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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS E APLICADOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – DOUTORADO
ROSILDA BENÁCCHIO
A RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO MOVIMENTO DE TRABALHADORES
TÉCNICO-ADMINISTRATIVOS ATRAVÉS DA FOTOGRAFIA –
O Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais – RJ
(SINTUPERJ)
Niterói
Setembro de 2007
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ROSILDA BENÁCCHIO
A RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO MOVIMENTO DE TRABALHADORES
TÉCNICO-ADMINISTRATIVOS ATRAVÉS DA FOTOGRAFIA –
O Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais – RJ
(SINTUPERJ)
Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em
Educação da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do título de Doutorado
em Educação. Área de Concentração: Trabalho e
Educação
Orientadora: Profª Drª MARIA CIAVATTA
Niterói
Setembro de 2007
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Ficha Catalográfica
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ROSILDA BENÁCCHIO
A RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO MOVIMENTO DE TRABALHADORES
TÉCNICO-ADMINISTRATIVOS ATRAVÉS DA FOTOGRAFIA –
O Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais – RJ
(SINTUPERJ)
Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em
Educação da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do título de Doutorado em
Educação. Área de Concentração: Trabalho e Educação
Aprovada em 24 de setembro de 2007
BANCA EXAMINADORA
Profª Drª Maria Ciavatta – Orientadora Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. Francisco José Lobo da Silveira Universidade Federal Fluminense
Profª Drª Virgínia Fontes Universidade Federal Fluminense
Prof.ª Drª Ana Margarida Campello Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Fundação Oswaldo Cruz
Profª Drª Libânia Nacif Xavier Universidade Federal do Rio de Janeiro
Niterói
Setembro de 2007
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No final de 71 teve a colação de grau da turma de Luiz Paulo Nunes, o estudante assassinado na frente do Hupe em 68. A turma escolheu Luiz Paulo como patrono e a oradora Telma Ruth Cruz Pereira teve seu discurso censurado pelo Diretor Jaime Landman. Telma subiu à tribuna e em absoluto silêncio, passou página por página, dizendo no final: “Era isso o que poderíamos dizer.” Professor Landman, sob apupos, deu encerrada a solenidade e os formandos tiveram que colar grau mais tarde, individualmente, no gabinete do diretor da FCM. (Tenório, 2000, p. 28)
Este trabalho é dedicado aos lutadores de ontem, de hoje, de sempre.
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AGRADECIMENTOS Passado este tempo do doutorado, o que não podem faltar são os agradecimentos.
Ao Claudio Fernandes da Costa, por seu amor, seu apoio constante e pela nossa melhor
“produção”: Luíza, que sempre presente com sua alegria e seu encantamento, ainda nos
ajudou a “escrever” nossas Teses. Não seria injusto se o subtítulo desta tese fosse “Dois
doutorandos e um bebê”.
Sem dúvida, à minha mãe, Alaíde do Nascimento Benácchio, que além do seu apoio e
incentivo constantes, esteve ao lado de Luíza quando as tarefas se avolumaram. Ao meu pai,
Otávio Benácchio, que compreendeu a ausência da avó que me ajudava. Assim, a minha
família me proporcionou uma base fundamental para a realização do trabalho.
Os amigos que sempre torceram e com os quais reflito a militância de todo dia: Vanja da
Rocha Monteiro, Perciliana Costa Rodrigues, José Carlos Thompson, Sandra Lúcia, Débora
Maria Lopes, Maria do Socorro Mello Mattos.
Os amigos e profissionais que sempre estiveram no movimento com disposição e com os
quais muito aprendi: Frederico Bittencourt, Samuel Tosta e Carlos Latuff. Agradeço a cessão
do uso das imagens para o trabalho.
À Direção Sintuperj 2004-2006 pela aprendizagem e pelo uso do material para a pesquisa.
À Orientadora, Professora Maria Ciavatta, pela disposição em sempre compartilhar, em
ajudar, pelo constante incentivo e pela interlocução sempre aberta.
Às amigas do doutorado Claudia Affonso, Laura Fonseca, Eliane Mora, Zuleide Silveira,
Lorene Figueiredo, Anita Handfas pela interlocução e apoio constantes.
Aos colegas e professores da “Orientação Coletiva”, etapa fundamental na nossa formação.
Aos colegas dos Projetos Integrados, coordenados pelos professores Gaudêncio Frigotto,
Maria Ciavatta e Marise Ramos, pelas contribuições a partir das discussões em torno do ato
de fazer pesquisa.
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Aos professores Maria Ciavatta, Gaudêncio Frigotto, Lúcia Neves, Virgínia Fontes, Osmar
Fávero, Giovani Semeraro, Ronaldo Rosas e Eunice Trein, com os quais muito aprendi e
continuo aprendendo.
À Banca de Qualificação, Professores Ronaldo Rosas, Ana Maria Mauad Essus, Carmen
Silvia Vidigal de Moraes, pelas preciosas contribuições e sugestões.
Aos Professores da Banca Examinadora, pelo aceite ao convite e pela possibilidade de
diálogo: Francisco José Lobo da Silveira, Virgínia Fontes, Ana Margarida Campello, Libânia
Nacif Xavier e Eliane Mora
Ao CNPQ pela concessão da bolsa de estudos
À Uerj pela concessão da licença sem vencimentos.
Aos funcionários da Pós-Graduação em Educação pela atenção e solidariedade, especialmente
Isabela, Wanda e Marilda.
Aos novos amigos da Tribo Amanayé, em especial Rita Ribes, Ana Cristina, Fabíola, Josana,
Mariana e nossas crianças que crescem felizes neste encontro tribal.
À Professora Anna Helena Moussatché, coordenadora do Programa de Alfabetização,
Documentação e Informação (Proalfa/Uerj) pelo apoio constante e incentivo, não apenas a
mim, mas para toda a equipe de trabalho. Agradeço também à Vanessa pela tradução do
resumo.
Ao grupo de estudos sobre o Imperialismo, coordenado pela Professora Virgínia Fontes, onde
venho continuando minha formação.
Aos companheiros da base do Sintuperj, sujeito histórico das lutas travadas contra os
governos neoliberais.
Ao Claudio Campos, novo amigo, a quem muito devo pela concretização deste trabalho.
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Quem construiu a Tebas das sete portas?
Nos livros constam os nomes dos reis.
Os reis arrastaram os blocos de pedra?
E a Babilônia tantas vezes destruída
Quem a ergueu outras tantas?
Em que casas da Lima radiante de ouro
Moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros
na noite em que ficou pronta a Muralha da China?
A grande Roma está cheia de arcos de triunfo.
Quem os levantou?
Sobre quem triunfaram os césares?
A decantada Bizâncio só tinha palácios
Para seus habitantes?
Mesmo na legendária Atlântida,
Na noite em que o mar a engoliu,
Os que se afogavam gritavam pelos seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.
Não tinha pelo menos um cozinheiro consigo?
Felipe da Espanha chorou quando sua Armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu, além dele?
Uma vitória em cada página.
Quem cozinhava os banquetes da vitória?
Um grande homem a cada dez anos.
Quem pagava suas despesas?
Tantos relatos.
Tantas perguntas.
Bertolt Brecht
(1898-1956)
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SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS vi
SUMÁRIO ix
LISTA DE ABREVIATURAS xiii
RESUMO xvi
ABSTRACT xvii
INTRODUÇÃO 18
Capítulo 1: ESTADO NEOLIBERAL E UNIVERSIDADE PÚBLICA 27
1. Estado, empresas e mercado 27
2. Principais concepções do Estado neoliberal: aspectos políticos e filosóficos 33
3. A Reforma do Estado brasileiro e a consolidação do projeto neoliberal:
principais aspectos teóricos 39
4. Breve histórico do sindicalismo e sua influência na política brasileira 47
4.1. O sindicalismo e o Estado Populista 51
4.2. O sindicalismo, o combate à ditadura militar e o surgimento
de uma nova esquerda no Brasil 54
4.3. O novo sindicalismo 55
4.4. A defensiva do sindicalismo nos anos 1990 57
5. A universidade pública: a Uerj em particular 59
Capítulo 2: ANALISANDO AS PRINCIPAIS REFORMAS
DO ESTADO BRASILEIRO 64
1. A Reforma da Previdência 67
1.1. Contextualizando a Reforma 67
1.2. Reforçando a contraditória lógica do déficit (rombo da previdência) 69
1.3. A influência da lógica dos organismos internacionais:
ajuste, justiça social e crescimento 71
1.4. Os principais pontos da reforma – regime próprio dos servidores públicos:
abordagem dos meios de comunicação 74
1.5. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) 77
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1.6. Os fundos de pensão como culminância de uma estratégia
vitoriosa de legitimação da(s) reforma(s) 81
2. A Reforma da Educação Superior (Universitária) 86
2.1. Aspectos gerais da Reforma da Educação Superior 88
2.2. Analisando pontos centrais da(s) proposta(s) 90
2.3. A vinculação ao Banco Mundial 92
3. A Reforma Sindical/Trabalhista 95
3.1. O itinerário da reforma e seu contexto 98
3.2. Os pressupostos que norteiam as reformas 102
3.3. As principais estratégias utilizadas pelo Governo 104
3.4. Repercussões da Reforma 107
Capítulo 3: MEMÓRIA E HISTÓRIA – O SINTUPERJ 109
1. História e fotografia 110
2. História e oralidade 123
Capítulo 4: RECONSTRUINDO AS LUTAS DO SINTUPERJ
ATRAVÉS DA MEMÓRIA FOTOGRÁFICA 128
1. Estrutura e organização do sintuperj: da experiência associativa-assistencial
à construção de um sindicato de luta, pela base 128
2. As lutas vistas pela ótica das greves 135
3. Movimento de lutas organizado pelo Sintuperj 2002-2003 136
4. A greve do Movimento Unificado dos Servidores
Públicos Estaduais – Muspe (2003) 141
4.1. Força da greve na Uerj repercute na mídia e movimento
é exemplo para todo o funcionalismo 143
4.2. Passeata “Xô Rosinha” 146
4.3. Governadora inicia terrorismo e chama servidores de bandidos 148
4.4.. Governo abre negociações com movimento unificado
e propões calendário para férias 153
4.5. Abraço à Justiça força Tribunal de Justiça a
decretar bloqueio das contas do Estado 155
4.6. Rosinha fica sem saída e apresenta calendário de pagamento do 13º de 2002 159
5. Outras lutas organizadas pelo Sintuperj em 2003 162
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6. O biênio 2004-2005/2006 da luta dos trabalhadores da Uerj 166
7. A greve de 2006: crise da Uerj volta ao debate público após a grave de nove meses 223
7.1. Crise na Uerj: crônica de uma morte anunciada 223
7.2. Unidade interna e externa do movimento de luta: um ingrediente fundamental 224
7.3. Greve expõe descaso do Governo na mídia 225
7.4. Vestibular suspenso: uma das principais estratégias de greve 226
7.5. Repercussão da greve em nível nacional 226
7.6. Ato em frente à Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro 227
7.7. Plenária no Hupe organiza a greve no Hospital 228
7.8. Abraço simbólico ao Campus Maracanã 229
7.9. Passeata do Largo do Machado ao Palácio Guanabara 231
7.10. Audiência Pública na Alerj:
violência do Estado contra trabalhadores se repete 234
7.11. Protesto em ritmo de samba 234
7.12. I Congresso Nacional dos Trabalhadores (I Conat) 255
7.13. Contra a farsa, mesa farta. Greve pra valer é a nossa 236
7.14. Abraço ao Colégio de Aplicação da Uerj 236
7.15. Movimento recupera integridade da autonomia aviltada:
liminar obriga paramento integral de salários 238
CONCLUSÃO 242
DOCUMENTOS 255
Escritos 255
Orais 257
Visuais 257
BIBIOGRAFIA 258
ANEXOS 268
Anexo 1 – O Projeto do Centro de Memória do SINTUPERJ 269
Anexo 2 – O mapa do acervo do SINTUPERJ 271
Anexo 3 – O Banco de Dados do SINTUPERJ 276
Anexo 4: Registro diário da greve de 2004/2005 278
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Anexo 5: O dia-a-dia da luta em 2006 287
Anexo 6: Descrição e análise do Projeto de Lei n.7.200, de 2006 288
Anexo 7: Os principais pontos da Reforma Sindical/Trabalhista 291
1. O papel das Centrais Sindicais 291
2. O pluralismo sindical 292
3. Sindicato por ramo ou setor econômico (art.32) 293
4. A representação dos trabalhadores por local de trabalho (RTLT) 294
5. Conselho Nacional de Relações de Trabalho (CNRT) 295
6. Sustentação financeira dos sindicatos 295
7. A auto-composição dos conflitos 296
8. Vigência dos Acordos Coletivos 297
9. A ultratividade da vigência das cláusulas 297
10. Limitações ao direito de greve 297
11. A prevalência dos acordos nacionais 298
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LISTA DE ABREVIATURAS
ABMES – Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior Aduenf – Associação dos Docentes da Universidade do Norte Fluminense Adufepe – Associação dos Docentes da Universidade Federal de Pernanbuco Aduff – Associação dos Docentes da Universidade Federal Fluminense Adufmat – Associação dos Docentes da Universidade Federal de Mato Grosso Adufrj – Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro Adunicamp – Associação dos Docentes da Universidade Estadual de Campinas Alca – Tratado Aliança Livre Comércio Alerj – Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro ALRS – Anteprojeto de Lei de Relações Sindicais Andes-SN – Associação Nacional dos Docnetes do Ensino Superior –Sindicato Nacional ApFaetec – Associação de Professores da Fundação de Apoio à Escola Técnica do RJ Asduerj – Associação dos Docentes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Asfenorte – Associação Ashupe – Associação dos Servidores do Hospital Universitário Pedro Ernesto Asuerj – Associação dos Servidores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Asunirio – Associação dos Servidores Técnico-administrativos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro BM – Banco Mundial Cafil – Conselho Acadêmico de Filosofia/Uerj Casse – Conselho Acadêmico de Serviço Social/Uerj CCJ – Comissão de Constituição e Justiça CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Cepuerj – Centro de Produção da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Cet – Conferência Estadual do Trabalho CNRT – Conselho Nacional de Relações de Trabalho Cofins – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social Conat – Congresso Nacional dos Trabalhadores Conlutas – Coordenação Nacional de Lutas Conlute – Coordenação Nacional de Luta dos Estudantes Consuni – Conselho Universitário/Uerj CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito CPMF – Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira Crea-RJ – Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura-Rio de Janeiro Csepe – Conselho Superior de Ensino e Pesquisa/Uerj CSLL – Contribuição sobre o Lucro Líquido Cut – Central Única dos Trabalhadores
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Cut-RJ – Central Única dos Trabalhadores/Rio de Janeiro DCE – Diretório Central dos Estudantes/Uerj DCE- PUC – Diretório Central dos Estudantes da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Degase – Departamento Geral de Ações-Sócio Educativas DER – Departamento de Estradas e Rodagem Desipe – Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro Diap – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar Dinfo – Diretoria de Informática/Uerj Dip – Departamento de Imprensa e Propaganda DRT – Delegacia Regional do Ministério do Trabalho EC – Emenda Constitucional Esdi – Escola Superior de Desenho Industrial/Uerj Faetec – Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro FAF – Faculdade de Administração e Finanças/Uerj Fasubra – Federação dos Sindicatos de Trabalhadores das Universidade Brasileiras FFL – Fórum Fluminense de Lutas FHC – Fernando Henrique Cardoso FMI – Fundo Monetário Internacional FNT – Fórum Nacional do Trabalho Funcape – Fundação Cardiológica Pedro Ernesto GED – Gratificação de Estímulo à Docência GTPE – Grupo de Trabalho de Política Educacional/Andes-SN Hupe – Hospital Universitário Pedro Ernesto/Uerj ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias IEES – Instituições Estaduais de Ensino Superior IES – Instituições de Educação Superior IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/Uerj IFES – Instituições Federais de Ensino Superior IMES – Instituições Municipais de Ensino Superior INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MDB – Movimento Democrático Brasileiro Mec – Ministério da Educação Mova-se – Movimento de Valorização do Servidor MP – Medida Provisória MPE – Ministério Público Estadual MST – Movimento dos Sem Terra MTE – Ministério do Trabalho e Emprego MTIC – Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio MTL – Movimento Terra, Trabalho e Liberdade MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem Teto Muspe – Movimento Unificados dos Servidores Públicos Estaduais Nuseg – Núcleo Superior de Estudos Governamentais/Uerj OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico OMC – Organização Mundial do Comércio Ong – Organização Não Governamental PC do B – Partido Comunista do Brasil PCB – Partido Comunista Brasileiro PCC – Plano de Carreira
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PCP – Programa de Capacitação Profissional/Uerj Pec – Projeto de Emenda Constitucional PFL – Partido da Frente Liberal PIB – Produto Interno Bruto PL – Partido Liberal PL – Projeto de Lei PLC – Projeto de Lei Complementar PM – Polícia Militar PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro Polinter-RJ – Polícia Interestadual-RJ PPP – Parceria Público Privada Proatec – Programa de Apoio Técnico às Atividades de Ensino, Pesquisa e de Extensão Prociência – Programa de Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística ProUni – Programa Universidade para Todos PSD – Partido Social Democrático PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira P-Sol – Partido Socialismo e Liberdade PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado PT – Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista Brasileiro RGPS – Regime Próprio da Previdência Social RJU – Regime Jurídico Único Saeb –Sistema de Avaliação da Educação Brasileira Sare – Secretaria de Estado de Administração e Reestruturação Secti – Secretaria de Ciência e Tecnologia Sentracos – Secretariado Nacional dos Trabalhadores no Comércio e Serviços Sepe – Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação Sinaes – Sistema de Avaliação do Ensino Superior Sind-Justiça –Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro Sindsep – Sindicato dos Servidores Públicos Federais/Distrito Federal Sindsprev – Sind. Trabalhadores em Saúde, Trabalho e Previdência Social no Estado do RJ Sintuff – Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Federal Fluminense Sintufrj – Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro Sintuperj – Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais do RJ Sintur – Sindicato dos Trabalhadores em Educação na Universidade Federal Rural do RJ Siprese – Sistema de Prestação de Serviços/Uerj SRH – Superintendência de Recursos Humanos/Uerj STF – Supremo Tribunal Federal Supersimples – Lei Geral das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte TJ – Tribunal de Justiça TRT – Tribunal Regional do Trabalho UDN – União Democrática Nacional Uenf – Universidade do Norte Fluminense Uerj – Universidade do Estado do UFF – Universidade Federal Fluminense UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura UniRio – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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RESUMO
A década de 1990 caracteriza-se pela chegada tardia e consolidação do ideário
neoliberal junto ao Estado brasileiro. Nesta mesma década, os principais organismos
internacionais recomendam um redirecionamento nas estratégias capitalistas e a incorporação do
Estado neoliberal da terceira via. Este projeto, em geral conduzido por governos da nova
esquerda, caracteriza-se por uma gestão eficaz da acumulação capitalista através da “reforma”
do Estado que segue reduzindo direitos e privatizando o serviço público. Destaca-se o
investimento numa educação para uma nova sociabilidade adequada ao velho cenário de
expropriação do trabalho pelo capital: uma nova pedagogia da hegemonia.
É neste cenário que se desenvolve nossa pesquisa sobre o movimento dos
trabalhadores técnico-administrativos organizados pelo Sindicato dos Trabalhadores das
Universidades Públicas Estaduais (SINTUPERJ), no período 2000-2006, especialmente
através de suas fotografias, da história oral e de outras fontes documentais impressas. Este
trabalho pretende refletir sobre as análises da realidade, as lutas, vitórias e dificuldades desse
movimento diante da referida pedagogia da hegemonia e seus efeitos sobre os trabalhadores,
expressos tanto no interior da universidade, quanto do próprio sindicato.
PALAVRAS-CHAVE:
FOTOGRAFIA SINDICATO HEGEMONIA
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ABSTRACT
The 90’s is characterized by the consolidation and late arrival of the neoliberal
conception together with the Brazilian State. In the same decade, the principal the main
international organisms recommended a redirection in the capitalists strategies and the
incorporation of the third way politics. This project, in general lead by the new left’s
governments, is characterized by an efficient management of the capitalist acumulation
through the state’s “reform” which continues reducing rights and privatizing the public
service. It is outlined the investment in an educacion for a new sociability proper to the old
cenary of work’s expropriation for the capital: a new hegemony’s pedagogy.
It is in the scenary that is developed our research about the moviment of the
administrative-technician workers who are organized by the Union of the Works of the State
Public Universities (Sintuperj), in the period of 2000 to 2006, specially through its
photographies, oral history and other printed documental sources. This work intends to reflect
on the realiy’s analysis, the fights, victories and dificulties of this movement in front of the
foregoing hegemony’s pedagogy and its effects on the workers, wich are expressed just as
inside the university as in the Union.
KEY WORDS:
PHOTOGRAPH UNION HEGEMONY
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INTRODUÇÃO
Nosso objeto de pesquisa é a reconstrução histórica do movimento dos trabalhadores
técnico-administrativos organizados pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação das
Universidades Públicas Estaduais (SINTUPERJ), no período 2000-2006, através da memória
fotográfica, da história oral e de outras fontes documentais impressas (jornais, atas etc.).
Em “As lutas de classe na França (1848-1850), de Karl Marx”, Engels nos adverte que
“na apreciação de eventos e seqüências de eventos extraídos da História imediata, nunca se
estará em condições de alcançar as suas últimas causas. Existem fatores infinitamente
complexos e sempre mutáveis dos quais, a maior parte das vezes, os mais importantes
operam, alem disso, longamente na sombra antes de se manifestarem, violentamente, à luz do
dia”. Entretanto, é o Próprio Engels quem nos ajuda, afirmando que “todas as condições de
uma análise de conjunto da História que se faz sob os nossos olhos encerram inevitavelmente
fontes de erros, e isto não impede ninguém de escrever a História do presente”. (p. 208)
Há algum tempo pesquisas sobre o movimento sindical brasileiro vêm se dedicando a
estudar a relação entre os sindicatos, os Estados e a política, tendo como foco a luta dos
trabalhadores por direitos.
A presente pesquisa sobre o movimento de trabalhadores da Uerj e as estratégias de
luta do Sintuperj está inserida num contexto de subordinação de sucessivas administrações da
universidade em relação aos governos, ao longo da última década; apesar da garantia
constitucional da autonomia universitária que, na prática, encontra-se tutelada pelo Estado. O
mesmo Estado que deveria garantir o financiamento público necessário à autonomia para que
a universidade viabilize o seu papel social, é o principal responsável pelos cortes de
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orçamento, salários e bolsas, asfixiando financeiramente a Uerj, como de resto todo o serviço
público estadual.
Neste sentido, o Estado neoliberal brasileiro cumprindo sua função econômica no atual
cenário de acumulação capitalista, vem, ao longo dos anos 1990 e 2000 aprofundando a
flexibilização e retirada de direitos dos trabalhadores, minimizando o investimento público e
redirecionando-o para o setor privado. Trata-se, portanto, de uma Reforma do Estado.
Paradoxalmente, os sindicatos, considerando em especial os do serviço público, passaram a
ter cada vez mais dificuldades em organizar esses trabalhadores para defenderem seus
próprios direitos.
Este trabalho dará especial atenção à analise desse fenômeno, com base numa “nova
pedagogia da hegemonia”, operada a partir do Estado num contexto de neoliberalismo de
terceira via. Esta “pedagogia” tem como característica principal aprofundar, no campo ético-
político, os mecanismos de legitimação das propostas neoliberais, produzindo uma
sociabilidade adequada aos efeitos da retirada de direitos sociais e trabalhistas. Sem abrir mão
da coerção estatal de que nos fala Fontes (2005), essa estratégia visa incidir não apenas sobre
as instituições públicas, mas sobre importantes aparelhos privados de hegemonia, dentre os
quais se encontram os sindicatos.
Portanto, o objetivo desta pedagogia visa à legitimação do pensamento único presente
na reforma do Estado brasileiro. No caso das universidades públicas, o Estado busca
conformar seu espaço de formação aos valores hegemônicos, além de propor “parceria” com
as direções sindicais para reeducar os trabalhadores e estabelecer a conciliação em torno das
reformas. Atrair a participação dos trabalhadores e representações sindicais para espaços de
suposta negociação das reformas sindical/trabalhista, universitária e previdenciária tem sido
uma das principais estratégias neoliberais do Estado brasileiro.
Mesmo num contexto de refluxo da luta sindical brasileira algumas categorias e
direções sindicais do serviço público avaliaram que deveriam fazer o enfrentamento direto às
estratégias neoliberais de reforma do Estado, na defesa do serviço público. O Sintuperj foi um
desses sindicatos que, desde a sua fundação, em 2000, teve sua primeira direção (provisória) e
as duas primeiras direções eleitas empenhadas neste desafio, até a greve de 2006. Este foi o
último movimento levado em conta nesta pesquisa sob direções sindicais que seguiram esta
linha de enfrentamento, tanto no interior da universidade, quanto diante dos governos estadual
e federal, unidos em torno das reformas neoliberais.
Kosik (1969) nos oferece uma pista sobre a análise da realidade e a ação que leva
trabalhadores, suas organizações e especialmente os sindicatos a se defrontarem
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historicamente contra os esquemas que os oprimem, mesmo em condições extremamente
desfavoráveis: os três aspectos fundamentais do processo dialético destrutivo e totalizante.
A dialética é, em primeiro lugar, uma destruição do pseudo-concreto em que se dissolvem todas as formações rígidas e reificadas do mundo material e espiritual que são reveladas como criação e formas históricas da práxis humana. Em segundo lugar, a dialética é uma revelação das contradições das coisas com elas mesmas, isto é, uma atividade que mostra e descreve as próprias contradições ao invés de escondê-las. Em terceiro lugar, a dialética é a expressão do movimento da praxis humana que pode ser caracterizado na terminologia da filosofia clássica alemã como vivificação e rejuvenescimento (Verjüngen) – tais conceitos formam a antítese da atomização e da mortificação – ou na terminologia moderna, como totalização. (p. 115)
A experiência dos trabalhadores da Uerj foi marcada por algumas vitórias expressivas
e outras sem resultado imediato que dependeram do alcance da unidade interna de servidores
e estudantes da universidade e de uma nova reorganização externa como o Muspe
(Movimento Unificado de Servidores Públicos Estaduais). Outra característica que marcou
essencialmente esses movimentos foi aprofundar a vinculação do eixo econômico
(reivindicação de perdas salariais, bolsas estudantis, etc.) ao ético-político, buscando expor
socialmente as ações do governo (especialmente o corte do orçamento) como responsáveis
pela falta de condições de funcionamento da universidade e do serviço público estadual como
um todo.
Fonseca (1996) faz menção a esta característica que denomina de tensão exercida
sobre o movimento de “funcionários”.
A segunda dessas tensões é aquela decorrente da coexistência no movimento dos funcionários das perspectivas corporativa e ético-política. (...) o movimento de funcionários alcança um novo estágio de interação com a instituição universitária. Intensifica e aprimora suas elaborações a respeito da Universidade e busca com mais efetividade o estabelecimento de um projeto capaz de redefinir a identidade e o papel social dos técnico-administrativos. (p. 191)
Neste sentido, a importância deste trabalho encontra-se na análise que estabelece da
luta dos trabalhadores da Uerj contra os efeitos e estratégias hegemônicas das reformas
neoliberais implicados nas atuais relações entre aparato institucional, representado por Estado
e administrações universitárias, trabalhadores e sindicato. É, portanto, uma contribuição
acerca de uma experiência sindical que se reorganiza com base numa determinada análise
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(histórica e dialética) da realidade e busca se contrapor ao caráter hegemônico que caracteriza
tanto a lógica mercantil do atual funcionamento da universidade, quanto a tutela do segmento
majoritário do movimento sindical brasileiro.
A nossa relação com o tema tem duas origens complementares. A primeira, de viés
acadêmico, diz respeito ao interesse em trabalhar a fotografia como fonte histórica para a
reconstrução de um movimento da classe trabalhadora. Ainda na graduação em História na
UFF, tivemos a oportunidade de cursar a disciplina História e Iconografia, oferecida pela
professora Ana Maria Mauad Essus, tendo o primeiro contato com a possibilidade de uso da
fotografia como fonte histórica. A Professora acabava de defender sua tese de doutorado
sobre o controle de códigos de representação social da classe dominante. Ao final desta
disciplina, apresentamos um trabalho intitulado “Negro de rua: o escravo urbano nas lentes de
Cristiano Júnior”. Durante a realização do Mestrado em Educação na Uerj, tivemos
novamente a mesma possibilidade, na disciplina Poder e Dominação na Escola, oferecida pela
professora Raquel Villardi, quando foi possível refletir sobre o uso da fotografia em sala de
aula, não apenas como ilustração. Também na disciplina Antropologia e Imagem, oferecida
pela professora Clarice Ehlers Peixoto, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
que ampliou nossa compreensão do uso das imagens por pesquisadores das Ciências Sociais,
principalmente da Antropologia.
Além destas experiências, no Mestrado em Educação participamos do grupo de
pesquisa do Professor Luíz Cavalieri Bazílio, em que trabalhamos com fotografias de
crianças, localizadas no Arquivo Nacional, algumas inclusive do acervo do Jornal Correio da
Manhã.
No Doutorado em Educação da UFF temos a oportunidade de trabalhar com a
Professora Maria Ciavatta que publicou o livro O Mundo do Trabalho em Imagens, fruto do
resultado de sua pesquisa sobre a fotografia como fonte histórica
O segundo ponto que expressa o nosso interesse pelo tema diz respeito à nossa
inserção no movimento sindical, participando dos movimentos de luta em defesa da
universidade pública na Uerj e por melhores condições de trabalho. Primeiro como militante
de base da então Associação dos Servidores da Uerj (Asuerj) (1994 a 1999), depois como
direção no último mandato da existência da Asuerj, como tesoureira da entidade, (2000 a
2001) e, ainda, por um mandato na primeira direção do Sindicato dos Trabalhadores em
Educação das Universidades Públicas Estaduais – RJ (Sintuperj), como coordenadora de
políticas sociais e anti-racistas (2002 a 2003). Como direção, participamos, ainda, da
construção definitiva do Sindicato, do momento de consolidação da incorporação das antigas
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associações - Asuerj e Ashupe (Associação dos Servidores do Hospital Universitário Pedro
Ernesto) - no Sintuperj.
Como primeira etapa da pesquisa, foi realizado o inventário do acervo de fotografias
do Sintuperj. São 4.6051 fotografias em suporte papel. São 162 CDs com um número variável
de fotos (de 30 a 100 em geral) em cada um deles. Fizemos também um mapeamento
temático do acervo que será usado para classificar as fotos (em anexo no final do texto).
Com esta pesquisa, temos em vista os seguintes objetivos:
• Resgatar a história social dos trabalhadores organizados no Sintuperj, utilizando, como
fonte documental principal, as fotografias produzidas pelo próprio movimento no período
2000-2006.
• Através desse recorte histórico, destacar determinados aspectos da atuação dos
trabalhadores, organizados neste sindicato.
• Analisar a atuação do poder público estadual (Estado do Rio de Janeiro) na condução do
projeto ético-político destinado aos trabalhadores do setor público.
• Levantar fotografias/documentos produzidos pelo movimento dos trabalhadores do
Sintuperj para organização e catalogação dos acervos da categoria, possibilitando o acesso
de outros pesquisadores a este material.
Temos como proposta teórico-metodológica a fotografia como fonte histórica e a
concepção de história oral e de fontes documentais para a compreensão das mesmas.
Estaremos utilizando as seguintes categorias de análise: totalidade (Kosik, 1976 e Ciavatta,
2001), essência e aparência (Kosik, 1976), fotografia como mediação (Ciavatta, 2000, 2001,
2004), documento/monumento (Le Goff, 1992), lugares de memória (Nora), intertextualidade
(Mauad Essus, 1992, 1993 e 2004) (Ciavatta, 2000, 2004, 2005) e história oral (Ferreira, 1996
e Meihy, 1996).
Os procedimentos de pesquisa adotados foram os seguintes: primeiro a organização do
acervo do Sintuperj e a seleção de fotografias no período 2000-2006. Para tal utilizamos como
fonte de pesquisa, fotografias feitas pelas associações de trabalhadores (Asuerj – Associação
dos Servidores da Uerj e Ashupe – Associação dos Servidores do Hospital Universitário
Pedro Ernesto) que hoje, após a incorporação destas entidades, fazem parte do acervo do
Sintuperj – Sindicato dos Trabalhadores em Educação das Universidades Públicas Estaduais
do Estado do Rio de Janeiro (Uerj e Uenf). Tais fotografias foram feitas em sua grande
1 Segundo levantamento realizado em 2005.
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maioria pelo fotógrafo Samuel Tosta, que cedeu-nos o direito de uso, havendo algumas de
autoria desconhecida.
Utilizamos também entrevistas com os trabalhadores, analisamos atas de assembléias,
reuniões de direção e congressos sindicais, bem como atas do Consuni (Conselho
Universitário) relativas à discussão do PCC e, ainda, atas de audiências públicas sobre a Uerj
na Alerj.
O presente texto foi organizado da seguinte maneira: além desta introdução; um
capítulo teórico descrevendo o Estado neoliberal e sua relação com a universidade pública,
em especial a Uerj.
Abordaremos, em primeiro lugar, as relações entre Estado, empresas e mercado,
especialmente ao longo dos anos 1970 e 1980. Neste caso, levamos em conta que se trata dos
três principais pilares do capitalismo, através dos quais se deu a consolidação do modelo
neoliberal, especialmente na Europa e América Latina. Este texto conta principalmente com
as contribuições de Therborn (1995), Anderson (1995) e Oliveira (1995) e suas análises de
como surgiram e se desenvolveram os Estados neoliberais até sua chegada e consolidação no
Brasil, no início dos anos 1990, com o presidente Collor de Melo.
A seguir, descrevemos as principais concepções constituintes do Estado neoliberal
utilizando para tal as formulações de alguns de seus principais pensadores, como Hayek,
Friedman, Rawls, Nozick e Rothbard. Esses autores liberais desenvolvem seus conceitos
sobre o Estado (mínimo), diferenciando suas análises sobre a relação deste com as aspirações
individuais. A regulação do direito à propriedade com base nos princípios de justiça se
constitui no principal papel de regulação social deste Estado.
Em “a reforma do Estado brasileiro e a consolidação do projeto neoliberal” nos
remetemos mais diretamente aos principais elementos teóricos acerca da principal estratégia
do capital para consolidar o seu projeto hegemônico, especialmente nos anos 2000, período
em que nos propomos estudar a construção do movimento de trabalhadores da Uerj através do
Sintuperj.
Auxiliado pela tese da “nova pedagogia da hegemonia”, este texto busca identificar
com base em Gramsci o processo de redefinição das práticas do Estado brasileiro enquanto
Estado educador, ou seja, as novas estratégias que através de uma nova relação entre o Estado
em sentido estrito e a sociedade civil, consolida e aprofunda, no Brasil, o projeto neoliberal de
sociabilidade, o projeto da burguesia mundial para a atualidade.
Em contraponto a algumas noções hegemônicas como globalização, Estado mínimo,
reengenharia, reestruturação produtiva, sociedade pós-industrial, sociedade pós-classista,
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sociedade do conhecimento, qualidade total, empregabilidade etc., cuja função é justificar a
necessidade de reformas profundas no aparelho do Estado e nas relações capital/trabalho, esta
tese leva em conta algumas categorias centrais, tais como: Estado neoliberal, sociedade civil,
bloco histórico, hegemonia, aparelhos privados de hegemonia, coerção/persuasão,
sociabilidade, neoliberalismo da terceira via, dentre outras.
