for lhe fazer falta, é claro, nesse dia de hoje ―, eu agradeço muito. Muito obrigada a todos. Tenham uma boa viagem e um bom dia. [sic] [Grifos meus]56

Verificamos que o performer exalta os qualificativos da bala oferecida, exibindo-a e

expondo benefícios de seu uso e, embora sobre ela se construa a maior parte da fala, é no

sentido de ajuda que tende a se concentrar o maior peso persuasivo (no trecho que

grifamos). Entretanto, o pedido vem sempre acompanhado da oferta de um bem, como uma

relação de venda mesmo. O pedir, então, não se situa apenas no apelo, mas sim no apelo

para que se compre, numa intrincada implicação mútua entre consumo e esmola. Isso se

evidencia quando, muitas vezes, passageiros dão o dinheiro pedido, no entanto dispensam o

produto oferecido. “Não, obrigada. Pode ficar”.

Nesse enredo de personas, observamos, então, que os deslizes estão ligados às

circunstâncias interpelativas. Verificamos isso na intervenção de um jovem que pede, com

fala alvoroçada, dinheiro para comprar jujuba, para, daí, passar a vendê-la:

56 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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Senhores, primeiramente, um bom dia para cada um de nós. Pessoal, eu tô aqui pedindo aqui uma contribuição aos senhores de cinco centavos ou dez. De todo coração. Pra mim poder comprar uma caixinha de jujuba pra trabalhar. (...) Eu fico muito agradecido, de todo coração. Que Deus abençoe; felicidade para cada um de vocês.57

De pedinte, passará ao papel de vendedor, no próximo carro. A partir do argumento,

solicita-se proteção, como num ato de justiça. A fala se apropria de um discurso oficial, na

direção de que o meio de superar a pobreza é a valorização do trabalho, mas desviando esse

caminho, selecionando aquilo que poderia beneficiá-lo, o que passa antes por um pedir. E o

que se apela é por uma participação conjunta da sociedade. (FERREIRA, 1997: 26-33).

Por esse pão pra comer Por esse chão pra dormir A certidão pra nascer E a concessão pra sorrir Por me deixar respirar Por me deixar existir Pelo prazer de chorar E pelo “estamos aí” Pela piada no bar E o futebol pra aplaudir Um crime pra comentar E um samba pra distrair Deus lhe pague Por essa praia Essa saia Pelas mulheres daqui O amor mal feito Depressa Fazer a barba e partir Pelo domingo que é lindo Novela, missa, jornal e gibi Pela cachaça desgraça Que a gente tem que engolir Pela fumaça desgraça

57 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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que a gente tem que tossir Pelos andaimes, pingentes Que a gente tem que cair Deus lhe pague Por mais um dia, agonia Pra suportar e assistir Pelo rangido dos dentes Pela a cidade a zunir E pelo grito demente Que nos ajuda a fugir Pela mulher carpideira Pra nos louvar e cuspir E pelas (vermes) moscas-bicheiras A nos beijar e cobrir E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir Deus lhe pague58

Martín-Barbero (2002: 70) nos ajuda a compreender em que medida essas operações

desviantes podem se tratar de uma luta por um poder que se emprega nos modos de

apropriação do espaço do ônibus e do encontro com o público-passageiro. Entendemos que

esse distanciamento do agir regular e regulamentado, primeiramente, não rompe

radicalmente com os preceitos convencionais de organização social. Ao abordar o público

durante seu trajeto pela cidade, eles interrompem certa ordem de comportamento, mas

deixam clara a sua pretensão de se integrar às condutas sociais convencionais.a se

estabilizar ― de trabalho formal, de estatuto familiar, de crença religiosa, de meios de

encontro com o outro — e argumenta sua intervenção com isso. Observemos:

Desculpe aí vocês, né. Cada um de vocês aí amanhecer em paz, em nome de Jesus Cristo, aí, que é o mais importante, né. (...) Porque sem Deus a gente não é nada. Como diz a passagem da Bíblia: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”. Ninguém, né. Bom, pessoal, eu me chamo Rafael, eu tenho 23 anos, moro na cidade de Salvador, capital da Bahia, e tô aqui através de um centro de recuperação que tem aqui, né. Que algumas pessoas já ouviram falar. Graças a Deus, eu terminei meu

58 BUARQUE, Chico. Deus lhe pague.

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tratamento, mas eu decidi continuar aqui na cidade [de Fortaleza]. Como eu ainda não tenho emprego fixo, é através deste trabalho aí que me mantenho aqui. Esse kit que eu passei pra vocês vem com essa caneta aí de ótima qualidade. Você pode ver e pode testar. Se tiver ruim, eu troco na hora. Vindo junto com esses adesivos aí custa apenas um real. Aquela pessoa que adquirir esse kit aí que Deus que abençoe. Aquela que não adquirir, em nome de Cristo, que Deus que abençoe também. E se você puder me dar uma ajuda de dez centavos ou cinco para eu dar continuidade ao meu trabalho, porque é cerca de 30 a 40 passagens de ônibus por dia e a gente vê que os vendedores ambulantes aqui no Ceará não têm acesso de entrar pela frente. Mas isso não é culpa do motorista, nem do cobrador, e sim dos empresários. Eu vou deixar uma passagem da Bíblia (...): “Melhor [inaudível] de amor do que [inaudível] pelo ódio”. Obrigado aí pela atenção de vocês aí, fiquem com Deus, um bom dia pra todos. [sic] [grifos meus]59

O trecho acima da fala de performer recém saído da Casa de Recuperação Manassés

ilustra nossa análise de que essa subversão performática, no sentido de uma ação de contra

fluxo tanto do local de abordagem quanto da fala e do engajamento do corpo ― que

experienciam conflitos de comportamento, de integração social, de inteligibilidade por

parte do auditório ―, se diz em busca de uma adaptação às normas de convivência e de

uma aceitação social. No entanto, utilizando, para isso, meios contrários, transgressores a

convenções. A performance transgride a lei de não ocupação de pedintes e vendedores nos

ônibus, mas não transgride a cultura. Martín-Barbero, nesse caminho, diz que dominados

são cúmplices, mas também resistem, replicam (2002: 110-111); e muito dessa resistência,

continua o autor, se manifesta nas complexas relações estabelecidas na dinâmica urbana,

como atesta a citação a seguir:

(…) esos modos en que las clases populares asimilan los ofrecimientos a su alcance y los reciclan para sobrevivir física y culturalmente. Desde su incierta relación con el Estado y su lejanía del desarollo tecnológico hasta la persistencia de elementos que

59 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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vienen de la cultura oral y del mantenimiento de las formas populares de transmisión del saber, la refuncionalización del machismo, la melodramatización de la vida y los usos “práticos” de la religión. (MARTÍN-BARBERO, 2002: 141-142)

No trecho destacado (“a gente vê que os vendedores ambulantes aqui no Ceará não

têm acesso de entrar pela frente. Mas isso não é culpa do motorista, nem do cobrador, e sim

dos empresários”), observamos, a contestação política é sutil, desprovida de estratégia de

organização, projeto ou ideologia. Podemos vislumbrar uma “polifonia de vozes

excluídas”, como diz Martins (2007: 41), quando se refere a marcas do popular na

experiência do cotidiano no urbano, mas erguida de forma frágil e inconsistente

formalmente. Certa resistência reverbera na atuação performática que caminha pelos ônibus

da cidade, mas de maneira fugaz, quase silenciosa. Percebemos um ato político de

enunciação, mas não de proposição. A performance burla, mas pouco questiona.

Desse, digamos, murmúrio manifesto podemos notar referências ao que Certeau

chama de “inventividade do mais fraco”, em que procedimentos populares utilizam

metamorfoses da lei segundo seus interesses e regras próprios (1994: 40). Segundo o autor,

são realizados jogos com os mecanismos de disciplina para se reapropriar do espaço

organizado (idem: 41). Sob essa ótica, então, percebemos na irrupção performática

formulações entre fragmentos de um fazer oficial, formal, regulamentado, mas também de

operações utilitárias, ocasionais e desobedientes, num intricado de subordinação e ousadia.

Dessa fricção dos contrários, Pinheiro diz que se revela uma tendência à inibição de

oposições (vinculadas aos sistemas verbais e abstratos), o que acelera as relações de ordem/

desordem (vinculadas aos sistemas vocais, visuais e corporais) e cria novas estruturas entre

verbal/ não verbal, clássico/ popular, cabeça/ corpo (2004: 14). Conforme o autor, a própria

distribuição geográfico-urbana “tende muito mais ao nomadismo adaptativo e assimilativo

de formas heterogêneas do que à fixidez das homogeneidades hereditárias”, agregando-se

mais através de “conglomerados metonímicos móbiles” (idem: 19-20). E esses

conglomerados não são meramente acumulativos, mas produtivos, sendo criados a partir de

operações tradutórias (idem).

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Desse ponto de vista, e considerando seus recursos técnicos ― o engajamento de seu

corpo, relacionado ao ambiente do veículo e aos instrumentos que integram a obra (como

mercadorias oferecidas, instrumentos musicais ou objetos de apoio, como bolsas e

uniformes) —, entendemos que as performances combinam aspectos de um discurso

reprodutor da linguagem oficial, de uma organização político-social regulamentada pelo

Estado, que prevê uma modalização de condutas (WILLIAMS, 1992: 187). Nesse caso, se

pretende a certo ajustamento a um padrão de comportamento60 (“Como eu ainda não tenho

emprego fixo, é através deste trabalho aí que me mantenho aqui”). O discurso da

interpelação pinça, ainda, expressões de um oficial, de um formal, como “Senhores e

senhoras”, “cidadãos”, em tom solene de interpelação, mas convivendo com sentidos de

proximidade que o contato corporal e as inflexões de uma voz agônica e desviante dos

moldes gramaticais possibilitam. Ao mesmo tempo em que tende a mimetizar, sua

intervenção pode revelar uma voz oprimida, ameaçada por essa mesma força oficial,

estatal, formalizada.

O performer que diz estar disposto a se encaixar nos modelos de organização social

formais, mas que se mostra transgressor em sua prática itinerante, oscila entre ordem e

desordem ― considerando, ainda, que, mesmo transgressora e criadora de novos moldes de

comunicabilidade e sociabilidade, a prática performática em trânsito é também legitimada

— pelo público, pela própria dinâmica do urbano. Williams corrobora em tal interpretação

quando aponta que marcas de um fazer alternativo com marcas de uma conduta dominante

em práticas de sobrevivência podem se combinar de forma complementar, operadas com

recursos de tolerância, encurtando distâncias e sendo efetivamente incorporadas, “ou veem-

se diante da opção entre isso e afirmar uma oposição declarada” (1992: 187).

Esses confrontos de discursos interpõem-se não só no conteúdo das falas, mas em

seus pormenores. A “reprodução” de uma linguagem rebuscada é proclamada com erros de

português e exibida por um corpo que se oferece a um contato direto; a valorização de uma

60 Dentro da incorporação de uma linguagem oficial, uma noção de cidadania é trabalhada pelo discurso performático no que diz respeito não apenas a ter direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais, mas tendo a ver ainda com as práticas sociais e culturais que conferem sentidos de pertencimento “e fazem com que se sintam diferentes os que possuem uma mesma língua, formas semelhantes de organização e de satisfação das necessidades (GARCÍA CANCLINI, 1999: 46). Nessa direção, performances itinerantes tendem a buscar “justiça, reparações ou simples atenção” (GARCÍA CANCLINI, 1999: 50) recorrendo não a instituições, mas ao encontro direto com o público, atravessando-o em seu trajeto, em circuitos ordenados para o exercício do público, mesclando o próprio com o alheio.

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moral do trabalho a partir de uma prática que se dá justamente pelo não-trabalho; a

instalação numa cena que sacoleja e o chamamento a si em meio a corpos que tentam

acomodação, mas que se esbarram, no que Sarduy (s/d: 9) chama de “superabundância de

imagens”, de extravagância e perversão de qualquer ordem fundada, caracterizando uma

prática barroca. Para o autor (s/d: 93), reconhecida também no julgamento, na paródia de

uma economia burguesa “baseada numa administração avarenta dos bens”, ameaçando-a

em seu suporte simbólico da sociedade e subvertendo uma “suposta ordem normal das

coisas”. A performance em trânsito visa a uma comunicação direta, objetiva, eficaz, mas se

opera justamente pelos seus suplementos, na desmesura e na perda parcial de seu objeto

(SARDUY, s/d: 94).

Mesmo desprovidas de consistência política, tais táticas, acrescenta-nos Certeau,

atribuem uma politização das práticas cotidianas, na medida em que elas se desenvolvem

em meio a tensões (1994: 45). As performances ocasionam as intervenções nas viagens em

ônibus públicos. Elas driblam termos dos contratos sociais, ressignificam termos dos

sistemas impostos e realizam manobras entre forças para se criar e atingir seu público;

“viver no campo do outro”.

Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações estabelecidas. Tem que “fazer com”. Nesses estratagemas de combatentes existe uma arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras de espaço opressor (CERTEAU, 1994: 79).

Tal prática nos remete a uma avaliação de Rosset (1989: 34) que diz que “os pontos-

de-vista populares sobre o mundo são de maneira geral centrados sobre ideias de desordem,

de acaso, de uma absurdidade”. São fazeres não lineares, em que se operam desvios entre

uma linguagem e outra, compondo novos alcances, aproximativos. São modos de adaptação

que Gruzinski (2001: 90-91) aponta como uma tendência a certa “flexibilidade na prática

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social”, “mobilidade do olhar e da percepção” e “aptidão para combinar os fragmentos mais

esparsos”.

As operações não se restringem ao drible para entrar no carro, aos mecanismos de

persuasão diante da plateia, às utilizações do discurso oficial para instalar um estilo de ação

informal, irregular, fora das normas e convenções. A criação se produz entre os próprios

atores, que se apropriam do discurso e dos estratagemas uns dos outros, no deslize pelos

caminhos de melhor acesso a um reconhecimento e a uma comunicabilidade. É o caso dos

“falsos” Manassés, como mencionamos (p. 29, nota de rodapé) deste trabalho. Retomemos

o trecho:

Os integrantes da Casa de Recuperação Manassés têm adicionado em seus discursos durante intervenção nos ônibus a informação de que falsos membros estariam se apresentando também durante os trajetos dos carros e utilizando as causas da instituição para se beneficiar nas vendas. Conforme eles mesmos indicam e nós observamos, o uniforme dos “autênticos” representantes da casa é azul e eles andam com crachá no pescoço. Pessoas têm confeccionado outras camisas, brancas, com o nome “JESUS” estampado, e se apresentado como integrantes da casa. As mensagens por escrito que são vendidas juntamente com as canetas pelos membros da instituição são, então, fotocopiadas e vendidas da mesma forma. Este performer do qual nosso exemplo trata está caracterizado como o representante “falso” da casa de recuperação. Observando que, até entre os próprios performers, uma reprodução de um estilo e de uma maneira de abordagem está presente.

