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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO IGOR SUZANO MACHADO RONALD DWORKIN E OS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS À INTERPRETAÇÃO DO DIREITO: SUA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SOCIOLOGIA DA JURISDIÇÃO Rio de Janeiro 2007

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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO

IGOR SUZANO MACHADO

RONALD DWORKIN E OS DESAFIOS

CONTEMPORÂNEOS À INTERPRETAÇÃO DO DIREITO:

SUA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SOCIOLOGIA DA

JURISDIÇÃO

Rio de Janeiro

2007

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IGOR SUZANO MACHADO

RONALD DWORKIN E OS DESAFIOS

CONTEMPORÂNEOS À INTERPRETAÇÃO DO DIREITO:

SUA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SOCIOLOGIA DA

JURISDIÇÃO

Dissertação apresentada ao programa de Pós-

graduação em Sociologia, do Instituto

Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro,

como requisito parcial para a obtenção do

título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Jorge Werneck

Vianna

Rio de Janeiro

2007

Dedico este trabalho à memória do aluno

Maurilio Eduardo Vasconcelos e dos professores

Alexandre Martins de Castro Filho, Renato

Pacheco, Alberto Tosi Rodrigues e,

especialmente,

Euro Xavier Suzano (ou Vovorinho).

AGRADECIMENTOS

Sob o risco assustador de deixar de fora da lista alguém importante, chega a hora de dedicar

algumas linhas de agradecimento àqueles que, de alguma forma, contribuíram para a

realização do texto que aqui se encontra.

Primeiramente, agradeço à minha família, em especial aos meus pais, porque sem eles –

com o perdão do clichê – nada disso teria sido possível. Desde o dinheiro salvador ao

carinho e aconchego do lar sempre pronto para me receber de volta, minha família me deu

todo o suporte necessário para enfrentar com êxito o desafio de morar longe das pessoas

que mais gosto e para conseguir sucesso nas minhas escolhas. Estendo o agradecimento

também ao pedacinho carioca da família que sempre teve os braços abertos para mim e se

dispôs a ajudar no que fosse necessário. E claro, entre a parte da família de Vitória e a do

Rio, agradeço ao meu primo Antonio Márcio, que também se mudou de lá para cá, e foi

fundamental nesse período que estivemos, os dois, no Rio.

A vida longe de casa também teria sido muito pior se não fosse pelos colegas que conheci

ao longo do curso – Ângela, Thiago, Caroline, Verônica, Pedro, Wallace, Alessandro,

Rodolfo, Florência, Ludmila (obrigado pela ajuda na dissertação!), Rachel, Ana, Carla... –

e os outros amigos que fiz por aqui – Roberta, Pamella, Thalita... – aos quais agora

agradeço todos por tudo que representaram para mim nesse período. Em especial, agradeço

à Ângela, à Caroline e ao Thiago pelo quanto fizeram melhor meu primeiro ano no Rio de

Janeiro, e a eles adiciono também a Verônica, que, no meu segundo ano aqui, também se

tornou alguém diretamente responsável pelos meus momentos de alegria.

Mas os antigos amigos, que acabaram ficando torcendo de longe, também desempenharam

um papel central nesse percurso, e não posso deixar de agradecê-los. Deixo aqui então, meu

muito obrigado ao Dermeval, à Mili (obrigado pela hospedagem argentina!), ao Lontra, ao

Rodrigo, ao Vinícius, ao Michel, ao Kadu, ao João, ao Humberto, ao Thiago Muniz, ao meu

primo Bruno, ao Fábio, à Patrícia, à Cecéu, à Shirley, à Aline, à Tatiana, à Julia, à Lílian, à

Lidiane, à Dani... Enfim, a esses que foram, sem dúvida, parte importantíssima na recarga

das minhas energias nos momentos de dificuldade.

Também têm lugar especial nos agradecimentos outros capixabas perdidos no Rio,

igualmente responsáveis por fazer da minha vida melhor por aqui: Rafael “Donono” e

Márcia, Mizuno (Arthur) e a “recém-descoberta” Alba Lívia, que ainda me deu uma ajuda

na revisão desta dissertação. E, aos meus companheiros de opção da UFES, Bruno, Camilla

e Márcio, também aproveito para deixar meu obrigado.

Como não pode deixar de ser, agradeço também à CAPES e à CNPq pelo financiamento

que me permitiu dedicação integral ao curso, assim como agradeço, dentro do curso, aos

professores com os quais tive o privilégio de ter contato nas disciplinas que fiz: prof. Carlos

Antônio, prof. Ricardo Benzaquém, prof. Luiz Werneck Vianna, prof. José Maurício

Domingues, prof, Frédéric Vandenberghe, profª. Letícia, prof. Gláucio, profª Gisele

Cittadino, profª. Márcia Nina e prof. José Eisenberg, além do prof. Florian Hoffmann, com

quem não tive o prazer de ter aulas, mas cuja dissertação e conversa me foram de muito

proveito.

Claro que, em especial, entre eles, agradeço pela orientação privilegiada do professor Luiz

Werneck Vianna e pela disposição do professor José Eisenberg, que aceitou assumir a

responsabilidade pelo andamento do meu trabalho quando motivos de força maior

obrigaram o professor Werneck a se afastar de suas atividades profissionais. Aliás, no

momento que escrevo estes agradecimentos, não só deixo meu agradecimento ao professor

Werneck, como aproveito para deixar também meus votos pela sua melhor e mais rápida

recuperação.

Não esqueço, também, de agradecer aos professores anteriores ao mestrado, que também

contribuíram para minha chegada até aqui, com destaque para meus orientadores Erly

Eusébio dos Anjos e Patrícia Pavesi, mas também incluindo a profª Antônia, o prof.

Thimóteo, o prof. Chico e, em memória, o prof. Renato Pacheco.

Por fim, faço um agradecimento todo especial à Jamili por, muito além das dicas de Direito

Ambiental (também importantes), sua inacreditável paciência, solidariedade e dedicação,

além de todo seu carinho comigo. Para minha amada, portanto, deixo aqui, especialmente,

meu muito obrigado e o quanto ela quiser também da minha paciência, solidariedade,

dedicação e carinho...

Igor Suzano Machado

RESUMO

O presente estudo se destina à análise do pensamento do jusfilósofo Ronald Dworkin enquanto interpretação do Direito adequada à realidade jurídica contemporânea e dotada de força enquanto ponto de partida para uma sociologia da jurisdição. Isto é, nosso objeto de estudo é a interpretação que Dworkin faz do Direito, o chamado Direito como integridade, em suas possibilidades instrumentais enquanto descrição satisfatória da jurisdição – atividade desenvolvida pelos juizes em sua função de julgamento – que fundamente pesquisas em que essa jurisdição possa ser relacionada a realidades sociais – teóricas, políticas, morais – que a ultrapassam. Para cumprir seus objetivos, portanto, o texto aqui desenvolvido analisa o embate entre a teoria do Direito de Dworkin e teorias jurídicas outras, como o convencionalismo e o pragmatismo, assim como lança um olhar mais detalhado e crítico sobre a própria teoria de Dworkin do Direito como integridade. E dessas tarefas conclui pela confirmação da hipótese inicial de que a interpretação que Dworkin faz da atividade jurisdicional pode sim ser um ponto de partida frutífero para uma sociologia da jurisdição que precisa ter, necessariamente, como fundamento, uma interpretação satisfatória daquilo que se destina a estudar. Entretanto, por maior que seja sua força enquanto ponto de partida para esse tipo de estudo, a teoria de Dworkin é uma teoria jurídica, de interesses normativos específicos e não serve, por si só, enquanto referencial teórico para análises que associem o julgamento feito por juizes a realidades sociais que o extravasem. Conforme salientado, para uma empreitada desse tipo, tal teoria oferece apenas o seu primeiro passo.

Expressões e Palavras-chave: Sociologia; jurisdição; Direito; Ronald Dworkin; Direito

como integridade; judicialização da política e das relações sociais.

ABSTRACT

This study is adressed to the analysis of the thoughts of the juridical philosopher Ronald Dworkin, as an interpretation of Law that is suitable to the contemporary juridical reality and qualified as a starting point of a jurisdiction sociology. Hence, it is possible to assert that the subject of our study is the interpretation that Dworkin does about the Law, called as Law as integrity, in its instrumental possibilities as a satisfatory description of jurisdiciton – the judges activity developed in their judgement function – and as a foundation that provides researchers a relation between jurisdicition and other social realities – theoretical, political, moral – that goes beyond it. To reach its purposes, this text analyses the clash between the jurisprudence as treated by Dworkin and the jurisprudence as treated by other juridical thoughts like conventionalism and pragmatism, as well as it also looks to the Dworkin’s specific jurisprudence with a more critical and deeper view. By these tasks, this study deduces on the confirmation of our initial hipotesis that the Dworkin’s interpretation of the jurisdiction activity can be a really good starting point for a jurisdicition sociology that makes indispensable, as its foundation, a satisfatory interpretation of what it studies. However, as great as its strenght can be as a starting point for this kind of study, the jurisprudence of Ronald Dworkin has especial normative interests and, alone, it does not help us as a theoretical reference for analysis that links the judges judgement with other social realities that exceed it. As we emphasize, to an enterprise like this one, Dworkin theory offers just its first step.

Expressions and key-words: Sociology; jurisdiction; Law; Ronald Dworkin; Law as

integrity; judicialization of politics and social relations

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: A IMPORTÂNCIA DE UMA ANÁLISE JURISDICIONAL NA

SOCIOLOGIA JURÍDICA BRASILEIRA......................................................................12

1. O CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DA NOVA IMPORTÂNCIA ADQUIRIDA

PELA JURISDIÇÃO

1.1. JURISDIÇÃO, CRIATIVIDADE E DIREITO CONTEMPORÂNEO........................17

1.2. A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DAS RELAÇÕES SOCIAIS......................18

1.3. ATIVISMO JUDICIAL E DELEGAÇÃO LEGISLATIVA.........................................20

1.4. ATIVISMO JUDICIAL E DEMOCRACIA..................................................................22

1.5. A CARACTERIZAÇÃO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL COMO NOSSO

PONTO NECESSÁRIO........................................................................................................25

2. DWORKIN E SEUS RIVAIS

2.1. O TEMPO DO DIREITO...............................................................................................30

2.2. DWORKIN CONTRA O POSITIVISMO.....................................................................34

2.2.1. Aguilhão semântico e teorias interpretativas.........................................................37

2.2.3. Interpretação construtiva e intenção original do autor.........................................38

2.2.4. As etapas da interpretação.......................................................................................42

2.2.5. O convencionalismo..................................................................................................45

2.2.6. A resposta positivista a Dworkin e uma teoria pura do Direito...........................49

2.3. DWORKIN CONTRA O PRAGMATISMO.................................................................54

2.3.1. O pragmatismo e a filosofia......................................................................................56

2.3.2. O pragmatismo e o Direito.......................................................................................59

2.3.2. A resposta pragmatista.............................................................................................62

3. DWORKIN E O DIREITO COMO INTEGRIDADE

3.1. O DIREITO COMO INTEGRIDADE, LINHAS GERAIS...........................................66

3.2. A VIRTUDE POLÍTICA DA INTEGRIDADE............................................................68

3.3. A COMUNIDADE DE PRINCÍPIOS...........................................................................71

3.4. O ROMANCE EM CADEIA DO DIREITO.................................................................75

3.5. O JUIZ HÉRCULES......................................................................................................79

3.6. A TESE DA RESPOSTA CORRETA...........................................................................85

3.7. ARGUMENTOS DE PRINCÍPIO E ARGUMENTOS DE POLÍTICA.......................89

4. UM PEIXINHO CHAMADO SNAIL DARTER

4.1. O CASO SNAIL DARTER..............................................................................................96

4.2. HÉRCULES E O SNAIL DARTER................................................................................96

4.3. A RESPOSTA CORRETA AO CASO SNAIL DARTER..............................................99

4.4. CRÍTICA E CONTRA-CRÍTICA................................................................................101

4.5. METÁFORAS PARA UM SISTEMA JURÍDICO COMPLEXO..............................105

4.6. UM OUTRO DWORKIN............................................................................................109

4.7. DWORKIN, A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E UMA SOCIOLOGIA DA

JURISDIÇÃO.....................................................................................................................117

CONCLUSÃO: O DIREITO COMO INTEGRIDADE COMO PONTO DE

PARTIDA ADEQUADO A UMA SOCIOLOGIA DA JURISDIÇÃO........................120

REFERÊNCIAS................................................................................................................127

“Tudo seria ainda simples se essa distinção

entre justiça e direito fosse uma verdadeira

distinção, uma oposição cujo funcionamento

permanecesse logicamente regulado e

dominável. Mas acontece que o direito

pretende exercer-se em nome da justiça, e

que a justiça exige ser instalada num direito

que deve ser posto em ação (constituído e

aplicado – pela força, ‘enforced’)”.

Força de lei, Jacques Derrida

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INTRODUÇÃO: A IMPORTÂNCIA DE UMA ANÁLISE JURISDICIONAL NA

SOCIOLOGIA JURÍDICA BRASILEIRA

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário brasileiro teve

seu papel republicano redefinido. Na transição para a democracia, sob uma

circunstância mundialmente generalizada de reestruturação da relação entre o Estado e a

sociedade, em conseqüência das grandes transformações produzidas por mais um surto

de modernização do capitalismo, tal poder foi alçado ao primeiro plano da vida pública

ao ser demandado por nova clientela a atuar como esfera de ampliação de direitos

(VIANNA et al. 1997, p. 11-12).

Chamado a dirimir os impasses institucionais entre o Executivo e o Legislativo e a

garantir direitos de cidadãos e empresas em face do intervencionismo estatal, além de

exercer novo papel de garantir a integridade do tecido social em pontos chaves, como a

desintegração familiar, por meio do direito de família e do menor, o Judiciário se vê

inserido num forte contexto de ampliação de sua esfera de atuação, permitindo-nos falar

em uma “judicialização da política e das relações sociais”.1 Como conseqüência disso,

observamos que, seguindo a clássica conceituação de Montesquieu, 2 os três poderes da

República têm se sucedido na preferência da bibliografia e da opinião pública. Assim,

à prevalência do tema do Executivo, instância da qual dependia a reconstrução de um mundo arrasado pela guerra, e que trouxe centralidade aos estudos sobre a burocracia, as elites políticas e a máquina governamental, seguiu-se a do Legislativo, quando uma sociedade civil transformada pelas novas condições da democracia política impôs a agenda de questões que diziam respeito à sua representação, para se inclinar, agora, pelo chamado terceiro Poder e a questão substantiva nele contida – Justiça (Ibidem, p. 24).

Disso resultam fundamentais análises como a empreendida por Werneck et al em Corpo

e alma da magistratura brasileira, a respeito da origem social dos magistrados do

1 Por exemplo, quanto ao caso brasileiro, ver VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política

e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 272 p. (as referências a obras tomadas como um todo serão feitas por meio de notas de rodapé, enquanto referências de citações e partes mais especificas, serão realizadas no corpo do texto, utilizando a chamada por autor, ano e página). 2 MONTESQUIEU, Do espírito das leis. 3 ed. São Paulo: Marins Fontes, 2005. 851 p.

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Brasil e suas posições em face de assuntos como a autonomia do Poder Judiciário e o

associativismo da magistratura. Contudo, conforme salientam os próprios autores do

estudo, em que pese sua envergadura, tal pesquisa participa ainda da fase pioneira da

descoberta desse novo território para a reflexão da Ciência Social brasileira. Segundo

eles, “nenhuma incursão deste tipo poderá ser completa sem a incorporação de análises

qualitativas que, tendo como objeto a sentença e a natureza do feito sob julgamento,

venham a demonstrar ‘para que’ e ‘a quem’ vem servindo todo o imenso aparelho do

Judiciário” (VIANNA et al. 1997, p. 16). Isto é, demanda-se às ciências sociais

brasileiras especial atenção à chamada “jurisdição”: a atividade concernente ao Poder

Judiciário de “dizer o direito”.

Isto porque a atual transformação do Direito, acima aludida, conforme ficará mais claro

adiante, implica tornar obsoleta a célebre caracterização de Montesquieu do juiz

enquanto mera boca inanimada da lei. 3 Atualmente, a lei não é mais suficiente para

guiar o juiz em suas decisões, devendo ele apelar para fontes externas antes de proferir

sua sentença. A lei não se confunde mais com o direito: guarda com ele íntima relação,

mas não é mais capaz de fundamentar, sozinha, todo o sistema jurídico. Hoje em dia, é

necessário conceber o direito como um conjunto não só de regras, mas também de

princípios, e tomar a lei como um produto semi-acabado que deve ser terminado pelo

juiz (GARAPON, 2001, p.40-41).

Ou seja, em razão direta à ampliação da esfera de atuação do poder judiciário, amplia-

se, dentro do mesmo contexto, a importância de sua tarefa jurisdicional. Afinal,

conforme salienta Garapon (Ibidem, p.164), “quão longe vai nossa memória sobre o

direito, a justiça é associada a uma palavra pública, conforme sua etimologia indica:

‘juris-dição’, dizer o direito. O dever primeiro da justiça, enquanto instituição, continua

sendo o de dizer o justo”.

E esse é o ponto central do estudo. Abandonando a vinculação direta à realidade

brasileira, (que, em última instância, não deixa de ser a conjuntura que justifica a

pesquisa e nos fornece, quando necessário, alguns exemplos práticos) o que será

3 MONTESQUIEU, Do espírito das leis. 3 ed. São Paulo: Marins Fontes, 2005. 851 p

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buscado aqui é um enfrentamento em nível teórico, capaz de nos conduzir ao ponto de

partida para um referencial que permita futuras análises, no campo das ciências sociais,

da jurisdição e seus efeitos em dimensões mais amplas que o campo próprio do jurídico.

Norteada necessariamente por uma caracterização satisfatória dessa atividade, a

pesquisa tem como objeto essa caracterização na obra do jurista norte-americano

Ronald Dworkin, que será aqui defendida, em face de interpretações teóricas rivais do

mesmo fenômeno, como a mais adequada aos nossos objetivos.

Isso porque o objetivo da obra de Dworkin é proceder a uma caracterização satisfatória

da atividade judicial, que seja tanto adequada ao que os juizes efetivamente fazem,

como legítima perante uma teoria política democrática. Por conta disso, o autor se vê

obrigado a proceder a uma revisão crítica de outras interpretações da atividade dos

operadores do direito, agrupadas sob as linhagens teóricas do positivismo semântico, do

convencionalismo e do pragmatismo.

Tais linhagens teóricas, segundo Dworkin, devem ser abandonadas como interpretações

inapropriadas do fenômeno jurídico por serem tanto inadequadas à atividade rotineira

dos juristas, quanto por não estarem assentadas numa teoria política democrática que

justifique essa atividade. E esse é o primeiro ponto em que a teoria do Direito de

Dworkin aparece como privilegiada para nosso estudo: não obstante sua própria força,

ela se mostra útil ao destacar as fraquezas de outras interpretações que poderiam, em

tese, guiar nossa pesquisa.

Contra o positivismo semântico, o convencionalismo e o pragmatismo, portanto,

Dworkin caracteriza a atividade jurisdicional como uma atividade interpretativa e

articulada a elementos que ultrapassam o momento da decisão de seus agentes,

incluindo, dentre esses elementos, posições morais e políticas substantivas. Daí toda a

importância que, por si só, sua teoria possui para uma sociologia da jurisdição.

Interessado nos aspectos substantivos da argumentação jurídica – e não em seus

aspectos formais, como estão interessados outros filósofos do Direito negligenciados no

presente trabalho – Dworkin permite a qualquer pesquisa sobre a jurisdição um ponto de

partida assentado numa teoria política democrática e capaz de permitir a análise do

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conteúdo substantivo de decisões judiciais, que focam exatamente ‘para que’ e ‘a quem’

vem servindo todo o aparelho do Judiciário.

Para uma melhor exposição da teoria do Direito de Dworkin, enquanto caracterização

da atividade judicial que sirva como ponto de partida para uma sociologia da

jurisdição – o que é o nosso objeto de estudo – o presente trabalho foi dividido em

quatro capítulos, além de sua introdução e conclusão.

No primeiro capítulo, buscaremos realizar uma breve contextualização do nosso estudo,

deixando claro que tipo de desafios a atual configuração do poder judiciário impõe a

uma interpretação coerente do que seja o Direito. Dessa forma, procuraremos mostrar,

ao longo do texto, porque a interpretação do Direito de Dworkin é a mais adequada a

essa atual configuração, na qual transformações recentes do fenômeno jurídico exigem

especial atenção a aspectos negligenciados, por exemplo, pela interpretação da atividade

judicial tal como proposta pelo positivismo jurídico.

Já no segundo capítulo, o que buscaremos é o enfrentamento direto entre Dworkin, o

positivismo – em suas variações semântica e interpretativa – e o pragmatismo. Com

isso, buscaremos expor não apenas as falhas que Dworkin aponta dentro de tais

concepções do Direito rivais à sua, mas também deixar claros os exatos pontos de

embate entre Dworkin e essas outras teorias jurídicas, como pontos fundamentais para a

construção de sua própria teoria interpretativa do Direito.

No terceiro capítulo, por sua vez, superadas as querelas de Dworkin com o positivismo

e o pragmatismo, nosso objetivo consistirá em expor mais detalhadamente a própria

interpretação do Direito de Dworkin: o Direito como Integridade. É nesse ponto que

buscaremos tornar mais claras algumas noções dworkinianas como a virtude política da

integridade, as metáforas do romance em cadeia e do juiz Hércules, além da tese da

existência de uma única resposta correta para qualquer caso jurídico e a diferenciação

entre argumentos de política e argumentos de princípio.

16

Assim, conhecendo melhor o Direito como integridade de Dworkin, procederemos, no

quarto capítulo, à análise de uma aplicação concreta de sua teoria a um caso “real”.

Trata-se do julgamento, pelo juiz Hércules, do caso snail darter, julgado, originalmente,

pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Sendo Hércules a representação metafórica da

atividade jurisdicional de juizes que compartilham com Dworkin a interpretação do

Direito como integridade, seu julgamento do caso snail darter nos servirá como objeto

privilegiado de análise da teoria de Dworkin, apontando suas possíveis fraquezas e

testando sua funcionalidade enquanto interpretação coerente da prática jurídica, útil a

uma sociologia da jurisdição.

Por fim, com base no exposto nos capítulos anteriores, apresentaremos nossa conclusão,

buscando explicitar como e até que ponto a teoria do Direito de Ronald Dworkin, o

Direito como integridade, serve-nos bem enquanto ponto de partida para uma

“sociologia jurisdicional”. Isto é, neste ponto, averiguaremos se a interpretação do

Direito por Dworkin é coerente em face da configuração contemporânea do poder

judiciário e se, tal interpretação, apresenta a jurisdição sob um prisma que a torna

analisável em aspectos relacionais perante realidades sociais outras, como a política e a

moral, permitindo sua análise sociológica.

Partamos então, portanto, para a contextualização prometida para nosso primeiro

capítulo.

17

1. O CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DA NOVA IMPORTÂNCIA ADQUIRIDA

PELA JURISDIÇÃO

1.1. JURISDIÇÃO, CRIATIVIDADE E DIREITO CONTEMPORÂNEO

A atividade jurisdicional, isto é, o encargo de magistrados de qualquer grau de “declarar

o direito”, subsumindo norma universal a um caso concreto levado a juízo, enquanto

atividade interpretativa é, necessariamente, também uma atividade criativa

(CITTADINO, 2003, p.38). Isso não impede, todavia, que a criatividade nela envolvida

não encontre maior ou menor destaque, dependendo da conjuntura concreta analisada.

Como atividade que encontra sua identidade na função de aplicação do direito, em

oposição à sua criação, a jurisdição tem sempre como traço seu fundamental a limitação

mesma dessa criatividade. A exata localização das fronteiras entre simplesmente

“declarar o direito” e “criá-lo” é o que está em jogo quando definimos o que é a

jurisdição.

É nesses termos que Weber, 4 sem negar a parte criativa da atividade de qualquer agente

responsável pela jurisdição, não deixa de destacar o esforço efetuado ao longo do tempo

com o propósito de limitar esse espaço de arbitrariedade dentro de tal função de apenas

“declarar” o direito. Assim, imbuído de sua visão do mundo enquanto vítima de um

progressivo desencantamento e racionalização, Weber previa para o Direito uma

história voltada para a gradual supressão da área de manobra de seus operadores no que

diz respeito à parte “criativa” de suas decisões, o que se daria por meio da disseminação

do modelo de jurisdição europeu continental, pautado pelo direito estatuído, em

detrimento do modelo britânico e norte-americano, baseado no direito consuetudinário.

No primeiro modelo, conhecido como modelo da civil law, as leis são positivadas em

códigos e os agentes responsáveis pela jurisdição, organizam-se numa estrutura

burocrática, pautada pela subordinação hierárquica. No segundo, conhecido como

modelo da common law, há menos leis escritas do que normas consuetudinárias, maior

peso das decisões judiciais anteriores na determinação do conteúdo das decisões que 4 WEBER, Max. Sociologia do direito. In: WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Unb, 2004. p. 1-153. Vol. 2.

18

estejam por vir, e alguns de seus juizes são agentes políticos eleitos. E não é difícil

deduzir daí que a liberdade de criação atribuída aos juizes do segundo modelo é bem

maior que a atribuída aos do primeiro. Isto é, também em termos weberianos, 5 a

atividade dos juizes da common law é bem mais política e menos burocrática do que a

dos juizes da civil law.

Contudo, contrariando o diagnóstico de Weber, as mudanças ocorridas no Direito

contemporâneo mostraram uma aproximação dessas duas grandes famílias jurídicas – a

da common law e a da civil law – no sentido oposto: foram os juizes das burocracias de

direito codificado que assumiram funções mais próximas das de seus equivalentes do

modelo de normas consuetudinárias, e não o contrário. E a conseqüência lógica disso é

que a criatividade contida no processo jurisdicional, isto é, o aspecto mais notadamente

político dessa atividade, passou a ter cada vez mais destaque no desenvolvimento

contemporâneo do Direito. Frente à derrocada da caracterização do poder judiciário

como mera “boca inanimada da lei”, emergem para dar conta dessas recentes

transformações conceitos analíticos como o de “ativismo judiciário” e de “politização

da justiça”, chamando sempre atenção para essa mudança de perspectiva sobre os

limites à criatividade jurisdicional.

1.2. A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DAS RELAÇÕES SOCIAIS

O contexto em que têm lugar tais transformações do poder judiciário e,

conseqüentemente, da atividade jurisdicional, é, conforme anteriormente salientado, o

da judicialização da política e das relações sociais, sob a égide do capitalismo e do

Estado Democrático de Direito contemporâneos. Conforme salientam C. Neal Tate e

Torbjörn Valinder, 6 observamos um processo mundial de expansão do poder judiciário,

que tem como aspecto mais dramático a chamada judicialização da política, tanto no

sentido de uma transferência, para esse poder, de algumas esferas de decisão do poder

5 Sobre a diferença entre os tipos ideais do político e do burocrata em Weber, ver: WEBER, Max. A Política como Vocação & WEBER, Max. Burocracia. In: Ensaios de Sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro, LTC Editora, 2002. p. 55-89 e 138-170 6 TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn. The global expansion of judicial power: the judicialization of

politcs. In: TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of the Judicial Power. New York & London: New York/london, New York University Press, 1995. p. 1-37.

19

legislativo e executivo, quanto no sentido de uma assimilação de seus métodos na

formulação de decisões tomadas no âmbito desses outros dois poderes (TATE e

VALLINDER, 1995, p.5).

Em termos de tipos ideais, poderíamos dizer que o método de decisão do poder

judiciário envolve a sentença de um juiz imparcial que se decide após pesar os

argumentos de duas partes envolvidas numa disputa sobre um direito, objetivando

resolver casos específicos, enquanto que o método de decisão legislativo se dá pelo

princípio da maioria, envolvendo várias partes interessadas, por meio de barganhas,

conchavos e acordos com portas fechadas, buscando leis gerais e orientações políticas

(TATE e VALLINDER, 1995, p.14.). A expansão do poder judiciário e conseqüente

judicialização da política envolve a flexibilização das fronteiras entre essas duas

maneiras características de agir, dando ênfase ao cumprimento de objetivos legislativos

pelo judiciário e à utilização do modelo judiciário em decisões do legislativo.7

E um exemplo marcante desse fenômeno se apresenta na revisão judicial das decisões

do legislativo e executivo, por meio das cortes constitucionais cada vez mais comuns na

realidade jurídica contemporânea. Mediante tal processo, cabe a essas cortes anular tais

decisões em sendo elas contrárias a certos princípios constitucionais de formulação, não

apenas formais, mas também materiais, como, por exemplo, o respeito à liberdade dos e

à igualdade entre os cidadãos, como acontece no caso do julgamento procedente das

Ações Diretas de Inconstitucionalidade, previstas pelo Direito Constitucional brasileiro.

Conforme salientam Vianna et al (1997, p.31):

[O] constitucionalismo democrático conduz a uma crescente expansão do âmbito de intervenção do Poder Judiciário sobre as decisões dos demais poderes, pondo em evidência o novo papel daquele Poder na vida coletiva – o que já justificaria o uso da expressão de “democracia jurisdicional” como designação política do Ocidente desenvolvido. A desneutralização do Judiciário, a emergência de seu ativismo e sobretudo a “judicialização da política” seriam processos afirmativos em escala universal, compreendendo tanto os sistemas de common law como os de civil law, diagnóstico que, uma década atrás levou M. Capelletti à conhecida previsão de que o Judiciário se consistiria no “Terceiro Gigante”, e que,

7 Para diferenciá-lo do primeiro, esse segundo processo também é designado por Eisenberg (2003, p.47), como “tribunalização” da política.

20

agora, se reforça com o influente The Global Expansion of Judicial

Power, coletânea de textos organizada por C. N. Tate e T. Vallinder, que sinaliza na mesma direção.

Uma série de características contribui com esse quadro de expansão do poder dos juizes

e tribunais. Dentre elas, podemos destacar a influência do sistema político e judicial

norte-americano, com a vitória dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial; a

queda, com o fim dessa guerra, de regimes totalitaristas derivados do princípio

majoritário; e o reavivamento de teorias jusnaturalistas reformuladas por filósofos

políticos e do Direito.

Esmiuçando os três pontos, podemos dizer que, nos Estados Unidos, a separação dos

poderes, voltada para um sistema de pesos e contrapesos, já conhecia o poder de revisão

das decisões legislativas pelo poder judiciário e o aumento da influência global desse

país tem como reflexo o aumento de influência de seu sistema político. Igualmente, a

conquista do poder por regimes totalitários mesmo em sistemas democráticos sujeitos à

regra da maioria, revelou que algo além dessa regra deveria ser exigido para garantir a

própria sobrevivência da democracia, sendo necessária assim, por conseqüência, uma

maior atuação do poder judiciário como protetor qualificado desse “algo além” que se

refletiria em princípios jurídicos constitucionais e cláusulas pétreas. Por fim, não

obstante o enfraquecimento das teorias jusnaturalistas em face de teorias positivistas,

teorias deontológicas da justiça, como a de John Rawls, 8 voltaram à discussão

acadêmica propondo um direito, para além das formalidades, garantidor de justiça e

bem estar, ressaltando mais uma vez, a importância, nesse quadro, da atuação do poder

judiciário.