O desenvolvimento deste referencial baseia-se fundamentalmente nos pensamentos de
Antonio Gramsci, Lúcia Neves e Antony Giddens.
Por fim elaboramos com base em Boito Jr. e Marcelo Badaró um breve histórico sobre
o sindicalismo e os principais aspectos de sua influência sobre a política brasileira. Este texto
destaca elementos fundamentais da relação entre sindicatos e Estado brasileiro que nos
ajudam a entender as relações atuais entre o Estado neoliberal e o movimento sindical
brasileiro.
Neste sentido, podemos observar a trajetória do sindicalismo de Estado (populista), o
nascimento do sindicalismo autêntico, constituindo com os movimentos populares, o novo
sindicalismo, o PT e a Cut, espaços políticos de questionamento ao regime militar instaurado
em 1964 e de balizamento da reconstrução democrática operada no Estado brasileiro nos anos
1980.
Em seguida verificamos a capitulação gradual, mas consistente deste movimento
sindical e partidário, a partir dos anos 1990, através de sua re-inserção “propositiva” ao
interior do Estado capitalista, neste momento já neoliberal.
Por fim destaca-se fundamentalmente a permanente resistência e luta dos diversos
movimentos autônomos de trabalhadores, ao longo da história, ainda que nos períodos mais
desfavoráveis como nas ditaduras.
No último texto deste primeiro capítulo, abordamos a influência do modelo neoliberal
no ensino superior das universidades publicas e, em especial, da Uerj. Descrevemos de forma
geral mecanismos que viabilizam a lógica privada no interior da gestão da universidade, o
comprometimento do exercício de sua autonomia e a luta dos trabalhadores e estudantes
contra este modelo.
Um segundo capítulo nos possibilitou verificar algumas das principais estratégias do
modelo neoliberal, implementadas através das (contra) reformas promovidas pelo Estado
brasileiro, iniciadas nos anos 1990, com sua eclosão a partir do primeiro mandato do governo
Lula em 2003.
A atual fase da (contra) reforma neoliberal do Estado brasileiro foi apenas iniciada nos
Governos de Fernando Collor de Melo/Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso,
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principalmente com a privatização das empresas estatais na segunda metade dos anos 1990.
Cabe aos Covernos de Lula da Silva complementar esta (contra) reforma, privatizando as
políticas sociais e reduzindo ao mínimo a responsabilidade do Estado sobre elas. Em debate
ocorrido na Uerj em sobre fundações estatais, Sara Granemann (2007) afirma que as (contra)
reformas encaminhadas e já parcialmente realizadas no âmbito da Previdência, do mundo
Trabalhista/Sindical e do Ensino Superior, no primeiro Governo de Lula, terão no segundo
mandato uma outra fase, isto é, uma “fundacionalização” (referente ao projeto de fundações
estatais), dita estatal de direito privado na gestão das políticas sociais. Esta nova fase de
Reformas de Estado, que não analisaremos neste trabalho, se concretizada, de acordo com seu
projeto, transferiria para o setor privado uma parcela jamais vista do dinheiro público
brasileiro. (Granemann, 2007)
A descrição e análise das (contra) reformas encaminhadas pelo Governo Lula da Silva,
a partir de 2003, dando prosseguimento à (contra) Reforma do Estado brasileiro, são
suficientes para atender aos objetivos deste trabalho por duas razões principais. A primeira, é
que podemos analisar as lutas contra as políticas neoliberais num período em que se dá uma
nova correlação desfavorável de forças sociais, em relação aos governos, que permitiu
inclusive a aprovação da reforma da previdência em 2003 e o prosseguimento das outras. Em
segundo lugar, na medida em que pretendemos analisar essas reformas, não em si mesmas,
mas através dos princípios e mecanismos de hegemonia neoliberal vinculados a elas e que
vêm sendo desenvolvidos no Brasil desde meados dos anos 1990 até hoje.
Nesta análise, abordamos importantes aspectos relacionados ao tema deste trabalho
como a interferência na luta dos sindicatos em defesa de direitos trabalhistas e do serviço
público – (contra) Reforma Sindical e Trabalhista; a interferência na organização e autonomia
da universidade pública – (contra) Reforma Universitária; e a retirada de direitos
previdenciários de servidores públicos -, primeira reforma da previdência pública brasileira.
Concomitantemente aos aspectos mencionados, as (contra) Reformas
desempenha(ra)m o papel de viabilizar importantes espaços aparentemente democráticos de
conciliação entre capital e trabalho supostamente mediados pelo governo. Tais espaços foram
organizados pelo próprio governo, não só para garantir, mas legitimar as (contra) Reformas
nos moldes capitalistas com a participação de empresários, das centrais sindicais,
principalmente a Cut representando os trabalhadores, e do próprio governo, como se este
fosse uma instância neutra.
Reconstruindo as lutas do Sintuperj através da memória fotográfica é o tema do último
capítulo onde realizamos uma análise do movimento dos trabalhadores da Uerj através das
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imagens fotográficas que destacamos. Abordamos diversos momentos importantes da luta dos
trabalhadores da Uerj e do Estado como o Muspe (Movimento Unificado dos Servidores
Públicos Estaduais) que reconquistou o direto aos pagamentos do décimo terceiro salário e do
adicional de férias, a greve de nove meses (2004/2005) que desvelou a suposta gestão
democrática da reitoria, além de expor publicamente as mazelas do governo Rosinha-
Garotinho, e a greve de 2006 que seguiu a mesma tônica da greve anterior, conquistando, ao
seu final, a proposta de Plano de Carreira, uma luta travada ao longo de muitos anos através
de paralisações, mobilizações de rua, atos públicos, assembléias, greves e negociações.
Em nossas conclusões, procuramos destacar os aspectos que mais se evidenciaram
nesta pesquisa, de acordo com os seus objetivos e o referencial teórico escolhido. Neste
sentido, ressaltamos a autonomia de classe com que o Sintuperj empreendeu a análise da
realidade e as lutas em defesa dos direitos trabalhistas e da universidade pública contra o
modelo neoliberal no período pesquisado. Além disso, ganhou relevância também a análise
feita sobre as dificuldades encontradas pelo movimento de trabalhadores diante da hegemonia
das estratégias operadas tanto externamente pelos governos, quanto internamente por parte
das reitorias e até dirigentes sindicais que de forma conivente seguem as diretrizes dos
governos neoliberais.
Por fim a conclusão destaca novas formas de ação sindical do Sintuperj em conjunto
com outros sindicatos do serviço público, diante dos efeitos hegemônicos do pensamento
único produzidos pelos governos e reproduzidos no interior da universidade que assume,
assim, um importante papel na disseminação dos valores hegemônicos na sociedade.
Para encaminhar uma síntese acerca dessas novas estratégias utilizamos a greve de
2006. O balanço desta greve produziu três importantes resultados: a unificação do movimento
de 2006 através dos três segmentos da Uerj e com outras categorias do serviço público; a
responsabilização pública do governo pela crise da universidade, bem como de todo o serviço
público que atente à população fluminense; e a vitória política junto ao judiciário estadual e
federal quanto ao direito (questionado pelo governo) de realizar aquela greve em defesa de
direitos trabalhistas e do serviço público.
Neste sentido, pode-se afirmar que o movimento de trabalhadores da Uerj alcançou
uma reorganização sindical de novo tipo tanto pela unificação do movimento de servidores
públicos, quanto por sua estratégia de empunhar adiante desse movimento dados de realidade
que disputados junto à sociedade a sensibilizaram quanto a asfixia do serviço público pelo
Estado, identificando-o como causador tanto da perda de condições infra-estruturais de
funcionamento, quanto das perdas salariais.
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Capítulo 1: ESTADO NEOLIBERAL E UNIVERSIDADE PÚBLICA
1. Estado, empresas e mercado
Iniciamos este trabalho remontando às origens do neoliberalismo, gerado após a
Segunda Guerra Mundial como reação teórica veemente e conservadora ao então emergente
Estado intervencionista e de bem-estar social. Foi Friedrich Hayek, com “O Caminho da
Servidão”, quem primeiro condenou a limitação dos mecanismos de mercado, o que atentava,
segundo ele, contra a liberdade e, mais que isso, levava à própria servidão.
Posteriormente, Hayek convoca aqueles que comungavam do seu pensamento e funda
a Sociedade de Mont Pèlerin, uma organização internacional, existente até hoje, que se
propunha ser a referência de resistência ao keynesianismo que introduzia o capitalismo
avançado numa longa e promissora investida. Hayek e seus seguidores defendem,
basicamente, a desigualdade como valor positivo e, portanto, que o Estado de bem-estar social
acabava por privar os cidadãos de liberdade, pois impedia a livre concorrência. Era a proposta
da substituição da igualdade pela eqüidade.
Só no início da década de 1970, com a crise do modelo econômico do pós-guerra, ou
seja, baixas taxas de crescimento e altas taxas de inflação, é que ressurgem as idéias de Mont
Pèlerin, nas obras de Milton Friedman, como alternativa ao “fracasso” do modelo keynesiano.
A grande crítica ao modelo de bem-estar era que a pressão exercida pela demanda de
melhores salários e condições sociais, através dos sindicatos, determinava a crise econômica,
pois corroía as bases de acumulação capitalista. A solução seria então voltar a incentivar os
agentes econômicos, através de políticas fiscais adequadas, ao mesmo tempo que retirar os
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agentes causadores daquela situação de crise: o próprio Estado permissivo e os sindicatos. Ao
Estado caberia apenas o papel de assegurar a estabilidade monetária, através de uma rígida
contenção de gastos sociais, ao mesmo tempo que deveria através do retorno à taxa de
desemprego natural, recriar o exército de reserva de trabalho e, com isso, enfraquecer, e
mesmo quebrar, o movimento sindical.
Para analisarmos a ascensão do modelo neoliberal e da fase atual do sistema
capitalista, levaremos em conta três instituições centrais deste sistema: os Estados, as
empresas e os mercados (Therborn, 1995, p.40).
Por volta dos anos 1930, o capitalismo tinha o seu forte na força das grandes empresas
monopolistas, suas alianças e seus cartéis, enquanto Estados e mercados eram relativamente
pequenos. Após a Segunda Mundial surgiram duas tendências importantes: um fortalecimento
do Estado, expresso no surgimento dos Estados de bem-estar e um fortalecimento do mercado
internacional pressionado pelo modelo norte-americano que traz, em seu contexto, a tendência
de aumento da competição. Deve-se ressaltar também o crescimento do Estado no Socialismo
Real, no Japão, na Ásia Oriental e na América Latina.
Por volta da segunda metade de 1960, o auge do Estado de bem-estar social, o
processo de industrialização conheceu seu apogeu nos países capitalistas avançados. Já nos
anos de 1970, iniciou-se um processo de desindustrializaçao o que culminou com uma nova
relação entre mercado e empresa. Os serviços privados começaram a se produzir em empresas
menores e muito mais vinculadas ao mercado e à demanda de clientes. Outro aspecto
importante é o grau de flexibilização que as empresas adquiriram graças ao desenvolvimento
tecnológico e que representou uma maior capacidade de adaptação às demandas do mercado.
Portanto, considera-se que, até pelo menos meados dos anos de 1970, o capitalismo
caracterizou-se tanto pela expansão dos Estados como dos mercados.
Finalmente, chegamos àquele que talvez seja o aspecto mais importante no processo
de mudança que o capitalismo vem empreendendo: a expansão absolutamente enorme dos
mercados financeiros internacionais que começou com o déficit público dos Estados Unidos
da América financiando a Guerra do Vietnã (idem, p.43). Utilizando-se das inovações
tecnológicas esses mercados são extremamente grandes em termos de riquezas e recursos.
Com essa supervalorização dos mercados financeiros ocorreram profundas mudanças nas
relações com os Estados Nacionais. Esses ficam menores e dependentes destes mercados para
implementarem suas políticas. O processo de competitividade da econômica vai desempenhar
papel fundamental em economias da Europa Oriental que, sob o comunismo, desenvolveram
um forte processo de industrialização, o que muda drasticamente na medida em que essas
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economias não conseguem se adaptar à nova força e dinâmica desses mercados. A crise
econômica dos países comunistas da Europa Oriental está, portanto, dentro do mesmo
contexto histórico do novo desenvolvimento dos mercados.
Feitas essas observações, passamos a analisar mais detidamente o processo de
consolidação do neoliberalismo neste novo cenário de hegemonia dos mercados.
Essa hegemonia se fortalece no final da década de 1970 quando a maioria dos
governos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ainda
tentava aplicar soluções keynesianas aos seus problemas econômicos. Foi na Inglaterra, com
Thatcher, eleita em 1979, que, pela primeira vez, um país do capitalismo avançado pôs em
prática o programa neoliberal. Em 1980, Reagan é eleito nos Estados Unidos; Khol na
Alemanha, em 1983; Schluter na Dinamarca e, a partir daí, quase todos os países da Europa
Ocidental, à exceção da Suécia e da Áustria, tomaram rumos neoliberais.
Em 1978, com a eclosão da II Guerra Fria, a atração da direita pelo ideário neoliberal
aumentou, pois Hayek sempre incluiu o comunismo como ponto central a ser combatido, uma
vez que em sua concepção causava a mais completa servidão humana. (Anderson, 1995,
p.12).
Os anos 1980, mais especificamente, assistiram ao triunfo da ideologia neoliberal na
região do capitalismo avançado. Convém registrar que cada país se adequou ao ideário
neoliberal, conforme as especificidades deixadas pelos modelos políticos e econômicos
anteriores. A Inglaterra, por exemplo, só foi lançar mão de um programa de privatizações
tardiamente; os Estados Unidos, onde quase não havia Estado de bem-estar do tipo europeu,
priorizaram o embate com a União Soviética como forma de acelerar a quebra de sua
economia e, com isso, o comunismo russo. No continente europeu, os governos de direita
praticavam um neoliberalismo mais cauteloso, não mexendo tanto no Estado de bem-estar
social.
No sul da Europa, numa região politicamente conservadora, chegaram ao poder os
chamados governos euro-socialistas da França, Espanha, Portugal, Itália e Grécia. Destes,
apenas Miterrand e Papandreou, na França e na Grécia, de fato tentaram realizar governos de
cunho social. Este projeto fracassou e, já em 1982, o governo francês se via obrigado pelo
mercado financeiro internacional a adotar um receituário mais próximo do neoliberal.
Ao final da década, o nível de desemprego da França já era maior do que o da
Inglaterra e a Espanha de González liderava o caos com 20% de desemprego. Foi na
Austrália, e mais notadamente na Nova Zelândia, onde houve o mais efetivo desmonte do
Estado de bem-estar. Todas estas experiências demonstravam a hegemonia da ideologia
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neoliberal, que começou cooptando os governos de direita, mas que, em curto espaço de
tempo, recebe a adesão de grande parte das sociais-democracias. No final da década de 1980,
apenas a Suécia, a Áustria e o Japão continuavam resistindo à pressão neoliberal.
Um balanço da hegemonia do neoliberalismo nos países de capitalismo avançado
durante a década de 1980 mostra o seguinte: no que tange à contenção da inflação dos anos
1970, à recuperação dos lucros, ao crescimento da taxa de desemprego, bem como do grau de
desigualdade, o neoliberalismo obteve êxito, mas estes, na verdade, não eram o fim, mas os
meios para se alcançar o grande objetivo a que se propôs: reerguer o capitalismo avançado
mundial. Neste aspecto, o neoliberalismo se mostrou frustrante, pois os baixos índices de
crescimento, nos anos 1970 e 1980, não se alteraram nos países da OCDE. Todas as
condições criadas em favor do capital não conseguiram converter lucros em investimentos,
dado que o capital optou pela inversão especulativa ao invés do investimento produtivo. O
mais interessante é que essa situação foi ocasionada pela própria desregulamentação
financeira, elemento tão importante do programa neoliberal. Um outro dado é que o peso do
Estado de bem-estar não diminuiu tanto, em função do crescimento dos gastos sociais com o
desemprego e do aumento do grande número de pensões pagas com o crescimento do número
de aposentados.
Quando o capitalismo avançado entra em nova e profunda recessão, em 1991, com
cerca de 38 milhões de desempregados nos países da OCDE, paradoxalmente, o
neoliberalismo ganha nova força na Europa (Inglaterra, Suécia, França, Itália, Alemanha e
Espanha). A Alemanha, Áustria e Itália, que resistiram até então à onda de privatizações,
cederam. O Presidente Clinton, nos Estados Unidos, também preferiu seguir o temário
político ditado pelos parâmetros do neoliberalismo. Uma das razões fundamentais deste alento
do neoliberalismo nestes países encontra-se na queda do comunismo na Europa Oriental e na
União Soviética, de 1989 a 1991 (Anderson, 1995, p.17). Os seguidores de Hayek e Friedman
no Leste promoveram graus de desigualdade e empobrecimento muito maiores do que os
vistos nos países ocidentais. É verdade também que, por isso mesmo, partidos ex-comunistas
voltaram a governar na Polônia, Hungria e Lituânia.
Na América Latina, tivemos dois laboratórios que serviram de inspiração ao
aparecimento do neoliberalismo no mundo: no Chile de Augusto Pinochet, na década de
1970, já se aplicava o modelo neoliberal de inspiração norte-americana, representado por
Friedman, que interessou e serviu muito ao governo que Margareth Thatcher viria a assumir
na Inglaterra, na década de 1980. Na Bolívia, em 1985, era gestado, no governo de
Estenssoro, o tratamento de choque que seria aplicado mais tarde na Polônia e na Rússia. No
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Chile a experiência neoliberal foi aplicada em meio a uma ditadura militar cruel, que não é
um valor contraditório na visão de Hayek, mas eventualmente necessário à aplicação das
medidas de desregulamentação, desemprego, privatizações etc. e, por conseguinte, a repressão
sindical, que no caso do Chile visou quebrar o forte movimento operário existente.
Na Bolívia o grande desafio era barrar a hiperinflação, o que foi assumido por um
governo herdeiro do partido populista que havia feito a Revolução Social em 1952. Na
América Latina, marcara a adesão ao neoliberalismo os governos de Carlos de Salinas de
Gortari, no México, em 1988; Carlos Meném, na Argentina, em 1989; Carlos Andrés Perez,
em segundo mandato na Venezuela, também em 1989 e Alberto Fujimori, no Peru, em 1990.
Vale ressaltar que, das quatro experiências acima citadas, apenas a Venezuela reagiu à
implementação das condições neoliberais, visto que foi o único país na América do Sul a
escapar de ditaduras desde 1950, tradição que leva a não aceitar a excessiva concentração de
poder executivo, condição política essencial à implementação do neoliberalismo nos outros
três países. Este autoritarismo político, não factível na Venezuela, levou ao colapso o segundo
mandato de Andrés Perez (Anderson, 1995, p.21).
No Brasil, tendo em vista a implementação de um alto nível de crescimento durante os
governos militares, na década de 1970, não se sentiu drasticamente a recessão que afetava
todo o capitalismo mundial. A crise começa, porém, quando o país se endivida para manter
este crescimento. Já na década de 1980, a economia brasileira vive um processo de
acomodação, pela hegemonia do capital financeiro, que desemboca na chegada do modelo
neoliberal, ainda no Governo José Sarney, no final da década. O atraso da chegada do
neoliberalismo ao Brasil se deveu, certamente, ao crescimento citado, associado talvez a um
movimento social e político de esquerda mais atuante nas tentativas de por fim à ditadura
militar e levar ao retorno da democracia representativa.
No Brasil houve uma preparação do terreno que propiciou ao modelo neoliberal a
condição para se apresentar como única alternativa para a solução dos problemas brasileiros: a
dilapidação do próprio Estado brasileiro (Oliveira, 1995, p.25), através da falta de
investimentos e de políticas públicas, ao lado da crise fiscal e, ainda que indiretamente, a
queda do Socialismo Real, ofereceram as condições necessárias a que um discurso baseado no
Estado inchado, ultrapassado, ineficiente e desperdiçador, simbolizado pelos marajás, levasse
Collor, um político biônico da ditadura, ao poder.
A sociedade civil no sentido gramsciano, que exclui o mercado, fortalecida durante a
década de 1980 com a construção de três grandes centrais sindicais, além de um grande
partido de esquerda, possui ainda vitalidade suficiente para promover o impeachment do
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Presidente Fernando Collor de Melo e, em seguida, a Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) dos anões do orçamento (Oliveira, p.25). Assume Itamar Franco, vice de Collor, que
nomeia Fernando Henrique Cardoso Ministro da Economia, a quem caberia preparar, de
forma pedagógica, o Plano Real que diminuiria de forma “espetacular” a inflação, o que
garantiria sua eleição e reeleição à Presidência da República.
Passada a onda de expectativas e euforias em relação aos resultados esperados com a
suposta estabilidade econômica do Plano Real, o processo passou a evidenciar sinais de crise,
pois não conseguia dar respostas ao déficit nas balanças comerciais e de pagamentos, aos
desequilíbrios sociais com altas taxas de desemprego, subemprego e empobrecimento
crescente da população trabalhadora.
A referida crise nos planos econômico e social leva então o capitalismo internacional a
recomendar, ainda nos anos 1990, uma nova abordagem para os governos neoliberais no
sentido de uma maior inclusão de setores sociais excluídos. Deste modo, a hegemonia
neoliberal busca se manter sob o formato de terceira via, ou seja, governo eficiente do
capitalismo e conciliação entre capital e trabalho. No caso do Brasil, esta recomendação foi
assumida primeiro por Fernando Henrique (PSDB) e depois por Lula da Silva (PT).
O quadro de hegemonia do modelo neoliberal não se altera substancialmente até os
dias atuais, pois o país continua vivendo na dependência da intocável “estabilidade
econômica” do Real, assimilada pelo governo de Lula, a partir de 2003.
Um fator que contribuiu para que esta hegemonia se mantivesse a partir do governo
Lula foi uma relativa estabilidade na economia mundial neste período com poucos abalos e
um crescimento médio que o Brasil sequer acompanhou.
Portanto, num plano mais geral, a reconfiguração da ordem mundial está articulada
com a redefinição do processo de acumulação e regulação da economia dos países centrais e
com uma nova forma de divisão global do trabalho baseada na reorganização e transferência
seletiva do trabalho, inclusive com a utilização, em escala global, do exército industrial de
reserva. Para este sistema global de exploração capitalista, a redução das barreiras nacionais
torna possível a apropriação de mais-valia em escala internacional, com a mobilidade de
transferência deste mesmo capital. Junte-se a este quadro a influência das inovações
tecnológicas, cujo conteúdo é ditado por essas novas estratégias de competição global,
incluindo-se a obsolescência de produtos num prazo muito curto.
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2. Principais concepções do Estado neoliberal: aspectos políticos e filosóficos
O neoliberalismo formula uma crítica veemente e profunda aos Estados de bem-estar
social, aos Estados socialistas, a toda forma de organização social que contraponha os
princípios defendidos pelos neoliberais: a sociedade livre ou a sociedade do laisser-faire.
Hayek, um dos principais autores deste pensamento, nos seus discursos contra o Estado de
bem-estar, lança mão da tese da perversidade, afirmando que os mecanismos de compensação
e indenização criam uma ciranda cultural e econômica perversa, que o seguro desemprego,
por exemplo, acaba gerando crise econômica.
Considera-se como a mais completa teoria de Estado neoliberal a desenvolvida por
Robert Nozick (1991) no livro Anarquia, Estado e Utopia. Discípulo de um dos grandes
filósofos liberais contemporâneos, John Rawls, autor de Teoria da Justiça (1993), Nozick, no
entanto, se afasta das contribuições do seu mestre, formulando-lhe críticas.
A crítica que formula e, conseqüentemente, a sua concepção de Estado é considerada a
referência fundamental para a discussão teórica sobre o Estado mínimo, que encontra em
Nozick sua formulação conceitual mais completa dentro da tradição filosófica neoliberal. Seu
livro contribui para uma definição mais sofisticada da idéia de Estado mínimo e propicia a
abertura, dentro da tradição neoliberal, para o de pensamento libertário, sendo que é
considerado um libertário moderado, e não um radical como Murray Rothbard, David
Friedman e outros.
Coloca a questão da necessidade de se construir uma ordem libertária em que se
reconheça a plena autonomia dos indivíduos e a autonomia em relação ao poder autoritário
dominador do Estado. Logo no início do livro, Nozick, parte do pressuposto que será
fundamental na sua reflexão sobre o Estado, os indivíduos têm direitos e esses direitos
marcam os limites à ação do Estado, dos próprios indivíduos e das instituições. Essa é a
pergunta fundamental para Nozick: se os indivíduos têm direitos, qual é o espaço que esses
direitos deixam ao Estado? (p. 9)
Ele argumenta que alguns dos direitos dos indivíduos são essenciais e o caráter
essencial desses direitos restringe a função do Estado à proteção e à vigilância desses direitos.
Nozick chega à conclusão que o único Estado que pode ser defendido é o Estado mínimo
porque é aquele que defende os direitos mínimos das pessoas. Se os direitos definem o limite
e a função do Estado, tendo os indivíduos um conjunto mínimo de direitos, o Estado não pode
ter outra função que não seja a função mínima de proteção a esses direitos.
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Aborda os eixos centrais dessa função do Estado: a necessidade de justificar o Estado
mínimo; nenhum outro tipo de Estado que não seja o Estado mínimo pode ser defendido, pois
qualquer outro é, de forma inevitável, uma ameaça aos direitos dos indivíduos; desenvolve
uma teoria da justiça, conhecida como teoria da justiça como direito a coisas, que se
contrapõe à teoria da justiça distributiva, de John Rawls (1993), ao negar qualquer
distribuição central de bens; e, finalmente, a idéia fundamental de que a estrutura do Estado
mínimo constitui uma matriz inspiradora. Nesse sentido, ele dirá que o Estado mínimo é um
requisito para a realização da utopia, pois abre possibilidade de desenvolvimento, de liberdade
para o homem, sendo assim uma fonte de inspiração. O Estado mínimo permite as condições
para a realização da utopia individual.
Nozick afirmará que as pessoas têm direitos e que esses direitos são mínimos.
Reconhecerá que o principal direito que as pessoas têm é o direito de propriedade. Cada
pessoa tem direito de ser proprietária daquilo que legitimamente possui. O direito de
propriedade se vincula a uma série de instituições, de normas, de princípios que estão
relacionados à idéia de propriedade. O princípio de cumprimento dos contratos está
diretamente vinculado à legitimidade da propriedade.
Afirma que o papel do Estado é justamente o de limitar o processo, dirimindo questões
e administrando justiça quando necessário. Nesse sentido, a lei pode permitir que o Estado
saiba como atuar em situações de conflito, mas para ele essa lei nunca será superior à própria
vontade do indivíduo, porque o limite do Estado é a propriedade e o seu uso legítimo.
Concluirá que o Estado mínimo se justifica limitado às funções restritas de proteção contra a
força, o roubo, a fraude e à fiscalização no cumprimento dos contratos. O Estado mais amplo
não se justifica porque, inevitavelmente, violaria o direito das pessoas, forçando-as a fazerem
determinadas coisas.
O direito de propriedade diz respeito à autonomia do indivíduo para decidir o que
fazer com ela, seja bem material ou não. Assim, no que se refere à educação, vista como
propriedade privada, cada indivíduo tem o direito de não ser forçado a fazer dela um uso
diferente daquele que considera desejado.
Para Nozick (op. cit.) o Estado mínimo é compatível com uma determinada concepção
de justiça, enquanto que o Estado máximo é compatível com outro tipo de justiça: a
concepção de justiça distributiva, estabelecida por Rawls (op. cit.), que ele considera
profundamente negativa. No primeiro caso, trata-se da justiça como direito a coisas que se
baseia em três princípios centrais: justiça na aquisição; justiça nas transferências; reparação de
injustiças. Para que se realize a justiça como direito a coisas é fundamental que se cumpra o
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principio de justiça na aquisição, em primeiro lugar. Isto significa que deve ter sido justo o
processo de aquisição de uma coisa. Significa que, num processo de compra e venda, os
indivíduos tenham celebrado o contrato de forma voluntária. O princípio de justiça nas
transferências enfatiza o direito que a pessoa tem para transferir suas propriedades a outras
pessoas.
A partir desses dois princípios, Nozick vai estabelecer um tipo de justiça, distinto do
outro tipo que, segundo ele, pretende estabelecer mecanismos de distribuição baseados em
princípios sociais, e não em princípios individuais. Para ele, justa é uma sociedade na qual os
indivíduos realizam transações respeitando os princípios de justiça na aquisição e de justiça
nas transferências. Desta forma, o sistema é justo. Se a justiça na transferência ou a justiça na
aquisição for violada, os indivíduos têm direito a reclamar pela reparação da injustiça, o que é
o terceiro princípio. Assim, esses três princípios possibilitam atribuir a um determinado
acontecimento o seu caráter justo ou injusto.
A implicação que esta concepção traz é que, ao se desejar uma sociedade mais justa,
não se pode, para garantir a distribuição de renda, por exemplo, violar o direito de
propriedade dos indivíduos. O que Nozick tenta discutir é se alguém que tem direito a
reclamar determinada condição mínima de bem-estar e se o Estado tem a função de garantir o
bem-estar dessa pessoa. A sociedade é justa quando esses princípios de justiça não são
violados. Se existem ricos ou pobres isso não é um problema da justiça pensada como direito
a coisas, e sim da justiça distributiva que se vincula a uma determinada idéia de igualdade.
O Estado tem a função fundamental de proteger os indivíduos na violação dos seus
direitos quando não se cumprem os três princípios. Neste sentido, o papel do Estado na
educação não é garantir educação de qualidade para todos os indivíduos, mas sim proteger o
processo de aquisição de educação dos indivíduos, mediante os contratos que os indivíduos
estabelecem. O Estado não tem por função distribuir educação, mas fazer com que nos
contratos estabelecidos no mercado educacional, como em qualquer outro mercado, os
indivíduos sejam respeitados nas cláusulas que esses contratos estabelecem.
Assim fica claro como essa questão está hoje colocada: é a idéia do direito do
consumidor vinculada a essa idéia de justiça como direito de propriedade. Tanto na educação
quanto na saúde, não o cidadão, mas o consumidor pode reclamar desde que demonstre que é
legitimo proprietário do que está em questão.
Após a exposição sobre o tamanho do Estado, sobre a proteção do Estado ao direito de
propriedade e sobre a justiça, Nozick afirmará que o Estado mínimo, inspirador, é o único que
pode ser moralmente defendido. É o único modelo de Estado compatível com a ética
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libertária, com a ética individualista. Assim, o Estado mínimo não é uma utopia no sentido de
uma coisa irrealizável, o Estado mínimo é o caminho para uma série de aspirações
fundamentais que os indivíduos colocam em suas vidas, sendo o tipo de Estado que melhor
permite o desenvolvimento do indivíduo. Isso porque o Estado mínimo não coloca aos
indivíduos nenhum dever ser, pois são os próprios indivíduos que o definem. O Estado não é
inspirador quando oferece saúde, educação, etc. porque se sobrepõe à vontade individual.
Assim, o Estado mínimo é o melhor para cada um realizar as suas próprias aspirações.
O Estado mínimo não cuida da frustração individual, ele cuida da realização das
aspirações individuais quando se respeitam os princípios de justiça. Nozick concluirá que o
Estado mínimo permite a realização dos múltiplos projetos de vida que os indivíduos
estabelecem (ibidem, p. 337) e não de um único projeto, não de um único modelo ou padrão
de conduta. Podemos concluir, como uma implicação disto para o campo educacional, que
não existe um modelo educacional comum que possa ser defendido para todos os indivíduos
na sociedade. Conseqüentemente, cada indivíduo deve fazer uso da sua propriedade
educacional da forma que puder e que considerar melhor. Assim, o Estado mínimo é o melhor
para a educação não porque ele garante educação de qualidade para todos, mas porque ele
garante que todos consigam a educação que podem e desejam. Neste sentido, a utopia
educacional é que cada um possa ter a educação que pode negociar segundo os três princípios
acima citados. Se não foi cumprido o que foi acordado, o Estado pode intervir para a
reparação. Qualquer reclamação, entretanto, será sempre de caráter individual e nunca social.
Na concepção dos libertários, de Nozick (op. cit.) a Rothbard (1995), o exemplo dos
parâmetros curriculares é negativo porque quem estabelece o que deve ser é o Estado e não o
indivíduo. Mas essa questão não é consensual entre os liberais. Friedman (1985), por
exemplo, vai dizer que o currículo mínimo definido pelo Estado é central para poder se
estabelecer um domínio de competição e de orientação entre as escolas.
A forma como Friedman (op. cit.) justifica o currículo mínimo é fundamental. Para ele
esse conhecimento permite hierarquizar as instituições, realizando avaliações (vide Sistema de
Avaliação da Educação Brasileira - SAEB). Friedman vincula a função do Estado nesta
questão do currículo à mesma função que teria o Estado como uma agência sanitária (p. 86).
Assim, o currículo mínimo é fundamental para que o consumidor da educação possa escolher
o que é melhor para si, para que o mercado funcione de forma mais competitiva. Neste
sentido, o mercado funciona porque é um sistema de informações em movimento (p. 29). No
caso brasileiro, mesmo o Ministério da Educação tendo dito que os parâmetros curriculares
não são de uso obrigatório, que são apenas “parâmetros”, eles serão usados para avaliação das
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escolas, permitindo-nos a conclusão de que a única função do currículo nacional mínimo é
garantir mecanismos comuns de avaliação.
O Estado mínimo para Nozick (op. cit.) oferece a estrutura para que se realize o
modelo utópico de sociedade e, neste sentido, ele é inspirador. Ele permite as condições para
a utopia que é a possibilidade da diversidade, da diferença, da desigualdade, pois o Estado
mínimo permite que sejam celebrados diversos contratos. Por exemplo, ao Estado mínimo não
é possível estabelecer o salário mínimo que negaria aos os indivíduos a possibilidade de
celebrem entre si o que podem negociar, dentro da capacidade e do poder de negociação de
cada um.
Ao contrário de Rothbard (op. cit.), Nozick (op. cit.) não está a favor do
desaparecimento do Estado. Ele está a favor do Estado mínimo que considera o melhor
Estado para a realização da utopia. Este tipo de pensamento é essencialista e por isso esse tipo
de neoliberalismo é denominado por alguns autores como neoliberalismo essencialista, pois
coloca uma questão que é de essência: o Estado mínimo precisa ser defendido porque ele tem
a ver com a própria essência humana, com a possibilidade de cada um realizar o seu interesse.
Uma questão que aparece permanentemente no pensamento neoliberal é que a
frustração desses interesses não é necessariamente negativa. Porque a realização desses
interesses depende de cada um e não deve ser motivo de alarme ou de preocupação social que
alguns indivíduos fracassem nessa tentativa.
Considera-se que Nozick está numa posição intermediária entre as ambições mais
libertárias, como as Rothbard, e outros autores com ambições mais conservadoras dentro do
próprio pensamento neoliberal, como Friedman e Hayek que preconizam um papel mais
interventor do Estado, relacionado à criação de condições de mercado e de competição.
De modo geral, encontramos na bibliografia sobre o neoliberalismo essas três
posições: o intervencionismo seletivo, à moda de Hayek e Friedman, que enfatiza mais o
papel de um Estado forte para intervir, orientando e criando condições de mercado; o Estado
mínimo de Nozick; e o desaparecimento do Estado proposto por Rothbard, que propõe a
privatização dos bairros, da polícia, do exército (op. cit., p. 241).