Reproduzindo o discurso e até o uniforme de pessoas que perfazem a mesma tática

cotidiana, eles pirateiam o modo de ação performática. O golpe, então, evidencia que não

há maneiras próprias, mas, sim, utilizações, regulares e irregulares, dos meios e das

circunstâncias, para driblar o estabelecido e gerar benefícios, construir saídas (CERTEAU,

1994: 100-101). Astúcias que nem sempre dão certo. Como em intervenção de um rapaz

que ocupa um veículo que faz uma breve parada para receber passageiros. Enquanto o

motorista está fora do carro, ele, oportunamente, interpela o público, mas não consegue

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concluir seu roteiro; ele é interrompido pelo condutor, que, de volta ao veículo, indicia a

partida do carro, fora dos planos do performer:

Notas de piano saltam das caixas de som do rádio do carro. Poucas pessoas estão acomodadas nos assentos do ônibus. Parado, o veículo parece mais propício para uma interpelação sem interrupções, sem freadas bruscas ou gente querendo espaço para se locomover. O homem, então, avança livremente pelos degraus do veículo e se posta à frente do público: “Senhoras e senhores, com licença a vocês, cidadãos. E me desculpem, amigos, se eu tiver incomodando. Mas, meus amigos...”61 Ele percebe a iminente partida do carro e vira-se de costas, tomando de volta a porta de saída do veículo. Neste momento, o motorista se senta diante da direção e entram, apressados, os últimos passageiros do carro.62

Tais procedimentos se desenvolvem em meio a conflitos estéticos, políticos,

comunicacionais que utilizam recursos e se apresentam como circunstâncias que transitam

entre o dentro e o fora da cena. Para isso, elementos do riso, da dissimulação, do obsceno se

desenrolam em processo rituais que dão partida a outros cenários, conforme discutiremos

adiante.

2.2 Montagens elásticas

Seu homi da direção, pare de chamar isso aqui de ônibus. Chame de máquina de fazer moedas. [sic]63

Antonio Candido, analisando a obra Memórias de um sargento de milícias (1854), diz

que a ordem se torna princípio abstrato para alguns grupos, que atuam mais proximamente

61 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho. 62 Nota da pesquisadora realizada durante pesquisa de campo. 63 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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62

de formas espontâneas de sociabilidade. E práticas como essas, dotadas de espontaneidade

e informalidade, ganhariam em flexibilidade e perderiam em inteireza e coerência,

abrandariam choques entre norma e conduta, o que tornaria “menos dramáticos os conflitos

de consciência” (CANDIDO, 1970: 86-87). O autor se refere a uma “vasta acomodação

geral que dissolve os extremos, tira o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração

recíproca dos grupos, das ideias, das atitudes mais díspares, criando uma espécie de terra-

de-ninguém moral, onde a transgressão é apenas um matiz na gama que vem da norma e vai

ao crime” (CANDIDO, 1970: 86-87).

O que isso tem a ver com nosso estudo? A abertura, a fluidez de linguagens que

trabalham com noções de ordenamento e criação, fecundas no universo cultural das práticas

do urbano; que deslizam por essas oposições e as costuram umas às outras, favorecendo

uma tolerância que Williams (1992: 187) menciona e da qual tratamos anteriormente (p.

58).

A epígrafe deste subcapítulo demonstra um dos recursos utilizados nas performances

itinerantes, que se apropria de um espaço em comum, mas traduzindo um sentido do

ordenamento social para as próprias circunstâncias e objetivos. Estilo de prática que abre

caminho para um processo criativo que se faz mediante um jogo de linguagens, uma

habilidade para certa artimanha, cercada de malícia. O trecho transcrito refere-se à

performance do palhaço Champignon que, na abordagem ao público do veículo, conclui seu

apelo da seguinte maneira:

Obrigado pela atenção. Que Jesus abençoe a vocês todos. E agora, agora vai ser a hora que eu vou ficar estribado, cheim das moedas. [começa a receber o dinheiro dos passageiros]. Obisgado! Vocês vêm amanhã de novo, vêm? Você quer o troco de moeda ou de cédula? [sic]64

Depois de vender suas mercadorias e receber o dinheiro do auditório, canta suas

vantagens: “Seu homi da direção, pare de chamar isso aqui de ônibus. Chame de máquina

de fazer moedas”. O veículo, primeiramente destinado ao deslocamento de passageiros, é

64 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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ocupado e reapropriado por uma intervenção arbitrária, que habilmente toma para si tempo

e espaço, instala novos papéis para cada um dos participantes e ainda conclui exaltando sua

sagacidade diante das condições ali instauradas, que o concede atenção e retorno diante do

público. Além disso, se apoia em instrumentos da linguagem que favorece o riso que,

mesmo provocado por uma transgressão de comportamento (PROPP, 1992: 62) ― ou por

isso mesmo ―, sugere uma legitimização compartilhada por parte dos sujeitos daquela

obra.

Nesse jogo de improvisação e oportunismo da sociabilidade espontânea de que fala

Candido, se destacam alguns arquétipos, apontados pelo autor, que se assemelham a

elementos verificados em performances itinerantes. O primeiro deles diz respeito a um

fazer malandro, aventureiro, que tira proveito de situações, muitas vezes lesando terceiros

na sua solução. É o caso de um rapaz que, certa vez, discursava no ônibus em nome de

comprar um leite raro e caro para a filha. Ao lhe ser oferecido o próprio produto, ele

recusou, dizendo preferir o dinheiro que pedia. Conduta que nos remete ainda à figura do

pícaro, caracterizada por se construir por certas dissimulações (CANDIDO, 1970: 71).

Práticas como essas estariam relacionadas a um “choque áspero com a realidade”, de

uma causalidade externa e que “a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando

esperto e sem escrúpulos, quase como defesa”, vivendo ao sabor da sorte (CANDIDO,

1970: 69). São traços de performances em trânsito, próprios das astúcias da interpelação

urbana. Dialogando com as figuras do malandro e do pícaro, performances também podem

nos revelar aspectos do trickster (CANDIDO, 1970: 72), no que se refere a golpes de

esperteza e jogos de linguagem. Esse mecanismo acionado pelo palhaço Champignon vem

de antes, se estendendo por todo seu discurso, conforme podemos perceber em trecho

anterior da fala citada:

Olha só, pessoal. Como todos vocês aqui devem saber, devem ter visto alguma vez; todos os dias tem alguém que procura um jeito novo de trabalhar. (...) E esses quatro bombons, arrumei um trabalho de verdade. Vocês querendo colaborar, eles se encontram por apenas vinte centavos. Somente vinte centavos pelos bombons. Mas vocês não tendo nenhuma moedinha de vinte aí, não precisa vocês ficar preocupado, porque hoje eu tô aceitando é tudo.

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Eu aceito dinheiro, eu aceito cheque, eu aceito cartão de crédito, aceito seu relógio, o seu celular, eu aceito inté sua carteira. [sic]65

Tais ações podem ser relacionadas com o que o autor aponta como uma convivência

num lusco-fusco entre valores como lícito ou ilícito, verdadeiro ou falso, moral ou imoral,

justo ou injusto (CANDIDO, 1970: 84). Esses jogos/ rituais de linguagem têm que ver com

recursos de construção do riso, que Pinheiro diz que se desenrola a partir da necessidade de

“habitar-se no que nos é estranho” (2004: 35-36). Sendo assim, examinemos em que

medida o cômico se oferece como provocação para a instalação e para um encontro com o

outro dentro do ônibus e como isso se relaciona com uma mudança em seu ambiente

midiático.

A partir do autor, podemos afirmar que o caráter de riso da performance se alimenta

da experiência de crise e de diálogo entre dois textos: o primeiro deles sendo o ônibus como

meio de transporte público para o deslocamento da população (horizonte médio de

expectativa geral) e o segundo tratando e apontando o ônibus como “máquina de fazer

moedas” (decepcionando a expectativa de sentido trivial), implementando um uso próprio e

atribuindo-o novo significado. O que a performance faz aí é quebrar uma estabilidade e

instaurar uma tensão, um conflito, ou seja, provoca “a possibilidade de relação tensa entre o

familiar e o estranho”, um “pensamento duplo” (PINHEIRO, 2004: 35-36). “Ao profanar o

lugar, o riso aponta para uma superfície cultural dinamicamente construída num espaço em

contração e expansão”, “avizinhando elementos descontínuos” e relacionando o que está

em contraste (idem: 38).

Compreendamos como podemos entender o riso, a começar pela análise de Bakhtin66,

que nos diz que o riso na praça pública medieval explicitava deliberadamente um contexto

não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado, criando uma espécie de dualidade do mundo. Para

o autor, essa eliminação de hierarquia possibilitava um tipo particular de comunicação,

franca e sem restrições, abolindo a distância entre os indivíduos, liberados das normas

correntes de etiqueta e decência. Isso pode ser percebido até mesmo nas formas de

65 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho. 66 Não pressupomos que tais interpretações se apliquem ao nosso estudo. Contudo, reconhecemos na análise do autor importante referência para averiguar a dinâmica do urbano, considerando seus distanciamentos contextuais, metodológicos e semânticos.

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tratamento entre os sujeitos, empregando diminutivos, apelidos, mantendo contato corporal

a ainda chegando a “fazer pouco” uns dos outros, sem polimentos (BAKHTIN, 2008: 4-14).

As performances em trânsito compartilham traços do riso festivo de que trata o autor.

São similares, mas precisam ser atualizadas. O riso dentro do ônibus não se opõe ao sério,

ele se une a ele e potencializa seu alcance, embora em alguns casos possa satirizá-lo; oficial

e não-oficial se misturam, como já discutimos em tópico anterior; e o cômico vem junto do

drama.

O autor discorre sobre vendedores que apregoavam suas mercadorias em praça

pública, em dias de feira. Nesse contexto, ele nos revela uma propaganda popular que é

brincalhona e que graceja de si mesma, que contém uma abundância excessiva de

superlativos e a utilização de apostas paródicas no elogio às suas mercadorias, bem como

de injúrias, discurso que contribui para um jogo livre e alegre, no qual superior e inferior

“adquirem direitos iguais”: “As charlatanices de feira escaparam sempre aos imperativos da

hierarquia e das convenções verbais (isto é, às formas verbais do comércio oficial),

gozaram sempre dos privilégios do riso da rua” (BAKHTIN, 2008: 138-140).

Esse aspecto pode ser observado na performance em trânsito, sendo traço tradicional

do apelo popular que envolve os pregões no espaço externo, como no caso de uma

adolescente que percorre os veículos, já conhecida dos motoristas e trocadores (exemplo 1)

e do próprio palhaço Champignon, que associa o pregão em superlativos a um vender bufo,

apontando aspectos inexistentes nas balas que oferece ao auditório. Vejamos:

Exemplo 1: Boa tarde, senhoras e senhores passageiros, gente. Me desculpem se eu tiver incomodando algum de vocês. Esse pacotinho que eu passei na mão de cada um de vocês, pra quem não conhece, ela é feita pela raiz da batatinha de gengibre. Ela serve pra tosse, rouquidão, inflamação na garganta, deixa o seu hálito puro e agradável. Na farmácia você vai encontrar ele mais elevado. Um e oitenta, um e noventa, chega até doi reais, com dez unidades. Mas, na minha mão, vocês vão pegar, agora, por apenas um real ou um vale-transporte, com quinze unidade. Tem de vários sabores: gengibre com menta; gengibre, cravo e canela; gengibre com romã; tem de gengibre, maracujá e limão com mel. Muito obrigada pela

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atenção de cada um de todos. Vão com Deus e uma boa viagem. [sic] 67

Exemplo 2: (...) e olha só: ajudam eu e também se ajuda. Sabe por quê? Em cada bombom desse tem mais de dez vitamina: tem vitamina A, vitamina B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, V, X, Z. E o bombom, ele é tão bom, mas tão bom, que vocês começa a chupar ele agora de tarde, cês só acabam amanhã de manhã. [sic]

O segundo exemplo tem que ver, ainda, com a mentira enganadora de que trata Propp

(1992: 115-116), que, para ser cômica, deve ser de pouca importância e não levar a

consequências trágicas, além de ser desmascarada. O autor nos diz que somente o homem ri

e ele ri somente do que é humano; sendo o riso provocado por um deslocamento de

percepção. Verifiquemos como isso pode se dar dentro do ônibus rememorando um caso

mencionado no início deste trabalho (p. 15):

De jeans, peruca e nariz de palhaço, um garoto exalta: “Pessoal, eu estou aqui porque eu participo do Programa Fome Zero”. Faz uma breve pausa e prossegue: “Fome zero lá em casa”. Depois disso, continua sua fala com gracejos pelos próximos dez ou quinze minutos, aproximadamente. “Eu não vou parar de falar enquanto vocês não me ajudarem. Podem até me jogar pela janela, se não gostarem da minha apresentação, mas, se gostarem, por favor, me aplaudam”, performatiza, provocando seu interlocutor.

Esse performer zomba da própria condição. Ele é seu próprio objeto ridículo e o

sujeito que ri, condensando as duas grandezas do riso (PROPP, 1992: 31). Alia à sua

situação particular o contexto de política pública estatal do país, comunicando um ridículo

não apenas pessoal, mas social, inerente a cada um daqueles que formam seu público. Além

67 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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de satirizar e destruir uma falsa autoridade de uma ação governamental, que é submetida ao

escárnio (PROPP, 1992: 46).

Relembramos também o chiste (recurso de linguagem associado ao cômico) utilizado

por performance que se propõe a interferir no ambiente na medida em que gera a

curiosidade do grupo de passageiros, que voltam suas atenções para o vendedor. O rapaz

exclama: “Caiu!”, sobressaltam-se os passageiros. Continua: “Caiu!”. E arremata: “Caiu!