1.3. ATIVISMO JUDICIAL E DELEGAÇÃO LEGISLATIVA

Contudo, C. Neal Tate e Torbjörn Valinder não deixam de destacar que a “invasão” do

poder judiciário a outras esferas do governo, não teve origem num “ativismo dos

juizes”, mas sim derivou de exigências nascidas no seio de outros poderes. Foi

principalmente por delegação legislativa e executiva que se deu o caminho da expansão

8 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, 708 p.

21

do poder judicial. Outras esferas do governo, considerando o judiciário mais qualificado

para tratar de certos assuntos, utilizaram a legislação para exigir a sua atuação nesse

sentido. De qualquer forma, cabe ressaltar que de nada adiantaria a porta ser aberta ao

judiciário, se este não aceitasse o convite para entrar (TATE, N.C. e VALLINDER, T.,

1995, p.33). Resta saber, contudo, como uma categoria tradicionalmente conservadora,

como a dos juizes, tornou-se atuante.

Mauro Cappelletti, admitindo que toda atividade interpretativa é também criativa –

incluindo aí a atividade dos juizes – entende que as atividades legislativa e judiciária se

diferenciam no grau e não na natureza. Ou seja, trata-se de dois momentos criativos do

direito, mas, dependendo de qual, mais, ou menos, limitado (CAPPELLETTI, 1993,

pp.26-27). O chamado ativismo judicial seria assim, um aumento da necessidade e

intensidade de uma criatividade judiciária que sempre existiu. Dessa forma, o ponto

chave seria destacar quais seriam os motivos desse aumento de necessidade e

intensidade, enquanto causas desse “ativismo”, que assim, estaria mais relacionado à

radicalização de uma função já existente do que à assimilação de função nova.

Tendo isso em vista, o autor destaca que os juizes foram “empurrados” em direção ao

“ativismo” – isto é, empurrados em direção a uma atividade interpretativa mais cobrada

e num maior nível de intensidade – por fatores como a crítica ao formalismo, a

legislação social do welfare state, o declínio da confiança no poder legislativo, a

massificação oriunda da revolução industrial (e conseqüente proteção de direitos difusos

e coletivos) e a inserção de cartas de direitos humanos nos modernos ordenamentos

jurídicos.

A crítica ao formalismo ressaltou o papel da escolha – então encoberto pela visão do

processo judicial como simples fórmula – expondo a responsabilidade dos juizes por

suas decisões, que não seriam assim, resultado de um mero procedimento. Da mesma

forma, com a legislação social do welfare state, o Estado assumiu papéis além da

repressão e proteção, responsabilizando-se por direitos sociais que exigem sua

intervenção ativa ao longo do tempo. A formulação legislativa passaria, dessa maneira,

22

a contar com termos mais vagos, imprecisos e voltados para o futuro, e não passado,

exigindo sua concretude através da atividade criativa dos juizes.

Além disso, os parlamentos, fonte tradicional do direito, tiveram sua legitimidade

atacada com base na sua formação por políticos profissionais, voltados para a reeleição

e perpetuação no poder, com interesses de curto prazo, comprometidos com prioridades

locais, corporativas ou de grupo, o que exigiria a ação do poder judiciário como

contraponto necessário ao legislativo, num sistema de checks and balances. E isso é

igualmente válido com relação ao poder executivo, que se “agiganta” com o Estado de

bem estar social e exige o mesmo “gigantismo” do judiciário para manter o equilíbrio de

forças entre os três poderes.

Por fim, a sociedade de massas oriunda da revolução industrial trouxe à tona direitos

difusos e coletivos que requerem para sua proteção e efetivação a atuação dos juizes

além do processo tradicional que envolve atores individuais. Já que os interesses de

grupos passam a dar o tom das relações sociais atuais, deveria o judiciário desenvolver

meios de concretizá-los além dos, ou até mesmo, em detrimento dos, demais poderes. E

o mesmo pode ser dito a respeito dos direitos e garantias fundamentais que se têm

inscrito nas modernas ordens constitucionais por meio das chamadas “cartas de

direitos”, que devem ser protegidos de uma possível “orgia de leis” no parlamento, ou

de um possível autoritarismo na administração. Sua proteção faz necessária a atuação

criativa do poder judiciário, tendo em vista que, inclusive, tais direitos envolvem

valores e preceitos vagos e conflituosos que exigem a interpretação judicial enquanto

forma necessária de concretização.

1.4. ATIVISMO JUDICIAL E DEMOCRACIA

Tomado o debate nesses termos, faria sentido falarmos, quando nos referimos à

expansão do poder judiciário, ocupando lugares tradicionalmente ocupados por outros

poderes, que estamos diante de um “imperialismo judicial”? Da mesma forma,

poderíamos dizer que tal expansão é fruto de um ativismo judicial em que os juizes

buscariam ampliar seus próprios poderes? Por fim, poderíamos nos considerar diante de

um fenômeno necessariamente contrário ao sistema democrático?

23

Ao que tudo indica, não seria esse o caso. E ilustrativa desse ponto é a conferência que

origina a obra organizada por Robert Badinter e Stephen Breyer, Judges in

Contemporary Democracy. 9 Na mesma direção dos trabalhos acima citados, os

debatedores envolvidos na conferência destacam que o ganho de poder por parte do

judiciário tem origem em decisões políticas de esferas outras, que, por exemplo, criaram

as cortes constitucionais e lhes garantiram cada vez mais poder. 10 (BADINTER e

BREYER, 2004, p.30) Igualmente, se se trata de fato basicamente antidemocrático, é de

se estranhar o aumento desse poder, ancorado em prescrição legislativa e apoio popular,

exatamente em países que se encontraram na situação de restauração de um sistema

democrático após períodos de ditadura 11 (BADINTER e BREYER, 2004, p.36).

Mesmo quando sua influência sobre a política vai além da regulação do processo

legislativo, para interferir no próprio processo eleitoral, temos que a expansão do poder

judiciário, ainda assim, atuaria mais no sentido de preservar a democracia do que no de

debilitá-la. Supervisionando as eleições, regulando o financiamento de campanhas e

interpretando as normas éticas da disputa eleitoral, o judiciário atuaria como membro

desinteressado – ao contrário dos demais poderes – na conservação de uma disputa

eleitoral democraticamente saudável, garantindo a participação política de minorias e

não permitindo, por exemplo, que o poder econômico dos candidatos dê o tom da

disputa, ou tampouco, que a vitória nas urnas se consiga por meio de corrupção e

fraude, em vez de confiança e livre exposição e debate de idéias.

Assim, o panorama de inserção do Poder Judiciário no primeiro plano da vida pública

não tem a ver com a usurpação antidemocrática deste poder a funções de poderes

outros, mas sim com a ampliação da atuação do próprio judiciário enquanto agente

democrático. A atual conjuntura democrática se caracterizaria, dessa forma, por uma

9 BADINTER, Robert e BREYER, Stephen. (orgs). Judges in Contemporary Democracy. New

York/London: New York University Press, 2004. 317 p. 10 Palavras de Dieter Grimm: “Em suma, eu diria que existe um enorme ganho de poder por parte dos juizes, mas isso se fez possível, primeiramente, por decisões políticas estabelecendo cortes e concedendo-lhes mais e mais poder.” 11 Palavras de Robert Badinter: “Durante as últimas décadas do século XX, toda vez que um regime totalitário se tornou democrático, houve uma vontade política de erigir fortíssimas defesas judiciais com o objetivo de garantir as liberdades públicas e individuais.”

24

dupla representatividade: “a funcional, derivada das leis, sobretudo da Constituição; e a

procedural, emanada diretamente do corpo eleitoral, a única reconhecida pela visão

monista do político” (ROSANVALLON, citado por VIANNA e BURGOS, 2003,

p.371), disso resultando uma soberania complexa, característica das democracias

modernas.

Nas palavras de Vianna e Burgos (ibidem, p.371):

A soberania complexa, ao combinar essas duas formas de representação, expande, e não contrai, a participação e a influência da sociedade no processo político, e no contexto da modernidade, se tem afirmado, em um processo que parece não admitir retorno, no sentido de favorecer a auto-instituição do social pelas vias institucionalmente disponíveis, entre as quais, decerto, as da democracia representativa.

Ou seja, “não se trata, pois, de uma ‘migração’ do lugar da democracia para o da justiça,

mas da sua ampliação pela generalização da representação, que pode ser ativada tanto

pela cidadania política nas instituições clássicas da soberania quanto pela ‘cidadania

social’” (Ibidem, p. 370-1) que faria uso de “equivalentes funcionais” de democracia

direta, por exemplo, com a participação, entre outros, da sociedade civil organizada e do

Ministério Público no controle de constitucionalidade das leis.

Contudo, mesmo que não nos encontremos face a face com um processo contrário à

democracia, conforme salienta Gisele Cittadino (2003, p.19), “nunca é demais insistir

no tema da responsabilidade democrática dos juizes quando se debate o tema da

judicialização da política”. Ainda que não restem dúvidas a respeito da importância

atual do poder judiciário na concretização dos direitos da cidadania, devemos lembrar

que se trata, em muitos casos, de um poder composto por membros não eleitos, sem

uma responsabilidade direta perante um público eleitor.

Assim, por mais legítimo que seja o movimento político a lhe dar sustentação, o vínculo

existente entre o “ativismo judicial” e o reforço democrático que subjaz ao processo de

“judicialização da política” não pode viabilizar a quebra de limites normativos à

soberania popular (ibidem, p. 37). Em outras palavras, os juizes, mesmo que

garantidores de direitos fundamentais e vigilantes da ordem constitucional, não podem

25

substituir aos legisladores e o processo de judicialização da política não pode se perder

no seu papel de reanimação da esfera pública e acabar por transformar cidadãos em

clientes de uma burocracia judiciária. Nas palavras ainda de Cittadino (2003, p.18),

podemos resumir a questão salientando que “confundir a política com o direito é

certamente um risco para qualquer sociedade democrática”, sem esquecer, contudo, que

“acreditar, no entanto, que a ‘fraqueza do direito’ possa ser garantia de liberdade para os

indivíduos é certamente um risco maior”.

Disso se segue que qualquer concepção coerente do que seja o Direito hoje em dia e,

por conseguinte, do que seja a atividade jurisdicional, deve dar conta, satisfatoriamente,

dessa relação entre a Política e o Direito em seus pontos de aproximação e

distanciamento, assim como da função criativa do poder judiciário, seu âmbito de

escolha em suas decisões e, em decorrência disso, sua responsabilidade por elas.

1.5. A CARACTERIZAÇÃO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL COMO NOSSO

PONTO NECESSÁRIO

Tendo isso em vista, o presente trabalho busca analisar, sob o prisma de sua capacidade

de responder aos problemas anteriormente expostos, a teoria do Direito como

Integridade de Ronald Dworkin. Isso porque, não obstante a popularidade e força de tal

teoria, sua construção também envolve Dworkin num trabalho de diálogo com outras

teorias de interpretação do Direito igualmente dotadas de grande força e popularidade: o

positivismo e o pragmatismo jurídicos. Sendo assim, a análise de sua teoria

necessariamente levaria em conta a crítica a essas outras duas correntes e exporia como,

ou até que ponto, a própria teoria do Direito como Integridade de Dworkin, supera as

demais concepções e responde de forma satisfatória às questões postas à epistemologia

contemporânea do Direito, já que, ao seu modo, busca interpretar o Direito levando em

conta suas relações com a Política e a criatividade judicial.

Todavia, Dworkin desenvolve sua teoria sob a égide de interesses muito diferentes dos

nossos. Por mais que busque uma melhor descrição possível da prática jurisdicional,

tendo em vista o que os juizes efetivamente fazem, Dworkin possui um interesse último

26

normativo, um interesse propriamente jurídico, voltado para a correção do processo

hermenêutico sobre o qual se desenvolve tal prática.

Contudo, por mais que nossos interesses não coincidam com os de Dworkin, o autor é

trazido à tona aqui pelos aspectos descritivos de sua teoria, a serem tomados de forma

crítica em nossa pesquisa já que, interessada que está em constituir um ponto de partida

para um referencial teórico que permita a análise da jurisdição em sua inserção em

contextos mais amplos que a atividade dos juizes, ela clama pelo ponto necessário de

definir o que é exatamente que estamos tomando como jurisdição.

Apesar de aparentemente lógico que a montagem de um referencial para a análise da

jurisdição se esforce por definir o que é esta jurisdição, é plenamente cabível uma

objeção preliminar a este ponto: se nosso interesse final reside na possibilidade da

análise de decisões judiciais tomadas tanto como fruto, quanto como conjuntura

conformativa de contextos mais amplos que ela, por que nos importaria, efetivamente, o

processo de que resulta essa decisão? Não poderíamos deixá-lo de lado, tomando seu

produto – a decisão judicial – como dado isolado, independente de ser resultado de um

procedimento tradicionalmente descrito como atividade jurisdicional ou de um

procedimento tradicionalmente descrito como a subversão dessa mesma atividade,

desde que realizado por um juiz?

Nossa resposta a essa objeção é a de que, mesmo dentro de nossos interesses, continua

importante sim, uma caracterização fidedigna da jurisdição e que essa caracterização é

importante mesmo dentro de uma perspectiva cujos fins últimos não sejam

especificamente normativos. E assim nos posicionamos pelos seguintes fatos.

Primeiramente, por questões instrumentais, definiremos o que entendemos por

jurisdição para situar leituras, isto é, para deixar claro sobre o que falamos quando

fazemos uso do termo, já que, dependendo do referencial adotado, dworkiniano ou

positivista, por exemplo, o termo pode apresentar diferenças substantivas na

caracterização dessa atividade.

27

Em segundo lugar, uma definição mais precisa de jurisdição atende ao exato ponto de

manter aberto o espaço para a crítica de sua subversão por lógicas externas, assim como

justificar sua lógica sui generis que, por sua vez, é o que justifica buscarmos aqui um

referencial próprio para sua análise. Por exemplo, poderíamos dizer se tratar de

atividade jurisdicional a produção de uma sentença judicial motivada por sua compra

por uma das partes? A lógica da manifestação de uma autoridade judiciária respondendo

a uma demanda financeira privada é a mesma de uma manifestação propriamente

judicial dessa autoridade, na qual as partes serão tratadas em condições de igualdade,

seus argumentos serão pesados de acordo com o caso concreto e a decisão final será

tomada de forma tributária a um ordenamento jurídico complexo dotado de numerosas

regras e princípios? A definição do que entendemos por jurisdição dessa forma, serve

para deixar claro que não nos referimos a casos de subversão dessa definição – que,

criticamente, devem ser tratados precisamente como uma subversão – assim como

justificar a própria pesquisa, ao fazê-la se reportar a uma atividade especifica, que

demanda referências próprias de análise. Operando sob lógicas como a da compra e

venda de sentenças, por exemplo, a atividade de declaração do direito por um juiz torna-

se melhor analisável sob teorias de mercado, que não são nosso foco, adequadas a tomar

as partes de um processo como consumidores e a sentença final desse processo como

mercadoria.

Por fim, o fato do presente estudo não ter objetivos últimos normativos não implica que

nosso propósito é erigir um edifício teórico sobre um vazio institucional ou sobre o

desprezo pelas instituições em meio às quais se desenvolve a atividade sob análise.

Parece claro, pelo já exposto anteriormente, o quanto pode ser controversa a ampliação

da atividade jurisdicional numa sociedade democrática pelos riscos de subversão dessa

mesma lógica democrática por uma teologia dos tribunais. Por esse motivo, uma clara

definição do que entendemos por jurisdição cumpre também uma função retórica em

nossa argumentação ao inserir o estudo numa situação de respeito às instituições

democráticas. Manter aberta a possibilidade de crítica também nessa direção, ao

estipular fronteiras entre os procedimentos jurisdicionais e legislativos por meio da

exata definição do primeiro processo, tem a responsabilidade de inserir o estudo num

contexto democrático em que a jurisdição, coerentemente definida, não faça referência

28

nem a um Direito que seja instância última de regulação social, nem a um Direito

insulado em si mesmo, alheio a seu entorno.

Sendo assim, é por essa necessidade de definição da atividade jurisdicional como ponto

principal da pesquisa que trazemos à tona a obra de Dworkin.

Recapitulando, conforme já mencionado, a escolha de Dworkin tem a ver tanto com a

força da teoria por ele próprio desenvolvida, como pela crítica interna que essa teoria

carrega em face de outras duas teorias jurídicas que também, ao seu modo, definem a

atividade jurisdicional: o positivismo e o pragmatismo. Dessa forma, a teoria do direito

como integridade de Dworkin, será defendida como a que carrega consigo, em face

dessas suas duas concepções rivais do que seja o Direito, a melhor definição da

jurisdição, dentro de nossos interesses de pesquisa específicos.

Contudo, conforme também já salientado, a interpretação de Dworkin do fenômeno

jurídico é dotada de uma dimensão descritiva e uma normativa, que possuem

implicações inter-relacionadas. Como nosso estudo não pretende deter-se apenas a uma

boa descrição da atividade jurisdicional, mas também operacionalizar tal descrição para

a análise de decisões jurídicas específicas, tomadas dentro de sua influência em e

submissão a contextos mais amplos, faremos posteriormente necessário um

enfrentamento crítico do aspecto normativo da interpretação dworkiniana da jurisdição,

de forma a “abrir” seu referencial a uma instância que vá além da correção ou não dos

procedimentos jurisdicionais.

Afinal, corretos ou incorretos sob um prisma normativo, os frutos da atividade

jurisdicional possuirão, em ambos os casos, conseqüências sobre contextos sociais que

os extravasam. E esse é o ponto no qual precisamos ir além de Dworkin, por exigência

mesmo de nossos interesses de pesquisa. Isso não impede, todavia, que nosso objeto

continue sendo, necessariamente, este: a reconstrução crítica da teoria jurídica de

Dworkin, como interpretação poderosa da atividade jurisdicional, perante interpretações

rivais do mesmo fenômeno, dotada, contudo, de objetivos que divergem dos nossos. E

29

esse é o tema que começaremos a desenvolver no capítulo a seguir, por meio do

enfrentamento teórico entre Dworkin e seus rivais positivistas e pragmatistas.

30

2. DWORKIN E SEUS RIVAIS

2.1. O TEMPO DO DIREITO

Segundo François Ost, em distinção das demais espécies, os seres humanos procedem a

uma reconstrução social do tempo, que não se confunde nem com sua manifestação

objetiva, nem com sua experiência subjetiva (OST, 2005, p.12). Assim, são eles capazes

de instaurar um “tempo público” que, à semelhança de um “espaço público”, ligado a

um ponto espacial físico, mas capaz de transcendê-lo, guarda relação com determinado

lapso temporal, ao mesmo tempo em que o ultrapassa (Ibidem, p.21).

Contudo, tal temporalidade social está sujeita a um risco constante de

“destemporalização”, por quatro diferentes vias. A primeira dessas vias reside na recusa

da temporalidade no sentido de rejeição da contínua mudança, evolução, finitude e

mortalidade, do que resulta a nostalgia de uma eternidade perdida, que tem como

reflexo o refúgio individual em paraísos artificiais ou fantasmas coletivos de idades de

ouro míticas, e cuja conseqüência é uma temporalidade social paralisada. Já a segunda

via de destemporalização tem lugar na total entrega do tempo social à entropia do

tempo físico, cujo movimento, irreversível, conduz toda coisa à destruição e,

conseqüentemente, conduz a sociedade à impossibilidade de controle de tal fluxo,

abrindo mão de atribuir-lhe um sentido propriamente humano. A terceira via de

destemporalização, por sua vez, está associada ao determinismo, que representa o tempo

como um todo homogêneo e uniforme, pleno e contínuo, no qual não sobra espaço para

a atuação humana como capaz da ruptura e da descontinuidade, isto é, que, além de

criadora de uma história instituída e, logo, durável, é, ao mesmo tempo, criadora de uma

história instituinte e, logo, revolucionária. Por fim, a quarta via de destemporalização

reside na “discronia” geradora de desintegração social que pode vir a aflorar na falta de

mecanismos de solidariedade temporal capazes de gerir a “policronia”, ou seja, capazes

de gerir os vários ritmos que o tempo pode assumir dentro de uma mesma sociedade,

devido ao pluralismo que pode caracterizá-la (Ibidem, p.15-16).

31

Dentro desse contexto, “contra a tendência regressiva da eternização, é preciso fazer

valer o tempo desligado da mudança, mas, contra a irreversibilidade mortífera da

mudança física, é necessário tentar a ligação cultural entre o passado e o futuro, na

fecundação reflexiva do projeto pela experiência”. Da mesma forma, “contra as

lentidões do determinismo histórico, é preciso abrir as brechas da iniciativa e da

alternativa, mas de encontro às temporalidades abertas de sociedades

hiperindividualistas, é preciso imaginar mecanismos de concordância dos tempos”

(OST, 2005, p.16-17).

Por conta disso, contra as tendências destemporalizadoras acima aludidas, a memória

que liga o passado, garantindo-lhe o registro, assim como o perdão, que o desliga,

imprimindo-lhe novo sentido, lado a lado à promessa, que liga o futuro através de

comprometimentos normativos, e à retomada da discussão, que desliga o futuro,

operando revisões que se impõem, para que sobrevivam as promessas frente a mudanças

de contexto, operam como figuras de retemporalização (ibidem, p.17).

E não é difícil notar a relação de tais figuras com o Direito e, daí, a importância deste na

constituição, manutenção e reconstrução do tempo público, instituindo, em cada caso,

um tempo próprio pela força de seus performativos. Contra a naturalidade do

esquecimento, ele instaura a tradição na força da lei que perdura no tempo como marco

de fundação identitário e faz com que a memória ligue o passado. Mas em face do

irrecusável da falta e do inextinguível da dívida, ele arrisca o perdão, que marca a

vitória da liberdade, em reviravoltas jurisprudenciais responsáveis por, quando

necessário, também desligar esse mesmo passado. Confrontado com a incerteza do

amanhã, ele institui a aliança, a promessa e a lei que são como o mapa de um país,

entretanto ainda inexplorado, ligando o futuro, como nos contratos a serem cumpridos e

nos programas constitucionais a serem realizados. Porém, contra força de sua própria

letra, ele igualmente sabe ainda inventar os processos da retomada da discussão e

desligar o futuro para reencontrar o traço do espírito que aí se perdera, regulando

juridicamente o próprio processo legislativo (ibidem, p.42-43). Dessa forma, “ligando

aquilo que arrisca se separar, desligando o que se tornou inextricável, o tempo jurídico

sabe operar então em ‘contratempo’; quer dizer: de encontro ao tempo natural,

32

homogêneo, linear, irresistivelmente arrastado na tendência entrópica” 12 (OST, 2005,

p.43).

Por isso, temos que o ser humano é o único ser vivo capaz de fazer “a ampulheta

voltar”, sendo capaz de arrancar-se do escoamento irreversível do tempo físico, ligando

o que, a cada instante, ameaça desligar-se, e, portanto, temos que “com o homem surge,

de fato, a possibilidade de uma retomada reflexiva do passado e de uma construção

antecipativa do futuro – a capacidade de reinterpretar o passado e a faculdade de

orientar o futuro”(ibidem, p. 28). E é desta notável ligação temporal que se depreende a

possibilidade de uma construção neguentrópica e, por isso, precisamente humana, do

tempo social. Ao se referir à possibilidade de combate à destemporalização por meio da

entropia, inclusive, assim se manifesta François Ost, voltando a atenção novamente ao

espaço ocupado pelo Direito nesse processo:

A hermenêutica dos textos – exercício quotidiano do jurista – contribui eficazmente para esta ligação intertemporal: será que o juiz não é requisitado para decidir casos de hoje com a ajuda de textos de ontem, sempre tendo em mente o precedente que sua decisão poderia representar para amanhã? Reinterpretando doutrinas antigas à luz das questões da atualidade, ele dá vida a soluções que não tinham esgotado todas as suas promessas; traçando novos caminhos com a ajuda de textos que criam autoridade, ele restitui à tradição seu verdadeiro alcance: o poder de transmitir mundos possíveis, que retroativamente podem enriquecer os princípios herdados (ibidem, p.30).

É exatamente nessa capacidade do Direito de ligar passado, presente e futuro que se

encontra um dos pontos chaves da descrição da atividade jurisdicional empreendida por

Dworkin, sendo a citação acima transcrita bastante representativa de suas pretensões.

Objetivando conceituar o Direito por meio de uma teoria que explique coerentemente a

prática jurídica atual, Ronald Dworkin sustenta sua argumentação contrapondo e

abandonando as concepções de direito do positivismo – em especial sob a espécie do

12 A citação original foi ligeiramente alterada para corrigir um erro crasso na tradução para o português que acabou por inverter o sentido original do texto. Na fonte citada é dito que o Direito opera “ao

encontro do tempo natural”. Contudo, a idéia original dizia respeito a operar “de encontro ao tempo natural”, isto é, operar contra o tempo natural, e não ao seu favor como a tradução dá, erroneamente, a entender.

33

convencionalismo – e do pragmatismo para optar por uma teoria do Direito como

Integridade, que, segundo o autor, seria a mais capaz de atingir tal objetivo.13

Partindo do elo entre o Direito e a coerção estatal, que visa garantir a defesa de certos

direitos e responsabilidades com base em decisões políticas anteriores, o autor analisa o

convencionalismo, o pragmatismo e a integridade como formas distintas de responder à

pergunta de como se dá a influência dessas decisões do passado sobre a atividade

judicial presente, tendo em vista o futuro. E, com isso, defende que a integridade

responde a tal pergunta oferecendo a melhor justificativa possível para o uso da coerção

estatal, sendo que essa justificativa seria exatamente o que consideramos como sendo o

Direito (DWORKIN, 2003, pp.488-490).

Seguindo ainda a lição de François Ost, (2005, p.92), podemos dizer que:

No pensamento jurídico contemporâneo é, certamente, Ronald Dworkin quem desenvolveu o tema com mais eficácia: sua concepção do “direito como integridade” não é mais que, de fato, um discurso de defesa para a fidelidade de uma comunidade política aos princípios da moralidade política, que inspiram, através do tempo, o desenvolvimento de suas normas jurídicas. Este pensamento, que valoriza a continuidade temporal e a coerência diacrônica das justificações jurídicas, opõe-se, como sabemos, tanto ao convencionalismo quanto ao pragmatismo. (...) Em oposição a estas duas correntes, o conceito do “direito como integridade” persegue um objetivo que surge como mais exigente que a simples coerência diacrônica: se, de fato, a “integridade” não exige necessariamente reproduzir mecanicamente as decisões do passado, ela requer do juiz, em contrapartida, conformar-se com os princípios suscetíveis de dar razão à tradição em seu conjunto.

É chegada a hora então, por conseguinte, de nos debruçarmos sobre o exato ponto de

embate entre Dworkin, os positivistas e os pragmatistas, dentro da relação estabelecida

pelo Direito entre passado, presente e futuro, para, ancorados em tal embate,

compreendermos melhor como isso modula a constituição mesma, por Dworkin, de seu

Direito como Integridade.

13

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes. 2003. 513 p.

34

2.2. DWORKIN CONTRA O POSITIVISMO

O principal ponto de partida da teoria de Dworkin sobre a atividade jurisdicional é o de

que tal atividade é importante e abrange divergências internas entre aqueles que a

realizam, de forma que, essas divergências são, igualmente, divergências importantes.

Logo, é necessário se debruçar sobre elas. Afinal, a decisão de um juiz sobre um caso

pode ser determinante para o sucesso ou ruína de uma das partes envolvidas, além de

possuir uma dimensão moral própria que diz respeito ao que aquela comunidade, em

que o caso se encontra, considera como certo ou errado, isto é, que diz respeito a qual

das partes em litígio agiu de acordo com suas responsabilidades para com seus

concidadãos e qual delas assim não se portou (DWORKIN, 2003, p.3-4). E, tendo isso

em vista, uma vez que é importante o modo como os juizes decidem as causas, também

é importante saber o que eles pensam que é o direito, e, quando divergem sobre esse

assunto, importa na mesma medida saber sobre o tipo de divergência que estão tendo

(Ibidem, p. 5).

Como bem identifica Ricoeur (1995, p.145), o principal alvo dos escritos de Dworkin é

o Positivismo Jurídico. Se posteriormente ele se viu forçado a enfrentar novos rivais,

como o pragmatismo, seu ponto de partida, nem por isso, deixa de ser a crítica ao

positivismo (RODRIGUES, 2005, p. 11-12). E a primeira crítica que Dworkin levanta

contra o positivismo no direito é a tomada dos fundamentos do Direito como simples

questão de fato (DWORKIN, 2003, p.10).

Seguindo o raciocínio positivista, portanto, o tipo de divergência entre os juristas sobre

o que é o direito só poderia ser uma divergência empírica ou semântica. Ou seja, para o

positivismo, quando, por exemplo, dois advogados discordam sobre se uma parte possui

ou não o direito de ganhar uma causa, isto é resultado ou de uma divergência sobre se o

sistema jurídico em questão envolve ou não aquele direito, ou de uma confusão a

respeito de como a palavra direito está sendo empregada por cada uma das partes

discordantes.

35

Contra tais possibilidades, Dworkin defende que, na maioria dos casos, ou ao menos nos

casos realmente importantes, as divergências entre os juristas não são empíricas ou

semânticas, mas sim teóricas. Eles não divergem sobre o fato de um sistema jurídico

conter ou não determinado direito, mas sim sobre o que esse direito significa; não

divergem sobre o que se encontra ou não sob a égide dos fundamentos do Direito, mas

sobre quais são esses fundamentos mesmos (Ibidem, p.8). E também não se

desentendem sobre o uso do termo Direito, mas sim dão interpretações diferentes para

um mesmo conceito do que é o Direito.

Segundo o positivismo jurídico clássico, as normas jurídicas são identificáveis por

alguma regra de reconhecimento amoral, que permite, tomando como base um fato

historicamente identificável, como a promulgação de uma lei obedecendo determinado

procedimento legislativo, verificar o pertencimento, ou não, de tal norma ao conjunto

denominado como o ordenamento jurídico daquela comunidade. Assim, um

ordenamento jurídico é composto pelo conjunto delimitado das regras que obedecem ao

teste da regra de reconhecimento, de forma que o pertencimento de uma regra a esse

conjunto é empiricamente verificável.

Nesses termos, quando os juristas discordam sobre se uma parte de uma disputa judicial

tem ou não determinado direito, tal controvérsia pode ser solucionada pela verificação

empírica de se esse direito está contido no conjunto das regras jurídicas do ordenamento

em que operam os juristas, ou não. Se não é essa a situação, a outra controvérsia

possível residiria em uma confusão entre termos: uma das partes em conflito pode

alegar possuir determinado direito e outra negar tal fato, por não estar sendo

compartilhado, no caso, um mesmo conceito de direito (DWORKIN, 2003, p.48-9).

Nessa segunda situação, a divergência poderia ser resolvida por um processo de

depuração semântica, em que as partes estabelecessem um conceito comum que evitasse

a discórdia.

O que Dworkin alega é que as controvérsias jurídicas não costumam ser nem empíricas

nem semânticas. Isso porque nem o Direito pode ser considerado um conjunto de regras

apreensíveis como resultante de meros fatos e nem o tipo de discórdia entre juristas é do

36

tipo que haveria, por exemplo, entre duas pessoas que discordam sobre a quantidade de

bancos de um país estando uma delas falando de instituições financeiras e outra falando

de assentos em praças (DWORKIN, 2003, p.53). Na verdade, o Direito seria uma

realidade interpretativa, sendo dessa mesma natureza interpretativa suas controvérsias.

