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Ficha técnica
Título: O Fantasma do Duque de Luanda
Autor: Rui Resende
Editor: Rui Resende
Capa: Fotografia de Luiz Francisco
Gravata
Contracapa: Foto do autor com o bisavô
em Rio de Mouro
Composição e coordenador: Rui Resende
Execução: Gráfica Digital
Tiragem: 25 Exemplares
ISBN: 978-989-97112-7-3
Depósito Legal: 288173/15
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Palavras Prévias
Realidade e ficção andam por vezes interligadas. Este pequeno
livro é uma prova deste facto, associando um conto policial a uma
personagem real, que viveu em finais do século XIX.
Ninguém melhor do que a sua filha Viviane para narrar a
biografia do seu pai Luiz Francisco Gravata, um homem decidido
e voluntarioso.
Nascido de uma família humilde, rapidamente atingiu uma
invejável notoriedade
estando a sua vida e obra
igualmente associadas à
da rainha D. Maria
Amália I, que concedeu a
Luiz Francisco Gravata o
título nobiliárquico de
Duque de Luanda e Par do
Reino.
João Francisco Gravata e Rui Resende,
filho e bisneto do primeiro Duque de
Luanda, em Rio de Mouro
Georgette Borges Gravata e Mário Hermínio Trindade Gravata, bisneta e
neto, de Luiz Francisco Gravata
O autor deste pequeno e
despretensioso livro tem o
privilégio de descender deste
fascinante personagem, sendo uma
honra dar a conhecer este seu
carismático antepassado.
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Sem dúvida que seria injusto não agradecer a todos os outros
descendentes que com carinho e abnegação guardaram as
memórias ou acervo, sob a forma de escritos e fotos, de várias
gerações, tornando possível recordar os seus feitos e obras que
vão para além da morte.
João Francisco Gravata e Joaquina Honorina Trindade
Gravata, filho e nora de Luiz Francisco Gravata
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Biografia de
Luiz Francisco Gravata
Luiz Francisco Gravata alistou-se na Cooperação de Bombeiros
Municipais de Lisboa em 1 de Janeiro de 1876, com a idade de 17
anos e como aspirante.
Por ordem de serviço nr. 620, da
Inspecção de Incêndios, a 15 de Abril
de 1888 foi promovido a 2 Patrão.
Pela ordem de serviço nr. 695, de 8 de
Julho de 1891, e por deliberação da
Comissão Administrativa do
Município de Lisboa, promoveram-no
a 1º Patrão. Foi promovido a Chefe de
Companhia em 26 de Fevereiro de
1894, tendo a aprovação da Comissão
Executiva do Município de Lisboa.
Esta categoria foi mais tarde
designada por Chefe de Secção. Por
decreto de 3 de Janeiro de 1879, foi
agraciado com a medalha de prata de
Mário Hermínio Trindade
Gravata e Georgette Borges
Gravata, neto e bisneta de
Luiz Francisco Gravata, na
vila de Sintra, em Maio de
1949
Mário Hermínio Trindade
Gravata e Rogério Trindade
Gravata à direita na
fotografia, netos do
primeiro duque de Luanda
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Fechou os olhos pela última vez no pátio do Tijolo, sede do
quartel nr. 4 do Grupo de Bombeiros, 6ª divisão que comandava,
em 12 de Fevereiro de 1906, cerca das 2 horas da madrugada.
“Ao Meritto, Philantropia e Generosidade”,
sendo concedida pelos serviços
prestados no salvamento de várias
pessoas no desmoronamento da Torre
dos Jerónimos em Dezembro de 1878.
Por decreto de 23 de Outubro de 1879
foi novamente agraciado com medalha
idêntica por salvamento de vidas, num
incêndio num prédio na Rua de
Campolide.
Era sócio correspondente da
Association de Sauvatage Française,
tendo recebido desta agremiação um
diploma e uma medalha de ouro.
Nasceu na freguesia de Benfica, na
altura concelho de Sintra, em 18 de
Novembro de 1859 e faleceu em
Lisboa.
Georgette Borges
Gravata com a mãe
Maria Teresa da Silva
Borges Gravata, na
Nazaré, em 17 de
Setembro de 1931
Contava na altura do seu
óbito 46 anos de idade e 30
de efectivo, um serviço de
exemplar comportamento.
Casa da família de Luiz
Francisco Gravata, foto de
Junho de 1949
11
Apenas esteve desligado das funções que exercia durante 4 dias,
por licença em uma ida recreativa ao Porto.
A doença conservou-o retido no
leito por 5 dias, se bem que o
sofrimento fosse lento. Reagindo
sempre, fez uma última inspecção
nocturna aos teatros em 7 de
Fevereiro de 1906.
A sua robusta saúde foi abalada
pelas consequências de um
incêndio num armazém de drogas
e produtos químicos na Praça do
Município deixando a esposa
viúva.
Apesar da sua fulgurante carreira
como bombeiro, Luiz Francisco
Gravata exerceu a profissão de
carpinteiro. Sendo benemérito, a
rainha D. Maria Amália I,
reconheceu-lhe as suas qualidades,
evalor,
Mário Herminio Trindade
Gravata e João Francisco
Gravata, neto e filho de Luiz
Francisco Gravata.
Foto de 6.11.1905
distinguindo-o com o título de Duque de Luanda e par do-reino,
em 18 de Outubro de 1882,
Carta régia outorgando o título de
Duque de Luanda, a Luiz Francisco
Gravata
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Uma rainha africana em Lisboa
D. Maria Amália, rainha do Congo, instalou-se no último quartel
do século XIX em Lisboa, na Travessa do Outeiro, perto da Bela
Vista à Lapa e do Jardim da Estrela.
Figura popular e jovial utilizou a sua residência para organizar
festas e bailes como, por exemplo se pode ver nos dizeres de uma
folha volante que incluía um cartaz da sua coroação: « Grande
Sucesso / Domingo, 17 de Setembro de 1882 / Assombrosa Festa
/ na Travessa do Outeiro à Rua da
Bella Vista à Lapa / Acclamação e
Coroação / da Nova Rainha do
Congo, Maria Amália 1ª / Grande
festa da côrte do Congo ». Escreve
Luiz Silveira Botelho ( em A Mulher
na Toponímia de Lisboa ).
« A comitiva régia compunha-se de
cozinheiro, secretário particular e de
seis altos dignitários da corte,
acompanhados das respectivas
consortes. A casa, desde que nela se
alojou a Rainha e a sua comitiva,
estava situada na Travessa do Outeiro, à Rua da Bela Vista à
Lapa, como as despesas da viagem foram grandes e o passadio em
Lisboa era dispendioso, organizou uma festa régia, com entradas
pagas e a concessão, pela Rainha, de mercês honoríficas a quem
provasse ser filho da sua gente, mediante espórtula grande e que o
diploma desenhado por Manuel de Macedo fosse pago por bom
preço. »
Mais tarde segundo um estudo desta rainha feito por João Jardim
de Vilhena, ela acabou por abdicar do trono e contraído
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matrimónio com um rico lavrador alentejano, tendo após o
casamento gerado numerosa descendência num monte de Évora,
onde viveu até aos 82 anos, encontrando-se sepultada num
cemitério desta cidade.
Pelo edital municipal de 8 de Fevereiro de 1949 foram
denominados os arruamentos do Bairro do Caramão da Ajuda
com toponímia numérica, como na época se usava fazer nos
bairros sociais. Mas 40 anos mais tarde, pelo edital de 18 de
Dezembro de 1989, foi a Rua 9 crismada como Rua Rainha do
Congo e a legenda “ Figura Popular “.
Este topónimo e mais outros dez resultaram de uma resolução da
Comissão Municipal de Toponímia.
Recuperou figuras populares e tradicionais para a toponímia da
zona ocidental de Lisboa, e que o edital fixou na toponímia desse
Bairro da Ajuda, e de que são exemplo a Rua da Preta Constança
( Figura Popular da Ajuda ) na Rua 3, a Rua Rainha das Ilhas das
Cobras ( Figura Popular ) na Rua 7.
Existem outras artérias
similares com as mesmas
temáticas como a Rua José
Maria Preto ( Barbeiro
Popular ) na Rua 11 ou a
Rua dos Vaga-Lumes na
Rua 4.
Placa toponímica da Rainha
do Congo, no bairro da Ajuda,
em Lisboa
19
I
achorrenta a locomotiva parou movimentando a pequena
multidão na gare, despertando-a de um sono de longas
dezenas de minutos sob o calor tórrido de um dia de Verão. Os
passageiros desceram ouvindo as novidades dos familiares ou
amigos, carregaram as malas para os automóveis e para a
camioneta que viera à tabela, e que se encontrava nas traseiras da
estação sob o olhar atento do motorista.
O vento da véspera limpara as nuvens e o Sol queimava as
paredes das casas brancas com traços azuis de Alcantarilha,
pequeno povoado perdido
entre a serra e o litoral
algarvio.
Duas vezes por dia a
povoação despertava para
receber o comboio, uma
frágil máquina que puxava
lentamente meia dúzia de
carruagens envelhecidas
por dezenas de anos que
nem a pintura anual com tinta disfarçava a ferrugem das
composições.
Velhos com chapéus negros, faces enrugadas pelo campo,
calças escuras largas e domingueiras, velhotas agarrando-se
desesperadas às portas das carruagens desciam lançando olhares
de curiosidade e inquietação aos jovens de blusas justas
carregando mochilas, com cabelos rapados ou longos, prateados
pela luminosidade do Sol e falando línguas estranhas.
O inspector Novais retirou um lenço do bolso das calças,
enxugou o suor que lhe escorria da testa e inconscientemente
P
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limpou um sapato sujo pela poeira do atalho que atravessara para
chegar à estação.
Uma música suave brotava de um pequeno café marginal à
estrada e ao lado do estabelecimento de restauração o agente da
Brigada de Homicídios de Lisboa encontrou o rosto risonho de
um chinês curvado, a discutir com uma anciã cujo vestido escuro
e comprido denunciava ser cigana, que quebrava amêndoas e as
lançava para um cesto de verga remendado. Sem hesitar o
detective dirigiu-se ao amigo.
- Comprando ingredientes para “uma galinha com
amêndoas”?
O oriental ainda
sorridente voltou-se e
com vigor apertou a mão
do companheiro.
- Como está,
inspector Novais?
Obrigado pela sua
gentileza de me vir
receber à estação.
- A viagem decorreu
sem incidentes de monta?
- Um passeio encantador pela planície alentejana, mas com
muito calor.
- Quer beber um gin antes de irmos para a estalagem?
O chinês despediu-se da cigana antes de segurar a mala e
caminhar ao lado do companheiro.
- Não, obrigado. Desejo uma sombra e um pouco de sossego.
- A polícia de Faro amavelmente disponibilizou-me uma
viatura para utilizarmos durante a nossa estadia no Algarve.
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- Óptimo. Sabe que a amêndoa subiu três euros a arroba num
ano?
O inspector Novais pareceu surpreendido e interessado
fazendo uma expressão no rosto de pasmo.
- Não me diga.
- Com os produtos a aumentarem de preços deste modo sou
obrigado a encarecer as refeições no meu snack-bar.
O polícia deu uma ruidosa gargalhada e gracejou.
- Ainda um dia o prendo por ser especulador.
Wang-Ho bateu com o cotovelo amigavelmente no braço do
amigo.
- E depois como pode encontrar a verdadeira cozinha oriental
em Lisboa? Sempre reservou os quartos sobranceiros ao largo
principal de Tavira?
Tavira – Esta cidade tem cerca de 15.000 habitantes e situa-
se no Sul de Portugal, na região do Algarve.
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- Sim. Cada aposento tem uma excelente casa de banho
privativa e a dona da estalagem dispensou uma cadeira de pano
para colocar em cada uma das varandas.
- Devo agradecer as honrarias recebidas.
- A Sra. Arlete Seneca trata os hóspedes de modo delicado e a
unidade hoteleira na época de veraneio recebe sempre clientes
escolhidos.
- Aguardo um ambiente reservado e sossegado.
- Espere uma família ansiosa por observar um novo membro,
cada hóspede é como um filho para a estalajadeira. Esperam-no
damas prontas a discutir aonde comprou o fato que veste e
cavalheiros preparados
para conversar consigo de
modo a revelar-lhes o seu
grau de instrução
académica.
- Preparou-os para
uma desilusão?
- Pelo contrário,
enalteci-lhe os seus dotes
de raciocínio e os
conhecimentos inigualáveis de cozinha asiática que fazem
aumentar as barriguinhas dos seus clientes.
- E qual a reacção da comunidade?
- A Sra. Arlete Seneca como defensora intransigente e
acérrima da macrobiótica proibiu terminantemente a sua entrada
na cozinha.
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II
Sol radioso batia nas paredes da velha casa senhorial
numa tentativa vã de aquecer o edifício centenário,
velha glória da época pombalina, imponente no seu brasão da
família Gravata, de ancestrais franceses, gente rude e fidalga
temperada pelas pelejas, contra a moirama.
A estalagem era um antigo palácio comprado pela Sra. Arlete
Seneca e conservava a estrutura antiga mantendo inalterável a
grandiosidade dos tempos áureos da família. A única modificação
digna de registo vislumbrava-se na frontaria da actual estalagem
aonde os velhos azulejos
azuis, gastos pelo tempo
haviam cedido lugar a
pinturas de cores quentes
talvez em atenção às
personalidades das gentes da
terra.
De camisa de manga
curta, óculos de Sol e sapatos
brancos de Verão, o inspector
Novais conduziu Wang-Ho à recepção, chocalhou uma sineta de
metal representando uma camponesa de saia excessivamente
rodada segurando num braço um cesto recheado de fruta. O som
do badalo ecoou pela casa provocando um sorriso nos lábios do
chinês, mas o detective não reparou na expressão do amigo
exclamando com notório ar de felicidade e contentamento.
- Folgo muito por ter acedido a vir passar uns dias de férias
comigo. Tenho a certeza de que irá passar momentos sossegados.
O
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- Preciso de calma para retemperar as forças neste fim-de-
semana prolongado e o seu amável convite surgiu-me de forma
muito oportuna.
A Sra. Arlete Seneca apareceu finalmente e com prontidão
apresentou o livro de registos.
- Três diárias completas. Por favor, deixem as malas que a
empregada encarregar-se-á de as transportar até aos quartos.
- Excelente. Entretanto eu e o Sr. Wang-Ho, iremos até ao bar
da sala de jantar beber…
O chinês não deixou o detective terminar a frase e
rapidamente acrescentou.
- Beber um chá!
Por momentos a desilusão transpareceu nas feições do
polícia, porém aceitou o desafio visivelmente bem-disposto e com
uma gargalhada.
Tavira – Esta cidade
desde a antiguidade foi
habitada pelos Fenícios,
Lígures, Celtas,
Turdetanos e, mais
tarde, por Romanos e
Cartagineses.
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- Velho diabo. Só você me obriga a beber essa água quente
misturada com folhas de plantas.
Enquanto se dirigiam para a sala de jantar mobilada com
austeridade o inspector Novais gesticulava efusivamente.
- Quando entro neste salão sinto-me regressar a outras
épocas, mais concretamente ao século XIX. A Sra. Arlete Seneca
teima em não deixar entrar ideias contemporâneas. Repare nos
castiçais, não obstante o salão possuir luz eléctrica as velhas velas
embelezam o ambiente.
- Realmente a sala de jantar prima pela antiguidade.
- Wang-Ho, ali ao pé da lareira ainda existe uma mancha de
sangue, deixada quando de
um ferimento feito a um
criado do duque de Luanda.
O chinês inclinou-se
sobre o local apontado e
curioso observou a mancha
não interrompendo o polícia.
- Reza a tradição que o
pobre diabo serviu uma sopa
demasiado quente ao intempestivo duque, que sem cerimónias,
lhe lançou com a baixela de bronze à cabeça.
- O nobre tinha modos um tanto bruscos.
- Sem dúvida. O primeiro duque de Luanda, nasceu em
Montemor, emigrou para Lisboa ainda novo, tornando-se chefe
dos bombeiros de Lisboa. Morreu quando combatia um incêndio a
uma drogaria. Naquele tempo a água era transportada num
reservatório em cima de uma carroça puxada por cavalos ou
mulas.
A criada da pensão colocou um par de chávenas de um
serviço antigo na mesa, defronte dos dois, e saiu da sala cruzando-
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se com um homem de meia-idade, mãos finas, fato completo
corroído pelo tempo e laço no pescoço, que sem cerimónia se veio
sentar à mesa dos dois amigos.
- Dão-me o prazer do vosso convívio? Bebem uma taça de
vinho verde fresco?
O polícia ignorou as perguntas e apresentou o intruso.
- O professor Florêncio Sócrates.
Com uma inclinação respeitosa o historiador apresentou a
mão esquelética ao chinês para ser apertada.
- Muito prazer. Gosto deste local, apraz-me sair das minhas
antiguidades e dialogar com pessoas cultas como o inspector
Novais que conheço há
vários anos daqui.
Passos apressados
ecoaram no soalho de
madeira, uma matrona de
feições agrestes e andar
pedante entrou no salão
lançando um olhar
desfaçatez para o grupo.
- Já não existe a
correcção e a educação de antigamente. Entra uma senhora numa
sala e os cavalheiros mantêm-se sentados.
O professor inclinou-se um pouco para junto dos
companheiros e em voz baixa sussurrou.
- Esta senhora Delfina Gunther gosta de magoar as pessoas.
Temos de lhe dar um desconto, desde que lhe morreu o marido,
ela nunca mais foi a mesma pessoa gentil e tímida.
A viúva dirigiu-se para a janela e, sem deixar de olhar para o
exterior, gritou pela criada.
- Marta.
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Por não ter qualquer reacção ou resposta por parte da serviçal
virou-se ligeiramente para os três hóspedes e num sussurro
acrescentou.
