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ro rom om o anc anc e e e e

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r or o mo mo a n ca n c eeee

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PRIMEIRA PARTE

MONTANHA DA INFÂNCIA

Um 23Dois 40Três 59Quatro 77

SEGUNDA PARTE

A CASA DA RECONCILIAÇÃO

Cinco 95Seis 112Sete 129Oito 137

TERCEIRA PARTE

INVERNO DE UM AMIGO

Nove 155Dez 169Onze 184Doze 200

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Primeira parte�

MONTANHA DA INFÂNCIA

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�UM

A aldeia de Grana ficava na ramificação de um daqueles vales,

ignorada pelos que passavam por ali como uma hipótese irrele-

vante, fechada em cima por cristas de um cinzento -ferro e em

baixo por um penhasco que dificultava o acesso. No penhasco,

as ruínas de uma torre vigiavam campos agora ao abandono.

Um caminho de terra saía da regional e subia íngreme, às cur-

vas, até à base da torre; depois de a ultrapassar tornava -se mais

plano, virava para o lado da montanha e entrava no vale a meio da

encosta, continuando quase plano. Era julho, quando seguimos

por ele, em 1984. Estavam a ceifar o feno nos prados. O vale era

mais amplo do que parecia visto de cima, com bosques dos lados

à sombra e socalcos ao sol: lá em baixo, entre os arbustos, corria

um curso de água que de vez em quando se via brilhar, e aquela

foi a primeira coisa de Grana de que gostei. Nessa época lia livros

de aventuras. Fora Mark Twain que me levara ao amor pelos rios.

Pensei que lá em baixo se podia pescar, mergulhar, nadar, dei-

tar abaixo alguns arbustos e construir uma jangada e, extasiado

com aquelas fantasias, nem reparei na povoação que aparecera a

seguir a uma curva.

– É aqui – disse a minha mãe. – Vai devagar.

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Paolo Cognetti

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O meu pai abrandou, seguindo a passo de gente. Desde que

tínhamos partido seguia docilmente as indicações dela. Voltou-

-se para a direita e para a esquerda, no meio do pó que o auto-

móvel levantava, olhando demoradamente os estábulos, os

galinheiros, as arrecadações de troncos, as ruínas queimadas ou

desmoronadas, os tratores na borda da estrada, as enfardadeiras.

Dois cães negros com um guizo ao pescoço saíram de um pátio.

Para além de algumas casas mais recentes, toda a aldeia parecia

feita da mesma pedra cinzenta da montanha, em cima dela como

um afloramento de rocha, uns antigos escombros; um pouco

mais acima pastavam as cabras.

O meu pai não disse nada. A minha mãe, que tinha desco-

berto aquele lugar por sua conta, fê -lo encostar na borda e saiu

do carro, indo em busca da dona da casa enquanto nós os dois

descarregávamos a bagagem. Um dos cães veio na nossa direção

a ladrar e o meu pai fez uma coisa que nunca o tinha visto fazer:

estendeu uma mão para o deixar farejá -la, disse -lhe umas pala-

vras meigas e acariciou -o entre as orelhas. Pelos vistos dava -se

melhor com os cães do que com os homens.

– Então? – perguntou -me, ao mesmo tempo que desprendia

os elásticos da mala. – Como te parece?

Maravilhoso, gostaria de responder. Um cheiro a feno, está-

bulo, madeira, fumo e talvez mais qualquer coisa tinha -me envol-

vido logo que saíra do carro, cheio de promessas. Mas não tinha a

certeza de ser a resposta certa e portanto disse: – Não me parece

mal, e a ti?

O meu pai encolheu os ombros. Ergueu o olhar por cima das

malas e deu uma olhadela à cabana que tínhamos à nossa frente.

Estava inclinada para um dos lados e com certeza ter -se -ia des-

moronado se não fossem os dois paus que a seguravam. Dentro

estavam empilhados fardos de feno e, por cima do feno, uma

camisa de ganga que alguém despira e esquecera.

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As Oito Montanhas

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– Eu cresci num lugar assim – disse, sem eu conseguir com-

preender se era uma recordação boa ou má.