Dworkin nega frontalmente que o Direito possa ser considerado uma mera questão de

fato e, conseqüentemente, que as regras que o compõem possam ser deduzidas de uma

regra superior de reconhecimento que o delimita enquanto conjunto normativo fechado.

Na verdade, alega o autor, além de regras, qualquer sistema jurídico contém também

outros enunciados indóceis a qualquer teste de reconhecimento do tipo proposto pela

visão positivista. Tais enunciados abarcam preceitos morais amplos, que atravessam a

totalidade do sistema e lhe dão um nível de coerência mais profundo do que a mera

sobreposição de regras. Pelo fato do Direito também abranger esse tipo de enunciado,

isto é, pelo fato de possuir em seu corpo, além de regras, também princípios, termina

por ser impossível a verificação empírica do pertencimento, ou não, de dada norma a

dado ordenamento; apenas a interpretação desse ordenamento mesmo seria capaz de

estipular tal inclusão.

Isto porque tais princípios, como o tratamento igualitário dos cidadãos, a

impossibilidade do indivíduo se beneficiar dos frutos de seu próprio crime, dentre

outros, não só poderiam negar a validade de regras a eles contrapostas, mesmo que

explicitadas em procedimentos formais reconhecidos de produção de direito, como

também poderiam exigir o reconhecimento de outras regras não explicitadas em tais

procedimentos, mas responsáveis por uma mais justa concretização desses mesmos

enunciados morais abstratos.

Poder-se-ia, neste ponto, todavia, defender ainda a concepção positivista do Direito

alegando que, quando passamos das regras reconhecidas pelo teste de reconhecimento

para tais princípios abstratos, estamos abandonando o campo do que o Direito

efetivamente é e indo em direção ao que ele deveria ser (DWORKIN, 2003, p.10-11),

localizando a controvérsia numa instância semântica. Contudo, vários são os exemplos

da importância que possuem, dentro das controvérsias jurídicas, princípios não

37

expressos na forma de regras, como o respeito à liberdade de expressão ou o apreço pela

eficiência na administração pública.

Por que, então, defender a todo custo uma teoria jurídica que trata um ponto tão

importante da atividade judiciária como uma controvérsia extrajurídica tratada como

jurídica por uma simples confusão semântica? Se o Direito não possui nenhum teste de

DNA possível para sua precisa caracterização, que diga ser ele apenas aquilo que os

positivistas assim consideram (DWORKIN, 2006b, p.166), por que não almejar uma

teoria jurídica que dê melhor conta, do que o positivismo, daquilo que a atividade

rotineira dos juristas acaba por tratar como sendo o Direito? É exatamente esse o

ambicioso projeto desenvolvido ao longo da obra de Dworkin da teoria do Direito como

Integridade, que começaremos a explorar aqui pelo abandono do “aguilhão semântico”

em prol de teorias interpretativas do Direito.

2.2.1. Aguilhão semântico e teorias interpretativas

Dworkin chama de “aguilhão semântico” o argumento segundo o qual, para que seja

possível o entendimento intersubjetivo a respeito de um determinado tema, faça-se

necessário um alto nível de consenso sobre os termos empregados numa discussão

(DWORKIN, 2003, p.55). Assim, se duas pessoas se propõem a debater algum assunto

relacionado ao Direito, seria necessário que elas estabeleçam de antemão, o que

exatamente entendem por Direito.

O que Dworkin alega contra essa tese é que tal nível de concordância não é

necessariamente exigível quando o que se discute são conceitos interpretativos, como é

o caso, por exemplo, do conceito de liberdade, de democracia e do próprio conceito de

Direito. Num sentido muito diferente, inclusive, para que estejamos diante de uma

verdadeira controvérsia e não de uma mera confusão sobre as palavras utilizadas, é

necessário que as partes da controvérsia compartilhem um pano de fundo comum,

afinal, precisam concordar sobre o que discordam (DWORKIN, 2003, p.57).

38

Isso é possível porque de um mesmo conceito, podem derivar diferentes concepções.

Dessa forma, quando, por exemplo, Dworkin discorda dos positivistas a respeito do que

seja o Direito, isso não quer dizer que ele e os positivistas estejam usando o termo para

designar realidades distintas. Muito pelo contrário, ambos têm em mente traços comuns

da atividade judiciária – como, por exemplo, sua realização por juizes, advogados e

promotores de justiça, sua vinculação a certas decisões do poder legislativo e a

qualificação de suas normas pela coerção estatal – mas divergem sobre como interpretar

tais traços para considerar como sendo, ou não, parte desse mesmo Direito, princípios

morais abstratos como o respeito à igualdade e à dignidade das pessoas. Ou seja, o que

ocorre, no caso, é uma disparidade entre concepções e não uma confusão sobre um

conceito, que, nessa situação, permanece compartilhado, não obstante os diferentes

tratamentos que recebe por aqueles que o compartilham.

Assim, se o Direito é um conceito interpretativo, a atividade jurisdicional precisa ser

tratada, igualmente, como uma atividade interpretativa e uma teoria útil sobre tal

atividade adquirirá, necessariamente, contornos interpretativos (DWORKIN, 2006b,

p.12-14). Contudo, várias são as possibilidades de interpretação e Dworkin defenderá

que o Direito, especificamente, é realizado numa tarefa de interpretação construtiva.

2.2.3. Interpretação construtiva e intenção original do autor

Diferenciando a interpretação conversacional – que almeja compreender as intenções de

um interlocutor em uma conversa – a interpretação científica – que busca relações

causais entre os fenômenos que interpreta e fenômenos outros – e a interpretação

estética – voltada à compreensão de obras de arte, de acordo com seu significado, tema

ou propósito – Dworkin defende que esse último tipo de interpretação é o tipo mais

próximo da interpretação de uma prática social, como é o caso da prática jurídica. Isso

porque se trata de uma interpretação dependente da intenção do intérprete e a ser

realizada sobre objeto já portador de sentido independentemente de seu criador. Nas

palavras do próprio Dworkin (2003, p.61):

A forma de interpretação que estamos estudando – a interpretação de uma prática social – é semelhante à interpretação artística no seguinte sentido:

39

ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e não o que as pessoas dizem, como na interpretação da conversação, ou fatos não criados pelas pessoas, como no caso da interpretação científica. Vou concentrar-me nessa semelhança entre a interpretação artística e a interpretação de uma prática social; atribuirei a ambas a designação de formas de interpretação “criativa”, distinguindo-as, assim, da interpretação da conversação e da interpretação científica.

Nesse ponto, todavia, uma objeção conhecida pode se apresentar a Dworkin: a de que a

interpretação artística não passa de uma espécie de interpretação da conversação, isto é,

seu propósito é igualmente chegar à intenção do autor da obra de arte e, logo, a

diferenciação proposta por Dworkin e, conseqüentemente, a analogia que ele deriva daí

entre a interpretação estética e a interpretação das práticas sociais, não se sustentam.

Dessa objeção resulta a teoria interpretativa da “intenção original do autor”, à qual

Dworkin se oporá frontalmente. Segundo ele, a interpretação criativa não é

conversacional, mas construtiva, ou seja, a interpretação das práticas sociais e das artes

não se preocupa com suas causas, mas com seus propósitos e esses propósitos não são,

necessariamente, os de seu autor (ou autores), mas os do seu intérprete (DWORKIN,

2003, p.63).

Assim, a interpretação construtiva busca “impor um propósito a um objeto ou prática, a

fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina

que pertençam” (Ibidem, p. 63-4), isto é, busca expô-lo sob sua “melhor luz” (ibidem,

p.58). Isso não quer dizer, entretanto, que a interpretação criativa opere uma dominação

completa do sujeito intérprete sobre o que é interpretado, pois a história ou a forma de

uma prática ou objeto exercem coerção sobre as interpretações disponíveis sobre ele.

Trata-se, na verdade, a interpretação criativa, de um caso de interação entre propósito e

objeto (Ibidem, p.66). Ou, na citação feita por Dworkin de Gadamer, podemos dizer que

“a interpretação é algo que reconhece as imposições da história ao mesmo tempo em

que luta contra elas” (ibidem, p.75).

Mas antes, nos detenhamos um pouco mais, primeiramente, sobre a teoria da intenção

original do autor, que Dworkin se viu obrigado a enfrentar em maior detalhe em seus

trabalhos mais recentes.

40

Dworkin reconhece que a intenção do autor não é algo que pode ser impunemente

negligenciado, podendo ser incluída entre as coerções à interpretação acima aludidas.

Negligenciar o que o autor de fato quis dizer, em certos textos, pode ultrapassar a

interpretação e cair na efetiva manipulação e invenção. Porém, isso não quer dizer que

se trata de uma coerção absoluta que nos obriga a procurar conhecer todo e qualquer

estado mental do autor de um texto, na época de sua produção, para poder dar a esse

texto interpretação coerente. Se já é complicado conhecer as intenções, por exemplo, do

autor único e contemporâneo de um livro, no momento de sua escritura, quem dirá

conhecer as exatas intenções dos autores múltiplos e distantes no tempo de um texto de

lei ou de uma constituição.14 Logo, esse não pode ser o principal objetivo de uma

interpretação jurídica ou artística, sob o risco de impossibilitar a própria interpretação.

Um exemplo talvez deixe isso mais claro.

Numa crítica à metodologia interpretativa criativa de Dworkin, Steven Knapp (1991,

p.325-340) traz à tona um antigo poema de Milton (Paradise Lost), contendo os

seguintes versos:

I alone first understook

To wing the desolate Abyss, and spy

This new created World, whereof in Hell

Fame is not silent, here in hope to find

Better abode, and my afflicted Powers

To settle here on Earth, or in mid Air;

Though for possession put to try once more

What thou and thy gay Legions dare against;

Whose easier business were to serve teir Lord

High up in Heav’n, with songs to hymn his Throne,

And practis’d distance to cringe, not fight.

Knapp alega que uma interpretação sob o propósito de fazer do texto o melhor possível

contemporaneamente, dentro daquilo que ele pretende ser, pode interpretar o termo

“gay” da oitava linha, significando homossexual, de forma que Satã não teria criado

apenas a pólvora – como a obra de Milton esclarece mais à frente – mas também a

14 Conforme salienta Dworkin, já é bastante difícil descobrir as intenções de amigos e colegas, de adversários e amantes. De que forma, portanto, pode se ter esperanças de descobrir as intenções de estranhos pertencentes a outras épocas, que podem estar todos mortos? Como pode se ter certeza de que havia quaisquer intenções proveitosas a serem descobertas (DWORKIN, 2003, p. 382)?

41

homofobia (Ibidem, p. 330). Contudo, na época da escritura do poema, o termo não

possuía ainda tal significado, que veio a adquirir apenas recentemente. A metodologia

de Dworkin permitiria esse tipo de manipulação da intenção do autor? A resposta de

Dworkin é clara: não é a esse tipo de manipulação de textos que se refere sua teoria

interpretativa.

O intérprete deve se preocupar com que o autor do texto quis dizer, com o que ele

efetivamente escreveu.15 Contudo, reconhecer o que o autor quis dizer não significa se

sujeitar ao que ele queria que fosse feito do que ele disse. Há uma grande diferença,

sustenta Dworkin, entre um “originalismo semântico”, que argumenta a favor de ser

atribuído às palavras o significado pretendido por seus autores – o que Dworkin

considera incontestável e irresistível – e um “originalismo de expectativas”, que

argumenta a favor de serem dadas às palavras as exatas conseqüências esperadas para

elas por seus autores (DWORKIN, 2006b, p.29-30).

Por exemplo, se os congressistas na época da promulgação da 14ª emenda da

Constituição dos Estados Unidos referendaram um texto dizendo que todos os cidadãos

americanos são iguais perante a lei, sendo que as palavras por eles utilizadas mantêm o

mesmo significado ainda nos dias de hoje, podemos entender que eles estavam

constitucionalizando um princípio abstrato de igualdade. Agora, se parte desses

congressistas achava que tal princípio implicaria o fim da segregação racial e outra parte

achava que não, isso não pode ser empecilho a uma interpretação posterior de tal

princípio abstrato numa dessas direções ou na outra, assim como não pode permitir que

se interprete tal enunciado como uma ordem necessária de redistribuição de renda

imediata entre o povo estadunidense, para que todos passem a ter a mesma quantidade

de recursos financeiros, pois tampouco foi isso o que foi dito (DWORKIN, 2006, p.12-

13).

Nas palavras de Umberto Eco, citado por Sandra Martinho Rodrigues (2005, p. 29, nota

82):

15 O que, obviamente, não o impede de encontrar indícios de que, no caso, Milton estava efetivamente antecipando o uso da palavra gay em seu sentido contemporâneo (DWORKIN, 1991, p. 374-377).

42

Quando o texto é metido numa garrafa – e isto não acontece apenas com a poesia e com a narrativa, mas também com a Crítica da razão pura [podendo, acrescenta a autora, com nosso aval, acontecer com o Direito] – ou seja, quando um texto é produzido não para um único destinatário, mas sim para um comunidade de leitores, o autor sabe que ele será interpretado não de acordo com as suas intenções, mas sim segundo uma complexa estratégia de interações que envolve também os leitores, juntamente com a competência na língua como patrimônio social.

Sendo assim, não podemos, apenas pela força da intenção dos autores de um texto,

desconsiderar a possibilidade de sua interpretação construtiva. Pelo contrário, dar à

intenção do autor peso interpretativo já implica um propósito do intérprete: para tal

intérprete, tornar o texto o melhor possível, dentro daquilo a que ele se propõe ser,

implica levar em conta a personalidade de seu gênio criativo, que pode ser, para o

gênero artístico de que faz parte o objeto interpretado, algo por si só importante e capaz

de fazê-lo aparecer sob sua “melhor luz” (DWORKIN, 2003, p.74).

Dessa forma, superada a busca da intenção original do autor como objetivo da

interpretação estética ou jurídica, de que forma podemos compreender tal interpretação

como uma interpretação construtiva e aplicável à interpretação de uma prática social?

2.2.4. As etapas da interpretação

Para elucidar melhor seu ponto, Dworkin (2003, p. 81-2) divide a interpretação criativa

das práticas sociais em três etapas: uma etapa “pré-interpretativa” (entre aspas porque

mesmo esse momento envolve algum nível de interpretação, já que nenhuma prática

social vem acompanhada de rótulos de identificação), uma etapa propriamente

interpretativa e uma etapa pós-interpretativa.

A primeira etapa é responsável pela identificação de regras e padrões que se considera

fornecerem o conteúdo experimental da prática. Trata-se de um momento com um alto

grau de consenso sobre certas características que permitam a realização mesma da

prática, não sendo tais características, em geral, postas em questão, mas sim tratadas

como dadas, como um ponto de partida estável, na reflexão e argumentação do dia-a-

dia.

43

Já a segunda etapa, propriamente interpretativa, concentra-se numa justificativa geral

para os principais elementos da prática identificados na etapa anterior, consistindo numa

argumentação sobre a conveniência ou não de se buscar uma prática com essa forma

geral. Tal justificativa não precisa ajustar-se a todos os aspectos ou características da

prática estabelecida, mas deve ajustar-se a ela suficientemente para que o intérprete se

reconheça efetivamente como intérprete dessa prática e não como alguém que inventa

uma prática nova.

Por fim, a terceira etapa, pós interpretativa, permite que o intérprete lance um olhar

reformulador sobre a prática social para que ela possa, por tais reformas, melhor servir à

justificativa que a sustenta, reconhecida na etapa interpretativa anterior.

Portanto, para a teoria da interpretação de Dworkin, uma prática social teria uma

estrutura, metaforicamente falando, como a de uma árvore: as pessoas concordariam,

em termos gerais, com as proposições mais genéricas e abstratas sobre a prática, que

formariam o tronco da árvore, mas divergiriam quanto aos refinamentos mais concretos

ou as subinterpretações dessas proposições abstratas, equivalente a seus galhos. Dentro

desse entendimento, as características constantes do tronco da árvore nos forneceriam o

conceito da prática, enquanto os galhos nos trariam suas concepções (DWORKIN,

2003, p.86-7).

Além disso, cada situação no espaço e no tempo em que a prática se realiza conta com

um paradigma específico, igualmente importante em sua interpretação. Mesmo sem

estar tão intrinsecamente relacionado à prática quanto suas características conceituais, o

paradigma desempenha um papel ainda mais fundamental em sua interpretação do que

os acordos mais abstratos sobre ela.

Isso porque a interpretação deve, necessariamente, dar conta dos chamados casos

paradigmáticos, que serão os exemplos concretos da prática naquele momento, naquele

local. Em virtude disso, a estreita relação entre a prática e seu paradigma do momento

será capaz estabelecer para ela novos atributos conceituais de forma a fazer parecer um

erro extraordinário a rejeição, por parte de algum intérprete, desse paradigma.

44

Mas, repetimos, por mais que fixem a interpretação, como não estão conceitualmente

relacionados à prática interpretada, os paradigmas não estão livres de contestação por

uma nova interpretação que considere outros melhores, fazendo, dessa forma, o

paradigma original ser considerado um equívoco e ser deixado de lado.

Tendo isso em vista, Dworkin propõe uma caracterização conceitual do Direito da qual

podem decorrer concepções distintas, isto é, teorias interpretativas, que vislumbram a

prática jurídica da forma que ela melhor represente esse seu núcleo conceitual. Por

conta disso, Dworkin assume que o escopo mais abstrato e fundamental da aplicação do

Direito consiste em guiar e restringir o poder coercitivo do governo. Segundo ele, o

Direito insiste em que a força não deve ser usada a menos que isso seja o exigido pelos

direitos e responsabilidades individuais decorrentes de decisões políticas anteriores.

Ou seja, não importa quão útil possa ser isso para os fins almejados e quaisquer que

sejam as vantagens ou nobreza de tais fins, a força pública só pode ser empenhada

contra as pessoas quando as decisões anteriores adequadas assim permitirem. Dessa

forma, o Direito de uma comunidade seria o sistema de direitos e responsabilidades que

correspondem a esse complexo padrão: autorizam a coerção atual porque decorrem de

decisões anteriores do tipo adequado e são, portanto, direitos e responsabilidades

“jurídicas” (DWORKIN, 2003, p.116).

Logo, as teorias interpretativas do Direito, derivadas desse núcleo conceitual, precisam

explicar satisfatoriamente a influência das decisões políticas anteriores na formação da

justificativa que autoriza o uso da coerção estatal presente, por ser essa justificativa

mesma, exatamente o que conhecemos como sendo o Direito (ibidem, pp.488-490). Sob

tais circunstâncias, três teorias interpretativas do Direito emergem como influentes e

capazes de tal explicação: o convencionalismo, o pragmatismo e a teoria do direito

como integridade. Dworkin defenderá que esta última teoria é a teoria capaz de melhor

articular essa influência do passado sobre o presente, sem abrir mão do futuro. Para isso,

além de fornecer uma explanação coesa e sistemática da teoria que defende, também

sujeitará as outras duas teorias citadas a uma profunda crítica capaz de nos mostrar

45

porque elas devem ser rejeitadas ao nos expor suas deficiências enquanto interpretações

satisfatórias do núcleo conceitual do Direito, aqui identificado. E a primeira teoria

interpretativa do Direito a ser, aqui, alvo da crítica de Dworkin é o convencionalismo,

tema do nosso próximo tópico.

2.2.5. O convencionalismo

Se muitas teorias positivistas do direito fracassam ao sucumbir à “picada semântica”,

nem por isso é impossível derivar do positivismo uma teoria propriamente interpretativa

da realidade jurídica. Essa teoria é a teoria a que Dworkin chama de convencionalismo.

Seria o positivismo, relido, dessa forma, sob um prisma interpretativo, uma concepção

do Direito capaz de apresentá-lo sob uma ótica coerente tanto internamente quanto em

face do que seus operadores realmente fazem? Segundo Dworkin, a resposta a essa

pergunta deve ser negativa. E os motivos para esta resposta negativa consistirão em

nosso ponto a partir de agora.

Dworkin considera a concepção positivista de direito do convencionalismo como sendo

aquela segundo a qual a prática judicial é atrelada às decisões políticas anteriores de

certo tipo convencionado, que estabelecem regras reconhecidas como jurídicas, nas

quais são explicitados os conteúdos a serem tutelados pela coerção. E o reconhecimento

do caráter jurídico de tais regras se daria por meio de um teste de pedigree, isto é, por

meio de um teste de adequação sua à convenção criadora do direito naquela

comunidade.

Como o conjunto dessas decisões políticas reconhecidas como jurídicas por este teste

nunca é capaz de dar conta da totalidade das práticas sociais, em determinados casos,

em não havendo legislação ou jurisprudência capaz de lhes abranger, o juiz deve fazer

uso de um poder discricionário, no sentido forte do termo, para criar um direito novo.

Nesses “casos difíceis”, a visão convencionalista considera que o direito declarado pelo

46

juiz não pertencia a nenhum dos litigantes até o momento de sua criação, coincidente

com o momento de sua declaração judicial.16

O convencionalismo, dessa forma, caracteriza o Direito como um conjunto de regras

primárias – prescritivas de conduta – e secundárias – instituidoras de processos de

formulação de novas regras igualmente jurídicas, assim como dos processos jurídicos de

julgamento. E essas regras são reconhecidas como juridicamente válidas por meio de

um teste de pedigree, ou seja, por referência a outra regra superior que lhe dá origem e

validade, que, por sua vez, precisa encontrar juridicidade e validade no mesmo tipo de

teste, sendo esse processo repetido retroativamente até uma “regra” inicial presumida

que, em vez de juridicamente válida, precisa ser aceita de antemão e que fundamenta o

sistema como um todo.

Nas palavras de Florian Hoffmann (1999, p. 40), explicando a teoria do Direito de Hart:

As regras primárias são aquelas que designam obrigações diretas que tenham uma estrutura binária: que possam ser violadas ou não violadas. As regras secundárias, por sua vez, são aquelas quer conferem poderes e que, em conseqüência, podem ser infringidas, no caso de um ato ultra

vires, ou não infringidas. As regras secundárias, por sua vez, são subdivididas em três tipos diferentes, as regras de mudança – que conferem o poder de mudar as regras primárias – as regras de decisão judicial – que conferem o poder de adjudicar no caso de violação de normas a determinadas instâncias – e, por fim, a importante regra de reconhecimento – através da qual as demais regras são identificadas como tais.

Assim, ao decidirem um “caso difícil”, isto é, um caso que não encontra qualquer tipo

de direito previsto para qualquer uma das partes em litígio dentro desse “catálogo de

regras” – cujos sucessivos testes de pedigree garantem seu pertencimento a e validade

dentro de determinado sistema jurídico – os juízes seriam obrigados a buscar uma

decisão fora do Direito. Nesse momento, não lhes restaria alternativa senão fazer uso de

um poder discricionário em sentido forte, para criar direito novo, ou seja, direito que

16 Usamos aqui como referência para a versão de convencionalismo atacada por Dworkin uma concepção derivada da concepção de Direito desenvolvida por Herbert. L. A. Hart em O conceito de Direto, citada por Dworkin como exemplo possível desse tipo de interpretação (DWORKIN, 2003, p. 143, nota 2), apesar da negativa de Hart a respeito dessa possibilidade (HART,2005, p 303). Para uma descrição mais detalhada a concepção de Direito desenvolvida por Hart, ver: HART, Herbert. L. A. O conceito de

Direito. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. 2005. 348 p.

47

não havia até então e, conseqüentemente, não pertencia a qualquer uma das partes

(DWORKIN, 2002, p.27-34). E quando nos referimos aqui a um sentido forte de poder

discricionário, referimo-nos a um poder que, mesmo sem se confundir com

licenciosidade ou arbitrariedade, implica que a decisão, dele decorrente, não é

controlada por qualquer padrão formulado pela autoridade superior a que, em tese, o

agente que decide estaria sujeito (ibidem, p.52-4).

Parece claro que existem semelhanças óbvias entre o convencionalismo e as teorias

semântico-positivistas anteriormente expostas. Contudo, perdura uma importante

diferença. Nas palavras de Dworkin:

As teorias semânticas afirmam que a descrição que acabamos de apresentar se concretiza e se aplica por meio do próprio vocabulário jurídico, de modo que seria uma espécie de autocontradição dizer que o Direito confere direitos para além daqueles estabelecidos por mecanismos sancionados por convenção. A concepção convencionalista do Direito, ao contrário, é interpretativa: não faz nenhuma afirmação lingüística ou lógica dessa natureza. Em vez disso, assume a postura ambivalente de qualquer interpretação, à maneira de Jano. Afirma que essa maneira de descrever a prática jurídica mostra tal prática em sua melhor luz e, portanto, oferece o mais esclarecedor relato daquilo que fazem advogados e juizes. Insiste em que esta é, portanto, a melhor diretriz para o que eles devem fazer, que indica a melhor direção para a continuidade e o desenvolvimento dessa prática. O convencionalismo não nega que muitos advogados têm posições antagônicas sobre a melhor interpretação da prática que compartilham. Afirma que esses advogados estão errados, que lhes falta perspicácia e percepção, que interpretam mal seu próprio comportamento. Mas não nega que querem dizer o que dizem, nem sugere que estão falando absurdos (DWORKIN, 2003, p. 144).

Enquanto teoria interpretativa, portanto, o convencionalismo faz duas importantes

afirmações pós-interpretativas e diretivas, uma primeira positiva e uma segunda

negativa. De acordo com a primeira afirmação, os juizes devem respeitar as convenções

jurídicas em vigor em sua comunidade, devendo tratar como direito aquilo que a

convenção estipula como tal. E, de acordo com a segunda, os juizes devem exercitar seu

poder discricionário para criar um direito novo quando esse direito não existe, isto é,

quando esse direito não decorre de qualquer decisão passada prescritiva de regras, o que

acontece, segundo o convencionalismo, quando ele não pode ser extraído dessas

decisões por meio de técnicas que são, elas próprias, questões de convenção (Ibidem,

p.144-5).

48

Segundo Dworkin, no entanto, o Direito, visto dessa forma, ao contrário do que possa

parecer, considera o passado, materializado em leis ou precedentes judiciais – isto é, em

decisões políticas pretéritas – menos importante do que de fato ele é para os juizes

envolvidos em sua aplicação. Na verdade, enxergando assim o Direito, o intérprete

abandona a coerência de sua decisão com relação ao sistema jurídico como um todo

assim que se esgota o sentido mais imediato das leis e precedentes, partindo

imediatamente para a criação de direito novo, baseado em fundamentos outros que não

as decisões políticas anteriores (DWORKIN, 2003, p.159).

Contra essa concepção do Direito, Dworkin argumenta que os sistemas jurídicos não

são compostos apenas por regras, mas também por princípios, dificilmente redutíveis a

uma norma universal de reconhecimento – e, conseqüentemente, a algum teste de

pedigree do tipo proposto pela concepção convencionalista – mas igualmente

responsáveis pela configuração de qualquer decisão judicial.

Tais princípios seriam enunciados mais abstratos, decorrentes de alguma exigência

moral de justiça, ou equidade e que, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de

peso ou importância, que não permite tratá-los em termos de tudo ou nada. Isto é,

enquanto um conflito entre regras tem como conseqüência a invalidação de uma delas,

diferentemente, quando, por exemplo, dois princípios se enfrentam num caso concreto,

indicam apenas o “peso” da decisão para um dos lados, sem que isso implique a perda

de validade de qualquer um deles no ordenamento (idem, 2002, p.35-50).

Na verdade, sustenta Dworkin, num sistema jurídico desenvolvido e complexo, como é

o caso dos sistemas jurídicos contemporâneos, seria muito difícil nenhuma das partes de

um litígio possuir qualquer direito. Mesmo que não exista qualquer regra que prescreva

seu direito, haverá nesse sistema algum princípio que faça uma das partes ter razão e,

conseqüentemente, um direito pretérito que não passará a existir unicamente no

momento de sua declaração pelo juiz (idem, 2005a, p.213).

49

E num ordenamento jurídico desse tipo, a atividade judicial é mais bem descrita como

sendo praticada não por juizes que fazem uso da discricionariedade nos pontos de

silêncio do conjunto de regras jurídicas, mas por juizes que, esgotadas essas regras,

buscam reconstruir princípios, igualmente jurídicos, subjacentes a esse conjunto e que,

assim, indicam o caminho a ser seguido na declaração do direito em favor de uma das

partes.

Como muito bem salienta o autor, se os positivistas estiverem corretos na teoria

segundo a qual em cada sistema jurídico existe um teste definitivo para identificar leis

obrigatórias, semelhante à regra de reconhecimento do convencionalismo, segue-se que

os princípios não têm obrigatoriedade de lei. Contudo,

a incompatibilidade entre os princípios e a teoria dos positivistas dificilmente pode ser considerada como um argumento em favor de que os princípios devam ser tratados dessa ou daquela maneira. Essa perspectiva não enfrenta a questão; estamos interessados no estatuto dos princípios porque queremos avaliar o modelo dos positivistas. O positivista não pode defender por decreto sua teoria sobre uma regra de reconhecimento; se os princípios não podem ser submetidos a um teste, então ele deve apresentar alguma outra razão por que eles não podem contar como parte do Direito. Dado que os princípios parecem desempenhar um papel nos argumentos sobre a obrigação jurídica (...), um modelo que dê conta desse papel possui uma vantagem inicial sobre um outro modelo que não leve esse papel em consideração. E este segundo modelo não pode ser introduzido em defesa de si mesmo (DWORKIN, 2002, p.58-9).

Dessa forma, o positivismo do convencionalismo não se apresenta como uma boa

interpretação da nossa prática jurídica ao não dar conta de um aspecto seu fundamental:

a forma como os juizes ainda mantêm referência às decisões políticas anteriores mesmo

quando decidem casos difíceis. Afinal, nesse ponto é feita referência a princípios que

são encontrados exatamente na análise de leis e precedentes judiciais, num processo de

interpretação do sistema jurídico como um todo e um todo coerente, formado tanto por

regras como por princípios (DWORKIN, 2003, p.159).

2.2.6. A resposta positivista a Dworkin e uma teoria pura do Direito

Contudo, os partidários do positivismo jurídico, sob qualquer de suas espécies,

buscaram se defender das críticas de Dworkin e fizeram isso por três vias. A primeira

50

via é constituída pela hipótese das tarefas diferenciadas, isto é, pela hipótese de que

Dworkin e os positivistas se dedicam a tarefas diferentes, igualmente válidas e que não

entram em contradição entre si (DWORKIN, 2006b, p.140). Já as duas outras vias

sugerem modelos jurídicos positivistas que reagem, cada um ao seu modo, à tese

dworkiniana de que um sistema jurídico é formado não apenas por regras, mas também

por princípios. Os modelos derivados das duas últimas vias são o que podemos

caracterizar como os modelos de positivismo inclusivo e de positivismo exclusivo

(DWORKIN, 2006b, p. 187-8).

Em seus trabalhos mais recentes, 17 porém, Dworkin enfrenta as respostas positivistas a

suas críticas. E, nesses termos, nega a diferenciação entre sua tarefa de construção

teórica e a tarefa de construção teórica positivista, assim como se contrapõe aos

modelos positivistas inclusivo e exclusivo que, segundo ele, ou, no primeiro caso,

abandonam a realidade, ou, no segundo, abandonam o próprio positivismo.

