[rueda, alexandre herculano cruzeiro]política e valores humanos - tocqueville e a...

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1 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIA POLÍTICA Política e Valores Humanos: Tocqueville e a Espiritualização da Política Alexandre Herculano Cruzeiro Rueda Brasília 2010

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Alexandre Herculano Cruzeiro

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  • 1

    UNIVERSIDADE DE BRASLIA INSTITUTO DE CINCIA POLTICA

    Poltica e Valores Humanos: Tocqueville e a Espiritualizao da Poltica

    Alexandre Herculano Cruzeiro Rueda

    Braslia

    2010

  • 2

    Alexandre Herculano Cruzeiro Rueda

    Poltica e Valores Humanos: Tocqueville e a Espiritualizao da Poltica

    Monografia de concluso de curso apresentada ao curso de Cincia Poltica, Instituto de Cincia Poltica, Universidade de Braslia, como requisito final para obteno do ttulo de Bacharel em Cincia Poltica.

    Professor orientador: Prof. Paulo Roberto da Costa Kramer

    Braslia 2010

  • 3

    Alexandre Herculano Cruzeiro Rueda

    Poltica e Valores Humanos: Tocqueville e a Espiritualizao da Poltica

    Monografia de concluso de curso submetida ao Instituto de Cincia Poltica, UnB, como requisito final para a obteno do ttulo de Bacharel em Cincia Poltica e apresentado seguinte banca examinadora

    ______________________________

    Professor Joo Paulo Peixoto

    (Universidade de Braslia)

    _______________________________

    Professor Paulo Roberto da Costa Kramer (Universidade de Braslia)

    Braslia 2010

  • 4

    DedicoaoMestreJesus,aoProfessorPaivaNetto,aosmeuspaisOzainaeMrio,aomeuIrmo

    Thiago,familiareseamigos.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Primeiramente agradeo a Deus, ao Cristo e ao Esprito Santo a oportunidade de

    aprendizado e crescimento. Legio da Boa Vontade, ao seu Diretor-Presidente Jos de

    Paiva Netto, muito grato pela amizade e pela confiana que sempre generosamente

    depositou em mim. minha famlia que sempre me apoiou tanto o brao Cruzeiro de Minas,

    quanto o brao Rueda de So Paulo, especialmente o Tio Tau e toda sua turma.

    Universidade de Braslia, ao Instituto de Cincia Poltica e demais Institutos por

    onde passei. Aos funcionrios do IPOL e aos professores, mais que profissionais

    consagrados, so grandes seres humanos que abraaram a misso da educao com

    grande denodo e amor. Meu agradecimento especial aos professores Paulo Kramer, Carlos

    Henrique Cardim, Paulo Calmon, Lcia Avelar, Ricardo Caldas, Leonardo Barreto e Mathieu

    Turgeon. Professor Kramer, obrigado pela amizade, pelas conversas e por ter aceitado ser

    meu orientador.

    Escola da LBV e sua diretora Professora Maria Sueli Periotto que se entusiasmou

    quando lhe disse que faria um estudo sobre a escola. s funcionrias ssima Luz e

    Elisangela Ferreira, com importantes informaes utilizadas no estudo. minha querida

    amiga, voluntria e ex-aluna da escola, a historiadora Paula Sueli, que vai se casar com

    meu amigo Josu.

    todos que, direta ou indiretamente, fazem parte da minha trajetria. Sintam-se todos

    abraados! Ao meu amigo Juliano Bento e sua famlia sempre me apoiando. Ao meu amigo

    Gerdeilson Botelho por seu apoio imprescindvel. todos os meus amigos e amigas do

    Editorial, de Braslia e de So Paulo, que se eu fosse citar um por um faltaria papel.

    Enfim, agradeo a voc minha ilustre leitora e a voc meu preclaro leitor!

  • 6

    Governarensinarcadaum

    agovernar asimesmo.

    ALZIROZARUR (19141979)

  • 7

    Governareducaro

    sentimentoparaobem.

    PAIVANETTO

  • 8

    RESUMO

    Este trabalho est dividido em trs captulos ao longo dos quais ser analisada a

    importncia e a capacidade transformadora dos valores humanos na vida poltica e

    social. No primeiro captulo, ser apresentada a contextualizao e a evoluo

    histrica do assunto, bem como a exposio da problemtica trazida por Tocqueville.

    No segundo, sero analisadas possveis solues, levando em considerao dois

    dos elementos fundadores da civilizao anglo-americana apontados por

    Tocqueville: o esprito de religio e o esprito de liberdade. Ainda no mesmo captulo,

    ser analisada a contribuio de Robert Putnam questo. No terceiro, ser

    apresentada uma contribuio brasileira, por meio de um estudo de caso dos Centros

    Culturais e Educacionais da Legio da Boa Vontade, em que os valores ticos,

    morais e espirituais possuem um papel de destaque em sua linha educacional

    inovadora. Analisaremos tambm alguns dos resultados obtidos por essas escolas.

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................................... 10

    1 CONTEXTUALIZAO HISTRICA E TERICA .............................................. 13

    1.1 O mundo da antiguidade e a Era Axial ......................................................... 13

    1.2 O mundo da modernidade e o contexto democrtico ................................... 15

    2 QUANTO SUPERAO DOS PERIGOS DA DEMOCRACIA ......................... 19

    2.1 Tocqueville e a sociedade norte-americana ................................................. 19

    2.1.1 O Esprito de Liberdade ......................................................................... 19

    2.1.2 O Esprito de Religio ............................................................................ 24

    2.2 Putnam e a sociedade italiana ...................................................................... 28

    2.2.1 A Comunidade Cvica ............................................................................. 28

    2.2.2 O Capital Social...................................................................................... 32

    3 ESTUDO DE CASO ............................................................................................ 36

    3.1 O objeto de estudo: Escolas da LBV ............................................................ 37

    3.2 As causas da evaso escolar ....................................................................... 38

    3.3 Anlise e interpretao dos resultados ......................................................... 39

    CONCLUSO ............................................................................................................ 43

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................... 45

  • 10

    INTRODUO

    Partindo-se do entendimento da Cincia Poltica como uma cincia que se

    prope a resolver problemas empricos, o que tambm justifica seu carter cientfico,

    todo seu arcabouo terico, mtodos, sistemas e processos passam a ser

    compreendidos e at concebidos a partir de critrios de eficincia. No que tange

    cincia do governo dos povos, esses critrios se traduzem em desempenho

    institucional, segurana pblica, observncia s leis, garantia de direitos civis,

    polticos e sociais, sade, educao etc. Ou seja, na busca da melhor distribuio do

    poder, da melhor alocao de recursos pblicos de forma a se obter a maior utilidade,

    ou o mais avanado e clere desenvolvimento scio-econmico e progresso

    humano.

    O papel do Estado e das instituies de inegvel relevncia, possuindo vasta

    literatura dedicada ao tema, todavia, como destacou Alberto Almeida, "a sociedade

    no menos importante. Nela, as percepes e opinies dos homens, suas crenas

    (...) ajudam muito na compreenso do funcionamento da democracia" 1. Assim, o

    presente trabalho surgiu da inquietao de que, no obstante todos os esforos,

    sempre louvveis, o sofrimento da humanidade ainda muito grande, sobretudo

    considerando o alto nvel de desenvolvimento cientfico-tecnolgico; e a demanda

    pelos servios do Estado sobrecarregada, o que afeta a qualidade e a quantidade

    dos servios ofertados. Ento, em face desse contexto desafiador, considerando as

    contribuies trazidas pela Cincia Poltica e seus tericos a todos ao longo dos

    1 Almeida, Alberto Carlos. A cabea do brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2 ed.,2007. pp.19.

  • 11

    sculos, de que forma a sociedade poderia contribuir com seu prprio bem-estar,

    desafogando a demanda pelos servios do Estado?