O Estado de Hayek (op. cit.) e Friedman (1980) também é um Estado extremamente
liberalizador, no entanto, mais forte do que o de Nozick e pressupõe o respeito à propriedade
privada e a possibilidade da garantia de determinadas condições de competição dentro
mercado (p. 41). O Estado deve intervir para criar condições de mercado onde ainda não
existam, mas essa é uma intervenção seletiva. Desta forma, para Hayek, quando as leis de
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mercado são violadas, o Estado deve intervir, inclusive, mediante uma ditadura para garantir o
retorno às regras de mercado.
A concepção neoliberal significa que o Estado deve abandonar qualquer pretensão
comum. Encontramos tal princípio em Nozick, mas também nas pretensões libertárias de
Rothbard, bem como em Hayek e Friedman. Qualquer forma de regulação comum se torna
uma violação aos princípios individuais de liberdade. A crítica ao salário mínimo, ao controle
de aluguéis, ao controle de preços é muito freqüente nesses autores em função de que o
estabelecimento do salário mínimo, por exemplo, obriga todos os indivíduos a estabelecerem
um patamar salarial comum, negando a livre negociação (Friedman e Friedman, op. cit., p.31
e Hayek, op. cit. p. 344). Neste sentido, Hayek critica veementemente o papel de coação dos
sindicatos nas relações trabalhistas e econômicas (p. 335 e ss.).
Enquanto para Rothbard (op. cit.) todo Estado é imoral, para Nozick (op. cit.) todo
Estado máximo é imoral. Ambos defenderão direta, no caso de Rothbard, ou indiretamente,
no caso de Nozick, a desobediência civil, baseados na falta de direito moral de violação aos
direitos de liberdade e autonomia dos indivíduos. Rothbard chega a afirmar que o Estado é
uma organização criminal e sendo assim, do ponto de vista moral, roubar o Estado é um bem
positivo pois se trata de arrancar a propriedade de mãos criminosas (Rothbard, 1995, p.253).
No caso da educação, os textos de Friedman (1985) partem de um diagnóstico comum
sobre a escola, o que inclui a falta de formação dos professores, por exemplo. Ele demonstra a
ação perniciosa do Estado no campo educacional e como os indivíduos livres devem
organizar a educação (p. 84 e ss.). O problema educacional, para ele, não se baseia na falta de
verbas, mas na má gerência dos recursos. O fracasso no sistema escolar não é decorrente do
Estado de bem-estar, mas é devido a uma questão anterior que é a presença do próprio Estado.
Afirma-se o caráter negativo da educação obrigatória e o seu efeito perverso, defende a
proposta de desregulamentação da educação, já que ela deve ser um serviço buscado pelos
indivíduos junto ao mercado (Friedman, 1985, p. 89 e 99). A proposta de Friedman, uma
referência neste tema, citado por Hayek (1991), é que o poder público deve entregar aos pais
bônus a serem pagos nas escolas de sua preferência (p. 454). O Estado arcaria somente com o
custo fundamental, através desses bônus, e os pais cobririam os gastos se quisessem uma
escola mais cara e que oferecesse os serviços que desejam. Mas o ensino fundamental estaria
garantido pelo currículo mínimo a ser seguido por todas as escolas ranqueadas pelo mercado,
já que todas estariam entregues ao setor privado.
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3. A reforma do Estado brasileiro e a consolidação do projeto neoliberal: principais aspectos
teóricos
O fim da Guerra Fria, a crise estrutural de acumulação do capital e o nível de
racionalização alcançado pelo modo de produção capitalista no final do século XX
determinaram a necessidade de um novo tipo de homem coletivo conforme a reprodução das
novas relações sociais vigentes.
O atual modo de produção capitalista caracteriza-se por um nível de racionalização
ancorado numa atuação em nível globalizado, na adoção do paradigma da acumulação
flexível na organização produtiva, e no desenvolvimento e uso acelerado da microinformática
na organização do trabalho.
A este respeito, Antunes (2003) acrescenta que “apesar do significativo avanço
tecnológico encontrado (que poderia possibilitar, em escala mundial, uma real redução da
jornada de trabalho), pode-se presenciar em vários países, como a Inglaterra e o Japão, para
citar países do centro do sistema, uma política de prolongamento da jornada de trabalho”
(p.33).
Neste sentido, permanecem as relações de exploração no mundo contemporâneo,
principalmente nos países capitalistas periféricos. A precarização das relações de trabalho, o
desemprego estrutural e a piora das condições de vida de um número cada vez maior de
trabalhadores levam o capital a redefinir suas estratégias de conformação da maioria das
populações a este novo patamar de expansão/exploração no limiar do século XXI:
Nas sociedades capitalistas abre-se, dadas suas características contraditórias e conflitivas, a possibilidade de ampliação da participação na vida social e, com isso, na vida política (isto é, no próprio Estado). A agregação de imensas massas populares ao mundo do mercado e do mercado de trabalho, a intensa urbanização, as múltiplas reivinidicações e conflitos que suscita exigem (e permitem) incorporar essa população também no plano político, à medida que suas lutas introduzem elementos profundamente perturbadores à dinâmica de expansão do capital. (Fontes, 2005, p.229)
Este trabalho visa destacar a perspectiva contra-hegemônica do movimento de
trabalhadores técnico-administrativos da Uerj, tendo como instrumento de organização e luta
o Sindicato dos Trabalhadores em Educação das Universidades Públicas Estaduais – RJ
(Sintuperj). Portanto, nossa abordagem será tanto mais elucidativa quanto mais considerarmos
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os elementos teóricos que tratam dos diversos espaços, instrumentos e estratégias das classes
sociais para conquistar espaços de hegemonia e difundirem suas teses no sentido de um
convencimento da sociedade acerca de seus interesses específicos.
A este respeito, Kosik (1969) afirma que se os pressupostos filosóficos das teorias não
forem cuidadosamente escolhidos colocam essas teorias em uma condição tal que não lhes
permite penetrar os problemas reais a fim de encaminhar propriamente as suas questões.
(Kozik, p.99-100).
Frigotto e Ciavatta (2003) reforçam a recomendação de Kosik diante das estratégias de
consolidação do pensamento único no quadro político atual.
No plano supra-estrutural e ideológico produz-se um verdadeiro arsenal de noções que constituem, para Bourdieu & Wacquant (2002), uma espécie de uma “nova língua” com a função de afirmar um tempo de pensamento único, de solução única para a crise e, conseqüentemente, irreversível. Destacam-se as noções de globalização, Estado mínimo, reengenharia, reestruturação produtiva, sociedade pós-industrial, sociedade pós-classista, sociedade do conhecimento, qualidade total, empregabilidade etc., cuja função é a de justificar a necessidade de reformas profundas no aparelho do Estado e nas relações capital/trabalho (Frigotto e Ciavatta, 2003, p.95)
Levando em conta tais observações, tomaremos como base de análise a tese
desenvolvida no livro intitulado “A nova pedagogia da hegemonia”, que busca identificar
com base em Gramsci o
(...) processo de redefinição das práticas do Estado brasileiro enquanto
estado educador, ou seja, as novas estratégias da pedagogia da
hegemonia que, por intermédio de uma nova relação entre o Estado em
sentido estrito e a sociedade civil, consolida e aprofunda, no espaço
brasileiro, o projeto neoliberal de sociabilidade, o projeto da burguesia
mundial para a atualidade. (Neves, 2005, p. 39)
Neves ressalta que Gramsci nunca utilizou explicitamente o termo pedagogia da
hegemonia, mas que este é por ele inspirado, na medida em que é o próprio Gramsci quem
afirma que “toda relação de ´hegemonia´ é necessariamente uma relação pedagógica (...)”
(Gramsci, 1999, p.399 apud Neves, 2005, p.27).
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Lima (2006) reafirma o movimento de consolidação hegemônica do projeto neoliberal
vinculado ao processo de crise do capital ao afirmar que
o neoliberalismo caracteriza-se como sua face atual, uma resposta à crise do capital instaurada nos anos 1970, que indica novas configurações na luta de classes e evidencia a capacidade do projeto burguês de sociabilidade de apresentar “o velho sob a forma do novo. (p.30)
Ressaltamos que de acordo com o conceito de hegemonia em Gramsci, através da
colocação em prática das teses de interesse das classes sociais, a partir dos aparelhos privados
de hegemonia (interessa-nos estudar aqui especialmente o Sintuperj) essas classes poderão
legitimar os seus interesses específicos junto à sociedade como um todo.
O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa; mas também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica. (Gramsci, 2000, p.48)
Historicamente, o desenvolvimento das formações sociais capitalistas apresenta-se
como produto, tanto de alterações concretas nas forças materiais de produção social, quanto
das ações de coerção/persuasão das forças político-sociais em disputa por hegemonia na
sociedade. As mudanças qualitativas, nas relações sociais de produção, passam a demandar do
Estado novos formatos em seu papel educador.
Entretanto, Fontes (2005) chama atenção sobre a importância presença do caráter de
coerção estatal combinado com a ação de aparelhos privados de hegemonia presente no
discurso de um “projeto nacional” na perspectiva da centralidade do Estado.
A centralidade do Estado não pode – e não deve – ocultar as formas seletivas de sua ampliação e de incorporação crescente de uma sociedade civil composta sobretudo por setores dominantes. Produzem-se formas de hegemonia difusas e violentas, reafirmadas no cotidiano pela brutal coerção estatal e por aparelhos privados de
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hegemonia que as incentivam. É nesse terreno movente, onde se cruzam parelhos privados de hegemonia e seu aparelhamento no Estado, que se desenvolve a história contemporânea, (...). (p.232)
O novo bloco histórico que vai se constituindo no início do século XX mantém até os
dias atuais suas características essenciais. No plano econômico, a reprodução ampliada do
capital, sob a direção do grande capital, a partir do emprego diretamente produtivo da ciência
e da técnica, a expropriação crescente do trabalho pelo capital pela extração da mais-valia, por
intermédio da intensidade do trabalho e do aumento da produtividade da força de trabalho. No
plano político, um Estado que intervém nos rumos da produção e nas relações político-sociais
com vistas à legitimação dos padrões de relações sociais vigentes.
O conceito de bloco histórico (de Gramsci) aqui utilizado pressupõe a relação entre
sociedade civil e Estado em sentido estrito, implicando o estudo da sociedade civil na relação
com idéias, objetivos e práticas de governo.
Tomaremos como pressuposto o desenvolvimento de um capitalismo dependente no
Brasil, definido por Florestan Fernandes como produto da integração do país à economia
internacional, tendo o conceito de desenvolvimento desigual e combinado como base de
fundamentação deste capitalismo.
Florestan Fernandes adverte, entretanto, que tal integração não deve ser entendida
como imposição externa, mas que o desenvolvimento subordinado econômica, política e
culturalmente à Europa e, posteriormente, aos Estados Unidos, é articulado aos próprios
interesses da burguesia brasileira em reproduzir internamente relações de dominação
ideológica e de exploração econômica (p.).
Partindo desta concepção de dependência, entendemos que analisar o contexto sócio-
político-econômico, não apenas em nível nacional, mas também na sua relação com as
concepções e projetos em nível internacional, nos ajuda a entender como o movimento dos
trabalhadores da Uerj se insere diante da atual realidade.
Temos indícios sobre o silenciamento acadêmico e político com relação a Florestan
Fernandes: sua obra discute e supera a tese/ideologia desenvolvimentista, tão acalentada pela
burguesia nacional e por frações da esquerda, ao conceituar o capitalismo dependente e a
inserção do Brasil nele. Sua vida (e eu diria sua melhor obra) testemunha a opção radical
pelos “de baixo”, como ele próprio dizia. Nesta opção teórica e política entra o seu
compromisso com a educação pública e laica, embora não se considerasse um educador.
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Como aponta Miriam Limoeiro Cardoso o esquecimento ou apagamento de Florestan
Fernandes como produtor de ciência, ocultando-se a sua capacidade explicativa: a
contribuição original à teoria do capitalismo e do desenvolvimento capitalista através da
teorização e do conceito de capitalismo dependente. Analiticamente Florestan mantém a
acumulação do capital como o elemento constituinte, reproduzindo-se e se transformando no
plano internacional. No plano nacional, no caso histórico que analisa, o Brasil é estudado
como um caso particular do capitalismo dependente. Para Florestan há dois importantes
aspectos para o processo de funcionamento do capitalismo dependente: a burguesia local,
parceira do grande capital internacional, de forma subordinada; e a exasperação das relações
de classe, caracterizadas pela sobre-exploração e pela sobre-expropriação capitalistas do
trabalho.
Do ponto de vista político, para Florestan a democracia burguesa seria essencial para o
funcionamento do modo de produção capitalista, sendo que no capitalismo dependente há
uma exagerada redução da democracia, restrita a uma democracia de iguais numa sociedade
profundamente desigual. Assim, se do ponto de vista econômico, caracteriza o capitalismo
dependente enquanto sobre-exploração e sobre-expropriação do trabalho, do ponto de vista
político, o caracteriza enquanto autocracia, completando o que compreende por capitalismo
selvagem: crescimento econômico dependente, acompanhado por miséria, exclusão. O que
Florestan enfatiza é que as frações da burguesia no capitalismo dependente não assumem a
revolução burguesa em seus países de origem. Descritas como “nacionais”, acomodam-se à
acumulação do capitalismo dependente e não lideram nem a revolução nacional nem a
revolução democrática. Assim, Florestan explicita que é incompatível com uma política de
universalidade dos direitos humanos a sociedade de classes engendrada pelo capitalismo
dependente. Trata-se de uma democracia restrita e de um Estado autocrático, onde os direitos
só existem para uma minoria e para os interesses do capital internacional (Cardoso, 2003).
Assim sendo, partilhamos da análise de Melo (2005), segundo a qual ocorre uma
inflexão na concepção e aplicação do projeto neoliberal, identificada a partir das
recomendações dos organismos internacionais, o que certamente influencia a realidade sócio-
político-econômica brasileira.
Para os principais organismos internacionais que representam uma frente de defesa e condução dos interesses sociais do capitalismo mundial, o neoliberalismo já está ultrapassado desde os anos de 1990. Para esses organismos (como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, com todas as suas agências), a necessidade de sobreviver e aprofundar o processo de ocidentalização de uma ótica
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conservadora, do ponto de vista dos interesses do capitalismo, de continuar a determinar, a dominar, a fazer o mundo à sua semelhança, à semelhança de seu projeto de sociabilidade, fez com que a direção e o ritmo de suas ações de planejamento social se ampliassem e consolidassem desde a década passada. (p.69).
Segundo a autora, os organismos internacionais como o Fundo Monetário
Internacional e o Banco Mundial, objetivando manter um projeto hegemônico de sociedade a
partir dos anos 90, renovam a sua linguagem passando a defender para países e indivíduos
uma cidadania ativa que tem como pressupostos:
(...) ações de interdependência, de colaboração, evocando a imagem de uma sociedade harmoniosa, em que instituições sociais, comunidades e cidadãos participariam ativamente de seus destinos e de seu progresso e sucesso no mundo do trabalho a partir de suas habilidades e competências2. Saberes que cada um, de forma individual, teria a responsabilidade de construir para si próprio, como a aquisição de um capital de conhecimento. (Melo, op. cit., p.70)
Como alternativa aos efeitos negativos do neoliberalismo e às insuficiências da social-
democracia européia, deu-se um processo de redefinição das estratégias destinadas a legitimar
o consenso em torno da sociabilidade burguesa, que culminou na elaboração de um único
projeto que apresenta uma nova agenda político-econômica para o mundo, nos limites do
capitalismo, transformando-se em um importante instrumento da nova pedagogia da
hegemonia.
Denominado de ‘terceira via’, ‘centro radical’, ‘centro-esquerda’, ‘nova esquerda’, ‘nova social-democracia’, ‘social-democracia modernizadora’ ou ‘governança progressiva’, esse projeto – direcionado, principalmente, às forças sociais de centro-esquerda que chegaram ao poder nos últimos anos do século XX ou que lutam intensamente para isso – parte das questões centrais do neoliberalismo para refiná-lo e torná-lo mais compatível com sua própria base e princípios constitutivos (...). (Lima e Martins, 2005, p.43)
Como forma de caracterizar de forma clara os limites e possibilidades almejados por
este projeto, Anthony Giddens, sociólogo da London School of Economics and Political
Science e intelectual orgânico do novo trabalhismo inglês afirma que
2 Ressaltamos que a noção de competências é o principal elemento teórico das propostas de mudança paradigmática presentes na reforma educacional brasileira, em especial para o ensino médio. Esta noção, da forma como foi concebida, na análise crítica de Ramos (2001) em Pedagogia das Competências: Autonomia ou Adaptação? (2001), concorreria para a referida colaboração e harmonia.
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(...) o grande desafio dos socialistas modernos é governar o capitalismo de forma mais competente e mais justa do que os capitalistas. Alguma forma de socialismo de mercado poderá ser alcançada no futuro. Agora, porém, quando a Nova Esquerda disputa eleições e assume os governos, ela não o faz para transformar o país em socialista em um breve espaço de tempo – essa ilusão voluntarista está descartada –, mas para aprofundar a democracia e promover uma maior igualdade de oportunidade, lograr melhores taxas de desenvolvimento econômico do que os partidos conservadores. (p. 5-6 apud Lima e Martins, p.44)
As palavras de Giddens deixam claro que o desafio dos socialistas modernos não é o
socialismo. Este só poderá ocorrer no futuro e, mesmo assim, associado ao mercado. Portanto,
a tarefa da nova esquerda é de manutenção e governo do capitalismo, ou seja, que este seja
apenas melhor, mais justo e competente. Neste sentido, não se prevê sequer radicalizar a
democracia, mas apenas aprofundá-la. Não há previsão de se alcançar a igualdade de
oportunidade nem taxas de desenvolvimento econômico compatíveis com esta necessidade,
mas tão somente melhorar estes índices.
Referindo-se, mais especificamente, ao papel do Estado e dos governos no mundo
contemporâneo, Giddens (1999) destaca as seguintes propostas, dentre outras.
• Prover meios para a representação dos diversos interesses. • Oferecer um fórum para a conciliação das reivindicações concorrentes desses interesses. (...). • Fomentar a paz social mediante o controle dos meios de violência e mediante a provisão de policiamento. • Promover o desenvolvimento ativo do capital humano através de seu papel essencial no sistema de educação. (...). • De maneira mais controversa, ter um propósito civilizatório – o governo reflete normas e valores amplamente sustentados, mas pode também ajudar a moldá-los, no sistema educacional e em outros setores. • Fomentar alianças regionais e transnacionais e buscar a realização de metas globais. (p.57)
O projeto de sociabilidade neoliberal da terceira via caracteriza-se por negar o conflito
de classes e até mesmo a existência dessa divisão nas sociedades ditas “pós-tradicionais”.
Este é o ponto de partida para a análise sobre a difusão, na sociedade brasileira, dos
novos ideais e práticas voltados para a construção de uma nova pedagogia da hegemonia.
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Uma educação para o consenso sobre os sentidos de democracia, cidadania, ética e
participação, adequados aos interesses privados do grande capital nacional e internacional.
Tais mudanças qualitativas nas relações sociais de produção passam a demandar do
Estado, novos formatos em seu papel educador.
O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados como força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”, isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo dominante prevalecem (...). (Gramsci, 2000, p. 52)
Sob a direção das frações financeira e industrial monopolista da burguesia mundial
tem início um processo de reestruturação do Estado no que se refere às suas funções
econômicas, bem como aos seus objetivos de legitimação dos padrões de relações sociais.
Assim, a reforma do Estado, ou seja, da aparelhagem estatal, enquanto “um princípio orientador básico da política da terceira via” (Giddens, 2001a:79), deveria ser responsável por um conjunto de medidas inovadoras, tais como: promover a sociedade civil ativa e, com isso, assegurar um modelo de inclusão social em bases distintas do que foi tentado pelo Estado de Bem-Estar Social, aprofundar e ampliar os espaços de convivência democrática e de colaboração social, incentivar e fortalecer a economia mista, regular, por meio de leis modernas, as atividades que representem riscos para a sociedade. Com essas referências, “uma das principais tarefas do governo [seria] precisamente conciliar as reivindicações divergentes de grupos de interesse especial” (Giddens, 2001a:63), isto é, promover a concertação social. (apud Lima e Martins, 2005, p. 55)
Por intermédio de ações, proposições e concepções, instituições como a Igreja
Católica, os meios de comunicação de massa, as associações recreativas e sindicais, as
associações de defesa de interesses corporativos distintos, dentre outras, articulam-se às
classes socialmente dominantes, constituindo-se num bloco histórico responsável pela dupla e
complexa tarefa de, preservando suas maneiras específicas e próprias de atuação nas questões
sociais, harmonizar os interesses das classes e frações de classes em nome das quais atuam,
como também organizar as proposições vinculadas a esses interesses particulares
constituindo-os como gerais. (Neves e Sant´Anna, 2005, p.27)
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Ainda segundo esses autores, tal articulação constitutiva do atual bloco histórico não
implica que os aparelhos privados de hegemonia, na visão gramsciana, sejam meros
instrumentos reprodutores de uma lógica que lhes é imposta externamente. Ao contrário, tais
aparelhos guardam em si mesmos, conforme a conjuntura histórica, a possibilidade de se
contraporem a determinados projetos e orientações, criando a possibilidade de construção de
uma contra-hegemonia.
Para Gramsci, entretanto, as disputas travadas no interior dos aparelhos privados de
hegemonia, pela adesão mais ou menos espontânea ou pela educação das consciências a um
determinado projeto de sociedade, não são disputas entre iguais. Assim sendo, o terreno de
disputas da sociedade civil não se constitui em espaço unicamente de conquistas e ampliação
das vontades das grandes massas, muito menos, garantia de alargamento de suas chances de
contra-hegemonia. (Neves e Sant´Anna, 2005, p.27-28)
Entretanto, referindo-se, a nosso ver, à possibilidade de atuação contra-hegemônica
dos sindicatos o mesmo Gramsci vai ressaltar que “(...) uma fase importante no
desenvolvimento de um grupo social é aquela em que os membros de um sindicato não lutam
mais apenas por seus interesses econômicos, mas para a defesa e o desenvolvimento da
própria organização”. (Gramsci, 2000, p.49)
4. Breve histórico do sindicalismo e sua influência na política brasileira
Mesmo considerando que a ação de tipo sindical já estava presente na vida política
brasileira após a Abolição da Escravidão e a Proclamação da República, com o trabalhador
livre, vamos limitar nossa abordagem ao período pós anos 1930 até o final dos anos 1990,
seguindo a perspectiva proposta por Mattos (2003). Por esta perspectiva,
o movimento operário brasileiro não se iniciou em 1930, nem foi esse o momento inaugural das políticas em relação aos trabalhadores. Porém é inegável que mudanças significativas se operaram na sociedade brasileira a partir da chamada Revolução de 1930. (p.10)
Boito Jr. (2005) afirma que a Revolução de 1930 não foi um mero golpe de Estado ou
decorrente de uma mera dissidência oligárquica. Salienta que a Revolução de 1930 pode ser
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entendida como parte do processo de revolução burguesa no Brasil que surge com a ruptura
provocada pela Abolição e pela República no Estado brasileiro. O movimento tenentista
buscara apoio nos trabalhadores e especialmente no sindicalismo para vencer a resistência da
velha burguesia mercantil ao avanço da Revolução, resultando na deposição de Washington
Luiz e na consolidação do novo poder (p. 272).
Nossa abordagem privilegiou, especialmente a partir de contribuições específicas de
Mattos (2003) e Boito Jr. (2005), uma análise dos principais fatos e contextos que tiveram
numa importante e às vezes fundamental influência do sindicalismo nas principais mudanças
da vida política brasileira, até os anos 2000.
Mais que isso, buscamos destacar elementos que pudessem nos ajudar a analisar, no
momento atual, as relações do movimento sindical com a direção da política brasileira, cujo
governo encontra-se sob a responsabilidade daqueles que um dia investiram na construção de
um sindicalismo “autêntico” e foram levados a constituir, com o movimento popular, um
sindicalismo de novo tipo, cuja permanência, em seu interior, de contradições históricas
implicariam no seu desvirtuamento.
Boito Jr. sintetiza abaixo os principais elementos que, a partir da Revolução de 1930,
constituem o cenário político e econômico propício às relações de exploração capitalistas,
bem como as bases sobre as quais será desenvolvido um importante movimento sindical,
buscando ampliar direitos políticos e sociais.
Surge, então, no Brasil, um Estado baseado no direito (formalmente) igualitário burguês com instituições políticas (formalmente) universalistas. Esse é o tipo de Estado necessário para a difusão das relações de produção baseadas na exploração do trabalho livre, isto é, capitalistas (Saes, 1985). A revolução de 1930 deve ser situada nesse processo porque, ao encerrar a hegemonia da grande burguesia ligada ao comércio de exportação e importação, deu novo impulso ao desenvolvimento do Estado e da economia capitalista no Brasil: ela ampliou a cidadania, com o desenvolvimento dos direitos políticos e sociais, unificou o mercado nacional e desencadeou o processo de industrialização, permitindo a constituição das forças produtivas especificamente capitalistas no Brasil. (p.271)
Como o movimento que resultou na revolução de 1930 se dera de forma não
organizada, o Governo Getúlio Vargas pôde implantar direitos sociais e um modelo de
sindicato oficial, reconhecido, mas com seu funcionamento dependente das estruturas estatais,
isto é, tutelado por elas. Esses sindicatos foram constituídos sob diretrizes de instâncias
governamentais, em especial do recém-criado Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio –
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MTIC, com o objetivo de servir como interlocutor entre trabalhadores e governo. Era o
nascimento do sindicato oficial, do sindicalismo de Estado.
Ainda que parte expressiva das tradicionais entidades de classe não estivesse
inicialmente disposta a aderir ao novo modelo de sindicalismo, essas entidades não resistiram
às ofertas governamentais que iam desde de incentivos trabalhistas até a possibilidade de
participação parlamentar, para os sindicatos oficiais, na Assembléia Nacional Constituinte de
1934 (Mattos, op. cit., p.13).
Entre 1935 e 1942 houve uma fase de completa desmobilização, com dirigentes
levados às direções dos sindicatos pelo MTIC, sem greves e pouquíssima participação das
bases. Some-se a isso a ditadura do Estado Novo, instalada em 1937, que se faz acompanhar
de uma Constituição de inspiração fascista e uma nova lei de sindicalização em 1939, cujo
objetivo era controlar os sindicatos.
Entretanto, “com a entrada do Brasil na guerra e o crescimento das oposições à
ditadura, parecia mais próxima para os que estavam à frente do governo a possibilidade de
redemocratização” (Mattos, op. cit., p.20).
É nesse contexto que se forja o discurso político trabalhista que, buscando ampliar as
bases de apoio, reforçava a idéia de que o Estado, na figura de Vargas, era o protetor dos
trabalhadores, enfraquecendo, ao mesmo tempo, a tradição de luta marcada pelo movimento
sindical da velha república.
A partir da suspensão de algumas restrições legais e da crescente demanda por
reajustes salariais, surgiram a partir de 1942 vários movimentos grevistas que passaram a
enfrentar as direções oficiais dos sindicatos e a própria polícia política.
Neste contexto, a estratégia do governo passou a ser a valorização do trabalhador
através de um discurso trabalhista que apresentava o Estado como doador de uma legislação
que ressaltava a importância o trabalhador para a nação. Como contrapartida desta postura, o
Governo Getúlio Vargas esperava uma elevação da produtividade dos trabalhadores, além de
dividendos eleitorais. Getúlio Vargas seria eleito senador em 1946 e voltaria à presidência em
1950.
Mattos, entretanto, ressalta que tal processo não se deveu a uma postura ingênua ou
passiva de gratidão dos trabalhadores por benesses sociais, mas que, além do Estado ter que
buscar o apoio dos trabalhadores, “o discurso trabalhista ecoou num terreno preparado pela
repressão, que excluiu dos sindicatos e da vida política as lideranças mais combativas,
capazes de resistir à proposta estatal (...)” (p.25).
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Após a entrada na guerra em 1942 e a crescente oposição à ditadura, Getúlio Vargas
promove em 1945 uma série de reformas que incluíam o reconhecimento do PCB, a anistia de
presos políticos e eleições para a Constituinte cujo processo levou ao crescimento do seu
próprio nome para a presidência. “Neste quadro, os mesmos militares que foram os fiadores
do golpe do Estado Novo em 1937 depuseram Vargas em 1945” (p.26).
O General Dutra ganha as eleições com o apoio de última hora do próprio Getúlio.
Este governo promoveria em 1947 intervenções em centenas de entidades sindicais iniciando
nova fase de repressão ao sindicalismo mais combativo que se desenvolvera nesses dois
primeiros anos de redemocratização. Decorrente dessas intervenções, repressão policial e
restrições legais ao direito de greve, o movimento reflui nos anos seguintes, sendo retomado
apenas em 1951, já durante o segundo Governo de Vargas.
O Presidente Getúlio Vargas se elege em 1950 com um discurso voltado para a grande
massa de trabalhadores urbanos, com forte apelo nacionalista e trabalhista. Procura dar
continuidade à “política social” que começara em 1930 com a ajuda dos trabalhadores. “Mas a
época era outra e tanto o nível de mobilização operária, quanto a força da pressão
oposicionista indicavam que o discurso trabalhista tradicional precisava de maior radicalidade
na sua vinculação com os interesses e organizações dos trabalhadores” (p.33).
A chamada greve dos trezentos mil em São Paulo, no ano de 1953, representa um
marco na retomada das mobilizações operárias após o refluxo ocorrido no Governo Dutra. Os
aumentos do salário mínimo e o apelo às massas através do discurso trabalhista não foram
suficientes para que Getúlio Vargas garantisse, na fase crítica de 1954, o apoio popular que
esperava para superar as contradições do seu governo e a oposição da UDN. “Ainda assim, o
gesto extremo do suicídio tanto reverteria a força da oposição – garantindo a eleição de
Juscelino Kubitschek pelos mesmos PSD e PTB criados por Getúlio – quanto restauraria a
aura de mito do “pai dos pobres” junto aos trabalhadores urbanos” (p.36).
A reorganização do movimento sindical com a aproximação de comunistas e
trabalhistas num momento de relativa liberdade democrática durante o Governo de Juscelino
Kubitschek, que assumira a presidência em 1956, proporcionou a mais ampla mobilização
sindical até então conhecida.
Tanto quanto Mattos (2003), Boito Jr. (2005) também credita ao movimento sindical
um grande papel nas transformações operadas no Estado brasileiro a partir da revolução de
1930: a ampliação de direitos sociais e da própria democracia burguesa no Brasil. Ainda que a
reforma agrária não tenha sido realizada, não tenha havido um rompimento com o
imperialismo e tampouco se implantado um Estado de bem-estar no país.
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Boito Jr. ressalta ainda que
... há outras transformações na história política do Brasil contemporâneo que são incompreensíveis se deixarmos de lado o papel desempenhado pelos sindicatos. Refiro-me a transformações reacionárias, como o golpe militar de 1964, que foi apresentado pelos próprios golpistas como uma medida preventiva contra a implantação de uma suposta “República Sindicalista” (p.273).
4.1. O sindicalismo e o Estado populista
Optamos por entremear, na perspectiva de Boito Jr. (2005), uma reflexão sobre as
relações entre movimento sindical e Estado no período populista por entendermos de grande
importância a conceituação atribuída por este autor ao populismo3, inclusive porque nos
fornece importantes elementos para analisar o sindicalismo e a política brasileira nos últimos
anos.
Este autor analisa as relações do que define como “fetiche populista” do Estado com o
movimento sindical considerando tais relações complexas o suficiente para estabelecer limites
claros à ação sindical sem, entretanto, deixar de comportar contradições e instabilidade no seu
interior.
No plano estritamente reivindicativo, esse fetiche vincula o movimento sindical à estrutura sindical corporativa de Estado e às suas regras básicas, inibindo a organização e a luta (...). No plano da luta política, o fetiche do Estado protetor que caracteriza o populismo coloca o movimento sindical sob direção política do Estado. (...) A política é pensada como algo alheio ao movimento sindical, ilegítimo e divisionista. (p.274)
Boito Jr. (op. cit.) considera que o “populismo sindical” tem um papel
fundamentalmente desorganizador da ação dos trabalhadores, sem que, entretanto, isso
signifique que a história do sindicalismo seja de passividade. Dois elementos indicariam esta
conclusão. Em primeiro lugar, mesmo os trabalhadores iludidos com o populismo podem
3 Ideologia que possui um conteúdo central que pode ser resumido na expressão “culto ao Estado protetor”, isto é, a expectativa que o Estado tome a iniciativa de proteger, independente da correlação política de forças, os trabalhadores da ação predatória dos capitalistas. O populismo é, então, um tipo de estatismo. Mesmo quando se manifesta aparentemente como uma relação entre o líder e a massa, o populismo representa uma identificação de setores populares com o aparelho de Estado Burguês. Esta identificação, retomando a expressão de Lênin para caracterizar o estatismo pequeno-burguês, assume a forma de um fetiche do Estado.
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organizar e participar da luta reivindicativa. O segundo e mais importante elemento é que
mesmo sendo hegemônico num determinado período da história, o populismo nunca
homogeneizou os valores e as atitudes do movimento dos trabalhadores brasileiros que em
diferentes conjunturas escaparam do controle do populismo (p.275).
Neste sentido, entende que o golpe de Estado que depôs Getúlio Vargas em 1954 teve
a luta sindical, com a organização em sindicatos livres e uma imprensa sindical crescente,
como seu componente básico ao romper com o populismo sindical e avançar contra o próprio
populismo de Vargas. A ascensão da luta sindical a partir da greve dos 300 mil de São Paulo,
em 1953, teria reunificado o campo burguês preocupado com tal ascensão.
Com efeito, diante da pressão sindical, o governo Vargas optou por fazer concessões ao movimento operário para abortar a crise do populismo sindical. O ponto culminante dessa política de concessão foi o reajuste de 100% do salário mínimo em maio de 1954. A partir daí a mobilização do conjunto da burguesia contra o governo intensificou-se. O golpe de 1954, portanto, teve como principal fator a ascensão do movimento sindical, que engatinhava numa tentativa, posteriormente frustrada, de rompimento com o sindicalismo populista. (p.278)
Ainda segundo Boito Jr. (2005), alguns aspectos semelhantes estão presentes na crise
do governo e no golpe militar de 1964. A luta das Ligas Camponesas e a agitação de outras
categorias de trabalhadores rurais visando a reforma agrária colocavam o Governo João
Goulart diante de uma alternativa semelhante àquela que se apresentou para Getúlio Vargas
dez anos antes: reprimir o movimento contestador e arriscar-se a perder sua base de apoio ou
fazer concessões de modo a recuperar o prestígio e a força do sindicalismo populista,
correndo o risco de se indispor com a burguesia (idem).
Assim sendo, João Goulart opta por fazer a mesma opção conciliadora que Getúlio
Vargas fizera dez anos antes, o que não seria perdoado pelos proprietários de terra e pela
burguesia, como não perdoaram seu predecessor e inspirador.
Neste caso, Boito Jr. (2005) salienta que tanto os trabalhadores quanto o Partido
comunista e outras correntes de esquerda aceitaram a oferta de Goulart de uma “cidadania
sindical sob tutela”. O autor destaca, entretanto, que mesmo tendo o populismo levado para o
campo uma cidadania restrita, os proprietários de terra não concordavam com cidadania
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alguma4 e a incorporação, pelo governo, do movimento dos trabalhadores rurais ao
sindicalismo populista foi o começo da perdição desse governo.
Porém, essa exportação do populismo para o campo foi fatal. (...). E tal como ocorrera em 1954, quando os quebra-quebras foram a única ação (impotente) de protesto contra o golpe de Estado, a esquerda brasileira permaneceu, como os trabalhadores desorganizados pelo populismo, passiva – esperavam uma reação do Governo Goulart – que fugiu – ou do Estado, “na pessoa” da “ala progressista” (sic) das forças armadas (idem).
