ruanda 2011

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Ruanda

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UNIVERSIDADE DE BRASLIA INSTITUTO DE RELAES INTERNACIONAIS RUANDA: GENOCDIO E MDIA As Relaes Internacionais ea Comunicao Social AMANDA REZENDE Braslia 2011 AMANDA REZENDE RUANDA: GENOCDIO E MDIA As Relaes Internacionais ea Comunicao Social DissertaoapresentadaaoProgramade Ps-graduaodoInstitutodeRelaes Internacionais,UniversidadedeBraslia, comorequisitoparcialparaaobtenodo ttulodeMestreemRelaes Internacionais. readeconcentrao:Histriadas Relaes Internacionais Orientador:Prof.Dr.JosFlvioSombra Saraiva Braslia 2011 Jane (in memoriam), Dirceu e Marcelo, minha famlia amada, por me apoiarem sempre. Agradecimentos AoprofessorJosFlvioSombraSaraiva,pelaorientaocompreensivaeatenciosa. Peloconhecimentopartilhadoepelaconfiana.Pelaagilidadenasrespostasno momento em que mais precisei. Ao professor Delmo Arguelhes, pelo incentivo para o ingresso no mestrado. Pela ajuda preciosa em todos os momentos que necessitei e por iniciar-me nos temas de histria da frica. Aos professores do Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de Braslia, por terem auxiliado nessa caminhada acadmica e pelo conhecimento compartilhado. Aosfuncionriosdaps-graduaodoInstitutodeRelaesInternacionaisda Universidade de Braslia, Odalva e Gustavo, pela presteza e pacincia. Aos colegas da turma de mestrado, pelo apoio e pela amizade que promete se estender. Ao meu irmo Marcelo, pela torcida e pelo amor dedicado. Pelo orgulho que me inspira a buscar novos desafios. AoDirceu,peloamor,carinho,pacinciaecompanheirismoincondicional.Pela compreenso nos momentos mais difceis e pelas celebraes em cada passo dado. Por sabercompartilharminhaatenoentreafinalizaodomestradoeaorganizaodo nosso casamento. Pela assistncia detalhista na pesquisa. minha me, Jane (in memoriam), por ter sempre acreditado em mim. Resumo ApresentedissertaotemcomoobjetivosavaliarahistriarecentedeRuandae analisaraatuaodosmeiosdecomunicaodemassanogenocdioocorridonaquele pasafricano,entreabrilejulhode1994.Paratal,verificou-seanecessidadeprimria deestudaraformaodoterritrioruands,afimdeidentificaroprocessode desenvolvimento das identidades hutus e tutsis no escopo da consolidao do fenmeno estatal.Emseguida,foramabordadosmarcosconceituaisdadisciplinadeRelaes Internacionaisrelativosexperinciaafricana,bemcomoaconjunodetemas discutidosnocampodaComunicaoSocial,comvistasaatenderocarter interdisciplinardestapesquisa.Porfim,foramanalisadosdadosdejornais,revistas, transmisses de rdio e filmes relacionados ao genocdio de Ruanda do ano de 1994. OprimeirocaptuloabordaaformaodeRuandaeavariaonotempodos significadosdasidentidadeshutusetutsis.OsegundocaptulotratadeRuandacomo Estadoindependenteedaviradadepoderembenefciodoshutusapssculosde favorecimentotutsi.Oterceirocaptuloobservaasdiscussesnoescopodateoriadas Relaes Internacionais e na apresentao de conceitos vinculados histria de Ruanda, bem como mdia. O quarto captulo narra o desenvolvimento do genocdio e analisa os dados relativos atuao dos meios de comunicao de massa no contexto genocida. Palavras-chave: frica; Ruanda; genocdio; mdia; identidade. Abstract The present dissertationaims to evaluate the recent history of Rwandaand analyse the activity of mass media in the scope of the Rwandan genocide carried out between April and July, 1994.In this regardand primarily, it was identified the necessityof studying theformationofRwandainordertocomprehendthedevelopmentofhutuandtutsi identitiesalongtheconsolidationoftheStatephenomenon.Conceptsofthe InternationalRelationsdirectlyrelatedtotheAfricanexperienceweretakeninto account,aswellasthemesdiscussedintheSocialCommunicationsacademicfield, intendedtoattendingtheinterdisciplinaryaspectofthisdissertation.Datafrom newspapers, magazines, radio broadcasting and films concerning the Rwanda genocide of 1994 were also analysed. The first chapter studies the Rwanda formation and the changes occurred in the meaning ofhutuandtutsiidentities,consideringthefirstoccupationsofthatcountryterritory. The second chapter presents Rwanda as an independent State and the turning point that gave power to hutus after a long period of benefits directed to tutsis. The third chapter observesthediscussioninthescopeofInternationalRelationstheoryandconcepts related to the history of Rwanda, as well as those regarding the media. The last chapter investigatesthegenocidedevelopmentandanalysesdatafrommediainthegenocide context. Keywords: Africa; Rwanda; genocide; media; identity. Sumrio INTRODUO 1 CAPTULO I Aspectos da formao de Ruanda 6 1.1. Olhares conceituais e referenciais

6 1.2. Ocupao territorial de Ruanda 9 1.3. Organizao poltica, econmica e social antes da colonizao 15 1.4. O perodo colonial e o vento da destruio 20 CAPTULO II Ruanda independente: a Primeira (1962-1973) e a Segunda Repblica hutu (1973-1994) 28 2.1. Guerra civil e o fator Uganda34 2.2. O processo de democratizao40 2.3. Acordos de Arusha, UNOMUR e UNAMIR44 2.4. As identidades hutu e tutsi na histria de Ruanda50 CAPTULO III Guerras, genocdio e mdia na frica: as Relaes Internacionais e a Comunicao Social no caso de Ruanda 54 3.1. A frica e as teorias de Relaes Internacionais55 3.2. Guerras, frica e Ruanda58 3.3. Genocdio e Ruanda64 3.4. Meios de comunicao de massa 71 CAPTULO IV Ao e inao no genocdio ruands: fatos e cobertura miditica 79 4.1. Inao: a cobertura da mdia internacional na viso norte-americana88 4.2. Ao: os meios de comunicao de massa internos de Ruanda96 4.3. O genocdio, os veculos miditicos internacionais e o fenmeno do hate media pelas lentes do cinema 102 4.3.1. Hotel Ruanda 103 4.3.2. Tiros em Ruanda 106 CONCLUSO 109 FONTES E BIBLIOGRAFIA 113 ANEXO I Fontes do Jornal New York Times 126 ANEXO II Fontes do Jornal Washington Post 179 ANEXO III Mapas de Ruanda218 Lista de Abreviaturas AGNU Assemblia Geral das Naes Unidas APROSOMA Association pour la Promotion Sociale de la Masse BBC British Broadcasting CorporationCDR Coalition pour la Dfense de RpubliqueCEPGL Communaut Economique de Pays de Grands Lacs CNN Cable News Network CSNU Conselho de Segurana das Naes Unidas DGSE Direction Gnrale des Services Extrieurs (Frana) ETO Ecole Technique Officiele FAR Forces Armes Rwandaise FRONASA Front for National Salvation GP Guarda Presidencial (Ruanda) ICTR International Criminal Tribunal for Rwanda KBO Kagera River Basin Organisation MDR Mouvement Dmocratique Rwandais MDR-PARMEHUTU Mouvement Dmocratique Rwandais/Parti du Mouvement et de lEmancipation Hutu MRND Mouvement Rvolutionnaire National pour le Dveloppement MRND(D) Mouvement Rpublicain National pour le Dveloppement (et la Dmocratie) MSM Mouvement Social Muhutu NRA National Resistance Army NRM National Resistance Movement OECD Organisation for Economic Co-operation and DevelopmentONU Organizao das Naes Unidas OUA Organizao da Unio Africana PDC Parti Dmocrate Chrtein PL Parti Libral PRA Popular Resistance Army PSD Parti Social Dmocrate RADER Rassemblement Dmocratique Rwandais RANU Rwandese Alliance for National Unity RPF Rwandese Patriotic Front (ou FPR Frente Patritica Ruandesa) RRWF Rwandese Refugee Welfare Foundation RTLM Radio Television Libres de Milles Collines TRAFIPRO Travail, Fidlit, Progrs UNAR Union Nationale Rwandaise UNAMIR United Nations Assistance Mission for Rwanda UNOMUR United Nations Observer Mission Uganda-Rwanda Lista de Tabelas Tabela 1: Artigos por palavras-chave (p. 89) Tabela 2: Artigos por campo (p. 90) Tabela 3: Artigos por categoria de anlise (p. 91) - 1 - INTRODUO (...) A mesmice do mundo, seu carter comum (...) ou objetividade (...), reside no fato de que o mesmo mundo se revela a todos e, apesar de todas as diferenas entre os homens e suas posies no mundo (...), tanto eu quanto voc somos humanos (Arendt; 2008, pp. 55-6). Estadissertaodemestradotemporobjetivoprincipalavaliaro genocdio em Ruanda, com nfase no papel desempenhado pelos meios de comunicao de massa1 internos e internacionais. No caso dos veculos internacionais, a mdia norte-americanaofoco,particularmenteduranteosmassacresiniciadosem6deabrilde 1994.Paratal,props-seacombinaodeabordagenshistrica,polticaeconceitual, queperpassamtodoocontedoapresentado,paraacompreensodorecorterealizado. Deformaadicional,foifeitaaopopelorecursodainterdisciplinaridade,paraqueo objetoemquestopudesseserobservadoapropriadamente,emespecial,nocontextoe nosdesafiosqueoperodops-GuerraFriatrouxefrica2eaocampodasRelaes Internacionais. Acomplexidadedasquestesquemotivaramogenocdioruandsde 1994 levou necessidade de compreenso da histria de Ruanda, baseada em processos delongadurao.Comoconseqncia,estadissertaoestabeleceucomoumdeseus objetivos a anlise da construo identitria de hutus e tutsis, bem como suas variaes notempo,parareveraquestoracialetnicaemRuandacomoalgonatural.Esse recursoviabilizouoentendimentodecaractersticasdapopulaoedepontosde inflexesentreosdoisgruposaolongodaformaodoterritrioruands.Paratal, recorreu-seafontestradicionaisdehistriadafrica,semprebuscandoasrelaes entre Ruanda e seu contexto africano. O aprofundamento histrico foi primordial para a avaliao das fontes miditicas, assim como para tentar evitar atitudes da corrente afro-pessimista. Assumiu-sequeosveculosmiditicostmresponsabilidades compartilhadasemrelaoaosfatosquedizemrespeitossociedades.Amdia considerada ator importante no jogo de cena internacional, principalmente no que tange 1Osmeiosdecomunicaodemassatambmseroreferidosaolongodotrabalhocomomdiaou veculos miditicos. 2 Penna Filho (2009, p. 107) afirmou que o incremento dos conflitos africanos nos anos 1990 est claramente associado ao fim da Guerra Fria. - 2 - aos veculos que possuem capilaridadeglobal no alcance que a informao transmitida pode obter. Ao recorrer metfora utilizada por Thompson (2007, p. 3), importante ter em mente que a palavra-chave nessa responsabilizao influncia: Journalists[arefernciadoautorsoosjornalistasdosveculosde mdia internacionais] could have had an impact in Rwanda a sort of Heisenbergeffecthastherebeenasignificantenoughmedia presence to influence events. The Heisenberg effect () describes how theactofobservingaparticleactuallychangesthebehaviorofthat particle, its velocity or direction. Osconceitosdeaoeinao,desenvolvidosnoscaptulosfinaisdeste trabalho,estodiretamenterelacionadosaopoderdeinfluenciarcomintenoe premeditaoooutro.Essasduasidiasestorelacionadas,deformaintrnseca,aos objetivosdacomunicaoedefiniodosmeiosdecomunicaodemassa.Issose aplicoudeformaaidentificarcomoamdiainternaeinternacionalfoiefetiva,no sentido de conseguir comunicar ou no, ao realizar a cobertura do genocdio ruands.Paracomplementarosentidodoconceitodeinao,deve-selevarem conta o primeiro aspecto normativo ligado determinada situao genocida, qual seja, o deacomunidadeinternacionalcondenarerepugnaroidealdegenocdiopelasua natureza desumana. Esta dissertao no pretende questionar esse sentimento acerca do genocdio, mas, sim, t-lo como fato social. A normatividade sugerida se relaciona com questesmoraisdosindivduosedassociedadesque,emgeral,noconsideramo intuito genocida padro aceitvel. Entretanto, isso no significa reconhecer que todas as pessoas tm nivelado o conhecimento e o reconhecimento de certa situao como sendo genocdio, nem mesmo aqueles que planejam e executam o crime. Comodesdobramentodacondenaomoralesentimentaldessecrimee resultado dos esforos de alguns cidados pelo mundo, foi ratificada a Conveno para a Preveno e Represso do Crime de Genocdio,3 que, em seu artigo 8, prev obrigaes por parte dos Estados-membros da ONU, tanto no que diz respeito preveno quanto represso.Valeressaltar,queocrimedegenocdiofereboapartedostrintaartigosda DeclaraoUniversaldosDireitosHumanos,4contedocarocomunidade internacionalinstitucionalizadaemtornodasNaesUnidas.Asimplicaesda Convenomencionadaacimasooquesepodechamardeosegundoaspecto 3ONU.ConvenoparaaPrevenoeRepressodoCrimedeGenocdio.1948.Disponvelem: http://www2.mre.gov.br/dai/genocidio.htm. Acesso em: 28 de jun. de 2009. 