No pós-escrito de sua obra O conceito do Direito, Hart nega que sua empreitada teórica

se constitua numa empreitada do mesmo tipo da de Dworkin. Ele afirma proceder, em

seus escritos, a uma teorização filosófica, descritiva e geral do Direito, diferente da

teoria de avaliação e de justificação do Direito pretendida por Dworkin (HART, 2005,

p. 301-2). Todavia, coerentemente, Dworkin rejeita tal diferenciação. Ambos estão num

mesmo barco: acreditam que podem melhor compreender o fenômeno jurídico se não

estudarem o Direito em alguma manifestação particular sua, mas sim se dedicarem a um

trabalho mais conceitual, no sentido de possuir pretensões mais abstratas (DWORKIN,

2006b, p.145). Nesse sentido, os dois compartilham uma visão externa da prática

jurídica, diferente da de juizes e advogados que se dedicam a determinadas causas: a

visão adotada pelos atores é capaz de unir as várias manifestações concretas dessa

prática sob a égide de uma referência teórica comum, que é exatamente o que os dois

buscam, cada um ao seu modo.

17

DWORKIN, Ronald. Justice in robes. Cambridge, London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006b. 308 p.

51

A diferença é que, para Dworkin, uma tal visão externa não o coloca num ponto de

Arquimedes que distingue sua posição da de um juiz ou advogado no sentido de

permitir que sua “visão de cima” esteja livre de posicionamentos políticos e morais e

possa ser meramente neutra e descritiva. Pelo contrário, conforme foi dito, sendo o

Direito um conceito interpretativo, será interpretado tanto por seus práticos quanto por

seus teóricos. Por isso ele rejeita os objetivos de Hart que igualmente interpretam o

Direito, mas escondem essa interpretação pela suposta adoção desse ponto

arquimediano (DWORKIN, 2006b, p.140-1). Afinal, como bem salienta Dworkin, se o

Direito não é um conceito natural, mas interpretativo, a visão de Hart não é neutra em

seu argumento. Ela toma partido, de fato, em toda disputa jurídica complexa, em favor

daqueles que insistem que os direitos jurídicos das partes são inteiramente definidos por

consulta às fontes tradicionais do Direito (Ibidem, p. 165-6), sacralizadas pela própria

teoria de Hart.

Mas a hipótese dos objetivos teóricos diferenciados não é a única resposta positivista às

críticas de Dworkin. Conforme salienta Jules Coleman, citado por Dworkin, dois outros

modelos contemporâneos de interpretação do Direito derivados do positivismo de Hart

tentam responder a essas críticas. Um é o que poderia ser chamado de positivismo

inclusivo – corrente à qual o próprio Coleman se diz filiado – e o outro é a variação do

positivismo exclusivo – cujo principal expoente teórico seria o jurista Joseph Raz.

Contra tais modelos, Dworkin alega que, enquanto o positivismo exclusivo tenta manter

o positivismo vivo a qualquer custo, por meio de noções artificiais de Direito e de

autoridade, o positivismo inclusivo é ainda pior: não é realmente positivista, mas

mantém o rótulo “positivismo” para uma concepção de Direito e prática judicial

inteiramente alheia ao que poderíamos efetivamente chamar de positivismo (ibidem, p.

187-8).

Coleman, em seu positivismo inclusivo, defende que o ponto principal da tese

positivista de Hart reside, de fato, na derivação das normas de direito de uma

convenção. Todavia, tal teoria não exclui a possibilidade dessa convenção ser uma regra

de reconhecimento que aceite pressupostos morais abstratos (ibidem, p.189). Isto é,

seria possível subir “degraus de abstração” de modo a reconhecer convenções capazes

52

de abranger, dentro do sistema jurídico, os princípios morais, cuja ausência é posta por

Dworkin como a grande falha do modelo positivista.

Porém, iniciada essa escalada dos degraus de abstração, podemos considerar, por

exemplo, como convenção capaz de gerar direitos válidos, a concordância convencional

entre juizes de que eles devem decidir os casos de maneira “apropriada”, “desejável”,

ou “justa”, mesmo que discordem radicalmente do que signifique, na prática, tais termos

(DWORKIN, 2006b, p.193). Isso não seria uma banalização da convenção, tal qual ela

anteriormente servia ao positivismo do convencionalismo?

Além do quê, numa prática judicial pautada nesses termos, estruturada numa convenção

comportamental dos participantes, como reconhece o próprio Coleman, os juizes e

advogados nela envolvidos entrarão em profundo desacordo sobre o conteúdo das

normas jurídicas que fazem parte dessa prática. E, entrando em desacordo sobre tais

normas, coloca-las-ão em contínua negociação, recorrendo a argumentos de moral

substantiva que convidariam a prática à sua rediscussão. Sendo assim, em que sentido

essa teoria positivista inclusiva estaria posicionada ao lado das teorias positivistas e não

ao lado da crítica de Dworkin a essas teorias mesmas (ibidem, p.188-9)?

Em resumo, a versão inclusiva de Coleman do positivismo é mais bem descrita como

antipositivista, estando completamente fora da herança que pretende defender. O

positivismo inclusivo tenta proteger o positivismo jurídico naquilo que seria sua

doutrina central, isto é, a derivação do Direito de uma convenção, mas banaliza a idéia

de convenção de uma forma que a inutiliza e mais convida ao abandono do positivismo

do que à sua manutenção enquanto melhor interpretação possível do Direito (Ibidem,

p.198). Para os propósitos de Coleman, conforme ficará mais claro adiante, muito mais

útil e interessante seria uma concepção de Direito tal qual defendida por Dworkin no

Direito como integridade.

Já Joseph Raz, por sua vez, no discurso de seu positivismo exclusivo, salientará que faz

parte do conceito mesmo de Direito que este reivindique autoridade legítima sobre

determinado grupo e que tal reivindicação pressuponha que as ordens jurídicas sejam

53

capazes de ser impositivas, dotadas de autoridade, sendo que nenhuma ordem pode ser

impositiva e dotada de autoridade a menos que o conteúdo dessa ordem seja

determinado sem referência a qualquer julgamento moral (ibidem, p.199). Está claro

aqui, portanto, o núcleo do seu positivismo exclusivo: a autoridade que torna a norma

jurídica impositiva não pode derivar de um conteúdo moral, pois, nesse caso, ela não

teria autoridade mesma. Mas, como salienta o próprio Coleman, que por isso opta por

um positivismo inclusivo, não há nada em nosso conceito ordinário de autoridade que

nos previna de tratar como impositiva e dotada de autoridade uma norma ou um

princípio que incorpore padrões morais (DWORKIN, 2006b, p.207). Muito pelo

contrário, trata-se de um caso até comum.

Logo, na defesa de seu positivismo exclusivo, Raz faz uso de um conceito de autoridade

que não convém à atratividade de sua própria teoria, mas que, pelo contrário, pressupõe

sua própria teoria para poder se sustentar. Trata-se assim, de uma categoria ad hoc,

pautada numa visão excêntrica de uma determinada realidade, e não da referência a uma

categoria de que fazemos uso habitual para justificar a coerência de seu pensamento ao

empregá-la. É a noção de Raz de autoridade que necessita de sua teoria do Direito e não

sua teoria do Direito que se coaduna à noção habitual de autoridade que temos, de forma

que é nossa realidade jurídica que precisaria se adequar à interpretação de Raz e não a

interpretação de Raz que se adequaria à nossa realidade jurídica.

Sendo assim, não parece haver motivos para insistirmos na interpretação positivista do

Direito em vez de aceitarmos o convite de Dworkin de buscar uma outra interpretação

dessa realidade, que dela dê melhor conta. Aliás, o próprio Dworkin se pergunta o

porquê de, mesmo em face das transformações contemporâneas do fenômeno jurídico e

da importância que têm ganhado, com isso, dentro da argumentação judicial, os

princípios morais abstratos para cujo desdém das teorias positivistas ele veio chamando

atenção durante os últimos trinta anos, autores como Coleman e Raz ainda empregarem

tanta energia para manter o positivismo jurídico, nem que seja apenas como um rótulo

(ibidem, p.212-3).

54

Dworkin confessa não saber a resposta para essa questão, mas desconfia de qual seria.

Para ele, a atração que até hoje o positivismo exerce sobre os juristas decorre de sua

promessa de uma – permitindo-nos aqui a alusão direta à obra canônica do positivismo

jurídico de Hans Kelsen, com o mesmo nome 18 – teoria pura do Direito (DWORKIN,

2006b, p. 213).

O sonho de um pensamento jurídico livre da filosofia, da política e da moralidade

continua seduzindo acadêmicos para a causa positivista como sendo aquela capaz de

lhes garantir um lugar intelectual independente e autônomo que buscam preservar a

qualquer custo. Porém, tal sonho tem ultrapassado a barreira entre garantir a

especificidade do Direito e apresentá-lo sob uma falsa autonomia frente a áreas como a

filosofia, a moral e a política, sendo que, dessa forma, tem contribuído menos para

apresentá-lo com clareza do que para obscurecer sua imagem perante um público que,

cada vez mais, reconhece sua importância.

Todavia, não é apenas o positivismo que desafia a concepção dworkiniana do Direito e

um outro adversário, dessa vez mais atento à inevitável relação entre o Direito, a

moralidade e a política, precisa ser ouvido antes de conhecermos a proposta de Dworkin

do Direito como integridade. Tal adversário é o pragmatismo jurídico, cujo embate com

Dworkin é o tema a ser tratado no tópico seguinte.

2.3. DWORKIN CONTRA O PRAGMATISMO

Como vimos, o principal alvo da crítica de Dworkin costuma ser apontado como sendo

o positivismo jurídico. Contudo, ao longo de sua obra, Dworkin se viu obrigado a

enfrentar um novo adversário, dentre outros motivos, para negar sua filiação mesma a

essa outra forma não positivista de interpretação do Direito. Tal forma é a concepção do

Direito do Pragmatismo Jurídico.

Conforme salienta Luban (1998, p.275), dentre outras coisas, o pragmatismo jurídico se

destaca por seu ecletismo teórico. Dentro de tal abertura, há mesmo quem considere a

18

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 427 p.

55

teoria de Dworkin como possivelmente interior ao pragmatismo, 19 e boa parte da

energia que o autor desprende em diferenciar sua concepção de Direito como

integridade da de seus rivais pragmatistas decorre do fato curioso de que ele é rotulado

de pragmatista pelos próprios autores dessa corrente.

Todavia, há outras características comuns ao pragmatismo que afastam Dworkin de sua

linhagem, especialmente no que diz respeito à sua tomada meramente instrumental da

referência ao passado e à preponderância total de sua orientação para o futuro. Nas

palavras de Eisenberg e Pogrebinschi (2002, p.114):

A postulação de que se mantenha a consistência com a história é justamente o ponto de maior embate entre o pensamento de Dworkin e o dos pragmatistas. Com efeito, estes rejeitam a consistência – e com ela a integridade – como uma restrição ou constrangimento à atividade judicativa, já que o juiz pragmatista decide de acordo com as conseqüências que o seu julgamento pode acarretar. Ele não tem o dever de olhar para o passado, para a história, e só o faria estrategicamente: ao tomar uma decisão tendo em vista as necessidades sociais presentes e futuras, busca certa consistência com o passado não como um fim em si, mas como um meio de atingir os melhores resultados, de formar a melhor decisão.

De fato, levando em conta as características menos controversas do pragmatismo, isto é,

seu conseqüencialismo e contextualismo, não necessariamente nos afastamos da

interpretação do Direito de Dworkin. Contudo, a indisponibilidade, para Dworkin, de

direitos e princípios básicos, assim como sua insistência de que o Direito permaneça

íntegro perante demandas advindas de políticas está muito distante do instrumentalismo

ético que caracteriza o pragmatismo (EISENBERG, 2003, p.161-3).

Afinal, dessa combinação pragmatista de liberdade em face, tanto da teoria, quanto do

passado, com uma visão voltada unicamente para os fins a serem alcançados, podem

resultar inúmeras formas diferentes de interpretar o Direito, como, por exemplo, a

interpretação de que Posner se aproxima, do Direito com base na economia, sendo que

19

Como exemplo dessa classificação pragmatista de Dworkin ver: POSNER, Richard. Pragmatic adjudication. In: DICKSTEIN, Morris (Comp.). The revival of pragmatism: new essays on social thought, law, and culture. Durham: Duke University Press, 1998. p. 235. e HOY, David. Is legal originalism compatible with philosophical pragmatism? In: BRINT, Michael; WEAVER, William (Comp.). Pragmatism in law and society. Boulder, San Francisco, Oxford: Westview Press, 1991. Cap. 18, p. 344.

56

essa última deveria guiar os resultados do primeiro (POSNER, 1991, p.42-3). Uma

interpretação do tipo acabaria por solapar o diferencial, tão caro a Dworkin, do Direito

como um fórum de princípios capazes, até mesmo, de coagir a economia em vez de ser

por ela coagido. Talvez, inclusive, essa variação econômica específica seja o ponto em

que o pragmatismo mais assuste a Dworkin. Mas suas desavenças e conseqüentes

críticas a essa interpretação do Direito residem num nível mais profundo: está em jogo

aqui, conforme já salientado, a forma com se dá, no pragmatismo, dentro de suas

diversas subcorrentes teóricas, a influência do passado sobre o presente e o futuro.

Assim, superado o positivismo, mesmo em sua versão interpretativa do

convencionalismo, resta averiguar se seria o pragmatismo, então, a concepção de

Direito mais coerente e adequada a nossa prática. Pelos motivos já citados, a serem mais

bem desenvolvidos a seguir, sustenta Dworkin que não. E a desavença teórica entre

Dworkin e os pragmatistas é nosso ponto a partir de agora.

2.3.1. O pragmatismo e a filosofia

Antes de nos debruçarmos sobre o pragmatismo no Direito propriamente, façamos antes

uma incursão por suas raízes filosóficas. Apesar de muitos dos pragmatistas jurídicos

quererem dizer com isso apenas que são pessoas práticas, para as quais a teoria abstrata

não possui qualquer influência em suas decisões do dia a dia, há aqueles que vinculam a

posição pragmática, dentro do Direito, à posição pragmática na filosofia. Isto é,

associam o pragmatismo jurídico à tradição filosófica americana a que, por exemplo,

Richard Rorty afirma pertencer e dentro da qual podemos incluir Willian James, Charles

Sanders Peirce e John Dewey (DWORKIN, 2006b, p. 36).

De acordo com tal concepção filosófica, em sua versão Rortyana, nós precisamos

desistir da idéia de que nossas investigações jurídicas, morais, ou até mesmo científicas,

são uma tentativa de descobrir a Realidade, o que o Direito efetivamente é, o que os

textos realmente dizem, quais instituições são, de fato, justas, ou como o universo

objetivamente se parece. Isto é, precisamos aceitar que um tal vocabulário não deriva de

uma realidade externa, mas é apenas o vocabulário que possuímos, que soa adequado a

57

nossas necessidades e, logo, que pode ser abandonado e substituído ao perder tal

adequação. Qualquer investigação dentre as que aludimos, nada mais é do que uma

experimentação para averiguar a aplicabilidade e utilidade de nossas idéias e

vocabulário, para, se necessário, transformá-los para se adaptarem às nossas

necessidades (ibidem, p.37).

Mas como considerar então que, ordinariamente, cidadãos e profissionais do Direito

acreditem que determinados fatos são justos e outros injustos, determinadas práticas são

legais e outras ilegais e certos comportamentos são morais e outros imorais? E como

tratar com coerência o fato de que dediquem suas vidas a manter tal vocabulário

meramente útil? E como avaliar que esse mesmo vocabulário molde tais vidas,

independentemente dos sacrifícios pessoais que pode exigir para isso? No fim das

contas, faz diferença considerarmos que essas posições fazem referência a uma

realidade objetiva externa (a uma “Realidade” com letra maiúscula) ou ao conjunto

lingüístico específico e relativo de que seus participantes fazem uso?

Rorty e seus seguidores, ao que tudo indica, parecem distinguir entre dois níveis. O

primeiro é o nível da prática ordinária em que as pessoas atuam e fazem uso desse

vocabulário específico de que dispõem e que lhes soa útil. E o segundo é um nível

externo, filosófico, no qual, se tal vocabulário for aceito, far-se-á uma má filosofia,

como se “de fato” contássemos com esse marco fundacional “objetivo”, capaz de guiar

nossa prática com uma referência “externa” a ela.

A crítica que Dworkin levanta, contudo, contra tal concepção, é a mesma que levantou

contra o ponto de Arquimedes defendido pelos positivistas: esse nível externo, em que

Rorty planeja se localizar, na verdade não existe dessa maneira. Não há um nível

filosófico externo no qual, por exemplo, a sentença que diz que “o Direito, propriamente

entendido, permite ações afirmativas”, possa significar algo diferente do que significa

nos tribunais (DWORKIN, 2006b, p.38-9).

Para Dworkin, esse tipo de argumentação confunde dois níveis céticos, um exterior e

outro interior, fazendo com que uma crítica cética localizada no nível exterior tenha

58

força no nível interior. Mas apenas o ceticismo interno é realmente interpretativo e

poderia se opor a alguma interpretação de uma prática social, conforme pretende a

teoria interpretativa de Dworkin. Se, numa reflexão de segundo grau, um observador diz

que, tomados diversos tipos de cultura, a prática de um agente, inserido numa cultura

específica, não passa de uma opção que, frente às demais, vistas desse ponto de vista

externo, não possui um valor intrínseco a ela, isso não tem como implicação necessária

a de que tal agente, por conta disso, considere sua prática, localizada internamente à sua

cultura, sem qualquer valor.

Isto é, mesmo que seja possível se localizar num nível externo a determinada prática – o

que pode ser questionável com relação a assuntos morais – e, desse nível externo, seja

possível dizer que tal prática não possui verdade e valores “absolutos”, disso não

decorre que essa prática, em seu nível interno, interpretativo, deva ser interpretada como

destituída de verdade e de valores capazes de dar parâmetros de correção ao seu

desenvolvimento. Não também, que essa interpretação seja impossível – na verdade

essa interpretação seria o que chamamos aqui de ceticismo interior. O que Dworkin

ressalta aqui é apenas que tal interpretação não pode derivar de conclusões tomadas

num outro nível, ou seja, das conclusões do ceticismo exterior (DWORKIN, 2003, p.

96-106).

É com base nisso que Dworkin acusa a filosofia pragmática usar letras maiúsculas,

aspas e itálicos como confete: dizem que os maus filósofos acham que as coisas não

somente existem, mas que “realmente” ou realmente existem, como se as aspas ou o

itálico mudassem o sentido do que foi dito. E o mesmo pode ser dito de suas metáforas,

que acusam os maus filósofos de buscarem a realidade ou o sentido das coisas “lá fora”

ou de afirmar que o mundo, os textos e os fatos “expõem” ou “ditam” sua própria

interpretação. Como afirma Dworkin, são apenas os próprios pragmatistas os únicos que

falam dessa maneira, de forma que eles mesmos acabam por inventar seu próprio

inimigo (idem, 2006b, p. 41).

Logo, o Direito como realidade interpretativa não sucumbe à crítica do pragmatismo em

sua versão filosófica. Tomado de forma interpretativa, o Direito não pode ser atingido

59

pela crítica do ceticismo exterior, cuja existência em face de fatos morais é até mesmo

questionável. Nesse caso, não é importante inflacionarmos o texto com itálicos, aspas e

letras maiúsculas que, no fim das contas, não acrescentarão muito ao negarem o que o

Direito “realmente” é, o que o Direito efetivamente permite, ou mesmo a Natureza

objetiva do Direito. Afinal, na prática interpretativa do Direito, de uma forma ou de

outra, essas questões serão postas e, de alguma maneira, respondidas.

Todavia a concepção do Direito do pragmatismo jurídico – que para alguns autores deve

ser tão prático e avesso a teorias que sequer à filosofia pragmatista deve fazer

referência20 – pode ser considerada sim, uma interpretação do Direito que almeja

retratar a prática de seus agentes em sua melhor luz. E a ela precisamos dedicar agora,

alguma atenção.

2.3.2. O pragmatismo e o Direito

O pragmatismo jurídico considera o Direito, interpretativamente, como sendo uma

prática instrumental e orientada para seus resultados, cujo foco é o bem-estar da

comunidade e não a pureza ou a integridade de sua doutrina. Se o pragmatismo jurídico

se preocupa com a história de uma comunidade, o faz de maneira meramente

instrumental, pois almejar o bem da comunidade costuma requerer nosso conhecimento

e respeito sobre sua particular constituição histórica (LUBAN, 1998, p.275). Ou nas

palavras de Posner (1998, p.237): “um juiz pragmatista sempre tenta fazer o melhor

possível para o presente e futuro, sem sentir qualquer obrigação de assegurar uma

consistência em princípio com o que outros funcionários do governo fizeram no

passado”.

Ou seja, os juizes pragmatistas possuem prioridades outras: o que eles têm em mente,

quando buscam decidir da melhor forma possível, são necessidades do presente e do

futuro. E, sob essa ótica, as decisões políticas do passado podem ser encaradas como

depositárias de sabedoria que os auxiliam em tal decisão, mas não podem se apresentar

20 Ver a esse respeito, por exemplo, GREY, Thomas C. Fresstanding legal pragmatism. In: DICKSTEIN, Morris (Comp.). The revival of pragmatism: new essays on social thought, law, and culture. Durham: Duke University Press, 1998. p. 254-274.

60

como obstáculo a essa decisão melhor para o futuro pelo simples motivo de manter a

coerência com o passado como um fim em si mesma (POSNER, 1998, p.238).

Para Dworkin, no entanto, tomado dessa forma, o pragmatismo jurídico, mesmo num

sentido contrário ao do convencionalismo, acaba por cair no mesmo erro de não dar o

devido valor ao passado, ao optar por desconsiderar as decisões políticas precedentes se

essas não forem úteis ao futuro, para o qual, segundo eles, deve estar voltada toda e

qualquer ação. Afinal, de acordo com o pragmatismo, mais do que as leis ou

precedentes judiciais, o juiz deve decidir com base na justiça ou eficiência. Para o

pragmatismo, portanto, essa é sua visão pós-interpretativa do Direito: o uso da coerção

não pode ser justificado pelo passado ou pela simples coerência, pois

independentemente de qualquer lei ou precedente judicial, ninguém pode ter direito

àquilo que seria pior para a comunidade.

Nas palavras do próprio Dworkin (2003, p.195):

O pragmatismo não exclui nenhuma teoria sobre o que torna uma comunidade melhor. Mas também não leva a sério as pretensões juridicamente tuteladas. Rejeita aquilo que outras concepções do direito aceitam: que as pessoas podem claramente ter direitos, que prevalecem sobre aquilo que, de outra forma, asseguraria o melhor futuro à sociedade. Segundo o pragmatismo, aquilo que chamamos de direitos atribuídos a uma pessoa são apenas os auxiliares do melhor futuro: são instrumentos que construímos para esse fim, e não possuem força ou fundamento independentes.

Ou seja, o pragmatismo “adota uma atitude cética com relação ao pressuposto que

acreditamos estar personificado no conceito de Direito: nega que as decisões políticas

do passado, por si sós, ofereçam qualquer justificativa para o uso ou não do poder

coercitivo do Estado”. Por essa via, os pragmatistas acreditam que, libertos da mão

morta do passado e da coerência pela coerência, tornarão o futuro da comunidade mais

promissor quando as decisões de seus juizes, assim orientados, permitirem o uso da

força pública em prol da justiça, eficiência ou outra virtude política contemporânea

qualquer (Ibidem, p.185).

61

Contudo, apesar de concordar que o direito não deve somente olhar para o passado sem

se preocupar com o futuro, Dworkin acredita que a concepção pragmatista do jurídico

não se coaduna com nossa prática judicial, para a qual os direitos e deveres prescritos

em leis e precedentes judiciais possuem grande relevância. Para ele, não é possível

aceitar que uma das bases do nosso direito possa ser considerada uma simples

linguagem eficiente na busca de uma melhoria social substantiva dela independente, tal

qual propõe o pragmatismo.

Mesmo que o pragmatismo aceite a integridade como uma forma de garantir um futuro

melhor a longo prazo, devido à confiança, que daí decorreria, dos cidadãos em face de

suas instituições políticas produtoras de normas públicas, isso significaria, contudo,

forjar nosso sistema jurídico numa impostura. Significaria fazer as pessoas crerem

possuir direitos, quando na verdade apenas conhecem sentenças instrumentais para um

futuro melhor, tão descartáveis quanto qualquer outro instrumento, quando não parece

adequado aos fins para os quais surgiu como auxílio (DWORKIN, 2003, p.187-195).

De fato, buscando fazer um melhor retrato do que é a atividade judicial, não podemos

delegar à legislação e aos precedentes judiciais lugar tão subalterno. Em suas decisões,

os juízes mantêm a preocupação com o que diz a lei e as decisões dos demais juízes. E,

ignorar isso, também significa, numa expressão dworkiniana, não levar os direitos a

sério. Se os direitos das pessoas reconhecidos pela legislação e pelos precedentes

judiciais puderem ser desconsiderados em prol de qualquer plano de melhoria da

comunidade, podemos ainda dizer que essas pessoas possuem, efetivamente, direitos?

Ou seja, levar os direitos a sério, significa considerar que esses direitos realmente

existem e que, inclusive, podem impor limites a qualquer perspectiva de melhoria

coletiva. Essa melhoria teria de ser pautada pelos direitos das pessoas e não o inverso.

Sendo assim, a visão pragmatista fracassa ao apostar num Direito sem direitos que,

dessa maneira, tem muita dificuldade para justificar a coerção estatal, da mesma forma

que não dá conta de descrever bem a prática judicial hodierna, na qual os juizes tendem

a se esforçar em prol, exatamente, dessa “seriedade”.

62

Assim, de acordo com Dworkin, bem mais coerente com nossa realidade seria, a

concepção de Direito como Integridade. Dentro de tal teoria, nossa atividade judicial

seria voltada para o futuro, mas sem abrir mão do passado. Isto é, as leis e precedentes

judiciais teriam seu valor enquanto referência dos juizes em sua atividade, mas não

simplesmente para nestas decisões políticas passadas encontrarem ou regras que serão

eternamente repetidas, ou uma fonte estratégica de sabedoria que não possui força

jurídica própria. É destas decisões também que são extraídos os princípios que

compõem o sistema jurídico em que opera o jurista, os quais, por sua vez, demandam

um aprimoramento do sistema como um todo para sua melhor realização. Em outras

palavras: as decisões políticas anteriores, tomadas como um conjunto coerente, oriundo

de uma comunidade de princípios – isto é, de uma comunidade que compartilha um

núcleo comum de anseios sociais – orientam a prática jurídica, não em direção à sua

eterna repetição imutável, mas sim em direção ao seu aperfeiçoamento enquanto

concretização de tais princípios (DWORKIN, 2003, p.264).

2.3.2. A resposta pragmatista

Contudo, contra a interpretação que Dworkin dá ao Direito, os pragmatistas oferecem

uma crítica para a qual sua própria interpretação ofereceria, segundo eles, melhor saída.

Eles alegam que a interpretação Dworkiniana do Direito possui um “excesso de teoria”.

Na versão de Dworkin de nossa prática jurídica, os juizes se vêem obrigados a encarar

questões filosóficas para as quais nem sempre foram profissionalmente preparados.

Sendo assim, uma interpretação do Direito como a pragmatista, em que os juristas

decidiriam caso a caso, instrumentalmente, sem proporem nenhuma reconstrução

teórica do Direito como um todo capaz de justificar suas decisões, estaria muito mais

próxima de nos mostrar o que os operadores do Direito fazem em sua atividade

rotineira, dia após dia.

Assim, se determinássemos duas interpretações possíveis da prática jurídica, uma

incrustada em teoria e outra que poderíamos chamar de mais prática, a teoria de

Dworkin representaria o primeiro tipo, enquanto os pragmatistas representariam o

segundo. Ou seja, se, por um lado, a concepção de Direito de Dworkin reside numa

63

reconstrução, por parte de seus operadores, de uma arquitetura de princípios capazes de

justificar cada decisão jurídica como uma parte coerente dessa mesma arquitetura, por

outro, a concepção pragmatista coloca tais operadores do Direito na posição de decidir

problemas práticos, oferecidos por uma dada situação política, sob a égide da única

questão realmente importante: saber como fazer as coisas da melhor forma possível.

Essa segunda concepção pode até mesmo exigir um grande conhecimento a respeito das

conseqüências possíveis de cada diferente decisão, mas não exige profundidade no

conhecimento de filosofia política (DWORKIN, 2006b, p.50).

À primeira vista, a concepção pragmatista pode parecer mais sensata e mais firmemente

presa ao chão, enquanto a concepção Dworkiniana pode parecer muito abstrata,

metafísica e totalmente fora do lugar em que o trabalho precisa realmente ser feito.

Contudo, Dworkin alega que, num sentido muito diferente, a interpretação incrustada na

teoria é a única realmente possível, sendo a concepção meramente prática, ironicamente,

uma concepção, na prática, irrealizável dentro do Direito (ibidem, p.50-51).

Afinal, se a argumentação jurídica se vê obrigada tantas vezes a se deparar com

princípios morais abstratos, como igualdade e liberdade, como superar tais pontos sem

ser por fundamentações teóricas? Agindo de modo orientado para o futuro? Mas em que

isso nos ajuda? Como se orientar para o melhor futuro sem fundamentar isso

teoricamente? Já que o pragmatismo nos pede para olhar para o melhor futuro sem nos

dizer que melhor futuro é esse, como encontrá-lo sem pressupostos teóricos?

Se aceitarmos a sugestão de Posner, podemos avaliar esse futuro tendo em mente o

aumento da riqueza ou do bem estar das pessoas. Mas de que forma isso está livre de

um enfrentamento teórico? Só porque abandona os princípios jurídicos em prol de

princípios econômicos? Isso não é evitar um enfrentamento teórico. Isso é, no máximo,

delegar esse enfrentamento ou obscurecê-lo, mas nunca pode ser um argumento que

corrobora a hipótese de que a prática jurídica opera livre de teoria ou de questões morais

abstratas (ibidem, p. 62).

64

Há ainda a sugestão de Sustein, para o qual, em vez de lidarem com argumentos

filosóficos, os juristas operam em casos controversos fazendo uso de uma ferramenta

mais afeita ao treinamento profissional de sua área: a analogia. Contudo, nesse ponto

Dworkin salienta a falsidade desse contraste, parafraseando Kant e ressaltando que a

analogia sem teoria é cega. A analogia é uma maneira de expor uma conclusão e não de

alcançá-la e a teoria continuará tendo de fazer seu trabalho, pois a analogia opera pela

similitude e não sob a identidade. Logo, será a teoria que apontará a direção em que se

constituirá tal similitude, por exemplo, dizendo que o aborto é similar ao infanticídio e

não à vasectomia ou vice-versa (DWORKIN, 2006b, p. 69).

Dworkin concorda com seus críticos que nem todo jurista é treinado em filosofia, mas,

como ficou claro em sua argumentação, não temos escolha senão confrontá-los com

assuntos desse tipo. Por conta disso, a interpretação do Direito de Dworkin não almeja

obscurecer o papel que a teoria e a filosofia política desempenham na atividade judicial,

nem, tampouco, supervalorizá-lo. Claro que isso acaba por lançar Dworkin em direção

de questões complexas, como a relação entre o Direito e a política e a importância do

respeito ao passado como uma virtude pública específica. Na verdade, tais questões

serão centrais em sua interpretação do Direito e da forma como os juizes julgam os

casos a eles apresentados.