Agarrou na pega de uma mala e tentou levantá -la, mas depois

lembrou -se de outra coisa. Olhou -me com uma ideia na cabeça

que o devia divertir muito.

– Na tua opinião, o passado pode acontecer outra vez?

– É difícil – disse, para não me comprometer. Fazia -me sem-

pre perguntas daquele género. Via em mim uma inteligência

semelhante à sua, orientada para a lógica e para a matemática, e

achava que era dever seu pô -la à prova.

–Olha aquele rio, estás a vê -lo? – disse. – Fazendo de conta

que a água é o tempo que corre e aqui onde nós estamos é o pre-

sente, de que lado pensas que esteja o futuro?

Pensei. Esta parecia fácil. Dei a resposta mais óbvia: – O futuro

é para onde vai a água, lá para baixo.

– Errado – decretou o meu pai. – Por sorte. – Depois, como

se lhe tivessem tirado um peso de cima, disse: – Hoplá! – a pala-

vra que usava quando me levantava a mim, e a primeira das duas

malas caiu no chão com estrondo.

A casa que a minha mãe tinha alugado ficava na parte alta da

aldeia, num pátio em volta de um bebedouro. Tinha sinais de

duas origens diferentes: a primeira era a das paredes, das varan-

das de larício enegrecido, do telhado de lousas cobertas de

musgo, da grande chaminé fuliginosa, e era uma origem antiga;

a segunda era apenas velha. De uma época em que, dentro de

casa, tinham sido colocadas folhas de linóleo nos pavimentos,

quadros de flores nas paredes, pendurados cacifos e posto o

lava -loiça na cozinha, tudo já bolorento e desbotado. Apenas

um objeto se destacava da mediocridade e era um fogão preto,

de ferro fundido, maciço e austero, com puxador de bronze e

quatro bocas para cozinhar. Devia ter sido recuperado de outro

lugar e de outro tempo ainda. Mas penso que tivesse agradado

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à minha mãe sobretudo aquilo que não havia, porque encon-

trara com efeito pouco mais do que uma casa vazia; pediu à

proprietária se podíamos arranjá -la a nosso gosto e ela limitou-

-se a responder: – Façam o que quiserem. – Não a alugava há

anos e com certeza não esperava alugá -la naquele verão. Tinha

modos bruscos mas não era indelicada. Julgo que se sentia

embaraçada porque estava a trabalhar no campo e não pudera

mudar de roupa. Entregou à minha mãe uma grande chave de

ferro, depois de lhe explicar qualquer coisa sobre o uso da água

quente e protestou ligeiramente antes de aceitar o envelope

que ela preparara.

O meu pai já ali não estava há um bocado. Para ele, tanto fazia

uma casa como outra, e no dia seguinte devia estar no escritório.

Saíra para a varanda a fumar, com as mãos apoiadas na grade de

madeira áspera, com os olhos nos cumes. Parecia estar a estudá-

-los para perceber por onde começar o ataque. Voltou para den-

tro depois da dona da casa se ter ido embora, poupando assim os

cumprimentos, com um humor sombrio que entretanto o inva-

dira; disse que ia comprar qualquer coisa para o almoço e que se

queria meter no carro antes da noite.

Naquela casa, depois de ele ter partido, a minha mãe mostrou

uma versão sua que eu nunca conhecera. De manhã, logo que sal-

tava da cama, trazia pauzinhos da arrecadação, amarfanhava uma

folha de jornal e raspava um fósforo no ferro áspero. Não a inco-

modava o fumo que nessa altura inundava a cozinha, nem o cober-

tor que púnhamos em cima enquanto o compartimento aquecia,

nem o leite que mais tarde tirava de uma garrafa grande e aquecia

sobre a placa quente. Para o pequeno -almoço dava -me pão tor-

rado com geleia. Lavava -me debaixo da torneira, esfregando -me

a cara, o pescoço e as orelhas, depois enxugava -me com um pano

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e mandava -me para fora: que fosse apanhar vento e sol e perdesse

aquela minha delicadeza urbana.

Naqueles dias, o rio tornou -se o meu terreno de exploração.