Caiu o preço da jujuba!”. Compreendendo o chiste como a situação em que as mesmas

palavras prestam-se a usos múltiplos (FREUD, 1996), o jogo de linguagem induz o

público-passageiro a imaginar algo que cai literalmente, durante seu trajeto em sacolejos,

antes que seja explicitado seu sentido figurado, criando um falso juízo, tendencioso,

proclamando-os partícipes da obra. “Nossa fruição do chiste baseia-se em uma impressão

combinada de sua substância com uma efetividade como chiste, o que nos leva a ser

enganados por um fator à custa do outro. Só depois da redução do chiste tornamo-nos

atentos para esse falso juízo” (FREUD, 1996).

Diante desses e dos recursos que debatemos anteriormente, podemos dizer que a

performance em trânsito não está sob os holofotes dos grandes espetáculos de massa, mas

também não daria conta do debate afirmar que essa forma de comunicação é marginal. É

mais adequado trabalharmos numa perspectiva inclusiva, de montagem, que se refere a uma

apropriação canibalizante, superando uma dualidade entre centros e periferias (PINHEIRO,

2009). Isso porque levamos em conta sua constituição a partir de textos variados, em

permanente relação, numa multi-vocalidade, apontada por Lótman (apud RAMOS, 2007:

31). Suas linguagens são distribuídas entre as esferas da cultura, passeando por posições de

centro e periferia.

Formalidade e informalidade, oral e escrito (como veremos adiante), trabalho e

mendicância, errância e imobilidade apresentam-se inter-relacionados num mesmo espaço

cultural, que é o ônibus inserido no espaço urbano externo, e estabelecem entre si diferentes

diálogos (MACHADO, 2007: 17-19). São códigos, linguagens, sistemas culturais das mais

variadas procedências que dialogam e se compreendem mutuamente, fruto de sua interação

(MACHADO, 2007: 17). O que se observa, a cada apresentação, são atos comunicativos

que comportam importantes indicativos dos usos que aqueles atores sociais fazem de

elementos da nossa cultura. São transfiguradas expressões em constantes recriações de

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linguagens. Tal passeio pelos centros e periferias nos encaminha para a noção de “culturas

das bordas”, em que uma produção

que não está no centro, aquilo que fica numa faixa de transição entre uns e outros, entre as culturas tradicionais reconhecidas como folclore e a daqueles que detêm maior atualização e prestígio, uma produção que se dirige, por exemplo, a públicos populares de vários tipos, inclusive àqueles das periferias urbanas (PIRES FERREIRA, 1990: 169).

Um dos aspectos aos quais podemos relacionar o conceito de “bordas” nas

performances estudadas é a noção de obsceno, na medida em que ela se dá nos interstícios

dos locais de interação cultural e se faz aparecer por mecanismos de subversão. E essas

“bordas” colaboram para o ir e vir de linguagens, significando aquele transitar por esferas,

escorregando pelas beiradas, por suas margens, nunca se instalando em definitivo.

Essa noção ultrapassa o obsceno como algo que “fere o pudor”, ampliando seu

sentido para o entendimento de “algo fora da cena” (CARDOSO, s/d: 70-71). “Obsceno

seria, portanto, tudo aquilo que não pode ser representado no “palco”. É algo que existe nos

bastidores” (idem).

Junto com o transgressor, com o contrapontual, com o ambivalente, se instalam

também o inconveniente, o indecoroso, permeando a interpelação intrusiva durante o

deslocamento no transporte coletivo. Essas vias por fora de uma “compostura” vão desde

um severo discurso que aguarda por um Estado provedor, até um sermão evangelizador ou

a exibição de um corpo grotesco ― aquilo que rompe o contexto e fere um decoro como

impropriedade (COELHO, s/d: 49).

Pires Ferreira nos diz que a “criação popular adapta e reinterpreta conforme seus

próprios padrões” (s/d: 12). Assim sendo, a performance nos ônibus é impertinente. De

forma buliçosa, provoca incômodo, cutuca os passageiros. Os doentes, os sujos, os loucos,

fora de foco, se fazem destacar, se instalam no centro da cena. Há o discurso reclamador, o

agônico e o louvador de si. É o ex-presidiário, o ex-dependende químico, que deslizam

pelas redes da cultura. Sendo assim, trabalhamos com o conceito de obsceno na relação de

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recursos de um vaivém que distancia e aproxima público e intérprete. Procedimentos que

se apóiam num obsceno e em mecanismos de “bastidores”, se entremeando pelas bordas e

liberando um corpo oprimido para o olhar do outro; permitindo ao outro o contato com um

“imoral”, caminhando junto com elementos de uma moralidade.

Sua obscenidade subverte convencionalidades e é subvertida por elas. Fala-se “do

que não se fala”. Exibem-se marcas, expõem-se intimidades familiares, põe-se a

julgamento. O ex-presidiário que protesta contra a falta de oportunidades de emprego após

a saída do cárcere, raivoso, mais consegue intimidar a platéia que o cerca de lado a lado do

ônibus, que se recolhe no fundo dos assentos a cada brado furioso que ele dá, de pé, dando

passos à frente à medida que se inflama. Podemos pensar que tal exposição tende a

instaurar uma auto-submissão do performer a um processo inquisitorial.

Alves (s/d: 28-29) nos diz que esse tipo de prática pode ser lida como um tipo de

pedido de justiça: “tudo o que é “fora de cena” é desejado e até estimulado para que, sobre

ele, aplique-se “o rigor da lei”, enquadrando-se toda marginalidade, outra vez, ao “seio da

cristandade”. O ex-dependente químico, por sua vez, recorre a referências às próprias vidas

íntimas dos passageiros para fazer da sua obscenidade algo próximo, compartilhado,

conforme observamos a seguir:

A dependência química é uma doença, mas uma doença que tem cura, que tem um tratamento. Os químicos dizem que não há como se tratar, mas há sim. E eu sou a prova viva disso. A cura para essa doença está em Deus. A palavra de Deus, ela diz lá no João 8-36 que se pois o filho fosse libertado, verdadeiramente sereis livres. E é o que eu sou hoje: verdadeiramente livre. Porque eu confiei em Deus e com Deus eu me libertei das drogas. Outra hora eu não acreditava que ele existisse não. Eu era uma pessoa desacreditada na vida. Com nove anos, eu era usuário de drogas. Cheguei a ser usuário de maconha, cocaína e craque. Por causa do craque, eu quase perdi a minha vida: tive um princípio de overdose por usar 25g da droga. Seiscentos reais. Era do assalto para a droga. Usado pelo diabo para fazer a maldição (...) Hoje eu tenho a palavra de Deus como instrumento de Bênção. Para trazer àquelas pessoas aí, ó, a cura, a libertação; juntamente com um trabalho que me ajudou, que salvou a minha vida. Estou há oito meses aqui em Fortaleza, realizando esse trabalho. Quando eu cheguei aqui, eu pesava 56 quilos. Hoje eu

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consigo andar, hoje eu consigo ter felicidade, hoje eu consigo sorrir. (...) Às vezes, a gente vê uma pessoa no mundo das drogas e pensa: 'Tá sofrendo porque quer'. Não acreditem no pensamento medíocre de gente pequena. Pessoas que não sabem o que sofrer: não têm um pai com dependência alcoólica ou química, um filho ou um irmão. Mas eu sei o que é ter uma mãe sofrendo e sei o que é sofrer com as drogas. (...) As pessoas têm a mania de dizer que a verdade, ela dói, mas em mim não doeu nada. A verdade me libertou. A palavra de Deus, em João 8-32, 'conhecereis a verdade e a verdade vos libertará'. Foi o que aconteceu comigo. Hoje eu me sinto transformado. Mas eu venho trazendo esse trabalho aí com toda dificuldade, porque eu sei que dentro desse coletivo pode até não ter ninguém que tenha um parente no mundo das drogas e que não precisa ouvir essas palavras, mas pode ser também que dentre essas quarenta pessoas que tem aqui dentro, uma só precisa ouvir essas palavras e isso nos torna vitorioso. A gente faz nosso trabalho (...) através do discurso divino, através de um informativo que contém as informações básicas e também um brinde, para que possa chamar a atenção das pessoas. Mesmo que não queira ajudar pelo trabalho, vai estar ajudando a instituição da mesma forma. Quem adquirir o brinde vai estar ajudando a instituição da mesma forma (...). [sic]68

Podemos associar tal exemplo à “lista de pecados” de que nos fala Alves (s/d: 31).

Segundo ele, essa exibição demonstraria uma justaposição da heterodoxia do livre-pensar e

da obscenidade que busca uma reordenação da condição de “escória”, para rumar ao centro,

donde vê as linhas diretoras da vida. “Portanto, a obscenidade e a liberdade (ou a liberdade

da obscenidade) precisam ser reencenadas no palco maior do poder centralizador. (...) Entre

as delações enumeradas pelo réu, há nítido privilégio em forçar ― e talvez forjar ― as

práticas obscenas” (idem). De acordo com o autor, a prática da obscenidade forja um

discurso capaz de liberar corpo e voz. Para Alves, tais dimensões do apresentar-se, do ver-

se no mundo, são parte de nossa condição barroca: “Na dimensão mórbida e ditatorial de

tais organismos, os prazeres da carne, os atos venéreos e os ditos de porta de boteco,

causadores do humor e do escândalo são o buraco venturoso da fechadura que caracteriza a

nossa ampliada condição barroca” (Alves, s/d: 33).

68 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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2.3 Composições de corpos, carro e instrumentos na presença ritualística

O caráter de performatização das intervenções nos ônibus da cidade nos conduz a

investigar os enlaces dos compostos cênicos e semânticos do percurso de performers dentro

de cada carro. A articulação entre esses elementos ― que vão desde os movimentos

corporais, a inscrição espaço-temporal, a utilização de instrumentos, os mecanismos de

associação, as finalidades e as sequências de ações, entre outros ― tendem a constituir,

segundo nossa análise, ritualidades, que permitem um reconhecimento da performance, sua

inserção naquele grupo, a inicialização do público na cena performática e a reiterabilidade

de seu discurso no encontro com o outro.

Ainda que se transmudem a cada veículo ou mesmo deslizem por entre as condições

do ambiente, modificando aspectos da voz, do corpo, da temporalidade, entendemos que

essas performances se apresentam sob condições de ritual, portanto sob algumas “normas”

de conduta. O próprio ato de entrar pela porta contrária a dos passageiros comuns do carro,

provocando uma “contracircularidade” do vivenciar urbano (discutido no capítulo anterior

deste trabalho) inaugura uma presencialidade ritualística, através da qual se inicia uma

cerimônia de autoapresentação de caráter simbólico ― porém, também com finalidades

pragmáticas.

Perceber um sujeito entrar no veículo de maneira não regular desperta a atenção do

grupo de passageiros, que passam a se subordinar à iminência da performance. Ele entra e

não se instala de modo convencional: permanece em pé, caminha pelo espaço, procura o

melhor local para se escorar ou já começa sua fala. Tal rito segue preceitos estabelecidos,

que regulam o exercício da ação performática, como o local de acomodação do ator dentro

do carro, sua postura corporal ou mesmo a expressão facial do performer que se prepara

para interpelar o público, diferente da dos demais ocupantes do veículo.

Observemos o exemplo de um senhor que entra no ônibus apoiado por uma muleta.

Ele sobe devagar, cada degrau das escadas da porta de saída do veículo com os dois pés, em

silêncio, olhando para baixo. Sua ação primeira, ao atingir o corredor do ônibus, é estender

a mão. Tal conduta se desenrola por um sistema de ações práticas que logo o identifica

como alguém que se dirige ao outro. O entrar pela saída lentamente, que dramatiza sua

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chegada, até o primeiro pedido de esmola, que estabelece seu papel diante do público. Ele

sequencia sua intervenção alinhando o corpo ao centro do corredor, com espaço suficiente

para o movimento de cada mão; uma o sustenta, com a muleta; a outra também, erguida e

direcionada a cada passageiro, recebendo e guardando as moedas no bolso ― código de

expressão convencional na ritualística da mendicância.

A anunciação performática cruza o andar de ônibus e a sequência de recursos de um

corpo que pede, tensionando não apenas a configuração imagética daquele ambiente

midiático, que estoura outras miradas, no fora e no dentro, mas também interferindo na

percepção de tempo dentro do carro. O ritual performático se inscreve com uma nova

temporalidade, que se constrói a partir do tempo de encontro entre ator e plateia,

relacionado com o tempo de uma cidade que passa do lado de fora e de um veículo que

circula.

Enquanto meio de transporte, o ônibus é um espaço-objeto que corre, de um ponto a

outro. Cada local, cada parada, subida e descida, demarca de onde se sai e aonde se chega,

sendo seu tempo demarcado por aquilo que se percorre. O tempo dos passageiros é também

o que avança pelas janelas. No instante em que a performance se enuncia, ela se inscreve

naquele espaço temporal, gerando nova temporalidade.

O andar vagaroso, pontuado, silencioso, que se aporta de passageiro a passageiro, a

passos pequenos, inseguros, do senhor de muleta se impõe em um movimento coreográfico,

em meio ao trajeto do veículo. Dá-se o tempo de percurso, mas também o tempo da

performance, que tendem a entrar em sincronia para que os dois modos de ocupação se

imbriquem um no outro. Temporalidades, apontamos, não somente da máquina com o

corpo do performer, mas do conjunto que forma o ambiente midiático do ônibus com a

cena performática instalada, ou seja, construída a partir de uma conexão de percepções e do

fazer o tempo.

Tal sincronia, então, tende a pôr em comunhão o grupo e a consolidar o desenrolar do

fazer coletivo da performance. O ritual é não só organizador, como também demarcador de

tempo e sincronizador social. Com o ritual, é possível a construção de um tempo em

comum, por meio da sincronização. Por isso a necessidade da construção de pontes,

vínculos, canais, entre um ambiente e outro para que se consiga romper o tempo do outro,

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se sincronize e se chegue a um tempo comum. “Simultaneidade das desimultaneidades”69.

Nos apoiando em Zumthor (1993: 252), podemos dizer que a obra apresentada nos

ônibus existe no tempo de duas maneiras: pela duração da performance apresentada e pelo

momento em que ela própria se integra na duração social, num deslocar-se do veículo. As

modalidades espaciais da performance, nos baseando no autor, interferem nas do tempo

(1993: 254). Percebemos, com isso, que o ônibus não é só carro, é carro em movimento, é

espaço que atravessa um tempo e que é atravessado por outras passadas, tensões que não

são alheias à construção de sentidos e maneiras de fazer, provocando efeitos particulares na

obra proclamada.