4ONU.DeclaraoUniversaldosDireitosHumanos.1948.Disponvelem: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em: 15 de mai. de 2011. - 3 - normativodoatogenocida.Assim,seroencontradasrefernciasfuturassobreo aspecto dual da normatividade do genocdio, nas idias do dever ser e no significado jurdico. Aprimeirahiptesedequeosmeiosdecomunicaodemassade Ruandaoquefoiconvencionadochamardemdiainternacontriburamparaa incitao, mobilizao e direo do genocdio, o que ser denominado aqui como ao. O jornal Kangura e a RTLM (Radio Television Libres des Milles Collines) foram o foco dessaanliseporseremosprincipaisveculosmiditicosdeRuandaepelopapelde destaquedesempenhadonaqueleperodo.importanteesclarecerquenofoipossvel trabalhar com as fontes primrias do objeto em questo em virtude da indisponibilidade de acesso aos materiais impressos es transmisses derdioem Ruanda, tanto no que correspondesualocalizaofsicae/oueletrnicaquantoaoidiomautilizado.Dessa forma,considerou-seorelatriodojulgamentorealizadonombitodoICTR (International Criminal Tribunal for Rwanda) sobre o caso conhecido como media trial e estudos especficos sobre a atuao da mdia interna no genocdio. Ahipteseseguintedizrespeitoaosveculosmiditicosinternacionais norte-americanos,denominadostambmcomomdiainternacional,nosentidoqueseu desempenho contribuiu para o prolongamento dos conflitos por meio da inao. Foram escolhidos os jornais New York Times e Washington Post e as revistas Newsweek e Time Magazine,porteremamplaaudincianosEstadosUnidoseporseremdecirculao internacional.Almdisso,aopopelosveculosnorte-americanosfoimotivadapelo papelhegemnicodosEUAeportodaaatuaocontrovertidadesseatornocasodo genocdiodeRuanda.AsfontesprimriasforamacessadasinloconaBibliotecado CongressodosEstadosUnidos(LibraryofCongress).Enquantoasrefernciasdos artigosderevistasacessadosconstamnapartedefontesjornalsticasemFontese Bibliografia,asrefernciasdejornaisforamincorporadascomoanexosIeIIdeste trabalho, em virtude do grande volume de artigos analisados. A dissertao est dividida em quatro captulos, dois dedicados histria deRuandaeoutrosdoisvoltadosaodesenvolvimentodashiptesesacima mencionadas,vinculadasaoscamposdasRelaesInternacionaisedaComunicao Social. O primeiro captulo auxilia a compreender a formao e a variao no tempo dos significados das identidades hutus e tutsis em Ruanda, desde as primeiras ocupaes do territrio.Areconstruohistricadelongaduraobuscouapresentaragnesede formaodoEstadoruandsesuperarasimagenspr-concebidasdafrica, - 4 - normalmente,vinculadasasituaessemsoluo,guerrastribais,diobaseadoem etnia,banhosdesangueconstantesouexotismonatural.5Dessemodo,foipossvel mapearpontosdeinflexoimportantesnasrelaesdasociedaderuandesa,bemcomo verificar as distintas representaes dominantes na histria de Ruanda at o perodo da colonizao belga. OcaptulosegundotratadeRuandacomoEstadoindependente,apartir de1962,edaviradadepoderembenefciodoshutusapssculosdefavorecimento tutsi.nesserecorte,ambientadonaPrimeiraenaSegundaRepblicas,quese conseguiu figurar os resultados do acumulado histrico que desembocouno genocdio. AofinalizaremperodoanterioraoatentadocontraoaviodoPresidenteJuvnal Habyarimana, buscou-se categorizar e organizar as mudanas que levaram construo ereconstruodasidentidadeshutusetutsis,oraamparadasnaidiaderaa,ora baseadas na de etnia, desde a formao do territrio ruands.Oterceirocaptulolocalizaasdiscussesnoescopodateoriadas Relaes Internacionais e na apresentao de conceitos vinculados histria de Ruanda tratadaaolongodestadissertao.Asferramentasconceituaisescolhidasbuscaram dialogarcomouniversoafricano,comodevidodecuidadodebuscarregularidades, masevitandogeneralizaesnoajustveisaRuanda.Foiconsideradaimportante, ainda,arecuperaodoprocessoqueculminounaaprovaodaConvenoparaa PrevenoeRepressodoCrimedeGenocdio,assimcomodiscussesacercada definiodegenocdio,umavezquehdiversostrabalhosquecriticaramoconceito definido no tratado internacional. Ao abordar as duas linhas de entendimento dos efeitos doscontedosveiculadospelamdiaagenda-settingeespiraldosilncionos indivduos,considerou-seatinenteaproblematizaodotemamdiaepoltica.Esse caminhofoitilparaquenemamdia,nemapolticafigurassemcomovariveis predominantes a todo o momento e de modo isolado. Porfim,oquartocaptulonarrouodesenvolvimentodogenocdioe analisouosdadosrelativosatuaodosmeiosdecomunicaodemassa.Ao contemplarotestedashipteseselencadasacima,foramcontrastadososcaminhos opostostrilhadospelamdiainternaepelanorte-americana,masqueparticiparamdo 5PennaFilho(2009,pp.9-10)chamouatenoaospreconceitossofridospelafrica,muitasvezes relacionadosajustificativasdaEuropaparaoprocessodecolonizaoedominaoqueoseuropeus exerceramnocontinenteafricano.Oautordestacou,ainda,ofatodeafricatersidoreconhecida, durante algum tempo, como um continente sem histria propriamente dita, uma vez que a maioria de seus povosnoutilizavaaescrita.Aocontrriodisso, PennaFilhoconsideraqueafricaricaecomplexa, com os registros mais antigos da existncia humana. - 5 - mesmoresultado,aproximadamente800milmortesderuandesesemcemdias.Alm dasfontesmencionadasanteriormente,foramutilizadosdoisfilmessobreogenocdio ruands.Aavaliaodocontedodosfilmesagregouveculoadicionaldocampoda ComunicaoSocial,ocinema.Foiinteressanteobservarcomoamdiaretratoua atuao da prpria mdia no caso de Ruanda. - 6 - CAPTULO I Aspectos da formao de Ruanda O ponto de partida desta dissertao de mestrado a formao do Estado ruandscomoobjetivodemapearmomentoshistricosquemarcaraminflexesentre tutsisehutus,enquantoidentidadesconstrudas,eocasionaram,aolongodotempo, migraeseconfrontosqueculminaramnogenocdioocorridoem1994.Essa reconstruoobjetivaidentificarasvariveispredominantesparaacompreensodo genocdio,bemcomosuaracionalidade.6Ajustificativaparasetrabalharagnesede Ruandatraduzcautelanosentidodesuperarimagenspr-concebidasdocontinente africano, inspiradas no discurso hegeliano, que acarretaram na corrente afro-pessimista dosanos1990eestimularamacinciaeaopiniopblicanosentidododiscursoda inviabilidade da frica, conforme mencionado por Saraiva (2008, p. 96). 1.1. Olhares conceituais e referenciais OtrabalhodeP.Pierson(2004,pp.79-102)sobreprocessosdelonga duraodelineouasvantagensdeconsiderarperodosmaislongosempesquisas acadmicas, por permitir a identificao de causas e resultados que se perdem quando a temporalidade analisada restrita, o que pode prejudicar a compreenso dos fenmenos observados. A multicausalidade e a variao no tempo de elementos que compuseram o processoqueculminounogenocdiodeRuandalevaramadoodalinhadefendida pelo autor.Oenfoquegenealgicoseraferramentautilizadaparaexplorarcomo determinadoregimedeverdadeaoposioentretutsisehutusseconverteuem representaodominante.DeacordocomR.Devetak(2001,pp.184-8),anoode 6SobrearacionalidadedoconflitoemRuanda,Prunier(1997,p.xiii)escreveu:(...)atleastonecan havethebittersatisfactionofthinkingthateventheworstexperienceofhumanexperiencesarenot absurd and that they obey a recognizable logic, even if of a rather different kind from Hegels triumphant marchtowardsthehistoricalincarnationofthespirit.ChabaleDaloz(1999,p.xvii),porsuavez, chamaram ateno ao fato de que we cannot, for example, decide a priori that certain forms of African politics (e.g., the genocide in Rwanda, the disintegration of Zaire, or the smooth democratic transition in Cape Verde) are temporary aberrations which are not representative of existing trends on the continent. Estesautoresafirmaram,ainda,que()thatpoliticalactioninAfricacanbeexplainedintermsof rational behaviour, not merely backwardness. - 7 - genealogiaserefereaestilodepensamentohistricoqueexpeasrelaesdepoder-conhecimento.Dessaforma,aatenoestarvoltadaademonstrarcomodeterminada perspectivaproduziurepresentaesquedominarametornaram-selegtimasem detrimento de outras, bem como os efeitos decorrentes disso. Chabal e Daloz (1999, p. xx)defendemqueoconhecimentoeocontroledainformaosoimportantespara todososgovernos,todavia,tornam-sefatorescruciaisemsociedadesqueenfrentam situao de desordem. OmodelodeE.Martins(2002,pp.55-7)queatribuiquatrovias construodeidentidadesseradotadocomoreferencialnestadissertao.Assim,a reconstruo de fatos da histria de Ruanda dialogar com os tipos propostos pelo autor: identidadeporassimilaoouapropriao,identidadeporcontraste,identidadepor rejeio e identidade por diferena. De modo simplificado, o primeiro est relacionado aculturao,osegundosedmedianteprocessodediferenciaodooutro,com destaquedosaspectosquelhessoincomuns,oterceiroocorreemambientedeforte agudizao dos conflitos e o ltimo comum a todos os outros, pois a conscincia da diferena,necessariamentedecorrentedacontemplaodooutro,podederivarparaa assimilao, para o contraste, para a rejeio. EmcomplementoaosconceitosdeE.Martins(2002),aobradeM. Mamdani(2002,pp.14-5),queidentificaoscilaesnaconstruodasidentidades polticasdetutsisehutusorabaseadasemraa,oraemetnia,seraplicadaparaa observaodetaismovimentosnasociedaderuandesa.Esteautorapresentoua relevnciaemdiferenciaridentidadespolticasdeidentidadesculturaiseeconmicas. Asidentidadespolticassoentendidascomoconseqnciadiretadoprocessode formaodoEstado,comalteraesdeumperodohistricoaoutro,indicandofases distintasquemarcaramodesenvolvimentoinstitucionaldeRuanda.Raaeetnia,por suavez,soabordadascomoidentidadeslegalmenteimpostaseinstitucionalmente reproduzidas, o que lhes confere o carter poltico.ChabaleDaloz(1999,p.51)corroboramcomaidiaexpostaacimaao afirmar que no h identidade fixa no continente africano. Pelo contrrio, propem que asidentidadesafricanassejamanalisadasapartirdesuamudananocursohistricoe de como foram instrumentalizadas politicamente. A proposio de G. Prunier (1997, pp. XI-XII)deconsiderarosacontecimentosemRuandacomoprodutohistrico,eno comofatalidadebiolgicaousbitoataqueespontneo,deveserentendidacomo orientao fundamental neste trabalho.