tânia andrea dos santos franco - de jangada rumo à cegueira

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FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE DE COIMBRA De JANGADA rumo à CEGUEIRA Narrativas em dois formatos: uma análise intersemiótica Tânia Andrea dos Santos Franco Coimbra, 2011

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  • FACULDADE DE LETRAS

    UNIVERSIDADE DE COIMBRA

    De JANGADA rumo CEGUEIRA

    Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

    Tnia Andrea dos Santos Franco

    Coimbra, 2011

  • FACULDADE DE LETRAS

    UNIVERSIDADE DE COIMBRA

    De JANGADA rumo CEGUEIRA

    Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

    Dissertao de Mestrado em Literatura de Lngua

    Portuguesa: Investigao e Ensino, apresentada

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,

    sob orientao do Professor Doutor Jos Carlos

    Seabra Pereira

    Tnia Andrea dos Santos Franco

    Coimbra, 2011

  • Aos meus pais.

    Ao Marco, meu marido e amigo.

    A mim

  • ()

    Numa qualquer manh, um qualquer ser,

    vindo de qualquer pai,

    acorda e vai.

    Vai.

    Como se cumprisse um dever.

    Cerra os dentes, alma aflita.

    Tudo grita

    Tem que ser.

    Antnio Gedeo (2004), Estrela da Manh.

  • AGRADECIMENTOS

    forte a minha crena de que h um dia em que chega o dia O dia de percorrer outros

    caminhos, seguir outros rumos, de alcanar sonhos adormecidos mas acalentados por uma

    vontade que jazia deriva de uma vida que seguiu por encruzilhadas.

    O dia chegou. De olhos abertos ou fechados, acomodei a minha bagagem, feita de temores,

    coragem e determinao, num canto de uma jangada que luta por singrar mares de correntes

    sinuosas, que nos espicaam a vontade de aperfeioarmos a destreza para sermos mais e

    melhores navegadores.

    Contrariamente ao que julgava, no estava sozinha na imensido do mar: outras jangadas

    comeam a povoar o deserto que atravesso e a brisa, se no traz o canto das sereias, faz chegar a

    espuma dos sorrisos e da cumplicidade de uma longa travessia. Da terra nunca deixou de soprar

    o vento que me envolvia com palavras capazes de enfunar as velas de uma maior garra e

    determinao em chegar a este porto.

    Percebi que, afinal, nunca estive s numa viagem que era s minha, pelo que h

    agradecimentos que no podem de forma alguma ser dispensados, sob pena de me tornar num

    navegador que, dispensando mapas, pode andar deriva e aportar em lugares desprovidos da

    beleza do ser e do saber.

    Desta feita, agradeo aos meus pais que, estando longe, sempre prestaram o seu apoio

    incondicional, ensinando-me a conjugar o verbo acreditar na primeira pessoa do Presente;

    Ao Marco, meu marido, porto sempre seguro em dias de tempestade. Obrigada por

    acreditares em mim, pelo carinho e apoio; obrigada, acima de tudo, por tornares esta viagem uma

    realidade;

    Ao lvaro, meu cunhado, por me ter fornecido as ferramentas que me possibilitaram

    captar as imagens que servem de guia a este trabalho. Obrigada pela tua disponibilidade e

    pacincia;

    Aos que sendo poucos so os melhores amigos que podia desejar, obrigada por me

    estenderem as mos abertas num sorriso capaz de fazer brilhar o sol nos dias cinzentos;

    Aos ns surgidos dos novos laos: Ana Paula Marques, astrolbio que me fazia enxergar

    para alm do horizonte e continuar a voar mais alto; ao Rui Mateus, Rosrio Palmela e

  • Andreia Loio, pela amizade sincera; Sofia Geirinhas, pelo carinho e por do longe fazer perto;

    Sandra Medeiros, pela solidariedade;

    A todos os Professores que se tornaram os mestres e faris desta viagem, muito obrigada

    por partilharem de forma to generosa, entusistica e entusiasmante os vossos saberes. Convosco

    aprendi o valor do conhecimento e do ensino;

    Ao Doutor Seabra Pereira, bssola e leme deste percurso, que sempre soube aquietar um

    esprito ansioso e por vezes angustiado. Muito obrigada por me fazer crescer em confiana e

    conhecimento.

    A viagem chegou ao fim? Chegou, mas porque estiveram a meu lado! Obrigada.

  • RESUMO

    O presente trabalho tem por objectivo proceder a uma anlise intersemitica, tendo por base

    dois romances de Jos Saramago A Jangada de Pedra e Ensaio Sobre a Cegueira e os respectivos textos flmicos, a fim de verificar o modo como a intencionalidade ideolgico-comunicativa das obras literrias foi transposta para o grande ecr, isto , o cinema.

    Em primeiro lugar, porm, e de modo a preparar o terreno para essa anlise, fazemos uma breve incurso pelo percurso literrio de Jos Saramago e, posteriormente, dedicamos algumas pginas s correlaes existentes entre a literatura e o cinema para, finalmente, dilucidarmos algumas questes que ajudem a desmistificar os juzos errneos acerca da fidelidade/infidelidade das adaptaes cinematogrficas.

    Foi-nos, pois, possvel constatar que o processo de transposio intersemitica uma tarefa nem sempre fcil, porquanto resulta de um trabalho de interpretao, conjugado com a linguagem cinematogrfica, que no descura a narrativa literria de que se apropria e o seu alvo, isto , o espectador. Desta feita, verificmos que a adaptao cinematogrfica implica, forosamente, mudanas que assegurem a (re)criao de uma histria capaz de despertar o interesse e motivao do leitor de imagens, atendendo ao respeito pela sua susceptibilidade e nvel intelectual.

    Palavras-Chave: Jos Saramago; literatura; cinema; transposio intersemitica; fidelidade/infidelidade.

    ABSTRACT

    The aim of this work is to carry out an intersemiotic analysis, based on two novels of Jos

    Saramago The Stone Raft and Blindness and their filmic texts, in order to verify how the ideological and communicative intent of the literary works has been transposed to the big screen, that is, the cinema.

    First, however, and to prepare the ground for this analysis, we make a brief foray into Jos Saramagos literary path and, subsequently, we dedicate a few pages to the existing correlations between literature and cinema, to, finally, elucidate some issues that help to demystify the misjudgments about the fidelity/infidelity of the films adaptations.

    It was, then, possible to realize that the process of intersemiotic transposition is not always an easy task, since it results from a work of interpretation, combined with the cinematographic language, that doesnt neglect the literary narrative, which it appropriates, and its target, this is the spectator. Thus, we verified that the cinematographic adaptation implies, inevitably, changes that assure the (re)creation of a story capable of awakening the interest and motivation of the images, reader, mindful of their sensitivity and intellectual level.

    Keywords: Jos Saramago; literature; cinema; intersemiotic transposition; fidelity/infidelity.

  • NDICE

    INTRODUO ............................................... 1

    CAPTULO I A ARTE DE MISTURAR TINTEIROS

    1. Saramago: fases e ciclos de um mago.... 3 2. Duas artes em atraco e interaco semitica ....... 7 2.1.Cinema na Literatura......... 7

    2.1.1. Literatura no cinema.... 12

    2.2. Atraco sem traio .. 14

    CAPTULO II UMA DERIVA DA JANGADA

    1. Artes Mgicas de pessoas comuns .. 17 1.1. Efeito Borboleta: Teoria do Inslito .. 17

    1.2. Enigmas em tela esbatida ... 19

    1.2.1. Actos fericos em aco ... 19

    1.3. A (des)ordem da escrita .. 25

    1.4. Na companhia da solido ... 26

    2. Fendas no istmo .. 29

    2.1. Uma (pen)nsula que se faz ao mar ... 29

    2.2. Geografia das fracturas e sua adaptao .. 33

    3. Jogadas de pees sobre um tabuleiro de pedra ... 37

    3.1. Soltar amarras . 37

    3.2. Jogadas ao sabor da navegao . 41

    3.3. Navegao, sem norte, rumo ao Sul .. 47

    4. Prfugos e navegantes da jangada ... 49

    4.1. Uma porta com duas sadas ... 49

    4.2. Encontro de pares e uma ponta solta do mesmo novelo .. 52

    4.2.1. Na peugada do sentido .... 52

    4.2.2. Encontro do amor, do eu e do outro .. 63

    4.2.3. Se a terra ainda treme, a viagem continua! ... 75

    4.2.4. Morte e nascimentos: uma anttese de esperana . 77

  • CAPTULO III OUTRA VISO DA CEGUEIRA

    1. Imagens que (no) passais pela retina .... 81 1.1. A cegueira: transposio de uma metfora .. 81

    1.2. mal-branco: indcios de um estado transitrio . 84

    2. A cegueira sem nome, sem espao, sem tempo ... 88

    3. As trevas da brancura num mundo de cegos .. 90

    3.1. Uma curta-metragem .... 90

    3.2. Uma longa-metragem . 92

    3.2.1. Sodoma e Gomorra .. 92

    3.2.2. Purificao e regenerao: simbiose de smbolos . 97

    3.3. Labirinto: racional e dementado ..... 101

    4. Singularidades de gneros ... 104

    5. 7- Um nmero mstico: sindoque da humanidade . 110

    CONCLUSO .. 115

    BIBLIOGRAFIA . 119

  • De JANGADA rumo CEGUEIRA Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

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    INTRODUO

    Nos dias de hoje, e depois de se ler Uma Histria da Leitura de Alberto Manguel,

    impossvel no questionar por que vias seguiu uma prtica inevitavelmente ligada a um dos

    melhores amigos do Homem: o livro.

    Mas no se estranhe que, apesar da imensa variedade e quantidade de livros, a leitura seja

    acantonada em estantes tantas vezes visitadas e revisitadas, unicamente, pelo p; afinal, vivemos

    no tempo do facilitismo, do prazer imediato, aspectos que justificam que o cinema ganhe cada

    vez mais adeptos, contrariamente ao que se verifica com o livro, esse instrumento de saber,

    prazer difcil e fuga para outros mundos.

    O que primeira vista pode parecer uma apologia do livro, serve apenas de mote para

    referir que se deve acompanhar o desenvolvimento de uma sociedade que, cada vez mais, se

    pauta pela tcnica e pela tecnologia.

    Desta feita, em vez de disputarmos a primazia da literatura sobre o cinema e condenar os

    que preferem ler os livros atravs das inebriantes artes cinematogrficas, devemos ancorar os

    nossos olhos em ambas as formas de arte e aferir o grau de afinidade que estabelecem entre si e,

    acima de tudo, analisar o modo como o cinema se apropria e transpe, do papel para a tela, obras

    literrias. Quem sabe se no vimos corroborar que a stima arte , tambm ela, uma forma

    passvel de nos fazer contactar com a literatura.