Esse modo de conduta se processa repetidas vezes, tanto dentro do veículo, que

recebe diversas intervenções em um dia, quanto do próprio intérprete da performance, que

se repete a cada mirada do público-passageiro. Pross70 nos diz que ritual é uma organização

do tempo, o desenrolar de um roteiro e um princípio de repetição. E essa repetição, para o

autor, é a mimetização de si mesmo ― e a mimetização gera certa “identidade”, sendo a

principal significação de ritual, portanto, a de pertencimento. Sob essa interpretação,

avaliamos que a performance em trânsito, que transgride condutas de ordenamento do

urbano (e que é exatamente por ser urbana que se dá tal transgressão) se faz percebida

como performance e se faz parte do percurso pela cidade.

Retornemos, agora, ao momento em que um performer entra no transporte e indicia o

momento de interpelação: quando ele irrompe o espaço e os demais passageiros percebem

que não se trata de uma ocupação regular, da simples utilização do serviço de transporte

público, mas da busca de um encontro. Nesse instante, verificamos, dá-se o estabelecimento

da performance como novo componente e proponente da cena, transfigurada, no ônibus. A

tendência é seguir-se a uma apresentação de si, figurando o performer não como sujeito

cotidiano, mas como sujeito ritual, que pode se iniciar através do tom cerimonioso de frases

como “Boa tarde, pessoal”, “Bom dia, passageiros”, “Desculpem incomodar a viagem de

vocês, cidadãos”; como também se projeta naquela relação estabelecida entre os

69 De acordo com Norval Baitello Júnior, em aula ministrada em 23 de abril de 2009, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (PEPGCOS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 70 De acordo com Norval Baitello Júnior, em aula ministrada em 23 de abril de 2009, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (PEPGCOS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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participantes da cena algo de proximidade, de familiaridade, como em “Oi, gente. Bom

dia!”, “Oi, meus amigos” ou “Oi, meus irmãos”.

Barros Filho nos diz que toda apresentação é um ritual; obedece a uma sequência

definida (2005: 13). Segundo o autor, um interlocutor participa da sua própria definição ao

agir e ao discorrer e atribuir sentido e valor ao mundo do qual participa (idem), num

processo de identificação e socialização. Interagir, prossegue, pressupõe identificar e

identificar-se, ou seja, é condição de inclusão. “Relato habitual que, por definir, discrimina

e integra” (BARROS FILHO, 2005: 14). Considerando assim, entendemos que a

autoapresentação dos performers diante dos passageiros, transformando-os em público, em

auditório, realiza-se por meio de um processo ritual e dinamiza uma interação entre os

participantes daquele cenário. São ritos de anunciação que representam outra forma de

utilizar, de pertencer, de se apropriar e de se incluir no ambiente, provocando o face a face

do público com o intérprete.

Apresentações como essas se processam não apenas pela voz. Em Fortaleza, por

exemplo, o palhaço Champignon (já citado neste trabalho) inicia sua interpelação

distribuindo bombons. Ele entra no carro e, caminhando, sem pressa, pelo corredor do

veículo, distribui dois bombons a cada passageiro. Entrega o doce a uma moça e diz: “Toda

vez que você segura ele, a primeira coisa que você olha, você se apaixona. Você olhou pra

mim?”. A distribuição segue com outras falas que anunciam, pouco a pouco, a irrupção do

espaço: “Bom dia, gatona”, “E aí, bonitim?”, “Bom dia, homi”, “Bom dia, jove”.

Interrompido várias vezes para dar passagem aos que se deslocam dentro do carro, o

palhaço continua: “Bom dia, doutor”, “Bom dia, seu menino grandão”, “E aí? Obisgado!”,

“Bom dia, dona moça”, “Ei, lorôna! Obisgado!”. [sic]

“E lá se vai passando um homem bonito!” (refere-se a si), já quase chegando ao final

do percurso no interior do ônibus. “Pegue um pra você, de Natal”, “Um para o homi da

direção...” [sic], segue a bufonaria com a distribuição direta na mão de cada passageiro, um

a um, por cerca de três minutos.

Aos poucos, cria-se o ambiente de performance. Sua entrada, contrariando a maioria

das intervenções, foi pela porta regular dos passageiros, pagando passagem e começando

sua peregrinação dentro do carro a partir do lado de trás do veículo, estando os passageiros,

portanto, de costas para ele, que não irrompe o espaço num instante. É ao mirar cada

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passageiro separadamente que Champignon constrói uma ritualidade performática,

reconhecida pelo grupo no desenrolar da ação e na demarcação de papéis de cada

participante.

Vai-se, então, costurando o caminho até o ápice da performance, em cujo momento

fará o pedido de dinheiro. “Ram ram”, pigarreia, preparando a voz. Enquanto isso, os

bombons já estão com cada um, que aguardam o espetáculo que se enuncia. “E chegou a

hora do golpe!”, grita, em tom circense, se preparando para se posicionar à frente do

público, em pé, sustentando-se na estrutura do veículo, agora como a maioria ― depois, ele

volta a se espalhar pelo carro.

Tal roteiro é desenrolado em cada veículo ocupado, cumprindo um processo de

repetição. Não um redizer pronto, acabado, mas, sim, acionando uma reiteração. A presença

do performer não é surpresa, embora não seja esperada; não é fixa, mesmo que repetida. É

o repetir ritualístico, que une os atores do ambiente e se apresenta como uma transfiguração

da cena. Um ritual que identifica do que se trata tal mudança no ambiente midiático. A cada

performance, se repete, se imita a si mesmo, outra vez.

Martín-Barbero (2002: 96) diz que a repetição, característica fundamental do ritual, é

não apenas uma regulação do tempo, como também uma marca sobre a ação. A repetição

da performance em trânsito, nos baseando no autor, tem sua força ao evocar o momento

presente e ao se impor como uma ação que deve ser restaurada e percebida como

protagonista daquele cenário, naquele instante ― numa luta contra uma “inércia da

performance” e “fraca capacidade de transformação”. “De ahí su diferencia radical con la

costumbre. El rito es una acción que no se agota en sí misma, en su inmediatez, en su

utilidad inmediata” (idem).

A criação paulatina do momento de interpelação pelo palhaço, dramatizada pela

distribuição pontual de mercadorias, com falas que não explicitam do que se trata, mas que

dão indícios de que uma performance se instaura, insere no jogo ritualístico o suspense.

Debatendo sobre a repetição e a normatização de um processo ritual, Pross nos diz que a

rotina pode ser considerada o excesso, o enrijecimento do ritual, pois este é sempre criativo.

Se nele não houver um elemento de suspense, de surpresa, não sobrevive.

Na rotina, segundo o autor, se pede tanto o suspense quanto a surpresa. Todos

ficamos ansiosos diante da iminência. “Ram ram”. O que será que esse palhaço vai dizer?

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O que ele nos prepara? Por mais que se crie previsibilidade, se identifique do que se trata

e, apesar do formulismo71 com que muitos performers operam, não se sabe ao certo o que

vai acontecer ― até mesmo porque nunca acontece exatamente o mesmo ato. É a ausência

que gera o déficit, que gera criação, que gera outros ritos. Os rituais se constituindo

coerções, emocionais ou sociais. A criatividade do desenrolar da performance tanto

sustenta o ritual quando o destrói e cria outros rituais72. O ritual que cria previsibilidade

consegue, com isso, gerar identificação com tal ato. Porém, ele, ainda assim, se transmuda

(e modifica o ambiente). No caso do palhaço, o ritual, além de gerar uma identificação e

uma preparação para o clímax da performance, é um jogo que seduz o passageiro a se

transformar em público. Ritual e jogo estão intimamente ligados73.

O ritual proposto pelas performances combina o andar de ônibus com o assistir de

uma encenação, sendo o corpo dos performers a principal ponte entre os personagens

daquele momento. O desenrolar do roteiro oferece a possibilidade de os usuários do carro

se transfigurarem como partícipes da cena; e isto não se dá apenas na transformação dos

passageiros em auditório, mas do público como também intérprete, sendo componente da

criação da cena. Como nos diz Zumthor (1993: 224), interpelar o auditório é uma das

regras do jogo da performance. Podemos notar isso quando o palhaço elege determinada

pessoa para ser sua “secretária”. Ao finalizar a distribuição dos bombons e iniciar sua fala,

ele a pede que segure o pacote com os doces que restaram para que ele se segure no carro e

se equilibre melhor. “Segura para mim, secretária?”, diz, se preparando para sua fala. Logo

mais, retorna a ela, evocando-a e exibindo-a como parceira performática: “Olha só, pessoal:

eu sou Champignon! Logo aqui do meu lado está a minha secretária! E aí secretária?! [olha

para ela e põe em saltos as sobrancelhas, cúmplice] Ela é a Dorotéia!”. Tal interação

reforça a função dialógica de sua intervenção no ônibus, assim como pedidos dirigidos ao

ouvinte, que age e reage a chamamentos como o seguinte:

71 Discutiremos sobre formulismo adiante. 72 De acordo com Norval Baitello Júnior, em aula ministrada em 23 de abril de 2009, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (PEPGCOS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 73 Conforme Norval Baitello Júnior, em aula ministrada no dia 14 de maio de 2009, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (PEPGCOS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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- E chegou a hora do golpe! É agora, pessoal! Eu quero ouvir! Vocês tudim aqui dando boa tarde para eu! Não vão fazer eu passar vergonha! Olha! Boa taaaaaarde, pessoaaaaal! - Boa tarde! - responde a plateia. - Adorei! Foi lindo! Mas vai melhorar mais ainda. Porque dessa vez agora, pessoal, só vai dar boa tarde pra eu quem for bonito! Quem não for bonito vai ficar calado. Lá se vai: boa tarde, pessoals bonito! - Boa tarde! - Tá vendo! Num instante apareceu os convencido! (Risos)74 [sic]

O auditório figura como testemunha da situação de diálogo, mas, como também

intérprete, participa da criação da obra, ele “significa” (ZUMTHOR, 1993: 228). O ouvinte

faz parte da performance, da mesma forma que o autor e as circunstâncias (idem). Ao ser

interpelado, ele se engaja, intervém e compõe a obra, contracena ― torna-se também ator.

“Estabalece-se uma reciprocidade de relações entre o intérprete, o texto, o ouvinte, o que

provoca, num jogo comum, a interação de cada um desses três elementos com os outros

dois” (ZUMTHOR, 2005: 92-93). Outros chamamentos de participação do público são

acionados durante os cerca de quinze minutos de interação, promovendo o auditório a

testemunha de situações dialógicas, mas também a criadores do ato. O “boa tarde!” ou as

risadas, explicitados na transcrição acima, atuam como uma performance coletiva,

irrompida em meio a uma situação de tensão, manifestada pela voz do grupo, as vozes em

uníssono, em coro (ZUMTHOR, 1997: 192).

Também por meio do emprego de elementos como o vocativo, utilizado aqui como

aliteração, durante sua fala, o intérprete evoca a presença do público na obra. Recurso de

diálogo entre performer e o público, ele chama, intima, reforça a interpelação, “motivo

conveniente à intenção do texto e às circunstâncias” (ZUMTHOR, 1993: 225). Tal recurso

pode ser observado nos exemplos a seguir:

Exemplo 1:

Boa tarde, pessoal. Pessoal, estou (...) pedindo uma ajuda a vocês, (...) minha mãe meus dois irmãos.

74 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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Meu pai já faleceu, pessoal. A ajudinha que vocês me der serve. Dez centavos, cinco centavos, pessoal. Eu agradeço, de coração. [grifos meus]75

Exemplo 2:

Boa tarde, pessoal! Desculpa eu estar aqui lhe incomodando, estou aqui trabalhando vendendo uma jujuba, só custa apenas cinquenta centavos. O chocolate custa apenas vinte e cinco centavos. Gente, estou aqui trabalhando é para poder comprar o remédio da minha irmã que se encontra em casa. Gente, a minha irmã, ela sofre de problema do rim e da hérnia e ela é deficiente de uma perna. Gente, estou aqui trabalhando é para poder comprar a alimentação para dentro de casa. Gente, vocês não sabem como é ruim a gente amanhecer o dia, ver a irmã da gente chorando por um pedaço de pão e a gente não ter com o que comprar. Gente, se vocês puderem abrir o coração de vocês; quem puder fazer essa caridade, eu agradeço. Fique com Deus; uma boa viagem para todos vocês; muito obrigado pela atenção de vocês; que Deus ilumine todos os caminhos de vocês; dê paz e felicidade para todos vocês (sic) [grifos meus]76.

As atividades ― andar de ônibus e assistir a uma encenação ― se ligam aos

instrumentos que fazem parte do instante. Os bombons unem o público ao ator. Eles o são

oferecidos, permanecem nas mãos de cada um durante todo o ato e participam do processo

de encerramento da performance, selando ou não a colaboração. Quem dá dinheiro, fica

com os bombons, quem não dá os devolve. Bombons no sentido material, mas

principalmente no sentido simbólico, se enunciando como diálogo entre o performer e seu

público.

Os elos entre o ambiente do transporte e o ambiente performático tendem a ser

costurados a partir de combinações entre corpos e instrumentos utilizados na presença

ritualística e suas finalidades. Um jovem deficiente das duas pernas percorre o corredor do

ônibus sentado num skate, rompendo a convenção de o interventor da cena se postar à

frente do público, de pé, geralmente em posição de crucifixão, acima dos passageiros. No

skate, ele não fica parado; sua performance é correr; não há fala. Sua ritualística se instaura,

75 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho. 76 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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portanto, especialmente, no ajustamento de seu corpo ao instrumento que lhe confere

movimento, deslocamento.

A indumentária de performers que encenam uma personagem ou identificam um

grupo, como o palhaço Champignon e os rapazes da Casa de Recuperação Manassés,

respectivamente, se combina com suas falas e torna evidente sua interpelação. A peruca é

um importante símbolo da encenação, da teatralidade, da espetacularização que ali se

imiscuem, de certo modo. Já a bolsa lateral, estilo carteiro, é um dos instrumentos que mais

identificam a intenção do ator quando ele entra no veículo. É ela a mais utilizada pelos

performers para guardar as mercadorias oferecidas, práticas, rentes ao corpo, ao alcance das

mãos, em que põem e retiram inúmeras vezes os produtos oferecidos. No decorrer do texto,

verificaremos como outros instrumentos, como muletas, bilhetes, chapéus, placas,

documentos, entre outros objetos, atuam no processo ritualístico e o que eles conferem ao

diálogo performático.