- 8 - ChabaleDaloz(1999)defenderamaidiadequeaetnicidadeapenas um trao constitutivo da identidade, entretanto, destacaram que em Ruanda e Burundi a polaridade desse trao identitrio levou a resultados desastrosos. interessante destacar aafirmaodequepoucoshutusemRuandaacreditavamqueteriamseusproblemas solucionados com a eliminao de todos os tutsis. Os autores mencionam, tambm, que o genocdio em Ruanda deve ser analisado a partir de razes histricas que remontam ao perodo pr-colonial e que foram agravadas durante a colonizao: Westerninterpretationsofethnicityandviolenceonthecontinent [Africa]almostallconcentrateonthesheerirrationalityofsuch fratricidalstrife.ThebulkofthereportsonRwandaandLiberia,for instance,haveconcentratedontheextenttowhichage-oldtribal hatredshavefuelledconflictshavebecomeeithergenocidalor incomprehensiblybarbaric.Whatisinterestingaboutthese explanations of such violence is the fact that they are tied to a notion ofthebackwardnessofAfrica.Theseconflictsoccur,itis implied, becauseAfricahasfailedtodevelopthetypeofWesternrationality which would in effect render them obsolete (Chabal e Daloz; 1999, p. 152). M.Mamdani(2002,pp.XII-XIII;p.9)sugeriu,ainda,asuperaode duas questes centrais presentes na anlise do genocdio em Ruanda e que interferem de modo direto nas pesquisas sobre o tema. A primeira entende as fronteiras estatais como fronteirasdeconhecimento,oquetransformafronteiraspolticasemquestes epistemolgicas.Oautoresclarecequeofatodeogenocdioterocorridodentrodas fronteirasdoterritrioruandsnosignificaquesuasdinmicasestejamlimitadasao pas. A segunda diz respeito a considerar que o conhecimento est relacionado apenas produo de fatos. Essa percepo tende a sobrevalorizar o fato em detrimento da teoria. Dessaforma,necessriobuscarequilbrionadosagemderecursoshistricos essenciaisparaadefiniodoescopodasaesetericosemproldacompreenso dos fenmenos estudados. Para o estudo do genocdio, M. Mamdani (2002, pp. 7-8) prope reflexo acercadethreesilencessobreoassunto.Noprimeirosilncio,percebe-seque muitosautoresescreveramsobreoacontecimentonegligenciandoahistriado genocdio, como se a violncia poltica no tivesse precedentes em Ruanda. O segundo silncio est relacionado aos agentes do genocdio, com a tendncia de abordar o fato como projeto estatal, demodo exclusivo, desconsiderando suacaracterstica subalterna epopular.Oterceiroeltimorelativogeografiadogenocdio,edizrespeitoa silenciar sobre as interaes regionais que colaboraram para o genocdio de 1994.- 9 - Nessecontexto,precisoconsiderarosdesafiosdeescreversobrea Histriadafrica.J.Ki-Zerbo([s.d.],v.I,pp.9-39)apresentaelementosque demonstramgrandesdiferenasemrelaoareferenciaisocidentaissoeles: barragemdosmitos;dificuldadesemtodosquantoafontesescritas,cronologia, tradiooral,arqueologia,lingstica,etnologiaeantropologiacultural,arte,outras cincias,antropologiafsica,quadrosgeogrficos,quadroscronolgicos;econcepo da histria. 1.2. Ocupao territorial de Ruanda Sobreapr-histriadafricaCentral,naqualestinseridaRuanda,F. VanNoten;etal.(1982,pp.559-66)escreveramacercadaimpossibilidadedetraar grandes reas culturais bem definidas para a regio. Os autores destacam que plausvel afirmarsobreapresenadohomememdeterminadomomento,masnosepode confirmar se ele veio ou no de fora. O fato que o homem se adaptou aos aspectos do meio clima, fauna e flora , todavia, respondeu de modo diferenciado ao diversificado meio ambiente encontrado. Resultou disso a existncia de reas distintas que, por vezes, sodotadasdetraoscomuns,masque,emmesmamedida,apresentamadaptaes regionaiselocaisquenosocompreendidasapenaspelainflunciadecondies ecolgicas distintas. Estima-se que a vida social se organizou na regio h mais de dois milhesdeanose,deacordocomosestudosdeJ.Nenquim,apresenahumanaem territrio ruands remonta ao Acheulense Superior.7 quase certo que os pigmeus, cujos descendentes so chamados de twas, foram os primeiros povos a ocupar o territrio ruands. De modo geral, os pigmeus da florestaequatorialetropicalcederam,aospoucos,lugaranovaspopulaesdealta estaturaquefalavamlnguasbantu.Osagricultoresdelnguabantucultivavamsorgo, criavam rebanhos e faziam artesanato rural. Sua organizao era baseada em linhagens e cls,comadireodeseusrespectivoschefes(Gourevith;2006,p.45;Olderogge; 1982, p. 295; Ogot; 1988, p. 528). Antes da expanso bantu, os povos que habitavam as margens do Lago Vitria e dos rios vizinhos eram descendentes da antiga populao de 7OAcheulenseIVouSuperior,emconformidadecomHermens(1982, p.547),serefereaoestgiono qual tcnicas de lascamento foram aperfeioadas (tcnica Victoria West II): trata-se de um ncleo muito mais circular, com plano de percusso facetado, de onde so destacadas grandes lascas com bulbo situado numabaseestreita(...).Essaslascasservemparaafabricaodosutenslios,bifaces,raspadorese machadinhas, todos finamente retocados. - 10 - tradio aqutica.8 Por mais que possussem caractersticas favorveis fcil adaptao, parecequeforamabsorvidospeloscolonosbantuemcurtoespaodetempo.Todavia, mesmo no papel de colonizadores, os bantu, possivelmente, adquiriram vrios aspectos relativos s tcnicas de pesca e s crenas dos povos que os precederam.A principalexpanso bantu foi abrangentee rpida, notvel processo de colonizao. Desde cedo, nas regies ricas de bons pastos e livres das moscas ts-ts, os bantu incluram em sua dieta agrcola o leite e a carne de vaca (Sutton; 1983, pp. 592-4).Originalmente,apalavrabantusignificavaumgrupodelnguas.Comopassardo tempo,adquiriucarteretnogrficoeantropolgico.Deacordocomalgunslingistas, as lnguas bantu tiveram origem na regio do Mdio Benue, fronteira entre a Nigria e a RepblicadosCamares.Estudosdeetnlogosdemonstramque,apesarda possibilidadedesedistinguiralgumasreasculturaisnouniversobantu,novivel estabelecer conjunto definido de caractersticas comuns aos bantu que os diferenciem de outros povos da frica (F. Van Notten; et al.; 1982, pp. 649-50). Nahistriadasmigraesafricanas,opapeldesempenhadopelamosca ts-ts,presentenocontinentedesdedatasmuitoremotas,deveserlevadoem considerao. Em regies infestadas por essa mosca, o desenvolvimento de criao era prejudicadoeospastoreslogosederamcontadequeprecisavamencontrarrotas alternativasszonasinfestadas.Dessaforma,amovimentaoderebanhosapartirda frica do Norte para o sul continental ficou restrita a passagens livres de moscas, tanto acessosnaturaisquantocriadosporcomunidadesagrcolasorganizadasedensamente povoadas. Ruanda e Burundi so bons exemplos desta ltima situao, onde a migrao de pastores criadores formou, com a fuso de outros povos, a sociedade de hutus e tutsis h,aproximadamente,novesculos.Valeressaltarqueopastoreionafricanofoi desenvolvidodemodouniforme.Soidentificadosnocontinente:comunidades nmadesquevivememmovimentopelabuscadeguaepastagensealgunsgrupos bantunaparteorientalqueassociaramacriaodegadoagricultura(Mabogunje; 1982, pp. 359-60). No sculo XV, boa parte dos povos de lngua bantu estava organizada em grupospequenos,formadosporvriaslinhagensquesesubmetiamaumalinhagem dominantedirigidaporummwami(chefeourei).consensoque,antesdoreinode 8AspopulaesdetradioaquticaselocalizavamaolongodabaciadoAltoNilo,emespecials margens do lago Vitria. Eram populaes que acampavam em ilhas, abrigos sob rochas, campo aberto beiradolagoedosriosdaregio.Suaalimentaoerabaseadaempeixesemoluscos,mastambmna caa e em bovinos e carneiros. No h registros de que tenham cultivado a terra (Sutton; 1983, p. 587). - 11 - Nyiginya,9 sete cls formavam Estados: Singa, Zigaba, Gesera, Banda, Cyaba, Ongera e Enengwe. Destes, os trs primeiros so considerados pioneiros em Ruanda. As tradies tutsisapontamqueoEstadomaisantigoemRuandafoifundadopeloclSinga, compreendendoamaiorpartedaatualRepblicadeRuanda,excetoaparteoriental. Todavia, possua organizao frgil e seu nome foi sequer conservado pela histria.No extremo leste, o Estado de Mubari, pertencente ao cl Zigaba, ocupou vastaregio.AprimeiramenoaoclNyiginyaaconteceuquandoosZigabalhe doaramacolinadeGasabo,comautorizaodepossuirchefeprprio,massubmetido aos Zigaba. Nesse perodo, o casamento entre os dois grupos ocorreu com freqncia. A independnciadoEstadofoiperdidanofinaldosculoXVI,quandoosoberano ruands,YukiIIGahima,retirouotamborrealdosZigaba.Parentesprximosdos Zigaba,osGeseragovernaramopoderosoEstadodeGisaka,asudoestedeRuanda,e possivelmente o de Bugyesera. Gisaka se manteve independente at sculo XIX, quando omwamiRwogera(1830-1860)oanexou.OsGeseracontinuaramagovernar,ato sculo XX, dois pequenos Estados que se separaram do Gisaka Busozo e Bushiru. O Busigi, Estado localizado no centro-norte de Ruanda, tinha um chefe fazedor de chuva e foi incorporado apenas no incio do sculo XX. Osexemplosacimatmporobjetivodemonstrarqueaautoridadede RuandanofoiimpostaapovossemEstado.Gisaka,porexemplo,foitobem organizadoquantoRuandanoinciodesuahistria.EssesEstadosdesenvolveram instituies monrquicas e ritos que visavam agir sobre a natureza. Algumas instituies polticas e religiosas foram incorporadas pelo Estado ruands medida que se expandiu. ApartirdosculoXV,onmerodepastoresaumentoudemodoconsidervelnesses Estados.Aprincpio,nocompunhamcastadominante.Ficoucomprovadoque,de forma indubitvel, no nordeste, no noroeste e nooeste do territrio ruands, pastores e agricultores conviveram em paz. O sistema de vassalagem que marcou as relaes entre essesgrupossedesenvolveuaps1500,nomomentodaintegraoaonovoEstadode Ruanda. Emgeral,assume-sequepelomenosnovedosgrandesclsdeRuanda (Sindi,Nyakarama,Ega,Shambo,Sita,Ha,Shingo,KonoeHondogo)eramtutsise, assim,deorigempastoril.Essesclselaboraramrvoregenealgicanacionalista,que 9OreinodeNyiginyasurgiunasegundametadedosculoXVIIcomoumacoalizoentreNdoriereis locais.Parainformaesdetalhadassobreoperodo,acessarAntecedentstoModernRwanda:The Nyiginya Kindgom, de Jan Vansina (University of Wisconsin Press, 2004). - 12 - fazdetodosostutsisdescendentesdofundadormtico,Gihanga.Ospastoresse deslocavamemgrupospequenoseheterogneos.AofinaldosculoXV,decidiram organizar-se em linhagens no sul e entraram em conflito com os agricultores. Contudo, comexceodedoisgrupos(HondogoeNyiginya),nenhumadaslinhagensera poderosaosuficienteparaconstituirumEstadoindependente.OsHondogoocuparam as margens do lago Mugesera, ao sul,e expulsaram os Gesera paraGisaka, a leste.Os NyiginyaformaramadinastiareinantedeRuanda.VindosdolestedoMubari, instalaram-senoGasabo,regiocentral.NofimdosculoXV,formaramumEstado centralizado, com a incorporao de pastores e agricultores (Ogot; 1988, pp. 529-31). H indcios de que os tutsis vieram de fora da regio dos Grandes Lagos e algumas correntes de pensamento acreditam que sua origem remonta a um tipo racial distinto.Deacordocomestas,aotomarporbasesuasatribuiesfsicas, provavelmente,habitaramosuldaEtipia.Todavia,hautoresmodernosquetmse empenhadoemcomprovarquehutusetutsispossuemamesmaorigemracial.Na tradiooral,10hcasosdeumamesmapessoarelatarduastradiesdiferentespara informarsobreomesmoprocessohistrico.Issoaconteceu,porexemplo,comduas versesdeumatradiosobrehutusetutsisemRuanda.Aprimeiracontaqueo primeirotutsicaiudocueencontrouohutunaterra.Asegundaserefereaosdois como irmos. G. Prunier (1997, pp. 16-7) sugeriu que, em virtude da falta de evidncias histricas, as especulaes devam parar nesse ponto.Ogot (1988, p. 511-13) apontou os desafios para se reconstituir a histria daregiodosGrandesLagosnoperododossculosXIIIaXVdaeracrist: primeiramente,aescassezdetradiesoraisedadoslingsticos,bemcomode informaes arqueolgicas adequadas; em segundo lugar, a questo do preconceito com quesecostumaabordarasrelaesentreospovosagrcolasepastoris;emseguida,a falta deconsenso sobrea cronologia; e, por fim, a restrio de informaes publicadas acerca de aspectos que extrapolem os crculos reais.Paraospropsitosdestetrabalho,osegundopontolevantadoacima relevante,umavezqueospovosagrcolassoassociadosaoshutuseospastoris,aos tutsis,empraticamentetodomaterialacessado.importanteressaltar,entretanto,que 10Atradiooralpodeserdefinida,deacordocomJ.Vansina(1982,p.158),comosendo(...) testemunhotransmitidooralmentedeumageraoa[sic.]outra.Valeressaltarqueaidiaapresentada