    Quando se fala em sociedade, uma das principais dimenses para o

    entendimento de sua origem, formao e desenvolvimento diz respeito aos valores

    humanos, sejam estes ticos, morais, ou espirituais, sob os quais a mesma se

    constitui. Por valores, a definio adotada, a qual utilizada principalmente na

    psicologia social e poltica, foi trazida por Shalom Schwartz: valores so crenas

    abstratas sobre metas ou comportamentos desejveis que transcendem situaes

    especficas, guiam a seleo e avaliao de aes, polticas, pessoas e eventos, e

    so ordenados pela importncia relativa aos demais valores. 2

    Para a presente investigao, a fundamentao da relevncia desse tipo de

    estudo ser apresentada em uma breve anlise do perodo da histria humana que o

    filsofo alemo Karl Jaspers (1883-1969) chamou de Era Axial. E a contextualizao

    da problemtica envolvida utilizar como base terica principalmente as

    contribuies de Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Robert Putnam. Em

    Tocqueville, a partir de dois fundamentos da civilizao anglo-americana (o esprito

    de religio e o esprito de liberdade), sero analisados o papel das associaes nos

    EUA e o papel do esprito de religiosidade. Em Putnam, os conceitos de comunidade

    cvica e capital social sero explorados trazendo uma complementao emprica ao

    pensamento de Tocqueville.

    Por representar a escola uma espcie de laboratrio social que reproduz a

    vida em sociedade, mesmo que em proporo reduzida, ser desenvolvido tambm

    2 Schwartz, Shalom H. 1994. Are There Universal Aspects in the Structure and Contents of Human Values? Journal of Social Issues 50. pp.20.

  • 12

    um estudo de caso dos Centros Culturais e Educacionais da Legio da Boa Vontade

    (LBV). Tais escolas, a partir de uma pedagogia prpria criada por Paiva Netto,

    desenvolvem uma linha educacional inovadora que prima por valores ticos, morais e

    espirituais. Tal esforo tem por finalidade estimular um desenvolvimento mais

    eficiente, solidrio, cvico, crtico e participativo dos educandos, que em sua maioria

    provm de comunidades de risco e vulnerabilidade social. Sero analisados tambm

    alguns dos resultados obtidos por essas escolas.

    Espera-se, ao final do trabalho, a partir dos resultados obtidos, constatar se

    uma sociedade com valores humanos, ticos e espirituais realmente favorece um

    governo com melhor desempenho e se, a partir desses valores que fortalecem a

    sociedade civil, esse fortalecimento benfico para a democracia e promove o

    bem-estar coletivo como sinalizou Tocqueville.

  • 13

    1 CONTEXTUALIZAO HISTRICA E TERICA

    1.1 O mundo da antiguidade e a Era Axial

    O filsofo alemo Karl Jaspers identificou um perodo da histria humana,

    o qual denominou de Era Axial, entre aproximadamente 800 e 200 a.C., em que o

    homem como ele hoje nasceu 3. Uma poca de extraordinrio desenvolvimento

    nos diversos campos do saber humano em que surgiu, quase simultaneamente

    em regies distintas do planeta, as grandes tradies mundiais da humanidade,

    embora uma no soubesse da existncia da outra. Na China, surgiu o confucionismo

    e o taosmo; na ndia, o hindusmo e o budismo; na Palestina, os profetas hebreus

    e o monotesmo; no Ir, o zoroastrismo; na Grcia, o racionalismo filosfico.

    Em resumo, como destaca Karen Armstrong: A Era Axial foi um dos perodos

    mais seminais da mudana intelectual, psicolgica, filosfica e religiosa que a histria

    registra, e acrescenta que nunca ocorreria nada de tamanha magnitude at a

    Grande Transformao Ocidental, que instituiu nossa modernidade cientfica e

    tecnolgica. 4

    Esse perodo de tanta efervescncia cultural, filosfica e espiritual do mundo

    antigo deixou como legado espcie humano muitas das bases, valores e tradies

    que, de muitas formas, ajudaram a definir e moldar o mundo e a cultura

    hodiernos. Ainda h de se destacar que nesse perodo marcado pela agitao do

    esprito humano, o indivduo ganhou conscincia de si mesmo e, a partir de ento,

    3 Jaspers, Karl. The Axial Age of Human History. Commentary, 6 (1948). pp. 430. 4 Armstrong, Karen. A Grande Transformao: o mundo na poca de Buda, Scrates, Confcio e Jeremias. So Paulo: Companhia das Letras, 2008. pp. 12.

  • 14

    uma batalha erigiu em seu interior. As opinies e costumes que outrora eram

    tacitamente aceitos, passaram a ser questionados, testados, transformados e at

    extintos.

    Toda essa transformao da condio do homem pode ser chamada de uma espiritualizao. Um impulso que surge das profundezas inexploradas da vida desprendida dos esteios da existncia, a transformar polaridades estveis em antinomias e conflitos. O homem no era mais autossuficiente. Ele tinha se tornado inseguro de si, e assim se abriu para possibilidades novas e ilimitadas. 5

    Ento, como colocou Jaspers, na Era Axial acontece a descoberta do que

    mais tarde ser chamado de razo e personalidade. E, a partir dessa possibilidade de

    insubmisso do pensamento, agora independente, abria-se precedente para

    demandar maiores liberdades. Esse desenvolvimento do indivduo e da sociedade

    tinha por base o conflito, logo no transcorreu de uma maneira simples,

    ascendente e contnua, todavia foi complexo, movido tanto por foras criativas,

    como destrutivas.

    Ademais, essa espiritualizao que explorava as mais elevadas aspiraes

    humanas se inseria num contexto bastante elitizado, do qual as massas estavam

    muito distanciadas. Por conta disso, tal desenvolvimento nunca teve suas

    potencialidades plenamente realizadas 6. Ou seja, a prpria excluso das massas

    desse processo constitua um fator restritivo sua completa consecuo. Mas ao

    final, como ponderou o autor, no obstante o distanciamento das massas das novas

    possibilidades que se abriram ao ser humano, o que o indivduo se tornou,

    5 Jaspers, Karl. Op. cit., pp. 431. 6 Ibidem. pp. 433.

  • 15

    indiretamente modificou todas as coisas e a humanidade como um todo deu um salto

    adiante. 7

    A Era Axial legou ao gnero humano importantes produtos como as categorias

    bsicas do pensamento que continuam a ser utilizadas, sobretudo o racionalismo

    filosfico grego, e os primrdios das religies mundiais, cujos valores e preceitos,

    diretamente ou indiretamente, ainda hoje so adotados por grande parte das

    pessoas. Isto , estes legados, advindos de pocas remotas, sobreviveram ao

    contnuo movimento que se registrou na histria de decadncia dos grandes imprios

    e fundao de novos, o que evidencia a relevncia do tema e tambm como os

    valores so constitutivos dos indivduos e por conseguinte das sociedades que estes

    venham a formar. 1.2 O mundo da modernidade e o contexto democrtico

    A degenerao dos governos estejam estes sob a responsabilidade de uma

    pessoa, de poucas, ou de um grande nmero de pessoas de que nos fala

    Aristteles8 no exclusividade do mundo antigo. Mesmo assim, a democracia,

    com seus defeitos e virtudes, , como diria o estadista britnico Winston

    Churchill (1874-1965), o pior dos regimes, exceo dos demais. Assim, se

    no mundo antigo com todas as restries de possibilidades que recaa sobre os

    povos, especialmente sobre as massas , os costumes, os valores, as tradies e

    as crenas que se desenvolveram quela altura foram fundamentais para a formao

    7 Jaspers, Karl. Op. cit., pp. 432. 8 Aristteles. tica a Nicmacos. Braslia: Editora UnB. 2001. pp.165 . & Aristteles. Poltica. Braslia: Editora UnB, 1997. pp.123.

  • 16

    e o desenvolvimento do mundo atual, muito maiores e ilimitadas so as

    possibilidades que se configuram no presente, sobretudo em face do contexto

    democrtico em que o governo da democracia faz com que a idia de direitos

    polticos desa at o menor dos cidados. 9

    A conceituao de democracia a qual utilizaremos foi extrada por Raymond

    Aron (1905-1983) ao analisar a obra e o pensamento de Alexis de Tocqueville:

    A seus olhos, a democracia consiste na igualizao das condies. Democrtica a sociedade onde no subsistem distines de ordens e de classes; em que todos os indivduos que compem a coletividade so socialmente iguais, o que no significa que sejam intelectualmente iguais, o que absurdo, ou economicamente iguais, o que, para Tocqueville, impossvel. A igualdade social significa a inexistncia de diferenas hereditrias de condies; quer dizer que todas as ocupaes, todas as profisses, dignidades e honrarias so acessveis a todos. 10

    Essa conceituao de democracia associada igualdade de oportunidades,

    traz em si um carter meritocrtico importante para a manuteno do sistema

    democrtico, pois que pelo trabalho e esforo de cada um que se alcana as

    distines nas sociedades democrticas. Contudo, como asseverou Tocqueville, o

    individualismo de origem democrtica e ameaa desenvolver-se medida que se

    igualam as condies 11. Ou seja, medida que as condies vo se igualando, as

    disparidades vo se reduzindo e os indivduos passam a duvidar do seu poder e

    capacidade de exercer grande influncia sobre a sorte de seus semelhantes 12.