    E eis que fica exposto o propsito deste trabalho, tomando como obras literrias os dois

    romances de Saramago adaptados ao cinema A Jangada de Pedra (guio escrito por Yvete

    Biro e filme realizado por Georges Sulitzer) e Ensaio Sobre a Cegueira (guio escrito por Don

    Mckellar e filme realizado por Fernando Meirelles) , por ser precisamente a correlao

    intersemitica entre as narrativas literrias e flmicas que ocupar, respectivamente, o Captulo II

    e III.

  • De JANGADA rumo CEGUEIRA Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

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    A fim de no gorar as expectativas do leitor, alertamos, desde j, que a referida anlise no

    se pautar por toda a metalinguagem cinematogrfica capaz de dar conta de todos os processos

    adaptativos em questo, o que no se fica a dever falta de rigor, mas a um olhar consciente de

    que tal envolveria a necessidade imperiosa de outro trabalho de investigao muito mais

    minucioso.

    Um aspecto a que daremos um destaque significativo, pelo menos no que concerne obra

    A Jangada de Pedra, , indubitavelmente, linguagem musical, por ser a que tambm contribui

    para dar corpo e nfase intencionalidade ideolgico-comunicativa que se pretende transmitir.

    Nesse sentido, sero apresentadas algumas alternativas musicais que podero ser encontradas nos

    anexos em formato digital que constam do Cd* que acompanha esta dissertao, bem como

    alguns vdeos que contemplam imagens dos filmes, de modo a elucidar o leitor face s

    apreciaes que formos tecendo.

    Seria negligente dar o trabalho por concludo sem haver um captulo prvio que fornecesse

    as informaes passveis de abrir as portas para a comparao em que nos deteremos.

    Assim, no Captulo I abordaremos, as fases e ciclos da produo literria de Jos Saramago

    com o intuito de situar as duas obras que nos servem de base. Seguidamente, deter-nos-emos nos

    aspectos que possibilitaro compreender a afinidade que afinal existe entre cinema e literatura,

    sem esquecer a questo da infidelidade das adaptaes cinematogrficas.

    Est assim preparada a jangada que nos conduzir ao porto da cegueira. Mas ser com

    olhos de reparar que efectuaremos um percurso que nos permita sulcar mares feitos de pginas e

    imagens, cujas impresses ficaro registadas pelo rasto de tinta que deixaremos nas pginas que

    se seguem.

    *Estes anexos, por dizerem respeito a textos flmicos diferentes, encontram-se identificados pelas pastas A e B (A Jangada de Pedra e Ensaio sobre a Cegueira, respectivamente). Para uma correcta visualizao dos vdeos dever utilizar o programa de leitura, seguindo os seguintes passos: 1.) abrir o programa; 2.) ciclar em File; 3.) clicar em Quick Open file; 4.) clicar na pasta correspondente ao anexo (A ou B); 5.) clicar no vdeo que pretende visualizar.

  • De JANGADA rumo CEGUEIRA Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

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    CAPTULO I

    A ARTE DE MISTURAR TINTEIROS

    1. Saramago: fases e ciclos de um mago

    () agora que comecei a escrever, sinto-me como se nunca tivesse feito outra coisa ou para isto que tivesse afinal nascido.

    (Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia: 50)

    com alguma frequncia que enrugamos a testa e franzimos o sobrolho quando algum

    diz no gostar de Saramago, do prprio ou da obra, porque repudiam uma escrita que afronta as

    normas da gramtica ou porque no apreciam um discurso marcadamente poltico e atesta.

    Ora, o problema da pontuao , por de mais, um argumento gasto e oco1

    Em todo o caso, no nosso intuito proceder a um discurso encomistico que faa jus ao

    malogrado escritor Jos Saramago e que se sente nas vrias publicaes surgidas aps o seu

    falecimento. O que pretendemos destacar que quem no contacta com a obra saramaguiana

    perde a excelente oportunidade de engrandecer um esprito que se sentir abalado nas suas

    convices passando a encarar o mundo com uma perspectiva diferente e, sinceramente, menos

    optimista, por exemplo, no que toca Humanidade , ao mesmo tempo que se sentir

    deslumbrado com narrativas magnificamente entretecidas com as malhas de uma imaginao

    fabulosa, capaz de criar personagens a quem dando as mos percorremos os caminhos do ser e

    do saber. Sintetizando: Saramago possibilita-nos crescer enquanto pessoas no sentido de rever

    condutas, convices e comportamentos.

    , mas que

    juntamente com a questo poltica e religiosa se torna numa desculpa inteligente para ocultar a

    falta de apetncia para a leitura ou para desviar do caminho conducente a uma troca de ideias

    inexistentes pela dificuldade em compreender o pouco que se tentou ler.

    Se Saramago engrandece, no ser despropositado dizer que tambm saiu engrandecido

    das vrias leituras dos clssicos que foi fazendo na Biblioteca do Palcio das Galveias. Este

    contacto ter-lhe- fomentado o gosto de ser ele mesmo o criador das palavras que trouxeram a

    Nota: no decorrer deste trabalho, assumam-se como nossos os destaques feitos a negrito, salvo indicao

    contrria. Para alm disso, e para simplificar, abreviamos os ttulos de alguns romances de Saramago, a saber: MPC Manual de Pintura e Caligrafia, AJP A Jangada de Pedra e EC Ensaio Sobre a Cegueira.

    1 Concordamos com Carlos Reis (1998: 11) quando refere que a reformulao da pontuao causa engulhos a quem ainda no percebeu que ler um texto literrio (tambm) aderir a uma lgica da singularidade enunciativa que s persiste e se impe, na medida em que quem a formula detentor de um projecto literrio slido e coerente..

  • De JANGADA rumo CEGUEIRA Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

    4

    pblico o seu primeiro romance Terra do Pecado (1947)2 seguindo-se, aps dezanove anos

    de inactividade literria, a publicao de outras obras que, embora dessem a conhecer a

    genialidade do autor, a mesma s seria reconhecida muitos anos mais tarde3, aquando da

    publicao de Levantado do Cho (1980)4

    So exactamente as obras que se situam antes e depois de Levantado do Cho que

    permitem efectuar, como afirma Horcio Costa (1997: 17) na sua tese de Doutoramento, uma

    diviso extraordinariamente ntida entre a sua primeira parte, na qual o escritor se dedicou a

    explorar os mais diversos terrenos da expresso literria, e a segunda, que prossegue at

    actualidade, marcada pela publicao do ciclo de romances que afirmaram o seu nome como um

    dos mais importantes no mbito da literatura escrita em portugus em ambos os lados do

    Atlntico na segunda metade do sculo em curso [sc. XX].

    .

    Em virtude desta afirmao, no ser difcil perceber que a notoriedade e consagrao do

    escritor se ficou a dever a muitos anos de trabalho que lhe possibilitou alcanar uma escrita plena

    e consistente, ou seja, foi na sequncia de um perodo formativo5

    no decorrer desse percurso que o escritor amadurece devagar e se decide pelo romance

    (Costa, 1997: 12), gnero que elege em virtude da justificao que apresenta a Carlos Reis

    (1998) e que se pode resumir na necessidade de explicar tudo, andar volta das coisas, para

    tentar chegar o mais prximo delas, de ver mais e mais e mais e mais (pp. 92-3). A ideia com

    que ficamos que os romances de Saramago acabam por ser um espao de auto-reflexo, em que

    que conquistou o

    reconhecimento, numa segunda fase.

    2 Em entrevista concedida ao Doutor Carlos Reis (1998: 23), Saramago afirma que este romance resulta do

    surgimento de leituras mal arrumadas e mal organizadas. 3 Este reconhecimento tardio foi percepcionado por Horcio Costa (1997) quando se comeou a dedicar ao

    estudo da obra saramaguiana, ao verificar que a Biblioteca Sterling de Yale no dispunha de muito material crtico e em Portugal, em 1985, a crtica era praticamente inexistente no que respeita s obras anteriores a 1982. O prprio Saramago (1996: 104) mostrou-se consciente dessa situao, como se pode constatar pelo comentrio que tece, a respeito da defesa da tese do doutorando: () lembrei-me dele [Horcio Costa] quando almoava com alguns dos professores que participaram no jri e que, alegando que tese faltava o indispensvel suporte bibliogrfico, fizeram a vida negra ao pobre doutorando. Horcio Costa no tinha culpa de que at a ningum se tivesse interessado seriamente pelo que andei a fazer nos anos do eclipse (). Levaram tempo [os meretssimos professores] a reconhecer que o trabalho de Horcio Costa at nisso teria de ser inovador: inaugurava a bibliografia que no existia..

    4 Saliente-se que foi esta obra que fez com que o escritor se sentisse verdadeiramente escritor: Encontro-me escritor quando, de repente, a partir do Levantado do Cho, mas sobretudo a partir do Memorial do Convento, descubro que tenho leitores. E foi a existncia dos leitores (de muitos leitores) e de certo modo tambm uma presso no quantificvel, mas que eu poderia imaginar que resultava do interesse desses leitores, que me levou a continuar a escrever. (Reis, 1998: 30).

    5 Esta expresso faz parte do ttulo da Tese de Doutoramento de Horcio Costa (1997) Jos Saramago. O Perodo Formativo. O objectivo do autor consistiu em estudar a primeira fase da produo literria da obra saramaguiana por estar consciente de que a mesma foi responsvel pela maturidade literria do escritor, j que Para l do factor temporal, que indica uma fase que antecede a outra na trajectria de um escritor deve necessariamente ser considerada como formativa da subsequente (), menos devido mera contraposio entre um primeiro perodo variado, em termos genrico-literrios, e um segundo dominado pelo romance, que devido contraposio entre a qualidade literria das duas fases da obra de Saramago e principalmente entre a diferena de seu perfil como autor antes e depois de Levantado do Cho , que podemos afirmar sem sombra de dvida que aquele pode ser como um perodo formativo do segundo (p. 19).

  • De JANGADA rumo CEGUEIRA Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

    5

    a narrativa entrosada e permeada por um olhar denunciador e inquiridor na tentativa de

    encontrar respostas para um conjunto de questes que lhe povoam o pensamento (cf. Reis, 1998:

    30-1).

    Destarte, ser legtimo dizer que ao ler o romance se l o autor. Porm, no devemos

    incorrer no erro de assumir que cada romance uma autobiografia do escritor; antes, a memria

    e o sinal de uma pessoa em situao de criatividade in progress. Para prestar um melhor

    esclarecimento, atentemos no que Jos Saramago, depois de assumir que memria e romance so

    duas entidades indissociveis, refere a Carlos Reis (1998:96) aps a questo que visa aferir de

    que que o romance memria: Em primeiro lugar, [o romance] memria de mim mesmo

    (). H sempre uma participao da minha prpria memria pessoal (). Eu seria incapaz de

    escrever sem a participao da minha memria o que no significa que alimente os livros com

    factos da minha vida que ela recorda. Sou o menos biografista dos romancistas, excepo de

    Manual de Pintura e Caligrafia..