Havia dois limites que me era proibido ultrapassar: em cima,

uma pequena ponte de madeira, a seguir à qual as margens se

tornavam mais íngremes e se estreitavam numa garganta, e em

baixo um matagal na base do penhasco, por onde a água seguia

rumo ao fundo do vale. Era o espaço que a minha mãe conseguia

controlar da varanda de casa, mas valia por um rio inteiro. A tor-

rente vinha por ali abaixo aos saltos, no princípio, a cair numa

série de rápidos formando espuma, por entre grandes pedras

sobre as quais me estendia a observar os reflexos prateados do

fundo. Mais adiante abrandava, como se a jovem que era se tor-

nasse adulta, e formava ilhotas povoadas pelas bétulas, por onde

podia atravessar saltando para o outro lado. Ali, uma grade de

madeira formava uma barreira. Naquele ponto havia um canal e

tinha ocorrido uma derrocada, no inverno, arrastando consigo

troncos e ramos que agora apodreciam na água, mas nessa altura

eu não sabia nada dessas coisas. Para mim, era o momento da

sua vida em que o rio encontrava um obstáculo, parava e depois

seguia mais devagar. Acabava sempre por sentar -me ali, a obser-

var as algas que ondulavam logo por baixo da superfície.

Havia um rapazinho que pastoreava as vacas nos prados ao

longo da margem. Segundo a minha mãe, era o neto da dona da

nossa casa. Levava sempre um bastão amarelo, de plástico, com

o punho curvo, com o qual incitava as vacas batendo -lhes no

lombo para as fazer ir para baixo, para a erva alta. Eram sete vacas

malhadas castanhas, jovens e irrequietas. O rapaz gritava -lhes

quando seguiam por onde lhes apetecia, e havia alturas em que

corria atrás de uma ou de outra a ralhar, enquanto no regresso

subia de novo o declive e se voltava para as chamar assim: Oh, oh, oh, ou Eh, eh, eh, até que elas, contra vontade, o seguiam para o

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estábulo. No pasto, sentava -se no chão e controlava -as de cima,

talhando um pauzinho com o canivete.

– Não podes estar aí – disse -me, a única vez que me falou.

– Porquê? – perguntei.

– Pisas a erva.

– E onde é que posso estar?

– Além.

Indicou a outra margem do rio. De onde estava não via como

chegar lá, mas não queria perguntar -lhe nem pedir para passar

sobre a sua erva. Assim, entrei na água sem tirar os sapatos. Ten-

tei manter -me direito na correnteza e não mostrar nenhuma

hesitação, como se atravessar os rios fosse uma coisa de todos os

dias para mim. Atravessei, sentei -me sobre um pedregulho com

os calções encharcados e os sapatos a escorrer, mas quando me

voltei o rapaz já não estava a olhar para mim.

Passámos dias assim, ele numa margem e eu na outra, não tro-

cando sequer um olhar.

– Porque não te tornas amigo dele? – perguntou a minha mãe

uma noite diante do fogão. A casa estava impregnada da humi-

dade de muitos invernos, de maneira que acendíamos o lume

para o jantar e depois ficávamos a aquecer -nos até à hora de ir

dormir. Cada um de nós lia o seu livro e, de vez em quando, entre

uma página e outra, reavivávamos o fogo e a conversa. O grande

fogão preto ouvia -nos.

– Mas como posso fazer? – respondi. – Não sei o que lhe hei

de dizer.

– Dizes -lhe olá. Perguntas -lhe como se chama. Perguntas -lhe

como se chamam as suas vacas.

– Está bem, boa noite – disse, fingindo -me absorto na leitura.

Nas relações sociais a minha mãe estava já muito mais avançada

do que eu. Como não havia lojas na aldeia, enquanto eu explo-

rava o meu rio ela tinha descoberto o estábulo onde comprar

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leite e queijo, a horta que vendia alguns géneros de verduras e

a serração onde arranjar os troços de lenha. Chegara a acordo

também com o rapaz da leitaria, que passava de manhã e à noite

numa furgoneta para vir buscar os bidões do leite, a fim de que

lhe trouxesse pão e algumas compras. E não sei como, passada

uma semana, tinha pendurado floreiras na varanda e enchera -as

de gerânios. Agora a nossa casa reconhecia -se de longe, e já tinha

ouvido os poucos habitantes de Grana cumprimentá -la, dizendo

o seu nome.