    9 Tocqueville, Alexis de. A democracia na Amrica. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: Ed. USP, 1987. pp.185. 10 Aron, Raymond, As Etapas do Pensamento Sociolgico. Lisboa: Dom Quixote, 1992. pp.221. 11 Tocqueville. (1987) Op. cit., pp.386. 12 Ibidem. pp. 387.

  • 17

    Ao passo que, o incremento de sua condio os torna relativamente autossuficientes.

    Logo, somados esses dois fatores, os indivduos tenderiam a se dedicar

    exclusivamente sua pequena sociedade particular, composta por familiares e

    amigos, e a se isolar da sociedade como um todo, renegando o esprito pblico.

    Outro aspecto que Tocqueville considerou representar perigo aos povos

    democrticos o materialismo. Para ele, A democracia favorece o gosto pelos

    prazeres materiais 13 e a liberdade proporcionada por esta permite aos

    indivduos mais facilmente busc-los, o que at certo ponto extremamente positivo,

    pois uma forma de exerccio da liberdade, todavia, como exps o autor,

    caso se tornasse excessivo o gosto por tais prazeres, isso levaria a crer que tudo

    se resume matria. Ento, esse crena uma vez incorporada como valor,

    em uma sociedade democrtica, traria efeitos nefastos: indivduos que

    preocupados apenas com o cuidado de fazer fortuna, no mais percebem o estreito

    lao que une a fortuna particular de cada um deles prosperidade de todos 14.

    Ainda coloca o autor, que, eliminada essa percepo de ligao do indivduo com a

    sociedade, via de regra, aqueles que desenvolvem a paixo pelos bens materiais

    acabam por descobrir na liberdade um estorvo ao seu bem-estar, antes de perceber

    como a liberdade serve para proporcion-lo. 15

    Igualmente lhes parece contratempo o exerccio de seus deveres polticos,

    pois consome seu precioso tempo. Tal percepo errnea da liberdade tambm

    tornaria propcia a ascenso de usurpadores autoritrios ao poder. Pois, enquanto

    cada qual quer cuidar apenas dos seus interesses particulares, algum precisa tratar

    13 Tocqueville. (1987) Op. cit., pp. 416. 14 Ibidem. pp. 412. 15 Ibidem. pp. 413.

  • 18

    do que comum a todos. Assim, a partir do exposto fica claro que de maneira

    anloga ao que ocorre com os medicamentos, em que a dose pode determinar a

    diferena entre o que um remdio benfico e o que danoso ao organismo humano

    , para a democracia, a igualdade e a liberdade precisam ser administradas de tal

    sorte que a sade do regime democrtico no seja comprometida.

  • 19

    2 QUANTO SUPERAO DOS PERIGOS DA DEMOCRACIA

    2.1 Tocqueville e a sociedade norte-americana

    Em sua profunda anlise da sociedade norte-americana de sua poca,

    Tocqueville salientou a importncia de se considerar os costumes como uma

    das "grandes causas gerais s quais se pode atribuir a conservao da repblica

    democrtica" 16 . Por costumes, tinha um entendimento mais amplo, ligado ao

    sentido antigo da palavra mores, que alm dos costumes propriamente ditos,

    aplica-se tambm "s diferentes noes que os homens possuem, s diversas

    opinies que correm entre eles e ao conjunto das idias de que se formam os hbitos

    do esprito". 17

    Tocqueville ainda enfatizou que um entendimento mais acurado da civilizao

    anglo-americana s possvel tendo por ponto de partida, e este deve estar

    presente sem cessar no pensamento 18, que ela produto de dois elementos

    perfeitamente distintos: o esprito de religio e o esprito de liberdade. O primeiro,

    teria por caracterstica a classificao, a coordenao e a previso de tudo. No

    segundo, tudo seria agitado, contestado e incerto. Este dois aspectos da vida

    humana, apesar de diferentes, no seriam necessariamente contraditrios, e teriam

    sido, de alguma forma, harmonizados pelo povo norte-americano, atingindo-se at o

    apoio mtuo entre esses dois elementos. 19

    2.1.1 O Esprito de Liberdade

    16 Tocqueville. (1987) Op. cit., pp. 221. 17 Idem. 18 Ibidem. pp. 42. 19 Idem.

  • 20

    Dentre os valores e costumes analisados que considerava favorveis

    manuteno da democracia, sobretudo em face do individualismo que a igualdade

    faz levantar, Tocqueville apontou a liberdade como o nico remdio eficiente 20. E

    uma das formas pelas quais os americanos exerciam a liberdade era por intermdio

    das instituies livre, concedendo nao inteira uma representao de si mesma

    e dando uma vida poltica a cada poro do territrio 21 , o que multiplicava

    enormemente as oportunidades para os cidados se encontrarem e participarem em

    conjunto da poltica do pas. Portanto, tal participao, bem como o constante

    exerccio dos direitos polticos se mostrariam eficientes contra o individualismo

    justamente por essa prtica manter viva a idia de vida em sociedade, de

    interdependncia entre os pessoas, enfim de que a participao traz resultados

    que beneficiam a todos. E esse indivduo participativo, seja por benevolncia ou no,

    A todo momento, dirige o seu esprito para a idia de que o dever, tanto quanto o

    interesse dos homens, tornarem-se teis aos seu semelhantes. 22

    Ainda no que se refere ao exerccio da liberdade como um fator de

    sustentao da democracia, em detrimento do individualismo, Tocqueville tambm

    asseverou que Depois da liberdade de agir sozinho, a mais natural ao homem a

    de combinar os seus esforos com os esforos de seus semelhantes e agir em

    comum 23. Certamente, sempre haver assuntos e atribuies, afora as questes

    estratgicas e de segurana nacional, em que a administrao do Estado se far

    imprescindvel. Tanto que, para ilustrar, em Memoir on Pauperism (1997),

    Tocqueville, possuidor de fortes restries ao permanente dos governos no que

    20 Tocqueville. (1987) Op. cit., pp. 391. 21 Ibidem. pp. 389. 22 Ibidem. pp. 391. 23 Ibidem. pp. 149.

  • 21

    tange a caridade pblica pois acreditava que o carter permanente desta poderia

    levantar mais misrias, bem como a dependncia dos favorecidos , reconhecia,

    mais que a utilidade, a necessidade deste tipo de ao ao se tratar de determinadas

    questes 24 . Alm do mais, tal ao est sujeita burocracia estatal a qual

    geralmente a torna exclusiva aos que esto inscritos em determinada jurisdio, e

    so possuidores de residncia fixa e de toda uma leva de documentos requisitados, o

    que acabaria por excluir os mais necessitados. Ento, sem liberar o Estado de

    qualquer responsabilidade para com a sociedade, sobretudo num contexto de

    elevada demanda, o que afeta a qualidade, a quantidade e a abrangncia dos

    servios ofertados, h de se elevar mais alta considerao o papel que a sociedade

    pode e deve desempenhar.

    Sobre o assunto, um destaque especial foi feito por Tocqueville capacidade

    dos americanos de se associarem na vida civil e poltica:

    Os americanos de todas as idades, de todas as condies, de todos os espritos, esto constantemente a se unir. No s possuem associaes comerciais e industriais, nas quais todos tomam parte, como ainda existem mil outras espcies: religiosas, morais, graves, fteis, muito gerais e muito particulares, imensas e muito pequenas; (...) associam-se para dar festas, fundar seminrios, construir hotis, edificar igrejas, distribuir livros, (...) criam hospitais, prises, escolas. Trata-se, enfim, de trazer luz ou se desenvolver um sentimento pelo apoio de um grande exemplo, eles se associam. (...) Assim o pas mais democrtico da terra verifica-se ser aquele onde os homens mais aperfeioaram (...) a arte de procurar em comum o objeto dos seus comuns desejos e aplicaram ao maior nmero de objetos essa cincia nova. 25

    Tendo em vista a mensurao dos efeitos decorrentes do fenmeno da

    associao, uma dimenso qualitativa sobre os diferentes tipos de aes que as mais

    24 Tocqueville, Alexis de. Memoir on Pauperism. London: Civitas, 1997, pp. 37-38. 25 Tocqueville. (1987) Op. cit., pp. 391-392.