    Manual de Pintura e Caligrafia (1977) o segundo romance do escritor que surge aps um

    hiato de trinta anos. Mas no este lapso temporal ou a questo biogrfica que lhe conferem o

    valor que se lhe atribui; na verdade, a crtica literria concorda e converge para a opinio de que

    este romance importante na medida em que uma obra de transio, j que nele, Saramago,

    se abre, pela primeira vez na sua vida adulta, prosa de fico, linguagem a que se dedicaria

    maiormente desde ento (Costa, 1997: 273), para alm de que funciona como um cadinho no

    qual todo o percurso textual que o escritor acumulara at ento se reflecte (idem: 274)6

    neste sentido que esta obra pode ser e considerada como sendo um romance de

    aprendizagem e de mudana

    .

    7

    6 Neste sentido, convm salientar que neste livro, e como refere Ana Paula Arnaut (2008: 21), renem-se as

    grandes preocupaes temticas que nortearo toda a sua futura produo literria (conto, teatro, dirio e, principalmente, romance): o atesmo bastas vezes confesso, ou o repensar do papel da igreja e da religio na sociedade; o enorme empenhamento ideolgico traduzido na adopo do ponto de vista dos mais fracos e desfavorecidos ou na incisiva denncia e crtica de injustias e desumanidades de ndole e de jaez diversos; o papel de primordial importncia concedido mulher que no que respeita ao seu trnsito histrico-social quer no que se refere ao relevo que desempenhar na (in)formao e desenvolvimento afectivo, moral e ideolgico do universo masculino..

    , porquanto a escrita Durou o tempo necessrio para se acabar um

    homem e comear outro. (MPC: 308), j que esta caligrafia, este fio que constantemente se

    parte e ato debaixo da caneta e que, no obstante, a minha nica possibilidade de salvao e de

    conhecimento (idem:46).

    7 A corroborar estas caractersticas, vale a pena considerar as palavras de Ana Paula Arnaut e Maria Alzira Seixo: No por acaso, pois, a indicao genolgica da 1. edio de Manual de Pintura e Caligrafia Ensaio de Romance aponta para uma vertente marcadamente reflexiva (caracterstica do gnero ensaio) decorrente de uma procura experimental do conhecimento e dos saberes. (Arnaut, 2008: 19); () a caligrafia do ttulo (noo acadmica e pictrica de escrita, imagtica) se justifica por essa indicao de manual (), sendo o manual o volume de iniciao que no entanto [H.] s pode iniciar porque parte de um repositrio de conhecimentos adquiridos e facilitados como a narrativa de viagens a Itlia que H. nos d nos seus escritos, enstusistica e banal soma descritiva de visitas a museus que lhe do o sentido do conhecimento () (Seixo, 1999: 30).

  • De JANGADA rumo CEGUEIRA Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

    6

    Se, como referimos anteriormente, Manual de Pintura e Caligrafia funciona como um

    separador de guas na produo literria de Saramago, a partir do mesmo que Ana Paula

    Arnaut (2010) identifica os ciclos da mesma produo, partindo da anlise dos temas abordados.

    Assim, a autora aponta um primeiro ciclo portugalidade intensa (p. 51) que

    decorre entre Manual de Pintura e Caligrafia (1977) e Ensaio Sobre a Cegueira (1995),

    exclusive (idem); um segundo ciclo que abarca os romances publicados entre Ensaio Sobre a

    Cegueira e As Intermitncias da Morte, exclusive., romances de teor universal ou

    universalizante (ibidem); e, por fim, um terceiro ciclo de produo ficcional, identificado pelos

    romances fbula (p. 52 destaque da autora), de que fazem parte As Intermitncias da Morte

    (2005), A Viagem do Elefante (2008) e Caim (2009).

    Ora, se atendermos aos dois romances em que assenta a base deste nosso trabalho,

    verificamos que A Jangada de Pedra (1986) se integra no primeiro ciclo e Ensaio Sobre a

    Cegueira (1995) no segundo, mas de nada nos serve esta identificao se no soubermos,

    efectivamente, quais as diferenas inerentes a cada ciclo8

    , ainda que a classificao atribuda nos

    faa vislumbrar as mesmas:

    Neste perodo [portugalidade intensa] verificamos uma enorme apetncia pelo tratamento de temas histricos, directa ou indirectamente relacionados com a Histria e com a Cultura portuguesas, seja de um passado mais remoto seja de um tempo mais recente. () A delimitao feita no mbito desta fase dos romances de teor universal ou universalizante diz respeito quer utilizao de estratgias que evidenciam o culto de temas de cariz mais geral, quer a uma reconhecida ressimplificao da linguagem e da estrutura narrativa.9

    (Arnaut, 2010: 51-2)

    Em virtude das diferenas apontadas, no nos surpreender que A Jangada de Pedra

    direccione o seu foco sobre a Pennsula Ibrica e que Ensaio Sobre a Cegueira se centre num

    espao indefinido, logo universal, para dar conta de uma humanidade que se encontra em

    processo de reabilitao. Para alm disso, ajuizamos que a ressimplificao ocorrida de um

    ciclo para o outro contribuiu para que Ensaio Sobre a Cegueira conquistasse mais leitores e,

    talvez mais do que estes, espectadores que acorreram s salas de cinema.

    8 No abordaremos as caractersticas subjacentes aos romances fbula, uma vez que o nosso trabalho no

    incide sobre algum dos romances desse ciclo. Para uma melhor clarificao, consulte-se a obra que nos tem servido de apoio: Arnaut, 2010: 51-70.

    9 Esta diferena percepcionada por Jos Saramago e traduzida na brilhante metfora que d nome conferncia que proferiu em Turim A Esttua e a Pedra e que ajuda a perceber esta mudana: () como se eu, ao longo de todos estes romances desde Manual de Pintura e Caligrafia at O Evangelho Segundo Jesus Cristo, como se eu me tivesse dedicado a descrever uma esttua. () no sabia que tinha andado a descrever uma esttua, para isso tive de perceber o que que acontecia quando deixvamos de descrever e passvamos a entrar na pedra. E isso s pde acontecer com o Ensaio sobre a Cegueira (). Ento, aquilo que o livro coloca no j mais a descrio da esttua, mas uma tentativa de entrar na pedra que como quem diz entrar no mais profundo de ns. (Saramago, 1998: 11-2).

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    7

    Assim sendo, e porque o cinema tambm narrao, fica uma dvida relativamente ao

    grau de facilidade/dificuldade de adaptao cinematogrfica, pois que, em nosso entender, uma

    narrativa mais linear ser mais fcil de transpor para a tela do que propriamente uma narrativa

    que se vai ramificando por este e aquele vector temtico, como se verifica com A Jangada de

    Pedra.

    Mais do que avaliar as dificuldades sentidas pelo guionista e pelo realizador no processo de

    adaptao da obra literria ao grande ecr, o nosso intento consiste em tomar o produto final e

    compar-lo com as respectivas narrativas literrias, a fim de aferir o modo como a

    intencionalidade ideolgico-comunicativa foi adaptada. Todavia, fica este objectivo adiado para

    os captulos seguintes, pois consideramos pertinente verificar, num primeiro momento, como e

    porque nasce esta atraco do cinema pela literatura e vice-versa, sem esquecer de abordar a

    problemtica da fidelidade/infidelidade das adaptaes cinematogrficas.

    2. Duas artes em atraco e interaco semitica 2.1. Cinema na Literatura

    Em tempos idos, que a nossa imaginao jamais poder resgatar, o Homem nutria um amor

    imenso e intenso pelas artes, pelo que a rivalidade e a luta pela primazia, cedo, se fez sentir,

    at porque as Musas no apoiavam todas as suas formas de representao (pintura e escultura)10

    Em tempos to prximos, as mesmas artes tornaram-se meras silvas esotricas que,

    estando ao alcance de todos, no atingem o entendimento de todos. Hoje, e para muitos, a arte

    sinnimo de elitismo ou de tdio, fruto de quem vive alheado da realidade.

    .

    A Literatura, que entendemos como sendo a magnfica arte da palavra, tem sentido esses

    preconceitos e tem lutado constantemente pela supremacia que outrora detinha. No faltam,

    porm, cpticos que profetizam o fim da Literatura, pois que esta no consegue competir com as

    novas solicitaes (internet, videojogos, cinema, entre outras) que se inscrevem e nos inscrevem

    na era da imagem e do som.

    A arte da palavra exige que lhe seja dedicada tempo e requer um esforo concentrado

    por parte do leitor11

    10 Aguiar e Silva (1990: 164-5) alerta-nos para esta questo: () convm lembrar que nem a antiguidade grega

    nem a antiguidade romana conheciam Musas da pintura e da escultura, o que bem elucidativo acerca do reduzido prestgio intelectual e social dessas artes ().

    a interpretao no chega de forma gratuita pelo que o prazer, para

    muitos, no imediato, o que aborrece e faz fechar as pginas do livro que tem sempre tanto

    para nos ensinar.

    11 Este esforo atestado por Umberto Eco (1979: 55), na medida em que encara o texto como um mecanismo preguioso (ou econmico) que vive da mais-valia de sentidos que o destinatrio lhe introduz e, como tal, quer que algum o ajude a funcionar e ningum melhor para o fazer do que o leitor, uma vez que a ele que o texto se dirige.

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    8

    Compreendemos, obviamente, que muito mais cmodo ler certa obra atravs das

    inebriantes potencialidades cinematogrficas, na medida em que, contrariamente leitura do

    livro, a nossa mente fica muito mais liberta, porque o grande ecr congrega os sons e o rol de

    imagens que, supostamente, deveriam ser construdas por ns na medida em que se partilha a

    opinio de Ernesto de Sousa (1960: 17) para quem Apagadas as luzes, o espectador submete-se,

    ele sofre o filme, no o pensa., acabando por se dissolver mentalmente perante a tela

    (Lglise, Paul & Peters, J. L. M., 1996: 121).

    Se bem que livros e cinema abram a porta para um outro mundo em que leitor e

    espectador, respectivamente, podem vivenciar uma experincia diferente da sua, consideramos

    que, na maior parte dos casos, o grande ecr, porque mostra a informao diegtica, muito

    mais propcio a levar o espectador a sentir-se parte integrante da realidade retratada e a viver a

    mesma com um fascnio que o embala nos braos da fico12

    Ora, ficando o espectador no centro da grande indstria cinematogrfica, porquanto a ele

    que os filmes se destinam e de quem depende o sucesso dos mesmos, vamos encontrar, tal como

    se verifica na literatura, em que h vrios gneros literrios, uma vasta tipologia flmica

    (comdias, melodramas, terror enfim, cinema para todos os gostos), cujos temas visam,

    sobretudo, ir ao encontro dos desejos do espectador e no da satisfao ou desenvolvimento das

    suas exigncias intelectuais

    .