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3 DESLIZES DO AGIR CAMBALEANTE

3.1 Modulações do imprevisto: performance como ruído e ruídos que deslocam

a performance

Já discutimos que a performance não se constrói em si mesma. Ela é parte da obra,

composta por um fluxo de corporeidades, sonoridades, interlocuções, que atuam como

camadas que se interpõem e que modificam sentidos a cada instante. No deslocar do

transporte coletivo pelas ruas, esse efeito é movido pelo agir urbano entre sujeitos, locais e

fazeres no trajeto citadino. Instalada em local de intenso cruzamento desses elementos, a

intervenção de vendedores, pedintes e artistas no trajeto do veículo se processa entrecortada

por componentes da não performance, o que sugere que ela tem de deslocar-se em si,

adaptar-se às interrupções, como um som mais alto vindo de fora que abafa a voz do

intérprete, o desequilíbrio de um corpo que sacoleja ou de sua instalação em ônibus tão

lotado que ele não consiga se fazer visto. Sendo assim, trabalhamos na perspectiva de que a

performance é ruído à viagem no ônibus e os movimentos do veículo são ruídos à

performance.

Um dos rapazes da Casa de Recuperação Manassés, por exemplo, tem seu

desempenho permeado por interrupções, a começar por um intenso sacolejo do carro, que

faz o ranger da estrutura do veículo se sobrepor à sua voz e tornar sua fala quase inaudível.

Mesmo reforçando a altura da voz, ele se vê em evidente desvantagem, quando, além dos

solavancos que chacoalham as paredes do ônibus, o ronco do motor se fortalece a cada

acelerada pelo motorista e a música tocada no rádio tem seu volume aumentado. Enquanto

ele diz “Vou passar informativos como esse aqui, tá, sem compromisso. E explicar um

pouco melhor através do testemunho porque que a gente faz essa distribuição do nosso

trabalho (...)”; a música arremessada das caixas de som do carro interrompe a audição da

plateia em versos estridentes do cantor José Augusto:

Porque apesar de tudo o que você me faz / Eu não te esqueço e sem querer te quero mais / E muitas vezes eu pareço ser tão duro / Pra que as pessoas pensem

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que eu estou seguro / Você nem diz mesmo se estou errado / E não enxerga que eu estou apaixonado / E agindo assim você me deixa sem saída / E vai embora com a minha história em tua vida77.

Ele distribui o material a ser vendido, como de praxe, enquanto se segura na estrutura

de metal do ônibus. À medida que caminha, transformam-se as possibilidades de audição,

modificadas pelo local do carro em que ele está e pelas interposições dos sons da cidade em

seu discurso; além de sua visibilidade, que, caminhante, vai e vem pela vista dos

passageiros. Em determinado momento, só se percebe uma fala ao fundo, que torna o

performer presente, mas que mal comunica suas palavras, nem seu corpo, quase diluído no

ambiente, funcionando como um ruído no trajeto. Voltando ao início do carro e se postando

novamente à frente dos passageiros, é possível retomar a percepção de suas palavras, que,

agora, se confrontam com o refrão de Lost in love, canção da dupla Air Supply, tocada no

rádio do veículo: “It started so easy/ You want to carry on (carry on)/ Lost in love and I

don't know much/ Was I thinking aloud/ Fell out of touch/ But I'm back on my feet/ Eager to

be what you wanted...”78. O rapaz continua sua fala:

Muita gente pensa que a gente prega a palavra de Deus pra vender caneta. Não, a caneta é apenas uma consequência, apenas uma consequência do nosso trabalho [ajeita a bolsa, se preparando para retirar e exibir uma das canetas ofertadas], porque a palavra de Deus que me retirou do mundo das drogas.79

Enquanto isso, o performer começa a receber moedas, dividindo seu olhar entre a

plateia e o dinheiro que lhe é oferecido, mas prosseguindo sua fala: “Porque que eu vou

deixar de falar...”. Alguém o pergunta sobre algo: “Não, não, não...”, responde e continua.

“Sim, eu tenho que falar porque Jesus é único, me salvou. (...) Eu tenho caneta de ponta

77 Música “A minha história”, interpretada por José Augusto. Composição: Gianluca Grignani e M. Luca. Versão: José Augusto e Paulo Sergio. 78 “Começou tão fácil/ e você quer continuar (continuar)/ Perdido de amor e eu não sei muita coisa/ Eu estava pensando em voz alta?/ Me senti inatingível/ Mas estou de volta ao chão/ Ansioso para ser o que você queria...”. 79 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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fina, ponta média e ponta grossa...”. Passageiros começam a se levantar, para saltar do

veículo, bloqueando sua imagem. Ele interrompe sua fala e se encolhe junto a um assento,

dando passagem, e tenta retomar de onde parou: “É... recapitulando! Essas canetas servem

principalmente pra mim. (...) Então, é apenas um real, amados, que vai ajudar nossa

instituição”, tenta encerrar sua interpelação, concorrendo com a música que ainda toca em

alto volume.

Diante do exemplo acima, podemos dizer que o ritual da performance que irrompe o

ambiente promove mais um cruzamento, reconfigurando elementos da viagem cotidiana no

veículo. Ela é ruído no deslocar-se no carro (e do carro) e a dinâmica do traslado também é

ruído na performance. Para compreender tal dinâmica, comecemos por discutir a

modificação de fluxos da convivência social quando se estabelece uma relação de aspectos

do processo ritual (TURNEY apud DAWSEY), discutidos já no capítulo anterior, com as

intervenções em trânsito.

Primeiramente, nos baseamos na ideia de que tais correntes relacionais podem

provocar efeitos de estranhamento e deslocar “o efeito olhado das coisas”, suspendendo

papéis e interrompendo instantes dos cursos ordinários do conviver (DAWSEY, 2007: 35-

36). Dos rituais podem emergir novas expressões na experiência de um comunicar-se e

recriar universos simbólicos. Suscitada por compostos arredios que, integrados ao ato,

sugerem novos desdobramentos durante o curso interativo, a própria performance pode ser

considerada ruído na medida em que provoca efeitos de estranhamento e contém sentidos

de ação extraordinária. Porém, também pode ser considerada ato cotidiano. Nessa direção,

Dawsey (2007: 42-43) fala num “extraordinário cotidiano e cotidiano extraordinário”.

O autor explicita a noção de inacabamento da experiência performática (DAWSEY,

2007: 43), através da qual uma incompletude seria evidenciada na contínua reformulação a

partir da articulação com os ruídos, exteriores à performance, mas sendo parte da obra.

Dawsey destaca que as tensões geradas no processo de interposições de elementos arredios,

que dizem respeito a ruídos, podem ser resíduos, rasuras, interrupções, tropeços e

compostos liminares (2007: 528), figurando a fragmentação das relações. Essas tensões

convivem no corpo do intérprete da performance. Códigos sonoros, visuais, verbais se

imbricam na mídia primária que é o próprio performer em sua fisicalidade (JOSÉ, 2007:

246) e que se faz publicidade pela performance (ZUMTHOR, 1997: 165).

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Os ruídos podem ser “fragmentos de discursos inúteis”, “má distribuição dos

lugares”, “presença muito pesada do cenário, acompanhamento instrumental indiscreto”,

“efeitos de censura, autoritária ou espontânea”, “a distância intercultural”. O executante, no

entanto, tende a transformar os ruídos em informação, na performance, correlacionando-a à

mensagem intencional, provocando uma implosão de sentidos (ZUMTHOR, 1997: 164-

165).

O performer itinerante não atua apenas com o próprio corpo. Ele depende da

possibilidade de entrar no carro, da resposta do público, das condições de equilíbrio diante

dos movimentos bruscos do veículo, da sua visibilidade ao auditório frente à lotação do

carro, da inteligibilidade de sua fala ao se dirigir ao outro, da integração da duração da

performance ao percurso do carro (sincronizando a parada de ônibus na qual pretende

descer ao tempo de sua intervenção). Depende, mas também sugere, provoca e instala

mudanças naquele ambiente.

É o caso de um rapaz que, assim como performer citado anteriormente, aproveita uma

pausa no traslado do ônibus, estacionado enquanto realiza a permuta de passageiros, para se

oferecer ao auditório. Sujeito ao ambiente, ele não completa seu discurso, que é

desempenhado apenas em sua introdução, deixando inclusive de recolher o dinheiro entre

os passageiros. O performer inicia sua fala antecipando seu agradecimento, diante da

possibilidade de comunicação: “Eu só posso agradecer [a vocês] porque eu não posso

abençoar, mas, com certeza, e pelos olhos de Deus, ele vai nos abençoar, não é verdade?”.

Percebe a entrada do motorista e do trocador no carro, esfrega as mãos uma na outra,

atentando seu olhar aos movimentos em volta. Acelera sua fala e salta para o final do

discurso: “Muito obrigada pela atenção e o motorista já vai”. Desce as escadas do veículo,

rapidamente, com o carro já em movimento.

Ao integrar-se a uma autoapresentação ritual, o intérprete da performance se oferece a

um contato com aquele ambiente midiático, construído no ônibus pelas relações de

comunicabilidade que ali se estabelecem. Esse contato pode ser visual, ao estender a mão

diante do público do carro, mesclado ao ir e vir do ônibus e dos passageiros; sonoro, ao

ouvir-se a voz que apela entre os sons de um veículo lotado em que mal se enxerga o início

ou o fim do carro; táctil, quando do toque dirigido ombro a ombro de cada passageiro ou

quando de um roçado ir e vir.

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No ônibus, após a irrupção da performance, segue-se um momento particular de

expressividade, com novas possibilidades de significância das relações que se estabelecem

no carro, com novo tempo, inaugurado pelas interposições de temporalidades, da duração

de sua ação e do momento da duração social, do trajeto do ônibus; outros usos do espaço e

uma transmudação dos papéis dos sujeitos. Soma-se a isso que as propriedades da

execução também variam conforme as circunstâncias: se o carro está estacionado numa

parada enquanto recebe os passageiros ou se está no trânsito; se o veículo está cheio ou

vazio; se o fluxo de carros do lado de fora é intenso ou não. Tal processo pode ser

verificado no desenrolar da interpelação de mulher que pede dinheiro para comprar leite

para a filha. A fala, já acelerada e em volume baixo, difícil de compreender, é evidenciada

quando veículo pausa no semáforo e diminui seus ruídos e seus movimentos:

(...) que esse leite tá custando quase vinte reais. E uma lata desse leite pra ela, gente, só dá pra quatro dias; pra minha filha que é paraplégica. E é difícil pra mim, que eu vivo de ajuda, que eu peço na rua, no Terminal da Estação80, pra poder dar de comer a quatro filhos que são pequenos. Se vocês puderem me dar uma ajuda, uma força, qualquer coisa me serve. [sic]81

Tal trecho, audível e persuasivo, na medida em que consegue impor-se aos

passageiros, é interrompido pelo veículo que arranca na pista, com a abertura de passagem

concedida pelo sinal verde e uma forte buzina que se sobrepõe à comunicação performática,

que já ficara difícil de apreender.

A performance parte de um discurso fixo, mas que tende se adaptar às condições de

viagem, não apenas em sua esfera de jogo político e social de comunicação e persuasão,

mas fazendo parte de um projeto estético, ultrapassando o funcionalidade. O tempo e o

espaço, ou seja, o trânsito e o ônibus contribuem para e modulam sensivelmente a

atribuição de sentidos na performance. A interpelação performática se projeta no ônibus e

aquele ambiente midiático, em todo o seu conjunto (cores, odores, sons, formas móveis e

80 Estação Ferroviária João Felipe (Fortaleza). 81 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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imóveis, animadas e inertes), reverbera na performance. Utilizando o ônibus em sua

tridimensionalidade, a performance se imiscui em sua semiosfera.

É o que Zumthor nos diz quando aponta que, na performance, locutor, destinatário (s)

e circunstâncias acham-se fisicamente confrontados e na qual os jogos “de aproximação e

apelo, de provocação do Outro” potencializam a função fática daquele encontro (1993:

222). Segundo ele, a transmissão de boca a ouvido opera o texto, mas é o todo da

performance que constitui locus emocional da obra, a integração instantânea, que cria e

recria, manifestada também no desempenho do discurso dos atores (idem). Estes

necessitam de uma eloquência própria, de uma fluência de dicção, de um poder de

sugestão, de predominância nos ritmos do ônibus para se fazerem persuasivos, mas operam

essas demandas com adaptações e proposições de novos modos de comunicabilidade, dadas

as circunstâncias de instabilidade no deslocar do veículo, em relações mútuas de coesão;

não apenas executando, nas realizando conexões.

Quer dizer, mesmo que um elemento de mediação seja, por vezes, suprimido, quando

não se consegue compreender as palavras proferidas pelo performer devido ao barulho do

trânsito; ou não se enxergar o corpo do performer, em meio a uma lotação de pessoas

dentro do carro, há sensações do enunciado e da presença física. As mediações diretas são

substituídas pelos sentidos reiterados que ali se processa, ou seja, mesmo não se

compreendendo o que se fala, se entende que se trata de um apelo, de um pedido, e a

sedução, muitas vezes, se faz; mesmo uma audição sem visualização, não vislumbrando o

corpo do performer, ao ouvir seu murmúrio em meio ao movimento dentro do carro, se

percebe que há uma presença, as nuances associativas são feitas, as conotações e as

denotações coincidem na troca entre uma voz e uma escuta, que tenta se fazer (e, de fato, se

faz) prevalecente dentre as comunicações que ali se operam; numa adesão e conjunção

instantânea de dados textuais e das ações sociocorporais entre sujeitos (ZUMTHOR, 2005:

144).

É justamente por conter uma propriedade performancial e por se dar no espaço

urbano, local de contínuas atualizações, que as interpelações proferidas nos ônibus são

abertas a interposições, que enfraquecem ou potencializam as possibilidades comunicativas

e persuasivas do ato, imersas num ambiente polifônico. Um freio brusco, o som alto do

rádio do ônibus, a chegada do motorista no momento em que o performer aproveita uma

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parada do veículo para entrar e se postar sem necessitar de autorização introduzem-se por

meio de frestas do fazer performático no urbano, transgredindo os esquemas discursivos.