  • 22

    diversas associaes desenvolvem levantada por Francis Fukuyama: Embora

    ligas de boliche (...) sejam, como sugere Tocqueville, escolas de cooperao e

    esprito pblico, elas so obviamente instituies muito diferentes do US Marine

    Corps ou da Igreja Mrmon 26. Para ele, ento, as ligas de boliche se diferenciariam

    enormemente das outras associaes citadas por sua capacidade de atuao e pelo

    tipo de ao que promovem. E completa: uma liga de boliche, para dizer o mnimo,

    no capaz de invadir de sbito uma praia 27. Contudo, independentemente de uma

    associao realizar uma ao maior ou menor, de importncia, ou influncia,

    relativamente superior ou inferior do que outras associaes, depreende-se que, para

    Tocqueville, o mais relevante o efeito das associaes na vida social como um

    todo, o combate ao isolamento dos indivduos que a igualdade faz levantar na

    democracia. O que est amparado em sua afirmativa: Os sentimentos e as idias

    no se renovam, o corao no cresce e o esprito no se desenvolve a no ser pela

    influncia recproca dos homens uns para com os outros. (...) E somente as

    associaes so capazes de faz-lo. 28

    Assim, sem sombra de dvida, as aes de maiores propores trazem

    maiores repercusses, como dedutvel da terceira Lei de Newton. E para fins

    metodolgicos de mensurao essa considerao trazida por Fukuyama de grande

    valor. No entanto, indo alm do mencionado aspecto qualitativo, o que mais

    ressaltado por Tocqueville a resultante da coexistncia dos mais distintos tipos de

    aes que as mais diferentes associaes realizam. Alm disso, a participao em

    associao pode se tornar bastante complexa, o que afeta sua mensurao,

    26 HARRISON, Lawrence E.; HUNTINGTON, Samuel P. (editors), et al. Culture Matters: how values shape human progress. New York: Basic Books, 2000. In: Francis Fukuyama, Social Capital, pp. 101. 27 Idem. 28 Tocqueville. (1987) Op. cit., pp. 393.

  • 23

    pois uma mesma pessoa pode ser concomitantemente membro de vrios grupos, o

    que promove direta e indiretamente a troca de experincia, ou at parcerias entre as

    associaes diferentes.

    Como apontaram Christian Welzel e Ronald Inglehart, a essncia da

    democracia est em empoderar os cidados comuns, mas apenas assegurando

    eleies no se atinge isso. Requer mais que a simples aprovao de leis que

    formalmente estabelecem direitos polticos para empoderar as pessoas 29. Assim, a

    cincia da associao, a qual Tocqueville chamou de a cincia me na democracia30,

    empodera a sociedade na medida em que mobiliza as pessoas de forma organizada

    para promover o bem-estar coletivo. Ou seja, os cidados por si prprios se

    apercebem da fora que podem adquirir unindo-se e realizam suas vontades

    comuns sem depender do Estado, e, de fato, passam a exercer seu poder na

    sociedade, seja de maneira positiva ou negativa. Portanto, Nada h que a

    vontade humana se desespere de atingir pela ao simples do poder coletivo dos

    indivduos. 31

    Contudo, afirmou Tocqueville, Penso que no h principio, apesar de bom,

    que toda consequncia possa ser considerada boa 32. E as associaes no seriam

    exceo ao seu pensamento, pois a liberdade poltica ilimitada tambm pode trazer

    efeitos negativos. Entre esses efeitos, Fukuyama apontou que alguns grupos podem

    promover a intolerncia, o dio e at mesmo a violncia contra os que no so

    membros33, ou que no se enquadrem ou partilhem de valores defendidos pelo

    grupo. Entre os que promovem um ou mais dos efeitos mencionados esto:

    29 WELZEL, Christian; INGLEHART, Ronald. The Role of Ordinary People in Democratization. Journal of Democracy. Vol.19, n. 1, Jan. 2008. The Johns Hopkins University Press. pp.128. 30 Tocqueville. (1987) Op. cit., pp. 394. 31 Ibidem. pp. 147. 32 Tocqueville. (1997) Op. cit., pp. 36. 33 HARRISON, Lawrence E., et al. Op. cit., 2000. In: Francis Fukuyama, Social Capital, pp. 100-102.

  • 24

    a Ku Klux Klan, os Skinheads, as mfias, no que se refere ao caso brasileiro, as

    gangues, as associaes criminosas que promovem o trfico de drogas, armas e

    seres humanos; enfim, os grupos criminosos e/ou terroristas em geral. Talvez, por

    antever a possibilidade de ocorrncias dessa natureza, teria Tocqueville alertado:

    de modo nenhum acredito que uma nao seja sempre senhora de deixar aos cidados o direito absoluto de se associar em matria poltica, e duvido mesmo que, em qualquer pas e em qualquer poca, fosse prudente no opor limites liberdade de associao. 34

    2.1.2 O Esprito de Religio

    Para Tocqueville, o esprito de religio o qual definiu como um dos dois

    fundamentos da civilizao anglo-americana, a combinar-se com o esprito de

    liberdade , por suas caractersticas, seria considerado como salvaguarda dos

    costumes e os costumes, como garantia das leis e penhor da sua prpria

    preservao 35. Desta forma, aps a exposio de algumas das implicaes que

    diferentes combinaes da liberdade com a igualdade podem suscitar

    especialmente a apatia social decorrente do individualismo e do materialismo, bem

    como os aspectos negativos da liberdade de associao , uma dimenso

    tico-espiritual se coloca necessria manuteno da democracia.

    no conveniente acreditar que, em tempo algum e seja qual for o estado poltico, a paixo dos gostos materiais e as opinies que se prendem a ela podero bastar a todo um povo. O corao do homem maior do que o supomos; pode encerrar, a um tempo, o gosto pelos bens da terra e o amor aos do cu; s vezes, parece entregar-se perdidamente a um dos dois; mas nunca fica muito tempo sem pensar no outro. 36

    34 Tocqueville. (1987) Op. cit., pp. 400. 35 Ibidem. pp. 42. 36 Ibidem. pp. 416-417.

  • 25

    Logo, da natureza humana, como afirma o educador Paiva Netto, por mais

    que os indivduos tenham saciadas suas necessidades materiais, as espirituais e

    intelectuais igualmente precisam ser preenchidas. O contrrio tambm verdadeiro,

    preenchidas as necessidades espirituais e intelectuais, mas faltando-lhes os meios e

    os recursos materiais para agir, os indivduos de maneira anloga no estaro

    plenamente satisfeitos.

    se os governos do mundo inteiro, num ato milagroso, resolvessem todos os problemas sociais de seus povos, as massas continuariam insatisfeitas, porque no somos apenas crebro, estmago, sexo; todavia, algo mais, muito mais, somos Esprito! E este tem aspiraes situadas alm das do corpo. Somos tambm sentimento refinado, vontade de descobrir novos campos, novas eras, novas dimenses. Somos Almas livres em Deus e no admitimos algemas.37(...) Na verdade, o Ser Humano, sabendo ou no, procura instintivamente o equilbrio, que s pode advir do exerccio da Fraternidade, a grande esquecida como lamentava Dom Joo Bosco (1815-1888) da trilogia da Revoluo Francesa (Libert, galit, Fraternit). 38

    E concluiu a respeito da falta de fraternidade e dos abusos cometidos em

    nome da liberdade, que a tanta gente guilhotinou na citada revoluo.

    Liberdade sem Fraternidade condenao ao caos. 39

    Assim, a partir dos aspectos levantados, as religies seriam, de maneira geral,

    modos simples e prticos de ensinar a imortalidade da alma, de chamar a ateno

    37 Paiva Netto, Jos de. Somos Todos Profetas. So Paulo: Elevao, 1991. 43 Ed. pp.154. 38 Paiva Netto. Jos de. Urgente Reeducar!. So Paulo: Elevao, 2000. pp.46. (grifos no original) Documento remetido em diversos idiomas, aos chefes de Estado, alto comissariado, representantes do setor privado e sociedade civil de mais de 100 pases, reunidos pela ONU em sua sede, em Viena, ustria, durante o High-Level Segment 2000, do Conselho Econmico e Social das Naes Unidas (Ecosoc), no qual a instituio presidida pelo autor, a LBV, possui status consultivo geral. 39 Paiva Netto. Jos de. Cidadania do Esprito. So Paulo: Editora Elevao, 2001. pp.95.