- A actual criadagem já não tem as maneiras de outrora…
O académico não conseguiu conter uma ironia.
- Nem as clientes.
A mulher fulminou com os olhos o professor ao ouvir as
derradeiras palavras do historiador, mas rapidamente retirou da
mala um espelho começando a ajeitar as pestanas com um pince-
nez. Num murmúrio o agente da Brigada de Homicídios
recomeçou a conversa interrompida pela observação da
intempestiva dama.
- A Sra. Delfina Gunther
não se dá com ninguém,
apenas com os seus
fantasmas.
- Fantasmas?
- Sim. Uma vez
confessou-me ver já por duas
vezes o velho duque de
Luanda a percorrer o corredor de uniforme e com os seus longos
bigodes, como se usavam antigamente.
O professor sorriu e gracejou para o polícia.
- Uma pena o duque não lhe ter feito o mesmo que fez com a
terrina da sopa ao pobre criado.
O inspector Novais deu uma ruidosa gargalhada que mereceu
a reprovação com o olhar da hóspede, que fingindo observar o
exterior da pousada, não deixara de estar atenta à conversa que se
desenrolava a poucos metros do local aonde se encontrava.
Depois enfastiada saiu de repente da sala sem dirigir palavra ao
grupo.
28
III
relógio negro de badalo bateu vigorosamente as 20
horas. Todos interromperam as conversas para
observarem a criada fardada de vestido negro e avental branco de
rendas, entrar transportando a sopeira de prata para iniciar o ritual
do jantar. Arlete Seneca, de porte aristocrático, não perdia os
movimentos de Marta, pronta a acudir às ligeiras faltas e a
repreender com severidade a serviçal pelos desajustes à rotina
previamente estabelecida.
A tranquilidade
perdeu-se quando a
estalajadeira esqueceu a
correcção habitual e abeirou-se de uma mesa.
- Se a senhora Delfina Gunther não gosta do jantar o melhor
que tem a fazer é sair e ir a um restaurante.
Vermelha de cólera a decoradora saiu da sala de jantar, subiu
as escadas em direcção ao quarto quase chocando com um
homem calvo, de óculos na ponta do nariz e fisionomia tranquila,
que lentamente descia os degraus. Com um sorriso largo passou
pela proprietária do estabelecimento hoteleiro e pousou-lhe uma
mão no braço tentando acalmá-la.
- Calma, Sra. Arlete Seneca.
O
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- Esta mulher para o próximo ano não vem para aqui. Se não
gosta de cozinha vegetariana que vá jantar para outro lado.
- Concordo, os legumes não engordam.
Sorrindo o recém-chegado divertia-se observando o
desespero da dona do palácio dos Gravata. Sem atender ao
gracejo a proprietária lamentava-se.
- Hoje cozinhei cascas de favas, arroz integral, cozi couves e
nabiças e aquela malcriada, sem nível, disse à Marta que o jantar,
era comida de porcos.
- Gostei muito do
almoço. Os croquetes de
soja acompanhados de
arroz com ervilhas estavam
soberbos. O único senão
consistia em serem
acompanhados de chá frio.
- Como o senhor Paulo
Deslandes não gosta de chá
providenciarei para que lhe
sirvam cerveja, tudo se
arranja com bons modos.
- Obrigado senhora
Arlete pela sua
compreensão.
Esfregando as mãos o industrial sentou-se no seu lugar na
mesa que era próxima da do inspector Novais e Wang-Ho.
Dirigindo-se a eles, sem deixar de sorrir, meteu conversa.
- Temporal na pensão. A permanência da Sra. Delfina
Gunther está por um fio.
- Sim, ela tem um temperamento difícil.
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- Muito pouco sociável. Esta noite vou à feira de Faro,
colecciono antiguidades e ontem deparei lá com algumas muito
curiosas, infelizmente não levava a carteira bem recheada com
dinheiro.
- Sim compram-se na feira objectos interessantes. Pode ser
que talvez lá nos encontre, pois ainda não temos programa para o
serão.
Sem deixar de ter um sorriso nos lábios Paulo Deslandes
acomodou-se no seu lugar e baixando a voz concluiu para o
detective.
- Uma boa ideia e uma óptima oportunidade para fazer a
digestão das nabiças.
Com um salamaleque o
homem sentou-se numa mesa
aonde já se encontravam
sentadas duas senhoras de
meia-idade e entalou o
guardanapo entre o pescoço e
o colarinho da camisa. Muito
à vontade puxou para junto
de si um pão e procurou uma fatia de queijo para fazer uma
pequena sandes aguardando que a criada o servisse do jantar
metendo conversa com as hóspedes.
- A senhora Acácia Mina gosta de pão integral?
- Gosto, são resquícios de antigos hábitos da minha terra.
Vivo aqui há muitos anos, mantendo vivas as recordações e
tradições da minha aldeia natal. Nasci de pais pobres, cheios de
filhos, na ausência de refeições substanciais comíamos muito pão
com azeitonas e sopa de couves.
- Uma infância dura sem dúvida.
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- Felizmente os tempos mudaram. Hoje ninguém diz que
tenho dois netos e sou felicíssima.
- Não parece ter netos. Uma avó muito nova…
Pela primeira vez a Gisela Cristela entrou no diálogo.
- Não lhe faltam motivos de alegria.
- As minhas únicas aspirações são uma vida tranquila e
muitos amigos.
- E um segundo casamento?
Divertida, Acácia Mina sorriu ao responder.
- Gosto de liberdade, com a minha velhice já ninguém olha
para mim e não suportaria um novo desgosto como aquele de
quando morreu o meu
marido. Como modista
de alta-costura a Sra.
Gisela Cristela quer
arranjar-me um novo
enxoval?
- Nunca se sabe minha amiga.
Delicadamente a Gisela Cristela gracejou enquanto com
amizade pousava as suas mãos nas dos seus companheiros de
mesa. Acácia Mina e Paulo Deslandes enrubesceram e
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cumprimentaram um casal que apressadamente entrava na sala de
jantar e mereceu um comentário da modista.
- Duas pessoas extremamente bem-educadas e afáveis, este
casal Blanchi.
- O Dr. Eurico Blanchi nunca larga a esposa perante o
desespero da Sra. Delfina Gunther que anseia por um romance e
não olha a meios para o conseguir.
Com um lamento Acácia Mina provou a sopa e enquanto
limpava os lábios ao guardanapo acrescentou.
- Talvez apanhe um industrial reformado.
Paulo Deslandes enrubesceu novamente. Servindo cerveja às
senhoras procurou
modificar o rumo da
conversa.
- O Dr. Eurico
Blanchi talvez seja neste
momento a maior
autoridade em pediatria
do nosso país.
Um breve silêncio
acompanhou a reentrada
de Delfina Gunther no salão. Todos os olhares seguiram-na até à
mesa aonde ia jantar.
- Sempre sozinha com os seus fantasmas.
Acácia Mina concordou com um ligeiro movimento da
cabeça. Os olhos vermelhos da decoradora traíam as
consequências da discussão mantida com a dona da estalagem.
Gisela Cristela baixou o tom de voz para manter a conversa
interrompida.
- Ontem no meu quarto ouvi forte discussão entre o casal
Blanchi. A Sra. Lucy Blanchi ameaçou ir-se embora para casa se
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ele não ignorasse as atitudes familiares da Sra. Gunther, tais como
o desenvolver as conversas com ela enquanto bebem um “Porto”
ao pé da lareira.
- Pensei que a Sra. Lucy Blanchi nunca se exaltasse, aparenta
ser muita calma em todas as situações.
- Ela é uma pessoa muito ciumenta. O esposo ao princípio
divertia-se com as reacções dela, contudo para evitar brigas
procurou afastar-se da Sra. Delfina Gunther.
- Resultou?
- Pelo contrário, sentindo-se repudiada a Sra. Gunther não
hesitou em dizer ao pediatra, de maneira agressiva, que ele era
dominado por uma esposa de
baixo estofo moral.
- Como reagiu ele?
- O Dr. Eurico Blanchi
reagiu da pior forma
ameaçando-a e dizendo-lhe que
ela era doente mental. Ele
adora a consorte e sente o
casamento ruir por intromissão
de uma mulher por quem ele não nutre sentimento algum.
- Um problema delicado e de difícil solução.
A refeição terminara, cerimoniosamente a Sra. Acácia Mina
levantou-se da mesa e despediu-se.
- Vou ver televisão para a salinha.
Com andar seguro a viúva foi seguida pelos olhos brilhantes
e cobiçosos do industrial.
- Uma verdadeira senhora.
- Tem razão. Eu invejo-a, pois vive gozando bem a vida e
preenche todos os segundos da existência com alegria.
- Muito pacata.
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Gisela Cristela ignorou a afirmação do industrial e não tirava
os olhos da porta do salão.
- Desde que a conheço, já lá vão uns cinco anos, que depois
de jantar, vai para a salinha aonde se encontra a televisão.
Adormece pouco tempo depois no seu lugar habitual e só acorda
depois do fecho da emissão. É uma pessoa muito simples, ainda
usa sempre o lenço na cabeça e veste-se de maneira rústica apesar
de ser bela.
- Hoje vou sair à noite. Não gostava de me acompanhar à
feira de Faro?
- Obrigado meu
amigo. O cinema da
terra leva um filme
antigo e não o perderia
por nada neste mundo.
Uma gargalhada do agente da Brigada de Homicídios
obrigou-os a voltar a cabeça, no entanto o agente da polícia
ignorava a atenção de que era alvo.
- Wang-Ho, você no que diz respeito a refeições ultrapassa
todos os parâmetros lógicos.
- Eu gosto muito de jantares macrobióticos.
- Não me diga que prefere os malvados destes legumes a um
ensopado de borrego?
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- Inspector, o ensopado não me cai muito bem na barriga por
ser muito pesado.
- E não teria para si primazia um vinho rosé bem fresco em
vez de este chá?
- Apenas em sabor, as bebidas alcoólicas engordam.
- Wang-Ho, você faria as delícias da Sra. Arlete Seneca.
- As delícias?
- No bom sentido claro. As refeições vegetarianas são mais
baratas.
- Ah! Adoro as dádivas do
reino vegetal, elas representam
algo de muito importante para a
nossa alimentação pois o ser
humano como animal omnívoro
necessita de uma infinidade de
substâncias que existem numa
dieta vegetariana variada.
Confuso, o inspector
Novais mostrava uma expressão
de incredulidade, enquanto o
chinês com a colher de sopa ia
separando os vegetais que se
encontravam no fundo do prato
de sopa por forma, a melhor os identificar.
- Numa refeição equilibrada encontra todos os elementos
essenciais ao organismo como proteínas, gorduras e hidratos de
carbono.
O detective fez uma expressão de desagrado, no entanto não
interrompeu o amigo.
- A combinação perfeita transparece na dieta vegetariana,
como num espelho em que miramos a nossa imagem reflectida,
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no fim o segredo da bromatologia, a ciência que estuda os
alimentos.
- Não está a ser demasiado analítico?
- Reportemo-nos ao campo da Biologia. Os seres humanos
com a combustão dos alimentos libertam energia e desse processo
advém a água e o anidrido carbono, os elementos fundamentais
para o processo químico inverso ao das plantas. Que melhor
simbiose se poderia desejar? Cada qual produzindo como
produtos finais as substâncias fundamentais à vida dos outros?
- Certo. Não gostaria de ir beber um cafezinho à esplanada?
- Talvez aceite uma água mineral.
Levantaram-se da mesa tendo ainda tempo de observarem o
casal Blanchi entrar na salinha da televisão de braço dado, a
temperatura amena convidava a um serão agradável e prolongado.
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IV
noite cálida fazia esquecer as horas, a conversa
continuava na esplanada do pequeno café em frente ao
cinema da vila muito cuidadoso em apresentar filmes para um
vasto leque de público. Um inglês, velho conhecido do inspector
Novais, sentara-se na mesa dos dois amigos e ambos observavam
com curiosidade o que Wang-Ho retirava do bolso do seu casaco
de xadrez.
- Como lhe digo inspector,
comprei este cachimbo de água
a dois cabeludos que vendem
um sem número de bugigangas
numa banca junto à praia.
- Sabia que o Sr. Brown
adora fazer colecção de
objectos fora de comum e
peças de artesanato?
O detective esclarecia o
oriental enquanto apreciava o
cachimbo bojudo com a forma
de uma pequena jarra e um
pipo coberto com uma fina rede
de latão. O britânico acenou afirmativamente e tomando um gole
de uma enorme caneca de cerveja esclareceu os companheiros.
- Comecei a coleccionar artigos exóticos durante a minha
permanência na Grécia, no período da II Guerra Mundial. Aquele
país apresenta aspectos análogos a Portugal, a fisionomia dos
gregos é semelhante à dos portugueses assim como a maneira de
estar na vida.
- Preferiu Portugal para gozar a reforma?
A
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- Apaixonei-me um dia por uma portuguesa num hotel e
pensei em casar-me.
- Chegaram a contrair matrimónio?
- Não. Ela não me amava e recusou a minha proposta dizendo
que devido a sermos de religiões diferentes, eu anglicano e ela
católica, nunca poderíamos ter uma convivência sã e honesta.
- Compreendo o seu desgosto.
- Teimosamente, passei a frequentar o mesmo hotel sempre
que ela lá se encontrava, contudo penso neste momento que toda a
minha vida a tentar conquistar o coração de Delfina Gunther não
passou de mero tempo perdido.
- Lamento. Por isso está
na estalagem.
- O destino prega
partidas, não aceito uma
derrota sem jogar todos os
trunfos e não gosto de ver os
adversários a ganharem os
prémios.
- Espanta-me a sua
tenacidade.
- Penso que perdi o combate do amor. Se eu não casar com
quem quero, ela também morrerá viúva.
A ameaça velada não passou despercebida aos dois amigos, o
britânico perdera a fleuma ancestral dos ingleses parecendo
apostado em contrariar todas as tentativas da hóspede para atrair
as atenções do pediatra. O agente da Brigada de Homicídios olhou
para o relógio de pulso e exclamou.
- Como o tempo passa, precisamos de ir andando!
Os três homens saíram da esplanada e o desagradável cheiro
a tabaco deu lugar à agradável fragrância da maresia.
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- Ainda podemos ir devagar a pé até à estalagem. A Sra.
Gisela acaba de sair do cinema e não parece nada apressada.
- Duvido que numa noite amena como a de hoje alguém corra
contra o tempo.
V
s luzes acesas e o som de choro alertaram os três
homens quando chegaram para algo que quebrava a
rotina da estalagem. Dirigiram-se para o salão e viram o industrial
Paulo Deslandes apoiando-se numa bengala, contemplando mudo
uma fotografia do terrível duque de Luanda que parecia desafiar
os presentes do alto da parede. Sem se voltar, como que
hipnotizado pela obra do artista, o hóspede informou os recém-
chegados em voz alta.
- Mataram Delfina Gunther!
De imediato saíram do salão, subiram as escadas para entrar
num amplo quarto recheado de mobiliário trabalhado aonde
sobressaiam duas enormes jarras de cristal contendo ramos de
A
40
amendoeiras. Segurando a cabeça da vítima o médico encostava,
desalentado, um espelho à boca da senhora Delfina Gunther.
Depois de tomar-lhe o pulso retirou a mão pouco depois com
desânimo.
- O espelho não está embaciado. Nada podemos fazer a não
ser chamarmos a polícia, entretanto a Sra. Arlete Seneca podia
aquecer um pouco de água.
Os veraneantes regressavam à estalagem e aglomeravam-se
em redor do clínico.
- A Sra. Acácia Mina não acredita que o fantasma do duque
de Luanda voltou, pois não?
- Claro que não, minha
amiga. Venha beber um
chazinho.
Dando o braço à Sra.
Gisela Cristela a viúva
desceu a escadaria e
encaminhou-se para o salão
deixando os restantes
olhando a cena macabra do
corpo da vítima jazendo no chão.
- O inspector Novais certamente tomará conta da ocorrência.
- Não, senhor professor Florêncio Sócrates. Apenas se a
polícia local me o solicitar.
Apreensivo o agente da Brigada de Homicídios puxou pela
bolsa do tabaco de cachimbo e começou a encher o pipo. Em tom
de queixa voltou-se para o amigo.
- Lamento envolvê-lo nestes trabalhos Wang-Ho. É triste
terminarmos uma noite agradável com um crime.
- Não se preocupe. Vamos descer até ao salão para fazer
companhia às senhoras que estão muito nervosas.
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Acompanhados do historiador desceram a escadaria e
entraram na sala de jantar.
- Telefonaram para o posto da polícia?
- Sim. Um agente deve chegar em qualquer momento.
Inconscientemente todos olharam para a mancha de sangue
do infeliz criado do duque de Luanda.
- Cento e vinte anos separam dois crimes cometidos da
mesma maneira. Ambos morreram com uma pancada.
A voz do historiador arrastava-se e ninguém ousava
interromper a sua divagação.
- Logo agora nesta época
festiva. Atravessamos o Verão,
pensamos que a violência sucede
sempre em casa dos outros e
afinal mesmo à nossa beira, um
crime hediondo desenrola-se sem
que o possamos evitar.
- Calma professor, o assassino será apanhado e punido.
A Sra. Gisela Cristela frisava os defeitos e enaltecia
timidamente as qualidades da vítima.
- Não obstante o teu temperamento belicoso, a Sra. Gunther
era uma profissional de valor. Lembro-me bem como ela amava
ensinar os segredos da decoração, como ela gostava de nos passar
receitas, fazer moldes para enfeites,…
Tavira – Castelo medieval
42
A campainha da estalagem tocou e passados alguns segundos
um polícia de longos bigodes encerados, volumoso ventre
debaixo da farda e olhos pequeninos entrava, segurando o boné
nas mãos seguindo a lastimosa dona do palácio.
- Não mexeram em nada?
A Sra. Arlete Seneca calou-se e conduziu o agente ao quarto
da falecida. Perante o silêncio da interlocutora insistiu para dar
azo à conversa.