Mattos (2003), referindo-se à resistência ao golpe militar e seus mecanismos de
repressão, também faz menção aos limites do sindicalismo da época na relação com o Estado.
Este sindicalismo que se lançou com vigor numa pauta política reformista mediada por uma
proposta de conciliação de classes foi
(...) por isso mesmo, incapaz de tomar a frente de um processo de resistência popular efetiva à quebra da constitucionalidade e à ditadura. A ditadura utilizou-se dos recursos da legislação sindical para reprimir os movimentos, (...) uma estrutura oficial que se procurou adequar aos interesses dos trabalhadores, mas contra a qual lutou-se pouco. (p.48)
Mattos (2003) destaca, entretanto, que nada disso impede a avaliação da importância e
representatividade das lutas travadas pelos trabalhadores no início dos anos 1960.
Boito Jr. (2005) também destaca que 1954 e 1964 seriam exemplos de que o
sindicalismo apesar de populista pode criar instabilidade e interferir no processo político
nacional. Entretanto, esta mesma análise enfatiza que justamente por não ter rompido com o
populismo não foi capaz de promover um desfecho favorável aos trabalhadores. “Quem
estiver interessado num desfecho favorável aos trabalhadores não poderá, portanto, ocultar o
componente populista da ação sindical” (p.279).
4 Como hoje a representação empresarial de parlamentares no Congresso Nacional não aceita qualquer tipo de ressalva na reforma do ensino superior que preserve o estatuto mínimo de universidade pública, ainda que tais ressalvas representem apenas uma suposta “disputa” dos trabalhadores representados pela Cut no contexto atual de concertação neoliberal.
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4.2. O sindicalismo, o combate à ditadura militar e o surgimento de uma nova esquerda no
Brasil
A crise econômica que se aprofunda desde o final do Governo de Juscelino
Kubitschek passou a se combatida pela ditadura com arrocho salarial e, para tanto seria
necessário o controle dos movimentos organizados de trabalhadores do campo e da cidade,
em especial dos sindicatos.
Para tanto o regime militar constituiu interventores sindicais utilizando muitas vezes
antigos dirigentes que passaram a apoiar a ditadura. Esses interventores passaram a caçar seus
antigos adversários, líderes e militantes das correntes de esquerda, através de inquéritos que
buscavam reunir provas para incriminar essas lideranças como subversivas.
Como resultado, os sindicatos se esvaziaram perdendo o contingente mais expressivo
de sindicalizados que haviam conquistado nos anos que antecederam o golpe. Ainda assim
algumas chapas oposicionistas ganharam algumas eleições sindicais, tão logo foram
convocadas.
Duas greves de trabalhadores metalúrgicos ocorreram em 1968, uma em contagem e a
outra em Osasco. Especialmente a greve de Osasco foi reprimida de forma devastadora
anunciando uma nova fase de tratamento da ação sindical. Com o Ato Institucional número 5,
instituído ainda em 1968, e o endurecimento do regime nos anos seguintes, os sindicatos
passaram a ser não apenas reprimidos, mas levados a adotar um outro modelo de atuação.
O início dos anos 1970 seria caracterizado pela fase mais violenta da repressão às
oposições ao regime militar e em especial aos grupos que optaram pela luta armada. No
campo econômico, com altos índices de crescimento, a ditadura inaugurou o que ficou
conhecido como “milagre econômico”, assentado entre outras coisas no arrocho salarial dos
trabalhadores.
Por outro lado, a ditadura buscava legitimar-se ante a opinião pública através de um
grande esforço de propaganda que divulgava seus feitos econômicos. Essa investida também
foi feita nos sindicatos quando, ainda no início dos anos 1970, com a nova lei de intervenções
os governos militares passaram a incentivar um novo modelo de atuação sindical. A marca
deste modelo era, além da ação exclusivamente assistencial que seria fortalecida pela injeção
de recursos governamentais, o discurso que associava as idéias de crescimento econômico a
uma posterior política redistributiva. Ainda assim ocorreram diversos movimentos grevistas
de curta duração e por empresa, organizados por ativistas mais combativos. “Com todas as
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dificuldades, organizavam-se também oposições sindicais, que estimulavam lutas contra a
ditadura e a estrutura sindical” (Mattos, 2003, p.60).
4.3. O novo sindicalismo
No final dos anos 1970, o modelo econômico da ditadura entrava em crise e as
dissidências no interior do bloco de poder se avolumavam. Tanto a ação mais crítica do
Movimento Democrático Brasileiro (MDB) quanto a postura de parte da grande imprensa que
passou a refletir insatisfações de setores da burguesia no final do milagre econômico
contribuíram para evidenciar a crise. Assim, os governos militares iniciaram uma transição
lenta e gradual para o retorno a um governo civil através de medidas como o fim do Ato
Institucional n.5, em 1978, a anistia política, em 1979, e a reorganização partidária. Este
projeto de transição controlada enfrentaria, entretanto, pressões da ação organizada dos
trabalhadores através dos movimentos sociais que, em 1978, culminaria com as greves do
ABC.
Luís Inácio “Lula” da Silva, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo, tornou-se conhecido nacionalmente destacando-se como liderança do grupo de
sindicalistas que se identificava como “autêntico”. Este grupo defendia a ruptura com a
estrutura que atrelava os sindicatos ao Estado por inviabilizar a mobilização consciente dos
trabalhadores. “Lula afirmava que “o sindicato ideal é aquele que surge espontaneamente, que
existe porque o trabalhador exige que ele exista”” (Mattos, 2003, p.63).
Como podemos observar na afirmação de Lula havia uma clara avaliação deste grupo
de sindicalistas de que o sindicalismo populista como considerado por Boito Jr. (2005) era
algo a ser superado. Como, deste ponto de vista, a organização de um partido operário e de
trabalhadores pela via do movimento sindical é incompatível com o populismo, o processo de
criação do PT e o chamado novo sindicalismo podem ser considerados como os principais
indicadores do declínio do populismo sindical no início dos anos 1980 (p.274).
Retomando o processo de constituição do sindicalismo “autêntico”, Boito Jr. (2005)
faz importantes considerações sobre suas características iniciais e passagem seguinte para o
formato que se consolidou como “novo sindicalismo”.
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(...) a liderança emergente do ABC surgiu falando em livre-negociação e defendendo a separação entre sindicalismo e luta política. Tratava-se de uma atitude de menosprezar a importância da política na solução dos problemas dos trabalhadores. Livre-negociação, apoliticismo e base social nos trabalhadores qualificados no setor mais moderno da indústria: parecia que o ABC caminhava, de fato, para um sindicalismo de tipo norte-americano (p.281).
Quando, entretanto, o sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo realiza sua grande
greve geral em 1979, a reação da ditadura militar reprime violentamente o movimento
grevista. Por outro lado, os movimentos populares e democráticos de todo o país se colocam
em apoio e a serviço da greve, cujo impacto determinou uma reviravolta no seu desfecho,
marcando-a historicamente. Esta experiência politizou a direção política daquela greve e
conseqüentemente a orientação futura do sindicalismo do ABC (idem).
Aquela conjuntura de crise da ditadura militar motivou, então, o ressurgimento da luta
sindical de massa que, por sua vez, aprofundaria ainda mais esta mesma crise cujo desfecho
daria início a um novo processo de redemocratização.
A partir de então o sindicalismo do ABC incorpora a luta contra a ditadura no discurso
e na prática, aproxima-se dos movimentos populares e lança a proposta de criação de um
partido dos trabalhadores e, posteriormente, de uma Central Única dos Trabalhadores.
Todo este processo, uma vez consolidado, caracterizou aquilo que ficou conhecido
como “novo sindicalismo”, ganhando amplos setores da classe trabalhadora. “Greves
nacionais (como a dos bancários em 1985, e diversas greves de professores e servidores
universitários ao longo da década) e greves de categorias “novas” na atividade sindical, como
os funcionários públicos, também marcaram essa fase” (Mattos, 2003, p.65).
Nem mesmo a campanha das diretas pode ser entendida sem a criação dessa nova força social no cenário político nacional. De novo, o comportamento do movimento sindical apresentou-se vinculado ao processo político do país e influenciou, de modo decisivo, o desdobramento dos acontecimentos políticos. A ação do movimento sindical foi um fator fundamental na crise e na superação da ditadura militar. A própria força política e eleitoral demonstrada pela candidatura Lula em 1989 é incompreensível se não levarmos em conta a ação do movimento sindical. (Boito Jr., 2005, p.283)
Boito Jr. (op. cit.) aponta, entretanto, limites dessa transformação, ressaltando que a
estrutura sindical corporativa de Estado, a decapitação da esquerda durante a ditadura e o
economicismo da liderança que surge em São Bernardo são alguns dos fatores que impediram
uma vez mais as classes populares de assumirem o controle do processo de mudança, e, por
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outro lado, permitiram que a ditadura fosse substituída por uma democracia burguesa restrita
que nada tocou no arcaísmo da estrutura econômica e social do Brasil (Idem).
Mattos reafirma o argumento de que a arraigada tradição de vinculação dos sindicatos
ao Estado e suas características corporativistas “desempenham com certeza, um papel
explicativo importante na análise dos rumos do sindicalismo brasileiro” (op. cit., p.72).
Com a aprovação da Constituição de 1988 e as eleições presidenciais de 1989,
consolidando a redemocratização, encerra-se, em certo sentido, a “era” do novo sindicalismo
brasileiro (op. cit, p.70).
4.4. A defensiva do sindicalismo nos anos 1990
Ao longo dos anos 1990, o sindicalismo brasileiro esteve na defensiva, basicamente
reagindo ao assédio do Estado neoliberal sobre antigos direitos. Este assédio iniciou-se com a
vitória de Fernando Collor de Melo na eleição presidencial de 1989 cujo governo deu início à
era neoliberal no Brasil.
Já no Governo Itamar Franco, após o impeachment de Fernando Collor de Melo, o
advento do Plano Real, o argumento da estabilização econômica e a prática de juros
altíssimos, promoveram a acumulação financeira e, ao mesmo tempo, o baixo crescimento,
recessão e desemprego.
Nesta conjuntura, importantes setores ativos do sindicalismo brasileiro dos anos 80 são
afetados. Os metalúrgicos do ABC, os bancários, o funcionalismo público e finalmente os
petroleiros que foram duramente reprimidos por Fernando Henrique na greve nacional de
1995. No plano parlamentar, os partidos de oposição estiveram isolados e os partidos
burgueses votaram a favor das reformas neoliberais.
Além da conjuntura nacional e internacional desfavorável para a luta dos
trabalhadores, o sindicalismo foi enfraquecido pela adesão da central Força Sindical às
propostas neoliberais e, ao mesmo tempo, pela nova linha sindical da própria Central Única
dos Trabalhadores que começou a ser esboçada na Plenária Nacional da CUT em agosto de
1990 e foi consolidada em seu IV Congresso, em setembro de 1991. Segundo esta nova
estratégia, a CUT abandonaria o chamado “sindicalismo defensivo” praticado nos anos 80 sob
o argumento de que era “meramente reativo” e, de acordo com Jair Meneguelli, então
presidente da central, esta deveria ser, a partir de então, propositiva e participativa.
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Segundo Boito Jr. (2005), a corrente majoritária da Cut, a Articulação Sindical, fez a
central adotar o chamado sindicalismo propositivo, que deprecia a ação sindical de massa e
nutre a ilusão de que é tecnicamente possível convencer o governo e os empresários da
necessidade de induzir mudanças na política econômica (p.286).
O sindicalismo propositivo multiplicou os fóruns tripartites (governo, empresários e sindicatos), mas não logrou, ao longo de toda a década de 1990, apresentar resultados palpáveis para os trabalhadores. A CUT acabou enredando-se numa ação contraditória e hesitante frente ao neoliberalismo”(p.287).
Boito Jr. (2005) identifica ainda neste processo uma mudança de concepção que
consideramos de fundamental importância como categoria de análise.
A concepção dos anos 80 centrava-se, fundamentalmente, na oposição entre a “classe trabalhadora” e o bloco formado pelo “governo” e “empresários”. Já os documentos da Cut, nos anos 90, passaram a se centrar numa suposta oposição entre a “sociedade civil” e o “governo”, e não entre capitalistas, cujos interesses estão representados no governo, e os trabalhadores (p.165).
Boito Jr. (op. cit.) também identifica na perspectiva propositiva da CUT e em especial
na concretização das câmaras setoriais, um corporativismo de novo tipo em relação ao antigo
corporativismo de Estado populista. Este último era estatista e pressupunha a tutela do Estado
sobre o movimento dos trabalhadores para protegê-lo dos “tubarões”. Já no
neocorporativismo societal e setorial das câmaras, os sindicatos imaginam controlar as
decisões do Estado para o “seu” setor. Aspira-se influenciar o Estado, e não a tutela do Estado
sobre o sindicalismo. (p.173).
Por fim a análise deste autor acerca deste processo iniciado nos anos 90 ajuda-nos a
pensar o momento político atual e sua relação com o movimento sindical.
Esse novo corporativismo, distinto do corporativismo de Estado populista, é, (...) uma estrutura de dominação e não uma estrutura de representação de interesses. Esta estrutura envolve, divide e despolitiza o movimento sindical. (...) ela representa, também, a legitimação da ideologia e da política neoliberal pelo movimento sindical combativo – porque introjeta nesse movimento pontos fundamentais da política neoliberal, que passa a ser aceita como algo inexorável, e porque desvia o movimento sindical, de maneira bastante adequada ao neoliberalismo, da luta por direitos sociais. (p.172).
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Do mesmo modo, Mattos (2003) também nos incita a analisar as questões do
sindicalismo atual refletindo sobre o seu passado. Neste sentido, sentimo-nos contemplados
em suas palavras: “entendemos que a identidade de classe dos trabalhadores é um processo
forjado em meio a um constante recurso às memórias de subordinação e de lutas”. Por isso, a
reflexão sobre a trajetória histórica dos trabalhadores e seus sindicatos no Brasil é
fundamental tanto para o nosso presente quanto para o nosso futuro.
5. As (contra) reformas neoliberais e a universidade pública: a Uerj em particular
O paradigma técnico-econômico tem a Educação como função estratégica – o mesmo
é válido para os meios de comunicação de massa - para a sua consolidação, considerando-a
um veículo privilegiado na transmissão de idéias e valores, os quais irão agir na construção de
um capital cultural comum a ser utilizado como regulação e controle social.
Entre 1993 e 1996, a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, convocada pela UNESCO, composta de especialistas e coordenada pelo francês Jacques Delors, produziu o Relatório Delors, no qual se fez um diagnóstico do “contexto planetário de interdependência e globalização”. Evidenciam-se o desemprego e a exclusão social, mesmo em países ricos. O Relatório faz recomendações de conciliação, consenso, cooperação, solidariedade para enfrentar as tensões da mundialização, a perda das referências e de raízes, as demandas de conhecimento científico-tecnológico, principalmente das tecnologias de informação. A educação seria o instrumento fundamental para desenvolver nos indivíduos a capacidade de responder a esses desafios. (Frigotto e Ciavatta, 2003, p.99)
A tese da utilização da Educação como veículo de transmissão do ideário neoliberal é
reforçada pela proposta de reforma educacional que tem como referências a lógica
empresarial de mercado e uma legitimação política e teórica que, ao impossibilitar a reflexão
sobre si mesma, justifica este ideário como o único possível.
Neste novo espaço hegemônico onde as alteridades, o “outro” é deslegitimizado, a
própria idéia de democracia é comprometida. Conceitos como igualdade, justiça social
aparecem como signos vazios utilizáveis e descartáveis, perdendo espaço para a “nova
nomenclatura” - qualidade, produtividade e eficiência - advinda do novo paradigma técnico-
econômico.
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Essas reformas vêm demarcadas por um sentido inverso às experiências do socialismo real e das políticas do Estado de bem-estar social do após a Segunda Guerra Mundial, lidas pelos intelectuais orgânicos do sistema capital como responsáveis por um desvio dos mecanismos naturais do mercado e, portanto, pela crise. Trata-se, então, de retomar os mecanismos de mercado aceitando e tendo como base a tese de Hayek (1987) de que as políticas sociais conduzem à escravidão e a liberdade do mercado à prosperidade. (Frigotto e Ciavatta, 2003, p.95)
A redefinição da cidadania, na qual o sujeito político se transforma em sujeito
econômico, em consumidor - onde a educação se apresenta como uma das “mercadorias” -,
promove uma transposição que transforma questões políticas e sociais em questões técnicas.
Os problemas advindos da política neoliberal, como a exclusão social e a distribuição desigual
da riqueza, são tratados através de um discurso de ineficiência e da má gerência
administrativa.
Na verdade, o que vemos é a disputa entre dois projetos de sociedade: a tentativa de
redefinição de um “novo” paradigma de reprodução de capital, agora “dourado” pelo também
novo discurso de “qualidade” e “eficiência” e o “antigo” discurso da defesa das prioridades
éticas que rompam com a lógica perversa da exclusão social e da mercantilização da
educação.
O documento assinado pelo Banco Mundial intitulado “O Ensino superior - as lições
derivadas da experiência” (1995) traça quatro orientações principais para a Educação no
Terceiro Mundo:
• fomento de mais tipos de instituições públicas e privadas;
• incentivo para que as instituições públicas diversifiquem suas fontes de financiamento,
como a participação dos estudantes nos gastos - leia-se cobrança de mensalidades;
• a redefinição da função do Estado;
• a adoção de políticas prioritárias que encampem a qualidade e a eqüidade.
Ou seja, para o neoliberalismo, o desenvolvimento do ensino superior se relaciona
com o desenvolvimento econômico, sendo importante fomentar a oferta do ensino privado por
ser este “mais sensível às necessidades cambiais do Estado”. O objetivo, portanto, da reforma
da educação superior, em função da qual se pode medir o “progresso” da mesma, é a sua
adaptabilidade ou não às demandas do mercado.
Explicitando que “as universidades educam os futuros “dirigentes” e saindo em defesa
do ensino básico para todos, o Banco Mundial nada mais faz que reforçar a exclusão social,
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ao incentivar a instrução superior das classes dominantes, já possuidoras de capital cultural, e
“instruir” a população para assumir o seu papel na nova organização da produção e do
trabalho, o qual exige um nível de escolaridade adequado.
Inspirada nesse ideário, a década de 1990 significou um grande aprofundamento do
modelo neoliberal, que tem como um de seus pilares a redução do Estado, forjando o seu
papel mínimo, descaracterizando o caráter público e universal das políticas sociais, entre as
quais a educação. Rodrigues descreve, em entrevista, algumas das principais conseqüências
desse modelo para as universidades.
O processo de privatização (direto ou indireto) foi acelerado. As instituições públicas, dentre elas as universidades, sofreram então um corte brutal no seu financiamento, no investimento em política de pessoal efetivo e uma ampliação das relações de trabalho precarizadas, através das diversas formas de contratação de mão-de-obra e conseqüentemente na inversão do sentido público das políticas sociais. (Rodrigues, 2006)
A cultura e a ideologia de que o consumo de serviços deveria ocorrer através do
mercado passou a ser a lógica disseminada na sociedade, com um sentido “naturalizado”. A
Universidade do Estado do Rio de Janeiro não ficou de fora. A desresponsabilização do
Estado quanto ao seu papel de principal (se não único) financiador das instituições foi
aprofundada pelo perfil dos governos a partir dos anos 1990 e 2000, cujos efeitos diretos se
fizeram sentir nas propostas de orçamento por eles encaminhadas e mesmo executadas.
A partir dos cortes de verbas e da burocratização dos processos administrativos na
relação com o governo, com sua constante intervenção buscando limitar, na prática, o
princípio de autonomia universitária, as sucessivas administrações da Uerj promoveram a
maior ampliação das fontes de recursos externos, isto é, por fora do financiamento público
estatal. O Núcleo Superior de Estudos Governamentais (Nuseg), os “Centros de Estudos”, a
Fundação Cardiológica Pedro Ernesto (Funcape), as “Incubadoras de Empresas”, a Fundação
Ford, as parcerias diversas, foram alguns dos principais caminhos encontrados pelas
sucessivas reitorias para supostamente compensar a ausência do financiamento do Estado,
convergindo para interesses de grupos particulares e privados, que se beneficiam com o
sucateamento da universidade. As remunerações paralelas e a “desburocratização” dos
mecanismos institucionais públicos serviram de justificativa para que a cultura privatista se
reproduzisse.
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Cláudio Costa salienta, em entrevista, uma das mais importantes tentativas de
consolidação da captação de recursos próprios frustrada pela ação unificada do movimento de
trabalhadores da Uerj, junto ao Consuni, contrário a este caminho.
A proposta de criação de um sistema que regulasse todas essas formas de “produzir conhecimento e prestar serviços”, o Sistema de Prestação de Serviços da Uerj (Siprese), foi uma das tentativas mais significativas da Reitoria sob a gestão de Nilcéa Freire. Significativa porque muitos mecanismos de captação de recursos se formaram e seria necessário organizá-los num único sistema. Esta tentativa foi duramente combativa pelo Sintuperj e finalmente frustrada a sua aprovação no Conselho Universitário (Consuni). (Costa, 2005)
Outro importante elemento a ser destacado para balanço dessas gestões, refere-se à
política de pessoal. Por um lado, a precarização das condições de trabalho, a desvalorização
do perfil do quadro funcional técnico-administrativo, com a falta do plano de carreiras, e o
aumento do adoecimento físico e mental entre servidores docentes e técnico-administrativos.
Relatórios da própria Divisão de Saúde do Trabalhador da Superintendência de Recursos
Humanos – Dessaúde/SRH) demonstram a ausência de uma política de recursos humanos
adequada ao perfil de uma universidade pública. Por outro lado, e em paralelo às condições já
citadas, o aumento das relações de trabalho precarizadas (contratos) deixou um número
considerável de trabalhadores sujeitos a condições de risco, com seus direitos básicos
vulneráveis, pois dependentes da vontade de seus “contratantes”, em última instância a
própria Uerj. Essa também é uma forma de se administrar, transferindo a responsabilidade
pública para o setor privado.
Como mais um importante elemento dessa análise, está o ataque dos governos ao
princípio da autonomia universitária, quando as próprias reitorias acatam as determinações do
governo de forma subserviente. Enquanto representantes da comunidade universitária, até
porque são eleitas por ela, as reitorias poderiam e deveriam defender política e
academicamente, até as últimas conseqüências, a autonomia universitária. Vanja Monteiro
reafirma, em entrevista, a importância da autonomia no papel social da universidade.
Não se pode ter autonomia para produzir conhecimento e cumprir as funções sociais da universidade se ela perde o caráter de instituição pública, garantido pelo financiamento do Estado. Colocar a sobrevivência da instituição nas mãos do mercado e das “parcerias” externas é abrir mão da autonomia. A ideologia privatizante é reforçada através deste tipo de postura. (Monteiro, 2006)
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Historicamente, o movimento na Uerj é unificado: trabalhadores (docentes e técnico-
administrativos) e estudantes, através de suas entidades representativas, têm na unificação de
forças uma estratégia central de suas lutas junto ao governo do Estado e junto às Reitorias. Os
indicativos de greve, por exemplo, são deliberados pelos respectivos segmentos apontando
sempre para fóruns mais ampliados – assembléia conjunta (de trabalhadores) e assembléia
comunitária (de trabalhadores e estudantes). Este encaminhamento amedronta sempre alguns,
mas é sempre muito valorizado pelos que reconhecem e lutam por espaços de deliberação
coletiva e democrática como instâncias de constituição dos sujeitos que tomam para si a
construção de sua própria história.
Neste quadro, a luta do movimento de trabalhadores e estudantes da Uerj contra esta
nova reaglutinação do capital, contra o pensamento único, suas estratégias e táticas, tem
buscado desmitificar o ideário neoliberal, resgatando valores e ações políticas como
instrumental teórico e prático que aponte para o enfrentamento da mercantilização da
universidade em defesa de seu caráter público, autônomo e democrático.
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Capítulo 2: ANALISANDO AS PRINCIPAIS “REFORMAS” DO ESTADO BRASILEIRO
A abordagem das Reformas Previdenciária, Sindical/Trabalhista e do Ensino Superior
(Universitária) interessa ao nosso trabalho pela vinculação de seus conteúdos aos direitos dos
trabalhadores brasileiros e pela luta sindical desenvolvida para defendê-los.
O movimento de trabalhadores da Uerj e sua organização no Sintuperj vem se
deparando com as estratégias e mecanismos diretos e indiretos contidos nessas reformas,
utilizados por governos e reitorias para legitimar e viabilizar a mercantilização da
universidade.
Neste sentido, este movimento identifica desde princípios neoliberais gerais, cujo
resultado verifica-se através dos cortes de orçamento e salários pelo Estado, até mecanismos
mais específicos, aplicados internamente, que se observam na privatização de mão-de-obra,
na captação de recursos externos e na aceitação da tutela estatal sobre a autonomia
universitária.
Portanto, considerando-se que essas reformas vêm imbuídas do objetivo de consolidar
os mecanismos de mercado (Frigotto e Ciavatta, 2003, p.95), nosso interesse em analisá-las
vincula-se à produção de referenciais que nos possibilitem analisar o movimento de
trabalhadores da Uerj, a partir do Sintuperj, no enfrentamento a esses mecanismos.
Ao travar no âmbito da administração da universidade e do governo estadual a luta
reivindicando reposição de perdas salariais/bolsas estudantis e orçamentárias da Uerj, o
Sintuperj tem avaliado tais perdas como conseqüências e até mesmo antecipação de alguns
pontos das reformas em nível estadual e nacional.
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Neste sentido, o movimento de trabalhadores da Uerj buscou sempre contrapor-se às
estratégias de reformas propostas em nível federal entendendo-as como parte de um mesmo
projeto de Estado a serviço do capitalismo.
Assim, alguns dos principais mecanismos/estratégias por meio dos quais foi possível
efetivar a (contra) reforma da previdência no governo Lula da Silva, tiveram início nos dois
governos anteriores de Fernando Henrique. De tal modo que é perfeitamente possível
identificar tais estratégias tanto nesta reforma, já efetivada, quanto nas outras previstas e já
encaminhadas.
Até aqui buscamos contextualizar o reordenamento do capitalismo nacional e
internacional buscando superar sua crise de acumulação e delinear alguns elementos teóricos
relacionados a este movimento. Também destacamos algumas graves conseqüências sociais,
fruto da redefinição do atual modelo político-econômico brasileiro, bem como as estratégias
do capital junto ao Estado em sentido estrito, para legitimar as ações capitalistas e tornar
possível a incorporação/naturalização da exclusão social, viabilizando dessa forma um projeto
hegemônico de sociedade, através da direção político-cultural do conjunto da existência
social.
A seguir, para explicitar as ações e estratégias mais importantes que o capital vem
empreendendo em nosso país, passamos a considerar um conjunto de reformas que
consta(ra)m da agenda do Estado brasileiro, já em sua terceira fase da contra-revolução
neoliberal (como caracteriza Lima, 2005). Abordaremos tais reformas no sentido de que sua
efetivação/implantação foi iniciada já na primeira fase do neoliberalismo brasileiro com os
Governos Fernando Collor de Melo/Itamar Franco e aprofundada na segunda fase, pelos
Governos de Fernando Henrique Cardoso. Ao longo deste processo, o Estado seguiu
construindo estratégias de legitimação social que justificassem tais reformas no sentido de
ampliar e consolidar a hegemonia do capitalismo e do neoliberalismo no Brasil.
Salientamos, entretanto, que a Reforma da Previdência foi um dos mais ousados
projetos políticos já consolidados neste país e sua análise merece, portanto, destaque, pois
pavimenta política e ideologicamente o caminho para as outras contra-reformas em pauta.
Espaços como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) cuja primeira
função foi buscar consenso para a Reforma da Previdência, transformou-se num dos espaços
mais importantes criados pelo Governo Lula da Silva para a concretização e legitimação das
reformas.
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Neste sentido, uma análise clássica da formação histórico-social brasileira feita por
Gonçalves (2003), destaca que “a política de conciliação, de transação, teve como principal
objetivo aplainar mais as divergências dos grupos dominantes que conceder benefícios ao
povo” (Rodrigues, 1965, 103). Gonçalves avalia que “as medidas de política econômica nos
primeiros meses do governo indicam que estamos entrando em mais um período de
conciliação e reforma”. A tentativa de firmar um novo contrato social entre o capital e o
trabalho, por meio de um Conselho Econômico de Desenvolvimento Social é ilustrativo dessa
iniciativa.
Assim, as reforma em pauta, as Reformas Sindical/Trabalhista e a Reforma do Ensino
Superior (Universitária) estão intrinsecamente relacionadas a espaços de interlocução e
interesses configurados na reforma da previdência.
Partindo das considerações feitas até aqui sobre o processo de reestruturação do
Estado brasileiro, adotaremos um duplo eixo de abordagem das reformas no sentido de
auxiliar o nosso enfoque sobre o cenário de lutas do movimento de trabalhadores da Uerj. O
primeiro eixo refere-se às questões econômicas vinculadas ao Estado e ao capital. O segundo
eixo busca analisar as estratégias de legitimação política e social do ideário neoliberal
referentes a essas reformas.
Ainda que, na atual conjuntura, a correlação de forças diante do Estado capitalista
tenda a não ser suficiente para impedir o avanço dos projetos burgueses, destacamos a
construção de discursos, estratégias e ações contra-hegemônicas promovidos por um campo
de luta contrário às reformas neoliberais. Dentre os setores que se contrapõem a esse modelo
encontram-se parte dos movimentos sociais, do campo sindical e de intelectuais do meio
acadêmico, especialmente das universidades públicas brasileiras.
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1. A Reforma da Previdência
1.1. Contextualizando a Reforma
A Reforma da Previdência Social, já realizada no primeiro Governo Lula é forte
candidata a uma segunda etapa. A cobrança insistente é do capital, através dos meios de
comunicação, representando vozes de empresários e de grande parte dos apoiadores da
candidatura Lula ao segundo governo “interessados” nesta reforma. O principal argumento é
de que o governo deve, ainda, um maior “ajuste” fiscal de suas contas e que a reforma de
2003 não foi suficiente para dar conta do suposto déficit, cunhado como “rombo da
previdência”. Esta idéia foi amplamente reforçada e disseminada a partir de uma “campanha”
do próprio governo, à época da discussão da Proposta de Emenda Constitucional n. 40 (PEC
n. 40) que culminou na dita reforma.
Na verdade, os argumentos do Governo Lula para realizar a reforma da previdência
são basicamente os mesmos do Governo Fernando Henrique Cardoso, ou seja, déficit na
Previdência, privilégios dos servidores e envelhecimento da população. O déficit, primeiro e
mais importante argumento utilizado, seria decorrente de privilégios e de uma relação
insuficiente entre a contribuição dos trabalhadores ativos e o “custo” dos benefícios relativos
aos trabalhadores inativos.
Para fazer valer estes argumentos diante da sociedade, o governo utilizou como
estratégia um discurso meramente economicista no qual estavam em jogo apenas as
“despesas” e as contribuições feitas pelos trabalhadores junto à Previdência e não mais o
conceito de previdência pública e o regime de repartição consagrado na Constituição Federal
cidadã de 1988. Estava em jogo, portanto, a natureza da previdência social brasileira.
Tal discurso, por diversas razões, desconsiderava outras receitas como aquelas
vinculadas à própria seguridade social, à sonegação bilionária dos empresários ou às dezenas
de milhões de trabalhadores ativos não contribuintes, jogados na informalidade pelo próprio
modelo político-econômico do governo. Por outro lado, enfatizava as “despesas” e previa um
suposto futuro caótico para a previdência através de argumentos como o crescimento das
taxas de envelhecimento e aposentadoria da população.
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As propostas do Governo Lula para a previdência, contidas na PEC n. 40, de 2003,
complementam e aprofundam a reforma iniciada pelo Governo Fernando Henrique Cardoso
que apresentou, em março de 1995, proposta que alterava a previdência social tanto dos
trabalhadores do setor privado quanto dos servidores, conhecida como Proposta de Emenda
Constitucional n. 33 (PEC n. 33). Esta proposta ficou em discussão na Câmara dos Deputados
até julho de 1996 e em razão da forte resistência a ela, inclusive por parte do Partido dos
Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (Cut), foi retirada, reformulada e
reapresentada em 1997.
Ao final de 1998, foi então aprovada a Emenda Constitucional n. 20, de 1998,
alterando a aposentadoria do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e do Regime
Próprio da Previdência Social (RPPS) (dos servidores públicos), o que inscreveu na
Constituição Federal elementos que ajudam a viabilizar a transferência do sistema público de
previdência para o setor privado.
Entretanto, até 2002 o Governo Fernando Henrique Cardoso não reuniu força política
para concretizar a reforma, inclusive pela oposição que o PT de Lula e o movimento sindical
faziam ao seu governo. Contraditoriamente, a reforma vem ocorrer no governo do próprio
Lula que teve, a em seu favor, o fracionamento e/ou conciliação do PT e do próprio
movimento sindical.
Entre os pontos principais da Emenda Constitucional n. 20, de 1998, estão o "caráter
contributivo" e o "equilíbrio financeiro e atuarial", o que significa tratar a previdência social
de forma isolada e não como parte da seguridade social como trata a Constituição Federal de
1998 (CF-88) que inclui ainda ações relativas à saúde e à assistência social, definindo para o
seu custeio fontes e contribuições, entre elas a Cofins, a CSLL e a CPMF. Portanto, o governo
passou a comparar apenas o valor das contribuições sobre as folhas de salários (do empregado
e do empregador) com o valor dos benefícios pagos pela previdência, encontrando aí um
"déficit". (Granemann e Saldanha, 2003)
A relação entre ativos contribuintes e inativos, necessária num regime histórico de
repartição simples e solidariedade entre gerações é de aproximadamente 3,5 contribuintes
para cada aposentado. Um dos argumentos do governo sobre a necessidade da reforma era
que, no Brasil, a proporção de contribuintes para a previdência era de dois ativos para cada
aposentado não contribuinte. Entretanto, se omitia que a proporção entre ativos e inativos era,
então, próximo de 4,7 para um. Ocorre que só 2 ativos contribuíam em função dos próprios
governos manterem milhões de trabalhadores na informalidade através de políticas de
precarização e flexibilização do trabalho. Naquele momento, estimava-se que
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aproximadamente 45 milhões de trabalhadores viviam a informalidade das relações de
trabalho, quase sem nenhuma proteção social. (Goulart, 2003)5
1.2. Reforçando a contraditória lógica do déficit (rombo da previdência)
Granemann e Saldanha (2003) destacam a lógica construída pelo governo que leva a
produzir o suposto déficit e sua imputação ao regime de previdência do funcionalismo.