– Seja como for, não interessa – disse, passado um minuto.

– O que é que não interessa?

– Fazer amizade. Também gosto de estar só.

– Ah, sim? – disse a minha mãe. Levantou os olhos da página

e, sem sorrir, como se fosse uma questão muito séria, perguntou:

– Tens a certeza?

De forma que decidiu ajudar -me. Nem todos pensam o

mesmo, mas a minha mãe acreditava firmemente na necessi-

dade de intervir na vida dos outros. Alguns dias depois, naquela

mesma cozinha, encontrei o rapazinho das vacas que tomava

o pequeno -almoço sentado na minha cadeira. A verdade é que o

cheirei antes de o ver, porque tinha o mesmo odor de estábulo,

feno, leite coalhado, terra húmida e fumo de lenha que desde

então para mim foi sempre o cheiro da montanha, e que voltei

a encontrar em algumas montanhas do mundo. Chamava -se

Bruno Guglielmina. O sobrenome era o de todas as pessoas de

Grana, fez questão de explicar, mas o nome Bruno só ele é que

tinha. Era poucos meses mais velho do que eu, dado que nascera

em 72 mas em novembro. Devorava os biscoitos que a minha mãe

lhe dava como se nunca tivesse comido em toda a vida. A última

descoberta foi que não só eu o tinha observado, lá no pasto,

como ele me tinha observado a mim enquanto os dois fingíamos

ignorar -nos.

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– Gostas do rio, não é verdade? – perguntou -me.

– Sim.

– Sabes nadar?

– Um pouco.

– Pescar?

– Acho que não.

– Anda, vou -te mostrar uma coisa.

Disse aquilo e saltou da cadeira, eu troquei um olhar com a

minha mãe e depois corri atrás dele sem pensar duas vezes.

Bruno levou -me a um lugar que conhecia, onde o rio passava

por baixo da pequena ponte. Em voz baixa, quando chegámos à

margem, ordenou -me que estivesse calado e escondido o mais

que pudesse. Depois, debruçou -se de um rochedo, apenas o sufi-

ciente para poder espiar. Com a mão fez -me sinal que esperasse.

Enquanto esperava, observei -o: tinha cabelos de um louro cor de

cânhamo e o pescoço queimado do sol. Vestia calças de um tama-

nho que não era o seu, enroladas nos tornozelos e descaídas no

rabo, uma caricatura de homem adulto. Tinha também modos

de adulto, uma espécie de gravidade na voz e nos gestos; com um

sinal ordenou -me que fosse ter com ele e eu obedeci. Debrucei-

-me do rochedo para olhar para onde ele olhava. Não sabia o que

devia ver: um pouco atrás, o rio formava uma cascatazinha e uma

pequena poça sombria, com profundidade talvez até ao joelho.

A água movia -se à superfície, agitada pela queda da água. Nas mar-

gens acumulava -se alguma espuma e um grosso ramo encaixado

de través tinha retido erva e folhas molhadas. Aquele espetáculo

não era nada de especial, apenas água que escorria pela montanha

abaixo e, no entanto, encantava -me sempre e não sabia porquê.

Depois de observarmos a poça algum tempo, vi a superfície

abrir -se um pouco e percebi que ali dentro havia alguma coisa viva.

Uma, duas, três, quatro sombras afiladas com o focinho contra a

corrente, apenas o rabo movendo -se devagar, na horizontal. Por

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vezes um dos vultos afastava -se de repente e parava noutro ponto,

e às vezes emergia o dorso e depois voltava a desaparecer, mas sem-

pre voltado na direção da pequena cascata. Estávamos a jusante

delas em relação ao rio e por isso não nos tinham ainda visto.

– São trutas? – sussurrei.

– Peixes – disse Bruno.

– E estão sempre ali?

– Nem sempre. Às vezes mudam de buraco.

– Mas o que estão a fazer?