no pretende aprofundar o conceito de tradio oral, mas situar o leitor de que o presente trabalho assume como vlido tal recurso metodolgico e o considera importante no estudo da histria da frica de maneira abrangente. Os griots so especialistas nessa prtica, pois conhecem tradies relacionadas a uma srie de fatos distintos. - 13 - Ogot no atribui nenhum sentido tnico, mas sim ocupacional, a pastores e agricultores. Talassociaotrazidanosentidodedemonstrarcomofoiincorporado,aolongodo tempo,ocontedohutuetutsisidentidadesocupacionais.Assim,emvriostextos histricos, os pastores so tidos como conquistadores civilizados que trouxeram ordem paraolocalconquistado.Osagricultores,porsuavez,sointroduzidoscomosendo massa dcil e silenciosa, que nunca buscou o desenvolvimento e a fundao do Estado.Ruanda,deacordocomesteautor,umbommodelodasimagens expostas acima. O historiador ruands A. Kagame, por exemplo, se negou a admitir que qualquerinstituioestataltenhadependidodaparticipaodosagricultorespara existir.Ogot(1988,p.511-12)pontuouque,pelocontrrio,houveaformaode Estados na regio entre agricultores antes mesmo da chegada de grupos pastoris. Esses gruposviveramempazporextensoperodo,atosculoXV,quandoteveincioo grandeprocessodeconstituiodosEstados,(...)oqualporsuavezfoiemgrande medida responsvel pela distino de classes sociais ou castas na regio.As tradies daregiointerlacustredemonstraramqueopastorqueperdesseseugadoconvertia-se emagricultorevice-versa.Essasalteraesocorreramnaregiodemodocontnuo, tanto em nvel individual quanto de grupos. UmadasmaioresdificuldadesparaescreversobrehistriadeRuanda podeseratribudafragilidadedoencadeamentocronolgico.Ki-Zerbo(1982,p.28) chamouatenoaofatodeaduraomdiadosreinadosoudasgeraesse apresentaremcomoquestocontrovertida,emvirtudedemudanasdemogrficase polticas.Deacordocomoautor,porvezes,umdinastaexcepcionalecarismtico polariza sobre si os feitos mais notveis de seus predecessores e sucessores que, assim, soliteralmenteeclipsados.ADaMonzon,reideSegunoinciodosculoXIX, atribudaagrandeconquistadessereinopelosgriots.Ogot(1988,p.512)demonstrou as controvrsias acerca do problema genealgico de Ruanda. A. Kagame defendeu que a fundao do Estado ocorreu no sculo X da era crist, tendo apresentado genealogia real desde959.11J.Vansina,dentreoutros,afirmaramqueosseteprimeirossoberanos apresentados por A. Kagame no foram personagens histricos, com a possvel exceo de Gihanga. M. Mamdani (2002, pp. 42-3), ao explorar a questo de quem so hutus e tutsis, faz duas observaes no que diz respeito s distintas correntes que se dedicam ao 11 A genealogia apresentada por Kagame foi: Gihanga I (959-992), Gahima I (992-1025), Musindi (1025-1058), Rumeza (1058-1091), Nyarume (1091-1124), Rukuge (1124-1157) e Rubanda (1157-1180). - 14 - estudodeRuanda.Entretanto,antesdeexporasquesteslevantadaspeloautor,vale realizar breve explicao sobre as correntes a que ele se refere. A primeira a corrente colonial e est baseada nas idias de diferena e separao da origem ancestral de hutus e tutsis. A tradio anti-colonial, por sua vez, tende a ressaltar as semelhanas dos dois grupos:porumlado,enfatizaoprocessodeintegraoculturalocorrido;poroutro, reconheceasdiferenasestabelecidasnoscamposocupacionaisedeprosperidade econmica para os grupos.A primeira ressalva de M. Mamdani (2002, pp. 42-3) no sentido de que arelaoentreaacademiaeapolticatemsidodialtica,amparadanaacademia.A perspectivapolticainfluencia,emtroca,odesenvolvimentoacadmico.Oresultado que os estudiosos de Ruanda tiveram seus parmetros de anlise baseados em questes de poder e no se dedicaram a pesquisar sobre o projeto poltico do pas, cujo objetivo era naturalizar a diferena com uma reflexo simplista, que atribuiu aspectos culturais e biolgicosdiferena.Porconseguinte,adiferenadecunhopolticoentrehutuse tutsis no foi abordada. ApropostadeMamdani(2002,pp.73-4)queasidentidadeshutuse tutsissejamtidascomoidentidadespolticasquesofreramalteraesnocursoda histriadeRuanda.Essaafirmaolevaaduasconsideraes:sehutuetutsiso consideradas identidades histricas, preciso reconhecer que suas definies podem ter variadoaolongodotempo;aoreconheceressasidentidadescomopolticas,possvel afirmar que sua trajetria foi influenciada pelas instituies de poder, em especial, pelo Estado.Os antecessores dos hutus e tutsis criaram comunidade cultural por meio de sculos de coabitao, casamentos entre grupos e trocas culturais, a comunidade das pessoasquefalamalnguaKinyarwanda.Essacomunidade,decarterregional, encontradatantodentroquantoforadasfronteirasruandesas.P.Gourevitch(2006) destacouestudodomissionriomonsenhorLouisLacger,nadcadade1950,que observou que, mesmo composta por uma pluralidade de raas,12 Ruanda possua grande sentimento de unidade nacional. Louis Lacger (apud Gourevitch; 2006, p. 53) escreveu: HpoucosnaEuropaentreosquaisencontramosessestrsfatoresdecoeso nacional: uma lngua, uma f, uma lei. 12Otermoraasremeteadiversasinterpretaese,nestetrabalho,foiapenasutilizadoparamanter a palavra utilizada na bibliografia citada. Para mais informaes sobre a questo aplicadas frica, acessar Appiah (1997). - 15 - M. Mamdani (2002, pp. 73-5) alegou que hutus e tutsis emergiram como identidadespolticasimpostaspeloEstado,nocontextodaemergnciade desenvolvimentoestatal.Dessaforma,nohcomoconsider-losnemumadistino tnicanemsocioeconmica,poishaviaporosidadenaaceitaodehutusbem-sucedidos, bem como havia o caso dos petits tutsis, que no desfrutavamde condies melhores que a maioria dos hutus. Este autor considerou, ainda, que a busca na histria dasmigraesdasorigensdehutusetutsisdesnecessria,poisosgruposso delimitados por identidades polticas, no culturais. P. Gourevitch (2006, p. 45) afirmou que, em funo da miscigenao entre hutus e tutsis em territrio ruands, historiadores e etngrafos concluram que os dois grupos no podem ser considerados grupos tnicos distintos. 1.3. Organizao poltica, econmica e social antes da colonizao De acordo com G. Prunier (1997, pp. 18-21), a questo central acerca das dinmicasdahistriadeRuandaestrelacionadaexpansodoreinosobadinastia Banyinginya.13Ageografiadopasfavoreceuafragmentaoelevouao estabelecimentodemicrounidadesoumicroestados,oqueDeLacgerchamoude toparchies.NosculoXVIII,Buganza,localizadanascercaniasdoLagoMuhaziena reacentraldeRuanda,iniciouoprocessodeunificaodeoutrasregiesprimeiro, Nduga;emseguida,Ndorwa,Mutara,Gisaka,Bugesera;e,porfim,asterrasaltasa oeste do pas. Aexpansoterritorialnofoiplanejada,pelomenosnoincio.Tal processoduroulongoperodoeficoumarcadopordiversosproblemas.Anatureza sagrada do rei significou a imposio ao reino de viso poltico-religiosa de propores quasemsticas.Issolevounecessidadedenormalizaodeprocedimentossociais, bem como reorganizao geogrfica simblica do territrio conforme viso de mundo imposta. Contudo, o poder real no alcanou todo o espao ruands. At o sculo XIX, muitosprincipadosemespecialnonorte,nordesteesudestedopasresistiram dominao central. H, at mesmo, casos de incorporao que ocorreram apenas aps a chegada dos europeus. medida que o controle do rei se estendeu, a natureza e o estilo 13 A dinastia Banyinginyase desenvolveu a partir de umamonarquia tutsi cujas origensso encontradas na regio central de Buganza. - 16 - desuaautoridadesofreramalteraesgraduaisrumoaoaumentodacentralizao administrativa e de formas autoritrias de controle poltico.Essemovimentoposteriormente,acompanhadoeapoiadopelos europeussignificouatransformaoexpressivaemcomparaoaoinciodosculo XIX.Asmudanasparaopasforam:ocontrolepolticocentralsetornoumais homogneo;nombitodacortecentral,oreieosmembrosdesuafamliapuderam fortalecereendurecerofuncionamentodaautoridadepoltica;ofortalecimentodos nveis central e local permitiu que a corte eliminasse os ltimos principados hutus; e as relaes de dependncia, descritas erroneamentecomo feudais emreferncia a perodo anterior, de fato, feudalizaram-se. G. Prunier (1997, p. 21) destacou a importncia de oprocessodescritoacimasercompreendidocomoumaquestodecentroversus periferia e, no, composto por relaes de oposio entre hutus e tutsis. Os critrios para identificaodasvtimasdorei,tantohutusquantotutsis,eramdefinidosporsua posio geogrfica. EmmeadosdosculoXIX,asduasprincipaismodalidadesdepossede terraeram:ubukonde,terralimpaeocupadapordeterminadalinhagemouporseus ancestrais;eigikingi,terradestinadaalinhagensproprietriasdegado,concedidapelo reiouporoutrapolticaoficial.Emalgunscasos,osclientestrabalhavamumoudois diasporsemananasterrasdopatro.Aobrigatoriedadedoservioeraocasionale, quandoaplicada,eradivididaentreosmembrosdalinhagemcliente,concebidacomo grupo.Asrelaessociaisentreosagentesdessetipodeclientelismoeram caracterizadas por laos de afetividade (Newbury; 1988, p. 79). No perodo em que ocorreu a ampliao do igikingi, as terras concedidas paraapastagempassaramaserutilizadas,principalmente,paraagricultura.Demodo adicional,houveavariaodoubuhakeparaasuaformamaisdesigualeaintroduo do trabalho forado por meio da ubuletwa, relativa prestao de servios de interesse pblico. O ttulo rgio atribudo a alguns prncipes hutus se tornou sinnimo de rebeldia perante o nvel central. Nas reas conquistadas durante a expanso a partir do centro de Ruanda, o igikingi e o ubuhake ficaram mais restritos depois dos anos de 1870 (Prunier; 1997, pp. 20-1). ValeressaltarqueomwamiRwabugiriseencarregoudepropagara ubuletwaporseusdomniosesuaaplicaovirousmbolodaopressocentralizadora do rei. Os belgas, em momento posterior, se beneficiaram dessa regra e a utilizaram de modo indiscriminado. Entretanto, o tipo mais controverso de dependncia pessoal entre - 17 - os ruandeses e os estrangeiros foi o ubuhake. Caracterizado como clientelismo desigual, o ubuhake em sua forma clssica, no necessariamente original consistia no patro tutsi dar uma vaca ao cliente hutu.Comoaoshutusnoerapermitidopossuirrebanho,14avacanoera apenas um bem econmico, mas modo de ascenso social. Em caso de reproduo, os bezerrosdeveriamserpartilhadosentreopatroeocliente.Umavezproprietriade gado,alinhagemhutusetransformariaemicyihuture,algocomosedeshutuizarou tutsifucar.Algunsindciosapontamqueoubuhake,emsuaformaoriginal,ocorria entre tutsis de linhagens distintas. Nesta poca, hutus s eram agraciados com vacas em situaesdereconhecidacoragemembatalhaseestasficavamrestritaspropriedade privada,semobrigaesdohutupresenteadoperanteotutsiqueofertouopresente (Prunier; 1997, pp. 13-4). Enquanto os encargos relacionados a terra eram coletados tendo por base unidades territoriais, outra forma de pagamento, referida como amakoro yumuheto, era fundamentada na adeso a grupo responsvel pelo umuheto, o exrcito social. Quando a organizaodoumuhetoteveincioemRuanda,osgruposincorporaram, principalmente, tutsis e envolveram alguma forma de servio militar. No final do sculo XIX,oumuhetosetornouumainstituioparacoletarencargosdehutusprovenientes de linhagens bem-sucedidas e tutsis. Ao menos em teoria, a autoridade do umuheto no era constituda a partir do territrio (Newbury; 1988, pp. 42-3). Osanosde1860a1931marcaramosurgimentodasociedademoderna ruandesaedeseusproblemasintrnsecos.Operodoemquestoseinicioucomo reinado de Kigeli IV Rabugiri, o grande conquistador, e terminou com o seu filho, Yuhi VMusinga.Porm,essasdatasnodevemsertomadasporindicaesprecisas,uma