Geram-se tensões, afetando suas capacidades significantes e modificando seu estatuto

semiótico, criando nova semanticidade. Muitas vezes, eles resistem e se adaptam, ligando

os fios do discurso e do antidiscurso, e construindo sua intervenção a partir da experiência.

“É exatamente neste sentido que a performance é jogo, espelho, desdobramento do ato e

dos atores, para além de uma distância engendrada por sua própria intenção” (ZUMTHOR,

2005: 148-149).

Essa reorganização da mensagem através da incorporação dos ruídos se opera nas

situações de imprevisto, obrigando o intérprete ao improviso, combinando situações

preestabelecidas e formalizadas à dinâmica urbana e as reações do público e ambiente. O

performer se mobiliza e organiza rapidamente fragmentos ― o público também

(ZUMTHOR, 1997: 239). Ambos se adaptam e ambos geram demandas de adaptações,

fruto da coincidência entre a produção e a transmissão de um texto.

Apoiando-nos em Zumthor (1993), verificamos que se trata de um enunciado

redundante, porém fortemente funcionalizado e estilizado a partir das interposições do

trajeto pelo carro e pelas ruas. E essas modulações podem se dar de forma paralela ou de

alternância, “antítese ou retomada da variante, ecos periódicos ou dispersos, litania,

desregramento controlado”, nada “absolutamente idêntico nem absolutamente diferente”.

“Novos jogos, variações sobre tema obrigatório, diversidade na uniformidade, fundamento

de uma técnica que é sempre semelhante a si própria e cujos meios apenas diferem em

maior ou menor grau, segundo as circunstâncias” (ZUMTHOR, 1993: 198-199). São, então,

“sistemas móveis”, “séries interativas alongadas ou entrecruzadas ao longo do texto”

(idem).

Embora passem por processos de improvisação, de reorganização da mensagem,

entendemos que as performances apresentadas nos ônibus em geral partem de uma

perspectiva formulista de intervenção, com forte tendência a um “redizer-se em termos bem

pouco diversificados” (ZUMTHOR, 1993: 193-194), com poucas variações. E são esses

ruídos que vão garantir o movimento informativo e vice-versa. “O que o formulismo tem de

redundante compensa, na própria mensagem, o ruído ocasionado pelas circunstâncias que,

na performance, interferem no texto; em situação de oralidade primária, essa é uma função

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poeticamente vital” (idem). Podemos dizer, então, que as performances são sequências de

enunciados já esperadas, periódicos, modelos rítmicos, semânticos, que operam de maneira

reiterativa, como discurso e como organização de linguagem, porém deslizando por

fragmentos intertextuais de circunstâncias por vezes imprevisíveis.

No capítulo anterior, citamos o discurso de performer que destacava sua condição de

trabalho, mencionando as possibilidades de roubar ou usar drogas. Relembremos:

(...) Preciso comprar comida para a minha casa. Tenho que ajudar meus irmãos, mas não tenho daonde tirar dinheiro. Se é de mim cheirar cola ou, até mesmo, roubando, fazendo coisa errada, eu estou, pelo menos, trabalhando. Tô tentando vender cada pacotinho por cinquenta centavos. Nós acredita que cinquenta centavos não vá fazer falta no pão de cada dia de nenhum de vocês não, mas vai nos ajudar muito (...) [sic]

O que não mencionamos é que esse rapaz, enquanto proclamava discurso, carregado

de tensões, falava sentado na caixa do motor do ônibus, olhando para os lados, quase sem

interesse, cuja expressividade corporal não se conjuga com sua fala e não estabelece uma

relação que aponta para a plateia. Tal postura nos remete a essa tendência ao formulismo

que acabamos de defender, na medida em que ele externaliza sua fala de maneira quase

automática, com textos fragmentados e com fortes traços de previsibilidade, no que diz

respeito ao conteúdo verbal da fala.

Vejamos os exemplos a seguir, já citados em outros debates neste trabalho, que dizem

respeito a duas pessoas, em carros e momentos diferentes, mas que apresentam muitas

semelhanças em seu discurso, além de se utilizarem de recursos de impostação da voz,

ritmo e gestos parecidos, se aproximando de uma configuração formulista:

Exemplo 1: (...) Com licença, pessoal. Pessoal, gostaria de pedir um minuto da atenção de vocês para mostrar esse meu trabalho. Essas balas de gengibre que eu acabei de entregar para cada um de vocês, elas são uma bala muito conhecida, mas, para quem ainda não conhece,

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eu vou dizer pra que é que ela serve. Ela é uma bala de gengibre medicinal, cem por cento natural, que ajuda você a melhorar duma gripe, tosse, dor na garganta, irritação, rouquidão, deixando o hálito da gente sempre puro. Ela nas farmácia está custando um real e sessenta centavos, com dez unidade. Na minha mão, ela, com quinze unidade, você adquire por apenas um real. Ela tem de sabor de menta, de cravo com canela e gengibre natural. Mas, para quem não gosta da bala de gengibre, eu tenho uma bala de maracujá e a bala de café. Além de vocês tarem ajudando na saúde de vocês, vocês estarão ajudando um trabalhador também. Obrigado pera atenção e tenham uma boa viagem (sic) 82.

Exemplo 2: Boa tarde, senhoras e senhores passageiros, gente. Me desculpem se eu tiver incomodando algum de vocês. Esse pacotinho que eu passei na mão de cada um de vocês, pra quem não conhece, ela é feita pela raiz da batatinha de gengibre. Ela serve pra tosse, rouquidão, inflamação na garganta, deixa o seu hálito puro e agradável. Na farmácia você vai encontrar ele mais elevado. Um e oitenta, um e noventa, chega até doi reais, com dez unidades. Mas, na minha mão, vocês vão pegar, agora, por apenas um real ou um vale-transporte, com quinze unidade. Tem de vários sabores: gengibre com menta; gengibre, cravo e canela; gengibre com romã; tem de gengibre, maracujá e limão com mel. Muito obrigada pela atenção de cada um de todos. Vão com Deus e uma boa viagem. [sic] 83

As falas, os temas, os ritmos, os gestos nas performances em trânsito são recorrentes

e, no correr do tempo, tendem a reproduzir-se por inércia, tornam-se procedimentos e se

aproximam de uma manifestação estruturada, contudo muitas vezes aberta a interposições e

perfurada pelo borbulhar do agir urbano. Ao longo da transmissão da performance dentro

do carro, verificamos a possibilidade de interferências, retomadas, repetições alusivas, em

meio à circulação de elementos migrantes que se combinam provisoriamente.

A partir de suas habilidades, o performer desenvolve modos próprios de se adaptar à

intervenção (e à medida que ele mesmo é também intervenção), desvencilhando-se ou

apropriando-se dos elementos que se oferecem no curso da performance. Isso pode ser feito

82 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho. 83 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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por uma simples modulação no tom da voz, no gesto, mesmo que o objetivo final da

interpelação permaneça inalterado. Porém, com fortes traços de discursos predispostos e na

tentativa de retomar certa fórmula.

3.2 Travessias de vozes que se articulam

Os recursos de comunicação exibidos em cena performática são também um

constructo dos atrativos do produto à venda associados a um testemunho pessoal, ofertados

pelas habilidades próprias do intérprete. No jogo persuasivo, eles proclamam a

autenticidade e veracidade do relato, quase sempre de superação, e reforçam o apelo com

elogios da mercadoria a ser trocada, com seguinte descrédito dos concorrentes, como nos

trechos a seguir:

Exemplo 1: (...) Ela é uma bala de gengibre medicinal, cem por cento natural, que ajuda você a melhorar duma gripe, tosse, dor na garganta, irritação, rouquidão, deixando o hálito da gente sempre puro. Ela nas farmácia está custando um real e sessenta centavos, com dez unidade. Na minha mão, ela, com quinze unidade, você adquire por apenas um real. (...)84 Exemplo 2: (...) Esse pacotinho que eu passei na mão de cada um de vocês, pra quem não conhece, ela é feita pela raiz da batatinha de gengibre. Ela serve pra tosse, rouquidão, inflamação na garganta, deixa o seu hálito puro e agradável. Na farmácia você vai encontrar ele mais elevado. Um e oitenta, um e noventa, chega até doi reais, com dez unidades. Mas, na minha mão, vocês vão pegar, agora, por apenas um real ou um vale-transporte, com quinze unidade (...).85

84 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho. 85 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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Dentro dessa perspectiva de testemunho, articulações de natureza narrativa são

verificadas na fala performancial, com frases isoladas funcionando à maneira de arremate,

exclamações que intervêm ao fim do discurso, relato de si como personagem da narrativa e

relatos em formato de linha cronológica, muitas vezes com final de superação. Vejamos

algumas características de comunicação narrativa.

Benjamin (1985: 200) nos diz que o senso prático é um dos principais atributos do ato

de narrar, tendo quase sempre uma dimensão utilitária. O narrador retira da própria

experiência ou da experiência relatada por outros o que ele conta e “incorpora as coisas

narradas à experiência dos seus ouvintes” (idem: 201). Segundo o autor, os narradores

começam a narrar descrevendo as circunstâncias em que foram informados dos fatos que

vão contar a seguir ou atribuem sua história a uma experiência autobiográfica (idem: 205).

Tais atributos do fazer narrativo estão presentes em muitas das performances em

trânsito, sobretudo naquelas em que a interpelação é primordialmente verbal. Os

personagens, geralmente, são eles mesmos ou familiares. Ocasionalmente, incluem

empresas de ônibus ou representantes do poder público, quase sempre sem nomear ou

personalizar. O centro mesmo do discurso é si. Observando que a narrativa não é atividade

exclusiva da voz, acompanhada do gesto (idem: 220). Vários exemplos desses processos já

permeiam nosso trabalho quando do debate sobre outros aspectos da performance. Vejamos

de que maneira eles narram a própria história e a transformam também em produto de

venda no processo de persuasão em trânsito:

Exemplo 1: Senhoras e senhores passageiros, gente Me desculpe seu tiver lincomodano É porque eu estou aqui trabaian Porque o meu pai vive muit’doente no hospital As duasé um real ou é um vale transporte Eu agradeço de coração Vão com Deus e boa viagem (sic) 86 Exemplo 2: Senhoras e senhores. Com licença a vocês, cidadãos. E me perdoem, meus irmãos, se eu “tiver” incomodando. Mas, meus amigos, eu tô aqui desse jeito, falano e pedino a rocês, é que eu sou doente, eu não posso

86 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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trabaiá, eu não sou aposentado. É que eu sou doente mental, tenho poblema de epilepsia e mal de Parkinson. (...) Eu só recebo três [remédios] e compro um, que é o cloridrato. (...) Ele é uma droga forte e é proibido tá vendeno ele. Eu não posso nem andar com eles amostrano que eu posso ser até preso. Dá pra rocês me ajudá? Rocês veem que eu peço ajuda de rocês é por precisão, é por necessidade, não é pra mim beber cachaça, nem é pra mim beber droga. É pra mim ajudá a minha mãe comprar meus remédio e comprar as coisa pra dentro de casa. Me dê uma ajuda, por favor? Qualquer ajuda seeeeerve (...).87 Exemplo 3: (...) Gente, estou aqui trabalhando é para poder comprar o remédio da minha irmã que se encontra em casa. Gente, a minha irmã, ela sofre de problema do rim e da hérnia e ela é deficiente de uma perna. Gente, estou aqui trabalhando é para poder comprar a alimentação para dentro de casa. Gente, vocês não sabem como é ruim a gente amanhecer o dia, ver a irmã da gente chorando por um pedaço de pão e a gente não ter com o que comprar. Gente, se vocês puderem abrir o coração de vocês; quem puder fazer essa caridade, eu agradeço. (...) 88

Nessas ocasiões de narrativas, podemos notar um gosto pelo relato de valentias, não

no sentido bélico, mas no sentido de superação, de façanha, de coragem e de persistência,

nos remetendo à noção de herói discutida por Pires Ferreira (1993). Os aspectos que a

autora traz do relato de combate nos remete aos relatos de superação declamados pelos

performers durante seu trajeto nos ônibus da cidade. Pires Ferreira (1993: 76), se referindo

à literatura cavaleiresca de cordel, diz que “faz-se o combate o próprio périplo, a travessia

compõe-se de sucessivos obstáculos, que culminam no catártico resgate, caminho de

purificação através das provas superadas pelo herói, em sua condição”.

Segundo a autora, para haver combate, é necessário haver viagem. Nas performances

em trânsito ampliamos que essa viagem pode ser constatada no próprio percurso

cronológico dos sujeitos que dizem passar por momentos de transição, de superação, de

mudança, passando por obstáculos, no sentido de purificação. O que na literatura

cavaleiresca se compreende por “toda uma passagem por lugares inóspitos e horrendos,

ilhas misteriosas e encantadas, sedes do perigo”, nos performers são experiências com 87 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho. 88 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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drogas, crime, miséria e seu desafio, assim como os heróis de cavalaria, está ligado ao

sentido de travessia.

Semelhanças também podemos notar no exagero na descrição das “batalhas”,

comparecendo o superlativo e o desmedido, da “amplificação épica” para descrever os

combates (PIRES FERREIRA, 1993: 82-83), sendo mecanismos recorrentes nos dois

objetos que estamos confrontando, com recursos de sensacionalismo no processo de

sedução do público. O intérprete é vítima das situações relatadas, mas também é descrito

como agressor e transgressor (porém se mostrando superado), acentuando uma dupla

posição (PIRES FERREIRA, 1993: 103).

Apontando em direção ao público passageiro, recursos estilísticos com função

dramática permeiam todo o discurso narrativo da intervenção performática no ambiente do

ônibus, com intimações, falsas ameaças, com frases como “Eu não vou parar de falar

enquanto vocês não me ajudarem”. E não precisa ser uma história real, conforme já

defendemos neste trabalho. Falando, o intérprete já é aquilo que se relata, que se define.