– A caçar – respondeu ele, para quem a coisa parecia perfei-

tamente natural. Eu, por meu lado, estava a aprender naquele

momento. Sempre tinha pensado que um peixe nadasse ao cor-

rer da água, como seria mais fácil, e não que gastasse as suas for-

ças a resistir contra a corrente. As trutas moviam os rabos apenas

o suficiente para permanecerem imóveis. Gostaria de saber o

que caçavam. Talvez os mosquitos que via esvoaçar à superfície

da água, como se estivessem presos a ela. Observei durante mais

um bocado a cena, tentando compreendê -la melhor, até que

Bruno se fartou de repente: pôs -se em pé e agitou os braços e de

imediato as trutas fugiram. Fui ver. Tinham fugido do centro da

poça em todas as direções. Olhei para a água e tudo o que vi foi o

cascalho branco e azul do fundo, e depois tive de deixar de olhar

para seguir Bruno, que subia a correr do outro lado do rio.

Um pouco mais acima, um edifício solitário erguia -se na mar-

gem como se fosse a casa de um guarda. Estava em ruínas entre

as urtigas, as silvas de framboesas, os ninhos das vespas que seca-

vam ao sol. Naquela aldeia havia muitas casas em ruínas como

aquela. Bruno apoiou as mãos sobre as paredes de pedra, onde

formavam um ângulo cheio de rachas, pulou para cima e, em dois

saltos, estava na janela do primeiro andar.

– Anda! – disse, debruçando -se lá de cima. No entanto, depois

esqueceu -se de esperar por mim, talvez porque não lhe parecia

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nada difícil, ou porque não lhe passava pela cabeça que eu pre-

cisasse de ajuda, ou apenas porque estava habituado assim, que

sendo fácil ou difícil cada um se desembaraçasse sozinho. Imi-

tei -o como pude. Senti debaixo dos dedos a pedra áspera, morna,

seca. Arranhei os braços no peitoril da janela, olhei para dentro

e vi o Bruno enfiar -se por um buraco do sótão e descer por uma

escada de mão que ia dar abaixo. Creio que já tinha decidido que

eu o seguiria, fosse ele para onde fosse.

Lá em baixo, na semiobscuridade, havia um espaço subdi-

vidido por murinhos baixos em quatro divisões com o mesmo

tamanho, semelhantes a tanques. Pairava no ar um cheiro a

bolor e madeira podre. À medida que os olhos se habituavam

ao escuro, vi que o pavimento estava coberto de latas, garrafas,

jornais velhos, camisas reduzidas a farrapos, sapatos sem sola,

bocados de ferramentas enferrujados. Bruno estava debruçado

sobre uma pedra macia, branca, com a forma de uma roda, poi-

sada num canto do compartimento.

– O que é? – perguntei.

– A mó – disse. Depois acrescentou: – A pedra do moinho.

Inclinei -me junto dele para olhar. Sabia o que era uma mó,

mas nunca vira nenhuma com os meus próprios olhos. Estendi

uma mão. Aquela pedra era fria, escorregadia, e no buraco cen-

tral formara -se musgo que ficava nas polpas dos dedos como

uma lama verde. Senti os braços a arder por causa dos arranhões

anteriores.

– Devemos pô -la em pé – disse Bruno.

– Porquê?

– Para poder rolar.

– Mas para onde?

– Como para onde? Para baixo, claro!

Abanei a cabeça porque não compreendia. Bruno explicou-

-me com paciência: – Pomo -la em pé. Empurramo -la para fora.

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E depois fazemo -la rolar para o rio. Assim os peixes saltam da

água e nós comemo -los.

A ideia pareceu -me de repente exagerada e irrealizável.

Aquela pedra era demasiado pesada para nós os dois. Mas era tão

fascinante imaginá -la a rolar por ali baixo e tão belo imaginar-

-nos capazes disso, que decidi não levantar objeções. Alguém

já devia ter tentado, porque por baixo da mó, entre a pedra e o

pavimento, tinham sido enfiadas duas cunhas de lenhador. Eram

o suficiente para levantá -la do chão. Bruno pegou num bastão

forte, o cabo de uma picareta ou de uma pá, e com uma pedra

começou a martelá -lo para dentro daquela fenda como se fosse

um prego. Quando a ponta entrou, empurrou o cabo por baixo

da pedra e travou -o com um pé.

– Agora ajuda -me – disse.

– O que devo fazer?

Pus -me ao lado dele. Devíamos fazer ambos força para

baixo, usando o peso dos nossos corpos para levantar a mó.