E já que, para Dworkin, sua teoria do Direito como integridade interpreta a prática

jurídica melhor que o convencionalismo e o pragmatismo, dentre outras coisas, porque

enfrenta tais questões de forma mais coerente com o que os juristas realmente fazem,

chega então o momento de conhecermos melhor sua própria proposta. Será que,

abandonados o convencionalismo e o pragmatismo, o Direito como integridade,

proposto por Dworkin, melhor interpreta a prática jurídica? Reconhece e teoriza melhor

a relação entre o Direito, a filosofia, a moral e a política, assim como o papel que as

opções pessoais do juiz em cada um desse campos influencia sua decisão? Responde

melhor a como o passado determina o presente e o futuro, e como o Direito justifica a

coerção estatal?

65

Assim sendo, a concepção original do Direito como integridade formulada por

Dworkin, em suas especificidades e conceitos chaves, passa a ser nosso tema no

capítulo a seguir.

66

3. DWORKIN E O DIREITO COMO INTEGRIDADE

3.1. O DIREITO COMO INTEGRIDADE, LINHAS GERAIS

Se nem as variações do positivismo jurídico nem o pragmatismo são capazes de

oferecer um bom retrato de nossa prática judicial, resta a Dworkin desenvolver uma

interpretação própria dessa atividade, capaz de dar conta do desafio de representá-la de

forma fiel à sua realização cotidiana, apresentando-a sob sua melhor luz, como

concepção derivada de um conceito cujo cerne reside na justificação do uso da força

pública. Esse é o desafio que move sua descrição do Direito como integridade.

Segundo essa interpretação do Direito, as decisões políticas do passado, materializadas

na constituição, nas leis, nos decretos administrativos e nos precedentes judiciais,

justificam a coerção pública do presente por uma virtude política especial: a virtude

política da integridade. Em obediência a essa virtude, a referência ao passado não pode

ser meramente estratégica, tal qual interpretada pelo pragmatismo, mas deve ser,

sobretudo, uma atitude de respeito a uma virtude que ocupa dimensão especial na

caracterização de uma determinada comunidade política como justa.

Todavia, tal referência ao passado não pode consistir na mera reprodução mecânica das

decisões tomadas num momento histórico anterior. Esse passado deve ser olhado de

forma interpretativa, pois nas decisões políticas que o caracterizam não estão contidas

apenas regras a serem obedecidas, como pretende o convencionalismo, mas também

princípios que a comunidade escolheu como guias na conduta de seus cidadãos e

instituições. E essa interpretação, extraindo tais princípios, é capaz de mostrar que não

vivenciamos uma comunidade unida apenas por interesses transitórios, mas,

efetivamente, nas palavras de Dworkin, uma comunidade de princípios, que comunga

certa unidade moral que lhe assegura uma identidade e coesão não meramente

estratégica, mas sim, fraterna.

Assim, se fazemos parte de uma comunidade de princípios, um Direito que seja capaz

de concretizar esses mesmos princípios – em vez de aplicar as regras explícitas

67

decorrentes de determinada convenção, ou de ignorar o passado em prol de transformar

a comunidade em direção ao futuro – justificará de melhor forma o uso da coerção

estatal. Afinal, nesse caso, a força pública será utilizada justamente em prol da

comunidade, nem sacralizando, nem sacrificando seu passado, mas buscando nele o que

se constitui como sua essência integradora: os princípios que escolhera como o vetor

que perpassa suas práticas em direção ao seu aperfeiçoamento constante.

É isso que explica porque a importância do passado não impede que o Direito seja

também lugar de mudança. Isso ocorreria porque a interpretação dos princípios da

comunidade sob novos paradigmas pode revelar que determinadas regras, até então

plenamente vigentes, não mais sustentam algum desses princípios, assim como pode

revelar que a concretização desses mesmos princípios, tão importantes para a

comunidade, fazem imprescindíveis regras outras até então ignoradas em sua vigência.

Com isso, Dworkin pretende justificar porque os juristas demandam tanta atenção às

decisões políticas passadas, sem, nem por isso, deixarem de romper com algumas de

suas prescrições. E, da mesma forma, pretende justificar porque, quando promovem tal

ruptura, nem por isso deixam, necessariamente, de justificar a coerção estatal tendo

como fundamento essas decisões e não suas próprias convicções políticas e morais, ou

padrões outros de orientação para o futuro, cujo conteúdo não encontre fundamento na

história institucional da comunidade.

Em linhas gerais, é sob a guarda desses objetivos que se desenvolve a teoria do Direito

como integridade de Dworkin. Devemos agora, começar a examiná-la em maior detalhe,

clarificando seus conceitos chaves e explorando suas mais importantes nuances.

Prossigamos, então, nessa direção, a começar pela essencial caracterização da virtude

política da integridade, que reside no cerne do modelo dworkiniano de interpretação da

atividade jurídica.

68

3.2. A VIRTUDE POLÍTICA DA INTEGRIDADE

Antes de chegar à virtude política da integridade, Dworkin nos apresenta um panorama

geral de virtudes que representam, na política real, os ideais de um plano político

utópico. Tais ideais dizem respeito a nosso almejar de uma estrutura política imparcial,

uma adequada distribuição de recursos e oportunidades e um processo eqüitativo de

fazer vigorar as regras e regulamentos. E Dworkin chama esses ideais como as virtudes

da eqüidade, da justiça e do devido processo legal adjetivo (DWORKIN, 2003, p. 199-

200).

Por equidade, Dworkin entende a virtude que exige encontrarmos os procedimentos –

“métodos para eleger dirigentes e tornar suas decisões sensíveis ao eleitorado” – que

distribuam o poder político de maneira adequada, o que costuma a redundar,

atualmente, em procedimentos e práticas que atribuam a todos os cidadãos mais ou

menos a mesma influência sobre as decisões que os governam. Já por justiça, o autor

entende a virtude que exige das instituições políticas consagradas, tenham sido elas

fruto de processos eqüitativos, ou não, medidas que distribuam recursos materiais e

protejam liberdades civis de modo a produzir um resultado moralmente justificável. Por

fim, como devido processo legal adjetivo, Dworkin considera a virtude que exige

respeito a procedimentos corretos para o julgamento de qualquer cidadão que se

imagine ter infligido alguma norma jurídica, que incluem, dentre outros, formas

adequadas de produção de provas, liberdade no convencimento do julgador e formas de

revisão de decisões injustas (ibidem, p.200-1).

Contudo, Dworkin destaca que essas distinções são um prólogo para o seu ponto mais

importante: a política corrente costuma acrescer a esses três ideais, um outro, que não

ocupa um lugar na teoria axiomática utópica. Trata-se do ideal muitas vezes descrito

pelo clichê de que os casos semelhantes devem ser tratados de forma parecida, que

exige do governo uma só voz, agindo de modo coerente e fundamentado em princípios

com todos os seus cidadãos, estendendo a cada um os padrões fundamentais de justiça e

equidade que usou para alguns (Ibidem, p.201).

69

Dworkin nomeia essa exigência específica de moralidade política, não exatamente

esgotada nesse clichê, como a virtude política da integridade (DWORKIN, 2003,

p.202). E é ela que nos fornece o substrato teórico político necessário à rejeição da tese

pragmatista de que, no fim das contas, não possuímos pretensões juridicamente

tuteladas. Se aceitamos a integridade como uma virtude política lado a lado a virtudes

como a justiça e a equidade, logo temos um argumento geral, e não estratégico, para

reconhecer esses direitos; suas exigências justificariam o compromisso com a coerência

de princípio valorizada em si mesma, e não por estratégia ou fetiche. Daí porque

Dworkin sustenta, a partir de então, que a integridade é a vida do Direito tal qual o

conhecemos (ibidem, p.202-203).

Podemos distinguir as exigências da virtude da integridade, assim considerada, em dois

subconjuntos: o da integridade na legislação e o da integridade no julgamento. Devido à

integridade na legislação, os legisladores devem criar direitos por uma legislação que se

mantenha coerente aos seus próprios princípios. E devido à integridade no julgamento,

aos responsáveis por decidir o que é a lei, pede-se que a vejam e a façam cumprir com

base nessa mesma coerência. É por isso que, ao contrário do que pede o pragmatismo,

deve-se atribuir um papel especial ao passado nos tribunais, pois “os juizes devem

conceber o corpo do Direito que administram como um todo e não como uma série de

decisões distintas que eles são livres para tomar ou emendar uma por uma, com nada

além de um interesse estratégico pelo restante” (ibidem, p.203).

Dworkin não vai muito além de nossas intuições mais imediatas de lisura para mostrar

como a virtude política da integridade faz parte da melhor caracterização de nossas

instituições políticas no correto exercício de suas funções. Para isso traz à tona uma

série de exemplos de “decisões conciliatórias”, que nem a virtude da equidade, nem a

virtude da justiça, nem a virtude do devido processo legal adjetivo conseguiriam,

necessariamente, evitar.

Por exemplo, faz parte da concepção corrente de tratamento imparcial dos membros de

uma comunidade evitar decisões como permitir o aborto apenas para mulheres nascidas

em anos pares. A simples distribuição eqüitativa do poder não poderia evitar tal decisão,

70

assim como a aplicação do devido processo legal adjetivo, se tal norma já estivesse em

vigor amparada pela equidade. Da mesma forma, estando a comunidade dividida quanto

à questão do aborto, a justiça não poderia condenar uma norma que distribuísse, dessa

maneira, o direito de aborto eqüitativamente de acordo com o ano de nascimento da

mulher. Para aqueles contrários ao aborto, isso seria melhor que sua total liberação e,

para aqueles a favor, melhor que sua total proibição (DWORKIN, 2003, p.216). Isso

não impede, contudo, que esse tipo de decisão salomônica seja encarado como uma

forte afronta à correção política. Assim sendo, o que nos faz rejeitar essa possibilidade?

O que acontece é que a ordem pública de uma comunidade não pode ser tratada como

um tipo de mercadoria a ser distribuída de acordo com a justiça distributiva. Nossos

instintos sobre as decisões conciliatórias sugerem um outro ideal político ao lado da

justiça, da equidade e do devido processo. Esse ideal é o da integridade. E nas decisões

conciliatórias um Estado carecerá de integridade porque será incoerente com relação aos

princípios que endossou em parte de seus atos e, conseqüentemente, deveria endossar

nos demais. O que a integridade condena é a incoerência de princípio entre os atos do

Estado (ibidem, p.223).

Ou seja, faz parte de nossa moral política coletiva tratar essas decisões conciliatórias

como equívocos, de forma que aceitamos a integridade como um ideal político (ibidem,

p.224). Nas palavras do próprio Dworkin: “insistimos na integridade por que

acreditamos que as conciliações internas negariam o que é freqüentemente chamado de

‘igualdade perante a lei’ e, às vezes, de ‘igualdade formal’”.

O próprio Dworkin ressalta que tal ideal de igualdade tem sido atacado como destituído

de importância ao oferecer pouca proteção contra a tirania. Contudo, essa crítica

pressupõe que a igualdade formal consiste apenas em aplicar as regras estabelecidas na

legislação, quaisquer que sejam elas, nos moldes do proposto pelo convencionalismo

jurídico. Mas a igualdade formal mostra toda sua importância quando a integridade

exige a fidelidade não apenas às regras, mas também aos princípios, às teorias de

equidade e justiça que essas regras pressupõem como forma de justificativa (ibidem, p

225).

71

Por conta disso, a virtude da integridade nos oferece uma nova forma de interpretação

do Direito, diferente da do convencionalismo e do pragmatismo. Contudo, o Direito

como integridade exige, para sua atratividade, algo que pode soar estranho ao

liberalismo de Dworkin – calcado principalmente na primazia dos direitos individuais,

como “trunfos” perante qualquer prática da coletividade. Essa exigência seria seu forte

embasamento na comunidade personificada.

Isso porque, para que a integridade se torne atraente enquanto interpretação da atividade

jurídica, é necessário que possamos considerar a comunidade como um agente moral

específico e diferenciado de seus membros, não em termos metafísicos, mas políticos.

Apenas dessa maneira podemos exigir que a coerência na voz dessa comunidade, nos

moldes exigidos pela virtude da integridade, justifique o uso da força pública sobre cada

um de seus membros. Essa personificação da comunidade, todavia, deriva de um tipo

comunitário específico, a chamada comunidade de princípios, descrita por Dworkin nos

termos que apresentamos a seguir.

3.3. A COMUNIDADE DE PRINCÍPIOS

A integridade política apresentada por Dworkin assume a personificação da sociedade

ou do Estado como se uma comunidade política fosse realmente um tipo especial de

entidade diferente de seus cidadãos, atribuindo-lhe influência e responsabilidades

distintas das desses cidadãos. Afinal, ao dizer que a comunidade é fiel a seus próprios

princípios, Dworkin não se refere à moral convencional ou popular, ou às crenças e

convicções da maioria de seus membros. Pelo contrário, Dworkin afirma que a

comunidade tem seus próprios princípios que pode honrar ou desonrar, assim como

fazem as pessoas (DWORKIN, 2003, p.204).

Claro que isso, tampouco, faz menção a uma metafísica cujo “componente mental

último do universo seja um ente espectral, onipresente, mais real do que as pessoas de

carne e osso”, ou ainda, quer dizer que devemos “tratar o Estado ou a comunidade como

uma pessoa real, com um interesse ou um ponto de vista distinto, ou mesmo um bem-

72

estar próprio” (DWORKIN, 2003, p.205). Para ser mais exato, nas palavras do próprio

Dworkin, a idéia de integridade política personifica a comunidade por meio de “uma

personificação atuante, pois pressupõe que a comunidade pode adotar, expressar e ser

fiel ou infiel a princípios próprios, diferentes daqueles de quaisquer de seus dirigentes e

cidadãos enquanto indivíduos” (ibidem, p.208).

Tendo isso em vista, Dworkin pretende mostrar que uma comunidade política que

assume a virtude política da integridade torna-se um tipo especial de comunidade – a

comunidade de princípios – e que, dessa maneira, promove sua autoridade moral para

assumir e mobilizar o monopólio da força coercitiva (ibidem, p.228). Isto é, a

integridade possui relação direta com a legitimidade do Estado, na qual reside a

especificidade do Direito enquanto sistema coercitivo.

Assim sendo, um Estado que aceita a integridade como ideal político teria um melhor

argumento em favor da legitimidade do que um Estado que não a aceita. Por

conseguinte, tal virtude ofereceria uma razão em nome da qual faríamos bem em

considerar nossas práticas políticas como baseadas em tal virtude. E oferecer-nos-ia um

forte argumento em favor de uma concepção do Direito que considera a integridade

fundamental, já que qualquer concepção de Direito precisa explicar por que motivo é a

autoridade capaz de legitimar a coerção. A integridade, portanto, liga-se dessa maneira

ao projeto de encontrar uma concepção suficientemente atraente do Direito (ibidem,

p.232-3). Por isso, afirma Dworkin que (ibidem, p.249-50):

a melhor defesa da legitimidade política – o direito de uma comunidade política tratar seus membros como tendo obrigações em virtude de decisões coletivas da comunidade – vai ser encontrada, não onde os filósofos esperam encontrá-la – no árido terreno dos contratos, dos deveres de justiça ou das obrigações de jogo limpo, que poderiam ser válidas entre os estranhos –, mas no campo mais fértil da fraternidade, da comunidade e de suas obrigações concomitantes. Como a família, a amizade e outras formas de associação mais íntimas e locais, a associação política contém a obrigação em seu cerne. O fato de que a maioria das pessoas não escolhe suas comunidades políticas, mas já nasce nela ou é para ela levada ainda na infância não configura uma objeção a essa afirmação.

Não obstante, os membros de um determinado grupo devem adotar certas atitudes

perante suas responsabilidades mútuas, caso se pretenda que elas sejam vistas como

73

verdadeiras obrigações fraternais. Primeiramente, devem considerar as obrigações do

grupo como obrigações especiais, isto é, dotadas de um caráter distintivo no seu âmbito,

que não se confundem com obrigações gerais devidas igualmente a membros exteriores

a ele. Em segundo lugar, devem admitir essas responsabilidades como pessoais, ou seja,

que vão diretamente de um membro a outro, sem necessitarem percorrer todo o grupo

em um sentido coletivo. Em terceiro lugar, a eles deve ser possível considerar essas

responsabilidades, em suas manifestações mais específicas, como decorrentes de uma

responsabilidade mais geral: o interesse que cada um deve ter para com o bem-estar dos

demais. Por fim, em quarto lugar, devem pressupor que as práticas do grupo mostram

não apenas interesse, mas um igual interesse por todos seus membros (DWORKIN,

2003, p. 242-3).

Dessa forma, podemos distinguir uma comunidade básica, que atenda a requisitos

genéticos, geográficos ou históricos, identificados pela prática social como capazes de

constituir uma comunidade, e uma verdadeira comunidade, que seria uma comunidade

básica em cujas práticas sejam satisfeitas as atitudes específicas descritas acima. Isto

porque “as responsabilidades que uma verdadeira comunidade mobiliza são especiais e

individualizadas, e revelam um abrangente interesse mútuo que se ajusta a uma

concepção plausível de igual interesse” 21 (ibidem, p. 243). Assim, resta saber que

forma, portanto, deve assumir uma comunidade política básica para que possa se tornar

uma verdadeira forma de associação fraternal.

Buscando esclarecer essa questão, Dworkin compara três tipos diferentes de associações

políticas possíveis. O primeiro tipo é uma comunidade meramente factual, derivada de

um acidente geográfico ou histórico, em que seus membros tratarão uns aos outros

apenas como instrumentos para atingirem seus próprios fins, sem qualquer

compromisso mais amplo. Isso é o que aconteceria, por exemplo, se, para sua própria

sobrevivência, dois náufragos de países sem qualquer consideração pela moral e religião

um do outro, decidissem viver juntos e em colaboração (ibidem, p.252-3).

21 “As associações fraternais são conceitualmente igualitárias, mas podem ser estruturadas e até mesmo hierárquicas, como uma família, desde que sua estrutura e hierarquia reflitam o pressuposto do grupo de que seus papéis e suas regras digam respeito ao interesse de todos, e de que a vida de um membro não é mais importante que a de nenhum outro” (DWORKIN, 2003, p.243).

74

Já o segundo tipo, é o que Dworkin chama de modelo de regras, em que os membros de

uma comunidade política “aceitam o compromisso geral de obedecer as regras

estabelecidas de um certo modo específico dessa comunidade”. Eles obedecem a essas

regras não por serem elas originárias de um compromisso comum com princípios

subjacentes, que são eles próprios fontes de novas obrigações, mas por honestidade em

face de regras que representam um acordo entre interesses ou pontos de vista

antagônicos. Como ilustração desse tipo de associação, podemos imaginar pessoas

voltadas para seus próprios interesses, porém extremamente corretas, que competem em

um jogo, ou que constituem as partes de um acordo comercial limitado e provisório

(DWORKIN, 2003, p. 253).

Segundo Dworkin, esses dois primeiros modelos de comunidade – a comunidade como

uma questão de circunstância e como uma questão de regras – rejeitam, igualmente, a

única base na qual podemos assentar nossa oposição às decisões conciliatórias

anteriormente criticadas. Essa base é a idéia da integridade, a idéia de que a comunidade

deve respeitar princípios necessários à justificativa de uma parte do Direito, bem como

do todo. E com base nisso, Dworkin propõe o terceiro modelo possível de comunidade:

o modelo do princípio.

Tal modelo “concorda com o modelo de regras no ponto em que a comunidade política

exige uma compreensão compartilhada, mas assume um ponto de vista mais generoso e

abrangente da natureza de tal compreensão”. O modelo do princípio insiste em que as

pessoas só são membros de uma comunidade política genuína quando aceitam que seus

destinos estão ligados de uma maneira mais forte: aceitam que são governadas por

princípios comuns e não apenas por regras criadas por um acordo político. Os membros

de uma comunidade de princípios “admitem que seus direitos e deveres políticos não se

esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas

dependem, em termos mais gerais, do sistema de princípios que essas decisões

pressupõem e endossam” (ibidem, 2003, p. 454-5).

75

A comunidade de princípios, portanto, é baseada na reciprocidade e fraternidade e

atende melhor que outros tipos de comunidade aos requisitos necessários a uma

comunidade de fato para que se torne uma comunidade verdadeira. Aceita as

responsabilidades entre os membros da comunidade como especiais, pessoais e

igualitárias. Além disso, as funda em compromissos mais profundos que o mero

interesse e rejeita decisões conciliatórias. Pode não evitar, apenas ao satisfazer os quatro

requisitos, a injustiça. Mas atende melhor que os demais modelos tais requisitos e

fundamenta melhor o uso da força pública.

Afinal, uma comunidade desse tipo pode, em nome da fraternidade, reivindicar a

autoridade moral de uma verdadeira comunidade associativa, pois suas decisões

coletivas são questões de obrigação e não apenas de poder. Tais reivindicações podem

ser frustradas, pois até mesmo as verdadeiras obrigações associativas entram em

conflito com a justiça, devendo, por vezes, ceder diante dela. Mas qualquer outra forma

de comunidade perderia logo de início a poderosa pretensão de legitimidade, fundada no

ideal da fraternidade, que possui o modelo do princípio (DWORKIN, 2003, p. 256-8).

Com base nisso, podemos afirmar que, dentro da metodologia interpretativa construtiva

de Dworkin, qualquer boa interpretação de nossa prática política reconhece a virtude da

integridade como um componente importante dessa prática e como um ideal distinto de

outros como a equidade e a justiça. Na dimensão interpretativa, portanto, a integridade

se mostra coerente em face de nossa prática institucional e a exibe em sua melhor luz

(ibidem, p.259-60). Dessa maneira, vivenciamos uma comunidade política guiada por

essa virtude, isto é, uma comunidade de princípios. De que forma, contudo, tais

conclusões possuem conseqüências sobre o Direito e ajudam, por sua vez, a mostrá-lo,

igualmente, em sua melhor luz? Este é o momento de nos debruçarmos, então,

especificamente, sobre a integridade no Direito.

3.4. O ROMANCE EM CADEIA DO DIREITO

O princípio da integridade aplicado ao judiciário “instrui os juizes a identificar direitos e

deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados

76

por um único autor, a comunidade personificada, expressando uma concepção coerente

de justiça e equidade”. Dessa forma, dentro da concepção do Direito como integridade,

“as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de

justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação

construtiva da prática jurídica da comunidade” (DWORKIN, 2003, p. 271-2).

Diferentemente do convencionalismo e do pragmatismo, portanto, o Direito como

integridade além de uma interpretação específica da nossa prática jurídica, que busca

mostrá-la em sua melhor luz, funciona também, ele mesmo, como um programa

interpretativo. O Direito como integridade não é apenas um fruto da interpretação, mas

é também uma fonte de inspiração da interpretação mesma; pede a seus juizes que

continuem, em sua prática, a interpretar o material que ele mesmo afirma ter

interpretado com sucesso e se apresenta como a continuidade e como a origem das

interpretações mais detalhadas que recomenda (ibidem, p. 272).

Nesse sentido, a história é fundamental para o Direito como integridade, mas apenas

num certo sentido. A integridade exige uma coerência de princípio mais horizontal que

vertical. Não exige dos juizes que adaptem as leis atuais à continuidade de um princípio

vigente no direito do século passado que já esteja em desuso. Sua interpretação, na

verdade, tem como ponto de partida a gama de normas jurídicas que a comunidade faz

vigorar no presente. Insiste que as decisões políticas passadas, de que decorrem os

direitos e deveres que exigem ou permitem a coerção estatal, contêm não apenas seu

limitado conteúdo explícito, mas também o sistema de princípios necessários à sua

justificativa, de forma que a história se torna importante por esse sistema de princípios

justificar tanto o status quanto o conteúdo dessas decisões anteriores.

O Direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram (...) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. (...) Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente,

77

mas sim uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de princípio que a integridade requer. O otimismo do direito é, nesse sentido, conceitual; as declarações do direito são permanentemente construtivas, em virtude de sua própria natureza (DWORKIN, 2003, p.274).

Ilustrativamente, poderíamos considerar, nesses termos, nossa prática jurídica como um

infinito romance, escrito por várias mãos, no qual os operadores do direito seriam os

escritores que escreveriam cada um seu próprio capítulo, mas sem desconsiderar o que

os autores dos capítulos anteriores escreveram, buscando o melhor andamento possível

do enredo, dentro daquilo que a história se propõe a ser (ibidem, p.276). Esse é o sentido

da figura retórica utilizada por Dworkin, para representar a prática judicial, do romance

em cadeia, no qual, no caso do Direito, os juizes seriam ao mesmo tempo seus autores e

críticos. Assim, os direitos que compõem o conjunto do sistema jurídico visto sob o viés

interpretativo da integridade são precisamente ilustrados na metáfora da corda de

Wittgenstein, aludida por Dworkin, cuja constituição por inúmeros fios, dos quais

nenhum corre ao longo de todo seu comprimento nem a abarca em toda sua largura, se

assemelha ao desenvolvimento de uma instituição formada por características diversas,

que, mais ou menos importantes em dado momento ou local, nem por isso fazem seu

conjunto perder a unidade (ibidem, 2003, p.85).

Os juizes romancistas de nossa metáfora, portanto, devem criar, em conjunto, até onde

for viável, um só romance unificado e que seja da melhor qualidade possível. E, para

isso, sua tarefa deve ser realizada sob uma estrutura de interpretação que abrange duas

dimensões.

A primeira é a dimensão da adequação ou do encaixe. De acordo com essa dimensão, é

necessário que a interpretação do romance permita ao texto fluir do conjunto anterior

para o conjunto posterior que virá a se formar sob o acréscimo do texto fruto dessa

interpretação. Ela não exige que a interpretação se ajuste a cada linha do texto

interpretado, pois permite que se interprete algumas partes do romance como

meramente incidentais ou até mesmo equívocos, quando tomadas perante seu conjunto.

Contudo, exigirá da interpretação um poder explicativo geral, pois, caso contrário,

78

constituir-se-á numa interpretação mal sucedida ao deixar sem explicação algum

aspecto estrutural importante do texto (DWORKIN, 2003, p. 276-7).

Todavia, a primeira dimensão interpretativa não impede que o intérprete encontre várias

continuações possíveis para o romance, todas elas igualmente adequadas ao texto

desenvolvido até então. A segunda dimensão da interpretação, portanto, exigirá do

intérprete que julgue qual dessas leituras possíveis melhor se ajusta à obra em

desenvolvimento, depois de considerados todos os aspectos da questão. Trata-se da

dimensão da justificação ou da melhor luz, em que entrarão em jogo os juízos estéticos

mais profundos do intérprete, sobre a importância, o discernimento, o realismo ou a

beleza das diferentes idéias que se poderia esperar que o romance expressasse (ibidem,

p. 278).

Dessa forma, a tarefa dos operadores do Direito, comparada ao dos romancistas em

cadeia, 22 por um lado, pode ser vista como dotada de maior liberdade, por exemplo, que

a da tradução de um texto de língua estrangeira. Mas por outro lado, também pode ser

vista com uma tarefa dotada de menor liberdade que a de escrever um romance desde

seu início (ibidem, p.281). Nem total liberdade, nem coação absoluta: o juiz que escreve

o romance em cadeia do Direito não reconhece a distinção entre criar o direito e

simplesmente aplicá-lo. Sua tarefa é ao mesmo tempo as duas coisas e nenhuma delas.

Por esse ângulo, as decisões dos chamados casos difíceis – em que a lei não prevê

normas explícitas para seu regramento – não seriam oriundas de um poder discricionário

do juiz, mas sim de uma análise profunda sua sobre a legislação e os precedentes

judiciais, encontrando neles princípios que servem de fundamento para a prática política

e jurídica da comunidade e que o levam a tomar uma decisão mais fiel a eles possível e,

dessa maneira, dar continuidade à obra política e jurídica iniciada por seus antecessores

no tempo. No mesmo sentido, a atividade “criativa” do juiz, não estaria vinculada à

eficiência ou à justiça, tomada de forma abstrata, mas sim à adequação de regras a

22 A figura do romancista em cadeia não é meramente alegórica. Há exemplos reais de textos desenvolvidos sob essa estrutura geral em que autores múltiplos acrescentam a uma mesma história, ao longo do tempo, ou mesmo do espaço, novas partes, nuances, capítulos ou episódios. Esse é o caso, dentre outros, de muitos programas televisivos e histórias em quadrinhos.

79

princípios, em busca de um aperfeiçoamento normativo da comunidade, em direção à

efetivação dos objetivos dela mesma, cristalizados em princípios diretrizes da

interpretação judicial enquanto empreitada, tanto fruto, como causadora de coerência,

capaz de apresentar a história do direito sob sua melhor luz.

Assim, o Direito como Integridade justifica o uso da força para se fazer valer, melhor do

que o positivismo e o pragmatismo. Tomado o Direito dessa forma, ele fundamenta o

uso da coerção sobre os membros da comunidade tendo como justificativa a própria

comunidade, defendendo aquilo que ela valoriza, não no seu passado ou no seu futuro,

mas no que dá sentido à sua própria existência. Se vivenciamos uma comunidade de

princípios, a efetivação desses princípios que lhe dão substrato justifica sua ação em

sentido, inclusive, repressivo. E é de interesse de todos que a atividade política e

jurídica caminhem em direção ao seu aperfeiçoamento constante; é de interesse de todos

que o romance em cadeia do Direito seja a melhor obra possível dentro do gênero a que

se destina pertencer.

3.5. O JUIZ HÉRCULES

É nesse ponto que Dworkin nos apresenta seu juiz Hércules, capaz de ilustrar a

atividade judicial tal como ele a caracterizou até então (DWORKIN, 2002, p.165).

Dotado de poderes efetivamente hercúleos e agraciado com todo tempo que requisitar

para que possa tomar suas decisões, Hércules é capaz de analisar em totalidade o

conjunto das leis e precedentes judiciais do ordenamento jurídico em que opera,

extraindo dessa análise os princípios que lhe são subjacentes e, com base nesses dados,

fazendo seus julgamentos em direção à melhor concretização possível dos princípios

que a comunidade escolheu como sua substância moral básica.

Não que Dworkin faça necessário, para operar o Direito assim visto, de um juiz de

poderes sobrenaturais; apenas faz uso dessa metáfora para mostrar numa forma

idealizada o que é feito ordinariamente pelos juizes, dentro de suas limitações de tempo

e capacidades, mas numa empreitada coletiva que os aproxima da magnitude do

personagem mítico que invoca.

80

O mítico juiz Hércules surge na argumentação de Dworkin para ilustrar melhor a

passagem do romance em cadeia da literatura para a atividade judicial. Segundo

Dworkin, como vimos, a decisão de um juiz – suas conclusões pós-interpretativas –

deve ser extraída de uma interpretação que, ao mesmo tempo, adapte-se aos fatos

anteriores e os justifique, até onde isso seja possível.

A exemplo do que ocorre na literatura, contudo, a interação entre a adequação e a

justificação é complexa. Da mesma forma que num romance em cadeia a interpretação

representaria um delicado equilíbrio entre diferentes tipos de atitudes literárias e

artísticas, no Direito é um delicado equilíbrio entre convicções políticas que tem vez

(DWORKIN, 2003, p. 286-7). E para expor a complexa estrutura que subjaz à

interpretação jurídica, Dworkin lança mão de um juiz imaginário de capacidades e

paciência sobre-humanas, que aceita o Direito como integridade, ao qual, precisamente,

chama de Hércules.