  • 26

    para os prazeres imateriais 40. Trata-se, portanto, do resgate de uma caracterstica

    inata ao indivduo: o sentido de religiosidade, que se expressa das mais variadas formas altrusticas. 41

    Tal sentido existe independentemente da adeso formal a uma denominao

    religiosa, logo inerente ao indivduo, mesmo quando este se declara ateu42. Pois,

    at uma pessoa que diga no acreditar em uma Causa causarum, ou em um princpio

    inteligente criador do Universo e de todas as formas de vida que nele se encontrem,

    tambm chamado por Deus, h de nutrir, para dizer o mnimo, bons sentimentos por

    seus familiares, amigos e mestres, e de ter uma preocupao, por menor que seja,

    com o futuro das geraes subsequentes sua prpria. E, a conseqncia social de

    se negligenciar esse sentido de religiosidade, como colocou Paiva Netto, que:

    Sem o proverbial estmulo da Solidariedade ensinada pelo Cristo e pelos luminares das crenas e pensadores de escol, o progresso humano sempre ficar aqum das expectativas do coletivo. 43

    Desta forma, a preocupao poltica com o futuro do pas no deixa de ser uma

    maneira de fortalecer o sentido de religiosidade, o qual leva os indivduos a pensarem

    sobre os destinos da nao, que pas as prximas geraes encontraro e

    principalmente acerca do que pode ser feito para melhorar o cenrio futuro. Por

    conseguinte, as aes passam a ser tomadas de maneira mais refletida, logo mais

    eficiente, considerando suas repercusses e possveis consequncias. Sobre o

    40 Tocqueville. (1987) Op. cit., pp. 416. 41 Paiva Netto. (2000) Op. cit., pp.31. (grifo no original) 42 Paiva Netto, Jos de. Diretrizes Espirituais da Religio de Deus Vol.3. So Paulo: LBV,1994. pp.62. 43 Paiva Netto. (2000) Op. cit., pp. 40.

  • 27

    assunto assim se expressou Tocqueville: Em todos os tempos, importante que

    aqueles que dirigem as naes se conduzam em vista do futuro. E acrescentou a

    isso: Assim agindo, os chefes das democracias no s fazem prosperar os negcios

    pblicos mas ainda, pelo seu exemplo, ensinam aos particulares a arte de conduzir os

    negcios privados 44. Portanto, de maneira antagnica lgica que o excesso pelos

    gostos materiais desencadeia, essa espiritualizao da poltica, por seu efeito

    pedaggico na conduo da vida privada, acaba por fortalecer o lao entre os

    indivduos e a sociedade.

    Embora no seja difcil notar a importncia para democracia de fazer reinar as

    opinies espiritualistas 45, no campo prtico, tal intento no dispe de semelhante

    facilidade. Aps analisar vrias possibilidades, com intrepidez, concluiu Tocqueville:

    Neste caso, que meios restam autoridade para conduzir os homens para as opinies espiritualistas ou para mant-los na religio que as sugere? O que vou dizer certamente ir prejudicar-me aos olhos dos polticos. Creio que o nico meio eficaz de que se podem servir os governos para fazer respeitar o dogma da imortalidade da alma, agir todos os dias como se eles mesmos cressem nele. 46

    Levantada por Tocqueville essa questo moral e pedaggica do exemplo,

    depreende-se que em poltica os indivduos que possuem mais visibilidade,

    conseguem dar maior projeo a suas aes, passam a ser vistos como arqutipos

    a serem seguidos e, com isso, invocam para si maiores responsabilidades perante

    os demais. Como j dizia Napoleo Bonaparte (1769-1821): As palavras indicam o

    caminho, mas os exemplos arrastam. Assim, tendo em conta essa perspectiva,

    44 Tocqueville. (1987) Op. cit., pp. 419. 45 Ibidem., pp. 417. 46 Idem.

  • 28

    iremos analisar as repercusses advindas das aes e de seus valores norteadores

    os quais os governantes e as diferentes comunidades propagaram na Itlia. Ou em

    outras palavras, que valores e de que forma estes interferem na sociedade.

    2.2 Putnam e a sociedade italiana

    Enquadrando-se entre os cientistas sociais de inclinao neotocquevilleana,

    Robert Putnam desenvolveu seu trabalho explorando as evidncias empricas de

    que a qualidade da vida pblica e o desempenho institucional so fortemente

    influenciados pelas normas e redes de engajamento cvico. do seu entendimento

    que para um bom desempenho uma instituio democrtica tem de ser sensvel s

    demandas do eleitorado e, ao mesmo tempo, tem de ser eficiente na utilizao dos

    recursos limitados ao atender essas demandas 47.

    Para atingir suas concluses, examinou a relao entre o desempenho

    institucional e a natureza da vida cvica, que chamou de comunidade cvica,

    e est ligado ao que Tocqueville analisou acerca da relao entre os costumes e

    as prticas polticas de uma sociedade. Para o entendimento dos efeitos dessa

    natureza cvica na sociedade, o conceito utilizado foi o de capital social, cuja idia

    central que as redes e as normas de reciprocidade generalizada, assim como

    outros tipos de capital, possuem valor e este pode ser mensurado.

    2.2.1 A Comunidade Cvica

    Suas pesquisas sistemticas sobre a comunidade italiana mostraram que a

    qualidade da governana era determinada pela longa permanncia das tradies

    47 Putnam, Robert D. Comunidade e Democracia: a experincia da Itlia moderna. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1996. pp. 25.

  • 29

    de engajamento cvico, ou pela ausncia das mesmas (as regies cvicas e as

    no-cvicas). Em seu entendimento, a comunidade cvica diz respeito aos padres de

    participao cvica e solidariedade social. Assim, alm da participao nos

    negcios pblicos, a cidadania nesse tipo de comunidade implica direitos e deveres

    iguais a todos, a igualdade poltica, e tambm implica maiores nveis de

    solidariedade, confiana e tolerncia. O que no quer dizer que esta esteja livre de

    conflitos, h o debate acalorado das questes pblicas com opinies firmes e

    divergentes, porm igualmente h a tolerncia e o respeito entre os oponentes. Aps

    examinar a relao entre desempenho institucional e conflito nas diferentes regies

    da Itlia, Putnam no encontrou nenhuma correlao entre conflito e comunidade

    cvica 48. Outro importante aspecto destacado pelo autor a existncia de certas

    estruturas e prticas sociais que incorporam e reforam as normas e os valores da

    comunidade cvica, tratando-se, portanto, das associaes to destacadas por

    Tocqueville. 49

    Para mensurar o nvel de civismo nas comunidades italianas, o autor formou

    um ndice composto, o que metodologicamente implica em um padro mais

    significativo e coerente, pois utilizando um indicador apenas pode se chegar a uma

    concluso errnea. Entre os indicadores de engajamento pblico que compem seu

    ndice de comunidade cvica, tem-se o comparecimento s urnas com (1) o voto

    preferencial em eleies gerais e (2) o comparecimento a referendos; outro indicador

    analisa (3) o pblico leitor de jornais; e o ltimo, (4) a participao em sociedades

    orfenicas e clubes de futebol. Quanto a adoo desses indicadores h de se

    mencionar que o voto em eleio geral na Itlia para escolher uma nica chapa

    48 Putnam, Robert D. (1996) Op.cit., pp. 130. 49 Ibidem. pp. 97;101-105.

  • 30

    partidria, mas h a possibilidade do voto preferencial, isto , o voto que indica a

    preferncia por um determinado candidato desta chapa. Assim a incidncia desse

    tipo de voto um indicador do personalismo e de clientelismo. O comparecimento

    em referendo uma boa medida de civismo, porque a motivao principal de quem

    vota o interesse pelas questes pblicas, j que esse mecanismo constitucional

    no traz as mesmas possibilidades de vantagens pessoais que uma eleio geral

    poderia oferecer. Por ser o meio que reserva maior espao para as questes da

    comunidade, o nmero de leitores de jornais reflete o interesse pelos assuntos

    comunitrios. Quanto ao ltimo, a associao um indicador bsico para se medir

    o civismo e as associaes desportivas e culturais constituem um indicador

    importante para o caso italiano. 50

    A partir dos resultados medidos nas vinte regies que compem a Itlia,

    Putnam constatou o seguinte a respeito das regies cvicas, que estariam localizadas

    predominantemente ao norte do pas:

    Em muitas regies da Itlia existem muitas sociedades orfenicas, clubes de futebol (...). A maioria dos cidados dessas regies acompanham atentamente os assuntos comunitrios nos jornais dirios. Eles se envolvem nos negcios pblicos, mas no devido poltica personalista ou clientelista. Confiam em que todos procedam corretamente e obedeam lei. Nessas regies, os lderes so razoavelmente honestos. Acreditam no governo popular e dispem-se a entrar em acordo com seus adversrios polticos. (...) As redes sociais e polticas se organizam horizontalmente e no hierarquicamente. A comunidade valoriza a solidariedade, o engajamento cvico, a cooperao e a honestidade. O governo funciona. No admira que nessas regies o povo esteja contente! 51

    50 Putnam, Robert D. (1996) Op.cit., pp.105-113. 51 Ibidem. pp.128.

  • 31

    E sobre as regies no-cvicas, as quais estariam predominantemente

    situadas ao sul do pas, constatou o seguinte:

    Nelas a vida a vida pblica se organiza hierarquicamente, em vez de horizontalmente, e o prprio conceito de cidado deformado. Do ponto de vista do indivduo, a coisa pblica problema dos outros i notabili, os chefes, os polticos e no meu. Poucos querem tomar parte das deliberaes sobre o bem pblico, e poucas oportunidades existem para isso. A participao poltica motivada pela dependncia ou ambio pessoais, e no pelo interesse coletivo. A afiliao a associaes sociais e culturais inexpressiva. (...) A corrupo geralmente considerada a norma (...). Presos nessa cadeia de crculos viciosos, quase todos se sentem impotentes, explorados e infelizes. Considerando tudo isso, no de admirar que nessas regies o governo seja menos eficaz do que nas comunidades mais cvicas. 52

    Por conta de as regies que hoje so cvicas serem industrializadas e de

    serem mais desenvolvidas socialmente e economicamente do que as regies

    no-cvicas, poderia se pensar que esse desenvolvimento fosse o sustentador da

    cultura cvica. Contudo, contrariado essa tese, a anlise de dados histricos

    constatou que as regies cvicas no comearam mais ricas e nem sempre foram

    ricas, mas permaneceram mais cvicas desde o sculo XI 53. Alm disso, ao utilizar

    as tradies cvicas e o desenvolvimento socioeconmico registrados no passado

    para prever o atual desenvolvimento econmico, constatou-se ser o civismo um

    prognosticador muito melhor desse desenvolvimento atual do que o prprio

    desenvolvimento registrado no passado 54. Por fim, Putnam chegou seguinte

    concluso: De fato, as anlises histricas sugeriram que estas redes de

    52 Putnam, Robert D. (1996) Op.cit., pp. 128. 53 Ibidem. pp.162. 54 Ibidem. pp.166.

  • 32

    reciprocidade organizada e solidariedade cvica, longe de serem um epifenmeno da

    modernizao socioeconmica, foram uma precondio para isto 55.

    2.2.2 O Capital Social

    Estabelecendo uma analogia com o que representa as ferramentas para o

    capital fsico e o treinamento para o capital humano, assim definiu Putnam: capital

    social se refere s caractersticas da organizao social tais como redes, normas

    e confiana social que facilitam a coordenao e a cooperao para benefcio

    mtuo 56. Desta forma, compartilhar valores e normas pura e simplesmente no

    produz capital social, se o que se partilha no promove esse incremento das relaes

    sociais. Isso pode ser notado, por exemplo, no sul da Itlia que, apesar de possuir

    fortes normas sociais, uma regio caracterizada pela escassez de capital social e

    de confiana generalizada. Por sua vez, a confiana nas relaes sociais, como

    destacou Fukuyama: funciona como um lubrificante que faz qualquer grupo ou

    organizao proceder de modo mais eficiente 57.

    Por no ser homogneo, o capital social se apresenta sob as mltiplas

    dimenses, assim sendo Putnam destacou que algumas formas podem ser mais

    formalmente organizadas com grupos que tenham um presidente, obrigaes que os

    membros devem cumprir, podem at ter abrangncia nacional; e outras formas

    podem ser bem mais informais, como acontece com um grupo que se rene todas as

    quintas-feiras em um bar. No entanto, os dois casos constituem redes que podem,

    55 Putnam, Robert D. Bownling Alone: Americas Declining Social Capital. Journal of Democracy, 6:1, Jan 1995, pp.66. 56 Putnam, Robert D. (1995) Op.cit., pp.67. 57 HARRISON, Lawrence, et al. (2000) Op. cit., In: Francis Fukuyama, Social Capital, pp. 98.

  • 33

    sem dificuldades, desenvolver a reciprocidade e trazer ganhos. Ilustrando com dois

    casos extremos, de um lado poderia se ter formas de capital social densamente

    entrelaadas, como um grupo de metalrgicos que trabalham juntos todo dia em uma

    fbrica, jogam boliche juntos aos sbados e frequentam a mesma igreja todo

    domingo. Num outro extremo, pode se ter formas muito tnues, quase invisveis, de

    capital social, como aquele aceno com a cabea para uma pessoa que mal conhece,

    mas encontra ocasionalmente no supermercado 58. Apesar de essas formas mais

    casuais aparentarem no ter muita importncia, Putnam alertou que elas no devem

    ser menosprezadas. Existem boas evidncias experimentais de que se voc acena

    com a cabea para as pessoas, elas esto mais propensas a ir ao seu socorro se

    voc tiver uma doena repentina ou um ataque cardaco, do que se no acenasse

    para elas, mesmo sem conhec-las. 59

    Sobre a dinmica que envolve o capital social, Putnam exps que a confiana

    e outras formas de capital social, como as normas e cadeias de relaes sociais,

    opostamente ao que acontece com o capital fsico, por exemplo, multiplicam-se com

    o uso e se reduzem quando no utilizadas. A partir disso, concluiu que a criao e a

    dilapidao do capital social se caracterizam por crculos virtuosos e crculos viciosos.

    E a respeito do caso italiano asseverou que A progressiva acumulao de capital

    social uma das principais responsveis pelos crculos virtuosos da Itlica cvica60.

    Assim, os sistemas da participao cvica, como os mencionados nos indicadores de

    comunidade cvica e a confiana to necessria cooperao, representam uma

    forma essencial de capital social, e quanto mais se desenvolvem maiores se tornam 58 Putnam, Robert D. Social Capital Measurement and Consequences. Canadian Journal of Policy Research, 2(1), 2001, pp. 42.

    59 Putnam, Robert D. (2001) Op. cit., pp. 42. 60 Putnam, Robert D. (1996) Op. cit., pp.179-180.

  • 34

    as probabilidades de cooperao para o benefcio mtuo. Pois, os crculos virtuosos

    favorecem equilbrios sociais com altos nveis de cooperao, confiana, bem-estar

    coletivo, reciprocidade e civismo. Enquanto, a desconfiana dos crculos viciosos

    obstaculiza qualquer forma de cooperao voluntria. Alm disso, os estoques de

    capital social em uma sociedade ajudam a reduzir os custos transacionais custos

    de monitorao, contratos, julgamentos e de execuo dos acordos formais61 pois

    h maior possibilidade de conciliao e maior vontade de resolver os problemas. E,

    tambm no que se refere aos dilemas da ao coletiva, por ter a caracterstica da

    participao social em que o respeito s leis e s normas cvicas um valor

    socializado, mais fcil identificar e punir a eventual ovelha negra, de modo que a

    transgresso torna-se mais arriscada e menos tentadora 62.

    Os efeitos promovidos pela acumulao de um estoque substancial de

    capital social em uma comunidade so os mais diversos, resumindo-os assim se

    expressou Putnam:

    Em primeiro lugar, redes de engajamento cvico alimentam fortes normas de reciprocidade generalizadas e encoraja a emergncia da confiana social. Tais redes facilitam a coordenao e a comunicao, amplifica reputaes, e assim permite que dilemas da ao coletiva sejam resolvidos. Quando negociaes econmicas e polticas esto inseridas em densas redes de colaborao, interao social, os incentivos ao oportunismo so reduzidos. 63

    Assim, em termos tocquevilleanos, o esprito de liberdade que se encontra na

    participao cvica, o qual estimula a cooperao e a confiana social, associado ao

    61 HARRISON, Lawrence, et al. (2000) Op. cit., In: Francis Fukuyama, Social Capital, pp. 99. 62 Putnam, Robert D. (1996) Op. cit., pp. 188. 63 Putnam, Robert D. (1995) Op. cit., pp. 67.