- Todos os hóspedes já regressaram?
- Sim.
Cautelosamente a autoridade observou o quarto e saiu para o
corredor acompanhado do
pediatra.
- O Dr. Eurico Blanchi
consegue confirmar a hora da
morte?
- Sim. A vítima morreu dois
ou três minutos antes de a
acudir, ainda sangrava da ferida
aberta pela sopeira.
- Está absolutamente certo de que a morte da senhora se deve
ao golpe com a terrina?
- Sim. A Sra. Delfina Gunther não apresentava outras
escoriações.
Tirando um bloco de notas do bolso de trás das calças o
agente prontificava-se a redigir anotações, no entanto a caneta de
tinta permanente teimava em não escrever.
- A Sra. Arlete Seneca importa-se de me arranjar uma
esferográfica?
A dona da pensão saiu do quarto com o habitual passo
acelerado e abriu a porta do compartimento contíguo soltando de
43
imediato um grito, enquanto as suas feições demonstravam
espanto, tendo o polícia acorrido de imediato a observar a cena
que espantara tanto a senhora. Uma corda atada a uma cama de
ferro prolongava-se pela janela e caia solta, na rua deserta.
VI
eunidos no salão o agente da policia local narrou o
estranho aparecimento da corda aos ouvintes atentos.
Depois, rubro de satisfação e com um largo sorriso nos lábios
grossos e vermelhos confidenciou.
- Considero uma honra,
ser auxiliado pelo inspector
Novais nesta investigação. Os
seus feitos ultrapassam a sua
cidade, não seja modesto meu
amigo. O colega continua a
ser o exemplo e porque não
dizer, o orgulho da policia
portuguesa. O senhor inspector Novais é o exemplo do
penalogista perspicaz que,…
O detective teve de intervir para acelerar o inquérito, pois
observou os rostos sonolentos dos circundantes. Tomando em
conta, ter sido um dia agitado para a maioria deles e o adiantado
da noite.
- Obrigado pelos imerecidos elogios, mas talvez seja melhor
começarmos pelo nosso trabalho.
Wang-Ho aproximou-se do polícia e interpelou-o.
- Gostava de ser o primeiro inquirido para poder ter tempo
ainda de dar uma volta pelo bar e beber um chá.
R
44
O agente da polícia acariciou o queixo antes de perguntar.
- Sr. Wang-Ho, aonde se encontrava na altura do crime?
- No café com o meu amigo inspector Novais e com o Sr.
Brown. Chegámos pouco depois, do desenrolar do crime,
digamos talvez uns cinco minutos.
- Quem viu na cena do homicídio?
- Alguns hóspedes e a dona da estalagem. Todos se
debruçavam sobre o cadáver no quarto aonde ocorreu o
assassinato.
- Diga os nomes.
- A Sra. Blanchi, a Sra. Arlete Seneca, a Sra. Acácia Mina e a
Sra. Gisela Cristela.
- Obrigado, Sr. Wang-Ho para já eu não necessito mais da
presença do senhor.
O oriental dirigiu-se para a porta e preparava-se para sair
quando soou a voz grossa do inspector Novais que o obrigou a
parar.
- Espere, Wang-Ho. O senhor também é suspeito, assim
como eu. Deverá manter-se aqui na sala a ouvir os depoimentos
de todos.
Tavira - Salinas
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Resignado, o chinês sentou-se de novo numa cadeira, cruzou
os braços com os ouvidos atentos perante o sorriso do amigo que
o fixava.
VII
ervoso o professor Florêncio Sócrates retirou do bolso
um lenço, limpou o suor que lhe escorria da testa e do
pescoço respondendo pesaroso ao agente da polícia local.
- Infelizmente, não tenho qualquer álibi. Passei a noite a
passear pela feira e encontrei várias vezes o Sr. Paulo Deslandes,
no entanto não estava com
ele à hora do crime. Posso
apenas dizer aonde bebi um
café e o funcionário talvez se
lembre de mim.
- Pouco provável.
- Depois de passear um
pouco para desentorpecer as
pernas dirigi-me para a estalagem e soube do sucedido. A senhora
Delfina Gunther não era simpática, mas nunca me passou pela
cabeça o seu fim trágico.
- Saiu a seguir à sobremesa?
- Exacto. A noite quente convidava a fazer exercício e eu
gosto de andar para ajudar a fazer a digestão das refeições.
- Qual a sua profissão?
- Sou professor de História na Faculdade de Lisboa.
- Porque saiu sozinho?
- Nunca pensei que iria precisar de um álibi para um crime.
N
46
O agente acusou sarcasmo e ajeitou o bigode farfalhudo antes
de prosseguir.
- Professor, acabando o jantar às 21 horas passeou muito,
não?
- Gosto de andar devagar e tinha todo o tempo do mundo.
O industrial Paulo Deslandes intrometeu-se na conversa ao
ouvir falar do seu nome e ao sentir uma certa crispação no diálogo
entre a autoridade e o amigo.
- Como sabe, senhor agente, nós citadinos transformamo-nos
por completo aqui na província e esquecemo-nos das horas. Veja
o meu caso, saí pouco depois do professor e regressei depois dele.
- Também saiu sozinho?
- Sim. Porém um
vendedor de lanternas pode
comprovar que eu estava
com ele na altura do crime
porque cheguei-lhe a
lamentar não poder estar a
falar com ele mais tempo
receando chegar aqui e
deparar com a porta fechada.
- Oportuno o seu álibi.
- Uma feliz coincidência. Um álibi nunca de deixa de ser uma
feliz simultaneidade de dois acontecimentos.
O agente da polícia local começou a percorrer pensativo a
sala de mãos atrás das costas.
- A corda na janela é um dado importante.
Uma voz forte soou obrigando todos a voltarem-se para o
local de onde tinha partido.
- Indica que o assassino se encontrava na estalagem.
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O agente voltou-se surpreendido e interrogou com o olhar o
inspector Novais que encostado de pé a uma parede observava
todos os hóspedes.
- Para prender a corda ele tinha de já estar na estalagem e
sabia da existência daquela cama de ferro na sala, alguém que está
aqui neste momento colocou a corda atada à cama donde se
conclui que o crime também foi premeditado e preparado com o
máximo cuidado. O homicida também conhecia os hábitos de
todos e sabia na altura do crime que aquela sala estaria vazia.
- Tem razão. Professor pode continuar o seu relato.
- Ao chegar à estalagem vi o Dr. Eurico Blanchi visivelmente
alterado no quarto da falecida e pediu-me para irmos buscar um
médico, não obstante ele já ter confirmado o falecimento.
Disse-me que eu lhe faria companhia na viagem pois já mais nada
tinha ali que pudesse fazer pois a Sra. Delfina estava morta
Praia de Alagoa (Altura) – Situa-
se no Sotavento Algarvio (zona
leste da região).
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O polícia olhou para o pediatra e interrogou-o remexendo o
magnífico exemplar de bigode.
- Esperou quanto tempo pelo professor?
- Talvez cinco minutos.
- Nada de especial assinalou nesse espaço de tempo?
O Dr. Eurico Blanchi encolheu os ombros antes de responder
timidamente.
- Nada observei de especial, a não ser a chegada de alguns
dos hóspedes.
Satisfeito por ser o alvo das atenções o agente da polícia local
retomou a conversa com o historiador.
- Pode continuar.
- Acedi ao pedido do
Dr. Blanchi e procurámos
um clínico em Faro. Mal
sabia eu quando regressava
da feira, que voltaria uma
meia hora mais tarde à
cidade.
- Passou todo o período
desde o final do jantar até
ao regresso à pensão sozinho?
- Não afirmei isso. O Sr. Deslandes deu-me boleia e viajou
comigo para a feira. A partir da entrada no recinto é que nos
separámos.
- Porquê?
- Ele encontrou uns amigos.
- Regressou sozinho?
- Sim, voltei sem estar acompanhado.
Florêncio Sócrates acenou com a cabeça retirando um cigarro
estrangeiro da cigarreira de prata trabalhada com motivos
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africanos. O agente sentou-se e com um gesto convidou o
inspector Novais a interrogar o casal Blanchi.
VIII
em pressas o inspector Novais abriu o seu habitual bloco
de notas e pediu a esferográfica emprestada ao
inquiridor, rabiscando em seguida uma folha para se certificar da
sua funcionalidade.
- Pode-me narrar Dr. Blanchi como sucederam os factos?
- Claro. Logo após o jantar eu e a minha mulher preparámo-
nos para assistir ao filme da
televisão. Para tal entrámos
na salinha de estar aonde a
Sra. Acácia Mina já se
encontrava sentada um pouco
à nossa frente numa cadeira
de baloiço.
- Conversaram com ela?
- Não, ela dormitava como de costume, com um cestinho de
renda ao lado, o tricot no colo e a cabeça ligeiramente pendente
para a frente.
- Ela não acordou com a vossa entrada?
- Não, manteve-se sempre imóvel, não obstante as lâmpadas
da sala estarem apagadas, a luz proveniente do écran da televisão
iluminava-a à nossa.
- Nunca a viram sair de lá?
- Não enquanto estivemos. Passado meia hora, verifiquei que
todos começavam a sair porque do lugar aonde me costumo sentar
posso observar a porta de saída da casa de jantar para o exterior, a
S
50
única saída da estalagem, a escadaria e o balcão de recepção onde
costuma permanecer a Sra. Arlete Seneca nos seus momentos de
ócio.
- Um lugar privilegiado. Reparou para onde foram os
hóspedes depois de terminarem de jantar?
- Eu estava mais atento ao filme na TV, apenas notei que a
Sra. Delfina Gunther abandonou a sala de jantar, subiu sozinha a
escadaria para ir possivelmente para o quarto. A Sra. Arlete
Seneca depois de levantar as mesas dirigiu-se para o balcão da
recepção e durante cerca de quinze minutos escreveu em vários
papéis antes de ser interrompida por uma das campainhas dos
quartos.
- Qualquer hóspede pode
tocar a campainha no seu
quarto para chamar a dona da
estalagem ou a criada?
- Sim, ao tocarem, a
chamada soa no balcão de
atendimento e uma chapa
com o número
correspondente ao quarto é visionada no quadro eléctrico.
- Porque não foi a criada?
- Nesse dia estava ausente, de folga.
51
- Nesse caso a proprietária da estalagem identificou logo o
quarto que requisitou a sua presença. E depois?
- Após subir as escadas a Sra. Arlete Seneca demorou breves
segundos antes de voltar a descer e entrar resmungando na
cozinha.
- Ouviu as palavras dela?
- Ela murmurava de modo imperceptível. Na altura
confidenciei à minha esposa que ela não gostava que lhe
interrompessem a escrita caseira.
- Mantiveram-se sempre na salinha?
- Não. A minha mulher necessitou de tomar um comprimido
para a pressão arterial e
subimos ao quarto por
breves minutos. Depois
descemos novamente para
a salinha.
- Ausentaram-se antes
de a campainha tocar?
- Sim, antes de a
campainha tocar pela
primeira vez. Depois da
Sra. Arlete Seneca ter levado os cafés a campainha tocou
novamente.
- Nesse caso tocou duas vezes.
- Passados cinco minutos a dona da estalagem ouvia
novamente a campainha tocar, voltou a subir os degraus,
desapareceu por breves instantes do meu ângulo de visão até
ressurgir aos gritos no cimo da escadaria. Eu e a minha esposa
subimos rapidamente as escadas e acompanhados da Sra. Arlete
Seneca, seguimos para o quarto da Sra. Delfina Gunther que jazia
morta com um fio de sangue escorrendo da cabeça.
52
- Como reagiram?
- Verifiquei que ela estava morta. Depois procurei estancar o
sangue com um pano, de forma a conter a hemorragia e pedi água
à Sra. Arlete Seneca para lavar a ferida. Em seguida aguardei a
chegada de alguém para chamarmos um médico para passar o
óbito.
- Quanto tempo esperou?
- Alguns minutos. Finalmente apareceu o professor Sócrates
que se prontificou a auxiliar-me.
- A sala aonde apareceu a corda é entre o quarto da Sra.
Delfina Gunther e as escadas?
- Sim. Penso que será
um dormitório que se
encontra quase sempre
vazio pois dá para uma rua
com bastante movimento.
Nesta altura do ano
inclusive fazem uma
pequena feira em que
vendem roupa,
bugigangas, doçaria,
brinquedos e balões para crianças, artefactos africanos como
zagaias, mascaras, bancos, etc.
- O resto já eu sei.
Lucy Blanchi que se mantivera calada, aguardando o final do
interrogatório do esposo, resolveu nessa altura intervir.
- Desculpem interromper. Falta acrescentar que depois de eu,
o meu marido e a Sra. Arlete termos entrado no quarto para
socorrer a Sra. Delfina, ouvimos três tiros.
- O seu esposo também escutou?
O Dr. Blanchi encolheu os ombros.
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- Sim, naquela altura a minha aflição era tão grande em
socorrer a senhora, que não dei relevo ao facto. Realmente, eu
lembro-me de ter ouvido passos de alguém a descer as escadas e
posteriormente três tiros.
O chinês observava com atenção o comportamento da esposa
do inquirido parecendo satisfeito com o resultado. Após a saída
do casal, o detective releu os apontamentos e coçou a cabeça
pensativo, enquanto se sentava ao lado de Wang-Ho e lhe
confidenciava em voz baixa.
- Parecem não mentir.
Wang-Ho olhou de relance para a salinha da televisão e
respondeu convicto.
- A Sra. Lucy Blanchi nem
pestanejou durante o
interrogatório confirmando as
palavras do Dr. Eurico Blanchi.
- O assassino deve ter
escapado pela janela aberta da
divisão ao lado do quarto onde
ocorreu o homicídio ou
certamente foi visto a descer as escadas.
- Apesar de ser noite a rua continua a ser movimentada e
certamente chamaria a atenção o facto de alguém descer do
primeiro andar por uma corda. Devemos regressar ao quarto da
Sra. Delfina Gunther para descobrirmos algo que nos passasse
durante os momentos de confusão imediatos ao crime.
Levantaram-se, acompanhados pelo agente da polícia de
Faro. Ao passarem pela sala de jantar o oriental retirou da parede
o escudo da família Gravata que decorava a parede, por cima de
duas lanças cruzadas, e meteu-o debaixo do braço levando-o
consigo. Sem pressas quando entraram no local do homicídio o
54
inspector Novais observou de forma cuidada as marcas de giz,
assinalando os contornos do corpo encontrado no pavimento.
- A vítima devia esperar o assassino pois vestia um roupão e
colocara duas chávenas de chá em cima da secretária do quarto.
Um dos pires ainda tem o pacote de açúcar por abrir.
Em seguida os três dirigiram-se para a outra salinha e
verificaram que cama ainda mantinha a corda atada como na noite
do assassínio encontrando-se no centro da divisão. O chinês
prendeu com dois nós o escudo do duque de Luanda ao outro
extremo da corda enquanto esclarecia.
- Procuro a prova de que o cordame não foi utilizado.
- E como vai fazer? Não
compreendo a razão do seu
procedimento.
- Este escudo pesa cerca
de cinquenta quilos. Se
alguém desceu pela corda
certamente pesava mais que
este objecto.
- E daí?
O oriental não respondeu lançando o escudo para a rua e de
imediato a corda puxou a cama e arrastou-a para junto da janela.
- Compreende agora, meu amigo?
- Sim, se alguém descesse pela corda com o peso a cama teria
sido arrastada.
A dona da estalagem entrou repentinamente na sala e olhou
intrigada para a cama deslocada. Wang-Ho voltou-se na direcção
dela e perguntou.
- As portas desta salinha e do quarto da Sra. Delfina Gunther,
estavam fechadas?
55
- Não. Esta sala nunca a fecho porque nada tem de valor. O
quarto da Sra. Delfina Gunther, costumava estar sempre fechado,
mas como ela aguardava o chá deixou a porta destrancada.
- Não se apercebeu se estava lá alguém quando ela tocou a
primeira vez?
- Sinceramente não sei. Quando cheguei de início bati com os
nós dos dedos na porta e ela apenas me respondeu que queria dois
chás. Mais tarde, quando a campainha tocou pela segunda vez
subi e ao chamar, ela não respondeu. Então abri a porta do quarto
e encontrei-a caída.
- Também ouviu três tiros?
- Sim, enquanto socorríamos a Sra. Delfina Gunther no
quarto dela. Ouvi os três
disparos e corri com a Sra.
Lucy Blanchi até ao alto da
escadaria, para ver o que se
passava.
- E o que observou?
- A Sra. Acácia Mina
olhava para a porta e disse-
nos que um homem correra
pelas escadas abaixo e disparara três tiros antes de fugir pela porta
de entrada.
- Podia estar escondido num dos quartos a aguardar a
oportunidade de sair sem obstáculos. Escondido no primeiro
andar, possivelmente naquele em que descobrimos a corda.
- Por pouco passava despercebido.
- O único azar dele foi o facto da Sra. Acácia Mina ir a
retirar-se da salinha de televisão e testemunhar a fuga. Para a
amedrontar e a afastar do caminho não hesitou em disparar três
tiros chamando a atenção de outras três testemunhas.
56
O investigador da polícia de Faro alinhou com os dedos a
linha do bigode e interrompeu o diálogo.
- Dei uma vistoria no hall de entrada, não aparecem as
marcas das balas do revólver.
O agente da Brigada de Homicídios de Lisboa voltou-se para
o colega.
- Podia ser uma pistola de alarme e os disparos procurarem
intimidar a Sra. Acácia Mina a não lhe barrar o caminho. Nada
indica que o assassino quisesse ferir mais alguém depois do
assassínio.
- Concordo consigo.
Ele deve ter deslizado
silencioso pelas escadas e apenas o ouvido apurado da Sra. Acácia
Mina notou os passos do indivíduo na escada ou por coincidência
ela ia a sair na altura da salinha quando ele descia.