Uma história real contada nas performances pode se criar no momento de sua fala, diante

dos passageiros. A persuasão se molda muito mais pela voz ao vivo do que por uma suposta

verdade do discurso. História contada não somente pela voz, mas por todo o corpo do

intérprete, integrado à obra, socializando a performance — numa função interpessoal, em

sua postura estática ou móvel, encenando o discurso (ZUMTHOR, 1997: 209). Observemos

os seguintes trechos:

Exemplo 1: Bom, pessoal, eu me chamo Rafael, eu tenho 23 anos, moro na cidade de Salvador, capital da Bahia, e tô aqui através de um centro de recuperação que tem aqui, né. Que algumas pessoas já ouviram falar. Graças a Deus, eu terminei meu tratamento, mas eu decidi continuar aqui na cidade [de Fortaleza]. Como eu ainda não tenho emprego fixo, é através deste trabalho aí que me mantenho aqui. (...) E se você puder me dar uma ajuda de dez centavos ou cinco para eu dar continuidade ao meu trabalho, porque é cerca de 30 a 40 passagens de ônibus por dia e a gente vê que os vendedores ambulantes aqui no Ceará não têm acesso de entrar pela frente. Mas isso

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não é culpa do motorista, nem do cobrador, e sim dos empresários. (...) 89 Exemplo 2: A dependência química é uma doença, mas uma doença que tem cura, que tem um tratamento. Os químicos dizem que não há como se tratar, mas há sim. E eu sou a prova viva disso. A cura para essa doença está em Deus. A palavra de Deus, ela diz lá no João 8-36 que se pois o filho fosse libertado, verdadeiramente sereis livres. E é o que eu sou hoje: verdadeiramente livre. Porque eu confiei em Deus e com Deus eu me libertei das drogas. Outra hora eu não acreditava que ele existisse não. Eu era uma pessoa desacreditada na vida. Com nove anos, eu era usuário de drogas. Cheguei a ser usuário de maconha, cocaína e craque. Por causa do craque, eu quase perdi a minha vida: tive um princípio de overdose por usar 25 gramas da droga. Seiscentos reais. Era do assalto para a droga. Usado pelo diabo para fazer a maldição (...) Hoje eu tenho a palavra de Deus como instrumento de bênção. Para trazer àquelas pessoas aí, ó, a cura, a libertação; juntamente com um trabalho que me ajudou, que salvou a minha vida. Estou há oito meses aqui em Fortaleza, realizando esse trabalho. Quando eu cheguei aqui, eu pesava 56 quilos. Hoje eu consigo andar, hoje eu consigo ter felicidade, hoje eu consigo sorrir. (...) Às vezes, a gente vê uma pessoa no mundo das drogas e pensa: 'Tá sofrendo porque quer'. Não acreditem no pensamento medíocre de gente pequena. Pessoas que não sabem o que sofrer: não têm um pai com dependência alcoólica ou química, um filho ou um irmão. Mas eu sei o que é ter uma mãe sofrendo e sei o que é sofrer com as drogas. (...) Hoje eu me sinto transformado. Mas eu venho trazendo esse trabalho aí com toda dificuldade, porque eu sei que dentro desse coletivo pode até não ter ninguém que tenha um parente no mundo das drogas e que não precisa ouvir essas palavras, mas pode ser também que dentre essas quarenta pessoas que tem aqui dentro, uma só precisa ouvir essas palavras e isso nos torna vitorioso. (...) 90

A voz em performance instaura a conversação e permite uma percepção coletiva do

ato (ZUMTHOR, 2005: 84), revestida de uma força dramática. O público-passageiro

percebe e participa da obra simultaneamente, sendo provocado a dialogar. Vejamos como

89 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho. 90 Registro realizado pela pesquisadora, durante pesquisa de campo para este trabalho.

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podemos debater a relação do aparato físico da cena (corpo, voz, máquina, cidade) com as

dimensões dialógicas, persuasivas e apreensivas da obra.

A partir de Zumthor (2000: 28), podemos dizer que o corpo do performer é a

materialização daquilo que é próprio dele, uma “realidade vivida”, que determina sua

relação com o mundo. O andar vagaroso, os ombros baixos, a contração dos músculos, suas

tensões ou relaxamentos, a inquietude, a fala a calma ou nervosa, tudo isso é dotado de uma

significação que se expressa na sua imagem, construída também pelas relações psíquicas,

culturas, sociais, institucionais por que passam.

Tais aspectos implicam ritmos que serão impressos na performance, no que concerne

a melodias, gestos, linguagens e de sua ressonância no público e a partir do público

(ZUMTHOR, 2000: 46). Tais recursos de dramaticidade da performance itinerante

engendram uma relação emocional entre o executante e o público do ônibus (ZUMTHOR,

2005: 158), tratando de temas como morte, miséria, exclusão, solidão — bem como de

vida, abundância, inclusão e compartilhamento.

A voz do performer que intervém no ambiente midiático do transporte em movimento

estabelece uma comunicação entre o seu corpo e o espaço, integrando, portanto, também o

auditório e funcionando como mediação entre eles. A voz interpela o sujeito e articula os

corpos, “e nele imprime a cifra de uma alteridade” (ZUMTHOR, 1997: 17). Ele estabelece

um “eu” e um “outro”, evidenciado fisicamente e simbolicamente. Contudo, essas são

esferas flexíveis, móveis e complementares. Ouvindo o intérprete, o público incorpora-o

(ZUMTHOR, 1997: 16-17), tendo sua voz uma força coesiva (ZUMTHOR, 1993: 139),

ligada a uma sociabilidade (idem, 2005: 101). A voz do outro, ao ser escutada pelo

auditório, passa a habitar seus corpos (ZUMTHOR, 2005: 98).

Na performance em trânsito, truques como a interpelação ao ouvinte replicar, como

dando uma resposta, estimulam uma mimética e uma adesão à causa. A cega Gorete, após

executar música na sua flauta, recorre a cada passageiro, individualmente, estimulando o

retorno do público com toque nos ombros de cada um. Porém, quando não há o contato

material, táctil, visual, quando apenas se escuta o performer, mas não o vê (dada a inserção

de outros elementos no caminho, como o ônibus lotado) a voz, em sua qualidade de

emanação do corpo, o representa plenamente (ZUMTHOR, 2000: 31). O performer só está

presente pela sua voz; ele se reduz à sua voz. Não se consegue vê-lo. Como uma senhora

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que pede dinheiro passando copinho descartável, com filho dormindo em seus braços. Ela

não tem espaço para caminhar, exigindo intensa participação do público ao lhe dar

passagem em carro lotado, muito menos de ser vista. Sua voz, no entanto, a faz presente e

torna possível a relação com seus interlocutores.

E nem sempre se percebe o que o locutor diz, em fala formalmente pouco coesa, mas

compreende sua ação só de ouvir como aquele texto é vocalizado e em quais circunstâncias;

o texto se destaca e se eleva às percepções. Zumthor (1993: 183) nos diz que a vocalidade

pode ser modulada pelo locutor “de modo a levar em conta pesadas coerções sintáticas

provenientes do texto, submetendo-as a sua ordem própria, o ritmo vocal comporta uma

curva melódica que valoriza e que comunica, segundo as circunstâncias, uma qualidade

particular ― única. Nesse sentido, o texto só existe na razão das harmonias da voz”. É o

caso de um garoto que desbrava o ambiente sonoro do carro em fala com alto volume, no

entanto, ruidosa em si mesma, unindo palavras fragmentadas e declamando-as

prevalecendo o tom, não sua pronúncia. O público passageiro compreende sua intenção e,

até, sua mensagem, porém essa comunicação é feita através de recursos paralelos ao

discurso verbal, relativas à sobreposição de mecanismos quase meramente sonoros.

Com esse performer, entendemos a fronteira entre canto e não-canto como movente

(ZUMTHOR, 1993: 183-184). Sua comunicação é realizada menos pelo verbo e mais por

suas formas de sons, por seu modo de impostar a voz: pelo ritmo, pela altura da voz, pela

intensidade do som que se sobrepõe no ambiente midiático do ônibus, articulados com

intenção dramatizante. Utilizando muito da síncope para imprimir ritmização na sua fala.

Processo semelhante pode ser verificado na performance de rapaz que discursa por

remédio, citado no início deste trabalho (p. 14). Rememoremos:

Em outro carro, um rapaz discursa, por dinheiro, para comprar um remédio: “Gardenal”. E enfatiza: “Se eu não tomar esse remédio, eu fico doido, que nem cachorro doido”, trajado com seu par de chinelas Havaianas e camisa surrada do Banco do Brasil. Foi uma das poucas frases que nossa presença compreendeu, durante o encontro, em pesquisa de campo para este trabalho. Tratava-se de alguém que não articulava bem as palavras e aquela deficiência era o que colaborava em grande parte para a persuasão do público-passageiro. Não importava

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tanto o que dizia, o interesse vinha do estranhamento que aquele sujeito provocava.

A não compreensão de sua fala, mas com seu discurso sonoro imbuído de forte

simbolismo e poder de comunicabilidade, remete-nos a uma comunicação glossolálica,

cercada de fragmentações e ruídos. Ruídos da própria fala dele, menos externos e mais

inerentes ao próprio performer. Como “vozes em língua” (CERTEAU: 1994: 257), ou

apenas resíduos, vestígios da língua.

Já certa vez, em ônibus razoavelmente lotado, entrou um garoto, com idade de cerca

de doze anos, que se sentou discretamente no arcabouço que guarda o motor do carro (ao

lado do banco do motorista) e iniciou seu trabalho. Cantava várias músicas seguidamente,

todas de cunho religioso. A apresentação durou cerca de quinze minutos. Após isso, ele

testemunhou que seu pai havia saído de casa, se separado de sua mãe, e os filhos tiveram de

ajudar nas despesas de casa. Zumthor nos diz que “dita, a linguagem submete-se à voz;

cantada, ele exalta sua potência” (1997: 187-188). “O canto depende mais da arte musical

que das artes gramáticas: ele se coloca, por essa razão, entre as manifestações de uma

prática significante privilegiada (...). No dito, a presença física do locutor se atenua mais ou

menos, tendendo a se diluir nas circunstâncias. No canto, ela se afirma, reivindicando a

totalidade de seu espaço” [grifo do autor] (idem).

Na performance oral, seu executante “desfruta da liberdade de retocar seu texto

incessantemente” (ZUMTHOR, 1997: 132). No deslocar-se nos ônibus, a tendência geral é

que as falas sejam breves e que comecem com uma apresentação com termos como “com

licença, pessoal”, “bom dia, pessoal”, como afirmamos no capítulo anterior, discutindo o

processo ritual das performances em trânsito; e terminam com “vão com Deus”, “boa

viagem”, expressões sempre de trânsito, de deslocamento. Embora breve, e por seu caráter

fático, empregam procedimentos que integram seu discurso, como justificativas,

ornamentos e enumerações (ZUMTHOR, 1997: 141).

As mudanças na voz ocorrem não só estimuladas pelas circunstâncias de instalação,

mas também pelas circunstâncias da própria performance. Tomemos o caso de pessoas

travestidas. Elas têm sua voz modificada. A voz do travestido se molda a um contexto de

máscara, de teatralidade. Zumthor (2005: 97) nos diz que “toda máscara as transforma

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potencialmente: aquele que fala dissimula alguma coisa de sua personalidade, de sua

presença, portanto. Subsiste aí uma outra presença, alusivamente significada pela máscara

ou pelo traje”. Ao mesmo tempo que ostenta e oculta seu corpo, o travestido integra essa

mudança imagética às suas potencialidades vocais. Outro caso representativo dessa união é

a articulação entre voz e gesto em momentos de pedido com a mão estendida. A voz, nessa

situação, tende a deslizar vagarosamente pelo espaço sonoro, bem como lentos são os

movimentos de seu corpo.

Segundo Zumthor (1993: 243-244), “como a voz, ele [o gesto] projeta o corpo no

espaço da performance e visa conquistá-lo, saturá-lo de seu movimento. A palavra

pronunciada não existe (...) num contexto puramente verbal: ela participa necessariamente

de um processo mais amplo, operando sobre uma situação existencial que altera de algum

modo e cuja totalidade engaja os corpos dos participantes”. Voz e gesto têm uma relação

constante e essencial (ZUMTHOR, 1993: 249).

Em performances que exibem uma leitura ao vivo ou que se apóiam na entrega de

bilhetes tal relação se desenrola de maneira mais complexa. Mesmo sendo tanto a leitura

quanto a entrega de bilhetes mediadas pelo papel, pelo suporte material entre os sujeitos,

nesse mecanismo também está parte do corpo do locutor (ZUMTHOR, 2000: 73).

Verifiquemos como isso se dá.

No caso do bilhete, sendo o sujeito performático sem fala, é com o papel que o

contato é possível entre locutor e destinatário. É lendo o bilhete individualmente, somente

mentalmente, sem fala, que o público-passageiro se encontra e se confronta pessoalmente

com o discurso do performer, estabelecendo o diálogo. Sua compreensão se dá a partir de

uma reação do corpo do destinatário à materialidade do objeto, misturando-se,

virtualmente, ao locutor (ZUMTHOR, 2000: 74). No entanto, têm-se comunicação primária

junto com uma comunicação secundária. O bilhete é entregue pessoalmente, o performer

está presente, corporalmente, adicionando mais uma mediação. Zumthor (2000: 80-81) nos

diz que

na situação performancial, a presença corporal do ouvinte e do intérprete é presença plena, carregada de poderes sensoriais (...). Na leitura, essa presença é por assim dizer colocada entre parênteses; mas

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subsiste uma presença invisível, que é manifestação de um outro, muito forte para que minha adesão a essa voz, a mim assim dirigida por intermédio do escrito, comprometa o conjunto de minhas energias corporais. Entre o consumo, se posso empregar essa palavra, de um texto poético escrito e de um texto transmitido oralmente, a diferença só reside na intensidade da presença.

A leitura do auditório é solitária, silenciosa, mas tem a presença do performer em sua

frente, que se opera apenas na entrega dos bilhetes. Não falta o elemento de mediação

visual, já que a presença do performer está ali. Sendo assim, não há uma oposição entre

presença e leitura solitária, mas a soma, operada de forma que o bilhete se sobressai. Não

há supressão da performance na comunicação. A enunciação é restituída na medida em que

o auditório lê o bilhete. “A performance dá ao conhecimento do ouvinte-espectador uma

situação de enunciação. A escrita tende a dissimula-la mas, na medida do seu prazer, o

leitor se empenha em restituí-la” (ZUMTHOR, 2000: 83).