Refutam tal construção apresentando argumentos oficiais que levam à conclusão de que a
seguridade social brasileira, no interior da qual se encontra a previdência, é superavitária e
desvelam o que seria a verdadeira intenção do governo, utilizar este superávit para pagar juros
da dívida pública. De fato, a soma das despesas com estes benefícios supera atualmente, em
valores crescentes a cada ano, a soma das receitas daquelas contribuições. Em 2002, no
RGPS, as contribuições totalizaram R$71,0 bilhões e as despesas R$ 88,0 bilhões, o que
resultaria num "déficit" igual a R$17,0 bilhões. Mas o problema mais grave, para o governo,
não é este, porque este "déficit" estaria sob controle, seria pequeno em relação ao PIB e teria a
justificativa social. O problema maior estaria nos RPPS dos servidores públicos, que, segundo
o governo, tiveram em 2002 despesas no valor de R$ 61,0 bilhões e uma contrapartida de
contribuições de apenas R$7,3 bilhões. Isto teria, portanto, gerado um "déficit" de R$ 53,7
bilhões, gigantesco e, o que é pior, socialmente injustificável, pois seria o resultado de
"privilégios" inaceitáveis dos servidores públicos. (op. cit, p.1)
Os critérios acima podem e devem, no entanto, ser interpretados de outra forma. A Constituição não trata a previdência social de forma isolada, mas sim como parte da seguridade social, que inclui ainda as ações relativas à saúde e à assistência social, definindo para o seu custeio um amplo conjunto de fontes, além das contribuições calculadas sobre a folha de salários. As principais são a COFINS, a CSLL e a CPMF. Em 2002, a arrecadação de todas as fontes superou, com folga, a soma das despesas da seguridade, não havendo, portanto, qualquer déficit. Ao contrário, há um superávit, que vem sendo
5 { HYPERLINK "http://www.sintrajufe.org.br/Previdencia/previ-5.htm" \l "1#1" }, Serge. Verdades e mentiras sobre Reforma da Previdência. jan, 2003. Disponível em http://www.sintrajufe.org.br/Previdencia/previdencia.html
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sistematicamente utilizado para pagar as despesas com juros da dívida pública. (p.1).
Concordando com Granemann e Saldanha, Marques e Mendes (2004) defendem o
modelo previsto na Constituição Federal de 1988 e ressaltam, nesta perspectiva, os valores
que levam ao superávit das contas da seguridade social brasileira em 2002, em contraposição
ao suposto “rombo” da previdência como foi amplamente divulgado. A leitura isolada das
contas do RGPS contraria o espírito dos constituintes de 1988. Ao introduzirem o conceito de
seguridade social e definirem seu campo de ação e as fontes de recursos, eles concretizaram o
tratamento holístico dos riscos sociais. É por isso que, na discussão sobre a existência ou não
de déficit, é preciso se considerar o conjunto da seguridade, compreendida pela previdência,
saúde e assistência, que registrou um superávit de R$ 32,96 bilhões em 2002. (p.10)
Para esse cálculo, são consideradas todas as receitas e despesas da previdência, da saúde e da assistência, (...). Se a esse superávit forem acrescidas as despesas com os servidores da União (civis e militares), ainda que o artigo 194 da Constituição não considere seus regimes integrantes da seguridade, e se for incluída a contribuição do Estado como empregador, o superávit diminui para R$ 15,08 bilhões, mas ainda assim continua expressivo. Esse resultado compõe o famigerado superávit primário de 4,25%, acordado com o FMI como sinalizador do bom andamento das finanças do Estado e como atestado de sua capacidade para honrar o serviço da dívida externa. (p.10).
Estes resultados foram construídos com base em argumentações e dados oficiais e
amplamente divulgados pelo movimento sindical que defendia a permanência do conceito de
previdência pública e regime de repartição e solidariedade. De tal modo que “o próprio
Ministro da Casa Civil, na época, José Dirceu, no seminário organizado pela Fundação Perseu
Abramo, nos dias 23 e 24 de maio de 2003, em São Paulo, reconheceu que a seguridade social
é superavitária”. Mesmo assim, permaneceu a desinformação de significativa parcela da
população, para o que contribuiu muito, a grande mídia, ao continuar a reproduzir o "discurso
oficial". (idem, p.10).
Numa visão real do processo de acumulação capitalista, Granemann e Saldanha (op.
cit.) destacam que é o trabalhador (o produto do seu trabalho) e não o seu salário
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(contribuição) que sustenta, não apenas a previdência, mas a ele próprio, ao empregador (e a
sua contribuição) e o seu lucro.
A real contribuição do trabalhador para a seguridade social não é, como parece à primeira vista, igual apenas ao valor descontado do seu salário bruto a título de "contribuição para o INSS". Na verdade, o seu salário, ou seja, o pagamento pelo uso da sua força de trabalho é apenas o chamado "salário líquido". O produto do seu trabalho, isto é, a sua contribuição para o produto social, destina-se a sustentar ele próprio (o seu salário "líquido"), a financiar a seguridade social (a "contribuição do empregado" e a "contribuição do empregador") e ainda a sustentar o empregador e a acumulação do seu capital (o lucro). É o assalariado, e não o salário, que sustenta a seguridade, uma diferença aparentemente sutil, mas fundamental. (p.1).
Se o argumento do défict relacionado aos privilégios do serviço público não se
sustentou técnica e eticamente, esta versão foi, entretanto, a que prevaleceu entre a população,
reforçando os objetivos do governo de legitimar e implantar a reforma, ainda que fosse com
argumentos contraditórios.
1.3. A influência da lógica dos organismos internacionais: ajuste, justiça social e crescimento.
Um aspecto fundamental desta reforma que já destacamos é que o Governo Lula segue
as recomendações e argumentos do seu antecessor, orientados, na verdade, pelo Banco
Mundial. Em 1994, esta instituição publicou o relatório "Prevenindo a crise do
envelhecimento – políticas para proteger os idosos e promover o crescimento". Este relatório
explicita claramente as diretrizes para a privatização da previdência no mundo inteiro baseado
na premissa de que mo atual modelo não haveria recursos para “proteger” os idosos no futuro.
Ao contrário desta tese, dados do IBGE (ano 2000) mostravam que o Brasil tinha um
percentual de idosos (acima de 65 anos) de apenas 5,85% da população enquanto em todos os
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países desenvolvidos o percentual de idosos é de cerca de 20%, o que significa que estávamos
relativamente longe da referida crise do envelhecimento.
Além dos dados irrefutáveis do IBGE pode-se ouvir do ex-presidente do Banco
Central, Gustavo Franco, defensor da Reforma da Previdência de Fernando Henrique Cardoso
e agora de Ricardo Berzoini, Ministro da Previdência, em 2003-3004: "Muitos países têm
problemas com a previdência, quase todos em razão do envelhecimento da população. Não é
bem o nosso caso, e não o será ainda por um bom tempo. Pouco mais de 8% de nossa
população é de idosos, enquanto essa proporção é superior a 20% no mundo desenvolvido.
Segundo o IBGE, vamos chegar a esse patamar, mantidas as atuais tendências demográficas,
apenas em 2050. Portanto, nosso problema previdenciário não tem propriamente a ver com
demografia, mas com sociologia ou, mais precisamente, com privilégio".6
Descartada a questão demográfica, o governo volta a reforçar o eficaz argumento do
privilégio como forma de promover justiça social e “crescimento”, outro importante
argumento utilizado pelo Banco Mundial. A hipótese do Banco é a mesma que usou o
Governo Fernando Henrique Cardoso para privatizar as estatais brasileiras: não há
crescimento sem o devido “ajuste” das contas públicas que em última análise culmina com a
idéia de privatização de serviços públicos.
Portanto, com a “economia” decorrente da reforma que eliminaria o déficit causado
pelo regime de previdência dos servidores públicos, o governo poderia “salvar” a própria
previdência - “proteger os idosos e promover o crescimento” - e melhorar os serviços
públicos, argumento, aliás, reeditado do Governo Fernando Henrique Cardoso quando das
privatizações realizadas por ele.
Por outro lado, parece não haver dúvidas de que a “mudança” de posição tanto do
presidente quanto do seu partido, antes oposição à reforma, configurou-se na condição
determinante para que o mesmo discurso parcial utilizado antes pudesse agora legitimar tal
reforma junto à população brasileira. O Governo Lula assume o antigo argumento da justiça
social para combater o suposto tratamento privilegiado dispensado pela previdência aos
servidores públicos.
O uso, não coincidente, deste argumento foi resgatado com o objetivo de angariar
apoio social para a reforma, reforçando na opinião pública o sentimento de que o serviço
público é sinônimo de “Marajás”, estratégia adotada pelo Governo Fernando Collor de Melo
que derrotou o próprio Lula na campanha eleitoral de 1989.
6 Revista Veja, 22 de janeiro de 2003
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(...) para conquistar esse apoio também não foi menos importante outra "associação" que o governo Lula fez questão de fazer: relacionar a precária situação do serviço público, principalmente na área social, com o funcionalismo público. Foi esse o sentido de seu discurso, ao dizer que, fazendo a reforma, mais seria alocado na prestação de serviços de saúde, por exemplo. Dessa forma, somou-se à idéia construída desde o governo Collor (de que o funcionário público é "marajá", ganhando sem trabalhar ou trabalhando pouco) aquela que o considera parte integrante de um segmento privilegiado da população e, por isso, em nome da justiça social, deveria ser imposta a reforma. (Marques e Mendes, 2004, p.10).
Curiosamente, a promoção dessa justiça social foi defendida a partir do nivelamento
por baixo e nada foi dito quanto a melhorar a situação dos que ganham pouco. E isso não por
acaso, pois significaria o enfrentamento dos determinantes da má-distribuição de renda
existente inclusive entre os trabalhadores, tanto no setor privado como no setor público.
Assim, tendo em vista esta primeira grande reforma efetivada pelo Estado brasileiro
no primeiro Governo Lula e a sua reeleição mantendo a agenda de reformas para o seu
segundo mandato (2007), achamos conveniente citar o argumento de Francisco de de Oliveira
utilizado em sua reflexão gramsciana sobre a hegemonia às avessas. Segundo ele, o voto em
Lula para o segundo mandato ampliaria aparentemente o espaço da esquerda. Entretanto, o
próprio autor, que declara que votou com essa expectativa, percebe que a ilusão quanto ao
peso da esquerda se desfez com as primeiras declarações do presidente reeleito, que
reendossou a política econômica, manteve nos cargos algumas figuras emblemáticas (caso de
Henrique Meirelles na presidência do Banco Central) e defendeu a "Era Palocci". No mesmo
movimento, o Presidente Lula aventou nomes para compor o novo ministério que estavam
entre os mais reacionários do meio empresarial, como Jorge Gerdau Johannpeter, proprietário
do maior conjunto de siderúrgicas do Brasil.7
A perspectiva para o futuro requer uma reflexão "gramsciana". Talvez estejamos assistindo à construção de uma "hegemonia às avessas" típica da era da globalização. A África do Sul, provavelmente, anunciou essa "hegemonia às avessas": enquanto as classes dominadas tomam a "direção moral" da sociedade, a dominação burguesa se faz mais descarada. (idem).
7 OLIVEIRA, Francisco de. “Hegemonia às avessas”. In: Revista Piauí, nº 4, de janeiro de 2007
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1.4. Os principais pontos da reforma – regime próprio dos servidores públicos: abordagem
dos meios de comunicação
Como forma de explicitar as principais mudanças propostas/efetivadas na reforma da
previdência, privilegiamos a ótica dos meios de comunicação, inegavelmente um importante
instrumento de construção de hegemonia na sociedade brasileira. Neste sentido,
disponibilizamos um quadro veiculado pela Folha de São Paulo que descreve em três colunas
os principais pontos em questão (todos relativos ao regime próprio dos servidores público):
“COMO É HOJE” (os direitos constitucionais válidos antes da reforma), “A PROPOSTA
ORIGINAL” (proposta de emenda constitucional do governo Lula para alterar tais direitos) e
“O NOVO ACORDO” (resultado de um “acordo” estabelecido a partir das discussões
promovidas pelo governo com o Congresso, junto a governadores e nos fóruns criados para
este fim, em especial o CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social), como
mostra o Quadro 1.
Salientamos que não é por acaso que todos os pontos da reforma envolveram aspectos
econômicos, de acordo com uma das mais importantes funções do Estado brasileiro na atual
formação social capitalista: aposentadoria integral, idade mínima, paridade com os ativos,
pensões e contribuições dos inativos.
Ressaltamos que a presença da coluna referente ao “novo acordo” denota tanto o
movimento do governo em busca de apoio/consenso junto aos setores sociais, a posição de
parte das direções do movimento social/sindical que aceita discutir, nas bases do governo,
aspectos da reforma, e fundamentalmente a pressão dos diversos setores sociais
essencialmente contrários a ela.
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Quadro 1. Alterações na Reforma da Previdência
{ INCLUDEPICTURE "http://www.adur-rj.org.br/5com/previdencia/quadro_ref_previd.gif" \* MERGEFORMATINET }
Fonte: Folha de São Paulo, 2003.
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Como forma de exemplificar o movimento que resulta dos embates entre as forças
presentes na disputa por esta reforma, apresentamos duas notícias relativas à aposentadoria
integral dos servidores veiculadas pela imprensa.
Após diversas oscilações, recuos e falta de definições na reforma da Previdência, na última semana, o governo acabou apresentando aos cinco governadores em reunião ontem de três horas e meia no Planalto- uma proposta que mantém a integralidade das aposentadorias para os atuais servidores públicos desde que respeitadas quatro condições. No encontro, não houve definição sobre outro item da proposta original do Executivo, também defendida pelos governadores: o fim da paridade de reajustes entre salários da ativa e valor da aposentadoria. Para os futuros servidores, deverá ser mantido o projeto original do governo: fim da integralidade e da paridade.8 O governo acatou a sugestão dos governadores e descartou, ontem mesmo, manter a aposentadoria integral com paridade no reajuste para os novos servidores públicos. Mesmo assim, os cinco governadores que representavam cada uma das regiões do País ficaram de dizer hoje se concordam ou não com as propostas de mudanças apresentadas pelo ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, ao projeto de emenda constitucional enviada ao Congresso.9
Ressaltamos que a notícia trata como “oscilações, recuos e falta de definições” as
reações do governo frente a possibilidade de manter-se a aposentadoria integral para os
servidores (seus antigos aliados políticos), como efeito claro da resistência do movimento
contrário à reforma. Por outro lado, trata como “sugestão” acatada, às exigências de alguns
governadores (antigos inimigos políticos) favoráveis a ela. Neste sentido, a imprensa traduz, a
nosso ver fielmente, o movimento estratégico fundamental, realizado por este governo rumo
aos seus objetivos de dar continuidade às políticas neoliberais em curso.
As referidas “oscilações, recuos e falta de definições” dizem respeito aos supostos
espaços de “diálogo” estabelecidos pelo governo com forças sociais e a conseguinte busca por
legitimação e regulação, neste caso, da instabilidade representada nas reivindicações de
antigos aliados da sociedade civil. Por outro lado, acatar a “sugestão” dos governadores
significa ao mesmo tempo tratar as questões de ambos os grupos no mesmo espaço comum de
diálogo, mas também a opção pela segurança das parcerias institucionais, ou seja, a
8 “{ HYPERLINK "http://www.unicamp.br/unicamp/canal_aberto/clipping/julho2003/clipping030716_folha.html" }”. Jornal Folha de São Paulo, 16 de julho de 2003 9 “{ HYPERLINK "http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2003/07/16/pol022.html" \t "_blank" }”. Jornal O Estado São Paulo, 16 de julho de 2003
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governabilidade através do consenso e/ou da concertação entre os setores em princípio
divergentes.
Genro (2004) declara a governabilidade através de um “novo bloco dirigente” ou “um
“novo bloco social e político” com capacidade dirigente”.10 Importante registrar que no
mesmo artigo, reconhece que a base das críticas feitas ao Governo pela esquerda é justa e tem
precedentes em nosso país. Segundo ele,
“É a preocupação de que mais uma vez, mesmo com o PT no governo, os governantes sejam cooptados para um processo conciliatório, agora de “novo tipo”. Um processo novo, “perfumado” que concilie os “de cima” para resolver a questão do crescimento, porém sem distribuição de renda e sem democratização real do Estado”.
Neste sentido, Genro (op. cit.) esclarece a posição do Governo Lula e o principal
motivo que levou majoritariamente o PT e boa parte do movimento social/sindical a não
utilizarem todas as suas forças para impedirem a Reforma: “o governo Lula não é um governo
de esquerda no sentido clássico. É um governo que tem a hegemonia de um partido de
esquerda, num acordo político que tem a segurança jurídica como elemento democrático
vertebral da governabilidade.”(Genro, op. cit.).
Tarso Genro foi Secretário-Executivo do CDES - presidido pelo Presidente da
República – desde a sua formação em fevereiro de 2003 até janeiro de 2004, substituído por
Jaques Wagner até 31 de março de 2006. A partir de abril de 2006, Tarso Genro assumiu a
chefia da Secretaria de Relações Institucionais, ocupando novamente a Secretaria-Executiva
do CDES. Atualmente é Ministro da Justiça, no segundo Governo Lula.
1.5. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES)
O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social é um conselho do governo que
se transformou numa das principais estratégias de disputa e legitimação da reforma da
previdência. Portanto, procuramos discutir e esclarecer em que bases o governo Lula constitui
este espaço de “consenso” onde, para além do governo, seriam realizados os necessários
“debates” com a sociedade civil sobre as reformas.
10 Genro, Tarso. “O governo Lula e a conciliação das elites”, Jornal Folha de São Paulo, 2004.
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A instalação deste Conselho foi uma missão confiada por V.Exa. a esta Secretaria, para que a Presidência da República, de forma organizada, escutasse a sociedade, na formulação dos projetos de reforma que são substanciais para o futuro da Nação. (...) Este Conselho, no nosso País cresce de importância, porque traz para o Governo, (...) a possibilidade de buscar a concertação política (...). (...) a partir da pluralidade, do conflito regulado que tem como objetivo o consenso; a partir do reconhecimento da legitimidade de todos os interlocutores, este Conselho pode contribuir para a formatação de um novo projeto nacional.11
A partir de elementos centrais presentes nesta descrição feita pelo próprio governo,
vamos tecer algumas considerações que buscam caracterizar contraditoriamente a formação e
as ações deste Conselho cujos integrantes são designados pelo Presidente da República
conforme quadro abaixo.
Quadro 212
Em relação a sua composição, o seu próprio regimento interno observa o critério de
“ilibada conduta e reconhecida liderança e representatividade” para a escolha de seus
representantes. Podemos constatar a falta de seriedade e coerência entre o que está escrito e a
realidade, na medida em que empresas de alguns dos mais importantes (representativos)
desses conselheiros eram devedoras do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) ao
mesmo tempo em que discutiram e influenciaram os rumos da reforma da previdência.
11 Genro. Tarso. “Discurso de posse do CDES”, Fevereiro de 2003 12 Albuquerque, Esther Bemerguy de. Secretária do CDES. Trabalho apresentado no “XI Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública”, Ciudad de Guatemala, 7 - 10 Nov. 2006.
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Em matéria da revista Adusp (junho de 2003), mas também em diversos outros jornais
sindicais Brasil afora, podemos encontrar alguns desses nomes (incluindo o de um Ministro
de Estado e o do Vice-Presidente) e empresas que, para além de suas dívidas com a
previdência, lideram e influenciam importantes setores da economia nacional como o
bancário e o empresarial, destacando-se no critério de representatividade (do mercado)
expresso no regimento do CDES. Segundo a mesma revista, esses nomes foram divulgados
pelo Ministério da Previdência Social, em 14 de maio, numa lista dos devedores da Dívida
Ativa do INSS.
De quem são os rostos por trás das empresas devedoras do INSS? A Sadia, cuja dívida atingiu a soma de R$ 22,3 milhões, era presidida até dezembro de 2002 por Luiz Fernando Furlan, atual ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Também alguns membros do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), fórum usado pelo governo para subsidiar a preparação da PEC 40, presidem empresas que aparecem no listão de devedores. É o caso de Roger Agnelli, presidente da Vale do Rio Doce (dívida de R$ 269,3 milhões), Roberto Egydio Setubal, do grupo Itaú (R$ 83 milhões), Pedro Jereissati, presidente do grupo Telemar (R$ 58 milhões), Miguel Jorge Filho, vice-presidente do Santander (R$ 26 milhões), Alain Belda, presidente da Alcoa Alumínio (R$ 10 milhões), Fábio Colletti Barbosa, presidente do ABN-Amro Real S.A. (R$ 9 milhões), Daniel Feffer, presidente da Companhia Suzano de Papel e Celulose (R$ 8,5 milhões), Ivo Rosset, presidente da Valisère (R$ 640 mil), Eugênio Staub, presidente da Gradiente (R$ 638 mil), Jorge Gerdau, presidente do grupo Gerdau (R$ 305 mil) — além de Fernando Xavier Ferreira, presidente da Telefônica, e Márcio Artur Cypriano, presidente do Bradesco. Três empresas do grupo Coteminas, do vice-presidente José Alencar, integram a lista de devedores do INSS. Juntas, a Companhia de Tecidos Norte de Minas, a Wembley Sociedade Anônima e a Embratex (Empresa Brasileira de Fiação e Tecidos) devem R$ 251,6 mil.13 14 15
Ainda segundo a matéria, esta lista perde importância diante de outras ações do
governo que visam isentar, inclusive criminalmente, empresas e empresários sonegadores. Por
outro lado, avaliamos que este cenário talvez indique mais claramente as condições mais
favoráveis ao poder econômico-financeiro deste país na referida concertação promovida pelo
Governo Lula.
13 Revista Adusp, junho de 2003 14 A esmagadora maioria desses representantes permaneceram até o final do primeiro mandato do governo Lula, segundo dados de Esther Bemerguy de Albuquerque, Secretária do CDES, em trabalho apresentado no “XI Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública”, Ciudad de Guatemala, 7 - 10 Novembro de 2006. 15 Dados disponíveis para consulta em disponível para consulta em { HYPERLINK "http://www.inss.gov.br" }
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Instituído pela MP nº 107, de 2003, o Refis 2 permite às empresas renegociarem sua dívida com a Receita Federal e o INSS em até 180 parcelas (15 anos) e abaterem 50% da multa resultante do atraso nos pagamentos à União, sem necessidade de pagamento de entrada. Além disso, o Refis 2 prevê suspensão, no ato de adesão, dos processos judiciais e ações penais contra empresas que descontaram a contribuição previdenciária dos trabalhadores, mas não a repassaram ao INSS. Esse incrível dispositivo vem sendo classificado como “anistia criminal” e sofre fortes críticas de procuradores da República envolvidos no combate à sonegação.16
Se por um lado a criação e implantação do CDES foram alardeadas como instância
representativa de influência e debate das principais questões nacionais entre o governo e
sociedade civil, Leher (2003) apresenta fortes argumentos de que tal conselho não cumpre de
fato este papel, questionando tal representatividade, bem como a pretendida interlocução para
a pactuação de um projeto de país.
Trata-se de um Conselho livremente escolhido por Lula, formado principalmente por empresários que apoiaram a sua candidatura, muitos deles sonegadores da previdência, por sindicalistas individualmente convidados, por representantes da sociedade civil (Terceiro Setor e ONGs), entre os quais alguns que gravitam em torno de entidades empresariais, e por membros do governo. Os encaminhamentos efetivos do governo sugerem que a estratégia não prevê um lugar de destaque ao referido Conselho. A rigor, não há construção de pacto no país, pois o lócus da política real do Executivo é outro. De fato, enquanto os conselheiros discutiam a reforma da previdência, o Ministério da Fazenda enviou documento ao FMI com “sua” proposta de reforma da previdência, prevendo a aprovação de medidas que, a rigor, nem o parlamento discutira. A seguir, em reunião com governadores de todo o país, Lula assinou um documento com detalhes da reforma, incorporando medidas já rejeitadas pelo parlamento durante o mandato de FHC, como a contribuição previdenciária dos aposentados. O Conselho sequer foi escutado sobre essas medidas. (p.90)17
Portanto, as graves questões apresentadas nos levam a concluir que o CDES foi criado
como forte instrumento de conciliação e legitimação social e política para a aprovação da
reforma da previdência pelo governo Lula. Exemplo disso são as palavras de um parlamentar
do PT, posteriormente envolvido no escândalo do “Mensalão”, justificando a reforma: “A
16 “Anistia no novo Refis suspende até ação criminal já julgada”, Jornal Valor Econômico, 21 de maio de 2003. 17 Revista Observatório Social da América Latina OSAL, Ano IV. Nº 10, abril de 2003
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PEC é uma proposta conjunta de prefeitos, de governadores e da sociedade, expressa no
CDES”.18.
1.6. Os fundos de pensão como culminância de uma estratégia vitoriosa de legitimação da(s)
reforma(s).
Voltando aos principais pontos da reforma, podemos observar que eles envolveram
basicamente os trabalhadores do serviço público. No calor da campanha de caça aos marajás,
segunda versão, o governo embutiu importantes perdas para os trabalhadores, mas também
um bilionário desvio de contribuições públicas para o setor privado , seguindo a prescrição do
“crescimento”.
De acordo com a Emenda Constitucional n. 41, de 2003, (a reforma propriamente
dita), oriunda da Proposta de Emenda Constitucional n. 40, os atuais aposentados e
pensionistas, bem como aqueles servidores que já completaram ou vierem a preencher todos
os requisitos para requerer aposentadoria proporcional ou integral, pagarão contribuição
previdenciária na parcela do provento que exceda ao teto do INSS, atualmente (2006) fixado
em R$ 2.668,15.
Mas se o que vimos com as mudanças na Previdência foi o acréscimo de alguns
bilhões de reais nas contas do governo, superávits primários record, acima do estipulado pelo
FMI, e trabalhadores em piores condições do que antes. Chama a atenção a abertura que a
reforma possibilitou para o mercado de previdência privada neste país.
Como exemplo do estamos falando, destacamos que, na discussão da aposentadoria
integral do servidor público, o Governo conseguiu aprovar um teto de R$ 2.400,00 utilizando
um argumento/truque dos mais primários, mas de grande efeito no senso comum trabalhado
pelos meios de comunicação, não por ignorância destes. Marques e Mendes nos ajudam a
entender tal “formulação”, destacando a contradição de valores apresentados pelo governo,
mas também o seu recuo em relação aos servidores públicos militares.
18
Jornal Outras Notícias, quinta-feira, 5 de junho de 2003. Disponível em { HYPERLINK "http://www.fenajufe.org.br/port/noticias/category_news.asp?IDCategory=17&page=7" }.
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O governo Lula, para indicar a enorme injustiça social consubstanciada no regime previdenciário dos servidores civis, comparou, na Exposição de Motivos que encaminhou a proposta de reforma ao Congresso Nacional, a média dos benefícios do RGPS, de R$ 362,00, ao benefício de R$ 50 mil de um servidor. (...) Afora que não se compara uma média a um valor absoluto, fato conhecido por qualquer pessoa um pouco familiarizada com os "mistérios da distribuição". Para o cálculo da média do RGPS foram indevidamente incluídos os benefícios dos rurais (de um salário mínimo) e as aposentadorias por idade, todos de caráter assistencial, com valores baixos, que "puxam" a média para baixo. Segundo os dados do próprio MPAS, a média de aposentadoria por tempo de contribuição é de R$ 812,30, bastante acima dos R$ 362,00 utilizados para respaldar a retórica. Já a média da aposentadoria da maioria dos servidores federais fica em torno de R$ 1.038,00, conforme divulgado pela Cut, no mesmo seminário mencionado acima. Mas foi com base nessa comparação espúria que se defendeu a adoção do teto de R$ 2.400,00 tanto para os servidores como para os trabalhadores do RGPS e, por conseqüência, a extinção da integralidade para os servidores e o início da unificação dos regimes. Vale lembrar que cuidados foram tomados: sabendo que os militares seriam fonte de grande resistência a qualquer proposta, o governo não os incluiu, tal como foi feito no Chile de Pinochet. (Marques e Mendes, 2004, p.10).
Entretanto, outra importante questão norteava o interesse do governo e de seus aliados
em reduzir ao máximo o referido teto: a maior ou menor rentabilidade da futura previdência
complementar privada, também prevista na reforma, o que, de acordo com as orientações dos
organismos internacionais constitui-se em importante fator de “crescimento”.
A Previdência Complementar funciona por meio de duas modalidades: a Aberta (os planos oferecidos pelos Bancos e pelas Seguradoras) e a Fechada (planos de uma categoria profissional, de uma empresa ou conjunto de empresas, chamado Fundo de Pensão). O espaço para o crescimento da previdência complementar se faz pelo rebaixamento do teto dos benefícios da previdência pública. Quanto menor for este teto, e menores os benefícios para a população, maior será o número de trabalhadores que terá de recorrer aos planos de previdência privada, na arriscada tentativa de complementação de suas aposentadorias. (Granemann e Saldanha, 2005, p. 1)
A este respeito, muitos atores do movimento político-partidário, acadêmico, social e
sindical brasileiro alertaram para o fato de que se tratava de uma mudança que representaria
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um desvio na ordem de centenas de bilhões de reais para o mercado privado de previdência,
por isso mesmo, um dos setores mais interessados na reforma.
Neste sentido, Francisco de Oliveira afirma:
Para ser breve, é preciso dizer a que vem essa reforma da Previdência: se trata de negócios, companheiros! E deixemos de mistificações ideológicas, trata-se de negócios. A Previdência vale mais do que todas as privatizações realizadas pelo governo Fernando Henrique. É disso que se trata. E trata-se de uma ironia mais amarga que tenha sido um governo do Partido dos Trabalhadores aquele que vai jogar o destino dos trabalhadores públicos nas mãos do capital financeiro, sujeito à volatilidade e à especulação. (Oliveira, 2003).
Ainda neste sentido, Granemann e Saldanha salientam que
A privatização da Previdência reveste-se de conteúdo e interesse diferenciados das demais privatizações. Os recursos previdenciários mobilizados pelos fundos de pensão se formam com surpreendente rapidez e são contínua e crescentemente renovados. Com a privatização da Previdência estima-se que o mercado financeiro se apropriará de cerca de R$ 670 bilhões até 2.010 (op. cit.).
Ao envolver interesses econômicos vultuosos, vinculados aos fundos de pensão, que
ultrapassavam em muito o montante de todas as privatizações de FHC, a reforma/privatização
da previdência, feita de acordo com interesses de agências internacionais, contaria com todos
os esforços do governo que, como vimos, chegou a adotar medidas autoritárias contra a sua
própria base partidária/parlamentar, medidas estas que marcaram a história do PT e de Lula.
Outro projeto polêmico, a reforma da previdência para a criação de fundos de pensão, apesar de ainda estar em debate no parlamento, estará aprovado até meados de 2003, conforme documento do governo brasileiro ao FMI (28/02/03). Em virtude da resistência da maioria dos deputados do PT, a Executiva Nacional fechou questão na
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votação da matéria e abriu processo de expulsão de uma senadora e de dois deputados. 19
Outro dado fundamental omitido pelo governo em sua argumentação a favor da
previdência complementar privada ou dos fundos de pensões é a sua volatilidade ou
insegurança devido à vinculação ao mercado financeiro.
Granemann e Saldanha (op. cit. ) destacam que
No Chile mais de 70% de tais Fundos faliram. Nos EUA e Inglaterra muitos deles estão em quebra e empresas como a Eron nos dão forte exemplo: a previdência dos trabalhadores não deve estar presa aos rodopios das bolsas de valores. Só nos EUA 470 mil trabalhadores já perderam suas aposentadorias
Para finalizar esta reflexão sobre a reforma da previdência trazemos uma questão
fundamental para classe trabalhadora deste país. Trata-se, a nosso ver, de uma das mais
importantes estratégias capitalistas de legitimação das reformas brasileiras no sentido de que
“inclui” os trabalhadores, através da organização sindical, como parceiros nesta empreitada,
ao possibilitar a participação dos sindicatos na instituição de fundos de pensões.
A este respeito, Granemann e Saldanha chamam a atenção para a contradição de classe
envolvida na participação de dirigentes do movimento sindical na gestão de fundos de pensão:
A possibilidade de os sindicatos instituírem fundos de pensão, já legalmente aprovada no Brasil, indica o enraizamento de idéias capitalistas no seio das organizações dos trabalhadores e entre seus dirigentes. (...) Sua rentabilidade está ligada à valorização das ações e, portanto, à maior lucratividade das empresas. Por isso, os Fundos que ajudaram nas privatizações e tornaram-se sócios de empresas como a Embraer, Usiminas, Vale do Rio Doce e outras apoiaram o arrocho salarial e as demissões ali ocorridas, como fez a Previ na Embraer. (Granemann e Saldanha, 2005).
Para além das contradições apontadas por Granemann e Saldanha, destacaríamos que
ao se vincularem aos fundos de pensão, os sindicatos passam a ser parceiros do mercado
acionário ou mercado financeiro que operam de forma perversa na lógica da lucratividade das
empresas, mas também na lógica da especulação financeira, responsável por ditar os rumos da
economia do país e do mundo.
19 Jornal Folha de São Paulo Online, 12 de maio de 2003
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Os sindicatos passam a ser parceiros, alimentam a lógica da produção das taxas de
juros mais altas do planeta, praticadas e legitimadas pelo governo brasileiro em função desta
especulação. O que tem levado o nosso país a uma política econômica recessiva que, por sua
vez, legitima as medidas de “ajustes” econômicos praticados pelas empresas, ao demitirem
e/ou precarizarem as condições de trabalho, mas também pelo Estado brasileiro ao realizar
reformas como a da previdência.
Assim, além de participarem diretamente do massacre promovido sobre os
trabalhadores das empresas da qual participam através de fundos de pensão, as organizações
sindicais passam a legitimar e cooperar, em nível nacional e internacional, com esta lógica, e,
ao invés de cumprirem o seu papel de defesa da classe trabalhadora, passam a oprimi-la numa
clara alusão ao fenômeno da hegemonia às avessas, a que já nos referimos anteriormente.
É esta lógica de um conjunto muito bem articulado de legitimações que culminam com
a implantação de políticas capitalistas contra a classe trabalhadora, através de seus próprios
representantes sindicais, que justifica a importância de uma nova pedagogia da hegemonia,
orientada internacionalmente, exercida pelo Estado em sentido estrito, e que se espraia sobre
toda a sociedade civil.
Neste sentido, ganha relevância a reforma sindical do atual governo, na medida em
que, com o apoio da Cut, reorienta a organização dos sindicatos (e de suas centrais sindicais),
importante instrumento de luta da classe trabalhadora contra a exploração do capital, de modo
a arrefecer qualquer tipo de resistência às mudanças previstas para as leis trabalhistas
(Reforma Trabalhista).
No mesmo sentido, a Reforma Sindical se encontra com a Reforma da Educação
Superior (Reforma Universitária) na medida em que também é importante desmontar a
organização sindical desenvolvida no interior das universidades públicas brasileiras, um dos
grandes impeditivos à sua crescente privatização, o que vem sendo tentado pelos sucessivos
governos neoliberais tanto em nível nacional quanto nos níveis estaduais.
É neste contexto que a reforma da educação superior e a reforma sindical se cruzam: ambas fazem parte do reordenamento das relações entre capital e trabalho, configurando novos campos de exploração lucrativa para o primeiro e buscam submeter os trabalhadores à ordem do capital, com a conivência das aristocracias sindicais e partidárias, atualmente representadas pela direção da CUT e pela corrente majoritária do PT. (Lima, 2005).
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2. A Reforma da Educação Superior (Universitária)
A Emenda Constitucional n. 41, de 2004, relativa à previdência dos servidores
públicos, consolidou o desmonte da previdência pública do serviço público e, pela instituição
dos fundos de pensão, viabilizou o início das reformas de segunda geração conforme
diretrizes do Banco Mundial e os desejos do capital financeiro nacional e internacional. Neste
cenário, a Reforma Universitária é parte ativa e componente da segunda geração de reformas
estruturais.
Como fizemos em relação à Reforma da Previdência, descreveremos a reforma
universitária a partir das propostas em pauta lançada pelo governo, sua discussão tanto nos
espaços institucionais quanto pela imprensa, e uma análise baseada em publicações e autores
que problematizam esta reforma. Neste sentido, apoiaremos nossa reflexão especialmente na
pesquisa realizada por Kátia Lima, nos cadernos do Andes-Sindicato Nacional, além de
trabalhos elaborados especificamente sobre esta temática que expressem o movimento
estratégico do governo Lula para implementar esta reforma, buscando evitar, ou pelo menos
arrefecer a resistência oferecida, em especial, pelo movimento sindical das universidades.