vez que essa temporalidade trata de processos difusos de transformao poltica, social e econmica.Jean-NpomucneNkurikiyimfura(apudPrunier;1997,pp.21-2), intelectual ruands tutsi, apontou questes relevantes sobre hutus e tutsis nesse perodo: Thegeneralisationofigikingiincreasedthecapacityforpressure coming from the political authorities on the inferior and middle social classes.Italsocontributedtoastrengtheningofethnicfeelingsboth atthetopandatthebottomofsociety.Neglectingthepooreststrata (mostlyBtwaandBahutu,withasprinklingofBatutsi),judgingthat themiddleclass(madeupofBahutuandBatutsi)wasreasonably happywiththesituationasitwas,themwami(king)andhischiefs 14 O gado era sinal de prosperidade econmica, poder e boa educao. - 18 - thoughtthatseveralelements,bothBahutuandBatwacouldbe integrated in the ruling group, that is the Mututsi lite, depending on theircapacities,theirwealthandtheirpotentialforexploitinguseful bloodconnections.Toopenupaccesstothenewibikingiholdings, manypeoplehadtobetutsifiedsomethingwhichmanyauthors calledaccessiontothenobility,anexpressionwhichblursthe distinctionbetweenthefewhigh-rankingBatutsilineagesandthe ordinaryBatutsiButthisenoblementpreventedthebirthofa distinct Bahutu chiefly stratum which could have become a privileged intermediary between the court and the larger population. Otrechoacimaevidenciaotemadaexclusodoshutusemrelao nova elite dominante. Ao final do sculo XIX, a maioria ou a totalidade dos camponeses hutustinhadevenderseutrabalho,comoobrigaosocialemercadorianosistema colonial (Prunier; 1997, p. 22). Em estudo especfico sobre os cem anos de 1860 a 1960 do processo de centralizao poltica de Ruanda, com foco no nvel local,15 C. Newbury (1988, pp. 51-2)afirmouqueaconstruodoEstadoruandsporRwabugirienfatizouas diferenastnicasemKinyaga.Hutusetutsisassumiramdistintosnveishierrquicos nasociedade,dependendodesuaproximidadecomacortecentral.Emmomento seguinte, quando a arena poltica foi ampliada e houve o aumento da atividade poltica, asclassificaessetornaramestratificadasergidas.Aidentidadehutupassouaestar associadaastatusinferior.NogovernodeRwabugiri,hutuetutsisetornaramrtulos polticos. Com a chegada dos europeus, as categorias tnicas ficaram ainda mais rgidas.Quandooprimeirobranco,ocondealemoVonGtzen,chegoua Ruanda,em1894,encontrouaseguintesituao:omwamivivianocentrodeuma grande corte e era considerado divindade, a verdadeira representao fsica de Ruanda. Contudo,omwamieraapenasopicedepirmidecomplexaderelaespolticas, culturaiseeconmicas.Abaixodomwamihaviatrstiposdechefes:omutwalewa buttaka,chefedaspropriedadesdeterra,responsvelpeladistribuiodeterras, produo agrcola e tributao; o mutwale wa ingabo, chefe dos homens, encarregado da fora que trabalhava na terra e do recrutamento de pessoal para o exrcito do rei; e o mutwalewainkaoumutwalewaigikingi,chefedaspastagens,quecontrolavaos pastos. 15OlocalescolhidopelapesquisadorafoiKinyaga,partedaPrefeituradeCyangugu,localizadaa sudoeste de Ruanda. - 19 - As funes descritas acima podiam se concentrar em uma mesma pessoa. Entretanto, em locais revoltosos ou de relaes mais difceis, o mwami tendia a separar as trs posies e nomear homens distintos. Havia a possibilidade de esse arranjo ficar maisintricadoquandoomesmohomem,sendochefedaspropriedadesdeterraedos homensdedeterminadacolina,tinhadelidarcomumchefedaspastagensemseu territrio,enquantoera,aomesmotempo,chefedoshomensemoutrasduascolinas, ondeosoutrospodereseramexercidosporterceiros.16Amaioriadoschefesera compostadetutsis,apesardealgunschefesdaspropriedadesdeterraseremhutus, considerando que o domnio destes era a agricultura. Os chefes impunham certas normas globais de trabalho/pagamento para a colinaecadafamliaencontravaarranjosprpriosparasatisfazerasdemandasdo governo.Umadasgrandesreclamaesacercadacolonizaobelgafoiaimplantao de restries duramente excessivas nesse sistema de arrecadao de trabalho/pagamento deformaquetodapessoaaptaaotrabalho/pagamentoeraobrigadaacumpriras determinaescoloniais.Omodeloanterior,baseadonaresponsabilidadecoletiva,era prefervel pela populao.curiosonotarqueoscls,elementobsicodeclassificaosocialem sociedades segmentadas, no exerceram tal funo em Ruanda. Enquanto famlias (inzu) oulinhagens(umuryango)podiamsercompostasdehutusoututsis,oscls(ubwoko) podiamserconstitudosdehutus,tutsisetwas.Defato,cleratermodedifcil aplicao,umavezquenohaviamemriaoulendadeancestralcomumentrea populaoruandesa.Ruandaapresentavanototalapenasdezoitocls,situaomuito peculiar em comparao com reas menores e menos populosas da frica que possuam mais de cem cls (Prunier; 1997, pp. 11-6). C.Newbury(1988,pp.40-8)destacouograndenmerodecampanhas militares contra pases fronteirios a Ruanda na poltica exterior do mwami Rwabugiri. Historicamente, o principal meio de impor o domnio central a novas reas foi por meio daconstruoderesidnciasreais(ibwami),deformaparticular,emregies consideradas revoltosas. Alm do umuheto e dos encargos relacionados a terra, algumas regiestambmforneciammateriaisemo-de-obraparaamanutenodascapitais reais.Atendnciadeestabelecerexrcitoscomforasbaseadasregionalmentefoi inovaoproporcionadapeloreinadodeRwabugiri.Dessaforma,cadaregio 16 Esse sistemafoi denominado por Richard Kandt de the interwined fingers, emtraduo livre para o portugus, os dedos entrelaados.- 20 - administrativadeRuandapossuatropasequipadaseochefedaregioera,aomesmo tempo, comandante do exrcito de sua rea. 1.4. O perodo colonial e o vento da destruio OsprimeirosexploradoreseuropeusdeRuandasedepararamcomuma populao dividida em trs grupos distintos (hutus, tutsis e twas), mas homogneos nos aspectos lingsticos e culturais. Falavam o bantu, viviam lado a lado e havia ocorrncia freqentedecasamentoentrepessoasdegruposdiferentes.Osgruposemquesto foram, de modo inadequado, denominados tribos. Considerando que tribos equivalem a micro-naes, verificou-se que o caso ruands no se aplica a essa classificao pelas caractersticas j mencionadas. A consideraoarbitrria dos colonizadores em relao superioridadedostutsisfrenteaoshutusdesconsideroufatoscomo,porexemplo,o histrico de mobilizao conjunta para lutar contra hutus e tutsis do Burundi (Ki-Zerbo; 2006, p. 54; Prunier; 1997, p. 5).O papel desempenhado pela imagem que os europeus fizeram de hutus e tutsisquandochegaramaRuandanosculoXIXeamodadacinciadasraasde Speke17merecedestaqueparaacompreensodoperodocolonial.Spekeatribuiu superioridade a apenas um tipo de negros compreendido por muitas tribos provenientes daEtipia,dentreelas,adostutsis.Escritosdessetipocondicionaramdeforma duradouraasatitudesdoseuropeusperanteapopulaodeRuandaeforam consideradosorientaescientficasinquestionveisnaadministraodealemese belgas. Essas idias tiveram, ainda, grande impacto entre os colonos (Gourevitch; 2006, pp.48-50; Prunier; 1997, pp. 7-9). Ao relembrar que os escritos de Speke foram, originalmente, destinados a explicarasituaodoreinodeBuganda,M.Mamdani(2002,p.87)indagasobrea razodeahiptesehamticapersistircomforapolticadcadasdepoisapenasem Ruanda e no Burundi. O autor atribuiu esta incidncia ao fato de que a idia dos tutsis como uma raa dissociada da populao em geral se transformou em base lgica para a criao de uma srie de instituies aliadas e inspiradas por fatores ideolgicos que 17 John Hanning Speke, o famoso explorador e descobridor da fonte do rio Nilo, apresentou em sua obra JournaloftheDiscoveryoftheSourceoftheNile(London,1863)oquedenominoudetheoryof conquest of inferior by superior races.- 21 - reproduziram a viso de tutsis como minoria racial. Assim, o processo de racializao dostutsiseratantoconstrutointelectualquantoinstitucional,assimcomoprodutoda parceria do Estado colonial com a Igreja catlica. As idias de que os tutsis eram superiores em virtude de terem vindo de fora e que a diferena racial os separava da populao local tiveram origem no perodo colonial.Talpercepofoicompartilhadaporcolonizadoresrivaisbelgas,alemes, inglesesnosentidodeconsiderarque,qualquerlugarnafricaondehouvesse evidncia de Estado organizado, os grupos no comando s podiam ter vindo de fora do local. Esses grupos mveis eram denominados de hamticos e havia a noo de que eles eramamoinvisvelportrsdetodosinaldecivilizao.Essaconcepoficou conhecida por hiptese hamtica (Mamdani; 2002, p. 80). OsalemeschegaramaRuandaem1894,momentocrucialparaas transformaesquevinhamocorrendonopas.Noanoseguinte,omwamiKigeliIV Rwabugiri morreu e o pas entrou em grave crise poltica, em virtude de no haver um sistemadesucessodefinido.Ignorantessobreapolticalocal,osalemesficaram vulnerveismanipulaopelocolonizados.Adicionalmente,oscolonizadores mantiverempresenamnimanolocalem1914,porexemplo,haviaemRuanda apenas96europeus,incluindoosmissionrios.AAlemanhainstalouseusprimeiros postosadministrativosem1897,comapolticadegovernoindireto,eseretirouem 1916. Nenhuma mudana profunda na sociedade ruandesa ocorreu durante esse perodo (Gourevitch; 2006, p. 52; Prunier; 1997, pp. 23-5). Acolonizaobelga,efetivaemcamponoanode1916,pormeiode conquistamilitar,eoficializadaem1919,pormandatodaLigadasNaes,tinhapor objetivocontinuareaprofundaraabordagemcolonialgermnicaemRuanda.Os primeirosanosdaadministraodepoisdadesignaodaLigadasNaesforamde waitandsee.ArealpolticacolonialdaBlgicafoiimplantadademodo progressivo entre 1926 e 1931, por meio de uma srie de medidas conhecidas como les rformes Voisin, pelo ento governante Charles Voisin. A reforma tinha por objetivos: transferir o poder do monarca para os chefes locais; reorganizar o poder das autoridades locaisparaextinguirqualquerresponsabilidadeperanteasrespectivascomunidadesou qualquerformadecontroledaburocraciaemnvellocal;eracializaraautoridade local. Oschefeshutusforam,demaneiramassiva,substitudosportutsis,de modo que, no final de 1959, 43 de 45 chefes eram tutsis, bem como 549 subchefes tutsis - 22 - em um total de 559. Os trs tipos de chefes que existiam em Ruanda foram fundidos em apenasumnoanode1929.Oshutus,queusualmenteocupavamocargodechefedas propriedades de terra, perderam posies considerveis. Os chefes do novo arranjo eram massivamentetutsis.Em1936,aintroduodosTribunaisNativosrealizadano escopodareformajudicial,agregouopoderderealizarjulgamentosaoschefeslocais, quejacumulavamospoderesexecutivoelegislativomarcouaconsolidao indiscutvel dos tutsis no poder. Toda a estrutura de corvia foi redesenhada e generalizou a aplicao da ubuletwa,otrabalhoforadoqueapopulaoabominava.Enquantoeraconsiderada obrigaodogrupo(linhagem)noperodoanteriorcolonizao,comachegadados europeus,tornou-sedeverindividual.Apenetraodocapitalismoocidentalencobriu umasociedadeantigaeosbeneficiriosdanovaordemforamaquelesqueestiveram mais prximos do poder, os tutsis. Apolticaracialsetornoupreocupaodosbelgasapartirde1925, comosrelatriosanuaisdaadministraodedicandoumcaptuloespecficoparaessa questo.Instituiesquetraduziamapolticaracialforamcriadasentre1927e1936. Assim,aeducao,aadministraodoEstado,ataxaoeaIgrejaseorganizarama partirdaorientaodasidentidadestnicas,sempreemfavordostutsis.Areforma incluiuarealizaodecensoparaclassificartodaapopulaoemhutu,tutsioutwa para, em seguida, emitir as carteiras de identidade tnica (Gourevitch; 2006, p. 55). O censo oficial, realizado entre 1933 e 34, diferenciou tutsis de hutus de