    13

    Mas ser que ns, defensores da Literatura, devemos condenar o cinema por ter usurpado o

    pedestal em que o livro outrora assentava? Claro que no! Afinal, o cinema tambm uma arte, a

    Stima Arte, alicerada no seu prprio sistema semitico

    .

    14

    12 A este propsito, considerem-se as palavras de Lglise, Paul & Peters, J. L. M. (1966: 117-8):

    , mas que deve grandes contributos

    Para o espectador mdio uma pelcula adquire uma funo semelhante de um romance ou de uma pea

    de teatro. Todos estes meios lhe oferecem a oportunidade de participar numa vida diferente da sua, na vida de outra pessoa, noutro ambiente e noutras circunstncias e noutras regies do mundo.

    A tela dum cinema, a capa de um livro, o pano dum teatro, so como uma porta para um outro mundo, onde ser possvel viver uma segunda existncia talvez, nalguns aspectos, uma vida dupla. Mas a leitura dum livro apenas pode conduzir a uma segunda vida interior, pois o mundo descrito em palavras um mundo interior, e que s pode ser apreendido pela memria e pela imaginao.

    Mas o filme no s representa a realidade quase como ela, naturalmente, se apresenta como ainda coloca o espectador, emocionalmente, mesmo no centro da prpria realidade [encarada de modo virtual, como refere o autor] que v desenrolar-se perante os seus olhos..

    13 este aspecto que, em alguns casos, lhe atribui a condio de mau cinema, no sentido em que o define

    Georges Sadoul: Na minha opinio, o mau cinema aquele que no faz progredir o conhecimento do mundo, quer se trate da natureza ou do homem o homem na humanidade, na sociedade , quer contribuindo expressivamente com uma nova forma de potica, porque a poesia uma forma metafrica do conhecimento. (Sadoul, Georges, As Maravilhas do Cinema, apud Sousa, 1960: 130).

    14 Conforme nos diz Aguiar e Silva (1996: 76), o sistema semitico uma srie finita de signos interdependentes entre os quais, atravs de regras [o cdigo], se podem estabelecer relaes e operaes combinatrias, de modo a produzir-se semiose., isto , sentidos.

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    9

    literatura15

    Ora, esta afinidade potenciada pelo facto de a literatura e o cinema (sem esquecer as

    demais artes), por oposio lngua histrica natural (sistema semitico modelizante

    primrio), serem um sistema semitico modelizante secundrio

    , atestando-se tambm o contrrio, pelo que ser justo descobrir o manto da rivalidade

    que cobre estas duas artes, at porque, como no-lo mostra o trabalho de Srgio Paulo Guimares

    de Sousa (2001: 15), possvel focar o relacionamento intersemitico operado entre duas artes

    que mantm entre si um elevado grau de afinidade transesttica, por partilharem uma matria de

    expresso comum (o signo verbal), por consistirem ambas na representao de uma

    sucessividade de acontecimentos distribudos num tempo-espao e por disporem de estruturas

    enunciativas (dimenso narrativa)..

    16

    Christian Metz, fundador da semiologia do cinema, reconhece que, para alm dos cdigos

    especificamente cinematogrficos

    , cuja natureza aberta

    permite uma interaco com os demais sistemas abertos, isto : os sistemas semiticos (literrio

    ou artsticos) no assumem uma delimitao fixa nem um fechamento estanque, pelo que

    funcionam como polissistemas de fronteiras indefinidas e fluidas, em intercomunicao com

    outros sistemas abertos.

    17

    , h outros que fazem parte de outros sistemas:

    Tenho reparado cada vez mais que o contedo dos filmes () organizado por sistemas, por cdigos que so, digamos, ideolgicos, isto , que so susceptveis de aparecer no cinema, mas sem grande alterao da sua prpria estrutura, que podem aparecer igualmente noutras linguagens para alm da linguagem cinematogrfica, num

    15 Alis, Maria do Rosrio Lupi Bello (1995/6: 105-6) reconhece que, independentemente das diversas

    concluses tericas que resultam da aproximao entre estas duas formas de arte, existe um dado que no possvel ignorar: o cinema desde sempre se serviu e continua a servir da literatura como fonte de inspirao e frequentemente mesmo como suporte estrutural..

    16 A semitica, tal como no-lo refere Joly Martine (1993: 34) tem o projecto cientfico de se preocupar de um ponto de vista terico e analtico com os processos de significao (e por isso de interpretao) no de forma globalizante nem generalizante (mesmo que tenha tido efectivamente este gnero de ambio por um momento), mas a um nvel de rigor aceitvel e fivel, destinado a determinar e a justificar colectivamente os limites de interpretao cultural de uma mensagem. Foi partindo deste pressuposto cultural, que enquadra o homem numa comunidade histrico-social, que a Escola Sovitica de Semitica, da qual se destaca Juri Lotman, partiu do princpio de que o homem s se realiza na sua relao com o mundo que o rodeia recorrendo aos vrios sistemas semiticos. Ao sistema de signos e cdigos que enforma o sistema semitico atriburam os semioticistas soviticos a designao de sistemas modelizantes do mundo, uma vez que condicionam o indivduo na construo ou acesso a uma certa viso do real e adopta um certo modelo para os seus modos de agir na interaco com os seus semelhantes. Ao reconhecerem, tambm, que a modelizao semitica do mundo parte sempre do sistema da lngua histrica natural (a lngua materna), o que se percebe por ser o primeiro sistema semitico com que se contacta, operaram a distino entre sistemas modelizantes primrios (a lngua) e sistemas modelizantes secundrios, englobando este ltimo a literatura e qualquer uma das outras artes (pintura, msica, cinema, etc).

    17 Numa entrevista realizada por Ren Fouque et alii. (1979: 170), Christian Metz identifica como cdigos especificamente cinematogrficos os que esto relacionados com o trabalho da imagem fotogrfica em movimento posta em sequncia, do som, das suas relaes recprocas, e tambm das relaes entre a imagem, o som e a fala. No mbito da literatura, vamos encontrar um conjunto de cdigos que formam o seu policdigo: o cdigo fnico-rtmico, o cdigo mtrico, o cdigo estilstico, o cdigo tcnico-compositivo e o cdigo semntico-pragmtico (cf. Aguiar e Silva, 1990: 58-61 destaque do autor). Saliente-se, contudo, que o facto de podermos identificar cada um destes cdigos no pressupes a sua independncia, ou seja, a utilizao de um no exclui os demais.

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    10

    romance, num cartaz, na televiso, etc. Um outro exemplo de cdigo no especfico mas que desempenha, todavia, um papel muito importante nos filmes, simplesmente o cdigo da lngua que o filme emprega (). (Fouque, 1979: 170-1)

    Como refere Maria do Rosrio Lupi Bello (1995/6: 106), a multiplicidade de relaes

    estabelecidas entre o cinema e as demais artes leva muitos, entre os quais Bazin, a afirmar que o

    cinema uma arte impura, porque assimila em si um capital que vai buscar s outras artes

    (literatura, msica, arquitectura, fotografia, etc).

    Pelo exposto, verificamos que a literatura e o cinema, bem como as outras artes, adquirem

    um funcionamento complexo, no s pela natureza aberta de cada um dos sistemas semiticos,

    mas tambm pelo facto de os mesmos se caracterizarem por uma constituio heterognea, pois

    para haver semiose literria ou artstica fenmeno de realizao comunicacional e no de

    semiose introversiva (como queria Roman Jakobson) imprescindvel, da parte de emissores

    e receptores, um processo contnuo de interferncia mtua, e no uma explorao estanque e

    hierarquizada.

    Assim sendo, no nos surpreender que a literatura possa receber contributos do cinema e

    vice-versa, como veremos neste ponto e no seguinte. Porm, com o advento do cinema, nos

    finais do sc. XIX18, e at h bem pouco tempo, considerava-se que esta manifestao artstica,

    embora com as suas diferenas, era submissa literatura, em virtude de ser esta a fornecer a

    matria-prima19. Todavia, tambm possvel verificar-se o oposto como no-lo prova a adaptao

    a romance do filme20 de Jean-Luc Godard A bout de souffle21

    Caso mais curioso tem que ver com a publicao de guies de filmes destinados ao pblico

    leitor, como se de um texto dramtico se tratasse. Os guies, como se sabe, so a adaptao do

    texto literrio ao cinema, ou seja, so () uma espcie de planificao analtica de todo o

    trabalho a efectuar. Nele[s] se encontram discriminadas as sequncias da cmara (grandes

    planos, planos mdios, e planos gerais), o tempo e os movimentos de cmara (panormicos,

    .

    18 O ano de 1895 costuma ser indicado como marco do incio do cinema, em virtude da primeira sesso do

    cinematgrafo de Louis e Auguste Lumire no Grand Caf, Boulevard des Capucines em Paris. 19 A este propsito, consideremos as palavras do Doutor Ablio Hernandez Cardoso (1995/6) que, para alm da

    convergncia e conflitualidade que pauta o relacionamento entre estas duas formas de comunicao, do conta desta dependncia: Entre a literatura e o cinema existe uma relao que compreende, simultaneamente, a convergncia e a conflitualidade. O estudo dos aspectos convergentes entre a linguagem literria e a linguagem flmica tm constitudo a principal preocupao de uma perspectiva comparativista que, no essencial, tem procurado explicar o cinema pela influncia que este, desde praticamente o seu nascimento, recebeu da literatura. Por sua vez, a anlise dos aspectos conflituais tem sido realizada, sobretudo, em trabalhos de investigao cuja metodologia se centra na determinao dos limites e das especificidades de cada uma das linguagens. Em qualquer dos casos, porm, o estudo das relaes entre o cinema e a literatura pressupunha, at h no muitos anos, a aceitao, tcita ou expressa, de uma hierarquia das artes, em que o cinema se via sistematicamente relegado para um estatuto de marginalidade e de manifesta subordinao relativamente literatura. (pp. 25-6).

    20 Este intercmbio filmo-literrio, de acordo com Srgio Paulo Guimares de Sousa, pode ser designado por novelizao (cf. Sousa: 2001: 133).

    21 Veja-se Aguiar e Silva (1990: 178).

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    11

    travellings, etc.), pormenores de direco (disposio de cenrios, movimentos dos actores,

    colocao das pessoas e objectos nos cenrios, etc.), bem como os dilogos ou o comentrio.

    (Lglise, Paul & Peters, J. L. M., 1996: 14), pelo que no se estaria espera que pudessem passar

    a livro.

    Outro aspecto que no podemos deixar de referir prende-se com a publicao de

    dcoupages, num subgnero narrativo que ficou conhecido como cine-romance ou

    livro-cmara (Sousa, 2001: 133).