Segundo Dworkin, o Direito como integridade “exige que um juiz ponha à prova sua

interpretação de qualquer parte da vasta rede de estruturas e decisões políticas de sua

comunidade, perguntando-se se ela poderia fazer parte de uma teoria coerente que

justificasse a rede como um todo”. Contudo, “nenhum juiz real poderia impor nada que,

de uma só vez, se aproxime de uma interpretação plena de todo o direito que rege sua

comunidade”. Por isso, Dworkin utiliza Hércules como uma metáfora representativa da

atividade desenvolvida rotineiramente pelos juizes “comuns”, isto é, por juizes que não

possuem os talentos sobre-humanos e nem o tempo infinito que possui Hércules

(ibidem, p.294).

O juiz mítico cumpre assim, a função de mostrar a estrutura oculta por trás das decisões

judiciais tomadas sob os ditames do Direito como integridade: a busca de cada juiz

singular de reconstruir o sistema jurídico sob o qual opera como um todo, que justifica

sua decisão como aquela que apresenta o direito sob sua melhor luz, levando em conta

os princípios de moralidade política escolhidos pela comunidade de princípios como os

vetores de sua concretização enquanto projeto político fraterno.

81

Contudo, algumas clarificações a respeito de Hércules precisam ser trazidas à tona para

evitar confusões e responder a algumas críticas a que o modelo de Dworkin é

submetido. Basicamente, precisamos distinguir em que sentido exatamente Hércules é

diferente dos juizes não hercúleos, esclarecer em que sentido Hércules pode ser

considerado um tipo-ideal e enfrentar a crítica habermasiana de que Hércules opera sob

uma inadequada lógica monológica.

Primeiramente, é necessário esclarecer em que sentido Hércules possui mais poderes

que os juizes reais. Ele trabalha tão mais rápido e dispõe de tanto mais tempo que um

juiz real que pode explorar muitos caminhos e idéias que os juizes reais não podem,

seguindo não uma ou duas, mas todas as interpretações possíveis de seus casos, de

forma que, enquanto os juizes reais terão de se contentar com hipóteses parciais, ele

poderá contar com hipóteses bem mais abrangentes. Mas Hércules não tem acesso a

mistérios transcendentais obscuros aos demais juizes: seus juízos sobre adequação e

moral política são feitos da mesma matéria e têm a mesma natureza dos juízos dos

juizes comuns. Isto é, ele faz o que eles fariam se tivessem toda uma carreira a dedicar a

uma única decisão (DWORKIN, 2003, p. 316). Nas palavras de Vianna et al (1999,

p.36):

Hércules não é, pois, um personagem dedicado a impor um padrão abstrato, extraído da razão, ao mundo real – seu é o território concreto da sua democracia, da sua Constituição e da sua cultura política. Geração após geração, o trabalho de Hércules é o de imprimir desenvolvimento ao enredo do direito, como um roman à chaîne [trad.,: romance em cadeia], em que cada capítulo novo, na história da criação jurisprudencial do direito, introduz nele uma variante ou mesmo uma inovação, sempre em coerência com os princípios acumulados “em todas as etapas históricas de uma coletividade”.

Ou ainda nas palavras de Alberstein (2002, p.283), Hércules acredita na vida do

contexto. Ele não clama por uma metafísica, e esse não é um campo em que ele pode ser

derrotado.

E para tornar mais claro esse ponto, Dworkin volta a despender atenção especial a

Hércules em escritos mais recentes, explicando a diferença fundamental entre Hércules

82

e os demais juizes “normais”: seu juiz mítico opera sob uma lógica que parte de fora

para dentro, enquanto que os juizes reais operam sob uma lógica que parte de dentro

para fora.

Isto é, Hércules possui de antemão a estrutura completa da rede de decisões políticas e

seus princípios subjacentes que caracterizam o sistema jurídico da comunidade em que

opera. Tendo esse material em mãos, ele é capaz de localizar, dentro dele, o exato local

em que se pode encontrar o caso concreto que esteja sob seu julgamento, podendo, por

conseguinte, explorar todas as suas possíveis respostas e respectivas justificações

mantenedoras da integridade do corpo jurídico. Os juízes não hercúleos, pelo contrário,

partem dos casos concretos a eles submetidos para, partindo dessa área pontual do

sistema jurídico, reconstruí-lo até o ponto em que ele ofereça a mais adequada e íntegra

resposta a estes casos (DWORKIN, 2006b, p. 54).

Com isso, parece bem claro que Hércules não pode ser tomado como um tipo ideal em

sentido normativo. Dworkin não tem nenhuma pretensão de apresentar seu juiz mítico

como um padrão a ser seguido ou alcançado pelos demais juizes. Fosse assim, o autor

sequer precisaria de Hércules, já que sua utilidade reside exatamente no ponto de ele ser

mais reflexivo e autoconsciente que qualquer outro juiz.

É por isso inclusive, que, num sentido diferente, Hércules pode sim ser considerado um

tipo-ideal: ele pode ser considerado um tipo-ideal em sentido analítico, isto é, como

uma radicalização de características específicas que não encontra paralelo em casos

reais, mas serve como um parâmetro que nos permite analisar em que medida e sentido

esses casos reais dele se afastam ou se aproximam.

Contudo, mesmo que Dworkin aceite essa possibilidade (idem, 2003, p. 316), não

parece ser esse o cerne da idéia de trazer para seu argumento a figura do juiz Hércules.

Sem dúvidas Hércules é uma idealização, mas é muito menos um tipo-ideal do que uma

metáfora que cumpre uma função didática no argumento dworkiniano. Em resposta aos

seus críticos Dworkin (2002, p.549), inclusive, assim se manifesta:

83

Disse que Hércules, que tem habilidades sobre-humanas e, por isso, trabalha rapidamente, poderia preparar de antemão toda uma teoria política, ricamente detalhada, com a qual poderia então enfrentar casos específicos difíceis. Não foi minha intenção sugerir que os juizes mais comuns de fato fazem a mesma coisa, embora desempenhem suas funções até onde o uso completo de suas habilidades e de seu tempo mais limitados lhe permitem. Foi minha intenção, no entanto, dizer que fazem parcelas bem pequenas do mesmo trabalho, como e quando a ocasião assim requer, de modo que não produzem uma teoria geral, mas, na melhor das hipóteses, pequenos trechos de uma teoria geral ou, como sem duvida freqüentemente ocorre, trechos de teorias diferentes. Mesma fazendo isso, baseiam-se não em um estudo filosófico formal, mas em idéias intuitivas do que um sistema mais geral justificaria, feitas mais articuladas pela experiência de defender suas intuições diante de casos reais e hipotéticos proporcionados pela prática.

A citação acima, por si só, já torna suficientemente controversa a tese que Habermas

levanta de que o juiz Hércules, apresentado por Dworkin, opera sob uma lógica,

necessariamente, monológica. Já que Dworkin, contrariamente a Habermas, está mais

interessado em conteúdos morais substantivos e não em procedimentos, talvez sua teoria

do Direito como integridade não exclua que um juiz iluminado, capaz de uma

reconstrução hercúlea dos princípios políticos da comunidade melhor que a de qualquer

outro grupo ou indivíduo, apresente a integridade para a comunidade em vez de

apresentar a integridade da comunidade mesma, tal como sugere a crítica de

Michelmen, citada por Habermas (1999, p.223).

Contudo, não há nada que implique que esse solipsismo seja necessário à

inteligibilidade da teoria dworkiniana. Pelo contrário, sem qualquer ressalva desse tipo,

o uso de Dworkin da figura do juiz como ponto de partida – e de um juiz que, como

vimos, está inserido num trabalho em rede com seus pares – faz referência inicial a um

ponto da prática jurídica em que um agente inerte é provocado por mais de uma parte

interessada, fazendo necessário o diálogo como seu ponto de partida. Isso sem contar

que a dimensão horizontal da interpretação judicial sugerida por Dworkin está

profundamente inserida em um contexto comunitário, em que devem ser justificados os

princípios da moralidade política da comunidade e não os do juiz ou de qualquer teórico

político que o juiz tenha como referência.

Logo, condenar a teoria de Dworkin por conta de uma suposta prática de seu juiz

metafórico que, segundo Michelmen, novamente citado por Habermas (1999, p.224),

84

opera sua reconstrução narrativa como um monólogo, resulta de um entendimento

equivocado da metáfora dworkiniana e de uma confusão entre essa metáfora e um tipo

ideal normativo que não era a intenção de Dworkin fazer com que Hércules fosse. Não

obstante, de qualquer forma, Hércules, mesmo enquanto metáfora, não precisa,

necessariamente, ser um juiz que “evita as pessoas”.

Resta ainda, entretanto, uma última leva de críticas levantadas contra Hércules.

Primeiramente, de acordo com seus críticos, Hércules seria uma construção

efetivamente útil para lidar apenas com os chamados casos difíceis, já que nos “casos

fáceis”, isto é, nos casos explicitamente associados a determinadas regras jurídicas, o

juiz mítico de Dworkin “passa do ponto” com um excesso de teoria que só faria

atrapalhar o processo judicial, complicando-o e retardando-o em demasia e

desnecessariamente (DWORKIN, 2003, p.316-7). E, em segundo lugar, nesses casos

difíceis em que Hércules poderia oferecer benefícios à prática jurídica hodierna, ele se

torna um impostor, pois nesses casos, diferentes grupos de princípios se ajustam

suficientemente bem às decisões do passado e apresentaram respostas igualmente boas

para o caso, sendo que a resposta de Hércules será apenas uma dessas respostas,

disfarçada como a única resposta correta por uma integridade do Direito como um todo

que, na verdade, é impossível (ibidem, p. 318-9).

A primeira parte da crítica nos remete à objeção, já anteriormente examinada, de que o

Direito como integridade de Dworkin sofre de um problema de excesso de teoria. E,

quanto a essa crítica não há mais muito a acrescentar. Na verdade, a distinção entre

casos fáceis e difíceis não é tão clara quanto parece e Hércules serviria a qualquer uma

delas, pois os casos fáceis seriam apenas exemplos especiais de casos difíceis em que a

interpretação é menos complexa. A queixa do crítico nada mais significa do que

reconhecer o que certamente Hércules reconheceria: que não precisamos fazer perguntas

quando já conhecemos as respostas (ibidem, p.317)

Contudo, a segunda parte da crítica nos remete a um ponto mais complexo e

controverso da teoria do Direito de Dworkin: o ponto em que Dworkin sustenta que

sempre há, para os casos jurídicos, fáceis ou difíceis, uma única resposta correta. No

85

fim das contas, aliás, a metáfora do juiz Hércules representa, efetivamente, a ilustração

da atividade judicial como procedimento de busca dessa resposta correta, mesmo nos

casos difíceis, em que os críticos alegarão não haver tal resposta.

Mesmo que reconheçamos que os princípios, ao contrário das regras, não estejam em

contradição num dado sistema, mas sim em competição, ainda assim, a idéia de que

pode existir sempre uma única resposta correta para uma disputa jurídica, tendo como

base a coerência do conjunto de princípios políticos que rege uma dada comunidade,

pode soar um tanto extravagante, exigindo, por isso, explicação mais detalhada. E tal

explicação é nosso ponto a seguir.

3.6. A TESE DA RESPOSTA CORRETA

Segundo Dworkin (2003, p.319), Hércules reconhece que, em termos de princípios, o

Direito está longe de possuir uma coerência perfeita. Todavia, ele pressupõe igualmente

que as contradições de um sistema jurídico baseado em princípios não são tão

abrangentes e intratáveis a ponto de tornar sua tarefa impraticável. Na verdade, ele

admite, pelo contrário, que é possível encontrar, nesse sistema, um conjunto de

princípios razoavelmente plausíveis, para cada segmento do direito que deva fazer

vigorar, que consiga um ajuste suficientemente bom a ponto de resultar numa

interpretação aceitável desse direito.

E isso explica a controversa tese, que Dworkin levanta, da “resposta correta”. Tal tese

não se limita à tese subjetiva da resposta correta, isto é, da idéia de que os operadores do

Direito atuam considerando o direito que defenderão como sendo o que efetivamente se

coaduna com o ordenamento jurídico, em detrimento de alegações concorrentes

(DWORKIN, 2002, p.430-446). Na verdade, além disso, o autor sustenta que, num

ordenamento jurídico que atingiu o nível de complexidade de ordenamentos como o

norte-americano e o inglês (as realidades com as quais trabalha), seria muito difícil um

caso de “empate” entre duas pretensões jurídicas. Consideradas todas as leis,

precedentes judiciais e regras e princípios jurídicos daí derivados, uma única resposta

seria – se não em todos os casos, ao menos na quase totalidade deles – a mais pertinente

86

a esse ordenamento jurídico tomado como um todo e, conseqüentemente, a única

resposta correta possível para a disputa (DWORKIN, 2005, p. 213).

O ponto de partida de Dworkin é a tese subjetiva da resposta correta. Isto é, engajados

em um pleito judicial, as partes e o juiz defendem seus direitos porque acreditam serem

eles os direitos efetivamente amparados pelo ordenamento jurídico em que estão

inseridos, como um todo. Como o próprio autor afirma, sua tese a respeito da existência

de uma resposta correta nos casos difíceis diz respeito a uma pretensão jurídica fraca e

bastante aceita pelo senso comum: a de que quando o autor e o réu de um processo

judicial defendem seus pontos de vista, como os mais corretos, atuam acreditando

verdadeiramente nisso, e não fingindo que acreditam nisso enquanto que, na realidade,

reconhecem que suas pretensões são tão válidas quanto as de seu adversário no pleito

(idem, 2006b, p 41).

Nas palavras de Lucas Borges de Carvalho (2006, p.31):

De antemão, é importante deixar claro que ao dizer que existe uma resposta correta aos casos controversos, Dworkin não está ignorando a existência de posições conflitantes e de divergências profundas entre os juristas. Nem muito menos imagina um mundo de essências, um conjunto de princípios de direito natural ou qualquer outro padrão externo à prática jurídica que possibilite uma demonstração inelutável ou, talvez, “objetiva” em torno de qual a única interpretação certa para determinado caso. A defesa de Dworkin pauta-se no ponto de vista interno, ou seja, o ponto de vista do participante da prática. Em qualquer processo judicial, as partes defendem que seus respectivos pontos de vista constituem, de fato, o mais correto. Da mesma forma, um juiz ou uma juíza, quando defendem uma posição numa sentença, não estão fingindo que acreditam nela, mas agem e, efetivamente, sustentam seus argumentos como a interpretação mais correta para o caso.

Trata-se, sem dúvida, portanto, de uma afirmação interna à prática, e não de uma

afirmação filosófica externa a ela. Dworkin não almeja, em sua tese da resposta correta,

ditar um padrão metafísico de correção, como ficou claro na forma que mostramos

trabalhar seu juiz Hércules. Logo, nem é possível interpretar a tese da resposta correta

como uma afirmação, ao molde dos ataques céticos do pragmatismo, “realmente” ou

objetivamente correta, e nem, por conseguinte, atacá-la desse ponto arquimediano,

dizendo que “realmente” ou objetivamente não é possível se encontrar uma resposta

correta para um caso jurídico complexo (DWORKIN, 2006, p. 42). Além do mais, já

87

vimos o quanto inócua essa crítica do ceticismo exterior se apresenta ao tentar adquirir a

força de uma crítica cética interna.

Mas mesmo nessa sua versão “fraca”, a tese de Dworkin da existência de uma resposta

correta nos casos difíceis ainda precisa enfrentar o desafio da tese da

demonstrabilidade, segundo a qual apenas podem ser considerados verdadeiros

enunciados que possam ser demonstrados com verdadeiros. Isto é, se não pudermos

demonstrar que uma proposição é verdadeira, depois que todos os fatos concretos que

possam ser relevantes para sua veracidade sejam conhecidos ou estipulados, então ela

não pode ser considerada verdadeira 23 (DWORKIN, 2005, p.204).

Porém, a correção que Dworkin almeja quando se refere às suas respostas corretas não é

do tipo decorrente da correção advinda de demonstrações de veracidade como descritas

acima. Isso porque Dworkin assume que existe “alguma outra coisa no mundo”, além de

fatos concretos, que seja capaz de assegurar a veracidade de proposições como as

proposições de direito. Esse tipo de “coisa”, diferente de fatos concretos, não pode ter

sua existência demonstrada por métodos científicos comuns e não se sujeita à tese da

demonstrabilidade. E dentre essas “coisas” estariam os fatos de coerência, como os

fatos de coerência narrativa, que permitem que uma interpretação de um texto seja

correta, enquanto outra seja errada, de acordo com o que seria coerente com sua

narração (ibidem, p. 205-6). São do mesmo tipo de fato não demonstrável, que

encontramos na coerência narrativa, os fatos que encontramos quando nos deparamos

com fatos de coerência normativa – característica do Direito enquanto interpretação,

proposto por Dworkin – o que permite que uma proposição jurídica seja verdadeira

mesmo sem poder ser demonstrável nos moldes da tese da demonstrabilidade.

Por isso, a teoria interpretativa do Direito proposta por Dworkin, em que o Direito

assume a forma de um romance em cadeia, permite que, independentemente de sua

demonstração, as proposições jurídicas sejam verdadeiras ou falsas e,

23 “Sendo que, nesse caso, consideramos fatos concretos tanto fatos físicos, quanto fatos relativos ao comportamento das pessoas, incluindo pensamentos e atitudes, e consideramos “demonstrar” como fundamentar com argumentos de um tipo que qualquer pessoa que compreenda a linguagem em que foi formulada a proposição assentirá à sua veracidade ou será considerada irracional” (DWORKIN, 2005, p.204).

88

conseqüentemente, que haja uma resposta correta para os casos difíceis. Tal resposta

deixaria de existir apenas se não houvesse qualquer regra ou princípio que pudesse fazer

referência ao caso, o que seria muito difícil, ao menos nos sistemas jurídicos mais

desenvolvidos, nos quais, como demonstra Dworkin, mesmo quando não existam regras

explícitas sobre o caso, haverá um princípio moral que permeia esse sistema jurídico

como um todo e que fará o direito pender para o lado de uma das partes ou da outra.

Sendo assim, a metodologia interpretativa construtiva do Direito de Dworkin, composta

pelas dimensões da adequação e da justificação, conduziria os operadores do Direito a

uma resposta correta. Mesmo que eles discordem a respeito de qual resposta seja essa, o

que não vai acontecer é todos concordarem que nenhuma resposta seja a correta

(DWORKIN, 2005, p. 211-4).

Contudo, a tese da resposta correta de Dworkin não se limita a essa versão fraca,

baseada unicamente na perspectiva subjetiva dos que realizam a prática jurídica. Ela

também se desdobra numa tese mais forte da resposta correta: a de que, levadas às

últimas conseqüências sua metodologia interpretativa construtiva – como faria, por

exemplo, Hércules – seria muito difícil, a ponto de ser exótico, um caso de “empate”

entre duas pretensões jurídicas antagônicas, ao menos nos sistemas jurídicos mais

complexos, como é o caso do sistema jurídico inglês e estadunidense.

Reconstruindo o sistema jurídico em que opera, numa cadeia coerente, em que as

decisões políticas passadas e presentes se encaixam formando um todo teórico político

harmônico, o jurista encontraria apenas uma, ou apenas bem poucas respostas capazes

de cumprir com a mesma eficiência o critério dworkiniano da adequação, isto é, o

critério do encaixe dessa resposta na história institucional de seu Direito. E, se ainda

assim, lhe reste, não apenas uma, mas algumas respostas suficientemente e igualmente

boas para seu caso, na segunda dimensão de sua teoria interpretativa, é muito provável

que apenas uma dessas teorias coerentes será capaz de mostrar o direito em sua melhor

luz, isto é, será capaz de oferecer uma justificativa melhor que a das outras em termos

de superioridade enquanto teoria política ou moral capaz de apreender os direitos que as

pessoas realmente possuem (DWORKIN, 2005, p.213-4).

89

Daí a plausibilidade da tese de uma única resposta correta nos casos difíceis, mesmo

que, talvez, só alcançável pelo juiz Hércules. Tal tese derivaria da junção da tese “fraca”

da resposta correta, que diz respeito a seu status subjetivo e sua correção enquanto fruto

de um correto processo hermenêutico, com a tese da quase impossibilidade de empate

entre pretensões jurídicas antagônicas dentro de um sistema jurídico complexo formado

tanto por regras, quanto por princípios, e possuidor de uma longa e rica história

institucional.

Disso resulta a tese “forte” de uma resposta correta, que radicaliza o aspecto normativo

do trabalho de Dworkin, oferecendo uma diretriz bastante concreta ao trabalho dos

operadores do Direito que, como bem salienta Cittadino (2004, p.212), referindo-se ao

trabalho das cortes constitucionais, devem buscar, em suas interpretações, proferir

“decisões corretas” e não se envolver na tarefa de “criação do direito” a partir de valores

“preferencialmente aceitos”.

3.7. ARGUMENTOS DE PRINCÍPIO E ARGUMENTOS DE POLÍTICA

Tendo isso em vista, podemos finalmente analisar o trabalho de Hércules, sob os

ditames do Direito como integridade, buscando uma resposta efetivamente correta para

um caso jurídico complexo e controverso. Mas antes, faz-se necessário o

aprofundamento de um ponto fundamental para a distinção, na obra de Dworkin, do

trabalho dos juizes do dos políticos parlamentares ou dos chefes do poder executivo. Tal

ponto é a diferenciação, estabelecida por Dworkin, entre argumentos de princípio e

argumentos de política, pois a atividade judiciária deve ser regida pelos primeiros e não

pelos segundos.

Se até então fizemos referências aos princípios de uma forma geral, referindo-nos tanto

a princípios num sentido estrito, quanto a políticas, chega o momento de diferenciar

ambos e tornar mais claro o trabalho do jurista em sua função jurisdicional,

caracterizada por proferir respostas juridicamente corretas e não por buscar implementar

preferências políticas particulares. Sendo assim, distinguir entre argumentos de

90

princípio e argumentos de política, ou entre princípios em sentido mais amplo e em

sentido mais estrito, constitui-se num tema importante no momento.

Parece claro que o direito como Integridade em Dworkin explicita a relação entre o

Direito e a Política. Vários são os pontos em que o autor ressalta essa relação, como, por

exemplo, quando diz que, se a tese dos direitos, segundo a qual as decisões judiciais

tornam efetivos os direitos políticos existentes, é válida, a história institucional age não

como uma restrição do juízo político dos juizes, mas como componente de tal juízo

(DWORKIN, 2002, p.136).

Porém, parece claro também, que se trata essa relação, de uma relação especial, em que

os pontos relacionados não se confundem, nem se anulam. Nesses termos, aparece como

fundamental a distinção feita por Dworkin entre argumentos de princípio, em sentido

estrito, e argumentos de política, sendo que ambos fariam referência ao conjunto maior

dos princípios, em acepção mais ampla, da comunidade em que estão inseridos.

Segundo Dworkin, as políticas estabelecem objetivos a serem alcançados, alguma

melhoria em aspectos econômicos, políticos ou sociais da comunidade. Já os princípios

em sentido estrito, estão relacionados a um padrão que deve ser observado, não porque

irá promover ou assegurar alguma situação econômica, política ou social desejável, mas

porque se refere a uma exigência de justiça, eqüidade ou alguma dimensão da

moralidade (DWORKIN, 2002, p.36). Dessa forma, os argumentos de princípio são

argumentos destinados a estabelecer um direito individual, enquanto os argumentos de

política são argumentos destinados a estabelecer um objetivo coletivo. E os princípios

são proposições que descrevem direitos, enquanto as políticas são proposições que

descrevem objetivos (ibidem, p.141).

Assim, a prática do poder judiciário deveria se basear em argumentos de princípio,

reservando os argumentos de política para a prática parlamentar, deixando claros os

níveis de liberdade de construção do Político em cada uma das esferas. Nas palavras do

próprio Dworkin (2002, p.129-132):

91

[O]s juízes não deveriam ser e não são legisladores delegados, e é enganoso o conhecido pressuposto de que eles estão legislando quando vão além de decisões políticas já tomadas por outras pessoas. Este pressuposto não leva em consideração a importância de uma distinção fundamental na teoria política que agora introduzirei de modo sumário. Refiro-me à distinção entre argumentos de princípio, por um lado, e argumentos de política (policy), por outro. Os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo. (...) Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo. (...) Não obstante, defendo a tese de que as decisões judiciais nos casos civis, mesmo em casos difíceis (...), são e devem ser, de maneira característica, gerados por princípios, e não por políticas.

Da mesma forma, a atividade criativa – necessariamente limitada – dos juizes encontra

espaço na teoria dworkiniana, na importância que o autor dá à dimensão interpretativa

da atividade judicial. Novamente, são vários os pontos em que isso vem à tona, como no

trecho, em que, mais uma vez, Direito e Política são relacionados, mas sem se

confundirem um com o outro, no qual o autor sustenta que a prática judiciária é um

exercício de interpretação de uma forma mais geral, que vai além do momento que os

juristas interpretam documentos ou leis específicas, sendo o Direito, assim concebido,

profundamente político e juristas e juizes não podendo, dessa maneira, evitar a política

no sentido amplo da teoria política. Contudo, o Direito também não é uma questão de

política pessoal ou particular, e uma crítica do Direito que não compreenda essa

diferença fornecerá uma compreensão pobre do Direito e uma orientação para ele, mais

pobre ainda (DWORKIN, 2005a, p.217).

Sendo assim, dentro dos limites já apresentados acima, a criatividade da atuação do

poder judiciário não atinge, no Direito como Integridade, os mesmo níveis que atinge,

por exemplo, no pragmatismo jurídico, deixando, Dworkin, inclusive, muito pouco à

vontade com o termo ativismo judicial, que ele nega possuir espaço em sua teoria

(DWORKIN, 2003, p.452). A limitação tem relação direta com o fato de se tratar da

atividade de funcionários geralmente não eleitos, que, com isso, não possuem

responsabilidade direta perante seus eleitores e, assim, atuam dentro de um nível de

responsabilidade menor, devendo maior reverência às decisões políticas pretéritas

tomadas no nível de outros poderes, sujeitos a maior grau de responsabilização.

92

Dessa forma, mesmo em casos jurídicos complexos, os argumentos que os advogados

propõem e os juizes aceitam são antes argumentos de princípios que de política, e é sob

essa idéia que o processo judicial deve, efetivamente, ser regido (DWORKIN, 2005,

p.109). Não que argumentos de política não possam reforçar um argumento jurídico,

mas apenas poderão fazê-lo se estiverem em consonância com argumentos outros de

princípios.

É nesse ponto que reside a diferença fundamental da atuação política nos tribunais e nos

parlamentos, já que os últimos não tomam decisões pautados por essa limitação em sua

argumentação. Aliás, não só a diferença, mas também a complementaridade entre essas

atuações e a funcionalidade de sua separação aparecem nesse mesmo ponto. Se

aceitamos, por exemplo, a revisão judicial constitucional – e vários motivos existem

para isso, conforme ficara claro outrora – temos de aceitar que os tribunais tomam

decisões políticas importantes. A questão passa a ser então, a de saber quais motivos

são, em suas mãos, bons motivos. E, quanto a isso, a visão de Dworkin é clara: um

tribunal deve tomar decisões de princípio e não de política; decisões sobre que direitos

as pessoas possuem sob nosso sistema jurídico e não decisões sobre como se promove o

bem-estar geral (Ibidem, p.101).

Recapitulando, portanto, a atividade judicial, tal qual descrita por Dworkin, é uma

atividade interpretativa. Tal interpretação parte de um caso jurídico do presente e volta-

se para o passado institucional do direito daquela comunidade, buscando nele suas

decisões políticas anteriores, materializadas em leis e precedentes judiciais, assim como,

geralmente, também, numa constituição diretriz da totalidade do sistema. Tais decisões

políticas referem-se a regras a serem aplicadas pelos operadores do direito, e não é

difícil para esses operadores perceberem, em sua interpretação, quais as regras que se

aplicam a muitos dos casos que chegam às suas mãos.

Contudo, as decisões políticas do passado não se referem apenas a regras e, mesmo

quando se referem a regras, expressam igualmente um conjunto de princípios de

moralidade que permeiam todo o sistema garantindo-lhe uma coerência que opera num

nível mais profundo do que a mera sobreposição dessas regras. Tais princípios são

93

importantes, porque não vivemos numa comunidade de mero ajuste entre os interesses

de seus membros. Na verdade vivemos em uma comunidade fraterna, ligada por ideais

de justiça mais profundos que são representados exatamente por esses princípios que, ao

longo da história, encontraram respaldo em decisões políticas como leis e precedentes

judiciais.

Numa comunidade desse tipo, o poder judiciário funcionaria como um fórum de

princípios, responsável por defender os princípios de configuração moral da

comunidade de quaisquer ofensas que possam vir a sofrer, inclusive por parte dos

poderes executivo e legislativo, o que justifica a existência das modernas cortes

constitucionais, responsáveis pela revisão judicial das decisões de outros poderes. Esses

princípios, inclusive, devem ser defendidos contra o próprio sistema de regras de que

decorrem, pois podem exigir a invalidez de regras a eles contrapostas, assim como o

reconhecimento de regras outras não explicitadas em decisões políticas anteriores, mas

responsáveis por uma mais efetiva consolidação desses princípios. Afinal, se o Direito

tem como característica sua mais fundamental a possibilidade de justificar o uso da

força coercitiva pública, nada melhor do que justificar essa coerção tendo como base

nem o futuro nem o passado da comunidade, mas sim o substrato moral que une seus

membros numa empreitada coletiva de aperfeiçoamento constante de suas próprias

instituições.

Para realizar sua função de guardiões dos princípios, dentro do fórum de princípios que

se constitui a atividade judicial, os operadores do Direito devem realizar uma tarefa

complexa de interpretação construtiva do sistema jurídico em que operam. Devem

analisá-lo sob as óticas do encaixe e da melhor luz, buscando em cada pleito judicial

uma resposta que se apresente correta sob essas duas óticas. Isto é, devem averiguar

quais respostas à questão jurídica a eles apresentada encaixam-se suficientemente bem à

história institucional do Direito da comunidade, em consonância com seus princípios, e,

em seguida, decidir qual dessas interpretações que se encaixam bem à prática jurídica de

até então apresenta o Direito sob sua melhor luz, ou seja, apresenta-o sob uma

justificativa moral que explique suficientemente o porquê das pessoas possuírem os

direitos que de fato possuem. Procedendo dessa maneira, ao menos nos sistemas

94

jurídicos mais desenvolvidos e complexos como o dos Estados Unidos e o da Inglaterra,

os juizes encontrariam uma única resposta correta para seus casos, por mais difíceis que

eles sejam.

A imagem da reconstrução teórica da totalidade do Direito, enquanto um todo

harmônico que reflete os anseios de uma comunidade de princípios, como fundamento

para as decisões judiciais, não possui exato reflexo na atividade hodierna de um juiz

qualquer de carne e osso. Por mais representativa que seja da atividade que os juristas

desempenham rotineiramente, de forma parcial por cada profissional e em cada caso,

dentro dos limites com que necessariamente se deparam, essa imagem representa apenas

uma idealização dessa atividade, esclarecedora de suas estruturas mais profundas. Por

conta disso, Dworkin é obrigado, nesse ponto, a fazer o uso didático da metáfora de um

juiz idealizado: seu famoso juiz Hércules.

Nosso último ponto consiste em observar Hércules em ação, sob a direção de Dworkin.