- Para reforçar esta hipótese devo lembrar o facto de a
campainha ter tocado uma segunda vez depois da Sra. Arlete
Seneca ter levado o café. O homicida ao pressionar o botão
procurava nervoso abrir caminho para a saída.
Os dois polícias felicitavam-se. Arlete Seneca procurava com
a ajuda de um pano dissipar o arranhão da corda na perna da cama
57
e Wang-Ho dava voltas às chávenas pousadas na secretária como
que interrogando os objectos.
Pouco a pouco os hóspedes encaminhavam-se para os seus
aposentos procurando o sossego dos leitos, os ruídos nas escadas
e corredor desapareceram para prevalecer o murmúrio dos ramos
das árvores.
Os agentes aproximaram-se do oriental que com um joelho
no chão seguia uma linha de gotas de sangue no soalho.
- O objecto utilizado pelo assassino para o crime encontra-se
longe da vítima.
- Pode ter rebolado pelo chão,…
- Também pode ter
sido isso.
- Por outro lado a mala
da finada está sobre uma
cadeira e parece-me que
quem a matou não lhe
interessava o dinheiro. Não
foi um roubo o móbil do
crime.
IX
rlete Seneca madrugara, as olheiras estavam bem
vincadas, o cabelo em desalinho transmitiam a sua má
disposição e nem o habitual sorriso apareceu nos lábios carnudos,
no momento em que pousava a bandeja recheada de ovos
estrelados, pão e bacon em cima da mesa do inspector Novais.
- Uma noite em claro?
A
58
O agente sempre alegre e optimista enchia a chávena de café
com leite e barrava o croissant com manteiga.
- Parece que tudo não passou de um sonho mau.
- Um dia este crime não passará de uma recordação. Pode
contar com uma publicidade gratuita nos jornais.
A dona da estalagem fingiu dar um murro no polícia
originando como resposta uma ruidosa gargalhada. Wang-Ho
entretanto entrava na sala de jantar, cumprimentava os presentes
mantendo o seu rosto inalterável e aceitava a cadeira que o amigo
delicadamente lhe indicava.
- Prefere chá?
O oriental recusou a bebida e deixou que Arlete Seneca lhe
enchesse a chávena com café
com leite.
- Desculpe-me reavivar
acontecimentos desagradáveis.
Pode relembrar os factos de
ontem?
A proprietária do palacete
dos Gravata perdera a vivacidade
habitual.
- Depois de servir a sobremesa, fui lavar a louça e permaneci
atrás do balcão da recepção a estudar as minhas contas.
- Nada de anormal se passou até à primeira chamada?
- Não. Dei folga à minha criada, Sra. Marta Matos e apenas
continuaram dentro da estalagem a Sra. Acácia Mina e o casal
Blanchi.
- Eles para subirem as escadas precisavam de passar em
frente do balcão da recepção?
- Não, eu via-os, caso subissem as escadas. Depois de jantar
subiram para o quarto, mais tarde desceram e foram para a salinha
59
ver a televisão. Claro que podiam se ter ausentado durante o
momento em que eu fui fazer o café, mas nessa altura certamente
a Sra. Acácia Mina teria dado por isso.
- Certo. A pessoa que ouviram, descer as escadas e disparou
posteriormente contra a Sra. Acácia Mina, deve ter subido os
degraus enquanto lavava a louça do jantar. Eles subiram ao quarto
buscar o remédio para a Sra. Lucy Blanchi.
- Provavelmente. Faltavam cinco minutos para as 22 horas, a
Sra. Delfina Gunter pediu dois cafés e apressei-me a servi-los no
quarto dela.
- Contrariada, segundo me disse.
- A Sra. Gunther possuía o mesmo que feitio que eu,
“fervemos em pouca água”
- Não calcula para quem seria o segundo café?
- Ela pediu-me sem abrir a porta do quarto.
Castro Marim – Esta
cidade muito antiga
situa-se na parte Leste do
Algarve, ou Sotavento
Algarvio.
60
- Porque está tão certa de que faltavam 5 minutos para a 22
horas quando a vítima pediu a bebida?
- Ansiava por ver a novela na televisão do meu quarto.
Preparei os cafés e subi ao quarto da Sra. Delfina Gunther, e
entreguei-lhe. Depois de receber a segunda chamada, e ao
descobri-la ferida, chamei pelo doutor Eurico Blanchi que chegou
acompanhado pela esposa, que é enfermeira aposentada.
Utilizaram todos os recursos possíveis para a salvar, mas já nada
havia a fazer.
O polícia e o chinês ouviam
com a máxima atenção a dona
da estalagem que aproveitando o
facto de eles estarem com a boca
cheia e não falarem, continuou.
- Sirvo de álibi ao casal
Blanchi e à Sra. Acácia Mina
pois eles necessitavam de passar
pelo meu ângulo de visão para
irem ao primeiro andar.
- Quaisquer dos que
estavam na salinha podiam sair
por outra porta?
- Não.
Acácia Mina acabava de entrar e dirigiu-se para uma mesa
sendo saudada amigavelmente pelos dois amigos.
- Bom dia. Passou bem a noite?
- Um pouco agitada devido ao que se passou. Certamente
continua a fazer perguntas.
O inspector Novais sorriu-lhe e abanou afirmativamente a
cabeça.
- A senhora estava ontem na sala na altura do homicídio.
61
- Dormitava como habitualmente.
- Saiu do salão a seguir à sobremesa?
- Antes, não gosto de doces. Retirei-me da sala de jantar para
a salinha da televisão, tirei o meu tricot do saco, adormecendo
passados alguns minutos.
- Confirma que o casal Blanchi apenas deixou a salinha por
breves minutos?
- Eu sentei-me num sofá colocado um pouco em frente da
poltrona aonde eles estavam.
Senti eles ausentarem-se por
pouco tempo, depois acordei
com os gritos da Sra. Arlete
Seneca e dirigia-me para o
quarto dela, quando o
provável assassino desceu as
escadas.
- Porque não seguiu logo
o casal Blanchi?
- Pensei ser mais um
“bluff” da Sra. Delfina
Gunther para atrair as
atenções.
- Não simpatizava com
ela?
- Nada tinha contra ela, pelo contrário. Era uma pessoa vulgar
que me fazia companhia nas alturas em que a estalagem se
desertificava, durante a debandada para as praias. Eu ensinava-lhe
bordados e ela desvendava os seus segredos de decoradora e
receitas de culinária.
Curioso o agente desviou o olhar, interrompendo o
interrogatório para observar o casal Blanchi que entrava na altura.
62
Como pessoas tão diferentes umas das outras poderiam coexistir?
Lucy Blanchi de vestido caro e justo rebaixava a Sra. Acácia
Mina, naquela altura de lenço na cabeça e roupão até aos pés. O
Dr. Blanchi de fato novo de riscas parecia mais preparado para
uma festa de gala elegante dos ricaços das luxuosas mansões
sobranceiras à praia do que para uma modesta estância de
veraneio.
- Lembra-se de ouvir o casal Blanchi entrar na salinha de
televisão?
Castro Marim –
Esta cidade perto
da fronteira
espanhola realiza
todos os anos uma
feira medieval
durante o mês de
Agosto.
63
- Na altura dormitava, contudo senti eles entrarem. Apenas
recordo mais tarde a Arlete Seneca chamando-os aflita, mas
preferi na altura deixar-me estar sossegada.
- Ouviu o Dr. Eurico e a Sra. Lucy Blanchi subirem as
escadas?
- Coincidiu com o momento em que cantava uma artista que
muito aprecio e eu não imaginava a razão por que saiam.
Passados breves minutos levantei-me para ir ter com eles, vi
alguém a descer as escadas e na penumbra olhei o que me pareceu
ser um homem, com um
revolver na mão, a correr
para a porta e ao descobrir a
minha presença disparou três
tiros desaparecendo em
seguida.
- Não lhe reconheceu o
rosto?
- A luz era insuficiente
para o identificar. Mal
sumiu, apareceram a Arlete
Seneca e a Lucy Blanchi a
saber o que se passava
porque também ouviram os
disparos. Cheia de medo, subi as escadas para me sentir
acompanhada e só nessa ocasião soube da ocorrência do crime.
Arlete Seneca que se mantivera calada durante o breve
diálogo sacudiu com um pano as migalhas das bolachas para a
palma da mão a servir de concha.
- Permanecemos juntas até à chegada do médico com receio
que outro elemento do bando se escondesse na estalagem. Quando
64
sentimos a presença de mais hóspedes voltei a sentir segurança
para andar por todo o lado.
- Não nos pode dar uma descrição acerca do indivíduo que
desceu as escadas?
- Pouco precisa. Devia calçar sapatos de lona pela ligeireza
da corrida, calças justas e camisa de quadrados apertada.
O inspector Novais esboçou um sorriso e encarou Wang-Ho.
- Parece estar dentro da razão. Afinal o assassino não utilizou
a corda.
65
X
lorêncio Sócrates debruçou-se sobre a muralha e
contemplou a cidade de Silves perdida na planície. Uma
aragem fria fazia rodopiar papéis e folhas espalhados no chão, ao
longo das ameias banhadas por pálidos raios solares. O
historiador segurou o chapéu obrigando-o a conservar-se sobre os
parcos cabelos brancos ondulados.
- Na próxima visita ao castelo não esqueço um agasalho.
Um ratinho assomou,
descobrindo-se audacioso de
umas ervas e ao constatar a
presença humana, regressou ao
esconderijo improvisado de
musgos que cobriam as
muralhas. As intempéries
haviam enegrecido as pedras
moldando suavemente as
arestas, o cimento corroído
pelo calor e chuva perdera a
superfície homogénea,
lembrando os minúsculos
relevos as miniaturas das
cordilheiras aonde, em lutas ferozes, seguidores da cruz e do Islão
se envolveram em sanguinárias carnificinas.
- Um local sagrado da História. Duas culturas opostas em
conflito permanente durante séculos procurando prevalecer pela
força das armas os seus ideais.
O inspector Novais inspirou o ar perfumado e olhou as
mimosas e giestas abundantes, antes de tomar a palavra.
- Raras civilizações repousaram em paz.
F
66
- Uma verdade inquestionável. Eu imagino que não foi para
discutir a reconquista cristã que o inspector conduziu largas
dezenas de quilómetros para me falar.
- Realmente a razão da nossa presença aqui prende-se com a
necessidade de uma breve troca de palavras.
- Dispare a primeira pergunta.
- Segundo afirmou, a seguir ao jantar, da noite do crime,
viajou acompanhado do Sr. Deslandes para Faro. Qual o meio de
transporte utilizado?
- Seguimos no automóvel do Paulo Deslandes. Ele insistiu
afirmando que, como debita as contas de gasolina à firma, por
causa dos impostos, eu escusava de desembolsar tão depressa
algumas notas para encher o
depósito do meu carro.
- Quando se separaram não
receou ficar sem transporte para o
regresso?
- Levo sempre um horário das
camionetas. Voltei à estalagem
utilizando a última da noite, existe
uma paragem a poucos metros do palacete.
- Quanto tempo demora a viagem?
- Sensivelmente, cerca de quarenta minutos. A essa hora da
noite, a camioneta praticamente não pára nas paragens.
- Sabe-me dizer o tempo que demora a percorrer o veículo
entre a última paragem antes de Alcantarilha e a vila?
- Quinze minutos. Desculpe desiludi-lo, tudo indica que as
algemas não servem nos meus pulsos.
Sem pressa o professor começou a descer os degraus de pedra
seguido de perto por Wang-Ho e pelo polícia. Amparado por uma
bengala ia observando a magnifica paisagem emoldurada pela
67
serra longínqua e, ao descer o último lance das escadas, encarou
altivo o detective.
- Não nego uma certa satisfação mórbida por Delfina Gunther
estar neste momento a comparecer no “Julgamento Final”, aonde
não se arquivam processos por falta de provas. Ela passou a vida
magoando as pessoas, arrastando amargura e vaidade na trilha dos
seus passos, nunca hesitou nas resoluções mais hediondas para
prevalecer o seu próprio bem-estar. Tudo para agora jazer numa
campa à espera que o seu corpo imundo se transforme em pó.
- Deve afastar esses
pensamentos macabros.
- Não descobri um único
personagem, nessa farsa
lúgubre que consistia a vida na
estalagem, que não recebesse a
notícia do falecimento da
pedante com agrado.
O agente da Brigada de
Homicídios retirou um cigarro
de um maço, colocou-o na
boca esforçando-se por
acende-lo, protegendo a chama
do isqueiro da aragem com a
palma da mão.
- Sei que Delfina Gunther foi casada com um seu irmão e
enviuvou, não compreendo como os restantes familiares não
levaram parte da herança, pois penso que o seu irmão procurou
doar-lhes parte dos seus bens.
- A mente profana de Delfina Gunther conseguiu ludibriar
todos e a própria lei exactamente no seu ponto mais humano e
débil. Decorrido um ano após o casamento do meu mano Pedro
68
com Delfina Gunther, um facto sombrio envolveu a relação dos
dois e o matrimónio, que foi a ausência de filhos. Se para mim a
verdadeira razão foi que ela os recusou, tomando
anticoncepcionais, o meu irmão convenceu-se de que era devido a
motivos naturais, que Deus não os quis contemplar com essa
bênção.
O professor acompanhado pelos dois amigos principiou a
caminhar em direcção a uma barraca de madeira repleta de
anúncios de refrigerantes aonde um rapaz envergando uma camisa
de manga curta distribuía cervejas num balcão improvisado
constituído por uma tábua assente sobre dois bancos de longas
pernas.
- Para compensar a falta de descendentes adoptaram uma
criança gravemente doente a quem a mãe, sem recursos, a deixara
ao cuidado de um orfanato.
Wang-Ho levantou as sobrancelhas, surpreso, e interrompeu
Florêncio Sócrates.
- Ela tornou-se a procuradora da criança?
69
O historiador aquiesceu com a cabeça e um leve sorriso
tremulou-lhe nos lábios.
- Toda a fortuna da herança passou para as mãos do miúdo
legalmente, o único caso em que a lei determina a espoliação dos
familiares, sucedeu naquele instante. Como procuradora, Delfina
Gunther podia manejar a seu belo prazer o volumoso legado sem
que a família do marido pudesse opor-se à ignóbil criatura. Pouco
a pouco o rapazinho ficou sem o legado passando o dinheiro a
pertencer à procuradora, quando o petiz morreu vítima da doença
que o afligia, já ela se apossara de toda a herança.
- Uma mulher diabólica.
- Sim, sem escrúpulos.
Os três homens
beberam a cerveja em
silêncio sentindo o calor
ameno do fim da tarde.
Vagarosos, automóveis com
matrículas estrangeiras
debandavam para a estrada
de alcatrão para aproveitar a
luz do entardecer subtraindo-se aos riscos da noite, os ruídos dos
motores sumiram para envolver o local no murmúrio agreste da
folhagem.
XI
modista Gisela Cristela abriu a mala e retirou um
minúsculo papel verde-claro, dobrado ao meio,
denotando as dobras o pouco cuidado da possuidora em
maximizar os espaços interiores da mala. Aproveitou a
A
70
oportunidade, para de igual modo pegar num pequeno lenço
garrido e fungou antes de se assoar discretamente.
- Eis o bilhete do cinema!
O salão começara a tomar vida e a criada Marta Matos, com o
fole e as mãos negras da fuligem, esforçava-se por acender a
lareira utilizando para o efeito movimentos endiabrados que
jocosamente eram comentados por Arlete Seneca que, de rosto
ainda pálido, interrompia a longa sensação de mal-estar
manifestada desde as horas fatídicas vividas pelos presentes na
noite do crime.
O polícia prestou pouca atenção
ao bilhete e encarou-a com um olhar
duro.
- A não ser que me diga o nome
de uma pessoa que a acompanhasse
este papel de nada serve. A senhora
podia ter entrado no fim da sessão.
Visivelmente incomodada com
o rumo do diálogo Gisela Cristela
fungava amiúde, e o lenço garrido
incansavelmente percorria o trajecto
entre os olhos e o nariz. Os soluços
manifestavam-se e a voz despersonalizou-se.
- Eu posso contar-lhe o filme. O cinema em atenção a esta
quadra anda a passar boas películas.
O detective abanou a cabeça desalentado perante o desespero
da senhora.
- Deve acreditar em mim. Posso narrar-lhe o filme com todos
os pormenores, aliás o inspector Novais chegou pouco depois,
calculo que durante a caminhada reparou nas pessoas que o
precediam.
71
- Reconheço que me precipitei ao fazer a pergunta, recordo-
me de a ter visto sair do cinema.
Gisela Cristela deixou de soluçar e um sorriso moldou-lhe as
faces numa réstia de esperança.
- Agora me lembro, que enquanto estive no cinema encontrei
ao meu lado habitantes da vila e como lido com eles todos os dias,
nem me ocorreu relembrar a sua presença. Eles podem
testemunhar que eu estive sempre no cinema.
Um cheiro a borracha queimada propagou-se a partir da
lareira, um fumo lembrando as
nuvens escuras das tempestades
principiou a poluir o ar. A
criada Marta Matos agarrou
num jarro com água e despejou
o conteúdo sobre as labaredas
redobrando as colunas escuras
da fumarada.
- Imbecil!
Arlete Seneca segurou no braço da criada impedindo a moça
de despejar outro jarro mas, Wang-Ho agarrou no recipiente e
lançou prontamente o líquido sobre os tornos negros enfurecendo
a mulher. Aguardou breves instantes, e retirou com a ajuda de
uma pá pedaços dos mais variados artigos enquanto a dona do
72
antigo palácio dos Gravata ralhava com a subordinada de modo
áspero.
- A água aumentou o fumo, vamos atrasar o jantar por causa
do seu acto irreflectido de lançar líquido.
Perdendo a compostura dirigiu-se em seguida para o oriental
que retirava com cuidado latas, pedaços de gesso, cascas de fruta,
borracha e papeis coloridos da lareira.