    Ora, tais designaes (cine-romance ou livro-cmara) conduzem qualquer nefito ou

    leigo nestas matrias a antever uma forte ligao do livro com a stima arte, o que possibilitar

    ler o livro como se estivesse a ver um filme. Tais consideraes no sero despropositadas, na

    medida em que o cine-romance, como nos informa Aguiar e Silva (1990: 179), se caracteriza

    por construir as personagens, as situaes e os eventos narrativos em conformidade com a

    gramtica do cinema, de tal modo que os seus textos se configuram como que pr-organizados

    para a sua transposio flmica..

    Ainda que o mesmo autor identifique a obra de Lanne dernire Marienbad de Alain

    Robbe-Grillet como um perfeito exemplo de cine-romance (idem), no podemos deixar de

    fazer referncia a um exemplo nacional: Jacinto Lucas Pires.

    Este tambm um escritor cinematogrfico (Sousa; 2003: 35)22

    , na medida em que, por

    exemplo, o seu livro Azul-Turquesa classificado pelo prprio como um livro quase-filme (cf.

    Sousa; 2003: 35). Ao ler este texto, o leitor no se exime das suas funes, mas adquire,

    necessariamente, uma outra que a de espectador, ou seja, torna-se um leitor-espectador, como

    podemos constatar por um pequeno excerto:

    Desaparece uns segundos na sombra e, quando reaparece, traz uma garrafa de vinho na mo. Poisa a garrafa em cima do balco, junto do copo. Depois abre uma gaveta e fecha-a, e outra, e ainda mais uma. Olha ento para a garrafa, suspira, pega nela, volta a abrir a primeira gaveta e, ps, quebra o gargalo contra o rebordo. Alguns bocados de vidro espalham-se pelo cho. () De seguida, enche o copo, inclinando a garrafa de pescoo cortado com muito cuidado, quase cerimnia. Estando o copo cheio, leva-o junto da boca (). (Azul-Turquesa, pp. 44-45)23

    Efectivamente, pela leitura deste excerto, verificamos que predomina a tcnica e a

    gramtica do texto flmico; o narrador omnisciente elidido e a focalizao converte-se em

    estrita objectividade visual, numa narrativa construda e ordenada pela frieza da lente de

    filmar, deixando o texto pr-organizado para uma posterior transcodificao flmica.

    22 Em entrevista ao escritor/cineasta. 23 Apud Sousa, 2003: 13.

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    12

    claro que nem toda a literatura mais recente to marcadamente cinematogrfica

    semelhana, por exemplo, da obra de Jacinto Lucas Pires. Porm, inegvel que os contributos

    que tem recebido da stima arte tm influenciado o modo de narrar, conscincia atestada por

    Ablio Hernandez Cardoso (1995/6: 27) ao reconhecer que o cinema j vincou as suas marcas

    nas formas literrias, especialmente nos textos narrativos: Os modos como o romance, por

    exemplo, organiza a componente do espao na sua relao com os movimentos e o olhar das

    personagens, ou a descrio dos gestos e das atitudes destas em plena actividade comunicativa de

    natureza no verbal, tm sido explicados, com frequncia cada vez maior, pela influncia que a

    linguagem cinematogrfica vem exercendo na narrativa literria..

    A este propsito, Srgio Paulo Guimares de Sousa (2001: 135-140) apresenta alguns

    exemplos no mbito da literatura portuguesa que nos ajudam a perceber esta contaminao

    cinematogrfica (idem: 133), relativamente aos quadros de referncia comuns24

    Se pretendermos um exemplo mais prximo do mbito deste trabalho, consideremos a

    afirmao proferida agncia Lusa pelo realizador Miguel Gonalves Mendes a propsito de O

    Evangelho Segundo Jesus Cristo: o mais cinematogrfico de todos os romances de Jos

    Saramago, o que tem a estrutura para adaptar para cinema

    e

    metalinguagem de natureza cinematogrfica (definio de conceitos pertencentes linguagem

    cinematogrfica), bem como os cdigos e tecnologias cinematogrficos na literatura (cf. ibidem:

    144-255).

    25

    . Pois bem, por aqui, mais uma

    vez, se comprova a dialctica que sintoniza estas duas artes e que proporciona a mistura de

    tinteiros, literrios e cinematogrficos.

    2.1.1. Literatura no cinema

    Depois de comprar o bilhete, o espectador senta-se comodamente na sua cadeira. Aguarda

    que as luzes da sala se apaguem para dar lugar s luzes e sons que do vida tela. Ali fica uma,

    duas ou mais horas num ambiente descontrado que possibilita o alheamento da realidade,

    dispensando o delicioso esforo de dedilhar as pginas de um livro debaixo de uma luz artificial

    que fere a ris, a crnea, a retina e a pacincia para estar sentado, num silncio mental que por

    vezes interrompido pela voz de uma realidade que o faz perder o sentido do que l Que

    24 De acordo com Eco (1979: 88), os quadros comuns (ou frames) fazem parte da normal competncia

    enciclopdica do leitor que a compartilha com a maior parte dos membros da cultura a que pertence e so, em geral, regras para a prtica.

    25 Mota, Vtor (2001, 09 de Julho).

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    13

    aborrecimento! Tenho de voltar atrs! o que no se verifica no cinema, porquanto as imagens

    sucedem-se num falso discurso contnuo26

    Depois da sesso, perguntemos ao espectador as suas opinies sobre o filme e ele ser

    capaz de tecer consideraes sobre outros trabalhos do realizador e das personagens que conhece

    da tela por via de toda a efervescncia artificial (Lglise, Paul & Peters, L. M., 1966: 46) dos

    scares, das entrevistas, dos rumores, ou seja, de tudo aquilo que move a indstria

    cinematogrfica. Por outro lado, perguntemos-lhe se conhece a obra de determinado autor, se

    sabe de que livro consta esta ou aquela personagem e, sem surpresa, reparamos que as respostas

    podem roar o disparate que nos far soltar uma gargalhada a par da tristeza de ver a literatura a

    no conseguir acompanhar o poder da imagem que se v passar frente dos olhos.

    que prende ao ecr.

    Perceber o leitor deste trabalho que reconhecemos ser hoje atribuda ao cinema a primazia

    que antes cabia literatura. Porm, partilhamos da opinio de Ernesto de Sousa (1960: 16) ao

    constatar que a importncia do cinema decisiva na divulgao da literatura, afirmao

    corroborada do seguinte modo:

    J no nos alarmemos muito se, em conversas surpreendidas no caf ou no

    autocarro, ouvirmos atribuir Hamlet a Laurence Olivier e Othelo a Orson Wells. E a verdade que, embora atravs de gravssimos erros de informao e de uma ptica quase sempre discutvel, milhares ou milhes de pessoas conhecem Shakespeare pela primeira vez, em todo o mundo, pelo cinema.

    Ora, o que aqui est em causa a adaptao cinematogrfica de obras literrias de que no

    faltam exemplos na nossa literatura Frei Lus de Sousa, Amor de Perdio, As Pupilas do

    Senhor Reitor, O Crime do Padre Amaro, O Mistrio da Estrada de Sintra, O Filme do

    Desassossego sem nos esquecermos do nosso Prmio Nobel, Jos Saramago, que j conta com

    trs das suas obras adaptadas ao cinema: A Jangada de Pedra, Blindness (Ensaio sobre a

    Cegueira) e, mais recentemente, Embargo (conto que integra Objecto Quase).

    No podemos, no entanto, deixar-nos levar pelo radicalismo e pensar que o contacto com a

    literatura se reduz a uma ida ao cinema, porquanto muitos so aqueles leitores que s depois do

    livro se tornam espectadores e no sero menos aqueles espectadores que depois da tela,

    instigados pela curiosidade, se rendem s pginas de um livro lido com olhos vidos de uma

    imensa vontade de reviver toda uma histria que j tem um palco previamente preparado com os

    cenrios, o desfile das personagens e os acontecimentos.

    26 Sobre este aspecto, atente-se nas palavras de Ablio Hernandez Cardoso (1995: 28): () no princpio da

    fragmentao e da descontinuidade que se baseia a montagem cinematogrfica. Os acontecimentos so divididos em planos que representam parcelas da totalidade da aco; esses planos so depois organizados e ordenados de modo a que a totalidade da cena e o seu significado se detectem a partir de relaes que se estabelecem entre os diversos segmentos..

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    14

    Quando estas duas situaes se atestam frequente ouvir comentrios que enaltecem ou

    desconsideram um dos dois formatos da narrativa (literria e flmica): ou porque o livro mais

    aborrecido do que o filme, ou porque o filme no foi fiel ao livro, apontando-se vrias

    justificaes tendo por base um jogo comparativo que assenta no modo como se operou a

    transposio, ou transcodificao intersemitica27

    Mas ser que podemos falar de fidelidade ou infidelidade? No estaremos a incorrer

    no mesmo erro de considerar que algum fiel s porque teve a sorte de nunca se ter visto a

    traio ou que infiel s porque pensou ou olhou de forma mais viva numa outra pessoa? No

    fique indignado o leitor com este exemplo, porquanto o que queremos mostrar que tudo se

    resume a ponto de vista e interpretao que, fruto de cabeas cada qual com sua sentena, podem

    ser mltiplas.

    da obra em causa.

    2.2. Atraco sem traio

    Ora, tambm na stima arte, nenhum filme, por muito que tente, copiar uma obra literria, conseguir transpor a totalidade da sua capacidade plurissignificativa, quer dizer, ser absolutamente fiel ao livro.

    (Sousa, 2001: 117)

    Em nosso entender, escrever um romance, uma novela, um conto, uma tragdia ou uma

    comdia ser uma tarefa mais fcil do que operar a sua transcodificao intersemitica

    comummente chamada de adaptao: basta dispor de papel e caneta e a trama desvelar-se-

    nas folhas preenchidas pela tinta da imaginao. Direccionando o nosso olhar para o caso do

    cinema, avaliamos um maior grau de dificuldade, corroborada por Paul Lglise & L. M. Peters

    (1966: 13-4): Para a produo de um filme no basta uma cmara de filmar e algumas bobinas

    de pelcula virgem. Tem de haver, em primeiro lugar, um princpio de argumento, uma sinopse,

    ou pelo menos, uma determinada ideia. s vezes um produtor compra um simples ttulo que

    pode ser o de uma cano ou de um livro (). O argumento surge s mais tarde, dependendo do

    realizador e do elenco. Nessa altura o produtor traa o grfico dos custos de produo enquanto o

    argumentista e o realizador organizam o guio que uma espcie de planificao analtica de

    todo o trabalho a efectuar..

    Antes de se proceder adaptao de uma obra literria, em primeiro lugar, preciso l-la e

    interpret-la, isto , apreender a(s) intencionalidade(s) ideolgico-comunicativa(s) que pretende

    27 A transposio, ou transcodificao intersemitica, neste caso, consiste no facto de o texto flmico ser

    construdo com signos e com uma gramtica que dependem de um sistema semitico diferente daquele de que dependem os signos e a gramtica do texto literrio (cf. Aguiar e Silva, 1990: 165).