acordocomaregradasdezvacas:quemtivessedezoumaisvacaseraclassificadoou classificada como tutsi, atrelando essa identidade idia de classe social. Os resultados do censo foram de 1,8 milhes de hutus e 250 a 300 mil tutsis. Com o nmero total de vacasestimadoem500e600mil,onmerototaldetutsis,considerandoaregra aplicada,noeracorrespondente.Explicaopossvelparataldiscrepnciaeraa existncia de petits tutsis, que no possuam as dez vacas necessrias, mas haviam sido classificados(as) como tal.Areorganizaoadministrativapromovidapelosbelgastevefimcoma retirada do mwami Yuhi V Musinga do poder em novembro de 1931, substitudo por um deseusfilhos,MutaraIIIRudahigwa.OsbelgaseaIgrejanosimpatizavamcom Musinga,eamudanatrouxegrandesatisfaoparaosestrangeiros.Onovoreifoi entronadosemcumprimentoerespeitoaosritostradicionais,fatoqueprovocouna - 23 - populaoosentimentoqueaquelenovomwamieraoreidosbrancos.Rudahigwa tambm se converteu ao cristianismo. Atosanosde1920,ocristianismohaviacativadopoucosadeptosno pas.Foiapenasapartirde1927queocorreuondamaciadeconverses,motivada pelas reformas administrativas belgas. Como pr-requisito para fazer parte da nova elite de Ruanda, a converso ao cristianismo entrou na pauta dos tutsis. A Igreja e o processo decristianizaoimpactaramopasemreasdistintas:aoestilodevidaafricanofoi vinculadofortesensodemoral;omonopliodaeducaoformaleradaIgrejae privilegiavaostutsisemdetrimentodoshutus;oritualdepossessoespiritual kubandwa18quasedesapareceudeRuanda,oqueacarretouemmudanasimportantes na vida espiritual e cultural do pas; na luta contra o paganismo, a Igreja destruiu outra prtica,okunywana,queconsistiaemritualdepactodesanguequepoderiaunir pessoas consideradas de origens sociais distintas. AmodernaRuandaeracentralizada,eficiente,neotradicionalista, catlicaebrutal.Entreosanos1920e1940,acargafiscaleotrabalhoforado aumentaramdemodoconsidervel.Oresultadodissofoioxododemo-de-obraem direoscolniasbritnicas,emespecial,Uganda,ondehaviaoportunidadesde trabalho. Durante breve perodo aps a Primeira Guerra Mundial, Gisaka (localizada na parteorientaldeRuanda)foianexadaaTanganica,queestavasobosauspciosdo Impriobritnico.Oscamponeseshutusestavambastantesatisfeitoscomanova situaoenoexpressaramomenordesejoderetornaraodomniobelga,oque aconteceu dois anos depois. Administradores,antroplogosdogovernoemissionriosestiveram empenhadosemreconstruiropassadoideolgicodeRuandae,apartirdessepassado artificial, o seu presente. Infelizmente, os nativos estiveram cientes dessa reconstruo, assim como das vantagens e desvantagens que ela trazia para a condio tnica de cada um.Asuperioridadetutsifoicientificamentecomprovadaedefendidapor antroplogos para que hutus pudessem ser explorados pelos europeus e pelos tutsis, pois eraminferioresedeveriamaceitarseudestino.G.Prunier(1997,p.39)afirmouque thetime-bombhadbeensetanditwasonlyaquestionofwhenitwouldgooff.O autor reforou que, apesar de no ter sido um local de paz e harmonia antes da chegada 18 De acordo com G. Prunier (1997, p. 33): Kubandwa had been an element of social cohesion because it washome-grown,trans-ethnicandhighlypersonal.Christianitywasalsotrans-ethnic,although definitely Tutsi-dominated during colonial years, but it was foreign and rather abstract. - 24 - doseuropeus,ahistriapr-colonialdeRuandanuncaregistrouviolnciasistemtica entre hutus e tutsis (Mamdani; 2002, pp. 80-99; Prunier; 1997, pp. 25-39). Emboranotenhasecolocadoafavordoshutusemmomentoalgum,a Igrejajchamavaatenoparaacondioimpostaaoshutussobodomniobelga.O ubuhakeneotradicionalevriasoutrasmedidastomadasparareestruturarasociedade ruandesa tiveram como efeito a mudana das relaes coletivas de subordinao social para as relaes individuais de explorao econmica. Os religiosos passaram, ento, a seposicionarcomopartidriosdeumacrescentecontra-elitehutu.19Adecisodo clrigolevouemcontaqueocontroledainstituioestavafugindodasmosdos brancos,considerandoque,em1951,padresbrancosenegrosruandeses,quaseque exclusivamente tutsis, eram compatveis em nmero.Aomesmotempo,aelitetutsitambmsofriatransformaonosentido dedefenderidiascomoigualdaderacial,descentralizaodapolticacolonialeauto-governo.AIgrejaviaessemovimentocomoameaaaseupoder,mastambmcomo algomaior,acontestaodetodaaordemcolonial.Umdosmaisimportantes instrumentos de contestao da posio que a elite tutsi ocupava em Ruanda foi a revista Kinyamateka,publicadanalnguaKinyarwanda.SobalideranadohutuGrgoire Kayibanda, tornou-se a mais lida do pas. A criao da cooperativa de caf TRAFIPRO asiglasignificavatrabalho,fidelidadeeprogressoforneceuacombinaoentre oportunidade econmica e treinamento de lideranas para a crescente contra-elite hutu. Paulatinamente, os hutus se organizaram em associaes de segurana mtua, culturais e com base nos cls. A administrao colonial belga estava sob a curadoria das Naes Unidas comoobjetivodeprepararoterrenoparaaindependnciadopas.Ativistaspolticos hutuscomearamaclamarpelogovernodamaioria.Em1956,oscolonizadores promoveramaseleiesdosconselhosconsultivos.Aintroduodeelementos democrticosabalouosfundamentosdatradicionalsociedaderuandesa.Emmarode 1957, foi publicado por um grupo de nove intelectuais hutus o Manifesto Hutu,20 que reivindicava a democracia. Uma democracia, todavia, a favor das carteiras de identidade 19 De acordo com M. Mamdani (2002, p. 106), a contra-elite hutu deRuandase desenvolveu a partir de trsposiessociais:aelitepr-colonialnosprincipadosindependentesdeRuanda;emrazoda economiademercado,emespecialdaforadetrabalhonoZaireeemUganda,quepermitiuaos camponeseshutusfugirdoregimedeservidoruands;eporimpulsodaeducaoescolar,frutoda parceria entre os missionrios e o Estado colonial. 20OdocumentoafirmavaqueaquestocentraldoproblemadeRuandaestavarelacionadaaoconflito entre os hutus e os hamticos, os tutsis estrangeiros. - 25 - tnica,baseadanonmerodeindivduosdecadagrupoequefortalecesseamaioria tnica(Gourevitch;2006,pp.56-7;Ki-Zerbo;[s.d.],vol.II,p.241).Omanifesto utilizouapalavraraa,oque,naquelecontexto,janunciavasriosproblemas vindouros. A reao da elite tutsi foi defensiva. Emmaiode1958,acortedosnotveis(bagaragubibwamibakuru) declarou que, desde Kigwa, ancestral da dinastia Banyinginya, os hutus foram reduzidos pelaforae,dessaforma,nopoderiahaverfraternidadeentrehutusetutsis.Em outubro do mesmo ano, Joseph Gitera, lder hutu, solicitou ao Monsenhor Perraudin que extinguisse o Kalinga, o tambor real sagrado, pois no podia ser considerado smbolo da unidadenacional,umavezqueeradecoradocomtestculosdeprncipeshutus derrotados. Os partidos polticos se proliferaram de forma rpida. O primeiro partido foi o MSM (Mouvement Social Muhutu), em junho de 1957 por Grgoire Kayibanda. Em seguida, surgiu o APROSOMA (Association pour la PromotionSocialedelaMasse)emnovembrode1957,comJosephGitera empresrio hutu sua frente. O APROSOMA se props a ser um partido baseado em classes, mas atraiu apenas hutus. Em agosto de 1959, os tutsis conservadores criaram a UNAR(UnionNationaleRwandaise),partidomonarquistaecontraacolonizao belga, que defendia a independncia imediata de Ruanda.Demodoinesperado,masjustificadoemcontextodeGuerraFria,a UNARpassouareceberrecursoseapoiodiplomticodepasescomunistasnombito do Conselho de Tutela das Naes Unidas. O resultado imediato foi o aprofundamento dosantagonismosentrebelgasetutsis.ParaconteraUNAR,osbelgasestimularama criaodaRADER(RassemblementDmocratiqueRwandais),emsetembrode1959, pelochefeBwanakweri.Enquantoisso,Kayibandamudouonomedeseupartido,em outubrodomesmoano,deMSMparaMDR-PARMEHUTU(Mouvement DmocratiqueRwandais/PartiduMouvementetdelEmancipationHutu).Aofinalde 1959, a situao era to tensa que qualquer incidente poderia causar uma exploso. Foi o que aconteceu. Emnovembrode1959,oativistahutu,etambmsubchefe administrativo,DominiqueMbonyumutwafoiespancadoporumgrupodeativistasda UNAR em Gitarama. Espalhou-se a informao de que ele havia sido morto, o que, de fato, no ocorreu naquele episdio. At os dias de hoje ainda h pessoas que acreditam em sua morte e, at esse fato acontecer, de acordo com P. Gourevitch (2006, pp. 57-8), nohaviaregistrosdeviolnciapolticasistemticaentrehutusetutsisemRuanda. - 26 - Logoapsoespancamento,hutuscomearamaatacarautoridadestutsiseconhecidos membrosdaUNAR.Diversascasasdetutsisforamqueimadas,semdistinoentrea eliteeospetitstutsis.Emmenosdeumasemana,aviolnciasealastrouporgrande partedopas.Ainsurreiohutuficouconhecidacomooventodadestruioe consistiuempilhagem,destruioe,demodoeventual,assassinatodetutsis.Desdeo incio das aes de violncia, a administrao belga se mostrou a favor dos hutus. Em25dejulhode1959,omwamiMutaraIIIRudahigwamorreusoba suspeitadetersidoenvenenadoporummdiconoBurundi.Onovoeinexperiente mwami Kigeli V, com apenas 20 anos, assumiu o poder, mas foi ignorado pelo Coronel belgaLogiest,quandopediupermissoparaconstituirseuexrcito.Forasfiisaorei foramlutaassimmesmo,maslogoLogiestresolveuinterceder.Nodia14de novembro,certaordemhaviasidorestabelecida.Porvoltadetrezentaspessoasforam mortas e 1.231 (919 tutsis e 312 hutus) presas. Noinciode1960,oCoronelLogiestanunciouque,emrazodas circunstncias,eranecessrioelegerumlado.Comandandoarevoluo,demodo virtual,perpetrougolpedeEstadopordecretoexecutivoerealizouasubstituiode chefes tutsis por hutus. Foram realizadas eleies regionais, em que os hutus garantiram 90%doscargosmaisimportantes.Asnovasautoridadeslocaiseramchamadasde burgomestrese,aostutsis,restouaadministraodeapenasdezenove,deumtotalde 229,comunas.Emoutubro,Logiestcomunicouquearevoluoestavaconcludae GrgoireKayibanda,umdosautoresdoManifestoHutu,foinomeadolderdo governo provisrio. ArevoluosocialaqueLogiestsereferiueradiferente,poismais pareciaasimplestransfernciadepodertnico.Nosdias14e15domesmoms, trezetutsisforamassassinadosnacomunadeKibingo,causandograndeondade emigrao. O nmero de tutsis desalojados e refugiados cresceu de forma significativa. Nofinalde1960,pequenoscomandosformadosportutsisexilados,chamadosde Inyenzi (baratas) pelos hutus, passaram a realizar ataques a Ruanda desde Uganda. Esses ataquesnoeramefetivoseosgruposagiammaiscomoterroristasdoquecomo guerrilheiros.Essesgrupospareciamnosepreocuparcomasrepresliasdogoverno ruands contra civis tutsis.Osnovosburgomestresrapidamenteretomaramosvelhoshbitos feudais e criaram seu sistema clientelista baseado no modelo tutsi, to opressivo quanto o de seus antecessores (Prunier; 1997, pp. 41-52). - 27 - Olhando para trs, os ruandeses diro que alguns incidentes como esse eraminevitveis.Mas,naprximavezquevoclerumareportagem como a que foi estampada na primeira pgina do New York Times em outubrode1997,relatandoavelhaanimosidadeentreosgrupos tnicostutsiehutu,lembre-sedeque,antesdoespancamentode Mbonyumutwa acender o pavio em 1959, nunca havia sido registrada umaviolnciapolticasistemticaentrehutusetutsisemnenhum lugar (Gourevitch; 2006, p. 57). Paralegitimararevoluo,osrevolucionriossebasearamemtrs alegaes: a mera alterao na identidade de poder foi, em realidade, umamudana na representaodaminoriaestrangeiratutsiparaamaiorianativahutu;aseleies foram introduzidas em nveis nacional e local, a cada trs anos haveria eleies diretas nas comunas; e, por fim, o trabalho forado foi abolido. Tais consideraes eram falsas eficaramcadavezmaissujeitasacrticasmedidaqueotempopassou(Mamdani; 2002, pp. 133-4).