Para tanto, reafirmamos quatro pontos destacados por Lima (2005), que fundamentam
preliminarmente a compreensão da construção desta reforma.
Em primeiro lugar, a reformulação da educação superior está inserida em um processo
mais amplo de reordenamento do Estado capitalista, considerado como uma das principais
estratégias da burguesia internacional para o enfrentamento da crise estrutural do capital. O
segundo ponto fundamental é que o anteprojeto não é o marco inicial da reformulação da
educação superior, na medida em que se caracteriza como uma grande síntese de todas as leis,
decretos e medidas provisórias já encaminhadas, como o Programa Universidade para todos
(ProUni), instituído através da Medida Provisória n. 213 de 10 de setembro de 2004, o
Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Sinaes) que já é lei (Lei n. 10.861, de 14
de abril de 2004); o Decreto n. 5.205, de 14 de setembro de 2004, que regulamenta as
parcerias entre as Universidades Federais e as Fundações de Apoio, viabilizando a captação
de recursos privados para financiar atividades de ensino, pesquisa e extensão; a lei de
inovação tecnológica (Lei n. 10.973, de 02 de dezembro de 2004); o Projeto de Lei n. 3627,
de 2004, que institui o sistema especial de reserva de vagas; os projetos de lei e decretos que
tratam da reformulação da educação profissional e tecnológica; a Medida Provisória n. 208,
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de 20 de agosto de 2004, que institui a GED, mantendo a lógica produtivista e meritocrática
de avaliação e remuneração do trabalho docente e o Projeto de Parceria Público-Privada.
(PPP) Em terceiro lugar Lima destaca o projeto político-econômico mais amplo do governo
Lula. A análise desta reformulação deve considerar os valores alocados pelo governo para o
pagamento das dívidas externa e interna e o orçamento da união para a educação e,
especialmente, para a educação superior durante os dois primeiros anos de governo. Por
último, a autora destaca a submissão às políticas dos organismos internacionais, ação e opção
política conscientes das burguesias de cada formação econômico-social dependente (Lima,
2005).
Chamamos a atenção para o segundo ponto analisado por Lima, pois entendemos que
se trata de importante estratégia que inova, em relação à Reforma da Previdência, a forma
como o governo encaminhou Reforma do Ensino Superior: ou seja, a consolidação legal
através de Lei não foi efetivada em bloco, mas vem sendo paulatinamente concretizada
através da aprovação de outras leis, decretos e medidas provisórias encaminhadas
concomitantemente à apresentação da Reforma. Portanto, a pressão dos movimentos
organizados contra a Reforma da Previdência, embora não tenha sido suficiente para impedi-
la, certamente contribuiu para a avaliação no governo de que não deveria repetir aquele
enfrentamento. Da mesma forma vem agindo na Reforma Sindical/Trabalhista, até porque
esta possui uma maior abrangência na retirada de direitos dos trabalhadores brasileiros.
Assim sendo, o impacto das conseqüências desta Reforma vem sendo diluído com o
“fatiamento” das medidas que a consolidam, enquanto o governo age mais comodamente no
sentido de negociar com importantes setores representantes do mercado privado da educação
superior e de movimentos políticos e sociais que aceitam negociar entre si esta reforma.
Não fosse a atenção e a permanente mobilização, sobretudo de alguns setores sindicais
e universitários, em esclarecer, explicitando publicamente as ações e intenções do governo e
dos setores interessados na privatização do ensino superior, correríamos o risco de receber,
em determinado momento, o pacote acabado da Reforma Universitária.
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2.1. Aspectos gerais da Reforma da Educação Superior
Em texto elaborado por Cecília Collares (Adunicamp), Gelta Ramos Xavier (Aduff),
Kátia Lima (Aduff), Sara Granemann (ADUFRJ), Tomás de Aquino S. Boaventura
(ADUFMAT), do Grupo de Trabalho em Políticas Educacionais, do ANDES-Sindicato
Nacional, esclarecem os autores as concepções que fundamentam politicamente a reforma.
Sua base de fundamentação política parte das seguintes concepções: 1) “a educação como bem público”. Esta concepção oportuniza a defesa da seguinte argumentação: na medida em que as instituições públicas e privadas prestam um serviço público, justifica-se a alocação de verba pública para instituições privadas (Programa Universidade para Todos), diluindo os conceitos de público e privado e retomando a noção de público não-estatal de Bresser Pereira-FHC; 2) “a justiça social como igualdade de oportunidades”. Desta forma caberá a cada indivíduo, a partir de suas competências e habilidades, conquistar uma vaga nos cursos pós-médio (seqüenciais, cursos de curta duração) ou nas universidades (ciclo básico ou integralizando o curso de graduação); 3) “O Estado como supervisor”. Destaca o papel do Estado na regulação do sistema (elaboração da Lei Orgânica da Educação), sem fazer referência ao financiamento público para a educação pública. Reserva-se ao, já amputado, Estado brasileiro, no âmbito do ensino superior, a ‘supervisão e a regulação’ já que o financiamento do ensino superior público não está entre suas prioridades. (GTPE /ANDES-SN, 2004).
O trabalho de Lima (2005) destaca a estratégia do governo de fatiar esta reforma e
implantá-la aos poucos, constituindo legalmente instrumentos como as Parcerias Público-
Privadas (PPP) e a retomada do conceito de público não-estatal, ambos encontrados no
Programa Universidade para Todos (ProUni). Este último, aliás, constituiu-se num dos
grandes carros chefes da propaganda de Lula orientada aos jovens para a sua reeleição.
Especialmente em relação a tais medidas, o governo busca
justificar, tanto a ampliação do empresariamento da educação superior, como o acelerado processo de privatização no interior das instituições públicas, ambos “envernizados” com a noção de “função social”, “interesse público” ou da educação superior como “bem público”. (Lima, 2005).
Outro importante aspecto no andamento desta reforma, diz respeito à confusão
promovida pela mídia entre algumas posições coincidentes, quanto à regulamentação da
educação, dos “críticos” ao projeto, como o ANDES-Sindicato Nacional, e o conjunto de
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empresários da educação superior representados pela Associação Brasileira de Mantenedoras
de Ensino Superior (ABMES). Tal confusão tende a esconder do cenário de disputas no
interior da reforma, que governo e empresários da educação superior estão juntos na defesa da
esmagadora maioria de suas propostas privatizantes.
Considero, portanto, como uma das nossas principais tarefas o esclarecimento ao conjunto da sociedade brasileira de que as críticas que estão sendo realizadas ao anteprojeto pelos diferentes sujeitos políticos partem de princípios e perspectivas antagônicas: os empresários da educação superior, através da ABMES, representam os interesses de frações da burguesia brasileira contrárias a qualquer tipo de regulamentação da educação e o ANDES-SN, autônomo e democrático, reafirmando o princípio histórico da educação como um direito fundamental dos trabalhadores e filhos dos trabalhadores e como um dever do Estado. (Lima, 2005).
Por outro lado, ressaltamos que não entendemos o projeto neoliberal de sociedade e de
educação como homogêneo. Existem divergências entre empresários da educação e o governo
Lula que se situam na disputa pela condução deste projeto. Frações da burguesia pressionam
contra toda e qualquer regulamentação da educação, ainda que precária. Em nome de seus
interesses econômicos, essas frações reagem à tênue ação regulatória proposta pelo governo.
Estas divergências entre governo e a fração da burguesia que lhe dá sustentação,
representada no Congresso e no interior do próprio governo, puderam ser observadas pela
imprensa. 20 Na matéria podemos observar comentário da jornalista responsável: “Mais uma
vez, MEC bate de frente com equipe econômica, que descarta a troca de dívidas dos estados
com o governo federal por investimentos no ensino superior, como previsto na reforma
universitária”. Além disso, podemos observar o comentário de Bernardo Appy, então
Secretário de Políticas Econômicas do Ministério da Fazenda de Antônio Palocci: “Que eu
saiba, não houve discussão no governo sobre esse assunto”, disse. “É uma forma inadequada
de estimular o investimento em educação”. Ao que foi respondido pelo secretário-executivo
adjunto do MEC, Jairo Jorge: “Inadequada é a posição do Bernardo Appy”.
Finalmente ressaltamos o comentário da jornalista em relação ao que ela denominou
de (des)acerto do governo: “A reação praticamente imediata do secretário de Política
Econômica do Ministério da Fazenda mostra mais uma vez o desacerto entre os dois
20 “Fazenda barra promessas de Tarso”. Jornal Correio Braziliense, Brasíliam 01 de junho de 2005, (Capa e p. 11)
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ministérios (...)”. Tal comentário faz menção e critica coerentemente o governo e sua própria
proposta de concertação social. O Jornal O Globo registra matéria com o mesmo conteúdo. 21
Do ponto de vista econômico, ao contrário do que se pensa acerca dos
empreendimentos no ensino superior, “atualmente o setor privado movimenta cerca de R$ 15
bilhões: as filantrópicas gozam de isenções da ordem de 25% e as empresariais de 15%. Caso
todas venham a se converter em empresariais, as isenções corresponderiam a R$ 2,3 bilhões”.
(Coggiola, 2005). Cabe lembrar ainda que o ProUni previa em sua primeira versão 25% da
vagas de todo o setor privado, percentual que na realidade só atingiu 8,5%.
2.2. Analisando pontos centrais da(s) proposta(s) de reforma do Ensino Superior.
Como a reforma caracteriza-se por acumular propostas produzidas e apresentadas pelo
Governo, e nossa abordagem visa analisá-la, sobretudo, pelos aspectos econômicos e de
legitimação que envolvem, levando em conta as concepções que norteiam sua apresentação,
sobretudo: (i) a educação como bem público, diluindo os conceitos de público e privado e
retomando a noção de público não-estatal; ii) a justiça social como igualdade de
oportunidades; (iii) o Estado como supervisor, entendemos ser suficiente a abordagem da
quarta e última versão que trata da reforma (Normas Gerais do Ensino Superior), e das 368
emendas acrescidas pelos parlamentares. Esta versão foi apresentada pelo Executivo ao
Congresso Nacional por meio do Projeto de Lei n. 7200, de 2006.22 23
Para além do que a reforma do ensino superior já avançou em sua consolidação, com a
aprovação do ProUni e das PPP´s, há ainda muitos pontos em disputa, especialmente pela
pressão no Congresso do setor privado educacional e industrial, nacional e internacional. É de
se destacar também que a maioria das emendas propostas ao projeto é de autoria de partidos
da base de apoio do governo e segue a lógica de flexibilização do ensino superior.
21 “Fazenda se opõe a proposta da Educação”. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 01 de junho de 2005, p. 8 22 O Projeto de Lei n. 7200, de 2006, foi apensado ao Projeto de Lei n. 4212, de 2004, por antiguidade o projeto principal, e será analisado em conjunto com este e também com o Projeto de Lei n. 4221, de 2004. As emendas apresentadas ao Projeto de Lei n. 7200, de 2006, foram encaminhadas por diferentes partidos com a seguinte distribuição: PMDB -93; PSDB - 83; PFL - 56; PP - 33; PTB - 29; e PL - 11. 23 A descrição e análise do Projeto de Lei n. 7200, de 2006, em conjunto com as emendas parlamentares, estarão anexas ao trabalho, buscando abordar os principais temas de nosso interesse. Tomarão como base o próprio documento do Projeto de Lei n. 7200, de 2006, e o documento do Andes-Sindicato Nacional intitulado “Análise do Projeto de Lei nº 7.200/2006, a Educação superior em Perigo!”.
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Nos pontos que destacamos, podemos observar, tanto nas propostas do governo, quanto
nas emendas parlamentares, a clara tendência à flexibilização do ensino superior que implica
uma ainda maior ausência do Estado brasileiro na obrigação de provê-lo como ensino público
e, por conseqüência, uma grande abertura à lógica do capital, via captação e utilização de
recursos públicos, com a finalidade de atender aos interesses empresariais, à política
industrial, à inovação tecnológica e ao comércio exterior, dentre outros.
A idéia central é a de que a educação concebida como bem público deve implicar a
diluição das fronteiras entre o público e o privado e promover justiça social, com base na
igualdade de oportunidades, seguindo o conceito equivocado de que marcos regulatórios
podem garantir a qualidade do serviço público, que, neste caso, poderia igualmente ser
prestado por empresas privadas às quais seriam fornecidos recursos públicos em um regime
de competição.
Desse modo, em nome da justiça social como sinônimo de igualdade de oportunidades,
a educação superior deixa de ser concebida como direito social, ou seja, direito de todos e
dever do Estado, e passa a ser encarada como uma atraente fatia do mercado de serviços.
Tanto quanto na reforma da previdência o argumento da justiça é uma estratégia central
utilizada com base nas orientações dos organismos internacionais.
Se para a abertura da previdência ao mercado privado o argumento era a (in)justiça
entre os aposentados do regime geral e do regime próprio do serviço público, para a reforma
universitária é idêntico: reforçar o “mercado para a oferta privada de educação superior”,
“inclui” uma massa de estudantes pobres, em políticas sob o formato do ProUni, por exemplo.
Nos dois casos, o argumento da justiça justifica o rebaixamento de direitos.
Este encaminhamento tem o mesmo efeito estratégico que teve quando da reforma da
previdência: alargar ainda mais o lucrativo mercado educacional superior em direção ao setor
privado nacional e internacional, ao mesmo tempo em que dialoga com importantes setores do
movimento popular e sindical no sentido de legitimar a reforma.
Neste sentido, queremos ressaltar o decisivo papel jogado pelos organismos
internacionais e seus interesses no desdobramento desta reforma.
No atual cenário, a educação superior é caracterizada como de crucial interesse pelo
setor internacional de serviços como atestam os embates na Organização Mundial do
Comércio (OMC).
Desde 1993, o BM explicita a sua visão sobre o tema e emite sugestões em documentos como “Brazil: Higher Education Reform” (1993); “Brazil: Higher Education Sector Study” (2000), sendo este
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um extenso arrazoado contido em 2 volumes, com forte influência de estudos realizados por Eunice Durham e Simon Schwartzman dentro do Núcleo de Pesquisas sobre o Ensino Superior (NUPES) da USP; e “Brazil: Equitable, Competitive, Sustainable – Contributions for
Debate” (2002). (...) De saída, chama a atenção a ênfase na importância de reforçar o “mercado para a oferta privada de educação superior”. Nessa publicação, o alto custo da educação superior pública é ressaltado, enquanto são encaminhadas sugestões parecidas com o ProUni, associadas à recomendação de que haja cobrança pelo ensino nas universidades públicas, junto com a insistência no financiamento das IFES por meio de pacotes relacionados ao seu desempenho. (ANDES-SN, 2006, p.4-5).
A tônica defendida pelo BM é de que o investimento na educação superior pública é
excessivo em comparação ao que se verifica em outros países, ainda mais por não ajudar a
reduzir a iniqüidade. Este argumento foi utilizado pelo Ministério da Fazenda24, e retomado,
indiretamente, nas várias versões da chamada reforma universitária. Na prática, a expansão
das vagas públicas sem o equivalente aporte de recursos públicos, enquanto que, por
intermédio do ProUni, são destinados recursos a instituições com fins lucrativos, muitas vezes
para cursos de má qualidade e em áreas de pouco interesse social, esclarece o argumento
falacioso do alto custo por estudante nas IES públicas que é tomada como base para as
políticas do governo na área da educação superior. Esse argumento tem origem em análises
inadequadas da situação brasileira, nas quais são desconsiderados fatos básicos como a
inclusão indevida, na conta do ensino de graduação, de todo aporte de recursos para a infra-
estrutura de pesquisa, para o desenvolvimento da pós-graduação, para a manutenção de
museus e outros equipamentos de cultura e até de despesas que deveriam ser custeadas pela
previdência. (Andes-SN, op. cit.)
2.3. A vinculação ao Banco Mundial
Segundo Lima (2005), políticas como o ProUni encaixam-se no atual projeto neoliberal
da “terceira via” que apresenta
a necessidade de um “pacto social” para a construção de um “novo contrato social” e um Estado regulador, que estimule as ações voluntárias de indivíduos e grupos sociais; os movimentos sociais e ong´s com demandas específicas; a responsabilidade empresarial; os sindicatos colaboracionistas e as parcerias público-privadas.
24 “Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002”. Ministério da Fazenda, novembro de 2003
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Lima (2005) observa ainda que estas idéias estão de acordo com o Relatório de
Desenvolvimento Mundial (1997), divulgado a cada ano pelo Banco Mundial, que evidencia
de que forma o Banco elabora um conjunto de pressupostos para fundamentar o discurso
sobre a necessidade urgente de reformulação do papel do Estado:
Isso significa inserir a voz do povo na formulação de políticas: abrir campo para que indivíduos, organizações do setor privado e outros grupos da sociedade civil expressem suas opiniões (...) Incentivar uma participação mais ampla na preparação e provisão desses bens e serviços por meio de parcerias entre o governo, as empresas e as organizações cívicas também pode melhorar a sua oferta (p.116).
O atual pensamento do Banco Mundial é diferente da concepção presente nos
documentos datados do início da década de 1990. O BM vai elaborando, a partir da metade da
década de 1990, um conjunto de reflexões críticas ao fenômeno que identifica como um
“distanciamento entre o Estado e o povo” gerado pela lógica do Estado mínimo e do mercado
como gestor da vida social. Propõem superar o “neoliberalismo radical” por um Estado social-
liberal, identificado por Lima (2005) como um “neoliberalismo de novo tipo”.
O diagnóstico sobre a crise da educação superior, segundo o Banco Mundial, está
relacionado à crise do setor privado com o aumento da inadimplência no pagamento das
mensalidades; à ausência de um marco regulatório que normatize o financiamento público
para as instituições privadas e o financiamento privado para as instituições públicas; e a
inadequação da formação profissional à reestruturação do capitalismo.
Neste cenário, ao Estado é atribuído um papel regulador, elaborando um conjunto de
medidas jurídico-institucionais para estimular a diversificação das instituições de ensino
superior e a diversificação das fontes de financiamento da educação superior, conforme as
propostas da reforma.
Ao mesmo tempo, a submissão às políticas dos organismos internacionais é uma ação e
uma opção política consciente da burguesia brasileira que articula a pressão exercida pelos
países imperialistas, através dos organismos internacionais, e simultaneamente, os interesses
políticos e econômicos da burguesia ou frações de classe que a compõem. Exemplo da
dependência consentida do capitalismo brasileiro é a redução do desenvolvimento tecnológico
à inovação tecnológica, presente nos documentos da reforma do ensino superior, além da
própria lei de inovação tecnológica (Lei n. 10.973, de 02 de dezembro de 2004).
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É neste quadro político que a noção de público não-estatal aparece como uma das mais
importantes estratégias para legitimar as políticas governamentais sob a aparência de justiça
ou de radicalização da democracia.
A base popular organizada que constituiu a história do PT e apóia o governo Lula,
transformou-se no fator determinante para que os mesmos argumentos, antes rejeitados, agora
legitimem as reformas, possibilitando a sua implementação neste governo. No caso da
reforma da educação superior, políticas como o ProUni potencializam a estratégia de
legitimação das propostas do governo, na medida em que, ainda que com qualidade duvidosa,
vão ao encontro de importantes parcelas da população mais pobre deste país, de sua aspiração
de acesso ao ensino superior.
Portanto, o reordenamento do papel do Estado implica na diluição das fronteiras entre
público e privado, eixo que norteia a política dos organismos internacionais para países
capitalistas periféricos, promovendo um intenso processo de privatização dos serviços
públicos, da educação pública e, no caso em foco, da educação pública superior.
A privatização dos serviços públicos é uma política de governo que expressa o novo
papel do Estado na condução na privatização por dentro das instituições públicas de ensino:
regulamentação das fundações de direito privado; cobranças de taxas e mensalidades; corte de
vagas para contratação dos trabalhadores em educação - e simultaneamente do estímulo,
inclusive através de “generosa” isenção fiscal, para os empresários do ensino superior. (Lima,
2005).
Esta lógica está articulada ao discurso sobre a importância da educação para a coesão
social e para a redução da pobreza. A Reforma da Educação Superior aparece como estratégia
para reduzir a pobreza e garantir o acesso dos jovens “pobres” ao ensino superior, omitindo
que este acesso será viabilizado através da ampliação de vagas de qualidade duvidosa no setor
privado, identificado como democratização da educação, ou através de cursos de curta
duração e da educação à distância.
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3. A Reforma Sindical/Trabalhista
Como fizemos na abordagem das Reformas da Previdência e Universitária, as
Reformas Sindical e Trabalhista serão tratadas a partir de elementos que nos possibilitem uma
análise a partir das estratégias e dos interesses capitalistas em contraponto aos interesses e a
luta da classe trabalhadora.
Tomaremos como foco o reordenamento jurídico-institucional proposto para o modelo
sindical e suas conseqüências para as relações trabalhistas, conforme exposição de motivos
enviada ao Congresso Nacional pelo Executivo, através do Projeto de Emenda Constitucional
n. 369, de 2005, e pelo Anteprojeto de Lei de Relações Sindicais (ALRS), após as discussões
ocorridas no Fórum Nacional do Trabalho (FNT).
Destacamos que para o nosso trabalho, interessa identificar a lógica que norteou todo o
processo de tentativa de elaboração e implementação da reforma sindical/trabalhista, ainda
que, como veremos a seguir, o governo Lula da Silva não tenha logrado êxito, em seu
primeiro mandato.
“O sistema brasileiro de relações trabalhistas está superado, sendo por isto necessário
rediscutir o atual marco normativo constitucional e infraconstitucional”, sentenciou o
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES (conselho assessor, composto
majoritariamente por empresários). Seria preciso reformar a estrutura sindical para garantir o
funcionamento de uma estrutura mais enxuta, na qual haja poucas garantias legais. (Coggiola,
2005).
Em sintonia com o CDES, em reunião dia 26 de fevereiro de 2007, com sindicalistas e
representantes do Secretariado Nacional dos Trabalhadores no Comércio e Serviços
(Sentracos), em São Paulo, o Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, defendeu que o governo
avance na reforma sindical. “Sei que muitos de nós temos dúvida sobre qual é legislação
sindical e sobre qual reforma nós devemos fazer. Mas precisamos avançar porque essa
estrutura sindical brasileira, do jeito que está, vai continuar promovendo ‘aberrações’ (...)”.25
Por outro lado, o Ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, “disse nesta sexta-feira
que o governo pretende regulamentar o direito de greve dos servidores públicos federais, e irá
chamar as centrais sindicais para negociar”.26 No dia seguinte, o próprio Presidente Lula
“confirmou na manhã deste sábado que o governo vai propor ao Congresso que regulamente o 25 Agência Brasil, 2007 26 Jornal O Estado de São Paulo, de 02 de março de 2007
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{ HYPERLINK
"http://canais.ondarpc.com.br/gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=641066" }, proibindo a
paralisação em setores considerados essenciais do serviço público”.27
Pelas notícias veiculadas recentemente, a Reforma Sindical/Trabalhista está na pauta
do Governo Lula, que inicia o seu segundo mandato atacando o setor público, como fez no
primeiro em relação à Previdência. A exemplo do que correu na Reforma da Previdência, que
se resumiu quase que exclusivamente ao Regime Próprio da Previdência do Serviço Público,
o tom das declarações e ações do governo são no sentido de que está em jogo a continuidade
da Reforma do Estado e do serviço público com as Reformas Sindical/Trabalhista e do Ensino
Superior.
Neste mesmo sentido, e não por acaso, também observamos nas primeiras ações
executivas do recém-eleito Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, em
aliança com Lula, um movimento similar ao do governo federal. Cabral enviou para a
Assembléia Legislativa do Estado (Alerj) o Projeto de Emenda Constitucional n. 03, de 2007,
que propunha a contratação de trabalhadores para o serviço público, não apenas pelo Regime
Jurídico Único (RJU), mas também e principalmente pela Consolidação das Leis Trabalhistas
(CLT). Esta PEC foi retirada pelo Governo depois de intensa pressão unificada do movimento
sindical de servidores públicos do Estado do Rio de Janeiro.
Abordaremos a Reforma Trabalhista e Sindical de forma conjunta, chamando a
atenção para a antecedência da reforma sindical como estratégia do governo para ampliar o
controle sobre as resistências às mudanças propostas para a legislação trabalhista, o que tem
recebido críticas a exemplo de Coggiola (2005).
(...) É a fase prévia do lançamento da reforma trabalhista, um ataque contra as conquistas operárias, para favorecer o lucro do capital às custas do salário. Visa a enfraquecer os sindicatos para dificultar a resistência, e seu ponto central é abrir caminho para a divisão dos sindicatos e aumentar o poder das cúpulas das centrais sindicais (Coggiola, 2005).
Na Reforma Sindical é proposto o fim da unicidade sindical, abrindo-se a
possibilidade para que se criem vários sindicatos numa mesma categoria. Além disso, retira-se
a autonomia dos sindicatos, tanto pelo esvaziamento de sua representatividade, quanto pelo
27 O Globo Online 03 de março de 2007
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deslocamento do poder de representação dos trabalhadores para as centrais sindicais. A
regulamentação do direito de greve dos servidores públicos também é ponto de pauta,
recuperado recentemente, tanto pelo Ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, quanto pelo
próprio Presidente Lula. Do ponto de vista da organização dos trabalhadores, estas medidas
fragilizam as entidades sindicais e beneficiam as reivindicações do empresariado. No âmbito
do serviço público, visam a diminuir o poder das representações sindicais dos servidores
públicos, espaço que tem demonstrado maior reação à política do Governo Lula.
A Reforma Trabalhista implica na possibilidade de eliminação do 13º salário nas
pequenas e médias empresas; "repensar" o seguro-desemprego e usar parte dos seus recursos
para financiar políticas de micro-crédito e de qualificação; ampliar os contratos precários, a
exemplo do Primeiro Emprego; reforma da lei de falências que dá prioridade objetiva aos
credores financeiros (os bancos), em detrimento dos direitos dos trabalhadores, na liquidação
de empresas falidas.
O projeto de reforma sindical visa submeter a Consolidação das Leis Trabalhistas
(CLT) aos acordos coletivos. Documento do governo no Fundo Nacional do Trabalho (FNT)
afirma: “O estabelecimento das novas bases da representação sindical deverá condicionar o
novo padrão de negociação coletiva, de solução de conflitos, de direitos trabalhistas e de
regulação pública do trabalho”. (grifo nosso) Isto coincide com uma recomendação do CDES
no sentido de que negociações coletivas (no âmbito da empresa) se sobreponham à CLT.
Segundo Coggiola (2005), se o governo conseguisse reformar a estrutura de
representação sindical, combinando a possibilidade de sindicatos por empresa com o arbítrio
em última instância da central sindical ou de uma comissão das centrais sindicais, a
desregulamentação trabalhista ficaria mais aguda, já que passariam a valer os acordos
coletivos firmados entre o patronato e a entidade representativa dos trabalhadores.
Permaneceriam na legislação constitucional e infraconstitucional apenas direitos mínimos e a
fixação das regras de proteção do trabalho seria temporária, já que vinculada a acordos
coletivos. A contrapartida seria a definição das centrais sindicais como instâncias últimas de
julgamento sobre quem representa os trabalhadores, ato que reforça as burocracias sindicais.
Esse é o consenso também no CDES: “deve ser efetivo o reconhecimento da personalidade sindical às centrais, de maneira que venha a ser consignada, na sua integralidade, a capacidade jurídica dessas entidades para firmar convenções e acordos coletivos”. O objetivo da proposta acordada no FNT já foi esclarecido: uma ampla flexibilização dos direitos dos trabalhadores, que facilitaria a geração
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de empregos, mesmo que isto tenha sido desmentido pelos resultados obtidos em todos os países que adotaram essa receita. Segundo o Secretario de Relações de Trabalho do Ministério do Trabalho, Osvaldo Bargas, ex-dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e da Cut, “direitos mínimos não devem ser camisas de força nas negociações. Para os grandes sindicatos a legislação mais atrapalha do que ajuda.” (Coggiola, 2005).
Do ponto de vista do capital, parece óbvio o interesse do mercado empresarial numa
ainda maior flexibilização nas relações de trabalho pelo enfraquecimento do movimento
sindical, o que por si só seria um elemento tranqüilizador para os empresários acerca de uma
maior conciliação de classes.
Ressaltamos, concordando com Lima (2005), que, para além da Reforma Trabalhista,
a Reforma Sindical também se relaciona com a Reforma do Ensino Superior, na medida em
que o conjunto das ações que estão sendo realizadas pelo Governo Lula indica uma concepção
da educação escolar como uma estratégia fundamental para a difusão de um novo projeto de
sociabilidade burguesa. Ambas fazem parte do reordenamento das relações entre capital e
trabalho, configurando novos campos de exploração lucrativa para o primeiro e buscando
submeter os trabalhadores à ordem do capital, com a conivência das aristocracias sindicais e
partidárias, atualmente representadas pela direção da Cut e pela corrente majoritária do PT.
3.1. O itinerário da Reforma e seu contexto.
No sétimo mês do seu primeiro mandato, Lula instalou o Fórum Nacional do Trabalho
(FNT), instância tripartite de negociação sobre as reformas sindical e trabalhista, através do
Decreto n. 4.796, de 30 de julho de 2003. Este fórum subsidiaria o governo na elaboração de
propostas que comporiam a Reforma Sindical/Trabalhista a ser enviada ao Congresso
Nacional.
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A criação deste fórum teve objetivos que não diferem dos outros fóruns criados pelo
governo para buscar consenso sobre as reformas. Três grupos de trabalho elaboraram os
consensos referentes ao tema.
Durante agosto e dezembro de 2003, o debate se espraiou pelas diversas regiões do país, com a realização de 27 Conferências Estaduais do Trabalho - CET. Outros cinco meses foram necessários para as negociações efetivas entre as bancadas de trabalhadores, empregadores e governo, até a aprovação e divulgação do relatório final sobre a reforma sindical do Fórum Nacional do Trabalho. Nesses oito meses e nove dias, foram realizadas centenas de reuniões, nas diversas CET, 36 reuniões oficiais nos grupos temáticos envolvidos na reforma sindical, outras tantas entre apenas duas das bancadas presentes no Fórum. A magnitude dos números e do processo de negociação é uma pequena amostra da estratégia governamental de buscar o consenso como condição para aprovação parlamentar, (...). A negociação de consensos políticos levou 230 dias. E para negociar a redação dos 238 artigos do Anteprojeto foram necessários exatos 335 dias, trabalho concluído com a apresentação da versão final, pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em 14 de fevereiro de 2005. (Silva, 2005, p.3).
No início de 2005, o Governo Lula enviou ao Congresso Nacional o Projeto de
Emenda à Constituição n. 369, de 2005, que teve sua tramitação iniciada. No entanto, o
Anteprojeto de Lei de Relações Sindicais (ALRS) foi apenas apresentado, sem que tenha sido
formalmente encaminhado ao Congresso, já que deveria sofrer adequações necessárias para
preservar sua constitucionalidade diante da redação final que poderia ser dada à Constituição
após a tramitação congressual da emenda.
Ao mesmo tempo se inicia, de forma mais organizada, um movimento promovido por
várias organizações sindicais contrárias ao projeto de emenda constitucional. A pressão deste
movimento contribuiria para aprofundar as contradições no interior do governo que não se
livrou de reações no setor empresarial ávido por mudanças maiores e mais rápidas, bem como
da pressão estabelecida pela própria imprensa.
Parte do manifesto deste movimento alertava para os interesses presentes nas críticas
feitas por empresários e pela imprensa ao anteprojeto.
Por todas estas razões nos opomos a esta proposta de reforma sindical. Não nos enganamos com críticas que ora surgem por parte dos empresários e da imprensa. Estas críticas não significam que o projeto é bom para os trabalhadores, significam apenas que os empresários
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querem que ela seja ainda pior, querem ainda mais concessões do que as que já foram feitas a eles dentro do Fórum Nacional do Trabalho.28
Ao final de 2005, a PEC n. 369, de 2005, ainda se encontrava na Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) sem a prioridade desejada pelo Governo. O presidente da
Comissão de Trabalho, Deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) lembrou que foram
realizadas várias audiências públicas para a discussão da PEC. "No entanto, como a proposta
está abandonada na CCJ, resolvemos discutir os projetos que tratam da regulamentação do
artigo 8º da Constituição (sobre a associação sindical)".29
Vendo frustrada a tentativa de reforma via emenda constitucional e projeto de lei, o
Governo encaminhou em 08 de maio de 2006, duas Medidas Provisórias ao Congresso
Nacional na tentativa de concretizar o processo de reforma sindical/trabalhista. Com as
medidas, o Governo Lula legalizaria as Centrais Sindicais e criaria o Conselho Nacional de
Relações do Trabalho (CNRT), com participação paritária de governo, trabalhadores e
empregadores.
O Ministério do Trabalho optou em dar início a sua proposta reformista através de Medidas Provisórias. Pressionado pelo tempo, visando aproveitar o final da atual Legislatura, o MTE desistiu de debater as proposições nos Estados, em audiências públicas, como convencionado na Comissão do Trabalho da Câmara dos Deputados, para buscar implantar sua concepção pluralista e intervencionista via Medidas Provisórias.30
Entretanto, se ao adotar o caminho das Medidas Provisórias, o governo se equivocou,
na medida em que rompe com o compromisso assumido de debater as suas questões nos
Estados, via Parlamento, e no próprio Congresso, via audiências públicas. Outro fator foi
determinante para que a reforma ficasse comprometida no primeiro Governo Lula e fosse
adiada para a próxima lesgislatura: os escândalos que envolveram denúncias de corrupção no
próprio governo e no parlamento, às vésperas da campanha eleitoral relativa às eleições de
2006.
A notícia abaixo, veiculada pela imprensa do grande ABC, mostra uma determinada
visão do processo de Reforma Sindical/Trabalhista, que atribui apenas ao Congresso Nacional
o envolvimento com as denúncias de corrupção, isentando o Governo e seu partido, o PT. Por
28 Manifesto contra a PEC n. 369, de 2005 29 Agência Câmara, Portal da Câmara dos Deputados, em 07 de dezembro de 2005 30 Jornal O Estado do Paraná, 04 de julho de 2006
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outro lado, toma posição pela Reforma, ao atribuir exatamente ao Governo e sua base de
apoio sindical e parlamentar, especialmente aquela envolvida no FNT, a representação dos
anseios do movimento sindical. A notícia destaca, de forma negativa, o provável adiamento
da reforma, visto que a PEC n. 369, de 2005, não tinha mais chances de entrar em votação e
que “artimanhas políticas e interesses parlamentares” poderiam anular o efeito das Medidas
Provisórias n. 293 e n. 294.
Independentemente de quem ganhe a eleição, o fato é que a PEC 369/05 (Proposta de Emenda à Constituição) que altera a estrutura das entidades sindicais brasileiras deve entrar em discussão e votação no Congresso Nacional somente na próxima legislatura. Atolados em escândalos de corrupção e agora engajados em campanhas, os parlamentares protelaram a modificação de uma legislação por muitos considerada arcaica. Deputados federais do Grande ABC – Vicente Paulo da Silva (PT), Edinho Montemor (PSB) e Ivan Valente (PSOL) –, em uníssono confirmam o adiamento dos debates. Sindicalistas até sonham com a aprovação da PEC antes de 31 de dezembro, mas sabem das dificuldades para aprovação da emenda. Artimanhas políticas e interesses de parlamentares, para angústia de parte de entidades sindicais, podem anular também o efeito das MPs (Medidas Provisórias) 293 e 294, caso não sejam votadas até 5 de setembro. Com as medidas, o presidente Lula legaliza as centrais sindicais e cria o CNRT (Conselho Nacional de Relações do Trabalho), com participação paritária de governo, trabalhadores e empregadores. Espécies de Reforma Sindical na canetada, ambas as ações atendem às reivindicações do movimento sindical e foram acordadas no Fórum Nacional do Trabalho (...).31
Outra notícia veiculada pela imprensa sindical, na página do Sindsep32, apresenta
outra visão da Reforma, destacando uma estratégia do Governo para atrair o apoio de parte do
movimento sindical, incluindo o do setor público, às Medidas Provisórias enviadas ao
Congresso.