  • De JANGADA rumo CEGUEIRA Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

    15

    veicular; em segundo lugar, dever ser harmoniosamente conjugada a linguagem

    cinematogrfica28

    precisamente atravs da leitura que a obra literria se actualiza no seu contedo

    potencial (Eco, 1979: 65), porquanto o leitor que a vai colocar a funcionar, ao identificar e

    preencher os espaos em branco (idem: 55), ou seja, os elementos no-ditos (ibidem: 54).

    Assim sendo, compreende-se que haja mltiplas interpretaes, uma vez que os leitores no se

    distanciam dos seus conhecimentos, da sua enciclopdia

    , que comporta a linguagem verbal, a montagem, os estdios, os cenrios: toda

    uma parafernlia que se corporizar no texto flmico.

    29

    Desta feita, a interpretao do guionista (que adapta ao papel) e do realizador (que transpe

    para a tela) no ser menos legtima. em funo da mesma que o guionista opta por cortar ou

    acrescentar cenas, deslocar ou transformar alguns acontecimentos, etc

    literria nem dos seus horizontes de

    expectativa. Nesse sentido, no se pode dizer que apenas h uma interpretao vlida: vrias

    interpretaes com condicionado relativismo, claro so possveis.

    30

    precisamente em funo da adaptao que reside a problemtica da fidelidade ou

    infidelidade obra literria, porquanto h sempre a possibilidade de demolir a arquitectura

    textual (Sousa, 2001: 46). Compreende-se, ento, que, por exemplo, Saramago se mostrasse

    relutante em vender os seus direitos autorais de Ensaio Sobre a Cegueira, at porque a adaptao

    de A Jangada de Pedra deixou-o um tanto decepcionado, como refere em entrevista a Joo Cu e

    Silva (2009: 193): () Pareceu-me que, embora seja um filme limpo e honesto, algo falhou ali.

    No sei muito bem o que nem quero pensar nisso. reaco completamente oposta ao

    visionamento de Blindness de Fernando Meirelles, pois que o escritor ficou verdadeiramente

    emocionado.

    ., ou seja, atravs das

    tcnicas cinematogrficas, guionista e realizador dispem de um sistema semitico susceptvel

    de conferir mais ou menos nfase intencionalidade ideolgico-comunicativa da narrativa

    literria, para alm de conseguir igualar a caneta do escritor a uma cmara (Brito, 2006: 9).

    No se pode, contudo, atestar a fidelidade ou infidelidade de um filme s porque seguiu, ou

    no, mimeticamente a obra que lhe serviu de base, j que a adaptao foi fruto da interpretao

    de um indivduo. A nossa afirmao ganha fora no parecer de Maria do Rosrio Leito Lupi

    Bello (2005: 29), porquanto refere que () toda a transposio intersemitica envolve um

    processo de interpretao, resultado de uma especfica leitura, que se manifesta no conjunto de

    28 Christian Metz define o cinema como sendo uma linguagem cinematogrfica porquanto no sendo uma

    escrita ele permite uma escrita, ou seja, uma linguagem permite construir textos mas no ela prpria um texto, nem um conjunto de textos, nem um sistema textual (Metz, 1971, apud Seixo, 1979: 15-6).

    29 Enciclopdia ou competncia enciclopdica definida por Eco (1979), como sendo uma expresso mais vasta que conhecimento dos cdigos (p. 58) e que, por isso mesmo, um complexo sistema de cdigos e subcdigos (p. 81).

    30 Para um melhor conhecimento destes e outros processos adaptativos, veja-se Brito, 2006: 7- 21.

  • De JANGADA rumo CEGUEIRA Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

    16

    opes tomadas pelo realizador; por outro lado, julgamos dever definir as relaes que se

    estabelecem entre os textos (literrio e flmico) como relaes intertextuais, que traduzem uma

    cumplicidade mtua sem que esta implique, ou deva implicar, qualquer subordinao de um

    texto ao outro, ou algum tipo de condicionamento da autonomia do texto cinematogrfico.

    Daqui resulta que a mesma narrativa literria, ao ser adaptada por dois guionistas/realizadores

    distintos, obviamente dar origem a duas adaptaes diferentes, sem que isso implique a perda

    da sua intencionalidade comunicativa.

    Para alm disso, convm ter em conta que, como nos diz Doc Comparato (2004: 235)

    existem vrios nveis, ou graus de adaptao, com base no maior ou menor aproveitamento dos

    contedos da obra original., pelo que no se dever apontar taxativamente a infidelidade do

    texto flmico, mas sim o seu grau de fidelidade.

    De qualquer modo, o objectivo do nosso trabalho no consiste em nos determos sobre este

    aspecto, mas simplesmente verificar de que forma que a intencionalidade comunicativa de A

    Jangada de Pedra e Ensaio Sobre a Cegueira foi transposta para o grande ecr.

    Pois bem, entre pginas e imagens, seguiremos o rumo de uma jangada e atracaremos

    numa terra de cegos, a fim de proceder a uma anlise intersemitica.

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    17

    CAPTULO II

    UMA DERIVA DA JANGADA

    1. Artes Mgicas de pessoas comuns

    1.1.Efeito Borboleta: Teoria do inslito

    Nunca se repetir de mais aquela outra trivialidade de que as pequenas causas podem produzir grandes efeitos.

    (Saramago, O Homem Duplicado: 83-4) Se, como s crianas antigamente se contava, para ilustrao das relaes entre as pequenas causas e os grandes efeitos, uma batalha foi perdida por se ter soltado uma das ferraduras a um cavalo ()31

    (idem: 117)

    Naquele dia, como noutros tantos, saiu de casa. Abriu a porta do carro e sentou-se no

    banco. Sabia qual o seu ponto de chegada, mas ficou com dvidas quanto ao caminho que devia

    seguir, a fim de evitar o trnsito. Tinha um horrio a cumprir e no queria, de forma alguma, que

    algo comprometesse a sua escrupulosa pontualidade.

    Mentalmente, percorreu as vrias ruas e vielas que o podiam conduzir ao seu destino e a

    deciso estava tomada. Ligou o motor e iniciou a sua curta viagem.

    Contrariamente ao que estava espera, deparou-se com uma fila imensa. Era impensvel

    que houvesse um engarrafamento quela hora e naquela estrada. Vendo o tempo a passar, no

    conseguia calar os porqus que tomaram conta da sua mente e sentiu uma enorme irritao.

    O trnsito avanava muito lentamente. Foi necessria interveno policial para orientar o

    trfego. Uma hora passada no vai chegar a tempo no vai chegar a tempo e no chegou

    mesmo.

    Nunca soube, por mais que se interrogasse, a que se deveu aquela situao. Apenas pensou

    que no fcil prever certos acontecimentos. Contudo, grande parte dos automobilistas sabia o

    motivo: o patro, por falta de matria-prima, que no iria chegar naquele dia por causa da

    malfadada greve dos camionistas, decidiu mandar os seus trabalhadores para casa mais cedo.

    Eis como uma simples situao faz desencadear uma srie de acontecimentos que podem

    interferir com a nossa vida.

    31 Curiosamente, e a corroborar a consequncia dos pequenos gestos, encontrmos em Plnio Torres (03 de

    Janeiro de 2007) a catadupa de acontecimentos que conduziram perda da dita batalha: Por vontade de um prego, perdeu-se uma ferradura; Por vontade de uma ferradura, perdeu-se um cavalo; Por vontade de um cavalo, perdeu-se um cavaleiro; Por vontade de um cavaleiro, perdeu-se a batalha; Por vontade da batalha, perdeu-se o reino inteiro.

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    18

    Tal caso, faz-nos pensar na teoria desenvolvida por Edward Lorenz32, segundo a qual o

    simples bater das asas de uma borboleta numa qualquer parte do mundo o suficiente para

    provocar um Tsunami no seu antpoda. Ainda que nos parea exagerado e ridculo culpar a pobre

    borboleta, reconhecemos os nossos parcos conhecimentos de fsica e admitimos que,

    efectivamente, a deslocao de ar provocada pelo bater das asas da criatura pode, contudo, surtir

    um grande efeito sejamos capazes de aceitar que a capacidade de realizao no exige grandes

    propores, na medida em que h um Efeito Borboleta!33

    Todavia, requer-se alguma sensatez para que este efeito no sirva para explicar que Salazar

    caiu da cadeira porque algum pontapeou uma pedra. Alis, o prprio narrador de A Jangada

    de Pedra que nos alerta para a incurso em juzos errneos: Sabido que todo o efeito tem sua

    causa, e esta uma universal verdade, porm, no possvel evitar alguns erros de juzo, ou de

    simples identificao, pois acontece considerarmos que este efeito provm daquela causa,

    quando afinal ela foi outra, muito fora do alcance do entendimento que temos e da cincia que

    julgvamos ter (p. 14).

    A Cincia, porque cincia, encontra explicao para acontecimentos fenomenais, ou no,

    abrangidos pela racionalidade. E aqui que o romance em anlise nos prega uma rasteira que faz

    tremelicar o nosso esprito e entendimento, pondo em causa a veracidade dos factos relatados.

    Nada nos faz prever, porque inequivocamente inslito, que o risco traado por Joana

    Carda ser capaz de provocar uma srie de efeitos. No entanto, os ces mudos voltam a ladrar e a

    Pennsula Ibrica transforma-se numa ilha. A estes, somam-se ainda os feitos inslitos e

    enigmticos das restantes personagens principais: Joaquim Sassa, Pedro Orce, Jos Anaio e

    Maria Guavaira.

    No cmputo geral, e ainda que possa contradizer a cincia, os actos praticados por estas

    personagens so a inslita borboleta que produzir efeitos ainda mais inslitos, marcantes e

    irreversveis.

    32 Para conhecer um pouco mais de Edward Norton Lorenz, deixamos aqui uma curta resenha biogrfica: ()

    meteorologista e matemtico Americano, nasceu em West Hartford, Connecticut, em 1917. Licenciado pelo Darthmouth College (1938) em Matemtica, continuou seus estudos em Harvard (1940). Durante a Segunda Guerra Mundial, trabalhava com previso do tempo no Exrcito e decidiu estudar Meteorologia. Formou-se em 1943 na Boston Tech, onde fez a sua Ps-Graduao cinco anos depois, e em 1955, aos 38 anos, viria a preencher a vaga deixada por Thomas Malone, o qual era responsvel pelos projectos no departamento de meteorologia onde havia iniciado as pesquisas de previses estatsticas do tempo () seus trabalhos com os fundamentos matemticos do sistema de equaes da meteorologia nos laboratrios do MIT na dcada de 1960 foram os primeiros estudos do que na teoria do caos se denominou posteriormente por atractor estranho () (In http://opensadorselvagem.org/ciencia-e-humanidades/cronicas-matematicas/efeito-borboleta. Acedido a 21 de Outubro de 2010).