  • 35

    esprito de religio que motiva a continuao dessa participao mesmo quando os

    interesses econmicos e financeiros j tenham sido parcialmente ou totalmente

    atendidos pois este remete imaterialidade, eternidade, aos valores espirituais,

    intelectuais e culturais esses dois promovem mais que a manuteno, o

    desenvolvimento da democracia. O que acaba por redundar no fenmeno que

    Tocqueville havia mencionado e Putnam tambm: Finalmente, redes densas de

    interao provavelmente alargam nos participantes o senso do si mesmos,

    desenvolvendo o Eu em Ns, ou (em linguagem dos tericos da escolha racional)

    aumenta o gosto dos participantes por benefcios coletivos 64

    64 Putnam, Robert D. (1995) Op. cit., pp. 67.

  • 36

    3 ESTUDO DE CASO

    O contexto brasileiro marcado pela diversidade cultural; por uma sociedade

    complexa e dividida, como colocaria Putnam, com tendncias cvicas e no-cvicas.

    Enfim, "O pas no um bloco monoltico" 65. No entanto, consensual que a

    educao primordial em qualquer mudana efetiva e duradoura que se pretenda

    em uma sociedade. Putnam colocou que a educao um dos fatores que mais

    influenciam o comportamento poltico 66. E, o educador Paiva Netto, quanto

    gravidade do assunto, asseverou, que:

    enquanto no prevalecer o ensino eficaz por todos os de bom senso almejado, qualquer nao padecer cativa das limitaes que a si mesma se impe. 67

    Assim, por representar a escola uma espcie de laboratrio social,

    representativo dos valores e das relaes sociais que iro se reproduzir na vida em

    sociedade, alm de ser, aps o lar, a instituio, na qual crianas, adolescentes e

    jovens passam (ou deveriam passar) a maior parte do tempo, que se optou por

    analisar este tipo de instituio. Sobre os problemas da educao, a evaso escolar e

    a violncia figuram entre os piores. E seus efeitos so sentidos pela sociedade:

    As conseqncias da evaso escolar podem ser sentidas com mais intensidade nas cadeias pblicas, penitencirias e centros de internao de adolescentes em conflito com a lei, onde os percentuais de presos e internos analfabetos, semi- alfabetizados e/ou fora do sistema de ensino quando da prtica da infrao que os levou ao encarceramento margeia, e em alguns casos supera, os 90% (noventa por cento). Sem medo de errar, conclui-se que a falta de educao, no sentido mais

    65 Almeida, Alberto Carlos. Op cit. pp. 25. 66 Putnam, Robert D. (1996) Op. cit., pp. 131. 67 Paiva Netto, Jos de.(1991), pp. 191.

  • 37

    amplo da palavra, e de uma educao de qualidade, que seja atraente e no excludente, e no a pobreza em si considerada, a verdadeira causa do vertiginoso aumento da violncia que nosso Pas vem enfrentando nos ltimos anos. O combate evaso escolar, nessa perspectiva, tambm surge como um eficaz instrumento de preveno e combate violncia(...) 68

    3.1 O objeto de estudo: Escolas da LBV

    Os Centros Culturais e Educacionais da Legio da Boa Vontade (LBV) e mais

    especificamente, para efeitos de delimitao, o Instituto de Educao Jos de Paiva

    Netto (IEJPN) 69, que a escola-modelo localizada na capital paulista, foi escolhido

    como objeto desse estudo. A escola oferece educao infantil, ensino fundamental,

    mdio, educao para jovens e adultos e cursos preparatrios para supletivo. Atende

    cerca de 1300 alunos. Da Educao Infantil ao 7 ano, o perodo integral das 8h s

    18h, o 8 ano e 9 ano, das 8h s 16h, e no Ensino Mdio, das 7h s 15h40. H de

    se destacar que se trata de uma instituio privada de utilidade pblica, que oferece

    educao de qualidade e gratuita a alunos de baixa renda, que constituem a maior

    parcela do corpo discente. Portanto, a instituio cnscia de que se insere num

    contexto scio- econmico complexo, no qual a educao e a instruo ofertadas so

    fatores determinantes para a vida pessoal e profissional dos educandos.

    Por fim, a escolha se deveu ao fato de as escolas da rede de ensino da LBV

    possurem ndice de evaso zero e de constiturem um ambiente de no-violncia.

    Nessas escolas tambm se incentiva a participao social e o voluntariado. Assim, o

    68 DIGICOMO, Murillo Jos (2005). Evaso escolar: no basta comunicar e as mos lavar. pp. 01. Disponvel em: http://www.mp.ba.gov.br/. Acesso em: 05 mar. 2010. 69 Todas as informaes relativas s escolas da LBV foram obtidas junto direo, com o apoio da diretora Professora Maria Sueli Periotto; das funcionrias ssima e Elisangela; da voluntria, ex-aluna e historiadora Paula Sueli; e pelo site: http://www.iejpn.com.br.

  • 38

    estudo de caso proceder investigando, a partir de algumas das principais causas da

    evaso escolar, os fatores que favoreceram a escola analisada na obteno de seus

    resultados, os quais so almejados por toda e qualquer escola.

    3.2 As causas da evaso escolar

    recorrente separar as causas da evaso em funo de sua origem:

    estudante, escola, famlia e meio social. No que tange ao aluno, tem-se

    principalmente: a falta de auto-estima, de recursos para comprar material escolar,

    desinteresse, gravidez, etc. No que se refere escola, entre as causas esto: a falta

    de condies adequadas da mesma (salas, carteiras, sanitrios, refeitrios/ cantina);

    professores com baixos salrios, despreparados e/ou desinteressados.

    Na verdade, falta um tratamento digno aos professores, que so rfos de um sistema econmico desumano, que vigora em vrias regies do mundo. Para argumentar, podemos dizer que onde lhes so permitidas melhores condies de existncia material lhes negado o direito de pensar e sentir e onde no lhes vedada a ao de pensar no lhes concedido sobreviver decentemente...70

    Acerca da famlia, h causas relacionadas a problemas familiares

    propriamente (por exemplo, uma doena que acomete um familiar e o aluno tem que

    se desligar da escola para cuidar do mesmo, ou para levantar recursos financeiros); o

    desinteresse, a falta de acompanhamento e de incentivo dos pais e/ou responsveis.

    Quanto s causas relacionadas ao meio social, tem-se muitas vezes o desvio por

    70 Paiva Netto. (2000) Op. cit., pp. 48

  • 39

    ms companhias; o abandono escolar por incompatibilidade com o trabalho;

    agresso entre os alunos, a violncia das gangues. 71

    Assim, a evaso escolar pode advir das mais variadas motivaes, inclusive

    de muitas que sequer foram citadas. Uma causa sozinha pode at levar evaso, ou

    no, mas todas elas de alguma maneira se relacionam, no so excludentes, e se

    somam, contribuindo para que, como resultado da equao de diversos fatores, o

    aluno termine por abandonar a escola antes da concluso do ano letivo. E uma vez

    evadido da escola esse aluno poder se enquadrar nas seguintes situaes:

    Muitos dos alunos evasores nunca mais voltam escola. O que poderia ser um profissional preparado se continuasse nos bancos escolares, vai ser um trabalhador sem qualificao, com baixos salrios ou ainda pior, um marginal, um desempregado a mais, na vida adulta, pois no encontra trabalho pelo fato de no ter se preparado. Entretanto, h casos que no chegam a esta situao. Alguns evasores das escolas voltam a estudar, fazem um curso supletivo, quando evadem do ensino regular. Ou ento procuram outros meios de aprender alguma coisa para trabalharem e produzirem o suficiente para uma vida, embora modesta e honesta. 72

    3.3 Anlise e interpretao dos resultados

    Da mesma maneira que um conjunto de fatores favorecem a evaso, um

    conjunto de fatores favorecem a evaso zero e o ambiente de no-violncia. No que

    se refere escola e sua estrutura, alm de salas de aula e laboratrios bem

    equipados, o colgio dispe de quadras poliesportivas, biblioteca, brinquedoteca e

    ambientes para artes, ingls, carat, bal, xadrez e expresso corporal. O quadro de

    funcionrios composto de 235 profissionais entre direo, auxiliares, professores,

    71 Bissoli, Ana Cristina; Rodrigues, Rosngela Mazzia. Evaso Escolar: o caso do Colgio Estadual Antonio Francisco Lisboa. pp.6-8. Disponvel em: http://www.repositorio.seap.pr.gov.br. 05 mar. 2010. 72 Bissoli, Ana Cristina; Rodrigues, Rosngela Mazzia. Op. cit., pp.8-9.