Assim, pendurámo -nos juntos sobre o cabo e quando os meus

pés se levantaram do chão senti, por momentos, que a pedra se

movia. Bruno tinha inventado o processo certo, e com uma ala-

vanca melhor talvez tivesse podido funcionar, mas aquela velha

madeira curvou -se sob o nosso peso, rangeu e acabou por se par-

tir de repente, fazendo -nos cair no chão. Bruno feriu -se numa

mão. Praguejou e abanou -a no ar.

– Magoaste -te? – perguntei.

– Pedra de merda – disse, chupando a ferida. – Mais tarde ou

mais cedo hei de fazer -te sair daí. – Subiu pela escadinha, desa-

pareceu lá em cima, impelido por uma fúria incontida, e pouco

depois ouvi -o saltar da janela e afastar -se a correr.

Naquela noite, na minha cama, tive dificuldade em adorme-

cer. Era a excitação que me mantinha acordado: vinha de uma

infância solitária e não estava habituado a fazer as coisas com

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ninguém. Creio que também nisso era igual ao meu pai. Mas

naquele dia experimentara qualquer coisa, uma imprevista sen-

sação de intimidade, que ao mesmo tempo me atraía e assustava,

como uma abertura sobre um território desconhecido. Para acal-

mar, procurei uma imagem na minha cabeça. Pensei no rio: na

poça, na cascata, nas trutas que abanavam o rabo para permane-

cerem paradas, nas folhas e nos raminhos que lhes passavam por

cima. E depois nas trutas que saltavam para apanhar a sua presa.

Comecei a compreender que todas as coisas, para um peixe de

rio, vinham de cima: insetos, ramos, folhas, fosse o que fosse.

Por isso olha para cima, à espera daquilo que deve aparecer. Se

o momento em que imerges num rio é o presente, pensei, então

o passado é a água que te ultrapassou, a que vai para baixo e já

não é nada para ti, enquanto o futuro é a água que vem de cima,

trazendo perigos e surpresas. O passado é a jusante, o futuro a

montante. Assim deveria ter respondido ao meu pai. Seja o que

for o destino, habita nas montanhas que temos acima da cabeça.

Depois lentamente também estes pensamentos se desvane-

ceram e fiquei à escuta. Já estava habituado aos ruídos noturnos,

podia reconhecê -los um a um. Esta, pensei, é a fonte do bebe-

douro. Este é o guizo de um cão que passeia na noite. Este é o

zumbido elétrico do único candeeiro de Grana. Interroguei -me

se Bruno, na sua cama, ouviria os mesmos ruídos. A minha mãe

voltou uma página na cozinha, enquanto o crepitar do fogão me

embalava rumo ao sono.

Durante o resto de julho não passou um dia sem que nos

encontrássemos. Ou era eu a ir ter com ele ao pasto, ou o Bruno

punha um fio em volta das suas vacas, ligava -o à bateria de um

carro e aparecia na nossa cozinha. Mais do que os biscoitos, creio

que gostava da minha mãe. Agradavam -lhe as suas atenções. Ela

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interrogava -o abertamente, sem jogos de palavras, como estava

habituada a fazer no seu trabalho, e ele respondia todo orgu-

lhoso de que a sua história interessasse a uma senhora da cidade,

tão simpática. Contou -lhe que era o mais jovem habitante de

Grana e o último rapaz da aldeia, visto que não havia outros

para chegar. O pai estava fora durante boa parte do ano, apare-

cia raramente e apenas no inverno, e logo que sentia ar de pri-

mavera partia de novo para França ou para a Suíça ou para onde

quer que encontrasse uma obra que precisasse de operários.

A mãe, em compensação, nunca saíra dali: nos campos acima das

casas tinha uma horta, um galinheiro, duas cabras, as colmeias

das abelhas; o seu único interesse era cuidar daquele pequeno

reino. Quando a descreveu compreendi de imediato quem era.