    33 Este efeito, termo que se refere s condies iniciais dentro da Teoria do Caos, foi analisado pela primeira vez por Lorenz em 1963. Com esta teoria, o cientista pretendia demonstrar que aces insignificantes podem amplificar-se temporalmente de forma a mudar radicalmente um estado, concluindo ns que o mundo no programvel nem previsvel, pelo que dificilmente a mesma coisa poder acontecer duas vezes. Este Efeito Borboleta deu nome a um filme (e suas continuaes) The Butterfly Effect que mostra muito bem que uma simples aco pode interferir com a nossa vida e a de outras pessoas, mesmo que demore dias, meses ou anos.

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    19

    Acreditamos que seja por esse motivo que o narrador dedique as primeiras pginas do

    romance (captulo I)34

    Com um p na margem da fantasia e o outro no porto da realidade, de toda a

    convenincia verificar de que modo a narrativa flmica transps para a tela cinco actos mgicos

    praticados por pessoas comuns, isto , sem qualquer tipo de interveno divina, medinica ou

    paranormal.

    narrao destes mesmos actos. Assim, tambm nos envolve num velo de

    fantasia, cujo estranhamento cede lugar ao entranhamento e, consequentemente, aceitao dos

    factos relatados.

    1.2. Enigmas em tela esbatida

    1.2.1. Actos fericos em aco

    Lembramo-nos das vezes em que, isentos de quaisquer artes mgicas, se pega numa pedra

    e se atira para longe, de um malmequer que se desfolha ou de uma bola de papel que se tenta

    encestar no caixote mais prximo, mas recusamo-nos a aceitar que de gestos to simples resulte

    outra coisa seno um nada. Na verdade, o nosso pensamento esboa um sorriso, no por

    atirar a pedrita que se produzir um terramoto, no pela ptala do malmequer que se provocar

    o desaparecimento de todas as espcies florais, nem que fosse por solidariedade, e no ser por

    aquele papel amassado que se criar um poo fundo, no qual caindo no sabemos em que

    dimenso vamos aterrar (talvez este ltimo exemplo no seja o melhor, na medida em que, na

    verdade, esperamos um efeito marcar um cesto mas nada que abale o equilbrio natural;

    simplesmente satisfazer um ego, que tantas vezes em surdina clama por um reforo positivo).

    Mas ateno! frase que se solta de um corredor esconso e mal iluminado da nossa

    mente um acto sem sentido, recordai-vos, so os que maior perigo comportam (AJP: 10)

    informa-nos o narrador da narrativa literria tal como o risco traado por Joana Carda, ponto de

    partida, tambm, do texto flmico.

    Na primeira pgina do romance sabemos que Joana Carda traa o risco no cho, mas s no

    captulo IX que somos informados, pela voz de Jos Anaio (que pe Joaquim Sassa a par do

    teor do seu encontro com a personagem feminina), que o risco no desaparece, nem com o

    vento, nem deitando-lhe gua em cima, nem pisando-o a ps (AJP: 130).

    Ainda que o leitor possa adiantar algumas hipteses, no deixar de questionar os

    meandros que confluram para o gesto de Carda, resposta que s encontrar no captulo seguinte

    (X):

    34 A designao de captulos que aqui apresentamos apenas uma construo metodolgica, a fim de facilitar a identificao dos segmentos de escrita que compem o texto que, semelhana de outros (excepto Terra do Pecado e Caim), se encontram separados por pargrafos ligados a mudana de pgina.

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    20

    Era para aqui que eu vinha pensar na minha vida (), encontrei este pau, estava

    no cho, (), Levantei o pau do cho, (), e nesse momento, num gesto que mais foi de criana do que de pessoa adulta, tracei um risco () (AJP: 148)

    Ora, desviando o nosso olhar para a narrativa que se inscreve na tela, verificamos que na

    cena inicial esto congregadas todas estas informaes, recorrendo categoria do deslocamento,

    isto , elementos que constam da narrativa literria so contemplados pelo texto flmico mas

    numa cronologia (ou ordem espacial) diferente (cf. Brito, 2006: 15). Assim, vemos Joana Carda

    a caminhar calmamente, com um olhar distrado, a tropear na vara de negrilho, a apanh-la do

    cho e, por fim, a efectuar o indelvel trao que tenta apagar, unicamente, pisando-o com o

    p35

    Parece-nos que o procedimento de Yvette Biro, a guionista, foi correcto, na medida em que

    nesta cena inicial o espectador percebe, de imediato, como se passaram os factos, no havendo

    necessidade de efectuar posteriormente uma analepse que quebraria o raciocnio e tornaria o

    filme mais longo e, consequentemente, maador.

    .

    No entanto, convm salientar que na narrativa flmica o risco adquire a configurao de

    uma fenda36

    Em nosso ver, esta diferena em nada compromete a obra em adaptao, transmitindo at a

    ideia de que o gesto de Joana teve repercusses noutro ponto geogrfico da Pennsula, o que, por

    sua vez, traduz as palavras de um narrador para quem todas estas coisas esto ligadas entre si

    (AJP: 19), se bem que aceite que se duvide desta causa-efeito

    , que nos faz lembrar aquele pedao de madeira que estala quando aparafusamos, at

    mais no, o parafuso que liga uma ripa a tantas outras que formam uma estante.

    37

    O que no deixa dvidas que o risco feito com a vara de negrilho provoca,

    concomitantemente, o ladrar de todos os ces de Cerbre, o que poderia ser entendido como

    mera coincidncia se os referidos animais no fossem conhecidos pela sua mudez histrica

    (AJP: 9), como facilmente se comprova pelo primeiro perodo do romance, estrategicamente

    aberto pela conjuno subordinativa temporal quando

    .

    38

    35 Veja-se anexo A 1.

    .

    36 Pela leitura do romance, constatamos que o risco traado por Joana Carda no provoca uma fenda no local, como se pode verificar pelo seguinte trecho: A fenda [a primeira que surge, nos Montes Alberes], subtil, lembraria a um observador humano um risco feito com a ponta de um lpis, muito diferente daquele outro trao com um pau, em terra dura, ou na poeira solta e macia, ou na lama, () (AJP: 19).

    37 De efeitos e causas muito aqui se tem falado, sempre com extremos de ponderao, observando a lgica, respeitando o bom senso, reservando o juzo, pois a todos patente que de uma betesga ningum seria capaz de retirar um rossio. Aceitar-se-, portanto, como natural e legtima, a dvida de ter sido aquele risco no cho, feito por Joana Carda com a vara de negrilho, causa directa de se estarem rachando os Pirenus, que o que se tem vindo a ser insinuado desde o princpio. (AJP: 31).

    38 Quando Joana Carda riscou o cho com a vara de negrilho, todos os ces de Cerbre comearam a ladrar (AJP: 9).

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    21

    Foi com alguma surpresa que verificmos que na tela o coro destes ces foi substitudo por

    um pequeno solo, o que nos fez levantar vrias hipteses para justificar este aspecto.

    Em nosso juzo, a guionista contemplou o ladrar do co porque no podia fugir

    simultaneidade das aces e porque o animal acabar por ser parte integrante da narrativa em

    adaptao, levando o espectador a associar aquele ladrar ao co que depois aparecer.

    Parece-nos, tambm, que a narrativa flmica ganhou com este procedimento, porquanto

    ter sido uma forma de evitar retratar toda a confuso e preocupao gerada por causa destes

    ladrares enigmticos, ou seja, reduo39

    Todavia, com este ladrar no transmitido o anncio de fim do mundo

    foi a palavra de ordem. 40

    Nesse sentido, estamos em crer que a narrativa flmica deveria ter optado por uma msica

    mais sugestiva, capaz de inquietar o espectador, alertando-o para o caso estranho (um risco que

    no desaparece) e projectando as suas expectativas relativamente s consequncias, que ainda

    esto por vir, decorrentes do gesto de Joana Carda. A ttulo de exemplo, salientamos uma breve

    passagem da msica Dawn of the iconoclast do grupo Dead Can Dance

    , ou de novo

    mundo por vir, na medida em que para a crena popular, j bastante acantonada, o uivo do co

    que pronuncia morte. Na nossa opinio, era importante transmitir essa ideia corporizada no texto

    literrio de que h um mundo que acaba para dar lugar a outro; nesse sentido, pensamos que a

    banda sonora deveria contribuir para conferir uma carga mais dramtica cena, possibilitando

    que o espectador aumentasse o seu horizonte de expectativas e no se ficasse pelos sons que

    orientam para a sensao de mistrio.

    41 (1987), em que a voz

    feminina, para alm do mistrio, denota angstia e aflio42

    A partir deste ponto, o filme segue com a apresentao dos restantes actos inslitos, ainda

    que no respeitando a ordem do romance o que consideramos uma grande falha mas

    .

    39 A reduo consiste em o filme no apresentar elementos que esto no texto literrio (cf. Brito, 2006: 20). 40 ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal prximo de

    extinguir-se (AJP: 9). 41 Este grupo, que daqui em diante ser identificado pelas suas iniciais (DCD), teve a sua formao em

    Melbourne, na Austrlia, em 1981, mas pouco tempo depois mudaram-se para Londres. Nesta cidade, o grupo assina um contrato com a 4AD, uma editora dedicada msica alternativa. O sucesso da banda, logo os consagra como uma das mais importantes desta editora. O gnero musical da banda caracteriza-se por um conjunto de estilos, destacando-se o darkwave, com fuso de world music, msica medieval e da Renascena europeia. () Os Dead Can Dance separaram-se ento em 1998 (). Contudo, tanto Lisa Gerrard [vocalista e compositora] como Brendan Perry [vocalista e compositor] continuam a produzir msica a solo tendo j editado vrios lbuns a solo e inmeras participaes em bandas sonoras de diversos filmes. (in http://.wikipedia.org/wiki/Dead_Can_Dance . Acedido a 15 de Maro de 2011).

    42 Veja-se anexo A 1.1. Consideramos que a mesma msica se enquadraria muito bem nos feitos seguintes; no entanto, talvez se incorresse na pena de tornar toda esta parte do filme demasiado pesada e repetitiva, destituindo-lhe a naturalidade do quotidiano em que os enigmas se manifestam.

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    22

    reservamos tais consideraes para momento mais oportuno (vide ponto 1.3.), dando seguimento

    aos demais feitos retratados pela narrativa flmica43

    Depois de Joana Carda, a vez de conhecermos, atravs da categoria do deslocamento

    . 44

    Professor e alunos dirigem-se para a porta da sala de aula, mas viram-se para trs, olham

    para o cu e a cmara capta uma nuvem de pssaros que envolve Jos Anaio, o qual se mostra

    perplexo perante o sucedido, ao passo que as crianas soltam alguns gritos de medo

    ,

    Jos Anaio, professor primrio, que se encontra no recreio com os seus alunos. A brincadeira

    das crianas interrompida pelo toque da sineta e pela responsabilidade professoral que ordena o

    retomar das suas actividades lectivas.