- 28 - CAPTULOIIRuandaindependente:aPrimeira(1962-1973)ea Segunda Repblica hutu (1973-1994) Em28dejaneirode1961,oCoronelLogiesteGrgoireKayibanda,a fimdeprevenirqualquerintervenodasNaesUnidasnapolticadeRuanda, organizaram um golpe legal. Os 3.125 burgomestres e conselheiros municipais foram convocados para reunio de carter emergencial em Gitarama, terra natal de Kayibanda, ondeademocraciadarepblicasoberanadeRuandafoideclaradaporaclamao. Destarte, a monarquia foi abolida e o governo de transio, institudo. O mwami Kigeli V fugiu antes que fosse proclamada a independncia (Ki-Zerbo; [s.d.], vol. II, p. 241). Alguns meses aps a proclamao da repblica, relatrio de comisso das NaesUnidasconcluiuquearevoluoruandesahavia(...)conduzidoauma ditaduraracialdepartidonico(...)(apudGourevitch;2006,p.60)eapenas substitudoregimeumopressivoporoutro.Osbelgasignoraramocontedodesse relatrioe,em1dejulhode1962,Ruandasetornouindependente,comGrgoire KayibandaempossadoPresidentedaPrimeiraRepblica.Algunsexilados demonstraramseuapoioaonovoregime,aopassoqueoutrosdecidirampelaviado confronto militar. A condio dos refugiados de Ruanda era distinta, dependia do pas onde se encontravam. O Estado mais favorvel era o Burundi, a se tornar uma das principais basesparaarealizaodeataquescontraRuanda.NoZaire,21asituaoeraconfusa com relao s pessoas em situao de refgio por ocasio da guerra civil, que durou at 1964.EmTanganica,osrefugiadosestavamsujeitosarigorosasmedidasdecontrole quevisavampreveniroperaesmilitares.Apesardisso,eramtratadosdeforma amigvel, com a ocorrncia de efetiva integrao com a populao local.No que diz respeito a Uganda, havia o controle estrito das atividades dos Inyenzi,primeiramentepelaGr-Bretanhae,aseguir,pelasautoridadesdaquelepas. Enquantoamaioriadapopulaougandensebanyarwandanodemonstravainteresse por sua causa, os Inyenzi representavam um problema poltica local, considerando que eramapoiadospeloreiMutesaIII.Esseapoiolhesrendeuhostilidadeautomticapor 21 O Zaire passou a se chamar Repblica Democrtica do Congo em 17 de maio de 1997. - 29 - parte de Milton Obote. Nos anos seguintes, milhares de tutsis foram assassinados em Ruanda e, porvoltade150mil,fugiramparapasesvizinhos.Noperodoemqueoshutusse mantiveramnopoder,detemposemtempos,tutsisnoexlioatacavamRuanda.Essas ofensivaseramespasmdicaseineficazesearepreensohutucontracivistutsis, imediataeostensiva.Amaisdramticainvasodetutsisnesseperodoocorreuem dezembrode1963,apartirdoBurundi.Apesardoelementosurpresadoataque,tudo havia sido mal planejado e carecia de equipamentos militares apropriados. Com o apoio belga, os hutus detiveram os tutsis a menos de vinte quilmetros de Kigali. O governo, mesmocomarpidavitria,declarouestadodeemergnciaparacombateroscontra-revolucionrios.Estima-sequedezmiltutsistenhamsidoassassinados,coma eliminao de todos os polticos tutsis no pas.A comunidade internacional ficou em silncio diante desse fato. A Sua, umadasmaioresdoadorasestrangeiras,foianicaainsistirnaapuraodos acontecimentos. O funcionrio das Naes Unidas Vuillemin, ao escrever para o jornal francsLeMonde,classificouosatospraticadosentredezembrode1963ejaneirode 1964comoumverdadeirogenocdio.Vuillemindenunciou,ainda,queoseuropeus presentesnopasincluindolderesreligiososefuncionriosdeorganizaes humanitriasatuavamcomindiferenaquedenotavacumplicidadecomasviolaes dedireitoshumanospraticadaspeloEstado.OfilsofobritnicoBertrandRussellse referiusituaonaqueleanocomosendoomaishorrvelesistemticomassacre testemunhadodesdeoholocausto.OnicoresultadodosataquesparaosInyenzifoio fortalecimento do Presidente Kayibanda.OPresidentedeRuandaeraomwamidoshutus,porsuaformade governareestiloautoritrio.Assimcomoorei,Kayibandacuidavapessoalmentedas indicaesenomeaesemseugoverno,atmesmodosnveismaisbaixosda administrao, prtica que o General Habyarimana continuou em sua gesto. O modelo monrquicodegovernanafoifundidocomideaisderivadosdarevoluosocial comoequidadesocial,justia,progressoemoralismo.Valedestacarqueopadrode obedinciainquestionvelporpartedossditoshutusfoivarivelrelevanteno genocdio de 1994. Emtemposemqueocontinenteafricanodiscutiatemascomo socialismo,revoluoedesenvolvimento,Ruandasemanteveemsilncio.Oanti-colonialismoerapautaforadequesto,umavezqueosbelgas,apsosuporteno - 30 - processodarevoluodemocrtica,eramtomadosporheris.Osdiscursos dominanteseram:ovalordeserhutu;acongrunciaentremaioriademogrficae democracia;anecessidadedeadotaromodelodevidacristo;eainutilidadeda poltica,22quedeveriasersubstitudapelotrabalhoduro.NaRuandavirtuosa,as prostitutaserampunidaseoscamponesestrabalhavamnaterrasemfazer questionamentos.Asituaodesubdesenvolvimentoopaseraumdosmaispobres do mundo era combinada com uma espcie de paralisia mental da populao. Em 1966, os tutsis exilados pararam os ataques contra Ruanda para evitar asretaliaescontraostutsisquelviviam.Todavia,nadcadade1970, acontecimentosnoBurundiprovocaramconseqnciasemterritrioruands,umavez que a elite tutsi daquele pas ameaava a populao hutu. Em 1972, por volta de 100 mil hutusforamassassinadosnoBurundie200milescaparamcomorefugiados,muitos paraRuanda.NesteEstado,centenasdetutsisforammortoseemtornode100mil fugiram. poca, o Presidente Kayibanda encarregou seu chefe do exrcito, o General JuvnalHabyarimana,deorganizarComitsde DefesaPblicaparaintimidarostutsis ruandeses. Motivado pelo papel que desempenhou nesses acontecimentos e por disputas regionaisoMDR-PARMEHUTUfoimonopolizadopelosGitaramasdocentro, Habyarimana,umnortista,tomouopoderpormeiodegolpeem5dejulhode1973. Teve incio a Segunda Repblica (Gourevitch; 2006, pp. 60-3; Ki-Zerbo; [s.d.], vol. II, p. 241; Prunier; 1997, pp. 53-61). AimobilidadepolticaeasdisputasregionaisdaPrimeiraRepblica tinham levado a elite ruandesa reprimida frustrao. A perseguio de tutsis, poltica e artificialmente motivada, assustou hutus moderados e tutsis. O isolamento internacional levouopasadificuldadesdecunhodiplomticoeeconmico.AchegadadeJuvnal Habyarimana ao poder foi recebida com alvio pela populao urbana em especial,a de tutsis e com indiferena pelos camponeses, j que sentiam no ter nada a ver com os arranjos polticos de Kigali. Devido ao resultado final de seu governo o genocdio htendnciadeconsideraroperodointeiroemqueestevenopodercomodanoso. Entretanto, no se deve incorrer nesse anacronismo pelas razes expostas a seguir. JuvnalHabyarimanadiminuiudemodoconsidervelosataquescontra tutsis. Estes viveram em segurana por certo perodo, entretanto, a excluso perdurou. O 22Aesfera polticaestavarestritaaoshutus,masnemtodostinhamespao paraatuar.Ostutsis podiam participardeatividadesdodomniodasociedadecivil,maseramproibidosdetransgredirparaa sociedade poltica. - 31 - presidentepersistiunaafirmaodosslogansquerelacionavamdemografiacom democraciaereforouamarginalizaopolticadostutsis.Duranteseugoverno, nenhum tutsi foi burgomestre, houve apenas um prefeito tutsi em Butare , um oficial tutsinoexrcito,doistutsisnoParlamento,deumtotaldesetenta,eum ministrotutsi nouniversodevinteecincoatrintamembrosdogabinetepresidencial.Ostutsisno podiam ingressar nas foras armadas e os membros destas eram proibidos de se casarem com tutsis.A Igreja, apesar da dominao hutu, se manteve mais aberta: nos anos de 1980,trs,dosoitobisposdeRuanda,eramtutsis.Noambientedoempregoprivado, altospadresdeformaoequestesculturaisdostutsisnotratocomosestrangeiros garantiramboasposiesnomercadodetrabalho.Apesardadiscriminao institucional,identificadaeobjetivadapelacarteiradeidentidadetnica,asituao havia melhorado para os tutsis, principalmente se comparada ao governo de Kayibanda. Porumlado,Habyarimanatrouxepazeestabilidadeaopas,desenvolvimentoeraa palavradeordem.Poroutro,asinstituiespolticasfavoreceramaconcentraode podernogabinetepresidencial,nasforasdeseguranaenopartido.23Opasfoi controlado de modo rgido: todos os cidados tinham seu endereo escrito na carteira de identidade,viagenseramtoleradas,masnomudardeendereosemjustificativa plausvel, mudana de residncia requeria prvia autorizao do governo.Havia esforo oficial para alienar a populao da poltica, assim como no perododeKayibanda.Apenasemnovembrode1981,oregimedeHabyarimana decidiu criar o parlamento, o Conselho Nacional de Desenvolvimento (Conseil National duDveloppement).OsargumentosdopresidenteparataleramdequeRuandaera pobre,limpaesria,assim,nodeviaperdertempocomfrvolasdiscussespolticas. Nessesistema,Habyarimanafoire-eleitoemdezembrode1983.Em1988,ganhou novamenteaseleiescom99,98%dosvotos.Ativistasdeseupartidoaindaficaram desapontados por ele no ter alcanado o ndice de 100%. Noescopodasrelaesregionais,Ruandaserelacionavatantocomo plano francfono o pas se tornou membro da CEPGL (Communaut Economique de PaysdeGrandsLacs),iniciativaapoiadaporParisquantoanglfono,estabelecendo alianapormeiodafricaOrientalnaKBO(KageraRiverBasinOrganisation), patrocinada pelo Banco Mundial. O objetivo era conseguir novas rotas de transporte por 23 O presidente Juvnal Habyarimana criou, em 1974, seu prprio partido, o MRND, do qual todo cidado era obrigado a ser membro. A partir disso, o unipartidarismo foi implantado em Ruanda. - 32 - Dar-es-SalaameLagoVitriapelaadesoCEPGLealcanarodesenvolvimento hidreltrico para o pas via KBO. Em1986,Ruandaenfrentougravecriseeconmicaemfunodaqueda dos preos de seus principais produtos de exportao: caf e ch. A soluo encontrada para obter lucro fcil foi desviar verbas de projetos internacionais de ajuda. No final da dcadade1980,oBancoMundialeoFundoMonetrioInternacionalexigiramque Ruandaimplantasseprogramadeajusteestruturale,em1989,ooramento governamentalfoicortadopelametade.Aomesmotempo,osimpostoseotrabalho compulsrio24aumentaram.Escndalosdecorrupovieramapblicoevrios opositoresdoPresidenteHabyarimanaforamatropeladosoumortosemsupostos acidentes. C.Newbury(1995,p.13)destacouque,nesseperodo,osconflitosse basearamemquestesregionaisedeclassee,namaiorparte,deram-seentrefaces hutus.Nessesentido,oregimedeHabyarimanaconcentrouesforosemrepresliasa seus opositores, fossem hutus ou tutsis. importante destacar que a paz s foi mantida, anteriormente,graasabenefciosfinanceirosconcedidosselites.De1973a1988,o nicomalogradoepisdioocorreucomatentativadegolpepeloantigochefeda seguranaThonesteLizinde,emabrilde1980.25Oenriquecimentodaselitesocorria por trs vias, exportaes de caf e ch, breves exportaes de estanho e ajuda externa. Comacrise,osacordosdecavalheirosquemantiveramaordemcomearamase romper. Oprimeirosinalprecisodequeasituaoestavapiorandofoio assassinato do Coronel Stanislas Mayuya em abril de 1988. Mayuya era amigo prximo doPresidenteHabyarimanaehaviarumoresdequeestavasendopreparadoparaa sucessopresidencial.TaloponoagradavaaoClandeMadamechamado depoisdeakazu26,grupoformadopelosmembrosdafamliadaesposade Habyarimanaeseusaliadosmaisprximos.Osprincipaismembrosdessaassociao 24 O to elogiado umuganda, lanado pelo presidente emfevereiro de 1974 e que consistia emforma de trabalho cooperativo comunal, passou a ocupar de dois dias por ms dos trabalhadores a quatro ou mais. A prtica estava longe de ser voluntria. 25AlgunshutusemRuandaacusavamJuvnalHabyarimanadeserpr-tutsi,umavezqueogoverno havia confinado a revoluo esfera poltica, tendo falhado em extinguir qualquer privilgio aos tutsis e repararosagravoshistricoscometidoscontraoshutus.Opresidenteemquestoredefiniuacategoria tutsi, de raa para etnia, como condio primria para sua reabilitao na sociedade ruandesa (Mamdani; 2002, p. 149). 