Uma mulher que já tinha visto passar, empurrando um carrinho

de mão ou levando uma enxada e um ancinho, e que se cruzava

comigo de cabeça baixa sem sequer reparar quem eu era. Ela e

Bruno viviam em casa de um tio, marido da dona da nossa casa,

proprietário de algumas pastagens e vacas leiteiras. Agora esse

tio estava na montanha com os primos mais velhos: Bruno apon-

tou da janela, de onde naquele momento só via bosques e pedre-

gulhos, e afirmou que iria ter com eles à montanha em agosto,

levando as vacas mais novas que lhe tinham ali deixado.

– À montanha? – perguntei.

– Sim, aos alpes. Sabes o que são os alpes?

Abanei a cabeça.

– E os tios são bons para ti? – interrompeu -o a minha mãe.

– Claro! – disse Bruno. – Há tanta coisa a fazer.

– Mas vais à escola?

– Sim, sim.

– Gostas?

Bruno encolheu os ombros. Não conseguia dizer que sim,

nem mesmo para ela ficar contente.

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Paolo Cognetti

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– E a tua mãe e o teu pai, dão -se bem um com o outro?

Desviou o olhar. Contraiu os lábios numa careta que podia

querer dizer não, ou talvez um pouco, ou então que não era coisa

para estar ali a discutir. Bastou à minha mãe como resposta e evi-

tou insistir, mas sabia que qualquer coisa naquela conversa não

lhe tinha agradado. Não deixaria de tentar compreender.

Quando eu e o Bruno saíamos não falávamos das nossas famí-

lias. Passeávamos pela aldeia, nunca muito longe das suas vacas

que estavam no pasto. Para nos divertirmos, explorávamos as

casas abandonadas. Em Grana havia mais do que aquelas que

pudéssemos desejar: velhos estábulos, velhos palheiros e celei-

ros, um velho armazém com prateleiras cobertas de pó e vazias,

um velho forno para o pão enegrecido pelo fumo. Por todo o

lado o mesmo lixo que tinham visto no moinho, como se durante

muito tempo, depois daqueles edifícios terem deixado de ter

uso, alguém os tivesse ocupado indevidamente e depois deixado

outra vez. Em algumas cozinhas encontravam -se ainda a mesa e o

banco, alguns pratos ou copos na despensa, a panela pendurada

sobre a lareira. Em Grana, em 1984, viviam catorze pessoas, mas

noutros tempos podiam ter sido centenas.

Um edifício dominava o centro da aldeia, mais moderno e

imponente do que as casas que havia à volta: tinha três andares

rebocados de branco, uma escada exterior, um pátio, um muro

em redor parcialmente desmoronado. Entrámos por ali, ultra-

passando o matagal que tinha invadido o pátio. No rés do chão

a porta estava apenas encostada e quando Bruno a empurrou

encontrámo -nos num átrio sombrio, com bancos e cabides de

madeira. Compreendi logo onde estávamos, talvez porque as

escolas são todas semelhantes: mas na escola de Grana atual-

mente eram criados apenas grandes coelhos cinzentos, que nos

espiavam de uma fila de gaiolas, assustados. A sala de aula agora

cheirava a palha, forragem, urina, vinho que estava a azedar.

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As Oito Montanhas

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Numa plataforma de madeira, onde outrora devia ter estado a

secretária do professor, encontravam -se alguns garrafões vazios

tombados, mas ninguém tinha tido a coragem de deitar fora o

crucifixo da parede, nem de aproveitar para lenha os bancos

empilhados ao fundo.

Foram eles que me atraíram mais do que os coelhos. Fui vê -los

de perto: eram carteiras compridas e estreitas, cada uma com

quatro buracos para tinteiro, madeira alisada por todas as mãos

que lhe tinham poisado em cima. No bordo interior, as mesmas

mãos tinham gravado letras, com uma faca ou talvez com a ponta

de um prego. Iniciais. O G de Guglielmina também lá estava.

– Sabes quem são?

– Alguns sei – disse Bruno. – Outros não os conheço, mas ouvi

falar deles.

– Mas quando foi?

– Não sei. Esta escola está fechada desde sempre.

Antes que tivesse tempo para perguntar mais alguma coisa,

ouvimos a tia do Bruno chamar. Assim acabavam as nossas aven-

turas: chegava aquele chamamento imperativo, gritado uma,

duas, três vezes, que nos apanhava estivéssemos onde estivésse-

mos. Bruno bufou. Depois despediu -se de mim e saiu a correr.