Sabemos de seu interesse por uma resposta correta obtida por meio da interpretação, que

só ele é capaz de fazer com perfeição, do sistema jurídico como um todo, cujos

princípios guiam sua atividade nas duas etapas a ela necessárias: a dimensão do encaixe

e da melhor luz. Sabemos também que Hércules obedece à virtude política da

integridade e busca a unificação da voz do governo ao tratar casos similares. Da mesma

forma, reconhecemos que Hércules trabalha, prioritariamente, com argumentos de

princípio, reservando os argumentos de política a seus companheiros parlamentares.

Logo, não está interessado, a princípio, em melhorias da comunidade, mas na defesa de

direitos.

Como não pretendemos, no momento, trazer Hércules para julgar algum caso externo

que nos pareça importante, observaremos o juiz mítico em ação num caso trazido à tona

pelo próprio Dworkin que, acreditamos, menos por imodéstia do que pela capacidade

explicativa que os exemplos possuem numa teoria, encarna seu juiz heróico na

resolução de vários casos controversos apresentados à justiça inglesa e estadunidense. 24

24

V. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 513 p.

95

O caso específico que escolhemos para analisar, para, com base nele, destacar os pontos

fracos e fortes da teoria de Dworkin materializada na prática de Hércules, é o caso snail

darter, que o autor nos apresenta ao longo de sua obra O Império do Direito. O

desempenho de Hércules no julgamento do caso snail darter, portanto, é a matéria

tratada em nosso próximo capítulo.

96

4. UM PEIXINHO CHAMADO SNAIL DARTER

4.1. O CASO SNAIL DARTER

Para melhor apresentar sua argumentação, Dworkin traz à tona alguns casos julgados

por juizes reais para serem reavaliados pelo juiz Hércules. Um desses casos, utilizado

para ilustrar a atividade de Hércules num contexto em que ele lidaria com leis escritas e

princípios, é o caso Snail Darter. Tal caso versa sobre a construção, pelo governo

federal do Estados Unidos, de uma represa que poria em risco uma espécie de peixe

específica, o snail darter, um peixinho de cerca de 7,5 centímetros, cuja relevância

ecológica, segundo Dworkin, é nula. Sob os ditames da Lei das Espécies Ameaçadas, a

Suprema Corte estadunidense decidiu por embargar a construção, já em fase conclusiva,

para não destruir o habitat do snail darter e extinguir sua espécie (DWORKIN, 2003,

p.25-9).

Em face da insignificância da espécie em questão e amparado por princípios como o do

não desperdício de dinheiro público, além de argumentos de política 25 como os

benefícios que a represa traria aos moradores das áreas próximas, Dworkin (Hércules)

questiona a decisão da Suprema Corte, localizando a resposta correta à questão jurídica

levantada no sentido de autorizar que a construção da barragem fosse finalizada. Ou

seja, segundo Dworkin, a decisão contrária à da Suprema Corte realizaria de melhor

forma os princípios da comunidade em questão, evitando o desperdício do dinheiro

público, mesmo sob o risco da extinção de uma determinada espécie, haja vista que tal

espécie não se encontra provida de qualquer valor econômico ou científico.

4.2. HÉRCULES E O SNAIL DARTER

O ponto de partida de Dworkin para promover o julgamento do caso snail darter pelo

juiz Hércules é redescrever o método de Hércules, voltando-o especificamente para a

25 “Como a decisão política que Hércules está interpretando é uma lei, e não uma série de decisões judiciais do passsado, as questões de política são pertinentes a sua decisão sobre quais direitos se devem considerar terem sido criados pela lei” (DWORKIN, 2003, p.378, nota 1).

97

interpretação de leis e não de precedentes judiciais ou da Constituição. Para a

interpretação das leis, segundo Dworkin, seu juiz mítico

tratará o Congresso como um autor anterior a ele na cadeia do direito, embora um autor com poderes e responsabilidades diferentes dos seus e, fundamentalmente, vai encarar seu próprio papel como o papel criativo de um colaborador que continua a desenvolver, do modo que acredita ser o melhor, o sistema legal iniciado no Congresso. Ele irá se perguntar qual interpretação da lei – permitir ou não ao ministro interromper projetos quase terminados – mostra mais claramente o desenvolvimento político que inclui e envolve essa lei. Seu ponto de vista sobre como a lei deve ser lida dependerá em parte daquilo que certos congressistas disseram ao debatê-la. Mas dependerá, por outro lado, da melhor resposta a dar a determinadas questões políticas: até que ponto o Congresso deve submeter-se à opinião pública em questões desse tipo, por exemplo, e se seria absurdo, em termos políticos, proteger uma espécie tão insignificante à custa de tanto capital (DWORKIN, 2003, p. 377-8).

Tendo isso em vista, Dworkin percorre o histórico político daquilo que seria a

justificativa possível para a lei que interpreta: a proteção das espécies. Tomando como

base essa justificativa, analisa, além da própria Lei das Espécies Ameaçadas, outras

decisões políticas, tanto anteriores quanto posteriores a essa lei, mas que lidam com a

questão da preservação ambiental e com os objetivos em face dos quais tal preservação

deve ceder ou sobre os quais deve preponderar. E daí conclui que a justificativa para a

Lei das Espécies Ameaçadas não é tão forte a ponto de justificar a paralisação da obra

da barragem. Logo, a decisão jurídica correta para o caso, ao contrário do que imaginara

a Suprema Corte Americana, seria autorizar a finalização da barragem, mesmo que isso

implicasse o risco de extinção do snail darter (ibidem, 416-9).

Dworkin deixa bem claro também que, nesse caso, pouco importam as convicções

pessoais de Hércules. Seja seu juiz mítico a favor ou contra a preservação das espécies a

qualquer custo, ele deve estar atento não às suas próprias preferências políticas, mas às

preferências políticas materializadas nas decisões políticas anteriores à sua própria.

Como salientamos, Hércules respeita a integridade e não entenderá que aprimora uma

lei simplesmente impondo sobre ela suas próprias convicções, mas sim “lendo-a” sob a

luz dos princípios da comunidade que a instituiu, respeitando, igualmente, a equidade e

a justiça (DWORKIN, 2003, 408-9).

98

Sendo assim, contando com decisões recentes do Congresso estadunidense no sentido

de conceder mais recursos à construção da barragem, mesmo após o snail darter ser

considerado uma espécie sob risco de extinção pelo ministro competente, Hércules se

juntará aos magistrados que divergiram do julgamento real do caso. Ele concluirá que

interpretar a lei de forma a salvar a represa, torna-la-ia melhor enquanto uma política

bem fundada. Segundo Dworkin, não haveria qualquer motivo de integridade textual

para rejeitar essa interpretação e tampouco ela ofenderia a eqüidade, já que nada sugere

que o público seria ultrajado ou ofendido por uma decisão desse tipo. Da mesma forma,

“nada no histórico legislativo do próprio projeto de lei, corretamente entendido e visto

como registro da decisão pública, afirma o contrário”, assim como, num sentido muito

diferente, “as últimas decisões legislativas da mesma natureza corroboram

vigorosamente a interpretação que Hércules considera a melhor” (DWORKIN, 2003, p.

415).

Não deixa de parecer estranho, todavia, voltarmos nossos olhos, hoje, em face dos

atuais desdobramentos do movimento ecológico e da importância que suas demandas

adquiriram nos debates políticos contemporâneos, para o julgamento do caso snail

darter pelo juiz Hércules e, conseqüentemente, para a crítica empreendida por Dworkin

à decisão tomada pela Suprema Corte no caso “real”. Será que os princípios

constituintes da sociedade estadunidense apontariam, de fato, para uma decisão jurídica

que desprezasse a lei de proteção às espécies? Como explicar, dessa forma, a

importância que o movimento ecológico adquiriu nos últimos anos, mesmo nos Estados

Unidos, se a defesa de espécies contra a extinção não possui, nos princípios que lhe dão

sustentação moral, um respaldo suficientemente forte a ponto de garantir esse objetivo

contra projetos voltados ao desenvolvimento econômico de determinado local? E, o que

também é importante para nossos propósitos: certa ou errada, não teria sido a decisão

pela Suprema Corte do caso snail darter um fator importante na consolidação do quadro

atual de extrema relevância das demandas ecológicas?

99

4.3. A RESPOSTA CORRETA AO CASO SNAIL DARTER

O Direito como Integridade de Dworkin compartilha com o pragmatismo jurídico certa

preocupação com as conseqüências prospectivas das decisões dos juizes. Contudo, por

sua insistência em encontrar a direção de um futuro melhor, tendo como base o

substrato moral da comunidade, expresso em seus princípios políticos, a teoria do

Direito de Dworkin parece oferecer bases bem melhores que o pragmatismo para o

exercício de qualquer futurologia.

Todavia, quando o juiz Hércules foi posto a atuar num caso concreto específico, o caso

do peixinho snail darter, sua magnífica reconstrução teórica da arquitetura política e

moral de sua comunidade o conduziu a uma resposta cuja correção pode ser

questionada. Sabemos que o objetivo da teoria jurídica de Dworkin é conduzir os juizes

a uma decisão correta, num nível profundo, isto é, conduzi-los a uma única resposta

correta possível a um caso jurídico complexo, como o caso snail darter. Mas a resposta

de Hércules ao caso snail darter foi correta? Ou, ao menos, a única correta?

O que tentaremos aqui é uma outra reconstrução teórica e moral possível. Uma

interpretação do caso snail darter que confirma a decisão da Suprema Corte, e não a de

Hércules. Essa interpretação parte do suposto de que o caso snail darter se encaixa num

ramo mais amplo do Direto, que é o Direito Ambiental, sendo parte desse direito a Lei

das Espécies Ameaçadas, que inclui a espécie snail darter. Ao modo de Hércules,

podemos perguntar que tipos de princípios comunitários justificam a existência desse

ramo. E, como a história institucional do Direito Ambiental não é muito antiga, logo,

não ela é difícil de ser reconstruída, sendo, portanto, de fácil identificação o tipo de

justificação moral de tal ramo do Direito. Procedamos, portanto, a essa reconstrução.

Podemos dizer que, em sua consolidação enquanto ramo autônomo do Direito, a

proteção ao meio ambiente atravessou três fases distintas: a utilitária, a fragmentária e

a holística (SIRVINSKAS, 2002, p.15-7). Em sua fase utilitária, o que justificava a

proteção de determinadas espécies era sua utilidade, especialmente para fins comerciais.

São exemplos de regras de proteção ao meio ambiente desse período, por exemplo, a

100

Convenção para Proteção de Aves Úteis à Agricultura de Paris em 1902 e a tutela do

pau-brasil nas Ordenações Filipinas do Brasil em 1603.

Contudo, com a Revolução Industrial, o Direito ambiental entrou em sua fase

fragmentária. Nessa fase, com o aumento do consumo, da extração de matérias primas e

da produção de lixo, o acontecimento de grandes desastres ecológicos e poluições

ambientais gerou códigos específicos de proteção ao meio ambiente, como o código de

mineração, o código de águas, o código do solo, etc. Assim, o que justificava a proteção

ao meio ambiente de então era, além da defesa de sua utilidade, a defesa da própria vida

humana que entrava em risco, devido a seu descaso com seu entorno, garantidor de sua

própria existência.

Todavia, em 1972, na Conferência da ONU sobre o ambiente humano na Suécia, foi

assinada a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, estipulando

diretrizes para Estados e ressaltando a necessidade de uma proteção ambiental

homogênea, dando início, efetivamente, ao que conhecemos como Direito Ambiental.

Essa é a fase holística de proteção ao meio ambiente, na qual esse meio ambiente passa

a ser um bem em si, a ser protegido de forma ampla e abrangente.

A decisão do caso snail darter, de 1978, assim como o livro em que Dworkin cita essa

decisão, publicado originalmente em 1986, localizam-se num momento de consolidação

da fase holística da proteção ao meio ambiente e do Direito ambiental enquanto ramo

autônomo do Direito. Nessa fase, o que justifica a proteção de uma espécie não é mais

sua utilidade, mas seu valor intrínseco enquanto parte de um meio ambiente cuja

proteção é de interesse da comunidade como um todo, dependente dele para sua própria

sobrevivência. Logo, a preservação do meio ambiente passa a ser um princípio político

autônomo a guiar a atividade de um Estado, cujas diretrizes são da mesma importância

de outras como o não desperdício do dinheiro público, a moralidade na celebração dos

contratos administrativos e a estrita legalidade dos atos de governo.

Nesse sentido, se uma lei garante a proteção do snail darter, enquanto espécie em

extinção que faz parte de um meio ambiente cuja proteção é de nosso interesse, de que

101

forma um tribunal como a Suprema Corte Estadunidense deve decidir um caso de

Direito Ambiental como o caso snail darter? Sendo a Suprema Corte, como sugere

Dworkin, um fórum de discussão de princípios jurídicos, responsável por defender,

dentre esses princípios, os que melhor representam os anseios morais da comunidade

política, deve ela decidir contra ou a favor da proteção do snail darter?

Dentro de nossa interpretação do que é o Direito ambiental e do que o justifica em sua

fase holística, se ela não deve decidir a favor da proteção do snail darter, ao menos pode

decidir nesse sentido, sem destoar do histórico da lei que interpreta nesse caso – a Lei

das Espécies Ameaçadas – e nem se tornar incoerente perante o contexto atual do

momento em que teve de proferir resposta ao julgamento sob o escrutínio de seus

membros. Sendo assim, por que a resposta de Hércules seria a única resposta correta

para o caso snail darter?

O que defenderemos mais à frente aqui, é que a tese mais forte de uma única resposta

correta para os casos difíceis do Direito decorre de um erro que o próprio Dworkin,

aparentemente, reconhece em suas obras mais recentes. Mas antes, prestaremos atenção,

no próximo tópico, a uma possível contra-crítica a nossa crítica ao julgamento de

Hércules do caso snail darter.

4.4. CRÍTICA E CONTRA-CRÍTICA

Com a reconstrução teórica do Direito ambiental promovida no tópico anterior,

procuramos mostrar uma outra resposta possível ao caso snail darter, diferente da dada

por Hércules. Com isso, buscamos relativizar a tese de Dworkin de que há apenas uma

única resposta correta para os casos difíceis do Direito. Todavia, algumas considerações

podem ser feitas a favor da tese de Dworkin e contra nossa crítica. E a primeira é que,

no fundo, ao julgarmos a decisão do caso snail darter apresentada por Dworkin como a

decisão de Hércules, estamos julgando a decisão de Dworkin e não de Hércules. Isto é,

se num nível menos profundo de reconstrução teórica do Direito, àquele em que

Dworkin, os demais juizes e qualquer teórico ou pesquisador de carne e osso operam,

várias respostas se apresentam como igualmente boas para um mesmo caso, num nível

102

mais profundo dessa reconstrução, na qual apenas Hércules pode operar, apenas uma

delas será boa o suficiente.

Concordamos que quando Dworkin faz uso de Hércules não está sob efeito de uma

megalomania que o faz se sentir o próprio juiz mítico em ação. Nesse sentido, essa

crítica destaca um ponto importante, sem dúvidas. Contudo, ainda acreditamos que o

problema da tese da resposta correta reside num ponto mais dramático, a ser exposto

mais adiante. Se seu problema for realmente este que imaginamos, o que o próprio

Dworkin parece reconhecer, talvez nem mesmo juizes hercúleos sejam capazes de

encontrar respostas corretas únicas para os casos jurídicos difíceis, ao menos nos

moldes da teoria dworkiniana inicial.

Mas ainda que essa primeira crítica seja procedente, ela não é importante para nossos

propósitos. Isto porque almejamos uma interpretação da atividade jurisdicional que nos

permita articulá-la a contextos mais amplos, em sua prática ordinária. Uma tal

referência a uma única resposta correta num nível mais profundo de reconstrução

teórica do que o da reconstrução teórica realizada pelos juizes de carne e osso, pode até

possuir sua função normativa na orientação da atividade desses juizes. Mas ela não

serve a nossos propósitos, pois, mesmo que realizada num nível teórico menos

profundo, a atividade dos juizes “normais”, possui conseqüências sociais importantes,

influenciando e sendo influenciada por contextos sociais mais amplos do que o

momento preciso de suas tomadas de decisão.

Assim, essa primeira crítica a nossa reflexão sobre a resposta de Dworkin/Hércules ao

caso snail darter, mesmo que seja correta, não é importante para nossos propósitos,

apesar de sua correção mesmo poder ser questionada. Afinal, ela nos leva a discutir num

nível que parece não ser o pretendido por Dworkin, fazendo mesmo a tese da resposta

correta perder sua utilidade por essa resposta se localizar num patamar inatingível.

Uma segunda crítica, não obstante, mantém sua força mesmo sob nossos interesses

específicos. Segundo essa crítica, estamos endossando a teoria dworkiniana, e

chegando, igualmente, à única resposta correta ao caso snail darter. Nossa resposta se

103

diferenciaria da de Dworkin, todavia, por estarmos procedendo a essa reconstrução sob

um paradigma diferenciado do dele. Dessa forma, a resposta de Hércules sob o

paradigma em que Dworkin se situava quando escreveu sobre o caso snail darter, seria

a de que snail darter deveria ser sacrificado em face da represa e essa seria a resposta

correta para esse caso sob aquele paradigma. Se colocamos Hércules, contudo, para

reavaliar o caso snail darter sob nosso paradigma, ele chegaria à resposta correta, sob

esse novo paradigma, de que a represa é que deve ser sacrificada em prol do peixinho.

Quais as diferenças de paradigma possíveis entre nós e Dworkin? Sem dúvidas, aquelas

relativas ao lugar e ao tempo em que escrevemos. O que aconteceria, então, se

retirássemos Hércules dos Estados Unidos de 1986 e o trouxéssemos a julgar o caso

snail darter no Brasil de 2007? Ou, sendo menos radical, se apenas levássemos a julgar

snail darter nos Estados Unidos de 2007 ou no Brasil de 1986?

Em 2007, Hércules julgaria o caso snail darter, por exemplo, com uma Agenda 21, um

Protocolo de Quioto e um documentário de sucesso sobre aquecimento global – feito

por um ex-candidato a presidente dos Estados Unidos – pesando sobre suas costas,

fazendo com que sua decisão fosse possivelmente diferente da de 1986. Igualmente,

julgando o caso no Brasil, Hércules teria de levar em conta a importância que possui

para o país a diversidade biológica de sua fauna e flora, além da importância maior que

possui uma lei num país da tradição jurídica da civil law e não da common law, também

sendo possível que ele chegasse a resultados diferentes dos de sua interpretação

original, inserida em território dos Estados Unidos. Por fim, avaliando snail darter no

Brasil de 2007, ele poderia chegar a conclusões diferentes das apresentadas por

Dworkin ao ser obrigado a lidar com um sistema jurídico diferenciado, num país em que

a questão ambiental é parte importante na definição de sua própria identidade nacional e

sob o peso de uma Agenda 21 e de um Tratado de Quioto, dessa vez, endossado pelo

país em que atua.

O juiz Hércules da segunda crítica, engajado na história e nos valores da comunidade

em que está inserido é, sem dúvida, muito mais próximo do Hércules descrito por

Dworkin do que o ente transcendental da primeira crítica. E suas conclusões são muito

104

mais plausíveis. Nesse caso, a mudança da resposta correta ao caso snail darter não

depõe contra a teoria do Direito de Dworkin. Pelo contrário, serve para corroborá-la no

exato ponto em que a resposta correta a ser encontrada por Hércules é derivada do

contexto em que o juiz se insere, sendo diferente de acordo com cada contexto histórico

e geográfico possível e seu respectivo paradigma jurídico. Logo, a tese da resposta

correta de Dworkin mantém-se de pé, mesmo sob nossa crítica ao julgamento de

Hércules no caso snail darter.

Isso é verdade se consideramos que as variações do paradigma jurídico só estão

relacionadas a variações históricas ou geográficas. Contudo, Dworkin reconhece que

esse paradigma também pode variar dentro do mesmo local ou época. Mas está seguro

de que o respeito à integridade junto à complexidade dos sistemas jurídicos

contemporâneos amarra suficientemente o sistema jurídico a ponto de torná-lo uma teia

inconsútil, em que sempre haverá uma única resposta correta para os casos jurídicos

difíceis.

O que defenderemos no tópico seguinte é que apenas isso não assegura respostas

corretas únicas como o proposto por Dworkin. Ao que tudo indica, inclusive, o próprio

Dworkin reconhece esse problema e, por mais que não abandone a tese da única

resposta correta para os casos difíceis, essa tese que continua a carregar é a tese da

resposta correta em seu sentido mais fraco.

Ou seja, se Dworkin não abandona a tese da existência sempre de uma única resposta

correta, essa tese não diz mais respeito a uma única resposta correta que decorreria do

endosso à tese da “quase impossibilidade de um empate entre duas pretensões jurídicas

num sistema jurídico complexo”. Essa última tese é que parece ter sido abandonada –

apesar de Dworkin não declarar isso explicitamente – e é a tese que será alvejada por

nossa crítica no tópico seguinte.

105

4.5. METÁFORAS PARA UM SISTEMA JURÍDICO COMPLEXO

Dworkin alega que em sistemas jurídicos complexos como o dos Estados Unidos e da

Inglaterra, seria incrivelmente raro um “empate” entre duas pretensões jurídicas rivais.

Isto é, este sistema jurídico complexo, quando interpretado como um todo íntegro,

apresentaria apenas uma única resposta correta para uma questão jurídica controversa,

por mais difícil que ela seja. Mas isso é uma conseqüência necessária da

complexificação de um sistema jurídico?

Digamos que um dado sistema jurídico seja composto por apenas uma regra: é proibido

matar outrem. Nesse sistema, parece claro que sempre que uma pessoa matar outra,

haverá um crime e, em não havendo nenhuma morte, tampouco um crime terá sido

cometido. Parece fácil se chegar, nesse caso, sempre a uma única resposta correta:

aquela que considera criminoso aquele que matou alguém ou aquela que não considera

criminoso aquele que não matou.

Contudo, se complexificarmos esse sistema, interpretando-o nos moldes de Dworkin e

chegando à conclusão que uma regra desse tipo só se justifica pela defesa da vida e que,

logo, quando se mata alguém na defesa da própria vida, não pode estar havendo crime

algum, uma única resposta correta aos seus casos jurídicos se torna mais complicada.

Quando essa autodefesa é legítima? Quando ela constitui um abuso? Enfim, em que

sentido podemos dizer que a complexificação do sistema jurídico contribuiu para que

houvesse apenas uma única resposta correta para suas questões?

Saindo do campo das hipóteses abstratas, e trazendo à baila um caso concreto. O Direito

brasileiro prevê no décimo sexto artigo de seu código penal, a figura do arrependimento

posterior. De acordo com essa figura jurídica, o criminoso que devolve em tempo hábil

a coisa subtraída da vítima, num crime de furto, tem direito a uma redução de um a dois

terços de sua pena. Até aí parece claro a resposta correta de qualquer caso jurídico que

seja interpretado como caso de arrependimento posterior: a pena do criminoso

arrependido deve ser diminuída de 33 a 66%.

106

Acontece que o mesmo sistema jurídico que contém essa regra, o sistema jurídico

brasileiro, possui numerosas outras, podendo ser considerado também um sistema

jurídico complexo, tal qual o norte-americano e o inglês. Em outro ponto de sua malha

normativa, o Direito brasileiro apresenta também um princípio constitucional explícito

de isonomia que exige o igual tratamento dos cidadãos submetidos às suas leis. E em

outro ponto ainda, de acordo com o art. 9° da Lei 10.684/2003, estabelece que, nos

crimes de sonegação fiscal, o criminoso que paga os tributos que deve, terá sua pena,

não diminuída, mas sim extinta. 26 Nesse caso, a melhor interpretação do sistema

jurídico como um todo íntegro exigiria que os dois tipos de criminosos fossem tratados

da mesma forma? Se sim, qual seria essa forma? Se não, porque não? Em que medida

quem deixa de pagar um tributo e quem furta uma carteira praticam um mesmo tipo de

crime, cuja isonomia exigiria a igualdade de tratamento? E, em que medida, eles

praticam crimes diferenciados, já que ambos se apropriam de patrimônio alheio? Por

que motivo a complexidade do sistema jurídico brasileiro, nesse caso, contribuiu para

prover tal sistema de uma única resposta correta para suas disputas?

Não estamos defendendo aqui que qualquer acréscimo que sofra um sistema jurídico

contribui para a diminuição do grau de certeza de suas normas. Inserir novas regras ou

princípios num dado ordenamento não é um exercício esquizofrênico em que se tenta

fechar buracos abrindo outros. Novas regras e princípios podem clarear vários dos

aspectos de um determinado sistema jurídico. Mas isso não necessariamente.

Para compreender a questão, façamos uso de duas metáforas. Imaginemos,

primeiramente, um sistema jurídico como uma construção sólida, um muro formado por

diversos tijolos. Constatar uma instabilidade nessa estrutura tem como única saída o

acréscimo de mais tijolos em seus pontos de fragilidade. Esses pontos são facilmente

identificáveis como falhas, buracos em que um novo tijolo se encaixaria

adequadamente, fazendo a construção firme novamente.

26

AGUIAR, Alexandre Magno. O “direito penal dos ricos” e o “direito penal dos pobres”. Instituto

Millenium, 20 de setembro de 2007. Seção Artigos. Disponível em: <http://www.institutomillenium.org/index3.php?on=artigo&in=assunto&artigo_id=676>. Acessado em 20 de novembro de 2007.

107

Uma metáfora desse tipo seria muito mais adequada a um direito como mera questão de

fato, como proposto pelas teses positivistas, do que a um direito interpretativo como o

direito como integridade de Dworkin. Nessa metáfora, os tijolos, ou as regras jurídicas,

possuem seu devido lugar e são ligados entre si de forma artificial, forçada, que não

decorre de sua própria substância, mas da “fôrma” adequada em que são esculpidos.

Um sistema jurídico pensado dessa forma, por mais que não possa apresentar qualquer

tipo de resposta a determinados casos, para os quais ainda faltam tijolos, ainda é capaz

de oferecer muitas respostas corretas e cada vez mais repostas desse tipo, quanto mais

tijolos forem acrescentados ao todo. Mas um ordenamento jurídico pensado nos moldes

do Direito como integridade de Dworkin, precisaria fazer uso de um outro tipo de

metáfora para se manter fiel às idéias de seu autor.

Suponhamos, portanto, agora, que o ordenamento jurídico não é mais uma construção

sólida, mas líquida. E que essa construção, além de líquida, é colorida, pois o direito não

é homogêneo e podemos identificar qual de suas partes melhor se adequa a determinado

caso concreto. Digamos que uma parte desse direito é um pouco obscura, de forma que

não sabemos se se trata de uma parte “azul” ou “verde”. Agora digamos que uma nova

lei ou interpretação faça cair sobre essa parte do Direito, um pouco de “amarelo”,

deixando bem claro se tratar de uma parte verde. Nada impede, contudo, que esse

amarelo que tornou mais claro o que era verde, tenha escorrido e tornado uma parte

adjacente desse direito, que antes era nitidamente vermelha, algo que, enquanto para

alguns ainda é vermelha, para outros passou a ser laranja.

A segunda metáfora parece bem mais afeita ao Direito como integridade de Dworkin,

que é interpretativo, e toma o ordenamento jurídico como uma teia inconsútil, sem

lacunas. Mas, igualmente, é muito menos voltada a uma única resposta correta para os

chamados casos difíceis. Se essa metáfora é mais representativa do Direito como

integridade, ao assumirmos essa teoria jurídica, não podemos assumir que a

complexificação de um ordenamento jurídico tem como conseqüência necessária uma

menor possibilidade de empate entre duas pretensões jurídicas rivais.

108

Na verdade, uma única resposta correta para qualquer questão controversa num

ordenamento jurídico, se não pode ser fruto de um sistema jurídico monolítico – e os

sistemas jurídicos que estamos estudando são, pelo contrário, complexos – só pode

advir de uma teoria política monolítica a dar sempre ao corpo do direito um único todo

possível, isto é, se a interpretação construtiva desse todo tivesse sempre o mesmo ponto

de partida e de chegada, o que, por sua vez, só seria possível numa situação de

uniformidade política e moral da comunidade que o interpreta. Se o tipo de sistema

jurídico dos Estados Unidos e da Inglaterra não é capaz de prover, por si só, repostas

corretas únicas para as suas disputas judiciais, o que poderia fazê-lo seria, somente, o

tipo de comunidade em que tais sistemas jurídicos estão inseridos.

É nesse ponto que autores como Habermas criticam Dworkin alegando que o necessário

pano de fundo para o correto desenvolvimento de sua teoria jurídica é, necessariamente,

a sociedade estadunidense. Segundo Habermas:

A interpretação construtiva pode resultar em sucesso apenas na medida em que um momento de “razão existente”, mesmo fragmentária, tiver sido depositado na história da qual a ordem jurídica concreta emergiu. Como um americano, Dworkin tem mais de dois séculos de desenvolvimento constitucional contínuo às suas costas; como um liberal, ele favorece uma avaliação um tanto quanto otimista, que encontra na maior parte do desenvolvimento do Direito americano, processos de aprendizagem (HABERMAS, 1999, p.214-5).

E a tese da influência da realidade histórica norte-americana na teoria de Dworkin, em

especial no que tange ao conceito de comunidade de princípios, tem mais um indício

numa citação do próprio Dworkin que, em certo ponto, afirma que na integridade, a

obrigação política deixa de ser apenas uma questão de obedecer a cada uma das

decisões políticas da comunidade. Nesse contexto, a obrigação política tornar-se-ia

“uma idéia mais impregnada da noção protestante de fidelidade a um sistema de

princípios que cada cidadão tem a responsabilidade de identificar, em última instância

para si mesmo, como sistema da comunidade à qual pertence”(DWORKIN, 2003,

p.231, grifo nosso).

O próprio Habermas reconhece, todavia, que qualquer um que não compartilhe com

Dworkin essa confiança nas tradições de sua comunidade, ou que esteja em outros

109

contextos políticos e histórico-jurídicos diferentes, nem por isso, precisa renunciar ao

ideal regulativo encarnado em Hércules, enquanto houver no direito existente alguma

base histórica de reconstrução racional (HABERMAS, 1999, p.215). Isso porque ainda

existe, na teoria de Dworkin, a possibilidade realizar essa reconstrução interpretativa

numa comunidade menos monolítica em suas concepções políticas e morais. Só que,

nesse caso, as convicções morais e políticas dos juizes desempenharão um papel mais

central em seus julgamentos.

E Dworkin não precisa ir além da própria comunidade estadunidense para rever suas

posições acerca da possibilidade de uma única resposta correta para os casos jurídicos

complexos. A comunidade dos Estado Unidos não é monolítica em termos políticos, ao

se deparar com questões sensíveis como a proteção ao meio ambiente. Tanto que

Dworkin e os juizes da Suprema Corte divergiram a respeito de proteger ou não o snail

darter. E, numa disputa eleitoral acirradíssima, esse país elegeu – em eleição, que,

inclusive, atravessou o poder judiciário – um presidente que se recusou a assinar o

Tratado de Quioto para a diminuição da emissão de gases poluentes na atmosfera,

deixando de fora do poder um candidato que, derrotado nessa disputa, despontara

posteriormente como um ativista contra o aquecimento global.

Precisamos, portanto, agora, conhecer um outro Dworkin. Um Dworkin que parece

muito pouco ligado à tese da “impossibilidade de empate”, apesar de manifestamente a

favor da tese da resposta correta. Um Dworkin em que as convicções pessoais dos juizes

passam a desempenhar um papel fundamental em seus julgamentos. Um Dworkin, sem

dúvidas, mais útil a nossos interesses de pesquisa e que precisa ser mais bem conhecido

agora.