26 A akazu a pequena casa era o ncleo de redes concntricas de energia poltica, econmica e militar queseriamconhecidasposteriormentecomooPoderHutu.Suainflunciaeratamanhaque,quandoo presidente da Repblica interferia em seus planos, era retirado do posto. - 33 - eramtrsdeseusirmos,CoronelPierre-ClestinRwagafilita,ProtaisZigiranyirazoe SraphinRwabukumba,seuprimoElieSagatwa,CoronelLaurentSerubugaeNol Mbonabaryi. O grupo foi seguido por outros, incluindo o Coronel Thoneste Bagosora, figura central do genocdio em 1994. DeacordocomG.Prunier(1997,p.85),nodesenrolardos acontecimentosquelevaramaogenocdio,oClandeMadamedesempenhoupapel importante por trs razes. Primeiramente, na poltica tradicional de Ruanda, quem est frente do poder necessita de seguidores leais que sejam seus ouvidos e olhos, pessoas deforadaestruturaoficialdepoder.Nopas,gruposbaseadosemclsnocasodo perodotutsiouemregiesgeogrficas,noqueserefereaogovernohutu,exerceram essa funo.Emsegundolugar,acriaodaSegundaRepblicafoimotivadapor vingana do norte do Estado contra o sul. Quando ficou evidente que apenas o grupo do norte seria o mais beneficiado pelo governo, iniciaram-se disputas internas para decidir quemlevariamaisvantagens.Porfim,oPresidenteHabyarimananoeramembrode nenhumalinhagemrespeitada,enquantoaorigemdesuaesposa,AgatheKanzinga, remontava s linhagens de hutus que comandaram principados independentes at o final do sculo XIX. Destarte, o presidente dependia do cl de Agathe e de seus clientes para afunodeseusolhoseouvidosnasociedade.Devriasmaneiras,Juvnal Habyarimana no possua o apoio poltico necessrio.ComosplanosdesucessovoltadosaMayuya,oCoronelSerubuga organizouoassassinato.Essefatodesencadeousriededesentendimentosedisputas entreoutroscls.Em1989,cortede40%nooramentogovernamental,emboaparte despesasemserviossociais,desagradouaoscamponeses.Aquestodaterraganhou dimensesmaioreseasuperpopulaoatingiunveiscrticos.Asecacausouafome ruriganizanosulesudoeste,matandotrezentaspessoasentre1988e1989elevando outrascentenasfronteiradaTanzniaembuscadecomida.Ogovernosedirigiu imprensa do pas no sentido de informar que nenhuma notcia que deixasse insatisfeitas asaltasautoridadesdeveriaserpublicada.OPadreSilvioSindambiwe,jornalistaque criticavaogoverno,foimortoemsupostoacidentedecarro.Outrosjornalistasque tentaram cobrir os eventos desfavorveis ao governo nessa poca foram presos. Aofinaldadcadade1980,Ruandasetornoumaisvulnervels presses externas, em especial, de cunho poltico. Com a queda do Muro de Berlim, os EstadosUnidoseaEuropaOcidentalpassaramaexigirdospasesafricanosque - 34 - iniciassemseusprocessosdedemocratizao.Emabrilde1990,oencontrocomo Presidente francs Mitterrand, em cpula franco-africana em La Baule, foi providencial nessesentido,poisJuvnalHabyariamanarecebeuoconselhodacontrapartefrancesa paraintroduziromultipartidarismoemRuanda.Valelembrarque,nosltimosquinze anos,aFranasubstituiuopapeldaBlgicanoEstadoruands,emtrocadegarantias financeirasemilitares.Em1975,KigalieParisassinaramacordodecooperaoe treinamento militar, seguido de aumento significativo do financiamento francs.Movimentos internos que reivindicavam a democraciaganharamaliados comoaassembliadosEstadosFrancfonoseoVaticano.Nessecontexto,oconselho deMitterrandfoiseguidorapidamente.Contudo,opronunciamentodoPresidente Habyarimana, em 5 de julho de 1990, sobre o multipartidarismo no evitou a publicao demanifestoemagosto,quedemandouademocratizaoimediata.Odocumentofoi assinado por 33 intelectuais de Ruanda.Ao finaldo mesmo ano, a situao poltica do Estadoeradecrise.TalcenriocontribuiuparaapreparaodainvasopelaRPF (Rwandese Patriotic Front) a partir de Uganda (Gourevitch; 2006, pp. 59-80; Mamdani; 2002, pp. 133-53; Prunier; 1997, pp. 54-90). 2.1. Guerra civil e o fator Uganda O governo de Juvnal Habyarimana reconheceu a questo da escassez de terrasfrentedensidadepopulacionalemRuanda,onde90%dapopulaoera dependentedaagriculturacomomeiodesubsistncia.Baseadonesseargumento,o presidente informou a posio de que no poderia acomodar grande nmero de pessoas adicionais e se negou a repatriar os refugiados, em especial filhos de tutsis que deixaram opasemepisdiosdeviolnciaanteriores.OtotalderefugiadosdeRuandaque habitavam pases vizinhos foi estimado entre 400 e 600 mil pessoas (Newbury; 1995, p. 13). Emjunhode1979,osrefugiadosdeRuandaqueviviamemUganda criaramaRRWF(RwandeseRefugeeWelfareFoundation)comoobjetivodeauxiliar vtimasdarepressopolticanopasresidentedepoisdaquedadeIdiAmin.Noano seguinte,aRRWFmudouseunomeparaRANU(RwandeseAllianceforNational Unity). Esta se apresentou mais disposta no engajamento poltico que aquela e discutiu de modo amplo o tema do eventual retorno dos exilados a Ruanda. Todavia, de 1981 a - 35 - 1986,aassociaotevedemigrarparaNairbienoconseguiumanteraatividade necessria ao alcance de seus propsitos. A mudana ocorreu em virtude da situao em Ugandaterficadoconturbada,emdezembrode1980,pelaeleiosobcondies duvidosas do antigo presidente, Milton Obote. Asguerrilhasseespalharamemterritriougandense.Umdostrs movimentos que questionavam a ascenso de Obote ao poder era liderado pelo Ministro daDefesadoGovernoProvisrioanterior,YoweriMuseveni.Seugrupofoi denominadoPRA(PopularResistanceArmy)esetornou,emjunhode1981,oNRM (NationalResistanceMovement),aouniresforoscomogrupodeYusufuLule, Presidente provisrio deUganda nos meses de abril a junho de 1979. Asoperaes de Museveni e seus 26 companheiros tiveram incio, em 6 fevereiro de 1981, com o ataque EscolaMilitarKabambaparaquepudessemsearmar.Entreosseguidoresde Museveni estavam dois refugiados de Ruanda, Fred Rwigyema e Paul Kagame. Os dois j tinham participado da FRONASA (Front for National Salvation), grupo guerrilheiro criado por Museveni em 1973, durante seu exlio na Tanznia. Comoacirramentodoconflitoem1982,YoweriMusevenifoiacusado peloPresidenteObotedeserruands,umestrangeiroseintrometendonosassuntos internos de Uganda. Houve alguns assassinatos sem nmeros precisos, estima-se que morreramcempessoas,muitosestupros,45milcabeasdegadoroubadas,35mil pessoas saram de assentamentos antigos e 40 mil pessoas fugiram do pas em direo a Ruanda.OsquesaramdeUgandaeconseguiramcruzarafronteiraruandesaficaram alojadosemcampos.Umgrupode8a10milpessoasfoidetidoemestreitafaixade terranafronteiraevigiadodurantemesesporguardasdeRuandadeumladoede Ugandadeoutro.ACruzVermelhaprestouassistnciaeaspressesinternacionais obrigaram o governo ugandense a identificar quem era ou no refugiado. Acrisede1982eosdoisanosseguintesemquepersistiramas perseguiescontraruandesesconstiturammarcodemudanaparaapopulao refugiadaemUganda.Osbanyarwandasaderiramemmassaaomovimentode Museveni.Em26dejaneirode1986,quandooNRA(NationalResistanceArmy) tomouKampala,3mildentreouniversode14milerambanyarwandas.Nomomento em que o NRA teve depassar de movimento deguerrilha para exrcito regular, outros tiveram de ser recrutados e os banyarwandas foram perdendo seu espao.Em1989,doisoficiaisbanyarwandas,osmajoresChrisBunyenyezie StephenNduguta,foramdevidamenteacusadosdecometerviolaesdedireitos - 36 - humanosduranteumaoperaoemTeso.Comoresultado,oPresidenteMuseveni constatouqueapresenabanyarwandanoexrcitoerafatorquedificultavaas negociaesdepazcomregiesrevoltosasdopas.Ahostilidadedessasregies aumentavaaindamaispelofatodeoMajor-GeneralRwigyematersidonomeadopara oscargosdeMinistrodaDefesaeComandante-em-ChefedoExrcito.As conseqnciasdosdescontentamentosforamobloqueiodaspromoespara banyarwandasnoexrcitoe,emnovembrode1989,aremoodoMajor-General Rwigyema dos altos cargos que ocupava. Apesardoexlioat1986,ostimocongressodaRANUpdeser realizado em Kampala, em dezembro de 1987. Nessa ocasio, a aliana se tornou a RPF comcarterdeorganizaopolticamaisofensivavisandoviabilizaroretornode ruandeses e ruandesas ao seu pas, se necessrio, pelo uso da fora. A RPF era composta por dois segmentos, pessoas que participavam do alto escalo do governo de Museveni epessoasexcludasdasociedadeugandense.Emagostode1988,foirealizadoem WashingtonoCongressoMundialdeRefugiadosdeRuanda.Oeventotevediversas resoluesaprovadassobreoRightofReturn.Emfevereirode1988,oPresidente HabyarimanacrioucomissoconjuntaentreRuandaeUgandaparatratardotemados refugiados, mas sem grandes resultados alcanados (Gourevitch; 2006, pp. 71-2 e 208-11; Newbury; 1995, p. 13; Prunier; 1997, pp 67-74). OcontextointernodeRuandaerafavorvelaoataquepelaRPF,em virtude de o sistema poltico do pas estar beira de colapso. Alm disso, desde 1988, a RPFtinhaseinfiltradonoNRAparacoletarinformaesprivilegiadas.Valedestacar queoataquede1990foiantecipadoemrelaoaoplanejamentoinicial,umavezque algumasreasdogovernodeRuandaestavamapardosplanosdeinvasodaRPFe preparavam-separadeflagr-lo.Porfim,amovimentaopolticalevouoscrculos intelectuaisavoltaremsuaatenoparaaorganizaodospartidospolticosde oposio,considerandoaimplantaodomultipartidarismoemcurso(Prunier;1997, pp.90-1).NoquetangeaUganda,osfatoresqueinfluenciaramoataqueforam motivadospelaconvergnciadeinteressesdosrefugiadosruandesesintegrantesou nodaelitequepretendiamfugirdadiscriminaosofridanopas,pelapresso internadevriosgruposqueseopunhampresenadosruandeses,emespecial,no governo (Newbury; 1995, p. 13).Emjulhode1990,adecisodeatacarhaviasidofirmementetomadae Fred Rwigyema iniciou o levantamento de fundos para a misso entre tutsis na Europa e - 37 - naAmricadoNorte.PaulKagamefoiparticipardetreinamentomilitarnosEstados Unidosemjunhoparanoatrairateno.Opreparativofinalparaoataquefoiquase cmico:paraexplicaraordemdemovimentaodetropasdadanosendomais Comandante-em-Chefedoexrcito,oGeneralRwigyemainformouqueopresidenteo haviaincumbidodeorganizaraparadamilitarparacelebraraIndependnciade Uganda, em 9 de outubro. O General Rwigyema era to conhecido e respeitado no meio que ningum se preocupou em checar a informao (Prunier; 1997, p. 92). Em 1 de outubro de 1990, grupo de cinqenta homens da RPF invadiu o nordestedeRuandaporUganda,pelopostodefronteiraKagitumba.Algunsminutos depois, centenas de homens vestidos com o uniforme do exrcito ugandense se juntaram aogrupoeatravessaramafronteiradeRuanda.Equipamentosearmasdoexrcitode UgandaforamamplamenteutilizadospelaRPF.AFrentepropunhaprogramapoltico quevisavaprfimtirania,corrupoeideologiadaexcluso,bemcomo interromper a produo de refugiados. Dessa forma, teve incio a guerra civil.A RPF foi beneficiada nos primeiros dias pelo efeito surpresa do ataque, mas,logo,vriosfatorescomearamaapresentarobstculosaogrupo.Oprimeiro grande golpe foi a perda do General Rwigyema, o carismtico e respeitado lder da RPF, morto no segundo dia da ofensiva. A notcia levou um tempo para ser confirmada para nodesmotivarastropas.Quandoconfirmada,atriburamsuamorteaumamina terrestre.Menosdedezdiasapsamortedoamigo,PaulKagamevoltoufricae desertou de seu posto no exrcito ugandense para assumir o lugar vazio de Comandante de Campo da RPF.ParaconteroavanodaRPF,asFAR(ForcesArmesRwandaises) contaram com o importante apoio de foras francesas. Vale ressaltar o fato de tal apoio violaracordoentrePariseKigaliqueproibia,demodoexpresso,oenvolvimentode tropasfrancesasemcombates,treinamentosmilitaresouoperaespoliciaisem Ruanda. Em princpio, a Blgica e o Zaire enviaram tropas, mas logo se retiraram foi solicitada a sada aos zairenses em razo das pilhage