- Pode explicar-me a razão da sua presença junto à lareira e
de ter apoiado esta confusão?
Wang-Ho levantou-se lentamente e os olhos inexpressivos
fixaram calmamente Arlete Seneca.
- Lamento o sucedido. Agradecia
que arranjasse um saco para eu mandar
analisar no laboratório os resíduos que
separei.
Nervosa, a mulher recuou alguns
passos torcendo as mãos.
- Desculpe os meus modos bruscos.
Marta, atende o pedido do Sr. Wang-Ho
e abre as janelas do salão para arejar.
O inspector Novais que assistira a
toda a cena aproximou-se do amigo surpreendido pelo interesse
dele nos pedaços de lixo sobre a lenha.
- Procura algo? Reconheço um osso, bocados de borracha,
bocados brancos do que parece ser estuque ou gesso, pó branco,
algodão, etc.
- Tem razão.
- Wang-Ho, procura algum veneno?
- Pode ser. Devemos explorar todos os actos que fujam à
rotina diária, talvez o assassino procurasse livrar-se de um
produto incriminatório.
73
- Mesmo que tivesse algo que incriminasse podia deixar a
estalagem e deitar fora bem longe da vista de todos.
- Claro. Tivemos o cuidado de revistar os quartos na noite do
crime. Temia encontrar-se sob vigilância e até pode estar neste
momento no salão a observar a prova desaparecer debaixo dos
nossos próprios olhos.
O inspector Novais olhou em redor e todos os hóspedes
estavam com a atenção presa aos seus movimentos, alguns
tossiam e comentavam num sussurro o acontecimento
presenciado.
- Não será uma brincadeira?
- Ignoro. Duvido haver
vontade para graças nos tempos
mais próximos.
- Recebi um relatório de
Lisboa. Gisela Cristela era a mãe
da criança adoptada por Delfina
Gunther. Adivinha quem é o pai?
- Paulo Deslandes.
- Como soube?
- Perguntei-lhe a razão por
que odiava Delfina Gunther e ele
disse-me. Gisela Cristela teve um filho dele, mas nunca lhe disse
enquanto a criança foi viva. Ele veio a saber por Delfina Gunther
já o rapaz tinha falecido há muito tempo e Paulo Deslandes nunca
perdoou ter-lhe ocultado o facto.
Marta Matos reentrou no salão, entregou um saco ao chinês e
outro ao inspector Novais. Enquanto enchiam os sacos Wang-Ho
soprou para dentro do seu e observou atentamente.
- A borracha queimada não aparenta provir de um pneu ou
outro artigo volumoso. Derretida, só o laboratório poderá ser
74
preciso quanto à sua origem, um saco de plástico igual a este pode
perfeitamente arder deixando um minúsculo resíduo.
Debruçando-se na lareira mexeu com a pá de ferro
removendo o conteúdo.
- Existem pedaços de lixo que ainda estão intactos mesmo
com temperaturas elevadas e bocados do jantar de ontem não se
queimaram devido aos molhos. Se o assassino deitou para a
lareira algo, não incorria na incúria de deixar que aquilo que
queria fazer desaparecer se achasse afastado das primeiras
chamas.
XII
professor Sócrates parou no meio da praia e baixou-se
para apanhar um pequeno búzio encavalitado sobre
uma pedra sem arestas transportada pelo riacho. Lentamente
levantou o molusco até à altura dos olhos, apertou suavemente a
concha obrigando o animal a sair da residência natural e a mexer
as patas dianteiras que terminavam em pinças.
O
75
- Prefiro percorrer o areal pela madrugada. O Sol parece
ensonado, sem força para queimar a areia, as gaivotas perdem a
timidez e inventam imaginárias corridas em que os prémios
apetecidos refugiam-se nas algas depositadas pelas ondas na
borda de água.
- O senhor é um romântico.
O inspector Novais, pouco habituado a saídas matinais,
deixara sair as palavras bocejando e aconchegando a gola do
casaco de malha ao pescoço, procurando evitar o vento agreste
que o incomodava. De soslaio o historiador olhou o polícia e
esfregou as mãos reactivando a circulação sanguínea.
- Prefiro considerar-me um solitário.
A baia vislumbrava-se nítida,
a neblina matinal levantara,
dando lugar a uma atmosfera
clara e brilhante. O astro-rei
presenteara os veraneantes
oferecendo uma estrada de prata
sobre o mar picado, como que as
estrelas do universo se reunissem
em congresso à tona de água.
- Continuam a investigar a morte de Delfina Gunther?
Wang-Ho, sentara-se numa rocha e fixou os olhos sonolentos
naquele homem magro, castigado pelo tempo, nariz fino e
abundantes rugas na pele enegrecida.
- Procuramos solucionar o caso de Delfina Gunther ou
desvendar a morte de Delfina Sócrates.
Florêncio Sócrates sentou-se na areia, com a palma da mão
desenhou uma linha na areia, esboçou um sorriso e encolheu os
ombros.
76
- Não me serve ocultar neste momento a verdade, portanto
devo começar com o casamento de Delfina Gunter com o meu
irmão. que na altura não reuniu vasto consenso na nossa família.
O meu irmão era mais velho do que ela cerca de trinta anos,
habituara-se a lutar com ardor pela vida, enriqueceu até reunir
uma fortuna considerável.
- Houve um casamento por interesse?
- A minha família nunca duvidou que Delfina Gunther (
Gunther era o seu nome de solteira ) apenas contraiu matrimónio
para fugir a uma vida degradante de penúria, o meu irmão
habituado a lidar com homens, não soube compreender as razões
e as intenções de uma
aventureira que lançava as
malhas de um pretenso amor.
- Essa união prejudicou a
família?
- Sim. Os meus pais
cortaram relações com o meu
irmão quando ele, de modos
agressivos, reagiu aos
conselhos que lhe davam. Eu perdi uma bolsa de estudo quando
ele me cortou a ajuda financeira obrigando a empregar-me num
escritório.
- Ela deixou o marido?
- Depois de lhe extorquir dinheiro, a morte violenta do meu
irmão deixou-a liberta de compromissos e apoiada numa
volumosa conta bancária. Pedro caiu de um décimo quinto andar,
a polícia depois de breves investigações encerrou o processo por
manifesta falta de provas.
77
O historiador recostou-se na areia, deitando-se por fim ao
comprido no areal e baixou o chapéu de palha para cima do rosto,
ocultando-o.
- Eis a história da minha vida. Descubriram o modo como
Delfina Gunther foi assassinada, desvendaram a ocasião, agora
têm a razão.
Ao pronunciar sarcástico a ultima frase o professor levantou
os braços de maneira a ficarem paralelos.
- Podem-me algemar.
O inspector Novais observava a reacção de Wang-Ho, porém
este inexpressivo olhava um pequeno pardal que ousara descer à
78
praia. Por fim pareceu acordar da letargia e levantou-se
rapidamente caminhando alguns passos até perto do professor.
- Sabe bem ouvir a verdade. Antes de lhe colocarmos as
algemas precisamos de descobrir se são a sua medida.
Deixando descair o braço esquerdo, o historiador colocou o
chapéu novamente na cabeça e deixou que o oriental lhe puxasse
o braço direito estendido para o ajudar a levantar-se.
- Podiam ter encerrado o caso.
Os dois amigos não responderam e começaram a caminhar
deixando para trás um
indivíduo a quem o destino
não acarinhara devidamente.
Não sem uma ponta de mágoa
observaram aquele homem
esquelético lançar uma
pequena cana tentando atingir
um grupo de gaivotas.
Florêncio Sócrates era
realmente um solitário.
79
XIII
ois velhotes de modos humildes abriram a porta da
casinha cuidada convidando o detective e o
companheiro a entrarem.
- A nossa filha Marta passou a noite connosco.
O inspector Novais observou os pratos típicos da região antes
de estabelecer um diálogo.
- Então a Sra. Marta Matos entrou na vossa casa às nove e um
quarto?
- Mais ou menos.
- Ela costuma passar as
folgas com os senhores?
- Sendo a nossa única
filha, ela costuma acompanhar-
nos o máximo possível.
A criada da estalagem
pouco habituada a
interrogatórios mexia as mãos,
nervosa.
- Eu discutia com a Sra. Delfina, mas nunca lhe desejei
nenhum mal.
Wang-Ho observava a rapariga forte, de cabelo castanho
apertado atrás por uma fita em “rabo-de-cavalo”, vestido
estampado e preso na cintura por um cinto vermelho.
- Qual as razões das discussões?
- Ela sempre dificultou o meu serviço criticando o modo
como eu realizava as minhas tarefas.
- Fazia queixas à sua patroa?
Pela primeira vez Marta Matos pareceu sorrir enquanto
abanava negativamente a cabeça com determinação.
D
80
- A minha patroa não gostava dela. Considerava-a uma
frustrada em vários aspectos na vida, excepto no financeiro.
Afianço-lhe que de todos os hóspedes, a Sra. Delfina Gunther era
a que pagava mais pela estadia e a que detinha menos regalias.
- Um convite para ela se ir embora?
- Convite que nunca aceitou. A razão não lhe sei dizer, talvez
poder gozar o convívio de pessoas de instrução superior ou
simplesmente morar durante um curto espaço de tempo num
pequeno palacete, imaginando uma vida de brasão que o seu
nascimento humilde jamais lhe
proporcionou.
- Compreendo perfeitamente.
A calma regressava à voz da
servente que se sentara numa
cadeira de madeira pintada de
verde e coberta com arabescos
brancos.
- As empregadas durante as
refeições ouvem conversas…
A moça interrompeu brusca a
frase do agente da Brigada de
Homicídios, sentindo o brio
profissional atingido.
- Nunca procuro ouvir as palavras dos hóspedes. Respeito a
privacidade de todos e de modo idêntico exijo que me respeitem e
ao meu trabalho.
Wang-Ho aproximou-se, afastou o inspector Novais e puxou
uma cadeira sentando-se em frente da moça.
- Eu não gosto de andar de automóvel. Um hóspede
informou-me que a camioneta de Alcantarilha a Faro demora
cerca de quarenta minutos. Será verdade?
81
Marta Matos encolheu os ombros, não pronunciou nenhuma
palavra, olhou para o relógio de pulso e aguardou que o oriental
prosseguisse.
- Investigamos um homicídio e como ambos trabalhamos da
mesma maneira, servindo os outros, algo me diz que devo confiar
em si.
As palavras do chinês resultaram em pleno e um sorriso
surgiu nos lábios de Marta Matos.
- O hóspede disse-lhe a verdade. A camioneta demora
realmente esse tempo a percorrer os dois locais
- Mudando de assunto. Costuma haver travessas de sopa nos
quartos dos hóspedes?
A moça soltou uma rizada e bateu amigavelmente na perna
de Wang-Ho.
- Sim. A patroa colocou sopeiras nos quartos dos clientes
sabendo da lenda e a impressão que a mesma causava nos
espíritos dos mesmos.
- Estranho procedimento.
- Não me parece. Quantos restaurantes apresentam, pregadas
nas paredes guitarras e xailes quando nunca o fado entrou dentro
dessas salas?
82
- Devo concordar consigo. As travessas servem para dar um
aconchego de fantasia ao ambiente, grande parte do tempo na
estadia dos hóspedes passam-no nos quartos e é tão importante
que essa concepção tanto desabroche na sala de jantar e no resto
da estalagem, como nos quartos austeros e aristocráticos do
palacete dos Gravata.
Nova rizada da criada soou antes de ela concordar com a
cabeça.
- A senhora, experiente nos negócios, procura não deixar que
o local se vulgarize, até os preços pouco acessíveis fazem parte
daquilo que os clientes procuram, selecciona aqueles que passam
pela recepção a fazer as
marcações.
- Nem todos devem
concordar com as novas
tarifas.
- Bem…
Marta hesitou antes de
continuar e baixou a voz, como
que receosa do que ia dizer a
seguir.
- Os novos aumentos não são iguais para todos. A Sra. Arlete
Seneca se gosta de uma pessoa procura ir de encontro às
possibilidades económicas do pretendente a um alojamento. Por
exemplo o caso do professor Sócrates por quem nutre especial
afecto, ele paga metade do que os outros hóspedes.
- Ah!
A exclamação de Wang-Ho encorajou Marta a continuar.
- Como calcula, a selecção dos hóspedes parte da própria
dona da estalagem.
- Nem mais. Ela pode ainda seleccionar de outra maneira.
83
A interlocutora observou confusa o chinês, que concluiu o
raciocínio.
- Se a Sra. Arlete não gostar de alguém pode também
procurar tornar a estadia incómoda. Resumindo o meu
pensamento, ela pode praticar preços baixos para conservar o
professor porque gosta dele, mas também pode praticar tarifas
atraentes a quem a possa livrar de terceiros indesejáveis. Como
principiou a trabalhar na estalagem?
- Os meus pais serviam de caseiros ao último membro da
família Gravata, um velhote bondoso, afável e doente, que em
testamento doou esta casa a um
sobrinho com a condição de ele os
manter ao seu serviço, como paga
da lealdade e amizade. Quando
morreu o idoso, esse familiar que
vive em Lisboa, cumpriu a
vontade do tio e procurou os meus
pais pedindo para continuarem a
guardar o palacete, porém a
minha mãe estava doente, sem
qualquer vínculo afectivo ao
herdeiro e recusou a oferta.
- Ele pensou então vender a mansão?
- Para obter a rentabilidade com o legado resolveu leiloar o
palacete mudando-o para a posse de uma habitante da terra.
- A Sra. Arlete Seneca?
- A minha patroa. Ao comprar o edifício, ela veio insistir com
os meus pais para trabalharem para ela, porém eles recusaram o
emprego, oferecendo no entanto os meus préstimos pois eu
acabara a instrução primária e necessitava de uma ocupação.
84
Dando por terminado o interrogatório os dois amigos
deixaram para trás aquela casa modesta e acolhedora cercada de
alfarrobeiras e laranjeiras. O Sol fazia caretas no meio de nuvens
esbranquiçadas e quietas no céu.
- Pouco adiantámos com esta conversa.
- A rapariga não mentiu e não me contrariou quando afirmei
que todos tinham razão de queixa da vítima.
- Procura o móbil do crime?
- O motivo parece-me óbvio, para alguns hóspedes, outros
tentam ocultar as razões que tornaram Delfina Gunther tão
impopular.
- O investigador da polícia de Faro pediu que todos os
suspeitos não se ausentassem para longe da estalagem.
- Uma resolução acertada, difícil de cumprir com o tempo.
- Devemos acelerar e prosseguir com as investigações. A
minha experiência demonstrou que quanto mais tempo passar,
mais difícil será a conclusão do processo.
As nuvens esbranquiçadas esvoaçavam no céu azul claro
deslocando-se para Sul e o chilrear dos pássaros era abruptamente
interrompido por pequenas filas de carro rodando na estrada
85
principal a caminho de Armação de Pêra. O Sol quente fazia com
que o suor prendesse os corpos às vestimentas.
XIV
piscina do Hotel Guadiana, um soberbo edifício de
dezoito andares colado à praia, apresentava-se repleta
de banhistas desejosos de bronzear as peles nuas. Os criados
destilando por todos os poros, sob os apertados fatos cinzentos e
imaculadas camisas brancas, dançavam as bandejas em zig-zag no
meio de uma profusão de corpos morenos e cor de lagosta.
Da piscina, em forma de meia-Lua, os turistas distinguiam
com nitidez uma vasta extensão da praia e a imensidão do oceano
recheado de wind-surfs cortando as pequenas ondas rendilhadas
que morriam na areia. Rodeados de americanos bem fornecidos
de carnes, nórdicos esguios de cabelos ondulantes como cearas de
trigo e latinos menos prudentes em mímica, o inspector Novais e
Wang-Ho, acompanhados de duas cervejas pousadas na mesa de
metal azul, palravam sobre a beleza serena da costa algarvia, tão
pródiga em Sol e mar, e acerca do recente caso da estalagem. O
agente da Brigada de Homicídios cruzou as mãos sobre o
estômago e esticou uma perna de forma a alcançar o varão da
divisória da esplanada para a piscina.
A
86
- A conversa com Marta Matos pouco esclareceu a não ser
que, restam poucas dúvidas de que todos os hóspedes possuíam
razões de queixa da falecida sendo ela uma pessoa indesejada na
estalagem.
Wang-Ho mantinha-se em silêncio, deixando a aragem bater-
lhe no rosto. O inspector Novais insistiu no raciocínio.
- Penso que a permanência de alguns clientes relacionava-se
com a estadia dela.
- Concordo com uma relação desse tipo e contra a vontade da
Sra. Arlete Seneca que a queria ver pelas costas o mais breve
possível. A proprietária do palacete é uma pessoa determinada,
realista, a compra do imóvel e a sua gestão
comprova-o, ela reconheceu que o legado
do marido podia ser insuficiente para uma
vida desafogada para sempre e não hesitou
na compra do edifício.
- Tem razão.
- Uma mulher que dá tal importância
ao dinheiro pouco se compadeceria com
um cliente como o professor de meios
económicos débeis sabendo que de certeza
arranjaria outro cliente para ocupar o seu lugar com recursos
financeiros superiores a ele.
- O que quer dizer com isso.
- Eles têm uma relação muito próxima
- Acredita que todos os hóspedes se envolveram no crime?
- Não, por várias razões.
- Quais?
- Responda-me às seguintes perguntas. Se arquitectassem um
plano em grupo, quais os pontos a tomar em atenção?
87
- Primeiro ponto a ter em atenção seria a ocasião. Talvez
pensassem em construir uma oportunidade em que todos munidos
de álibi supostamente intocáveis ceifassem a vida daquela que os
prejudicou de uma maneira ou de outra.