    45

    certo que um leigo em aves no saber distinguir a espcie em questo, sabendo-o mais

    tarde quando Sassa pergunta a Anaio se os estorninhos iro com eles no dia seguinte. E so

    efectivamente estorninhos que se utilizam no filme, pelo que gostaramos de salientar que o

    efeito especial foi muito bem conseguido.

    .

    O caso de Pedro Orce foi bem mais fcil de adaptar, na medida em que apenas era preciso

    passar a mensagem de que a terra tremia. Assim, vemos Pedro Orce, na sua farmcia, em cima

    de um escadote, a arrumar frascos numa prateleira com a ajuda do seu funcionrio46

    Mas eis que, quando pe os ps no cho, a sua cara espelha um ar de perplexidade e deixa

    soltar a incrdula afirmao de que a terra treme, ao que o funcionrio se aproxima, coloca-lhe as

    mos nos ombros e a sua expresso facial deixa adivinhar a veracidade das palavras de Orce.

    .

    De enigma em enigma, o filme apresenta, seguidamente, o feito de Joaquim Sassa, um

    homem momentaneamente bafejado por uma fora herclea, que, estando numa praia, pega

    numa pedra pesada e consegue atir-la para longe47

    Antes de praticar a ferica aco, Sassa puxa um barco para a areia e comea a atirar para

    mais longe as pedras que se encontram junto do mesmo. No meio dessas pedras, l est mais

    uma parecida com todas as outras, mas de cujo lanamento resulta o seguinte:

    .

    Joaquim Sassa atirou a pedra, (), mas no veio a ser como cuidava, escura e

    pesada a pedra subiu ao ar, desceu e bateu na gua de chapa, com o choque tornou a subir, em grande voo ou salto, e outra vez baixou, e subiu, enfim afundou-se ao largo

    43 Assinalamos que os feitos de Jos Anaio, Pedro Orce, Joaquim Sassa e Maria Guavaira sero apresentados de

    acordo com o modo que a narrativa flmica os adapta. 44 No caso desta personagem, verificamos que transportada para este momento a informao que Joaquim

    Sassa recolhe no restaurante de uma vila da margem do Tejo: [dono do restaurante] O professor da terra, o nome dele Jos Anaio, h uns dias que para onde quer que ele v, vai um bando de estorninhos, no so menos de duzentos, Ou mais, corrigiu o caixeiro-viajante, ainda esta manh os vi quando cheguei, andavam a voar por cima da escola, e faziam tanto barulho de asas e gritos que era um fenmeno. (AJP: 58).

    45 Veja-se anexo A 2. 46 Veja-se anexo A 3. 47 Veja-se anexo A 4.

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    23

    (). Uma onda muito alta veio do largo, espumejando e rebentando, afinal a pedra sempre caiu ao mar, () e a onda desfez-se na areia (). (AJP: 13)

    Reconheamos, todavia, que, no filme, o lanamento da dita pedra e o efeito produzido

    no resultaram da melhor maneira, porquanto se nota que a imagem que nos chega, por falta de

    naturalidade, fruto de uma construo, ou seja, no prima pelos meios tcnicos capazes de

    conferir mais realidade cena tal como acontece com a representao da fenda corporizada no

    risco traado por Joana Carda ou do magnfico novelo de fio azul, resultante do p-de-meia

    desfiado por Maria Guavaira.

    O mesmo tipo de cinema amador tambm est patente no momento em que Jos Anaio

    e Joaquim Sassa empreendem a sua viagem para o desconhecido: a cmara, de frente, capta o

    carro em andamento com os estorninhos e a natureza como pano de fundo, o que faz lembrar

    aqueles filmes de produo antiga e incipiente nos quais, por exemplo, a ideia de movimento, ou

    velocidade, transmitida por um cenrio com muito pouca qualidade de imagem, pelo que

    nitidamente se percebe tratar-se da sobreposio de duas imagens48

    certo que estas questes tcnicas no perturbam nem colocam em causa a informao

    veiculada pela obra que lhe subjaz; o nico resultado ser a possibilidade de causar desconforto a

    um olhar moderno, habituado perfeio cinematogrfica. Mas precisamente neste ponto que

    devemos travar os nossos juzos estticos e questionar se o procedimento no ter sido

    intencional.

    .

    Na verdade, os actos praticados pelas personagens so de tal modo inslitos que o

    realizador poder ter utilizado propositadamente essa estratgia para nos fazer acordar da

    fantasia, assumindo assim a voz de um narrador tambm ele consciente de que se est perante

    enigmas, vocbulo utilizado pelo prprio.

    Feito este pequeno excurso, retomamos as malhas do nosso pensamento que se cruzam

    com a meada de Maria Guaviara.

    O primeiro captulo do romance, semelhana do que se verifica com as restantes

    personagens, no fornece informaes pessoais49

    48 Veja-se anexo A 5.

    , exceptuando os nomes. Todavia, a narrativa

    flmica faz uso da j referida categoria do deslocamento para enquadrar Maria Guavaira no

    espao da sua casa.

    49 O narrador delega para as prprias personagens a revelao da sua identidade como se pode atestar pelo seguinte excerto: E tambm no perguntemos j a Jos Anaio quem e o que faz na vida, donde veio e para onde vai, o que dele houver de saber-se s por ele se saber, e esta descrio, esta parcimnia informativa, devero igualmente contemplar Joana Carda e a sua vara de negrilho, Joaquim Sassa e a pedra que atirou ao mar, Pedro Orce e a cadeira donde se levantou (AJP: 17-8). Parece evidente que, para alm de aguar a curiosidade do leitor, o narrador revela um grande respeito pelas personagens.

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    24

    Assim, vemos esta mulher ao porto de entrada de uma casa grande, de arquitectura

    simples, tem um ar de abandono, antigo () (AJP: 183), rodeada de solido, mas no se vem

    os campos que a rodeiam. Todavia, o espectador poder inferir que aquela mulher uma

    camponesa e que os homens a quem efectua pagamento sero os que a foram ajudar na execuo

    dos trabalhos da lavoura50

    A tela no se inibe de apresentar, ainda, a ousadia do trabalhador mais novo que insinua ser

    capaz de olhar por aquela mulher viva que vai ficar sozinha. Guavaira, apenas responde No

    se preocupe, mas no o ameaa com o tio (cf. AJP: 199), que substitudo por um meneio da

    cabea para que o rapaz tome o seu caminho e enquanto este se afasta ela olha-o com um ar

    ameaador.

    .

    Posto isto, vmo-la no seu quarto. Levanta o colcho da cama e tira de l um p-de-meia

    azul, cena que consideramos demasiado forada51

    No entanto, sem dvida o objecto que interessa para que o possa desfiar e envergar o

    papel de uma Penlope galega, cujo trabalho parece no ter fim; afinal, o longo fio de l azul

    no pra de cair, porm o p-de-meia parece no diminuir de tamanho (AJP: 18),

    acumulando-se no cho, ao p da cama, e que nos mostrado num fundo negro, fazendo

    sobressair a quantidade e a sua cor azul. Todavia, quando Maria Guavaira mostra a Joaquim

    Sassa o novelo enorme, ele no est no quarto, mas sim numa outra diviso (parecida com um

    sto)

    . Uma vez que o registo cinematogrfico no

    optou por seguir o romance, em que Maria Guavaira sobe ao sto, poderia coloc-la, por

    exemplo, a findar uma tarefa domstica (arrumar roupa ou passar a ferro) a fim de que o

    encontro do p-de-meia fosse o mais natural possvel.

    52

    Posto isto, podemos asseverar que a narrativa flmica, indubitavelmente, adapta para a tela

    os enigmas que nos fazem embarcar numa jangada de fantasia, mas no nos podemos deixar

    deslizar pela jangada de palavras ou de imagens, sem antes proceder s consideraes que fomos

    deixando pendentes, pois se os rios so sinuosos, a escrita um mar aberto a interpretaes,

    adaptados para uma tela, por vezes, esbatida.

    , pelo que o espectador poder perguntar como que ele ali foi parar no seria melhor

    ter seguido a indicao do romance?

    50 Veja-se anexo A 6. 51 Veja-se anexo A 7. 52 Veja-se anexo A 8.

  • De JANGADA rumo CEGUEIRA Narrativas em dois formatos: uma anlise intersemitica

    25

    1.3. A (des)ordem da escrita

    com convico que referimos que o realizador (ou a guionista) perdeu o flego nesse

    mar aberto, porquanto desconsiderou aspectos do romance que convergem para a

    intencionalidade comunicativa que o mesmo pretende veicular.

    Nesse sentido, a primeira crtica que se impe diz respeito ordenao dos cinco actos

    inslitos: na narrativa literria, depois de apresentado o feito de Joana Carda, seguem-se o de

    Joaquim Sassa, Pedro Orce, Jos Anaio e Maria Guavaira, ao passo que na narrativa flmica

    Jos Anaio ocupa o lugar de Joaquim Sassa e vice-versa53

    O que aparentemente se afigura de somenos importncia, na medida em que a

    desordenao das aces no compromete o entendimento do filme, ganha revelo ao calar-se a

    voz de um narrador que afirma que Dificlimo acto o de escrever, responsabilidade das

    maiores, basta pensar no extenuante trabalho que ser dispor por ordem temporal os

    acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ()

    .

    54

    Essa dificuldade faz-se sentir quando o narrador mostra no ter certeza de quando Sassa

    realizou a sua proeza: se antes ou depois de Joana Carda talvez antes, talvez depois de ter

    Joana Carda riscado o cho com a vara de negrilho (AJP: 12). Porm, o filme no respeitou a

    ordem do romance, pois que apresenta em segundo lugar os estorninhos de Jos Anaio,

    acontecimento que se realiza, s, Na manh do dia seguinte (AJP: 16)

    (AJP: 14).

    55

    Esta troca dos acontecimentos deixa cair por terra a preocupao que o narrador declara

    perante um leitor que quer tudo explicado, slaba por slaba e uma aps outra, como aqui se

    mostram. Por isso que, tendo-se falado primeiro de Joaquim Sassa, s agora se ir falar de

    Pedro Orce (AJP: 14), numa relao de simultaneidade expressa pela conjuno subordinativa

    temporal quando quando lanar Joaquim Sassa uma pedra ao mar e levantar-se Pedro Orce

    da cadeira foi tudo obra de um instante nico (idem).

    .

    Imaginemos que a narrativa flmica seguia escrupulosamente a ordem temporal da

    narrativa em adaptao. legtimo questionar como apresentaria uma simultaneidade de aces,

    ao que prontamente respondemos que nada seria mais fcil, porquanto a stima arte uma

    caixinha de possibilidades, bastando olhar de relance para os episdios de algumas sries que

    53 Ainda que no tenhamos certeza, parece-nos que esta troca foi operada de forma conscient