  • 40

    pedagogos, psicopedagogos, psiclogos, assistentes sociais, enfermeiros e

    nutricionistas. Os estudantes contam com o apoio desses profissionais e de

    voluntrios que atuam na escola da maneira integrada, para promover a melhoria da

    qualidade de vida. A escola oferece trs refeies dirias: caf da manh, almoo e

    lanche da tarde (no perodo integral, janta). O material escolar provido pela LBV 73,

    h tambm atividades extracurriculares e atendimento ambulatorial mdico.

    Enfim, no que se refere estrutura fsica e ao corpo de profissionais a escola

    muito atrativa e bem equipada, o que instiga o interesse dos alunos. No entanto,

    apesar de esse aspecto ser contabilizado entre as causas de reduo de evaso

    escolar, no se pode atribuir tal resultado exclusivamente a isso, pois muitas escolas

    dispem de estrutura semelhante ou at melhor, mas no dos mesmo resultados.

    Putnam constatou em suas pesquisas que a relao entre a performance

    educacional e o capital social muito mais forte do que, por exemplo, os gastos com

    a escola ou qualquer outro fator considerado como favorvel ao aumento do

    desempenho educacional 74. Para atingir sua performance e garantir as redes e

    normas de confiana social, a Instituio faz uso de uma pedagogia inovadora, a

    Pedagogia do Cidado Ecumnico. Essa proposta do educador Paiva Netto aplicada

    na rede de ensino e nos programas socioeducacionais da LBV d especial destaque

    aos valores espirituais, ticos e morais, por compreend-los como ferramentas

    essenciais para a formao do carter e para uma convivncia fraterna e saudvel

    em sociedade. Assim, essa linha educacional tem por finalidade estimular um

    desenvolvimento mais eficiente, solidrio, democrtico, ecumnico, crtico e

    participativo dos educandos.

    73 A LBV promove todo ano a campanha Criana Nota 10 Sem Educao no h futuro que entrega milhares de kits escolares a meninos e meninas da baixa renda atendidos pela Instituio. 74 Putnam, Robert D. (2001) Op. cit., pp. 49.

  • 41

    Alm da qualificao eficiente dos alunos para colocao no mercado de

    trabalho, a Pedagogia da LBV se preocupa com o engajamento cvico. Desta forma, a

    escola oferece condies para que o aluno se aperceba como parte integrante de um

    grupo social, esse grupo por sua vez tambm um meio de interao, fonte de

    estudo e informaes. Mais que incentivar a pesquisa e prover contedo, a escola

    tambm prima pela participao dos alunos e pela socializao de seus

    conhecimentos e experincias, seja em sala, em exposies na prpria escola,

    colquios, mostras ou feiras culturais, manifestaes artsticas e culturais etc.

    Somando-se a esse fatores, h na grade escolar aula de Convivncia, que leva sala

    de aula temticas atuais, tal como o Bullying; questes de sade e sexualidade, como

    gravidez na adolescncia, Doenas Sexualmente Transmissveis; e tambm h a

    disciplina de Cultura Ecumnica, que promove, sem proselitismo, o estudo, a reflexo

    e, sobretudo, o respeito s crenas de cada indivduo, isto , cultiva o sentido de

    religiosidade como fomentador da cidadania. Na viso da pedagogia em questo,

    A escola imprescindvel, mas no substitui o lar. O Estado e a sociedade tm de, unidos, gerir solues para que as famlias criem e eduquem dignamente os seus filhos. 75

    E, por conta dessa preocupao com a famlia, agente fundamental no

    processo de formao constante do indivduo, o Instituto da LBV, por meio de

    palestras educativas, cursos e atividades esportivas, abre suas portas para o

    envolvimento da famlia e tambm da comunidade nesse processo.

    Trata-se, portanto, de um processo educacional completo, pois alm de dar

    maior visibilidade aos resultados da aprendizagem, o que fornece melhores

    75 Paiva Netto.(2000) Op. cit., pp. 36.

  • 42

    indicadores de eficincia do processo, eleva a auto-estima do educando, orgulha e

    fortalece as famlias, pois estas testemunham junto comunidade a evoluo e o

    desenvolvimento do aluno; e proporciona a satisfao ao educador de ver os frutos

    de seu trabalho reconhecidos e valorizados pela sociedade. Ou seja, a escola

    articulou uma comunidade cvica, o que aumentou o seu estoque de capital social,

    responsvel pelos crculos virtuosos que redundaram na evaso zero, no ambiente

    de no-violncia, entre outros resultados.

  • 43

    CONCLUSO

    O principal objetivo desta monografia foi verificar se uma sociedade com

    valores humanos, ticos e espirituais realmente favorecem um governo com melhor

    desempenho e se, a partir desses valores que fortalecem a sociedade civil, esse

    fortalecimento benfico para a democracia e promove o bem-estar coletivo. E de

    que maneira isso se processaria.

    Com esse intuito, ao longo do trabalho, foi apresentada a contextualizao e a

    justificativa histrica da relevncia desse tipo de estudo a partir da Era Axial de que

    falou Karl Jaspers. Tambm levantou-se a problemtica que envolve a democracia

    no contexto da modernidade adotando-se Tocqueville como referencial terico.

    Prosseguiu-se explorando possveis solues para o individualismo e o materialismo,

    apontados por Tocqueville como perigos democracia. Complementando a teoria de

    Tocqueville, explorou-se a contribuio de Putnam com suas investigaes empricas

    da relao entre o desempenho institucional e a natureza da vida cvica. Por fim,

    desenvolveu-se um estudo de caso acerca das Escolas da LBV, analisando os

    resultados dessas escolas e como elas alcanaram evaso escolar zero e ambiente

    de no violncia.

    Quanto ao carter pedaggico da participao poltica, Tocqueville destacou

    que o povo no conseguiria misturar-se aos negcios pblicos sem que o crculo das

    suas idias viesse a estender-se e sem que visse o seu esprito sair de sua rotina

    ordinria 76. Essa expanso da conscincia social decorrente do envolvimento com

    76 Tocqueville. (1987) Op cit. pp.188.

  • 44

    a vida pblica foi constatada tanto nas associaes nos EUA, nas comunidades

    cvicas da Itlia e nas Escolas da LBV.

    A concluso do trabalho foi que Tocqueville estava certo e uma sociedade com

    costumes e valores humanos favorece um bom governo. Pois esses valores

    fortalecem e favorecem o civismo e a confiana social, cria capital social para a

    comunidade cvica que, por seus prprios esforos, desafoga a demanda pelos

    servios do Estado. Ou como colocou Putnam: Eles exigem servios pblicos mais

    eficazes e esto dispostos a agir coletivamente para alcanar os seus objetivos

    comuns 77. Enfim, a colaborao e a reciprocidade generalizada vigoram. E pelo

    lado da oferta, o desempenho do governo tambm favorecido, pois uma

    comunidade cvica ao mesmo tempo que exige de seus governantes, faz a sua parte,

    d o exemplo, com isso governos ineficientes que se distanciem dos valores e

    costumes vivenciados pelos cidados no encontram base de sustentao.

    As possibilidades que se desdobram no contexto democrtico, como foi visto

    ao longo do trabalho, so variadas e podem ser boas ou ruins. Cabe, portanto, aos

    cidados escolherem que futuro desejam. Mais cvico, tolerante, confiante, solidrio e

    participativo; ou menos cvico, intolerante, desconfiado e individualista?

    Aparentemente uma escolha bvia, mas talvez por conta do contexto

    scio-econmico complexo do Brasil, na prtica, a escolha pela primeira opo no

    o que se observa de maneira disseminada. Isso nos remete necessidade de

    mudana do comportamento poltico e social, o que imprescindivelmente exige

    educao de qualidade para todos.

    77 Putnam, Robert D. (1996) Op. cit., pp. 191.

  • 45

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