- Certo. Um dado muito importante para o apuramento da
verdade. Não existe uma relação de equilíbrio nos álibis,
analisando em retrospectiva os acontecimentos o Sr. Brown
arranja um álibi de peso, bebendo descansado um café connosco,
e a Sra. Gizela Cristela é por nós testemunhada a sair do cinema
na altura do crime.
- Sim, penso que não restam
dúvidas.
- Confirmei que Paulo
Deslandes esteve efectivamente a
falar com um funcionário da feira.
Para além disso, Paulo Deslandes
é coxo e usa bengala, sabemos
que o nosso amigo assassino ou
assassina correu pelas escadas
abaixo segundo a versão da Sra.
Acácia Mina.
- Efectivamente.
- A criada Marta Matos
estava de folga.
- O professor Sócrates tem o álibi da camioneta e na noite do
crime o motorista da camioneta lembra-se dele, por ter sido o
único passageiro do trajecto. Mesmo que não tivesse esse
testemunho, ele não possuía automóvel e a sua entrada na
estalagem seria notada.
88
- Nesse caso o crime só pode ter sido cometido ou por Arlete
Seneca, o casal Blanchi ou Acácia Mina. Devemos lembrar-nos
de que a dona da estalagem possui motivos para o homicídio.
- Também os outros. Ela talvez seja a única a saber que todos
os outros possuem razões para um crime e subitamente é a
principal suspeita ou talvez não.
- Não estou a entender.
- A razão só pode ser uma, não era ela que controlava os
acontecimentos. O casal Blanchi confessou ter ouvido um
segundo toque da campainha depois de ela ter levado o café.
Neste momento não sabemos se quem fez essa segunda chamada
foi a vítima, ou seja a Sra. Delfina que procurava auxílio ou se foi
outra pessoa a tocar.
O polícia endireitou-se na cadeira de ferro, não desprendendo
os olhos numa moça de bikini reduzido, que conversava animada
89
com o companheiro de barba ruiva e óculos minúsculos entretido
a dar voltas a um maço de tabaco.
- Nesse caso, a Sra. Delfina Gunther procurava que a Sra.
Arlete Seneca a ajudasse depois de ter sido ferida?
- Julgo que sim. Não sabemos.
- Ontem lembrei-me que o assassino poderia ter entrado na
estalagem durante o jantar, dirigir-se para o quarto e aguardar que
a Sra, Delfina se recolhesse aos aposentos.
- E porque não aproveitou a primeira ida da vítima para o
quarto? Durante o jantar ela
recolheu ao quarto após
discussão com a dona da
estalagem e regressou
momentos mais tarde. Se fosse
alguém de fora entraria
despercebido durante o jantar e
certamente aproveitaria a
oportunidade para sair, sem as
dificuldades que se lhe
deparariam mais tarde.
O inspector Novais puxou
de um cigarro, bateu com a
ponta na mesa e riscou um
fósforo para o acender.
- Esqueci-me desse pormenor.
- A segunda razão para não pensar num crime colectivo
relaciona-se com a oportunidade não ter sido forçada. Ninguém
sabia que nós estaríamos ausentes num café, o criminoso jogou
nessa noite, independentemente dos planos dos outros ou talvez
esperasse que tudo corresse de modo usual.
- Explique aonde quer chegar.
90
- As noites passam ao ritmo da batuta de uma rotina.
Normalmente a Sra. Arlete Seneca refugia-se na recepção, o casal
Blanchi gosta de ir para a salinha da televisão, a Sra. Acácia Mina
adormece frequentemente de frente ao televisor e os outros
hóspedes gostam de sair depois de jantar.
- O assassino ou assassina apercebeu-se dos hábitos e jogou
com eles para planear o crime.
- Perfeito.
- A oportunidade não foi criada, ela decorria da própria rotina
diária do lugar.
- Nem mais. A terceira razão
para a inexistência de um crime
colectivo prende-se com o facto de
haver falhas flagrantes na
concepção do plano, o pormenor
da corda demonstra que quem o
concebeu deu pouco relevo às
particularidades. A um número
razoável de estrategas do crime
não passaria despercebido o facto
de que a cama se deslocaria
quando alguém se pendurasse na
corda, se a razão da mesma era fingir ser a via de entrada ou fuga
do homicida.
- Parece inclinar-se que o assassino pode ser um dos
elementos do casal Blanchi ou Acácia Mina. Eles são testemunhas
uns dos outros. Quem está a mentir?
- Pode nenhum deles estar a mentir de forma deliberada.
O chinês respondeu e o inspector Novais chamou o criado e
pagou a despesa. Acompanhado de Wang-Ho saíram da esplanada
91
e caminharam pelo passeio apinhado de veraneantes em direcção
ao carro estacionado no parque à sombra de uma palmeira.
XV
salão perdera a disposição habitual. As mesas
afastadas no centro da sala, e as cadeiras enfileiradas
surpreenderam os hóspedes pouco acostumados a alterações
impostas à rotina diária da estalajadeira. Por sobre a lareira uma
jarra contendo rosas de Santa
Teresinha exalava um agradável
aroma, antagónico ao hediondo
cheiro a borracha queimada da
véspera.
O oriental dando alguns passos encarou a assistência
silenciosa pousando um envelope sobre um banco alto
previamente, colocado ao seu lado.
- A razão da vossa presença nesta reunião serve para dar a
conhecer a identidade do assassino ou assassina da Sra. Delfina
Gunther.
Um murmúrio de vozes elevou-se e o asiático ergueu a mão
direita para emudecer os presentes.
O
92
- Em primeiro lugar refiro que recebi o relatório dos produtos
achados na lareira e posteriormente analisados em laboratório.
Reforçaram a minha suspeita de como o homicídio se passou e
agora irei explicar os acontecimentos depois de vos narrar os
resultados de uma pequena experiência.
A estalajadeira deu uma breve indicação para a criada Marta
Matos abrir as janelas, o calor voltara e o fumo de tabaco teimava
em não deixar a atmosfera, mas nada disso impediu o chinês de
continuar a falar.
- Durante a tarde pedi ao Dr.
Eurico Blanchi, Sras. Lucy
Blanchi e Arlete Seneca para
voltarem ao quarto, pois eu iria
disparar três tiros e queria
confirmar se ouviam.
Todos seguiam atentamente a
explicação de Wang-Ho.
- Eles afiançaram terem
ouvido perfeitamente os três
disparos.
Novo sussurro de vozes e o
orador novamente teve de se
impor para se poder escutar.
- Por outro lado confirmei alguns álibis. Assim sendo, a Sra.
Gisela Cristela e o Sr. Brown foram vistos ou estavam comigo na
altura do homicídio. Para os Srs. Florêncio Sócrates e Paulo
Deslandes recolhi inúmeros testemunhos de pessoas que viajaram
na camioneta e visitaram a feira assinalando os seus passos e a
Sra. Marta Matos ofereceu-me o grande trunfo quando apagou a
lareira.
93
A tensão baixou nos hóspedes mencionados, sendo isso
visível pelos gestos mais largos e ousados que passaram a
mostrar. As feições também aparentaram não estar tão carregadas.
- Qual ou quais dos restantes quatro poderiam ter cometido o
homicídio era a minha grande interrogação. A primeira questão a
dever responder era quem esperava Delfina Gunter nessa noite? A
resposta está no perfil dessa pessoa, seria alguém que ela muito
estimava, chegando ao ponto de a convidar para ir passar o serão
ao quarto e lhe oferecer café.
Unânimes, todos os olhares se dirigiram para Acácia Mina
que não demonstrou qualquer emoção ao sentir a acusação. Lucy
Blanchi protestou ao sentir a amiga alvo de miradas.
- Impossível. Ela estava à nossa frente.
Wang-Ho ignorou a observação da antiga enfermeira e
continuou impávido.
- Também podia ser a Sra. Arlete Seneca, mas nesse caso
quem tocou a segunda vez a campainha? Só podia ser o assassino
94
procurando uma oportunidade para fugir retirando-a da recepção
ou então a Sra. Delfina Gunther procurando auxílio. Ora o Dr.
Blanchi confirmou que quando subiu e viu a Sra. Delfina, ela já
estaria morta há alguns minutos, logo nunca poderia ser a Sra.
Arlete Seneca pois estava na recepção e viram-na subir após o
segundo toque da campainha.
O oriental deu alguns passos e de pé olhou em redor.
- Estranhei o facto da Sra. Acácia Mina ter adormecido com a
luz apagada e o crochet ao colo. Por que razão iria tricotar às
escuras ou apenas com a luminosidade do ecrã da tv?
O inspector Novais colocou tabaco no pipo do cachimbo, mas
não o acendeu e interrompeu o
amigo.
- Continuo sem entender.
Se a Sra. Acácia Mina deixasse
a luz da sala acesa já não seria
suspeita?
- Ela não podia ter as luzes
acesas, para o casal Blanchi
não reparar que a pretensa Sra.
Acácia Mina não passava de um boneco com feições em gesso e o
corpo materializado em balões.
Palavras de surpresa varreram a sala e foram necessários
alguns segundos para a calma regressar ao salão.
- Devo reconstruir o crime. Ao sair da sala de jantar a Sra.
Acácia Mina dirigiu-se para a salinha de televisão aonde
calmamente esteve, mesmo depois do casal Blanchi ter entrado e
aguardou a oportunidade para matar Delfina Gunther.
- Entretanto todos os outros saíram, nós e o Sr. Brown para o
café, a Sra. Gisela Gristela para o cinema e os Srs. Florêncio
Sócrates e Paulo Deslandes para a feira.
95
- Sim, inspector Novais. Mais tarde o casal Blanchi subiu,
para a Sra. Lucy tomar o remédio, e a Sra. Arlete Seneca foi lavar
a louça tendo em conta que a Sra Marta Matos estava de folga.
- Foi nessa altura que colocou os balões e uma mascara de
gesso na cadeira aonde se sentava?
- Aproveitou também a oportunidade em que estava sozinha
para subir, atar a corda à cama e depois foi ter com a Sra. Delfina
Gunter que mais tarde pediu dois cafés.
- Nessa altura já o casal Blanchi descera e julgou que o
boneco era a Sra. Acácia Mina. Por isso eles confirmam terem
ouvido o primeiro toque da
campainha.
- Com pouca luminosidade
não conseguiam distinguir com
clareza o rosto de quem estava à
sua frente na salinha.
Lucy Blanchi colocou as mãos
no rosto e encostou a cabeça no
ombro do marido. Gisela Cristela
olhava o chinês e enrolava os
dedos nervosos na pega da mala e
o historiador não deixava de limpar
os óculos com um pequeno pano amarelo de feltro.
Só a criminosa olhava para a parede com um olhar distante
como a recordar os instantes fatídicos.
- Depois do crime, a Sra. Acácia Mina tocou a campainha,
sendo o segundo toque que os presentes ouviram, saiu do quarto
aonde se desenrolara o crime para o outro aonde deixara a corda
atada à cama e aguardou. Quando a Sra. Arlete Seneca viu o
corpo da defunta gritou pelo casal Blanchi e quando estavam
todos no quarto, ela aproveitou a ocasião de confusão, para descer
96
as escadas e voltar para a salinha e desfazer-se do boneco
habilmente feito com mascara de gesso e balões.
- E os tiros?
- Não foram tiros que ouviram, mas o rebentar dos balões o
que os três escutaram quando estavam no quarto da Sra. Delfina
Gunther. Eu esta tarde comprovei quando fiz estourar também
três balões que comprei aqui na rua ao lado da estalagem e eles
novamente confirmaram terem entendido serem tiros. Não
ouviram disparos, apenas o rebentar dos balões.
- Então a borracha carbonizada na lareira era dos balões e o
gesso não passava de pedaços da mascara?
- Sim.
- Mas, antes de fazer o boneco aonde
estavam a mascara e os balões?
- Na cestinha do tricot, os balões
estavam vazios e não ocupavam espaço.
Depois colocou dois na manga do roupão e
outro a servir de corpo. Enrolou um lenço
na mascara e assim não notavam a
ausência do cabelo. Foi igualmente
ingénua querendo transparecer que o
assassino queria descer por uma corda.
Um sorriso triste floria nos lábios da homicida enquanto
escutava o relato do chinês.
- Uma história inventada de um pretenso assassino descendo
as escadas aos tiros daria mais força e verosimilhança ao crime.
Numa análise efectuada pelo pessoal do laboratório ao cesto de
crochet foram descobertos vestígios de gesso, e na lareira
assinalaram a presença do mesmo gesso e partículas de produtos
sintéticos.
- Qual a razão do homicídio?
97
A pergunta do inspector Novais dirigia-se agora a Acácia
Mina que parecia alheia a tudo como se apenas fosse mera
espectadora em todo aquele enredo. Os olhos voltaram-se para o
detective e a sua voz não traia qualquer emoção.
- Durante a minha estadia verifiquei que todos possuíam
razões de queixa daquela mulher que de uma forma ou outra a
todos prejudicara. Não podia deixar sem punição alguém que
lesara tantas vidas, eu sentia a aproximação de um crime e sabia
que novo dano e uma condenação, seria o destino do mais ousado.
Os próximos anos não os irei passar na vossa companhia, sei
todavia que me recordarão como a
justiceira do palácio dos Gravata.
A sirene do carro da polícia
estacionou à porta do edifício e dois
agentes corpulentos penetraram no
salão. Lentamente, com altivez, de
cabeça levantada, Acácia Mina
dirigiu-se para eles desaparecendo
fisicamente do salão, sob o olhar e o
silêncio dos presentes.
O inspector Novais observou os
rostos de todos os que haviam
assistido à reunião e por ironia do destino concluiu que as
expressões estavam naquele momento mais carregadas que na
noite do crime. Sentia que a assassina por todos era amada, que as
suas palavras haviam deixado sementes e porque não dizer,
continuava a simpatizar com aquela mulher. Sentia estar louco ao
manifestar tais pensamentos.
FIM
101
I
ar quente e poeirento obrigou mister Albert Tonsom a
tossir ao ponto das lágrimas lhe percorrerem as faces
enrugadas pela idade. A sala permanecia como havia sido deixada
há milénios atrás pelos helénicos de Delphos, no coração de uma
zona rústica e árida da Grécia,
O americano limpou as faces à manga do casaco coçado pelo
uso, sacudiu o pó do chapéu de caqui, apertou com a mão direita a
pesada estatueta contra o corpo e começou a escalar por cima da
terra procurando a saída por onde entrara.
Finalmente sentiu o odor do campo e o Sol quente a queimar-
lhe a pele seca e descuidada mas
não se importou preparando-se
para montar o burrinho alugado
aos aldeãos.
Soprando na estatueta para
afastar o pó e sem a largar, o
arqueólogo prendeu melhor uma
pedra, coberta de inscrições em
grego arcaico no dorso do jumento, não se deixando seduzir pela
beleza agreste dos penhascos das Phaedríades.
II
isboa acordou ensolarada e sem nuvens como acontece
normalmente no mês de Julho. Nas ruas apinhadas de
pessoas ansiosas de chegarem às lojas e bancos, ouviam-se
pregões e o barulho dos motores escapulindo os gases que a
atmosfera generosamente recolhia.
O
L
102
Numa esplanada no Parque Eduardo VII três homens bebiam
cerveja e discutiam um assunto de crucial importância,
responsável por muitas vidas.
- Wang-Ho, apresento-lhe o Sr. Laurito, da Interpol.
O oriental murmurou uma apresentação e observou o homem
baixo e calvo à sua frente, que com um lenço limpava o suor que
lhe escorria no rosto.
- O Sr. Laurito é paulista, natural do Brasil, e procura em
Portugal pistas que conduzam à solução de um caso de
características muito especiais.
O agente da Interpol concordou com a cabeça e interrompeu
o inspector Novais, que de
camisa de mangas curtas, não
dispensara naquela ocasião a
gravata.
- Um caso bastante
invulgar, como terá
oportunidade de verificar.
O Sr. Laurito mostrou um
jornal aos dois homens e
continuou a falar.
- Há um mês uma senhora viúva que residia com a filha de 12
anos em Paris, foi assassinada por quatro cães no seu
apartamento. Nessa altura a criança desapareceu e tudo leva a crer
na possibilidade de um rapto.
- Ninguém descobriu quem raptou a adolescente?
- Não. Investigações posteriores não aclararam o caso e
apenas nos surgiu uma pequena pista.
- A qual se refere Sr. Laurito?
- Um pequeno papel colocado dentro do bolso do cadáver
com uma inscrição sem qualquer nexo, pois nele encontrava-se
103
escrito “ O que os séculos afastaram será unido pela eternidade”.
Por baixo estava manuscrito “Profetas de Apolo”
- Sabe-me dizer o significado dessas palavras?
- Infelizmente não sei, inspector Novais.
- Realmente muito estranho.
O agente da Interpol observou as feições dos companheiros e
bebeu um golo de cerveja antes de continuar.
- Porém estes estranhos acontecimentos não terminaram. Um
crime recente surgiu e tudo leva a crer tratar-se da mesma cabeça
diabólica a autora do novo assassínio. A semana passada mister
Albert Tonsom, conhecido arqueólogo norte-americano morreu
em condições dramáticas na Grécia após haver descoberto aquilo
que o levara lá. O seu corpo apareceu num atalho e a sua morte
parece algo de sobrenatural, porquanto o cadáver apresenta muitas
células danificadas. Apenas algumas se mantiveram intactas.
-Descobriram o que lhe causou a morte?
104
-Não sabemos. O que atingiu mister Tonsom, feriu todo o seu
corpo com excepção das células protegidas por uma estátua.
Debaixo do cadáver, encontrámos os mesmos escritos “ O que os
séculos afastaram será unido pela eternidade”.
Por momentos ninguém se pronunciou, dando oportunidade
ao agente internacional de abrir o jornal na sua posse e começar a
folheá-lo.