Na última segunda-feira, dia 08.05, com o objetivo de atrair os sindicatos e a Cut para “fóruns tripartites” e “espaços de diálogo social”, o governo editou a MP 293. A medida estabelece o reconhecimento das centrais sindicais, a partir de critérios de representatividade “aferidos pelo Ministério do Trabalho” e está associada à participação das centrais no Conselho Nacional de Relações de Trabalho (CNRT), também instituído no dia 08, pela MP 294. Sua função é elaborar projetos de lei, inclusive de legislação trabalhista. O governo também anunciou a intenção –apenas a intenção - de ratificar a Convenção 151 da OIT, que estende aos servidores públicos todos os direitos sindicais.
31 Diário do Grande ABC, 19 de agosto de 2006 32 { HYPERLINK "http://www.sindsep-df.com.br/Noticias%20EG/2006/EG%20189/mini%20reforma.htm" },
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Finalmente, podemos observar o desfecho do encaminhamento da Reforma
Sindical/Trabalhista no primeiro mandato do Governo Lula, em notícia veiculada na página
da Adufepe33.
A Câmara rejeitou a medida provisória 294, que cria o conselho Nacional de Relações do Trabalho e também integra o bloco da reforma sindical. Com isso, a proposta de reforma sindical fica adiada parta o próximo ano uma vez que também já tinha sido rejeitada a medida provisória 293, que define os requisitos para que as centrais sindicais sejam reconhecidas oficialmente como representantes de trabalhadores em fóruns. Os sindicalistas que ocupavam as galerias do plenário aplaudiram a decisão dos deputados e cantaram o hino nacional. Dirigentes sindicais afirmaram que 1,2 mil sindicalistas vieram a Brasília para se manifestarem contra as duas MPs rejeitadas nesta segunda-feira,04/09. De acordo com Jessé Lira, presidente do sindicato dos técnicos industriais de Pernambuco, com as MPs as bases perderiam autonomia. "Ficaríamos manipulados pelas Centrais", afirmou Jessé Lira.
3.2. Os pressupostos que norteiam as reformas
De acordo com as teorias que fundamentam a reforma sindical, a reestruturação
produtiva acarretaria o aumento da heterogeneidade da classe trabalhadora e o
enfraquecimento do movimento sindical, que debilitariam o operariado para enfrentar as
políticas do capital. As reformas sindical e trabalhista têm sido apresentadas como
necessidade para gerar empregos. Os setores empresariais que mais se beneficiariam seriam
os pequenos empresários, pois teriam maiores dificuldades para arcar com os custos elevados
dos encargos sociais e indenizações.
Entretanto, Coggiola (2005) contra-argumenta a tese de que, no Brasil, a
heterogeneidade da classe trabalhadora se daria pela reestruturação produtiva no Brasil, fruto
dos investimentos tecnológicos das empresas, fenômeno supostamente responsável pelos
ganhos de produtividade.
33 { HYPERLINK "http://www.adufepe.com.br/noticias2006-2.htm" }
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(...) As reestruturações efetuadas nas empresas brasileiras foram principalmente organizacionais, não tecnológicas. Não foram feitos investimentos expressivos em maquinaria poupadora de mão-de-obra, com algumas importantes exceções, como o setor bancário. No Brasil, os ganhos em produtividade não foram devidos, essencialmente, a investimentos tecnológicos do setor privado (os que ficaram aquém daqueles da década de 1970). E menos ainda ao investimento do setor público, com as privatizações e o sucateamento do setor. Ao arrocho salarial e às demissões, deve-se acrescentar a flexibilização. Apesar do aumento populacional, o Brasil perdeu 2,060 milhões de empregos formais nos anos de 1990. Todo o processo de concentração capitalista (...) está baseado na expropriação da renda dos trabalhadores. (Coggiola, 2005).
Este autor destaca ainda dois estudos. No primeiro, o próprio Banco Mundial
reconhece o inexpressivo impacto no custo empresarial da pretendida eliminação das
contribuições sobre a folha de pagamento dos trabalhadores. No segundo, feito pela OIT,
demonstra-se que não há provas de que a desregulamentação do mercado de trabalho seja a
única saída para o desemprego.
A proposta de "flexibilização" das leis trabalhistas ignora um estudo sobre o Custo Brasil , realizado pelo Banco Mundial em 1995, que concluiu que a eliminação das ditas contribuições que incidem sobre a folha de pagamento teria um impacto tímido na redução do custo empresarial. (...) Outro estudo realizado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) concluiu que não há provas de que a desregulamentação do mercado de trabalho seja a única saída para o desemprego. Diz inclusive que é infundada a idéia de que toda regulamentação tornaria o mercado de trabalho mais rígido. Um estudo indicou que: 1) o mercado de trabalho no Brasil é duas vezes mais flexível do que nos EUA; 2) as demissões são mais freqüentes quando o crescimento econômico é maior; 3) no Brasil, 38% dos empregados duram menos de um ano, um dos índices de rotatividade mais elevados do mundo. O custo de demissão não é alto: é mais barato demitir e readmitir um trabalhador do que preservar seu emprego. (Coggiola, 2005).
Portanto, as dificuldades enfrentadas pelos pequenos negócios não seriam decorrentes
dos encargos trabalhistas, mas das condições de mercado impostas pelos grandes monopólios,
os mesmos segmentos que pressionam pelas reformas. Neste cenário, afirma-se como verdade
que os direitos trabalhistas são contrários aos interesses dos próprios trabalhadores, lógica
reforçada conjunturalmente pela escassês e precarização do trabalho.
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Foi com base nesta lógica que, vendo frustrado o encaminhamento da Reforma
Sindical/Trabalhista, o Governo conseguiu aprovar, ainda em 2006, o Projeto de Lei
Complementar n. 123, de 2004, renumerado como Projeto de Lei Complementar n. 100, de
2006, no Senado, conhecido como Supersimples (Lei Geral das Microempresas e das
Empresas de Pequeno Porte). A pretexto de eliminar burocracias e regulamentar a unificação
da legislação tributária das três esferas de Governo para micro e pequenas empresas, o projeto
extrapola a abrangência dessa matéria, avança sobre legislação trabalhista, e flexibiliza
direitos e relações de trabalho. Esta aprovação acabou se transformando numa estratégia
vitoriosa do Governo no âmbito da Reforma Trabalhista.
Esta mesma lógica leva Coggiola (2005) a afirmar que “a introdução da prevalência do
negociado sobre o legislado na reforma sindical pode ser uma antecipação da Reforma
Trabalhista. Lula ressaltou que pretende manter o diálogo com o setor industrial, e assegurou
que dará o primeiro passo na mudança das relações trabalhistas com a reforma sindical”.
3.3. As principais estratégias utilizadas pelo governo.
A inversão da cronologia das reformas é uma das principais estratégias do governo
Lula para aprovar a reforma sindical e no seu interior, pontos fundamentais da reforma
trabalhista. Esta inversão evita o desgaste das propostas do Governo e do Partido dos
Trabalhadores que, ao invés de priorizar a reforma trabalhista no sentido de manter os atuais
direitos e ainda ampliá-los, defende a flexibilização das relações de trabalho e a
fragilização/centralização das representações sindicais em relação às cúpulas das centrais.
Junto à suposta perda de prioridade/centralidade da reforma trabalhista encontramos
outra importante estratégia utilizada pelo governo: a chamada reforma sindical não trataria
apenas da estrutura sindical, mas abrangeria todo o sistema de negociação e solução de
conflitos entre o capital e o trabalho, do direito de greve ao poder normativo da Justiça do
Trabalho. Ou seja, o processo é encaminhado de modo a ter-se a impressão de que as
mudanças afetam apenas a estrutura sindical, quando, na verdade atingem em cheio as
relações de trabalho.
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Mas se o Governo Lula se distanciou das reivindicações da classe trabalhadora,
também não obteve o esperado entendimento por parte de empresários que contestaram o
adiamento da reforma trabalhista, para eles, obviamente mais importante e imediata do que a
sindical. “Houve, no âmbito do FNT, uma definição prévia de que a reforma sindical
precederia as discussões sobre a reforma trabalhista, opção (...) contestada pelo
empresariado”. (Silva, 2005, p.3).
Outro aspecto importante é a forma de apresentação das propostas de reforma.
Repetindo uma prática que vem se transformando numa marca deste governo, as propostas
são apresentadas como de iniciativa da sociedade representada em fóruns tripartes. A desejada
concertação é assim estimulada, mitigando as contradições de classe no interior de
Conselhos, Câmaras e Fóruns polipartites de aconselhamento. Dentro desta lógica, o governo
apenas encamparia as propostas que viriam da própria sociedade, num processo que visa
fortalecer a legitimação das reformas.
O Fórum, tripartite, é formado por representantes do governo, dos trabalhadores (as
centrais sindicais, com o peso preponderante da Cut, lá representada pelo seu campo
majoritário) e dos empregadores (confederações patronais, que sempre defenderam a
flexibilização). Este espaço de concertação demonstra a força do pacto selado entre o PT, a
Cut e o Governo, no sentido de que a direção majoritária desta central impôs como resolução
interna o encaminhamento dos consensos do Fórum Nacional do Trabalho (FNT), abrindo
mão de sua autonomia em função do apoio a esta política governamental.
O FNT recebeu como principal atribuição discutir e consensuar a proposta de Reforma
Sindical/Trabalhista, cuja formulação seria afinal encaminhada pelo governo. No FNT, as
bancadas dos empregadores e dos trabalhadores chegaram a importantes consensos, como por
exemplo, a questão da limitação do direito de greve nos chamados “serviços essenciais”. A
“bancada dos trabalhadores” coincidiu com a limitação do direito de greve dos servidores
públicos. Portanto, o FNT e o próprio CDES, conselho decisivo para legitimar a reforma da
previdência, configuram-se como instrumentos corporativos, situados fora das instituições
representativas, através dos quais se concretiza a política de concertação do Governo Lula.
A discussão sobre a estrutura sindical chegou a uma deliberação no FNT que jogou
por terra uma das maiores conquistas da Constituição de 1988: a liberdade e a autonomia
sindical frente ao Estado e aos patrões. Pela reforma, a forma de organização e de sustentação
financeira das entidades sindicais não seria mais tratada como assunto exclusivo dos
trabalhadores, como cabe às empresas o direito de organizar suas entidades como lhes
convier.
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Entretanto, se as articulações entre as bancadas que compõem o FNT possibilitaram
inicialmente o que parecia ser um consenso suficiente em relação à reforma, quando do envio
ao Congresso da Proposta de Emenda Constitucional, os dissensos até então existentes sobre o
Anteprojeto de Lei de Relações Sindicais (ALRS) ampliaram-se. Portanto, apesar do
expressivo consenso obtido com apoio das cúpulas do sistema sindical brasileiro, os dissensos
ocorridos entre as bancadas do FNT, somados à desconfiança e à pressão exercida pela base
do sindicalismo, indicavam dificuldades para o sucesso da tramitação legislativa deste
processo que, por fim, foi frustrada.
Finalmente, destacamos que, vendo frustrados os seus objetivos, o governo continua
lançando mão das velhas estratégias de força das Medidas Provisórias ou utilizando-se de
artifícios legislativos, comprometendo sua promessa de que respeitaria as decisões dos fóruns
de consenso e o encaminhamento combinado junto ao Congresso.
Mesmo em final de mandato, após ter tentado, sem sucesso, passar duas Medidas
Provisórias relativas à Reforma Sindical/Trabalhista, o Governo conseguiu embutir
importantes alterações de natureza trabalhista no Projeto de Lei Complementar n. 123, de
2004, que dispõe sobre a Lei Geral das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte,
mais conhecida como Supersimples. Este PLC foi sancionado ao apagar das luzes do primeiro
mandato do governo Lula, em 14 de dezembro de 2006.
Em matéria divulgada pelo site “Brasília em tempo real”34, o jornalista Antônio
Augusto de Queiroz, analista político e Diretor de Documentação do Departamento
Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), analisando os direitos trabalhistas
ameaçados, ressalta o empenho do Governo na inclusão de parte da pauta trabalhista no PLC
n. 123, de 2004.
Aliás, o PLP nº 123/2004, de autoria do deputado Jutahy Junior (PSDB/BA), o anteprojeto do Sebrae, e o PLP 125/2004, do deputado Eduardo Paes (PSDB/RJ), que deram origem ao substitutivo do relator, só cuidava dos aspectos tributários, fiscais, de desburocratização e de favorecimento às empresas de pequeno porte na aquisição de bens e serviços pelo governo. No entanto, o PLP 210/2006, do Poder Executivo, anexado ao PLP 123, introduziu outras matérias, especialmente as de natureza trabalhista. O segundo aspecto é que o relator da matéria na comissão especial, deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR), construiu seu substitutivo em negociação com a equipe econômica do Ministério da Fazenda, representada pelo Secretário-Executivo da Pasta, economista Bernard Appy, que não
34 { HYPERLINK "http://www.emtemporeal.com.br/index.asp?area=2&dia=11&mes=12&ano=2006&idnoticia=20481" }
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cedeu um milímetro sequer no que diz respeito aos aspectos negativos da parte trabalhista, previsto no PLP 210 do Poder Executivo. Até a supressão do item que reduzia o FGTS de 8% para 0,5% dos trabalhadores dessas empresas foi feita pelo relator à revelia do representante do Governo.
Portanto, o Supersimples é mais um exemplo da estratégia de encaminhamento e
organicidade das Reformas do Governo Lula que, na mesma linha da Reforma da Educação
Superior (Universitária), antecipada com a aprovação das PPP´s e do ProUni, busca antecipar
a Reforma Sindical/Trabalhista, a partir de medidas legais de natureza aparentemente diversa,
mas em perfeita sintonia com os objetivos do atual conjunto de reformas do Estado.
3.4. Repercursões possíveis da Reforma
Do ponto de vista do que significa a Reforma Sindical/Trabalhista para Governo,
empresários e trabalhadores, esperamos ter apresentado elementos que esclareçam as posições
e os interesses assumidos por cada uma destas representações no encaminhamento da
reforma, bem como as estratégias e mecanismos de legitimação para fazer valer as diferentes
concepções sobre organização sindical, relações de trabalho e direitos trabalhistas que
norteiam os interesses dos trabalhadores e dos representantes do capital.
Ainda que esta proposta de reforma tenha sido quase totalmente frustrada no primeiro
governo do presidente Lula, sem que este tenha conseguido promover as mudanças que
alterariam a organização sindical e as já precárias relações de trabalho, apresentamos uma
síntese das prováveis conseqüências dessa proposta de acordo com Coggiola (2005).
No modelo moldado pela reforma, os Comitês de Base desempenharão importante papel. Enquanto as Centrais Sindicais se hipertrofiam e assinam acordos estabelecendo os direitos a serem flexibilizados, caberá aos Comitês de Base a negociação, caso a caso, empresa por empresa, do conteúdo da flexibilização. Quanto aos sindicatos, federações e confederações, ou atrelam-se verticalmente às Centrais ou não sobrevivem. Sobrevivendo, essas entidades perdem sua autonomia e se esvaziam, funcionando apenas como agentes das Centrais na gestão de planos de saúde, fundos de pensão e recursos do
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FAT e como correias de transmissão entre elas próprias e os Comitês de Base, embriões dos sindicatos por empresa, que se proliferarão com o advento do pluralismo. (Coggiola, 2005)
É manifesto o interesse do capital financeiro internacional e das grandes corporações
econômicas na realização de uma reforma dessa natureza que se apóia em um acordo que vai
desde o capital financeiro internacional, passando pelos empresários “nacionais” e pelo
governo de Lula até as cúpulas das Centrais Sindicais, signatárias da proposta enviada ao
Congresso Nacional, que traz mais privilégios e poder para a cúpula das Centrais. O
argumento do STF de que o direito adquirido não se sobrepõe às necessidades da economia
apenas aponta a disposição da justiça para a destruição definitiva de conquistas históricas da
classe trabalhadora. A proposta encaminhada pelo FNT, apoiada pela maioria da direção da
Cut, prevê o reforço da ingerência do Ministério do Trabalho sobre a organização sindical e
abre a possibilidade de flexibilização dos direitos trabalhistas, na linha de que o "negociado
prevaleça sobre o legislado" nas negociações entre as partes.
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Capítulo 3 - MEMÓRIA E HISTÓRIA – O SINTUPERJ
Ao propor o trabalho com a fotografia como fonte histórica, estamos
considerando a fotografia como mediação que
não é um instrumento analítico de medição quantitativa do comportamento de um fenômeno, nem a busca da relação de causa e efeito, mas, sim é a especificidade histórica dos fenômeno. A mediação situa-se no campo dos objetos problematizados nas suas múltiplas relações no tempo e espaço, sob ação de sujeitos sociais (Ciavatta, 2001, p.141-142).
O trabalho conjugando documentos escritos, a história oral e as fotografias permite
desvelar aspectos não explicitados na própria fotografia. Aqui também estamos reconhecendo
na fotografia, além do seu valor estético, o seu valor como documento produzido socialmente.
Se para a historiografia era importante afirmar a necessidade do trabalho com novas fontes,
sobretudo as não escritas, hoje este debate já está consolidado principalmente porque não se
trata apenas de buscar novas fontes, mas, sobretudo, de possibilitar a emergência de sujeitos
que historicamente não deixaram seus próprios documentos escritos e neste sentido, estamos
falando dos trabalhadores de todos os tempos.
A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras” (Benjamin, 1985:229).
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Uma das motivações para o trabalho com imagem surgiu durante a realização da I
Mostra “A Imprensa Sindical Brasileira”, realizada pela Cut em 2002.
A variedade, riqueza e quantidade de materiais jornalísticos produzidos pelos mais
diversos sindicatos, tais como bancários, metalúrgicos, etc. é grande. Disputa-se na sociedade
a contra-hegemonia da informação, na medida em que estes materiais veiculam não apenas a
luta de suas categorias específicas, mas disputam ideologicamente um projeto alternativo de
sociedade.
No intuito de que pesquisadores se debrucem sobre este material, reconstituindo a
própria história da classe trabalhadora no Brasil, não encontrada nos livros de história oficial,
buscamos, neste trabalho, reconstruir, através da imagem e de outras fontes documentais,
alguns aspectos das lutas organizada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação das
Universidade Estaduais do Estado do Rio de Janeiro (Sintuperj).
1. História e fotografia
Inicialmente, estaremos expondo brevemente, os usos iniciais da invenção
fotográfica e, a seguir como autores diferentes problematizam a questão da fotografia,
incluindo alguns que a utilizam como fonte de pesquisa. A seguir, apresentaremos nosso
referencial teórico.
Já na década de 1860, o retrato fotográfico sobre o papel fez um enorme
sucesso. No formato de cartão de visita (6,5 x 10,5 cm) a pessoa fotografada oferecia seu
retrato a amigos, o que muito contribuiu para difundir a fotografia. Os cartões de visita, além
dos retratos, passam a mostrar paisagens e costumes dos povos, sendo precursores dos cartões
postais que se tornam febre no final do século XIX, contribuindo para uma nova educação do
olhar para um padrão de visualidade que se tornou dominante (Kossoy, 1989, p.54).
Em 1863, por exemplo, o fotógrafo Christiano Júnior divulgava seus serviços no
“Almanak Administrativo, Mercantil e Industria da Corte e da Província do Rio de Janeiro
(Almanaque Laemmert)”, anunciando, em 1866, sua coleção de fotografias de negros, sendo
esta considerada a maior coleção de fotografias de escravos anterior a 1870, embora outros
profissionais também tenham fotografado negros. Essas fotografias, num total de 77, datadas
entre 1864 e 1866, foram publicadas no livro “Escravos brasileiros do século XIX na
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fotografia de Christiano Júnior” e fazem parte de diferentes acervos. No mesmo espírito dos
viajantes e cronista europeus, Christiano Júnior procura mostrar o negro como algo exótico
que despertava a curiosidade européia. Retrata-os com a visão de um europeu, anunciando, no
almanaque, os cartões postais com negros escravizados “como coisa muito própria para quem
se retira para a Europa”.
Em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin (1985) realiza
o exame das condições, formas e conseqüências da reprodução das obras de arte, colocando
de lado conceitos tradicionais. Demonstra que, em essência, a obra de arte sempre foi
reprodutível, realizada como exercício de um discípulo, por exemplo. Entretanto, a
reprodução técnica da obra de arte é um processo novo. A xilogravura, na Idade Média,
possibilitou a reprodução do desenho, antes mesmo da reprodução técnica da escrita; depois a
chapa em cobre e a água-forte e, no início do século XIX, a litografia. Com a litografia, a
técnica de reprodução atinge uma etapa nova por ter possibilitado tanto a colocação das
imagens no mercado da produção em massa quanto as criações novas. Ainda em seu início, a
litografia foi ultrapassada pela fotografia que, pela primeira vez no processo de reprodução da
imagem, liberava a mão da atividade artística e passava esta responsabilidade para o olho, o
que representou uma aceleração no processo de reprodução das imagens, processo que
culmina com o cinema falado (Benjamin, 1985).
Este processo de reprodução técnica atinge a obra de arte naquilo que lhe era
peculiar: a sua aura, substituindo sua existência única pela serial. O valor de culto começa a
recuar em função do valor de exposição, tendo sido o rosto humano seu último vestígio
mediante o culto da saudade aos amores ausentes e mortos. A aura está presente na expressão
de um rosto nas fotos antigas.
Um outro aspecto que Benjamin (1985) aborda é a alteração do modo de exposição
pela técnica da reprodução que se torna também visível na política. O político passa a ser
visto e ouvido por um número ilimitado de pessoas. Neste sentido, podemos lembrar o uso
feito pelo nazismo, na Alemanha, da propaganda política através do cinema e, no Brasil, o
papel que desempenhou o rádio durante o Governo de Getúlio Vargas, na propaganda política
junto às massas. O Departamento de Imprensa e Propaganda (Dip), órgão do Governo, era
encarregado de produzir material de divulgação política. As fotos eram montadas para
enfatizar aspectos considerados positivos.
É fato comum que ao serem fotografadas as pessoas do poder, sempre aparecem
fotografadas de baixo para cima, cobrindo com sua imagem todo o plano, dando uma
sensação de grandiosidade. O trabalhador, ao contrário, é fotografado de cima para baixo,
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dando a sensação de achatamento, de algo pequeno, misturado aos objetos. Ciavatta (2002),
na foto sob o título “Corte de pedras para caixa de emendas”, analisa como a presença de uma
bengala, símbolo de cavalheirismo e poder, revela a presença oculta de um chefe, de alguém
que acompanhava a tarefa dos trabalhadores com o olhar; analisa ainda como os próprios
trabalhadores aparecem misturados às pedras, como objetos (p. 16-17). Essas formas de
enquadramento técnico (ângulos extremos de plongées e contra-plongées) realizam pela
imagem um enquadramento ideológico importante a ser questionado e discutido, numa nova
educação do olhar. Embora Benjamin veja de forma positiva a reprodução técnica pelo seu
conteúdo revolucionário a favor dos dominados, ele próprio adverte sobre o impedimento de
seu poder revolucionário pela exploração capitalista. Ressalta que a fotografia, ao se tornar
cada vez mais moderna e matizada, não consegue mais não transformar seus objetos,
quaisquer que sejam, em algo que não seja belo, o que para ele significa abastecer o aparelho
produtivo sem, no entanto, modificá-lo. Para que ocorra esta modificação é necessário que o
intelectual não se resuma a ser solidário com o proletário, mas que atue no sentido de
transformar os consumidores dos bens culturais em novos produtores.
Como aponta Benjamin, a fotomontagem era utilizada pelos dadaístas como
denúncia da ascensão do nazismo e da exploração capitalista. O dadaista John Heartfield, por
exemplo, destacou-se com suas fotomontagens contundentes. Numa manifestação de
trabalhadores contra a ascensão do nazismo, em 1932, em frente à Liga das Nações, muitos
foram mortos em função da repressão. Por conta deste fato, o “Jornal Ilustrado dos
Trabalhadores” publicou uma fotomontagem sua onde a pomba da paz aparece transpassada
pela baioneta fascista em frente ao prédio da Liga das Nações e a cruz branca, no alto, foi
trocada pela suástica.
Um outro aspecto a ser abordado diz respeito ao olhar sobre o outro. Jordan (1995)
adverte que o advento da antropologia de campo é contemporâneo ao nascimento do cinema.
Os primeiros filmes, na virada do século XIX/XX, mesmo sem pretensão etnográfica,
mostravam o interesse em testemunhar, através de um determinado ponto de vista, o olhar do
colonizador para aquilo que ele considerava exótico e que seria avaliado segundo o padrão da
história ocidental. As sociedades que os colonizadores encontram, transformam-se, pouco a
pouco, segundo Piault (1995), em imagens fotográficas e depois cinematográficas suscetíveis
de serem transportadas, recortadas, montadas, repetidas e comentadas frente à posição do
espectador europeu, cuja centralidade e referência não são questionadas.
No artigo “Fotografia e olhar totalitário”, Tacca (1995) aponta como a fotografia, já
nos seus primeiros momentos e ainda na fase do daguerreótipo, foi utilizada como “máquina
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de vigiar” (lembrando o Panopticon de Benthan). Cita, como exemplos, os fotógrafos que
subiam em balões para fotografar, de um ponto de vista estratégico, os movimentos das tropas
que cercavam Paris na guerra franco-prussiana; ou a fotografia da Comuna de Paris, feita num
momento eufórico, que pôde revelar a participação política, submetendo os retratados a
conseqüências fatais, caracterizando-a como forma de controle social. Neste trabalho, o autor
analisa um livro alemão, publicado em 1936 como afirmação do poder nazista e construção de
uma visão de mundo, que tem na fotomontagem a sua estrutura narrativa.
Assim, é necessário fazer este exercício analítico com fatos históricos, presentes e
passados, desvelando e revelando o caráter ideológico e manipulador presente em nosso
cotidiano.
A reconstrução histórica do movimento dos trabalhadores organizados no Sintuperj,
através das fotografias, também não está isenta destes riscos, do poder redutor da imagem.
Entendemos que não há neutralidades na produção do conhecimento, ela sempre é orientada
por valores e opções que correspondem aos interesses e motivações é, portanto, subjetividade
de quem o produz. Neste sentido, a objetividade é sempre relativa à explicitação do lugar de
onde se fala, do método e procedimentos de análise, do uso de fontes alternativas, tais como,
outros documentos escritos, entrevistas, depoimentos, jornais etc.
Para Marx e Engels (1984)
A produção das idéias, de representações, da consciência, está de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião etc. de um povo. (p.36).
A libertação é um ato histórico e não de pensamento, pois “não é a consciência que
determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx e Engels, 1984). Assim
Marx e Engels, em “A Ideologia Alemã”, contrapõem-se a Hegel dizendo que a consciência é
um produto social, sendo o desenvolvimento das forças produtivas e a massa revolucionária,
que se revolta contra a produção de vida vigente, os elementos materiais para uma subversão
total. Afirmam que toda classe que aspira à dominação deve conquistar primeiro o poder
político para apresentar seu interesse como interesse geral. Apresentam o materialismo
histórico, no qual o trabalho determina as relações do homem com o mundo e é a essência do
próprio homem, o que o diferencia dos outros animais. O homem se define pela produção
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social e as idéias estão ligadas às condições de produção. Neste importante trabalho, definem
os fundamentos para a história enquanto ciência, com bases materiais (p. 37 e ss.).
Em “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Marx (1986) realiza concretamente o
exercício de sua proposta metodológica para análise da história. Parte da verificação empírica,
pois analisa historicamente indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida,
visando a totalidade, partindo das condições materiais. Através do conceito de luta de classes,
analisa a política, o social, a ideologia. Procura analisar a história não a partir de heróis, mas
da luta de classes, o que o distancia da historiografia de então. Contrapondo-se a Hegel, para
quem fatos importantes ocorreriam na história duas vezes, afirma categoricamente que a
história não se repete, ironizando: na primeira vez apresenta-se como tragédia e na segunda
como farsa. Analisando concretamente a luta de classes, apresenta a primeira luta
revolucionária do proletariado contra a burguesia, demonstrando a correlação de forças entre
as classes sociais.
Cardoso (1979) esclarece que até o início do século XX, a História era considerada
como a ciência, disciplina ou arte, cuja finalidade seria o relato do passado, das figuras
ilustres e dos grandes feitos. Entretanto, a partir das primeiras décadas do século XX, um
movimento historiográfico, através da Escola dos Annales, fundamenta uma história
problematizada, considerando a História como a ciência das transformações das sociedades
humanas no tempo. Assim, a História deixa de ser vista como uma sistematização de datas e
fatos, tornando-se uma interpretação dos problemas passados que esclarecem o presente, ao
mesmo tempo em que busca novas abordagens historiográficas e critica as práticas
positivistas do século XIX.
Kossoy (1989) adverte que a objetividade positivista creditada à fotografia tornou-se
uma instituição, apoiada na aparência:
A informação visual do fato representado na imagem fotográfica nunca é posta em dúvida. Sua fidedignidade é em geral aceita a priori, e isto decorre do privilegiado grau de credibilidade de que a fotografia sempre foi merecedora desde seu advento. (...) [Niewenglowski, no início do século] Ao se referir às “sciencias históricas”, exalta o autor o “caráter de realidade e de exatidão” das imagens fotográficas: instrumentos pelos quais “ se poderá fazer a reconstituição real da
história moderna”. (p.69)
A utilização do documento escrito, enquanto uma “fotografia da realidade”, revela
uma concepção positivista característica da concepção historiográfica predominante no século
XIX. Nesta concepção, o papel do historiador era revelar os fatos brutos, como se o
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documento falasse por si enquanto um testemunho “ocular” da história, o que para a
concepção positivista garantiria a objetividade. Sobretudo usando documentos oficiais, o
sentido do documento era mantido como forma de legitimação científica, bastando apenas
verificar a sua autenticidade através da crítica externa documental, não procedendo à sua
crítica interna. Entretanto, é necessário perceber que cada assunto requer uma fonte de
natureza diferente. As fontes só “falam” quando sabemos lhes fazer as perguntas de forma
adequada. Atualmente, a partir de abordagens como a História das Mentalidades, a História
Cultural e a História Social são utilizados todos os vestígios que possam ampliar a
compreensão dos fatos, sejam documentos escritos ou relatos orais, iconografia (fotografia,
obras de arte, caricaturas, charges ...), letras de música, lápides de túmulos e etc..
A própria historiografia da educação, segundo Kuhlmann (1997), tem buscado
ultrapassar a tradição que toma como ponto de partida exclusivo o interior do âmbito
educacional e escolar, vendo a educação não apenas como subordinação a uma ordem política
ou sócio-econômica, mas como elemento constitutivo da história da produção e reprodução da
vida social. Nesse sentido, a história passa a ter uma dimensão significativa na perspectiva de
alargamento de horizontes, perceptível com o aprofundamento das pesquisas. Em nosso caso,
tornando-se fundamental o conhecimento das representações sobre os trabalhadores, para
considerá-lo em sua concretude, inseridos nas relações sociais, reconhecendo-os como
produtores da história, como sujeitos históricos, reconhecidos, na sua materialidade, no seu
nascer, no seu viver ou morrer, e que na história se fazem presentes, nos mais diferentes
momentos.
A reconstrução do passado, pelo historiador, não ocorre a partir dos fatos “por si”,
adicionando uns aos outros como a desfiar as contas de um rosário, estabelecendo nexos
causais, tal qual fazia o historicismo. Não é possível ao historiador conhecer o passado como
de fato ele foi, ele deve “apropriar-se de uma reminiscência tal como ela relampeja num
momento de perigo” (Benjamin, 1995, p.224). Isto tem relação com questões do próprio
presente que fazem o historiador buscar o que embrionariamente já estava no passado, numa
visão de tempo saturado de agoras, rompendo, desta forma, com a visão de linearidade da
história e de um tempo homogêneo e vazio, peculiar do historicismo. O passado só faz sentido
se visto a partir de questões do presente, que o historiador busca enquanto mônada, enquanto
origem. No caso da fonte fotográfica, ela deve ser vista no seu contexto,
nas condições de sua produção, com suas mediações culturais, políticas, econômicas e tecnológicas. E o objeto fotográfico, ele
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próprio, como memória, como documento e monumento, é mediação histórica, processo social complexo, síntese de múltiplas determinações (Ciavatta, 2002, 72).
Uma importante contribuição ao nosso trabalho é a noção de paradigma indiciário.
Segundo o historiador Carlo Ginzburg (1987a), o crítico de arte Morelli desenvolveu essa
noção, no final do século XIX, para que se pudesse realizar a identificação da autoria de
quadros de mestres da pintura. Segundo Morelli, havia a necessidade de um novo método para
a atribuição da autoria a quadros antigos, pois os museus encontravam-se repletos de quadros
com autoria atribuída de maneira incorreta. Para ele, esse método consistia em se examinar os
pormenores, a princípio negligenciáveis e, portanto, menos influenciados pelas características
da Escola a que o pintor pertencia. Eram os detalhes, como as unhas, os lóbulos das orelhas,
as formas dos dedos das mãos e dos pés, que permitiam que ele definisse a autoria correta (op.
cit.,144). Ginzburg resgata as histórias de Arthur Conan Doyle e de seu famoso personagem
Sherlock Holmes: seria essa “a proposta de um método interpretativo, centrado sobre
resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores” (ibid., 149). Ao reconstituir as
experiências do moleiro Menochio na Itália do século XVI e ao analisar os processos
instaurados pela Inquisição contra ele, em “O queijo e os vermes” (1987), usa este
“paradigma indiciário”.
Mauad Essus (1993) propõe uma análise histórico-semiótica. Tal desafio, segundo a
autora, impõe a tarefa de desvendar uma intrincada rede de significações, onde seus elementos
- homens e signos - interagem dialeticamente na composição da realidade. Uma realidade que
se formula a partir do trabalho de homens como produtores e consumidores de signos; um
trabalho cultural, cuja compreensão é fundamental para se operar sobre esta mesma realidade.
Ainda segundo a autora, o procedimento adequado que analisa a fotografia como
uma mensagem, composta por um sistema de signos não-verbais, deve, acima de tudo,
compreender a sua estrutura de significação, ou seja, a distinção entre o plano da forma do
conteúdo e plano da forma da expressão, presente também na linguagem cinematográfica e
nas artes plásticas.
No caso da análise da mensagem fotográfica, afirma que a detida avaliação do plano
da forma da expressão é tão importante quanto a análise dos elementos que integram o plano
da forma do conteúdo. Por plano da forma da expressão compreendem-se as opções técnicas e
estéticas na construção da imagem: tamanho, formato, suporte (na foto impressa estabelecer a
relação com o texto escrito), tipo da foto (instantânea ou posada), o sentido da foto, sua
direção, distribuição dos planos, objeto central, arranjo e equilíbrio, foco, impressão visual,
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iluminação e o produtor (amador ou profissional). Já por plano do conteúdo, compreendem-se
as opções temáticas e tudo o que delas decorrem, tais como: o local, os objetos, as pessoas, as
poses, etc. Esclarecendo-se que ambos os planos mantêm uma correspondência, por
pressuporem uma educação do olhar que é histórica. (p. 2004, p.25).