A cena performática se faz lendo o bilhete e vendo o performer ao vivo,

simultaneamente. A leitura do texto é mais um composto da performance. O performer está

presente na escritura e presencialmente, diretamente. O auditório lê e vê. Na leitura do

bilhete, podem-se perceber traços do performer que interpreta a mensagem. No bilhete e no

ao vivo, o olhar percebe o corpo do performer, enquanto a leitura se orienta para a

decifração de um código gráfico. É a união da assinatura com o próprio corpo, do objeto de

significação e do seu significante. O bilhete, então, se desdobra em presença e ausência. A

caligrafia restitui, restaura “uma presença perdida” (ZUMTHOR, 2000: 86). Mas a

presença está ali, na frente.

Os bilhetes são uma composição verbal e visual, sendo sua leitura realizada em

conjunto a decifração de códigos e uma experiência visual, sendo um fator relevante para

compreender as relações que o leitor estabelece com ela. (MARTINS, 2007:60-61). O

papelão em que é escrita a mensagem, o fato de ser manuscrita, as letras tortas, a grafia

incorreta, o desenho das letras, são elementos determinantes para a construção do sentido

dos bilhetes. Os bilhetes têm legibilidade (qualidade que permite identificar e reconhecer

caracteres) e leiturabilidade (ligada ao conforto de leitura e facilidade de o leitor

compreender conjuntos de palavras), no entanto, configuram-se em movimentos da

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manuscritura que agrega outras significados. O texto é coerente, mesmo apresentando um

ou outro caractere estranho. (MARTINS, 2007: 72-73).

São comuns em exemplos da tipografia popular erros de grafia, erros gramaticais, ausência de artigos e preposições, falhas e irregularidades. O sentido dessas inscrições, no entanto, não deve ser avaliado levando-se em conta sua correção ou um maior capricho ou regularidade. (...) Não devemos nos esquecer de que, além do contexto de inserção, as técnicas e os suportes utilizados na tipografia popular são aspectos importantes que interferem na sua recepção (...). Uma interessante proposta para se verificar a eficácia da legibilidade de um texto é aquela que considera a adequação entre o conteúdo e a mensagem impressa (...) (MARTINS, 2007: 76-77).

O traço caligráfico e sua execução que foge às regras gramaticais, além do suporte,

geralmente um pedaço de papelão que um dia foi a caixa que guardou os bombons

vendidos em trânsito podem desenrolar seu encontro com o leitor desautomatizando sua

leitura, “fazendo o olhar percorrer não só um significado pretendido, mas o desenho da letra

e seu contexto de inserção” e “atravessado pelo visível (e também pelo sensível), o leitor

pode encontrar (...) uma dimensão poética, que não provém da poesia ou da literatura, mas

do próprio cotidiano: a “poética do comum”” (MARTINS, 2007: 104). Quando se escreve o

bilhete, se desloca o foco da dramaticidade, da imagem animada do corpo para a imagem

inanimada do bilhete, da fala para a escrita, o foco vai e vem. Não se perde o corpo com a

escrita, e sim se une corpo com a escrita. Mesmo escrito, o discurso do performer não

desloca seu destinatário, sendo aquele mesmo que, diretamente, se contatou com o

executor, nem seu tempo, sendo percebidos no mesmo local e instante.

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3.3 Encadeamentos corporais do equilibrista

Ao longo dos exemplos inseridos neste trabalho, percebemos que o gesto se

integra completamente ao composto de outras esferas da obra. Zumthor, inclusive, nos

diz que é o gesto que desenha o corpo diante do outro, através de movimentos

sequenciais, sendo todo um comportamento corporal, sempre em diálogo com o ambiente

(1993: 242). E esse comportamento corporal, muitas vezes, está no centro da cena

performativa.

A começar pelo vestuário que, quase sempre se difere dos demais no ônibus, seja

por um assessório, como o chapéu que recolhe as moedas, seja pela roupa rasgada, seja

até pela ausência dele, como no caso de pedintes que entram descalços nos veículos.

Nesse sentido, podemos dizer que a performance é imediatamente identificada, por meu

aparato imagético, carregada de valor simbólico ou emblemático, ligado à personagem

que se apresenta, à ação desempenhada ou ao discurso que profere (ZUMTHOR, 1993:

249-250).

Muitas vezes, escolhe a roupa que se veste a partir de um condicionamento de um

grupo, uma marca distintiva; põe em circulação signos que se quer que reconheça

(PROSS, 1980: 40-41). A roupa dos Manassés, que é uniforme, lhe confere valor de

pertencimento; mas esse valor não vem apenas de um uniforme, mas de vários modos. A

indumentária é indissociável da relação que une público ao intérprete. Os assessórios

amplificam essa relação. Muitas vezes, a vestimenta pode tornar-se disfarce, máscara

também.

A roupa canaliza o olhar ao corpo, sendo seu foco essencial a sua superfície

(VIGARELLO, 1996: 58). O traje pode ser símbolo de uma disparidade social (idem: 60-

61). O espaço urbano já não é, por si, um local de limpeza. É de sujeira, acúmulo,

misturas. Da higiene nos ônibus e em como isso interfere na comunicação. Ao mesmo

tempo, o espaço urbano, a urbes, é também o lugar da limpeza, do progresso, da

civilidade. Podemos dizer que as roupas e a aparência evocam a imagem da sujeira. Nem

sempre é casual. A sujeira evoca um contexto sócio-econômico. A limpeza distingue.

Muito do chamamento da performance se faz pela sua distinção.

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Tal composição tende a apelar por uma atenção, a gerar emoção ou benevolência.

Alguns se configuram como um jogo de cena corporal, chamando, propondo e sugerindo

significações e aproximações (ou distanciamentos); outros apenas acompanham a

palavras; e aqueles que se apóiam no corpo quando não há palavra.

É o caso de um senhor deficiente físico que percorre os ônibus num arrastado de

corpo. Suas pernas, mais curtas, flexionadas e cruzadas entre si, ganham impulso com a

força de seus braços. Tal movimento imprime marcas do chão sujo das ruas e do piso do

ônibus por todo o seu corpo. Sentado no chão do veículo, ele ergue a mão e une as

sobrancelhas, mas não fala nada. Não fala a que veio, a destinação do dinheiro, a causa

que os passageiros devem apoiar. Mas seu corpo comunica um engajamento com aqueles

que dizem tudo isso.

A gestualidade “ela exige três séries de definições: redundante, o gesto completa a

palavra; precisando-a, dissipa nela uma ambiguidade; enfim, substituindo-a, ela fornece

ao espectador uma informação, denunciando o não dito” (ZUMTHOR, 1997: 205).

Gestos de olho, de membros superiores e da cabeça, do busto; o corpo inteiro importa. O

gesto produz figurativamente as mensagens do corpo (ZUMTHOR, 1997: 206-207).

No fazer performático, há um encadeamento de séries contínuas de gestos,

percebidos em sua maior evidência nos processos ritualísticos, mas também em seus

pormenores, como o olhar, que nem sempre carreta um tom de humildade, pedido, apelo;

muitas vezes o performer tem em si uma postura de solenidade e, até mesmo, distante,

alheio à própria fala. Dificilmente perceberíamos algo, na cena performática em trânsito,

que nos remetesse a uma falta de gestos ou a um silêncio que seria significado pelo

corpo, já que a dinâmica de deslocamento provoca uma constância da necessidade de

movimentos do corpo.

O que podemos verificar é certa “economia de gestos” (ZUMTHOR, 1997: 208-

209). Quem ilustra isso é o vendedor de jujubas que se posta sentado no arcabouço do

motor do carro enquanto fala, não explorando as possibilidades de expansão corporal no

carro e aproximação com os passageiros. Os movimentos se limitam às extremidades do

carro. Esse deslocar das extremidades pode ser percebido também no próprio corpo

performático, que restringe seu fazer-se no espaço com gestos dos membros superiores e

da cabeça, se impondo no local com menos potencialidade.

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O corpo é mostrado, ostentado. O corpo doente, ferido, é exibido, foge a um

isolamento e confinamento em si mesmo e se mostra. Além de estar ferido, ele se mostra

exageradamente. Tal imagem rompe com a vida cotidiana, mas, ao mesmo tempo faz

parte dela, em todo o seu extravasamento. Associamos tais manifestações corporais ao

corpo grotesco discutido por Bakhtin, no sentido da ênfase nas partes do corpo em que

ele se abre ao mundo exterior. O autor nos diz que o corpo grotesco

não está separado do resto do mundo, não está isolado, acabado nem perfeito, mas ultrapassa-se a si mesmo, franqueia seus próprios limites. Coloca-se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz (BAKHTIN, 2008, 22-23).

Acrescentamos a isso o corpo ferido, descomposto e disforme que se exibe diante

da plateia no ônibus. O corpo é nitidamente marcado e exagerado. Naquele corpo tem-se

uma exacerbação do negativo. O performer enfermo faz do seu corpo um sujeito e um

objeto, no momento de sua exibição. Seu modo de significar apresenta uma estranha

familiaridade (Landowski, 1996: 21-22), aproximando, mas também repelindo o

auditório. Segundo o autor, a enfermidade nos torna um “corpo-objeto” (1996: 22-23),

sendo o sujeito o primeiro a objetivá-lo. É pela mediação da matéria, do significante, de

seu corpo “que o sujeito constrói suas relações com o mundo circundante enquanto

universo de valores e presença de sentido” (idem: 23). “O corpo é o próprio sujeito da

enunciação e o seu próprio suporte material de comunicação” (idem: 24) e permite aos

sujeitos se comunicarem entre si. E a mobilidade é a “categoria fundamental no que

concerne à articulação dessa matéria significante complexa, o corpo” (idem: 25-26). A

mobilidade do corpo nos indica que ele é, por natureza, da ordem do processo, seja por

meio da plasticidade própria ao rosto, nos jogos da fisionomia, seja no deslocamento dos

membros periféricos da anatomia, seja de suas atitudes, seja de seus recursos expressivos

no espaço englobante (LANDOWSKI, 1996: 25-26).

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Há casos em que o corpo se mascara. Seja com uma roupa, seja com uma

maquiagem, seja na própria fala, ou com a máscara facial externa mesmo. Bakhtin nos

diz que a máscara se liga ao grotesco fundamentalmente.

O motivo da máscara é mais importante ainda. É o motivo mais complexo, mais carregado de sentido da cultura popular. A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação de identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o princípio de jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espetáculos. (...) É na máscara que se revela com clareza a essência profunda do grotesco (BAKHTIN, 2008: 35).

A máscara revela uma transformação intencional na aparência de um personagem.

E disfarce é transgressão (ZUMTHOR, 2004: 13). O disfarce introduz uma tensão

carnavalesca (idem: 14). A máscara não é só imagética, podendo ser um discurso

cantado, dito, escrito, entre outros (idem);. Jogos de retórica podem ser máscaras

figurativas: vocabulário, sintaxe, ornamentos, ritmos contribuem para efeitos de sentidos

na língua (idem: 15).

Manoel, citado no início deste trabalho, mantém sempre a boca entreaberta,

enquanto profere seu discurso, acompanhado de olhos vivos, arregalados mesmo. No

grotesco, a boca é a parte mais importante do rosto, a boca domina, devorando.

(BAKHTIN, 2008: 277). O “corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está

pronto nem acabado: está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo

constrói outro corpo; além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele (...)”

(idem). No corpo grotesco há fronteiras entre dois corpos e entre o corpo e o mundo. Há

o corpo despedaçado, bocas escancaradas, entrecruzados, misturados às coisas e ao

mundo (idem: 282).

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O corpo também percebe e faz significar o mundo; ele é “semioticamente ativo”

(idem: 30). A comoção diante de um corpo é de efeito não só estético, mas também

estésico, (é percepção e sensação) podendo, por exemplo, em vez de atrair, repelir o

outro: “nunca aparentemente a simples mostração do “corpo comovido” é suficiente para

efetiva e, sobretudo, adequadamente comover o outro; em vez de produzir o efeito de

sentido visado, quer dizer, atrair o parceiro, tal exibição antes poderia bem repeli-lo!”

(idem: 37). E disso participa diretamente uma noção do estranho, que relaciona-se com o

assustador, com o que provoca medo e horror (FREUD, 1996: 237). Ao mesmo tempo,

ele é familiar; remete ao que é conhecido, de velho (idem: 238). E estranho é assustador

precisamente porque não é conhecido e é familiar. Os corpos tendem a atuar, em muitos

casos, como emblemas de uma causa, ou de uma história, sempre de um discurso,

agregando muletas, o próprio skate que já citamos, pinos que unem corpos dilacerados.

São marcas exibidas para justificar, fazer crer, comover, sugerir uma ação.

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CONCLUSÃO Esta pesquisa nasceu de uma inquietude advinda de algo que nos atravessava

diariamente. Tornou-se atenção, curiosidade, depois perguntas, ideias, projeto, pesquisa e

escritura. Porém, um trabalho como este não faz mais do que estimular esse caminho, que

não volta e não cessa.

Não apresentamos um produto final, acabado. Nem podemos. Não apresentamos

explicações. O que temos são traduções de maneiras de enxergar e de dialogar com o outro,

com a cidade, com a comunicação, como sujeitos de nosso espaço, tempo e cultura. Sendo

assim, nossa principal pretensão é estimular, a partir deste olhar, outras percepções diante

das performances que chacoalham conosco enquanto vivenciamos a cidade em suas

diversas possibilidades.

Entendo pesquisa como um instrumento de diálogo. Escolhemos um objeto a partir

de estímulos da experiência e nossa análise vem potencializar esses tão agitados

movimentos do pensamento. Encerramos portanto, o ciclo de um projeto, mas iniciamos

um percurso que se estende para frente e para os lados. A performance itinerante faz parte

de um conjunto de atividades que se costuram em nosso cotidiano em seus deslocamentos

simbólicos e físicos. Elas partem de conhecimentos e sugerem outros, em permanente

borbulhar gerativo. Deixamos brechas, lacunas, como tudo. Não pretendíamos preencher

completamente algo que não se encerra, que está em contínua atualização.

A proposta desta Dissertação era de compreender as linguagens, os processos de

comunicação, em torno de seus recursos de produção de sentido, de ressiginificações,

sendo uma das questões fundamentais para essa busca a mescla. Fechado/aberto,

público/privado, oral/escrito, trabalho/mendicância, fora/dentro, dentre tantos outros pares

que se faziam aparecer conjuntamente se apresentou ara nós como o mestiço do urbano. E a

abertura para esse entendimento tornou possível a fruição de um passear por

conhecimentos outros e pelos pormenores de nosso objeto, estar atentos aos elementos

fluidos, aquilo que se articula, se modula. Pois é isso que somos: processos, movimentos,

conexões, atualizações.

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