- Para complicar este caso vou ler-vos um artigo escrito por
um repórter local depois de ter ocorrido o homicídio. “Habitantes
da zona das Phaedriades afirmaram sob juramento, que um
gigante percorreu o campo no dia do
assassínio do arqueólogo Albert
Tonsom, acreditando que ele saiu de
uma gruta libertado pelo americano
aonde se encontrava preso desde o
princípio dos tempos”.
Um sorriso aflorou nos lábios do
inspector Novais.
- Então temos um gigante preso
numa gruta há milénios? Cheira-me a
especulação.
- Pelos numerosos testemunhos
existentes garanto que nos merece toda a credibilidade a
existência desse homem de estatura elevada.
O oriental que se mantivera calado durante toda a discussão
pronunciou-se pela primeira vez.
- A mitologia helénica anda à volta de uma luta implacável
entre os “deuses” e os “gigantes”.
- Sim. Os deuses gregos no monte Olimpo guerreiam há
milénios com os gigantes apostados em vencê-los.
105
O agente da Brigada de Homicídios da Policia Judiciária de
Lisboa interrompeu o colega.
- Porque veio a Lisboa?
- Já lá vamos. Como disse, junto ao corpo do infeliz
arqueólogo havia um papel com as mesmas palavras descobertas,
quando do assassinato da senhora francesa, num dos bolsos de
mister Tonsom também foi encontrado o nome de uma
organização num papel dobrado.
- Como se chama a associação?
- Os Profetas de Apolo. Eles depositaram um cheque de
vários milhares de euros na conta do
arqueólogo.
- O sacador do cheque era esse
grupo?
- Sim, Tudo indica terem
contratado Mr. Tonsom para ele
descobrir a estatueta.
- Nunca ouvi falar nos Profetas
de Apolo.
- Segundo os nossos ficheiros
essa seita possui o seu quartel-general
numa vila costeira no Sul de
Portugal. Como falo português encarregaram-me de solucionar o
caso ou sozinho ou contratando terceiros.
- Considero muito estranho, deixarem-se desmascarar de
forma tão ingénua, deixando o papel no bolso do arqueólogo que
é uma pista que conduz à organização.
O agente da Interpol limpou as intermináveis gotas de água
que lhe escorriam pelas bochechas vermelhas pela elevada
temperatura.
106
- O calor no vosso país é mais seco, estou habituado a estas
temperaturas porém, em São Paulo existe maior humidade. Não
me parecem muito ingénuos pois nunca detivemos nenhum
membro, apenas sabemos da sua existência pelas grandes quantias
que movimentam.
- Admira-me a “Policia Judiciária” francesa não possuir
dados sobre os assassinos, tendo em conta que houve um crime
também em França.
- A “Sureté” desconfia que os assassinos seriam estrangeiros
sem quaisquer ligações com o submundo do crime gaulês,
porquanto nenhum delator os
conhece. Depois de contactos
intensos junto a pensões e
albergues, nada de suspeito digno
de nota transpirou e por
conseguinte, foi impossível usar o
ficheiro central aonde se
aglomeram todos os dossiers dos
actuais criminosos.
- Entendo, assim é
complicado arranjar pistas.
- Para dificultar as tentativas
de identificação dos assassinos o crime deu-se em Paris, uma
grande urbe que não beneficia em nada a polícia francesa. Na
província os novos rostos que se deslocam aos cafés,
supermercados e barbearias são prontamente assinalados e
reconhecidos,
- Certamente a seita deposita o dinheiro num banco e não será
nenhum fantasma a colocá-lo,
- O grosso do dinheiro encontra-se depositado na Union des
Banques Suisses em Zurique, na Suiça. Apenas pelos avisos dos
107
depósitos sabemos que a organização tem uma importante
ramificação em Portugal, podendo mesmo ter a sede aqui no
vosso país. Infelizmente toda a correspondência é remetida para
um apartado e nunca ninguém levantou os memorandos dos
depósitos e extractos.
- Muito bem. Qual o nosso papel no presente caso?
- Eu sou brasileiro e tenho sotaque, ser-me-ia difícil
investigar despercebido o caso em Portugal, mais a mais não
conheço os vossos costumes e recursos. Serão os senhores a
recolher todas as informações úteis para a investigação.
O brasileiro pagou a conta e os três homens, levantaram-se da
mesa e desceram o parque em direcção à Rotunda.
- Meus senhores, logo que possua mais informações sobre a
organização, dir-vos-ei.
III
odo o interesse do inspector Novais e de Wang-Ho
concentrava-se no pedaço de papel que o agente da
Brigada de Homicídios segurava com a mão, ignorando por
T
108
completo a camioneta carregada de areia que três operários
descarregavam penosamente para a estrada. Em tom de
confidência o polícia começou a falar
- O Sr. Laurito disse-nos posteriormente à nossa conversa
com ele, que o Dr. Baptista será o “patrão” da temível seita “Os
Profetas de Apolo”. Já temos os dados possíveis fornecidos pela
Interpol.
- Ninguém nos garante que os assassinos estivessem ou
permaneçam em Portugal.
- Temos de arriscar.
- Os memorandos da Union des
Banques Suisses podem vir para
Portugal e a organização estar
radicada no estrangeiro.
- Claro. Em conversa com um
membro da Interpol, foi dito ao Sr.
Laurito que a seita tem o seu cérebro
em Portugal, isto ainda antes dos
crimes hediondos de França e Grécia.
No entanto essa informação já foi
fornecida há vários anos.
- Tem algum plano, inspector?
- Pensei em tentarmos uma infiltração na associação que
parece em expansão e deseja admitir um caseiro e um cozinheiro.
- Excelente ideia.
- Não me sinto tão optimista com a minha ideia.
- Realizam-se cursos intensivos de jardinagem e cultura em
vários locais.
O agente franziu o sobrolho decepcionado, porém
conformado meteu o papel no bolso das calças.
109
- Penso que estamos a ser observados, finja que não se
apercebe e comece a andar.
Tranquilamente os dois homens saíram do local e
misturaram-se com a multidão junto ao cais.
- Wang-Ho, pode responder ao anúncio oferecendo-se para
cozinheiro e referir na entrevista que lhe fizerem, que tem um
amigo caseiro de profissão, mas que neste momento se encontra
ausente. Assim, dar-me-á tempo para melhor me preparar, do que
se me apresentar agora. Não vou requerer o lugar sem
conhecimento das tarefas que irei desempenhar.
- Aonde se desenvolvem as
actividades do grupo?
- Perto do porto de Sines.
- Amanhã irei contactá-los.
O inspector olhou para o relógio
e despediu-se do companheiro.
- Boa sorte, Wang-Ho. Bem
precisa.
IV
e óculos na ponta do nariz, o Dr. Baptista Neves
observava atentamente o oriental que tinha à sua frente
- Admira-me que uma pessoa com um curriculum invejável
como o do senhor, se disponha a vir trabalhar para uma região tão
afastada dos grandes centros populacionais.
- Infelizmente o médico recomendou-me ir para uma zona de
ar puro e sossegada. Junto o útil ao agradável, pois obedeço ao
médico e ganho dinheiro pois já verifiquei que a remuneração é
razoável.
D
110
O Dr. Baptista envergando uma bata branca, pousou a carta
com as referências de Wang-Ho em cima da mesa e levantou-se
da cadeira aonde se sentara.
- Bem, admito-o. Temos regras muito rígidas aqui em casa.
Gosta de animais?
- Bastante.
- Tenho quatro cães. São de raça e já foram a França, a uma
exposição internacional, mas não ganharam qualquer prémio
apesar de serem muito bonitos e terem “pedigree”. Preciso que os
alimente, pois até ao momento, essa tarefa tem pertencido
exclusivamente ao seu futuro ajudante.
- O senhor é quem manda. Eu apenas pretendo cumprir as
minhas funções o melhor que sei e receber regularmente o meu
ordenado.
O dono da casa encaminhou-se para uma porta da sala
convidando o chinês a segui-lo.
- Vou mostrar os seus aposentos, a cozinha, a casa de jantar e
mais tarde mostro o resto da casa. Apenas o meu gabinete lhe está
interdito e sempre fechado à chave, é lá que estou quando me
encontro em casa o que é raro, pois passo sempre o tempo em
investigação e em consultas.
111
- Não sou curioso.
- Uma grande virtude para quem deseja uma longa
permanência nesta casa. Poderá sair todos os fins-de-semana ou
mesmo durante os dias úteis, quando tiver tempos livres das suas
funções.
- E os cães?
- Quando se ausentar continuam ao cuidado do Carlos, seu
ajudante como sucede há muito tempo. Não mordem e além disso
permanecem fechados durante o dia, perto da cozinha, numa sala
que lhe indicarei. Conforme o estipulado o senhor passa a ganhar
o ordenado referido no anúncio do jornal, mas com o tempo
iremos actualizando a sua
remuneração.
- Agrada-me.
- Óptimo. Apenas
haverá mais serviço quando
aqui vêm uns cientistas meus
amigos, uma ou outra vez
por mês. Também costumam
vir aqui uns amigos do
Carlos.
- Está também interessado num caseiro, não é verdade?
O Dr. Baptista estancou o passo e olhou curioso para Wang-
Ho.
- Porque pergunta?
- Um meu amigo vindo de Moçambique e com inúmeras
dificuldades financeiras certamente apreciaria esse emprego.
- Falaremos nisso depois.
- Infelizmente ele é um pouco surdo e, aliado ao facto de não
ser novo, irá certamente ter bastante dificuldade em arranjar um
bom emprego aqui em Portugal. Trata-se de um grande
112
profissional, muito dedicado e já foi caseiro durante anos numa
herdade. Um homem válido que adora cães e certamente ficaria
muito feliz a trabalhar nesta casa.
- Pois bem chame-o, pois devemos auxiliar as pessoas que
gostam de trabalhar. Vamos ver o que poderemos fazer por ele.
O quarto de Wang-Ho porquanto modesto era asseado e não
faltava nada do essencial à vida quotidiana. O Dr. Baptista Neves
deu passagem ao chinês para ele olhar à vontade a sala e ver os
novos aposentos do cozinheiro, retirando-se com pequenos
passos, pois ouvira o telefone tocar no seu gabinete, porém ainda
teve tempo de recomendar
- O jantar é sempre
servido às 20 horas!
Satisfeito com a
admissão, Wang-Ho
começou a arrumar o
vestuário que vinha dentro
da mala.
- Dá-me licença?
Um indivíduo alto e
espadaúdo entrava no quarto
sem aguardar a resposta.
- Chamo-me Carlos Diar e sou o seu ajudante.
- Muito prazer, eu sou Wang-Ho. Como costuma passar o seu
tempo por aqui?
- Gosto muito de nadar e praticar desporto.
- Trago comigo um xadrês. Aprecia o jogo?
O gigante fez uma careta e respondeu negativamente.
- Nem por isso.
- Sei que tem amigos,…
113
- Apenas o Dr. Baptista, contudo ele nunca me dá atenção a
não ser quando precisa de mim.
Wang-Ho pareceu
surpreendido com as palavras
de Carlos Diar.
- Não será uma impressão?
- Talvez. Ele foi muito bom
para mim quando estive doente.
- Essa cicatriz na cabeça?
A que se deve?
- Caí de uma cadeira quando era pequeno.
- Já vive com o doutor há muito tempo?
- Há uns anos. O Dr. Baptista Neves tem-me tratado muito
bem desde que cheguei.
- Se formos bons amigos poderemos praticar desportos os
dois.
Um sorriso assomou aos lábios do gigante que satisfeito
apertou a mão do oriental enquanto se despedia.
Monte Gordo – É uma
cidade situada na costa Sul
de Portugal (Algarve).
114
V
er um pouco antes de adormecer consistia num dos
passatempos preferidos de Wang-Ho. O livro não fora
escolhido por acaso e a página procurada com paciência apareceu
aos olhos do investigador.
- “Claude Bernard injectou-se a si próprio com um triturado
de testículos de animais. Com esta experiência abriu-se a fronteira
da endocrinologia”.
O chinês aconchegou-se na cama antes de continuar a leitura.
“As glândulas endócrinas são segregadas a partir da hipófise
mais concretamente do seu
lobo anterior. A hipófise
situada na base do crânio e
ligada ao cérebro é
responsável pelas hormonas
estimulinas que controlam a
actividade da tiróide, das
glândulas genitais, das
glândulas cortico-supra-
renais e da hormona de
crescimento”.
Wang-Ho fechou o livro, calçou as pantufas e dirigiu-se para
a janela a apreciar a bela noite de luar. Uma orquestra de grilos e
cigarras afinavam os “instrumentos” para o sarau nocturno.
Subitamente o ladrar dos cães, sinal de alguém a rondar o
quarto obrigou o chinês a apagar a luz e a ficar de vigia.
O silêncio voltou a reinar naquele campo ermo acabando o
chinês por se deitar em seguida. Um murmúrio saiu-lhe de forma
inconsciente da boca.
- Talvez se volte o feitiço contra o feiticeiro.
L
115
VI
admissão do inspector Novais como caseiro da casa do
Dr. Baptista Neves tornou-se uma realidade um mês
depois da entrada de Wang-Ho para o serviço de cozinha. Os dois
amigos durante uma semana pouco falaram um com o outro. A
oportunidade chegou quando ao regressarem da praia, Carlos e o
chinês encontraram o inspector Novais a semear cenouras.
O oriental ao notar qual o tipo de cultura a que o amigo se
dedicava, naquela altura do ano, deixou escapar um suspiro
amargo, contudo disfarçou.
- Viva Novais, que bom ter
arranjado o emprego de caseiro.
- Sim Wang-Ho, estou a
plantar cenouras. O Dr. Baptista
nem me pediu referências, disse
que confiava em absoluto em si
e logo de imediato deu-me o
emprego
- Já reparei que está a
plantar cenouras. Tem de mudar de cultura nesta época.
- Estou a compreender, não é a altura própria, bem depois
vou ver quando as devo cultivar. Ainda estou acostumado às
estações do hemisfério sul, como sabe estive muitos anos em
Moçambique.
- Claro, que sim, por isso o lapso. A praia estava óptima e o
Sr. Carlos sabe nadar lindamente.
O gigante sorriu satisfeito, perante o elogio do amigo.
Raramente durante a vida fora enaltecido.
- Hoje o meu telemóvel desapareceu-me, por azar o Dr.
Baptista teve de sair esta manhã depois de falarmos os dois, e
A
116
esqueci-me de lhe pedir para me comprar um. Ele raramente sai
de casa passando o tempo entre o gabinete dele e o quarto.
- Que aborrecido, o meu também não funciona pois está sem
linha. Viu a foto da minha sobrinha de Moçambique? Deixei-a no
seu quarto.
- É linda, mas também não me lembro depois aonde a deixei,
ando muito esquecido. Inspector Novais tenho de ir andando pois
hoje temos visitas.
O detective entendeu o sinal do amigo e começou a recolher
o sacho e os demais utensílios utilizados até ao momento. Com
um aceno despediu-se dos dois.
- Um bom resto de tarde também para si
Wang-Ho e Carlos Diar recomeçaram a andar tranquilamente
sentindo os raios de Sol poente nos olhos.
VII
s árvores fronteiriças à casa do Dr. Baptista Neves,
ofereciam um óptimo refúgio ao agente da Brigada de
Homicídios, que assim podia calmamente espreitar pela janela
semi-aberta, os acontecimentos que decorriam numa sala sem
A
117
mobiliário e iluminada por dezenas de velas. Uma vintena de
pessoas sentadas em almofadas e vestidas como os antigos gregos
ouviam um homenzinho franzino, que se expressava em voz
roufenha.
- Gloriosos amigos dotados de presenciarem uma sessão
milenariamente adormecida, mas não esquecida. Hoje assistirão
longe da vossa terra ao renascer do poderio de Apolo. Têmis,
devidamente preparada, sentar-se-á na trípode e pronunciará os
seus oráculos.
Uma adolescente esbelta entrou na sala escurecida perante os
olhares temerosos dos assistentes. A pitonisa descalça e coberta
por uma túnica, de tecido
semi-transparente, acercou-se
de um recipiente de onde se
evaporava um gás acre.
Durante breves minutos
exalou o fumo em silêncio,
por fim pronunciou-se em voz
gutural.
- Na penumbra o supremo
vencerá o ousado, ao amanhecer o incrédulo desmascarará os
tiranos e Apolo será louvado.
As palavras da pitonisa não produziram qualquer reacção na
assistência, contudo a voz de um homem nas costas do inspector
Novais originaram-lhe um calafrio.
- As mãozinhas bem no alto. Penso que não seja o local e as
horas mais convenientes de praticar jardinagem e semear
cenouras.
O rosto de Carlos Diar apesar de sorridente, traía a maldade
ao ser banhado pelo luar. Indiferente à expressão de espanto do
118
agente da Brigada de Homicídios o gigante continuou a falar de
modo trocista.
- Uma surpresa desagradável? Estaria muito melhor lá
dentro…
- Pensei que o Dr. Baptista estivesse nesta reunião.
- Ele nada sabe destas reuniões. Contenta-se apenas em
convidar os colegas veterinários.
Carlos Diar conduziu o polícia para uma cave. A cela cheia
de barris semi-destruídos não escondia a sua origem primária de
adega.
- Agora vou tratar do seu amiguinho.
- O que pretende fazer
connosco?
- Muito curioso. Vê
aquele aparelho colocado em
cima daquela mesa? Trata-se
do aparelho com que matei o
professor Albert Tonsom.
Trabalhei durante muitos
anos na prospecção
submarina com aparelhos de ultra-sons. Durante anos estudei as
modificações de velocidade de propagação e de amplitude das
ondas ultra-sonoras ao atravessarem os objectos. Construí um
aparelho portátil derivado do osciloscópio catódico emissor de
ultra-sons de forte intensidade e de duração variável.
O inspector Novais fixou apreensivo o objecto e murmurou
desolado.
- Compreendo agora como ocorreu o assassínio.
O homicida ignorou as palavras do polícia e continuou.