Não daremos um tratamento sistemático e estatístico de todos os detalhes dos planos
da forma de expressão e da forma de conteúdo do acervo fotográfico neste trabalho, mas
consideramos importante ter um olhar analítico voltado para as características formais da
fotografia que possam contribuir para a compreensão da sua historicidade e de seu
significado.
Temos como proposta teórico-metodológica a fotografia como fonte histórica e a
concepção de história oral que embasam a nossa pesquisa: Estaremos utilizando as seguintes
categorias de análise: totalidade (Kosik, 1976 e Ciavatta, 2001), essência e aparência (Kosik,
1976), fotografia como mediação (Ciavatta, 2000, 2001, 2004), documento/monumento (Le
Goff, 1992), lugares de memória (Nora), intertextualidade (Mauad Essus, 1992, 1993 e 2004)
(Ciavatta, 2000, 2004, 2005) e história oral (Ferreira, 1996 e Meihy, 1996).
Para o materialismo histórico,
“O concreto é concreto porque é a síntese das múltiplas determinações, isto é, unidade no diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação” (Marx, 1988, p. 16).
A realidade social pode ser apreendida em sua totalidade, visto que totalidade “é um
conjunto de fatos articulados ou o contexto de um objeto com suas múltiplas relações ou,
ainda, um todo estruturado que se desenvolve e se cria como produção social do homem”
(Ciavatta, 2001, p. 132). Kosik (1976) adverte que é preciso distinguir entre representação e
coisa, através do pensamento dialético, para chegar à “coisa em si”. Este detour é necessário
visto que no mundo da pseudocreticidade encontramos um duplo sentido: o fenômeno, ao
mesmo tempo em que em manifesta a essência, contraditoriamente a esconde. Assim
A essência, que não dá imediatamente à compreensão, é mediata ao fenômeno. Embora a realidade seja a unidade da essência e aparência, a essência se manifesta em algo diferente do que é. Neste sentido, conhecer um objeto é revelar sua estrutura social. Esta é a via de construção do objeto. (Ciavatta, 2001, p.140)
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Embora o termo mediação frequentemente seja utilizado como sinônimo de meio,
estaremos considerando esta categoria como
as relações articuladas que são reconstruídas em nível de conhecimento histórico, dentro de determinada totalidade social que faz parte do mundo objetivo. (...) A mediação é, assim, a visão historicizada do objeto singular, cujo conhecimento deve ser buscado nas suas determinações mais gerais, nos seus universais, assim como ser situada no tempo e no espaço, isto é, na sua contextualização histórica. São as determinações histórico-sociais, o campo do particular, que permitem a apreensão de um objeto à luz das determinações mais gerais (Ciavatta, 2001, p.141 e p.146).
Tomamos a fotografia como mediação visto que
A fotografia é um objeto exemplar deste “claro-escuro” de que fala Kosik (1976). Seu elemento próprio é o duplo sentido, porque o fenômeno indica a essência, mas também a esconde. A essência, que não se dá imediatamente à compreensão, é mediata ao fenômeno. Embora a realidade seja a unidade da essência e aparência, a essência se manifesta em algo diferente do que é. Neste sentido, conhecer um objeto é revelar sua estrutura social. (Ciavatta, 2004, p.45).
Do ponto de vista das fontes documentais, o monumento, testemunho do passado, em
geral ligado ao poder, pretende passar testemunhos, não escritos, às gerações futuras. O
documento, em geral escrito, tem caráter de prova histórica. No entanto, Le Goff (1992)
mostra como se altera esta concepção de documento para a historiografia no século XX.
Principalmente a partir dos trabalhos em história quantitativa, a própria concepção do que se
considera como documento se altera, bem como a sua relação com outras fontes documentais.
Sendo uma modificação de caráter quantitativo e qualitativo, o documento não tem mais
importância isolada, sua importância reside na sua relação com outros documentos e no
processo de sua produção social. Assim todo documento é monumento.
No que diz respeito à fotografia
Implica também o seu tratamento enquanto monumento, ou seja, a análise de sua condição inevitável de construção histórica destinada à perpetuação de alguma memória, do ponto de vista do grupo social que produziu e/ou apropriou-se das fotos. Se, por um lado, a fotografia possui um caráter informativo, ela sempre é, simultaneamente, uma recriação da realidade conforme a visão particular do grupo social que a produz (Ciavatta, 2004, p.44).
Ainda
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A fotografia é vista nas condições de sua produção, com suas mediações culturais, políticas, econômicas e tecnológicas. E o objeto fotográfico, ele próprio, como memória, como documento e monumento, é mediação histórica, processo social complexo, síntese de múltiplas determinações (Ciavatta, 2002:72).
Outro importante conceito para nossa pesquisa é a reflexão de Nora (1984) sobre “os
lugares de memória” que são sinais de reconhecimento e de pertencimento a um grupo numa
sociedade onde a aceleração da história no mundo atual faz com que o passado seja
descartado cada vez mais rapidamente, considerando, portanto, os arquivos, as bibliotecas, os
dicionários, os museus, cemitérios e coleções, assim como as comemorações, as festas, os
museus, santuários, associações, testemunhos de um outro tempo.
A noção de um tempo acelerado, em que o presente é vivido como efêmero e logo se
torna passado, com tendência ao absoluto esquecimento, gera curiosidade por lugares onde a
memória se cristaliza. Na afirmação de Nora (1993),
Os lugares de memória são, antes de tudo restos (...). É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção (...). Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações são marcos testemunhais de uma outra era, das ilusões da eternidade (...) sinais de reconhecimento e de pertencimento de um grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos. (p.13)
Na medida em que a memória coletiva (Halbwachs, 1990) é um fenômeno social, ela
não está dada a priori, mas é uma construção dos sujeitos. Por isso, para Nora, os lugares de
memória não são absolutamente espontâneos e conseqüentemente há a necessidade de criar
arquivos, celebrar aniversários, organizar comemorações. Se não houvesse as celebrações
como um ato consciente da memória coletiva, as mesmas não fariam sentido para a história e
simplesmente não haveria razão para a sua permanência.
Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles [os arquivos] seriam inúteis. E, se em compensação a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, salvá-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história arrancados do movimento da história, mas que não lhe são devolvidos. Não mais inteiramente à vida, nem mais inteiramente à morte, como as
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conchas da praia quando o mar se retira da memória viva. (idem, p.13)
Nora ainda questiona que quanto menos a memória é interiormente vivida como
acontecia nas sociedades tradicionais, mais se tem a necessidade de suportes exteriores, sendo
uma memória arquivística, centralidade iniciada com o documento escrito, e passa pela
informatização dos dias atuais. É o sentimento de desaparecimento rápido, combinado com a
preocupação com o real significado do presente e a incerteza do futuro que dá a um vestígio
qualquer a dignidade de memorável, pela possibilidade que poderá vir a ter.
À medida que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se tornar prova em não se sabe que tribunal da história. (idem, p.15)
Tradicionalmente, os três grandes produtores de arquivos reduziam-se às grandes
famílias, à Igreja e ao Estado, e hoje a materialização da memória descentralizou-se e
democratizou-se. Nora aprofunda este tema da relação memória-história afirmando que a
passagem da memória para a história operou em cada grupo social a necessidade de
redefinição da sua identidade a partir da revitalização de sua história.
O dever de memória faz de cada um historiador de si mesmo. O imperativo da história ultrapassou muito, assim, o círculo dos historiadores profissionais. (...) Todos os corpos constituídos, intelectuais ou não, sábios ou não, apesar das etnias e das minorias sociais, sentem a necessidade de ir em busca de sua própria constituição, de encontrar suas origens. (Nora, 1993, p.17)
Este processo obriga cada um ao ato de relembrar e a reencontrar o sentimento de
pertencimento, elemento fundamental para a construção de identidade. Como pontua Nora,
onde a memória não é mais vivida coletivamente, mais são necessários os “homens-
particulares” que atuam como “homens-memória” (Nora, 1993, p.18).
São lugares de memória se existirem simultaneamente, ainda que em graus distintos,
três sentidos: o material, o simbólico e o funcional. Um arquivo somente se caracteriza como
um lugar de memória se o coletivo o investe simbolicamente como tal.
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[são lugares de materiais onde a memória social se ancora e pode ser apreendidda pelos sentidos; são lugares funcionais porque tem ou adquiriram a função de alicerçar memórias coletivas e são lugares simbólicos onde essa memória coletiva – vale dizer, essa identidade – se expressa e se revela, São, portanto, lugares carregados de uma vontade de memória. (Neves, 2006).
Uma importante questão que se coloca quando um grupo decide pela constituição de
um Centro de Memória diz respeito à decisão política. É preciso envolver outros integrantes
da comunidade, quer seja uma escola, um sindicato, ou outra qualquer outra instituição.
Assim, é necessária a aprovação política, formalizada inclusive, das instâncias da instituição,
além do apoio material e logístico.
Qual o projeto da instituição? Qual futuro pretende criar? O trabalho com a memória
social possibilita a formulação de projetos futuros porque permite conhecer os elementos do
passado que constituíram as circunstâncias do presente e, tomando consciência do presente,
questionar-se sobre aonde se quer chegar (Velho, 1988).
Portanto, projeto e memória social estão imbricados e dão significado à vida dos
sujeitos e, dessa forma, estão relacionados à constituição da identidade social. A memória é
constituinte da própria identidade, quer seja individual ou coletiva, sendo fundamental no
sentido de continuidade e de coerência de um grupo na reconstrução de si. Tanto a memória
quanto a identidade são valores disputados em conflitos sociais que opõem grupos diversos,
inclusive os familiares (Pollak, 1992).
A documentação arquivística de uma instituição é produzida no decorrer de suas
atividades diárias. Pode estar organizada ou não. Pode ser um amontoado sem forma e
ininteligível, chamado pelos arquivistas “massa documental acumulada” (Belloto, 2002,
p.11). Os arquivos correntes ou administrativos contêm o conjunto de documentos em uso ou
de uso freqüente. Quando estes documentos precisam, por razões administrativas ou jurídicas,
ser guardados por mais tempo, devem passar por um processo de avaliação e mantidos em
arquivos permanentes.
Em geral ocorre nas mais diferentes instituições serem relegados sem tratamento e sem
seleção aos “arquivos mortos” – expressão não correta e não condizente com a tarefa que lhes
cabe, a de arquivo permanente – ou simplesmente são eliminados sem qualquer critério. Isto
ocorre, muitas vezes, apenas por falta de espaço físico e de pessoas que tenham conhecimento
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e/ou preocupação com a questão da memória: são considerados papéis/livros velhos que
ocupam espaço e juntam poeira.
No Centro de Memória do Sintuperj, procedemos ao inventário físico das fotografias
do acervo. Realizamos um mapeamento temático das fotografias do acervo que foi usado para
classificar as fotos. O acervo documental contém ainda atas de congressos, de reuniões de
diretoria, de assembléias, do Conselho Universitário e de reuniões nos locais de trabalho;
ofícios; jornais do Sindicato, jornais de grande circulação; boletins institucionais sobre saúde
do trabalhador (Uerj), boletins institucionais (Uerj); cartilhas; charges; camisas e letras de
músicas produzidas pelo movimento dos trabalhadores. Trata-se de uma importante
documentação produzida pelo Sindicato no decorrer de sua história de luta, sobretudo na
organização dos trabalhadores das universidades públicas estaduais no Rio de Janeiro.
O mesmo desafio colocado para os arquivos sindicais está colocado para os arquivos
escolares: a necessidade de criar condições para a preservação da documentação, higienizando
e acondicionando os documentos; de evitar os esquecimentos do passado ao criar códigos de
referência para os documentos e ao elaborar instrumentos eficazes de pesquisa e de dar
sentido ao presente, ao construir práticas que permitam a comparação passado/presente (Vidal
e Zaia, 2002).
Do ponto de vista metodológico, cabe ainda destacar o papel da intertextualidade, na
medida em que é necessário buscar outras visões sobre o mesmo objeto. Assim nossa
pesquisa se estenderá a jornais, atas, fontes orais que possam dar o contexto histórico-social e
cultural das fotografias, o significado que outros sujeitos sociais atribuem às representações
fotográficas.
Procedemos à organização do acervo de fotografias do Sintuperj, estabelecendo séries
já que
Evidencia-se, na produção contemporânea, como a fotografia para ser trabalhada de forma crítica, não pode ficar limitada a um simples exemplar. A noção de exemplo foi superada pela dinâmica da série, que estabelece contatos diferenciados com distintos suportes da cultura material (Mauad Essus, 2004, p. 20).
Como critério para as séries, organizamos as fotografias primeiramente por ano
e depois por categorias (greve, atos ...). Para a realização deste trabalho. Considerando o
referencial teórico exposto anteriormente, lembramos que foi fundamental o princípio da
intertextualidade, na medida em que
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... uma fotografia, para ser interpretada como texto (suporte de relações sociais), demanda o conhecimento de outros textos que a precedem ou que com ela concorrem para a produção da textualidade de uma época (Mauad Essus, 2004, p. 20).
2. História e oralidade
Muitas vezes sem acesso direto ao discurso dos sujeitos, resta ao pesquisador procurar
o que as fontes dizem sobre os grupos sociais populares e o que silencia sobre eles. Na
perspectiva de dar voz ao segmento social dos trabalhadores da Uerj, a utilização das técnicas
de história oral aliada ao trabalho com as fotografias produzidas pelo próprio movimento dos
trabalhadores é um recurso que pode permitir documentar as histórias e as experiências desse
“grupo silenciado”, de modo a captar as formas de ver, sentir e agir desses trabalhadores no
seu cotidiano, sobretudo expressos nas lutas em defesa da universidade pública e pela
implantação do Plano de Carreira (PCC).
A partir de meados da década de 1960 se torna observável o desenvolvimento do
processo de reutilização das fontes orais nos estudos históricos, aumentando
extraordinariamente o número de centros, revistas e associações que trabalham com História
Oral em muitos países, principalmente nos EUA. Neste momento, havia a idéia de que a
história oral seria uma forma de dar voz aos excluídos. Uma história engajada, militante, que
questionava seus próprios métodos e procedimentos. Embora tivesse questões em comum
com as concepções historiográficas influenciadas pela História Nova, entre os historiadores
não houve grande aceitação, principalmente na França, tendo se desenvolvido fora da
universidade, na Inglaterra principalmente, o que deixa claro o papel predominante que exerce
o documento escrito. Ferreira (1996) aponta a tensão entre acadêmicos e não-acadêmicos que
trabalham com História Oral e como esta pluralidade pode gerar um rico diálogo.
A partir da década de 1980, muitas mudanças ocorreram com relação à pesquisa em
História, como o aumento dos estudos contemporâneos, o uso da história do tempo presente, a
revalorização do papel do sujeito, das abordagens qualitativas, a valorização da historia
política e cultural, mostrando uma nova postura em relação ao uso de depoimentos, relatos e
biografias.
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Segundo Ferreira (op. cit.) a História Oral foi introduzida no Brasil nos anos 1970,
tendo uma expansão mais significativa no início dos anos 1990, através de seminários
realizados, cursos nos programas de pós-graduação em história, contatos com pesquisadores
estrangeiros e com programas de mérito reconhecido. Aponta a criação da Associação
Brasileira de História Oral (1994) e a divulgação de um boletim sobre o assunto como meios
importantes para a divulgação de grupos de trabalhos, linhas de pesquisa e acervos.
Em muitos trabalhos, as entrevistas são realizadas em associação com fontes escritas,
para corroborar alguma afirmação feita a partir da documentação escrita, numa visão ainda
positivista de uso da entrevista como “testemunho ocular”. Vale ressaltar que a História
utiliza essencialmente o documento escrito e, ainda hoje, toda a civilização sem escrita é
considerada como pré-histórica.
Segundo Ferreira, há três formas de se conceber a História Oral:
• Técnica, onde são ressaltadas as experiências com gravações, transcrições, conservação
das entrevistas, aparato que as cerca (tipos de aparelhagens de som, formas de transcrição
das fitas, modelos de organização de acervo). Geralmente são preocupações das pessoas
envolvidas na constituição e conservação de acervos orais e de cientistas sociais que
utilizam entrevistas de forma complementar.
• Disciplina, onde a História Oral é vista como uma área de estudos com objeto próprio e
capacidade de gerar no seu interior soluções teóricas para as questões surgidas na prática.
A idéia fundamental nesta concepção é que História Oral inaugurou técnicas específicas de
pesquisa, procedimentos metodológicos singulares e um conjunto próprio de conceitos
teóricos.
• Metodologia através da qual se estabelecem e se ordenam procedimentos de trabalho,
realizando uma ponte entre teoria e prática. Esta concepção é defendida por Ferreira, para
quem a História Oral não constitui disciplina, pois ainda recorre à teoria da história para
pensar conceitos como, por exemplo, a relação entre história e memória e em relação a
outras disciplinas, como à filosofia, à teoria sociológica, à teoria psicanalítica.
Alberti (1989) a define como fonte-técnica-método “(...) que privilegia a realização
de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos,
conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo”.
Ao contrário da relevância dada ao documento escrito, a História Oral tem o
testemunho oral como o núcleo da investigação. A partir disso, surgem questões não
colocadas para a concepção mais tradicional, como as relações entre escrita e oralidade,
memória e história, tradição oral e história. A História Oral possibilita esclarecer trajetórias
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individuais, eventos ou processos que às vezes não tem como serem elucidados de outra
forma. São registrados os mais diversos depoimentos: de analfabetos, de rebeldes, de
mulheres, de crianças, de miseráveis, de prisioneiros, de loucos etc. Assim sendo, a
importância da História Oral reside no fato de poder se resgatar histórias de movimentos
sociais populares e de lutas cotidianas, encobertas ou esquecidas, que muitas vezes são
versões menosprezadas pela História tradicional e oficial. Os documentos produzidos são
singulares, pois representam o resultado do diálogo entre entrevistador e entrevistado, entre
sujeito e objeto de estudo. São fontes que trazem pontos de vistas pessoais, o que traz para o
debate questões relacionadas à subjetividade, às emoções e ao cotidiano.
Embora a entrevista seja fundamental nos estudos de História Oral, nem todo estudo
que utiliza entrevistas é um estudo de história oral. O pesquisador preocupa-se com o não
dito, com todos os sinais, os silêncios, as falhas na memória, não bastando “revelar” os fatos,
mas esclarecê-los a partir da compreensão daqueles que os viveram.
A chamada história do tempo presente, após muitos debates acadêmicos, passa a ser
legitimada como objeto de pesquisa e de reflexão histórica. Até a década de 1960, via-se com
desconfiança o estudo de tempos recentes, já que para alguns historiadores a distância do
objeto no tempo garantiria um caráter de objetividade à pesquisa, pois não estariam vivendo
as experiências que estariam pesquisando.
Meihy (1990) aborda como possibilidade de uso da História Oral o levantamento das
relações entre memória coletiva e memória individual, revelando-se a história de grupos
oprimidos e informações perdidas. Também podemos destacar a produção de um documento
intencional; a reconstituição da História, desvendando jogos de ideologias e considerando
também aspectos subjetivos; o estudo contemporâneo; a ampliação dos estudos em áreas
marginalizadas, em que predominam zonas de obscuridade, tanto no estudo de elites como no
de massas.
O objeto de estudo da História Oral é recuperado e recriado por intermédio da
memória dos informantes, o que traz desdobramentos teóricos e metodológicos. Segundo
Rousso (1996), toda memória é coletiva, como sugere Halbwachs, tendo como atributo
imediato a garantia da continuidade, permitindo resistir ao tempo que muda, às rupturas. É,
portanto, o elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros. Considera como
memória coletiva as representações do passado que apresentam um caráter repetitivo e
recorrente, aceitas dentro ou fora do grupo. Halbwachs (1990), apud Kensky (1995), salienta
que o momento presente não pode ser considerado como um momento totalmente original,
mas como reconstrução individual permanente de tudo o que vivemos e aprendemos no
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decurso de nossas vidas. Para ele, portanto, “cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva”, servindo a memória coletiva para legitimar a prevalência de um
determinado grupo que impõe a história, a cultura e a própria memória aos que não estão no
poder.
Voldman (1996) salienta que o não-dito, a hesitação, o silêncio, a repetição
desnecessária, o lapso, a divagação e a associação de idéias são elementos integrantes e
estruturantes do discurso do informante. Ele tem consciência de ter uma mensagem a
comunicar e fala apropriando-se do passado do grupo, selecionando as lembranças de modo a
minimizar os choques, as tensões e os conflitos internos das organizações sociais, ou ao
contrário, reforçando estas tensões, o que requer uma comparação entre os depoimentos. Na
verdade, o sujeito procede a uma redescoberta da sua própria identidade, na medida em que
vai remexendo em sua memória. Neste sentindo, Janotti (1988) afirma que para o depoente o
relato de vida é um esforço de construção de sua identidade. Ao contar sua trajetória e expor
suas opiniões, ao conferir sentidos aos gestos, o depoente se torna sujeito dos seus próprios
atos e percebe seu papel singular na totalidade social em que está inserido. É no quadro de sua
personalidade, ou de sua vida pessoal, que as recordações tomam sentido, relacionam-se com
outras recordações e delas se distinguem. Ressalta ainda que a periodização das
rememorações é balizada em geral pela labuta em prol da sobrevivência e os entrevistados
vão mostrando insensibilidade aos grandes acontecimentos que marcam a vida dos povos. No
caso de famílias negras, objeto de sua pesquisa, os depoentes não se referem aos
acontecimentos políticos da história do país, sendo os marcos referenciais a infância, a
mocidade e a velhice. Queiroz (1988) afirma que toda lembrança pertence simultaneamente
ao passado e ao presente, mas é este último que a modifica, já que são as exigências e
necessidades do presente que direcionam a reconstrução do passado. Mostra que a memória
não se transmite de forma linear, já que o tempo, o tipo de vida de cada um, a inserção em
diferentes grupos sociais interferem na visão do passado.
Sinson (s.d.) distingue o uso da História Oral por historiadores e sociólogos: os
primeiros realizam uma coleta livre, solicitando ao depoente que conte sua história de vida,
não o interrompendo, tendo como centro de interesse o próprio indivíduo na historia, sua
trajetória desde a infância até o momento em que fala, passando pelos diversos
acontecimentos e conjunturas que presenciou, vivenciou ou que se inteirou Afirma que esta
forma torna difícil a tarefa de organizar e interpretar os dados. Os sociólogos interessam-se
pelas versões do fato, solicitando a história do informante sob um tema específico, recortado a
partir do seu objetivo, versando especificamente sobre a sua participação no tema escolhido
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como objeto principal. Esse depoimento é subjetivo, tendo em vista que o depoente tem os
olhos do presente sobre o seu próprio passado, construído pelo entrevistado. O entrevistador
constrói o roteiro da entrevista, onde propõe questões a serem abordadas.
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Capítulo 4 - RECONSTRUINDO AS LUTAS DO SINTUPERJ ATRAVÉS DA MEMÓRIA
FOTOGRÁFICA
1. Estrutura e organização do Sintuperj: da experiência associativa-assistencial à construção
de um sindicato de luta, pela base
Boa parte da identidade de luta que o Sintuperj tem consolidada hoje, tem seu início
nos meados dos anos 90, quando o Movimento de Valorização do Servidor (Mova-se),
organizado por novos concursados da Uerj e antigos militantes, ganha a direção da Asuerj. A
crítica que se fazia e que conduziu à vitória do novo grupo era que, além de não organizar a
luta dos técnico-administrativos, buscava uma política de “alianças” com a Reitoria,
usufruindo, em contra partida, de benesses institucionais.
O Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais no Estado do Rio
de Janeiro (Sintuperj), Sindicato fundado em 2000, é fruto da incorporação de três
associações: inicialmente Associação dos Servidores da Uerj (Asuerj), fundada em 1983, e
Associação dos Servidores do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Ashupe), fundada em
1963 e, posteriormente, a Associação dos Servidores da Fundação Estadual Norte Fluminense
(Asfernorte). Com uma experiência associativa de caráter assistencial, o papel destas
entidades foi principalmente a partir de meados da década de 90, transformando-se para uma
atuação mais combativa frente aos Governos e Reitorias, ainda que as duas principais
entidades Asuerj e Ashupe vivessem experiências organizativas e políticas bem distintas.
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Mesmo com estas peculiaridades, foi possível discutir internamente às entidades e
junto com a categoria a necessidade de unificação dos trabalhadores numa única entidade que
tivesse um perfil sindical.
Desta forma, as associações Asuerj e Ashupe, através de novas direções, foram
modificando o seu papel associativo-assistencialista - priorizando o oferecimento de cestas
básicas, cestas de natal, festas, café da manhã, empréstimos, sorteio de carros etc. - para um
perfil mais formativo, organizativo e reivindicatório, questionando o não cumprimento de
direitos, bem como as condições de trabalho e de sobrevivência dos trabalhadores.
Ao longo de muitas lutas em defesa da universidade pública e por melhores condições
de trabalho, obtivemos muitas vitórias. De 1995 para cá, reconquistamos cerca de 80% de
perdas salariais, buscando nunca deixar de fora os aposentados, a melhoria de bolsas
estudantis, parte do orçamento da universidade e um nível crítico de consciência em relação
aos Governos e Reitorias que se sucederam. Isto, numa conjuntura adversa em que a maioria
das categorias de servidores públicos das esferas municipal, estadual e federal não obtiveram
recomposição salarial.
A Asuerj e Ashupe, durante o período de transição, existiram formalmente, porém o
papel político e jurídico destas entidades foi sendo transferido progressivamente para o
Sintuperj, inclusive com a passagem da rubrica de desconto dos seus antigos associados para
o Sindicato (juridicamente as três entidades - Sintuperj, Asuerj e Ashupe - co-existiram). A
Asfenorte manteve-se devido a compromissos que não tinham como encerrar (plano de saúde,
por exemplo). Estruturalmente o Sindicato possui uma Diretoria Executiva colegiada (com 3
coordenadores gerais) e duas Delegacias Sindicais (Hupe e Uenf) de mesmo perfil.
O Sindicato foi concebido inicialmente como Sintuerj (Sindicato dos Trabalhadores
em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), tendo como base sindical apenas
os trabalhadores da Uerj e toda a discussão com a categoria da Uerj esteve centrada neste
nome (com o qual inclusive foi solicitado o registro sindical junto ao Ministério do Trabalho).
No seu processo de criação e consolidação, foram muitas as disputas em torno do
Sindicato. Costa, em entrevista, relata uma das situações mais ardilosas que envolveram a
criação e o perfil do sindicato.
Enquanto as Associações Asuerj e Ashupe procediam a todo o processo de criação do Sintuerj junto à categoria da Uerj, através de discussões coletivas nas assembléias conjuntas, reuniões setoriais e a realização de um plebiscito, organizados conjuntamente pela Asuerj e Ashupe, uma antiga diretora da Asuerj registrou um sindicato de mesmo nome Sintuerj, criado de forma cartorial e oportunista,
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inclusive com a assinatura de ocupantes de cargos comissionados da então Reitora Nilcéa Freire. (Costa, 2005)
Não coincidentemente este sindicato cartorial conseguiu obter com a Cut/RJ a sua
filiação por afinidades políticas junto ao PT, em especial à corrente Articulação, mesmo
estando a Cut/RJ acompanhando todo o processo de construção, pela base, do Sindicato e da
incorporação das associações que lhe deram origem.
A princípio isto seria facilmente contornado na medida em que o Sindicato já era
filiado à Federação dos Sindicatos de Trabalhadores das Universidades Brasileiras
(Fasubra)35, federação esta filiada à Cut/Nacional e que também acompanhou o paulatino
processo de construção, pela base, do Sindicato.
Leão, em entrevista, descreve como o processo avançou em decorrência de um
impasse político e jurídico.
(...) a direção do processo de constituição do Sintuerj (com base na Uerj) avançou na perspectiva de um sindicato de base estadual, vislumbrando não apenas organizar os trabalhadores da Uerj, mas também da Uenf (Universidade Estadual do Norte Fluminense) e de todas as Universidades Públicas Estaduais que surgissem futuramente. (Leão, 2005)
Desta forma, é discutida e aprovada a entrada dos companheiros da Uenf para a base
do Sindicato, na Estatuinte de 2000 (que passou a ser a data de fundação do Sintuperj). Neste
momento o nome do Sindicato precisava ser modificado para expressar sua nova composição
e a ampliação da base territorial para todo o estado do Rio de Janeiro36. É na Estatuinte de
2000 diante desta nova realidade que o Sindicato para a se chamar Sindicato dos
Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais no Estado do Rio de Janeiro – Sintuperj
– com data de fundação Outubro de 200037.
Como, àquela altura, o Sindicato fazia parte da base da Cut, seja por deliberação de
sua categoria ou por extensão da filiação à Fasubra, foi necessário discutir junto à
Cut/Nacional este paradoxo da filiação de um sindicato claramente cartorial em contraposição
a um sindicato criado na base a partir da fusão das entidades associativas que já atuavam
politicamente em conjunto e que pautaram tal construção de forma coletiva e pela base. Era
35 Segundo Leão (2005), em entrevista, cerca de 800 delegados presentes ao congresso da Fasubra aprovaram por aclamação a filiação do Sintuperj àquela federação. 36 Entrevistas com Jorge Henrique Leão, novembro de 2005 e Perciliana Costa Rodrigues, novembro de 2005. 37 Ata do Congresso Estatuinte do Sintuperj, 2000.
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necessário discutir não apenas o processo de filiação do Sintuperj como era necessário
discutir o processo de desfiliação do sindicato cartorial ainda que este, notoriamente, não
existisse na prática38.
O Sintuperj solicitou uma reunião com o então Secretário de Organização Nacional da
Cut para demonstrar documentalmente, através de ofícios, jornais, fotografias que não se
tratava de um racha na base do sindicato, informação que fora repassada, mas que havia uma
construção de um novo sindicato com a categoria e que houve um “equívoco” político da
Cut/RJ ao filiar o sindicato cartorial.
Todo este paulatino e duro processo organizativo foi acompanhado pela Fasubra,
principalmente por Agnaldo Fernandes/RJ, então Coordenador Geral e Antônio Alves/SP,
então Coordenador das Universidade Estaduais. Estes diretores, destacados pela Fasubra para
acompanhar o processo de criação do Sindicato, foram companheiros importantes no
acompanhamento da discussão interna de formação do sindicato, posto que as direções das
associações viviam realidades distintas, com experiências distintas politicamente. Além disso
contribuíram na discussão junto à Cut/Nacional para dirimir as “dúvidas” com relação à
representatividade sindical.
Com a mudança do nome de Sintuerj para Sintuperj nós solicitamos um novo registro
sindical. Este foi negado pelo Ministério do Trabalho sob o argumento de que funcionários de
universidades públicas estatuais não constituem categoria. No entender burocrático do
Ministério nossa categoria seria a de funcionários públicos.
Entretanto, um grupo de opositores do Sintuperj achou neste argumento formal a
tentativa de ofuscar politicamente o Sintuperj que desde o seu nascimento pautou-se vitorioso
na luta em defesa dos trabalhadores das universidades públicas estaduais e delas próprias.
Em outra tentativa, surgiu o anúncio, colocado em uma faixa, da criação de uma outra
associação (AssertaUerj), tentando confundir a categoria. Esta associação nunca apareceu na
prática.
Esta questão do registro sindical pode ser analisada por dois aspectos. Primeiro, do
ponto de vista jurídico-burocrático. Outro, do ponto de vista da organização da categoria.
Do ponto de vista jurídico-burocrático: A atribuição da Secretaria de Relações de
Trabalho é o de registrar os sindicatos ao invés de “reconhecer” se estes existem ou não, como
vem ocorrendo de forma autoritária e deliberada. 38 João Felício, então presidente nacional da Cut, esteve na Universidade a convite do sindicato cartorial para evento com a categoria. Tal fato foi veementemente denunciado junto à categoria, junto às demais entidades sindicais locais e nacionais como uma tentativa de manipulação em torno da legitimação do sindicato cartorial.
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A Secretaria de Relações de Trabalho, tanto no Governo Fernando Henrique Cardoso,
quanto no Governo Lula, vem exacerbando as suas funções legais (do nosso ponto de vista, de
forma inconstitucional), ao tentar limitar o registro de diversos sindicatos, com o argumento
de que não constituem “categoria”. Exemplo mais cabal é o do Andes-SN, mesmo tendo sido
consagrada na Constituição de 1988 a livre organização sindical, é publicamente conhecida a
dificuldade que o Andes-Sindicato Nacional vem encontrando política e juridicamente para
fazer valer este preceito constitucional. Não por acaso, pois trata-se de um Sindicato que
pauta sua luta na defesa do serviço público de forma firme e vigorosa. Para o Sintuperj, o
Andes-SN é um referencial importante, principalmente por tratar-se de um sindicato nacional,
em geral mais avançado em suas proposições políticas do que a própria Fasubra. O Ministério
do Trabalho exacerba a sua tarefa de registro já que a livre organização dos trabalhadores está
garantida na Constituição Federal de 1988.
Esta ação arbitrária tem origem no controle do Estado sobre a organização dos
trabalhadores, presente na ação política a partir do Governo Getúlio Vargas. Um dos
argumentos utilizados para a negação do registro sindical é que nós somos servidores públicos
e deveríamos nos organizar nesta “categoria”.
Do ponto de vista da organização da categoria: a construção do Sintuperj visa o
fortalecimento das ações dos trabalhadores técnico-administrativos e vem sendo
gradativamente construído junto a sua base e pelas associações.
Há um eixo de ação que norteia a política do sindicato através das instâncias coletivas
como as assembléias e os congressos. As eleições são realizadas por inscrição de chapas
majoritárias.
O sindicato pertence à categoria que amadureceu e o conquistou. Sua existência só é
possível pela luta das entidades que a ele se incorporaram. Ele surge e se mantém como uma
construção histórica e coletiva.
No mês de agosto de 2005 realizou-se mais um momento muito importante e sempre
decisivo na vida sindical, a realização do V Congresso do Sindicato. O Congresso é
estatutariamente, a instância superior, aquela que define os rumos que a luta da categoria deve
seguir e instância à qual a diretoria deve estar submetida.
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Foto 1. Acervo Sintuperj. Autor: Samuel Tosta. Assunto: V Congresso do Sintuperj. Ano: 2005
Houve um investimento das últimas direções das Associações e do Sintuperj na
construção de movimentos unificados: internamente, com docentes e estudantes, e
externamente com outras categorias, como a greve histórica unificada com o Proderj.
A filiação à Cut foi efêmera. Desde o IV Congresso do Sindicato, realizado em 2003, a
categoria apontou a necessidade de desfiliação da Cut, indicando a necessidade da construção
de um outro instrumento de luta em nível nacional. Esta discussão foi sendo amadurecida,
culminando com a desfiliação no V Congresso, realizado em 2005, e aprovação da construção
da Conlutas, da qual o Sindicato vem participando desde seu início.
Portanto, após dois anos de discussões a partir da base, o V Congresso aprovou a
desfiliação da Cut e a participação na criação e consolidação da Coordenação Nacional de
Lutas (Conlutas) por entender que a Cut não está mais a serviço da classe trabalhadora, muito
ao contrário, vem seguindo cabalmente a linha política do Governo Lula, do neoliberalismo
de Terceira Via e concertação nacional.
Na prática a organização dos servidores públicos estaduais foi sempre dificultada
dentro da Cut, nas últimas gestões, mesmo a organização dos seus sindicatos filiados.
Por conta da ausência da Cut como articuladora que deveria ser do campo, alguns
sindicatos e associações de servidores públicos (cutistas e não cutistas) se organizaram em