Deixava tudo a meio, um jogo, uma conversa, e naquele dia sabia

que não o voltaria a ver.

Eu, pelo contrário, fiquei mais um bocado na velha escola:

verifiquei todas as carteiras, li todas as iniciais e tentei imaginar

os nomes daqueles garotos. Depois, enquanto vasculhava, encon-

trei uma incisão mais precisa e recente. O sulco deixado pela faca

destacava -se na madeira como um corte fresco. Passei um dedo

sobre o G e sobre o B, e era impossível ter dúvidas sobre a identi-

dade do seu autor. Então liguei outras coisas que tinha visto e não

tinha compreendido nas ruínas onde Bruno me levava, e comecei

a ter a intuição de qual era a vida secreta daquela aldeia fantasma.

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�Entretanto, julho voava. A erva cortada à nossa chegada já

tinha voltado a crescer um palmo, e ao longo do estreito cami-

nho passavam os rebanhos na direção dos pastos mais altos. Via-

-os desaparecer pelo vale acima, entrando no bosque com um

barulho de cascos e chocalhos, e mais tarde voltar a aparecer já

longe, para além da linha das árvores, como bandos de pássaros

poisados no flanco da montanha. Duas noites por semana, eu

e a minha mãe fazíamos o percurso contrário, dirigindo -nos a

outra aldeia que era apenas um punhado de casas no fundo do

vale. Demorávamos meia hora para chegar lá a pé e, no fim do

carreiro, parecia que tínhamos entrado de repente na moder-

nidade. As luzes de um bar iluminavam a ponte sobre o rio, um

vaivém de automóveis percorria a estrada regional e a música

misturava -se com as vozes dos turistas sentados ao ar livre. Lá

em baixo estava mais quente e o verão era alegre e ocioso como

o verão à beira -mar. Naquelas mesas encontravam -se muitos

rapazes: fumavam, riam, às vezes eram apanhados por amigos

que passavam e seguiam de carro com eles para um bar de outro

vale. Eu e a minha mãe, pelo contrário, púnhamo -nos em fila

para o telefone de moedas. Esperávamos pela nossa vez e depois

entrávamos juntos naquela cabina transbordante de conversas.

Os meus pais despachavam -se depressa: nem sequer em casa

perdiam muito tempo a conversar e, ao ouvi -los, pareciam dois

velhos amigos a quem bastava meia frase para se entenderem.

O meu pai demorava mais tempo a falar comigo quando ela mo

passava.

– Ei, alpinista – dizia. – Como vamos? Já escalaste alguns belos

cumes?

– Ainda não. Mas estou a preparar -me.

– Bravo. E como está o teu amigo?

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– Está bem. Mas daqui a pouco tempo vai para os alpes e nunca

mais o vejo. É precisa uma hora para lá chegar.

– Bem, mas uma hora não é assim tanto! Quer dizer que vamos

ter com ele, o que achas?

– Gostava muito. Quando vens?

– Em agosto – dizia o meu pai. E antes de se despedir, acres-

centava: – Dá um beijo à mãe. E trata dela, eh? Faz com que não

se sinta só.

Eu prometia -lhe que sim, mas para mim mesmo pensava

que ele é que se devia sentir só. Imaginava -o no apartamento

de Milão, vazio e com as janelas escancaradas e o ronco dos

camiões. A minha mãe estava muito bem. Voltávamos para Grana

pelo mesmo carreiro do bosque, sobre o qual entretanto caíra a

escuridão. Ela então acendia uma tocha e dirigia -a para os pés.

O escuro não lhe metia medo nenhum. Estava tão calma que me

tranquilizava também a mim: ia seguindo os sapatos dela àquela

luz incerta e pouco depois começava a ouvi -la cantar sussur-

rando, como se fosse só para si. Se conhecia a canção, acompa-

nhava -a em voz baixa também. Os ruídos do trânsito, o rádio, as

risadas dos rapazes desvaneciam -se atrás de nós. O ar tornava-

-se mais fresco à medida que subíamos. Sabia que estava quase

a chegar um pouco antes de ver as janelas iluminadas, quando o

vento me trazia o cheiro das lareiras.

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