- Um dia em que participava nas buscas da antiga Atlântida
ocorreu-me a ideia de me associar a uma seita que reconstruía em
119
Portugal as antigas cerimónias de Delfos. Uma notícia de que um
arqueólogo procurava a antiga estátua de Apolo encaminhou-me
até à Grécia aonde o deixei desenvolver as suas pesquisas.
Posteriormente aproveitei-me do êxito dos resultados.
O inspector Novais encostou-se a uma barrica abatido e
apoiou a cabeça nas mãos.
- Não escapará.
Carlos Diar soltou uma gargalhada e com a ameaça do
revólver obrigou o inspector a sentar-se numa tábua de madeira
suportada por dois barris que servia de banco
- Ficará aqui nesta cave preso e guardado. Prometo-lhe no
entanto uma morte mais suave do que a que tenciono oferecer ao
seu amigo. Vou soltar os cães de modo a não haver mais
visitantes inesperados rondando o jardim. Mesmo que se consiga
soltar os cachorros depois atacá-lo-ão.
A porta da cave fechou-se e o detective procurou uma saída.
Não havia a mínima hipótese de avisar o oriental, mergulhado no
desespero, o polícia puxou de um cigarro e começou a fumar
enquanto um ratinho se esgueirava por um buraco na parede. O
luar entrava pelas grades da janela iluminando de modo ténue
aquele ambiente hostil, a única alternativa era mesmo esperar.
120
VIII
noite estava quente e luminosa porém Wang-Ho não
sentia qualquer interesse pelo tempo, mas sim pelo
homem que o fazia sair da cama armado com uma pistola.
- Levante-se, os cozinhados hoje terão um tempero especial.
O oriental ergueu-se lentamente e encarou Carlos Diar.
- Não percebo porque me aponta a arma.
- Gosto de colocar as cartas na mesa. Ouviu falar de Apolo?
- O Deus grego?
- Sim. Segundo algumas crenças todos nós reencarnamos
várias vezes o nosso espírito. Uma pessoa possui mais inclinação
para certos assuntos porque
em vidas anteriores, já
conheceria essas matérias.
Um homem que tivesse
anteriormente sido professor
de matemática, numa
existência posterior terá
apenas de se “lembrar” dos
conhecimentos, para ele será muito mais simples “aprender” essa
disciplina do que outro que em outras vidas tenha sido camponês
ou escravo.
- Isso não é motivo para me apontar uma pistola.
Carlos Diar ignorou a observação do chinês e continuou a
falar.
- Eu procuro reorganizar o culto de Apolo, há milénios
tornei-me sumo-sacerdote do oráculo de Delfos. Neste momento
tento reorganizar todo o anterior poderio e esplendor do santuário.
- Atropelando cadáveres?
A
121
- Afastando do meu caminho aqueles que se me opõem, todos
os meios me servem para atingir os objectivos que me propus. Irei
conduzi-lo à cave aonde já está preso o seu amigo Novais. Mais
tarde soltarei os cães lá para os atacarem de forma a parecer um
acidente.
- Alguém há-de desconfiar da súbita ferocidade dos animais.
- Não poderão incriminar-me, nem responsabilizar-me, pois o
Dr. Baptista é o dono e responsável por eles. Agora vou conduzi-
lo junto do seu amigo.
IX
antiga adega
cheirava a mofo
da humidade e quando
chegaram junto do
inspector Novais que
dormitava, este
transpareceu na expressão
facial o desalento que o
invadira quando compreendeu que o companheiro também tinha
sido apanhado, contudo manteve-se calado. Foi o gigante que
quebrou o silêncio tenso que reinava naquele momento.
- Meu caro Wang-Ho, acredite que será com pesar que lhe
darei a mesma morte que a uma senhora em Paris, que foi atacada
pelos cães, contudo não tenho outra alternativa.
- Como treinou os animais?
- Pela abordagem comportamental.
- Trata-se do princípio do behaviorismo.
A
122
- Exactamente. Conhece a experiência de Pavlov? Este
cientista russo realizou com um cão uma experiência deveras
interessante. Todos os dias tocava uma campainha antes de dar de
comer a um cachorro. Ao fim de algum tempo realizou-se aquilo
que Pavlov chamou de reflexo condicionado ou seja o cão
salivava ao ouvir a campainha, mesmo antes de receber a comida.
- Tem a certeza que os cães atacar-nos-ão?
Lagos – Esta cidade situa-se na região do Algarve ( Sul de
Portugal )
- Absoluta. Com base no reflexo condicionado ensinei os
pastores alemães que ao atacarem uma pessoa que eu indique
previamente, de seguida recebem como prémio as refeições.
Como sabe fui sempre eu que os alimentei.
Carlos Diar soltou uma gargalhada e continuou trocista.
123
- Imaginou alguma vez que os seus cozinhados consistiam no
prémio dos meus testes psicológicos com vista à sua morte?
- Continuo sem entender a razão da morte da senhora
francesa.
- Quando o nosso grupo soube que o arqueólogo procurava a
estátua e tinha a certeza de a encontrar, resolvemos contactá-lo
para a comprarmos. De qualquer forma seria uma venda de risco,
porquanto sendo património grego, o governo helénico
certamente não a deixaria sair facilmente do país. O negócio teria
de ser feito às escondidas e sem
conhecimento das autoridades.
- Sei, seria tráfico de
antiguidades.
- Era um risco encontrar-me
com o Mr. Albert Tonsom num
hotel e por isso, ele sugeriu a
reunião em casa de uma amiga
francesa em Paris, para
ultimarmos os pormenores.
Nesse primeiro encontro ficou
acordado eu dar-lhe uma
primeira tranche em dinheiro,
para as despesas da viagem e
posteriormente dar-lhe o restante contra a entrega da estatueta.
- A senhora francesa era a dona da casa?
- Sim, ela era viúva e tinha uma filha adolescente que de
imediato resolvi raptar para servir de pitonisa.
- Porque não raptar uma moça em Portugal?
- Seria mais complicado pois o meio é pequeno e as
autoridades teriam mais facilidade em a encontrar. Sendo ela
portuguesa, se fugisse, ser-lhe-ia mais simples o caminho de casa.
124
- Entendo.
- Durante o nosso dialogo ficou ainda assente que Mr.
Tonsom iria dizendo os locais aonde se encontrava por forma, a
não perdermos o contacto no entanto, eu fui sempre seguindo-o
com vista a roubar-lhe a estatueta e não ter de lhe pagar a segunda
tranche.
- Seguiu-o até à Grécia?
- Sim Depois de o roubar e ter morto regressei a Paris.
- Ao apartamento da senhora francesa?
- Sim, juntamente com os meus cães. Ela de início não queria
que eu entrasse, no entanto eu disse-lhe que pretendia para pagar
a segunda tranche em dinheiro
e mostrei-lhe a estatueta.
- Ela então abriu a porta?
- Eu entrei com os
cachorros e pedi-lhe um
comprovativo da entrega do
dinheiro.
- Um comprovativo?
- Para mostrar ao grupo
que lhe tinha pago. Dei a estatueta aos “Profetas de Apolo” e
fiquei com o restante dinheiro que deveria ser entregue para mais
tarde ao arqueólogo. A viúva francesa ao saber posteriormente do
homicídio dele podia-me denunciar e eu não queria correr
qualquer risco, por isso ordenei aos cachorros que a atacassem.
- E a moça?
- Depois do assassínio coloquei o cadáver num quarto e
aguardei a chegada a adolescente da escola. Quando ela chegou e
sob a ameaça dos cães veio comigo para Portugal sem oferecer
resistência e desconhecendo a morte da mãe.
- Aonde passou a residir?
125
- Entreguei-a a um membro do grupo que a prepara para ser
pitonisa ou adivinha. Antigamente era comum em Delfos, na
antiga Grécia, consultarem as pitonisas que sob o efeito de gases
inebriantes iam dizendo frases aparentemente sem nexo que eram
interpretadas por sacerdotes. Todos acreditavam que tinham o
dom de adivinharem acontecimentos futuros.
Mal Carlos Diar tinha acabado de falar, apareceu na porta
entreaberta da cela a figura imponente de um pastor alemão que
se deitou na laje de pedra do pavimento observando toda a cena.
Wang-Ho olhou melancólico para o canídeo, que de olhos
luminosos tomava parte no drama.
O assassino dirigiu-se para o animal para o afagar, porém de
súbito, o pastor-alemão deu um salto e atirou-o violentamente ao
chão, no mesmo instante em que o Sr. Laurito, acompanhado de
dois polícias fardados e armados entravam de rompante na adega.
A arma do homicida rolou até perto de Wang-Ho que se mantinha
impassível sentado ao lado do atónito inspector, que sem emitir
uma palavra, observara espantado toda a cena.
Faro – Esta cidade é a
capital da região do
Algarve. Situa-se no Sul
de Portugal.
126
- Acabaram as suas patifarias.
Carlos Diar detido por dois agentes olhava incrédulo para o
animal e para o chinês. Num murmúrio perguntou.
- Impossível. Porque mudaram hoje o comportamento?
Não recebeu resposta e saiu fortemente escoltado pela
polícia, enquanto o Laurito com um sorriso largo se dirigia para
os dois amigos.
- Mesmo a tempo companheiros, fizeram um excelente
trabalho. A habitação desde hoje ao final da tarde que se
encontrava discretamente vigiada por nós.
Passos apressados ouviram-se no soalho e o Dr. Baptista
entrou de rompante na cave. Ao ver o cozinheiro lamentou-se
- Desculpe Wang-Ho a
demora. Estive a prender os
cachorros.
X
saída do tribunal o inspector Novais não escondia o seu
desagrado pelo facto de Wang-Ho haver defendido a
inocência da maioria dos “Profetas de Apolo”
- Deviam prender todos aqueles que acreditam em falsas
profecias.
- Inspector, o julgamento destina-se a coagir os actos e não os
pensamentos das pessoas. Eu acredito que a maioria dos
seguidores da seita, ignoravam os actos praticados por Carlos
Diar e que a pitonisa tinha sido raptada em França. Eles também
estavam a ser enganados pelo gigante, pois tinham-lhe dado
Á
127
dinheiro para comprar a estátua e ele acabou por ficar com o
montante da segunda tranche a ser entregue ao arqueólogo.
- Tive de lhe dizer que a fotografia da moça pitonisa, que me
foi enviada pela polícia francesa, era da minha sobrinha de
Moçambique para o Sr. Carlos Diar não desconfiar na altura.
- Eu entendi inspector e queimei-a em seguida para o caso de
ele me vasculhar o quarto quando eu estivesse ausente. Se
encontrasse a fotografia imediatamente desconfiava dos nossos
propósitos de investigação.
- No entanto há muitas coisas que não entendo. Porque entrou
o Sr. Laurito exactamente naquele momento?
- Bem quando vi que
me tinham roubado o
telemóvel dirigi-me ao
gabinete do Dr. Baptista e
relatei-lhe qual os nossos
propósitos. Ao aceitar-me
tão prontamente como
cozinheiro e a si como
caseiro concluí que ele não
estava envolvido no trama.
- Confiava nele?
- Sim, em absoluto. No mês anterior ele não tomara parte na
reunião da organização.
- Foi ele que avisou o Sr. Laurito e pediu para intervirem?
- Do gabinete ele ligou para a polícia. Depois saiu de casa e
veio com os agentes mais tarde para prenderem todos. e apurarem
responsabilidades, pois não sabíamos quem sabia dentro da seita
que a adolescente tinha sido raptada.
- Eles deixaram entrar todos os “Profetas de Apolo” e quando
estavam todos reunidos resolveram intervir?
128
- Sim, eles ouviram também toda a nossa conversa com
Carlos Diar. Depois de ele confessar os seus crimes apareceram
para o prender.
- Mas, porque o cão atacou Carlos Diar se o conhecia?
- O cachorro que o desarmou o homicida era um cão do
destacamento da polícia previamente disfarçado para parecer com
os da casa. Os quatro do Dr. Baptista foram guardados por ele
para polícia poder entrar sem problemas. Na altura, Carlos Diar
estava falando comigo no meu quarto.
- Não entendo porque o assassino colocou bilhetes nos bolsos
do arqueólogo e da senhora francesa quando os assassinou.
- Não foi o assassino. Mr. Tonsom tinha o nome da seita para
os poder contactar quando tivesse a estátua, a amiga gaulesa do
arqueólogo também tinha o nome do grupo para posteriormente
poder fazer o contacto para fazer a troca da estátua pelo dinheiro.
Carlos Diar estava apenas interessado na estátua, não revistou
129
nenhum deles porque não pretendia roubar nada a não ser a
estátua.
- Compreendo.
- Fiquei impressionado com a pitonisa e as suas palavras “na
penumbra o supremo vencerá o ousado, ao amanhecer o incrédulo
desmascarará os tiranos e Apolo será louvado”.
- Como assim?
- Sim, foi de noite que o supremo inspector Novais venceu o
ousado Carlos Diar. Foi durante a manhã que o incrédulo Dr.
Baptista soube das patifarias que se passavam na sua residência e
foi ele que os conduziu à prisão. Finalmente, Apolo será louvado
porque todos os malfeitores que aderiram à organização com
intuitos condenáveis vão ser expulsos dela.
O inspector sorriu para Wang-Ho e acenou afirmativamente
com a cabeça, depois aconchegou-se dentro do sobretudo e olhou
para o relógio. Fazendo um ar surpreendido com o adiantado da
hora perguntou.
- Vamos almoçar?
FIM
131
Nota final
A escolha da região portuguesa do Algarve para cenário
destes dois contos não foi aleatória, sendo uma justa homenagem
a este bonito território, de gentes hospitaleiras.
O Algarve é a região mais meridional ou a sul de Portugal
continental e tem como capital, a cidade Faro. Apesar de ter
apenas cerca de 4% da população é a 3ª região mais rica do país, a
seguir ao Vale do Tejo e Ilha da Madeira. Em grande parte isso é
devido ao Turismo, pois recebe inúmeros visitantes que procuram
as belas praias, montanha e zonas de lazer. Feiras e certames
abundam nesta região e a proximidade de Espanha e do reino de
Marrocos dão realce
tornam o seu comércio
mais variado e atractivo.
O património histórico,
etnográfico e a
excelente gastronomia
são polos de atracção
para inúmeros
visitantes.
O topónimo
Algarve tem origem na
expressão árabe غرب que significa "o oeste", pois (al gharb) ال
pertencia à Andaluzia muçulmana.
Faro – Capital do Algarve
132
Antes da invasão romana esta região era habitada por tribos
de cónios que eram rivais
dos lusitanos
guerreando-se entre si.
Acolheram de forma
amigável os romanos e
durante um longo
período de tempo
granjearam autonomia
graças a esse facto. Era
ponto de passagem para
tartessos, fenícios,
gregos e cartagineses.
Mais tarde, entraram
em conflito com os romanos sendo derrotados e a região incluída
na província da Hispânia Ulterior do Império Romano. Foi
durante este tempo que a região se cristianizou.
As invasões bárbaras que se seguiram a este período, pelos
povos alanos, vândalos, suevos e visigodos não alteraram a
cultura romana e a crença religiosa, sendo de novo reconquistado
pelo Império Romano, nessa altura Império Romano do Oriente
ou Bizantino que dominou por curto espaço de tempo até ser
novamente integrado no reino dos Visigodos.
Com o domínio muçulmano, esta região, e a sua capital na
altura (a cidade de Silves), atingem enorme esplendor. A grandeza
Quarteira
Vale de Lobos
133
de Silves chegou a ser 10 vezes superior à de Lisboa. Integrada na
Hispânia Islamica a região do Algarve permaneceu sarracena por
mais de 5 séculos até ser conquistada pelos portugueses.
A alternância de poder entre portugueses, castelhanos e
mouros era uma constante até ser assinado o tratado de Badajoz
em que este território fica definitivamente na posse dos
portugueses.
O declínio do Algarve e a sua importância decrescem até à
altura da expansão marítima. Com os descobrimentos e devido à
sua situação privilegiada desta região volta a haver novo fulgor
comercial e económico. Após o declínio da época dos
descobrimentos o território volta a estagnar até que em 1960 o
turismo surge como motor de novo desenvolvimento.
É comum designar-se de Barlavento à zona ocidental do
Algarve e de Sotavento à zona oriental. Estas denominações são
muito antigas e certamente têm a haver, com o lado que sopra
normalmente o vento.
O clima desta região é ameno com verões longos e quentes, e
invernos amenos com pouca precipitação.
Vila Real de
Santo António
134
O motor de economia algarvia é sem dúvida o Turismo, na
agricultura predomina as produções de frutos secos como a
alfarroba, figos, medronhos e amêndoas. A laranja algarvia
também é de boa qualidade contribuindo com outros citrinos para
o desenvolvimento desta região. Merece igualmente relevo a
produção de cortiça.
Sendo longa a costa algarvia, é determinante para a economia
a actividade piscatória, com especial realce para a pesca da
sardinha, espadarte, atum e carapau. O polvo também é muito
apreciado, sendo recolhido em grande quantidade.
O sal e o mel contribuem igualmente para a economia
algarvia.
A vegetação caracteriza-se por matagal formado por plantas
que vivem em ambientes de pouca água.
A fauna é muito variada sendo ponto de passagem de muitas
aves migratórias. As recentes descobertas em cavernas do pseudo
escorpião gigante, um insecto sem olhos e sem coloração, um dos
maiores conhecidos e de outro insecto cavernícola (o maior do
mundo) foram enaltecidas por biólogos de todo o mundo.
Portimão
135
Sem dúvida que o Algarve é uma das regiões mais emblemáticas
e carismáticas de Portugal merecendo por isso a conhecer.
137
Índice
Palavras Prévias ………………………………… 7
Biografia de Luiz Francisco Gravata ………..… 9
Uma rainha africana em Lisboa ……………… 13
O Fantasma do Duque de Luanda ……….…… 17
O Reflexo condicionado ……………...………... 99
Nota Final …………………………………….. 131