4.6. UM OUTRO DWORKIN

Na terceira nota do primeiro capítulo de Justice in Robes, livro de 2006, Dworkin diz

com todas as letras que, ao contrário do que sugerem alguns de seus críticos, ele não

mudou de idéia a respeito do caráter e da importância da tese de sempre haver uma

resposta correta nos casos jurídicos difíceis (DWORKIN, 2006b, p.266). Cita, inclusive,

110

suas obras anteriores, dando a entender que a forma como a questão fora ali abordada

continua válida como representativa de seu pensamento, mesmo vinte anos após a

primeira publicação de O império do Direito.

Contudo, durante esses vinte anos, em seus escritos mais recentes, 27 Dworkin não fez

mais referências à tese da quase impossibilidade de empate entre duas pretensões

jurídicas antagônicas num sistema complexo de direitos. Pelo contrário, tem chamado

cada vez mais atenção para como juizes diferentes chegarão a respostas diferentes para

um mesmo caso jurídico. Logo, a tese da resposta correta que parece perdurar na teoria

dworkiniana é a versão mais fraca dessa tese.

Essa suposta mudança na argumentação de Dworkin será aqui defendida como

verdadeira com base em pronunciamentos do próprio autor. Em especial, tal mudança é

marcante quando Dworkin resolve aplicar sua própria metodologia à interpretação da

Constituição norte-americana, sendo sua obra O direito da liberdade: a leitura moral da

Constituição norte-americana, nossa principal fonte no momento.

Nossa tese é que não apenas diferenças geográficas e históricas, mas também de

convicções morais e políticas de grupos diferentes de juizes transformam a reconstrução

de um ordenamento jurídico numa ou noutra direção. E o que procuraremos demonstrar

aqui é que o próprio Dworkin reconhece essa dimensão da atividade jurisdicional,

especialmente importante para nossos objetivos de pesquisa. Nosso ponto de partida,

para tanto, é uma antecipação de Dworkin a algumas possíveis críticas.

27 Apesar de fazermos aqui, referência a algumas obras de Dworkin em sua versão traduzida para o português, e isso implicar em diferenças entre as datas utilizadas e as datas originais das publicações, a cronologia correta dessas obras é: Levando os direitos a sério (Taking rights seriously): 1977 (sendo a edição que inclui a resposta aos críticos de 1978); Uma questão de princípio (A matter of principle): 1985; O império do Direito (Law’s empire): 1986; O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana (Freedom’s Law): 1996; A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade (Sovereign

virtue: the theory and practice of equality): 2000; e Justice in robes (ainda sem tradução para o português): 2006

111

Ciente de que, quando em suas mãos, Hércules pode ser acusado de ser uma ferramenta

na busca não só de respostas corretas, mas de respostas corretas e liberais, 28 Dworkin

assim se manifesta:

Afirma-se que os resultados que derivo da leitura moral nos casos constitucionais particulares coincidem magicamente com minhas preferências políticas pessoais. Como disse um comentador, meus argumentos sempre parecem ter um final feliz. Ou pelo menos um final liberal – meus argumentos tendem a ratificar as decisões da Suprema Corte que são geralmente consideradas decisões liberais e a rejeitar como errôneas aquelas que são geralmente vistas como conservadoras. Isso pode parecer suspeito, pois costumo insistir na idéia de que direito e moral são duas coisas diferentes e que a integridade jurídica muitas vezes impede um jurista de encontrar o direito onde ele gostaria de encontrá-lo. Nesse caso, por que a Constituição norte-americana, segundo meu suposto entendimento, é um triunfo tão uniforme do pensamento liberal contemporâneo? (DWORKIN, 2006a, p. 55)

Mais à frente, ele afirma que é claro que suas opiniões constitucionais são influenciadas

por suas convicções políticas e que o mesmo acontece com as opiniões de juristas mais

conservadores e mais radicais que ele (ibidem, p. 56). E assim prossegue em sua

argumentação (ibidem, p.57) dizendo que:

Não só admito como afirmo categoricamente que as opiniões constitucionais são sensíveis às convicções políticas. Se não fossem, como eu já disse, não poderíamos classificar os juristas como conservadores, moderados, liberais ou radicais, nem mesmo aproximadamente como fazemos hoje. O que queremos saber, antes, é se essa influência é indevida. A política constitucional tem sido atrapalhada e corrompida pela idéia falsa de que os juízes (se não fossem tão sedentos de poder) poderiam usar estratégias de interpretação constitucional politicamente neutras. Os juizes que fazem eco dessa idéia falsa procuram ocultar até de si próprios a inevitável influência de suas próprias convicções, e o que resulta daí é uma suntuosa mendacidade. Os motivos reais das decisões ficam ocultos tanto de uma legítima inspeção pública quanto de um utilíssimo debate público. Já a leitura moral [que Dworkin sugere como conseqüência da aplicação de sua metodologia interpretativa de aplicação do direito, quando estão em jogo princípios morais abstratos, como a liberdade e a igualdade] prega coisa diferente. Ela explica por que a fidelidade à Constituição e ao direito exige que os juizes façam juízos atuais de moralidade política e encoraja assim a franca demonstração das verdadeiras bases desse juízos, na esperança de que os juizes elaborem argumentos mais sinceros, fundamentados em princípios, que permitam ao público participar da discussão.

28 Conforme salienta Sandra Martinho Rodrigues (2005, p.120 e 147), fazendo referência à crítica de Warrington e Douzinas a Dworkin, “Hércules é, de fato, a personificação daquilo que Dworkin acredita, isto porque a sua forma de ‘decidir’ os casos espelha a particular concepção que Dworkin tem do liberalismo” (desenvolvida em A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade).

112

E Dworkin conclui seu raciocínio com os seguintes dizeres:

Por isso, é claro que a leitura moral encoraja juristas e juizes a interpretar uma constituição abstrata à luz de sua concepção de justiça. De que outro modo poderiam responder às perguntas morais que essa constituição abstrata lhes dirige? Se uma teoria constitucional reflete determinada postura moral, isso não é motivo nem de surpresa, nem de ridículo, nem de suspeita. Seria uma surpresa – e seria ridículo – se não refletisse (DWORKIN, 2006a p. 57).

Dworkin não deixa de ressaltar que o texto e a integridade impõem restrições

importantes à interpretação jurídica, que ele tem sublinhado ao longo de sua obra.

Contudo, admite que, embora essas restrições conformem e limitem os efeitos das

convicções particulares de justiça, elas não podem simplesmente eliminar esse efeito. O

que a leitura moral faz questão de afirmar é que essa influência “não é maléfica na

medida em que é abertamente reconhecida e em que as mesmas convicções são

identificadas e defendidas honestamente, através de argumentos baseados em

princípios” (ibidem, p.58).

Apesar de chamar ainda mais atenção para a importância fundamental que possuem as

convicções particulares dos juizes em seus julgamentos, a argumentação acima não

contradiz a teoria de Dworkin até aqui apresentada. Ela apenas ressalta um de seus

traços mais característicos, que é negar a neutralidade na interpretação jurídica, trazendo

à superfície a relação necessária do Direito com a política em um sentido mais amplo.

Mas ela ainda não nega a tese da existência de uma única resposta correta para os casos

jurídicos, já que as convicções particulares dos juizes podem estar simplesmente em

desacordo com a história institucional do direito americano. Afinal, Dworkin abraça o

liberalismo, porque crê, e busca demonstrar isso em seus escritos, que a opinião liberal é

a que melhor se enquadra na estrutura constitucional estadunidense que, no final das

contas, foi elaborada na era dourada do pensamento liberal (ibidem, p.58), justificando

as decisões corretas e liberais a que chega Hércules ao estudar casos constitucionais nos

Estados Unidos.

113

Mais uma vez, vem à tona a crítica de que a teoria de Dworkin é dependente de ter

como pano de fundo a sociedade norte-americana. Como manter a aplicabilidade da

teoria de Dworkin em uma realidade como, por exemplo, a brasileira? Conforme

salienta Werneck Vianna, 29 o liberalismo político não é uma teoria estranha à história

do pensamento político brasileiro, como bem demonstram os escritos de Tavares

Bastos. 30 Contudo, nunca gozou aqui de uma preponderância absoluta enquanto teoria

política responsável por guiar a realidade nacional, a não ser, talvez, muito

recentemente. Em disputa com esse pensamento liberal, sobressaindo-se a ele muitas

vezes, uma herança ibérica guiava o pensamento político de autores que negavam a

validade das premissas liberais em território brasileiro, ao menos no momento histórico

em que escreviam, como é o caso de Oliveira Viana. 31 Como, mesmo num caso como

esse do Brasil, a teoria interpretativa do Direito de Dworkin poderia culminar em uma

única reconstrução correta possível da história institucional do sistema de direitos do

país?

Dworkin reconhece que qualquer nação democrática contemporânea é uma nação

dividida e que a democracia norte-americana é particularmente fragmentada. Somos

divididos por questões culturais, étnicas, políticas e morais. Não obstante, aspiramos

viver juntos como iguais e parece absolutamente crucial para esse fim que nós também

aspiremos que os princípios que nos governam nos tratem como iguais (DWORKIN,

2006b, p. 73).

Logo, a virtude política da integridade, a guiar a interpretação do Direito na teoria de

Dworkin, tem de poder conviver com a fragmentação moral e política, não podendo

depender de uma realidade social monolítica. Se a realidade social dos Estados Unidos

não é tão fragmentada cultural, étnica, política e moralmente quanto outras, nem por

isso podemos deixar de acompanhar sua descrição por Dworkin. Devemos aceitar que

ela é suficientemente fragmentada sob tais aspectos, e questionar até que ponto a 29

VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. 2 ed. Janeiro: Revan, 2004. 242 p. 30 BASTOS, Aureliano Candido Tavares. A província: estudo sobre a descentralização no Brasil. 2.ed. São Paulo: Nacional, 1937. 383 p 31

VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história - organização - psicologia. 5.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1952. 2v.

114

integridade é capaz de produzir, numa situação dessas, uma reconstrução correta única

do sistema político e jurídico dessa sociedade. O próprio Dworkin responde a esse

questionamento, quando afirma, ao referir-se à Constituição norte-americana que:

Nossa Constituição é uma lei e, como toda lei, está ancorada na história, na prática e na integridade. A maioria dos processos judiciais – até mesmo a maioria dos processos constitucionais – não é difícil. A arte comum do juiz lhe dita a resposta e não deixa espaço algum para os caprichos das convicções morais pessoais. Mesmo assim, não devemos exagerar o peso dessa âncora. Entendimentos muito diferentes, ou mesmo contrários, de

um único princípio constitucional – de o que significa tratar homens e mulheres como iguais, por exemplo – podem se harmonizar com a

linguagem, os precedentes e a história, e ambos podem atender a esse

critério; os juizes sensatos devem então decidir por si mesmos qual das

concepções mais honra seu país (DWORKIN, 2006a, p.17, grifo nosso).

Assim, mesmo fazendo uso da técnica interpretativa que propõe, na qual “os juizes

devem buscar identificar os princípios latentes na Constituição como um todo e nas

decisões judiciais passadas que aplicaram a linguagem abstrata da Constituição, a fim

de reafirmar os mesmo princípios em outras áreas e assim tornar o direito cada vez mais

coerente” (ibidem, p. 84) Dworkin se vê obrigado a reconhecer que:

É claro que juizes diferentes vão chegar a conclusões muito diferentes acerca de quais são os princípios que proporcionam a melhor interpretação da Constituição, e, como simplesmente não existe um ponto de vista neutro a partir do qual se possa provar qual é o lado que tem razão, cada juiz deve, no fim, apoiar-se em suas próprias convicções a respeito de qual é o melhor argumento. Mas essa é uma característica inevitável de um sistema político como o nosso, que concebe a sua Constituição como uma carta de princípios e não como uma coletânea de afirmações políticas distintas e particulares (ibidem, p.85).

Dessa forma, ao caracterizar a atividade dos juizes da Suprema Corte sob o paradigma

do Direito como Integridade, não resta escolha a Dworkin senão dizer que:

Como todos os demais juizes, os juizes que estão na Suprema Corte sempre têm de curvar-se perante a integridade do direito, o que significa que, por mais que sejam pessoalmente comprometidos com certos princípios morais, não podem fazer uso de princípios que não possam ser apresentados como coerentes com a história geral das decisões passadas da Suprema Corte e a estrutura geral da prática política norte-americana. Porém, não é incomum que princípios políticos radicalmente diferentes,

dos quais se deduzem, numa determinada causa, resultados também muito

deferentes, possam ser apresentados como coerentes com as decisões do

passado; nesse caso, os juizes não têm escolha: têm de simplesmente

115

decidir por si mesmos o que preferem, baseando-se em sua moralidade

política geral (DWORKIN, 2006a, p.510, grifo nosso).

É por isso que, nesse momento, um Dworkin contrário, em principio, a um ativismo

judicial, destaca que “se os acadêmicos insistem num papel mais ativo para os juizes,

não é porque querem subverter a Constituição, mas porque crêem que esse papel mais

ativo é essencial para se preservar a Constituição e fazer valer a forma norte-americana

de governo” (ibidem, p.463).

Ao que tudo indica, portanto, a tese de uma única resposta correta que continua a

acompanhar Dworkin, não inclui a tese da quase impossibilidade de empate entre duas

pretensões jurídicas num mesmo ordenamento, haja vista que a metodologia

interpretativa de Dworkin não impede a existência de duas ou mais reconstruções desse

ordenamento que sejam igualmente boas.

Tanto a dimensão do encaixe, quanto a da melhor luz, na forma de interpretação do

direito proposta por Dworkin, continuam dependentes dos juízos políticos particulares

dos juristas. A virtude da integridade não garante uma única resposta correta nos casos

difíceis porque se tomarmos o sistema jurídico como um conjunto interpretativo e não

um amontoado de regras acumuladas, estaremos mais próximos da segunda metáfora

que apresentamos no tópico anterior – a metáfora líquida – e não da primeira – a

metáfora sólida – de forma que a complexificação de um sistema jurídico não

necessariamente reduz as chances de duas pretensões jurídicas antagônicas obterem

fundamentações jurídicas igualmente boas.

Logo, se Dworkin mantém sua fé na tese de uma resposta correta para todos os casos

jurídicos, essa tese faz referência, unicamente, a sua inegável dimensão subjetiva, à

completude de um sistema jurídico complexo que o permite abranger qualquer situação

real e à correção enquanto resultado de um procedimento igualmente correto.

Assim, continua plausível, na teoria de Dworkin, que aceitamos como correta a resposta

que defendemos em casos jurídicos controversos e é difícil negar que essa dimensão

116

subjetiva da tese seja válida sem cair numa contradição performática, já que sua

negação ou clamaria igualmente por correção, ou não significaria absolutamente nada.

Também continua possível afirmar que, para Dworkin, o Direito é uma teia inconsútil e,

ao incluir, além de regras, também princípios, ele ganha uma abrangência que, nos

sistemas jurídicos complexos, não deixa qualquer caso real não ser abrangido por essa

teia, possuindo tal caso, conseqüentemente, uma resposta juridicamente válida, mesmo

que se discorde a respeito de qual resposta seja essa.

Por fim, o jurista que opera sob uma teoria interpretativa como a proposta por Dworkin,

ao seguir corretamente seus procedimentos, torna correto também o resultado desses

procedimentos, isto é, a resposta à questão jurídica, mesmo que esses procedimentos,

garantidores de correção, não sejam garantidores de uniformidade e homogeneidade.

Os sistemas jurídicos complexos, operando com princípios morais abstratos, nas

palavras de Dworkin, expressam exigências morais abstratas que só podem ser aplicadas

aos casos concretos através de juízos morais específicos (DWORKIN, 2006a, p.4).

Utilizando uma linguagem desenvolvida por Ernesto Laclau, 32 podemos dizer que,

fazendo usos desses princípios, os sistemas jurídicos contemporâneos, trazem para

dentro do Direito aquilo mesmo que permite a política: significantes de vacuidade

tendencial, que só passam a ter efetividade quando preenchidos por uma significação

concreta específica, a ser definida de acordo com interesses políticos também

específicos.

São exemplos desses significantes, hora vazios, hora flutuantes, termos como igualdade,

liberdade, ordem e democracia. Na verdade, podem se encaixar nessa categoria de

significantes qualquer dos conceitos retratados por Dworkin como interpretativos,

incluindo o próprio Direito. E a política se caracteriza como uma atividade que tem

como principal escopo constituir discursos capazes de preencher com algum significado

tais significantes que, por vezes, se descolam de qualquer significação.

32 LACLAU, Ernesto. Emancipation(s). Londres: Verso, 1996. 127 p.

117

Dessa maneira, o último Dworkin que encontramos é um Dworkin que liga ainda mais

intrinsecamente o Direito que interpreta a teorias políticas e morais. É um Dworkin

extremamente atento à substância do argumento jurídico e não à sua forma, e

extremamente atento a como essa substância possui conseqüências políticas e morais

específicas. Também é um Dworkin que leva em consideração a maneira pela qual as

dimensões sociais da política e da moralidade são igualmente fontes de primeira

grandeza da atividade judicial.

Enfim, é um Dworkin extremamente útil aos nossos propósitos, pois sua descrição da

atividade judicial a destaca como uma atividade sui generis, mas que guarda relações

importantíssimas com dimensões que a ultrapassam, como a política e a moral. Logo, é

um teórico capaz de nos munir de uma interpretação da atividade jurisdicional ao

mesmo tempo adequada às transformações contemporâneas do Direito e útil a uma

sociologia da jurisdição que tenha como objetivo, justamente, relacionar a atividade

jurisdicional a outras dimensões sociais que a ultrapassam, como a moral e a política.

4.7. DWORKIN, A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E UMA SOCIOLOGIA DA

JURISDIÇÃO

A contextualização da prática judiciária contemporânea nos leva, necessariamente, a um

Direito marcado pela assunção cada vez maior dos agentes do poder judiciário enquanto

criadores de direitos. Nesse contexto, com as fronteiras entre judiciário, legislativo e

executivo fragilizadas, qualquer interpretação do Direito deve dar conta da relação entre

Direito e Política, sem confundi-los nem isolá-los.

Preocupado com esse ponto, Dworkin interpreta a prática judicial como atividade

hermenêutica e, conseqüentemente, criativa, mas cuja criatividade se encontra limitada

por uma necessária referência a decisões políticas anteriores (leis e precedentes

judiciais). Contudo, essa referência não redunda em sua repetição ou mera aplicação

literal e, tampouco, apóia-se num sistema composto unicamente por decisões que

prescrevem regras. Trata-se de uma referência que busca um sentido de

aperfeiçoamento em princípios que subjazem a essas regras e retratam os anseios de

118

justiça mais profundos da comunidade, que pode assim, ser considerada uma

comunidade de princípios. Ou seja: as decisões políticas anteriores, a que a atividade

judicial faz referência, são regras e princípios que não devem ser simplesmente

repetidos nas decisões futuras, mas reinterpretados da melhor forma possível, isto é, da

forma em que esses princípios atinjam sua maior efetividade.

Tomar o Direito nesses termos obriga Dworkin a abandonar as concepções positivistas e

pragmatistas e interpretar a prática judicial através do paradigma da Integridade. E,

interpretada dessa forma, ela passa a ser uma empreitada coletiva de seus operadores,

buscando o aperfeiçoamento da comunidade de princípios, tendo como parâmetro o

desenvolvimento desses princípios, na direção de sua mais plena realização. Disso

deriva a tese dworkiniana da quase impossibilidade de um embate entre direitos

concorrentes resultar num caso sem uma resposta correta: a totalidade das regras e

princípios contidos nas decisões políticas anteriores fará o direito pesar para algum lado

como sendo o melhor dos caminhos para a realização plena da comunidade de

princípios.

Se, por um lado, conforme salienta Ricoeur, “Dworkin foi, sem dúvida, longe demais ao

afirmar que há sempre uma resposta justa para os casos difíceis” (RICOEUR, 1995,

p.160), por outro, como destaca o mesmo filósofo, há grandes méritos em sua

concepção, pois:

Deve-se ao modelo do texto uma concepção de lei liberta do que denomina o seu pedigree. Deve-se ao modelo da narração, apesar duma certa ingenuidade face ao desenvolvimento contemporâneo das teorias relativas à narratividade, o tomar em consideração da “prática legal” no seu desenvolvimento histórico, tendo sido erigida a “história legal” em quadro interpretativo. Enfim, deve-se à distinção entre princípios e regras uma concepção geral do direito inseparável “duma teoria política substantiva” (ibidem, p.150).

O próprio Dworkin parece reconhecer, ao longo de sua obra, o exagero de uma

concepção mais forte de única resposta correta para os casos difíceis. Uma concepção

menos forte de resposta correta torna sua interpretação do Direito mais aberta à política

e à moralidade pessoal dos juizes, mas parece mais plausível e coerente com a forma

com que ele encara os sistemas jurídicos contemporâneos.

119

Sendo assim, a concepção do Direito de Dworkin, o Direito como Integridade, faz com

que na atividade judicial não valha de tudo, mas ainda assim, valha muita coisa. Isso nos

livra tanto da falta de parâmetros do pragmatismo, que torna a atividade judiciária

destituída de limites que possam lhe garantir especificidade, assim como da rigidez do

positivismo, que considera parte fundamental da atividade judicial como algo não-

jurídico.

Dessa forma, Dworkin nos fornece uma interpretação do Direito proveitosa a qualquer

um interessado em seu estudo. A Sociologia, por exemplo, pode tirar proveito da

ligação que Dworkin estabelece entre a atividade judicial e teorias políticas mais

amplas, ou entre a atividade judicial e a moralidade comunitária. Fazendo uso de

técnicas de pesquisa como a análise de discurso aplicada a sentenças judiciais, ou

entrevistas com alguns juizes, ou mesmo técnicas quantitativas aplicadas sobre partes

mais amplas da jurisprudência, ela pode, por exemplo, estabelecer ligações entre a

atividade dos juízes e determinadas correntes de pensamento partidário ou religioso,

tanto na via de influência dessas correntes sobre a atividade dos juizes, quanto na via

contrária, na influência que as decisões judiciais possuem sobre a constituição do

discurso dessas correntes mesmas. Por conta disso, reiteramos aqui nossa aposta na

interpretação do Direito feita por Dworkin como um excelente ponto de parida para

qualquer sociologia da jurisdição, sendo esse o eixo a estruturar a conclusão de nosso

estudo, tal qual será exposta no capítulo seguinte.

120

CONCLUSÃO: O DIREITO COMO INTEGRIDADE COMO PONTO DE

PARTIDA ADEQUADO A UMA SOCIOLOGIA DA JURISDIÇÃO

Em geral, quando os juristas discordam sobre o Direito, sua discordância não é empírica

ou semântica, mas teórica. Não fazem confusão sobre o termo Direito, nem fraquejam

em sua argumentação por falta de conhecimento do sistema jurídico em que operam.

Discordam, num nível mais profundo, sobre quais são os fundamentos do Direito e,

conseqüentemente, quais as normas que esses fundamentos incluem enquanto partes do

sistema normativo jurídico da comunidade. Logo, o Direito não poder ser explicado por

teorias semânticas como as teorias jurídicas positivistas.

Partindo desse ponto, Dworkin busca uma concepção mais atraente do Direito, que o

considere um conceito interpretativo e que, conseqüentemente, torne a prática de seus

operadores uma prática igualmente interpretativa. Por conta disso, Dworkin aproxima a

interpretação jurídica da interpretação de uma obra de arte, já que tanto uma, quanto a

outra, constituem-se em interpretações criativas, ou seja, interpretações de uma prática

social que se descola do criador original, encontrando significação na atividade do

intérprete. Nesse caso, estamos diante de uma interpretação construtiva, dependente das

intenções não de quem criou a prática interpretada, mas de quem interpreta tal prática

naquele momento, impondo-lhe um sentido que a torna a melhor manifestação possível

daquilo que ela se destina a ser.

Dentre possíveis concepções interpretativas do Direito, Dworkin destaca o

convencionalismo, o pragmatismo e o Direito como integridade. E, dentre essas três

concepções, defende o Direito com integridade como a melhor interpretação do que os

operadores do Direito efetivamente fazem em sua atividade profissional cotidiana.

Considerando o Direito como o que justifica o uso da força pública, Dworkin argumenta

que o Direito como integridade oferece a melhor justificativa possível para o uso do

poder coercitivo estatal e que, portanto, consiste na melhor interpretação possível do

nosso Direito. Isso porque o Direito como integridade justifica o uso da força pública

tendo como base, ao contrário do pragmatismo, as decisões políticas passadas como a

121

Constituição, as leis e a jurisprudência. Porém, ao contrário do convencionalismo, o

Direito como integridade não busca nessas decisões passadas apenas regras a serem

repetidas, mas sim um todo coerente a ser interpretado de forma a transmitir um sistema

de princípios políticos que refletem os anseios morais mais profundos da comunidade

em que tem lugar tal sistema. Afinal, unida não apenas por interesses, mas também pela

fraternidade, essa comunidade passa a ser uma comunidade de princípios, que comunga

um substrato moral que perpassa seu sistema político e jurídico e pode ser reconstruído

tendo como base as decisões desses sistemas.

A atividade dos juizes consiste assim, em chegar a decisões corretas para os casos

jurídicos a eles apresentados, por mais complexos que sejam, tendo como base essa

reconstrução principiológica, garantida pelo respeito à virtude política da integridade. E,

de acordo com tal virtude, as decisões políticas devem ser tratadas como frutos de uma

voz única, que possua igual consideração por todos os membros da comunidade.

Para respeitarem essa virtude, os juristas devem realizar suas interpretações dos direitos

que as pessoas possuem tendo como base duas dimensões: a da adequação e a da

justificação. Isto é, suas decisões devem, ao mesmo tempo, encontrar continuidade

perante as decisões do passado, assim como justificá-las, apresentando-as sob sua

melhor luz, como um todo coerente, harmônico e moralmente aceitável. A decisão que

cumprir tais requisitos interpretativos melhor que suas concorrentes, será então, a

resposta correta para o caso.

É por isso que Dworkin compara a atividade dos juizes à atividade dos escritores de um

romance em cadeia. Em parte críticos e em parte autores do Direito, eles atuam como se

escrevessem, cada um, um novo capítulo da história institucional do Direito de sua

comunidade. O que foi anteriormente decidido por outros juizes e agentes políticos, isto

é, o romance tal qual chegara em suas mãos, oferece sérias restrições à sua atividade, já

que impõe a eles o dever de se manterem coerentes ao texto original. Contudo, essa

restrição não é do mesmo tipo, por exemplo, que existiria sobre quem simplesmente

traduzisse um texto em língua estrangeira: ainda existe a liberdade de considerar partes

outras do romance como equívocos, revitalizar tramas menores outrora incidentais, ou

122

concluir que um melhor desenvolvimento da história leva seus personagens a

assumirem novas atitudes.

Para melhor ilustrar sua concepção do Direito como integridade, Dworkin traz à tona

seu famoso juiz Hércules. Dispondo de tempo e potência inimagináveis a qualquer juiz

de carne e osso, Hércules serve como uma metáfora representativa da atividade dos

juizes numa escala mais ampla, exibindo o que por vezes a tarefa de um juiz singular

real obscurece: ao decidirem seus casos os juizes interpretam construtivamente o

Direito, e, para isso, fazem uso de teorias políticas e morais que justificam os princípios

jurídicos que fazem a decisão de uma querela judicial pender para um lado ou para

outro.

Nesse ponto, Dworkin escancara a relação entre o Direito, a moral e a política. Abre a

guarda, inclusive, para a crítica que demonstra Hércules servir, nas suas mãos, como um

instrumento para a busca de respostas corretas e liberais para os casos jurídicos mais

complexos. Ao unir o Direito e a política dessa forma, Dworkin se vê obrigado a aceitar

a crítica e reexaminar o papel que as convicções políticas particulares dos juizes

desempenham em suas decisões, afinal, não há nada na integridade ou na metodologia

interpretativa de Dworkin que impeça que tais convicções ainda desempenhem papel

fundamental, como deixa claro o julgamento de Hércules do caso snail darter.

Por conta disso, ao que parece, Dworkin recua um pouco em sua tese de que sempre há

uma única resposta correta para questões jurídicas controversas em sistemas jurídicos

complexos. Essa tese passa a dizer respeito apenas à correção do processo hermenêutico

de chegada a tais respostas e à convicção subjetiva, daqueles que a ela chegaram, de que

se trata, efetivamente, da única resposta correta para o caso. Contudo, agora, perdura

possível que juizes diferentes cheguem a uma única resposta correta diferente, pois os

paradigmas de interpretação do Direito não variariam apenas alhures ou algures, mas

também de acordo com as convicções políticas particulares de cada operador do Direito.

Afinal, tais convicções desempenham papel fundamental no direcionamento de como

será feita, por tais operadores, a reconstrução do sistema jurídico como um todo

123

coerente ao qual suas decisões se encaixarão e o qual elas justificarão sob sua melhor

luz.

E aqui Dworkin mostra toda a utilidade que sua teoria jurídica pode ter para uma

sociologia da jurisdição. Indo muito além de um sistema de regras politicamente

insulado que se vê obrigado a lidar com elementos externos a contragosto – tal qual

propõe a interpretação positivista – o Direito como integridade explicita os pontos de

relação entre a atividade dos operadores do Direito e outras práticas sociais, mas não a

ponto de descaracterizá-la enquanto atividade específica – risco que correria a

interpretação pragmatista. Com isso, permite a análise de como se dá a relação, por

exemplo, entre certas decisões judiciais e determinadas teorias políticas mais amplas, ou

sistemas normativos morais relativos a grupos específicos, tornando-se um ponto de

partida interessante para qualquer pesquisa sobre a atividade de juizes, advogados,

teóricos do direito, etc.

Contudo, devemos ter em mente que, enquanto filósofo do Direito, o principal interesse

de Dworkin não é com análises desse tipo, mas sim com a legitimidade da atividade dos

juizes. Assim, devemos nos lembrar que a Integridade, tão importante à caracterização

do Direito por Dworkin, não é uma categoria analítica, mas sim uma virtude política.

Ainda resta necessária a qualquer sociologia da jurisdição uma teoria social ou política

que forneça essas categorias enquanto instrumentos de análise proveitosos para uma

atividade tal qual a descrita por Dworkin.

Anteriormente, por exemplo, citamos de passagem a categoria desenvolvida por Laclau

dos significantes de vacuidade tendencial, isto é, os significantes vazios e os

significantes flutuantes, 33 como categorias de possível utilização na análise da

jurisdição tal qual interpretada por Dworkin. Na obra do mesmo autor, também

encontramos, desenvolvidos em conjunto com sua companheira Chantal Mouffe, outras

categorias como a da hegemonia – direção intelectual e moral da sociedade, que se

caracteriza pela assunção de caráter universal por uma particularidade – e o dos pontos

nodais – momentos de estrangulamento do discurso em que seus supostos não são 33 LACLAU, Ernesto. Emancipation(s). Londres: Verso, 1996. 127 p.

124

colocados em discussão – heranças, respectivamente, de Gramsci e de Lacan, 34 que

parecem igualmente úteis à análise da atividade jurisdicional no Direito como

integridade.

Por exemplo, suponhamos que o que esteja em jogo em determinados atos de jurisdição

diga respeito a direitos de homossexuais. As leis que servem de base para essa decisão

falam explicitamente do princípio da igualdade, mas não dizem nada especificamente

sobre homossexuais, falando apenas, digamos, da impossibilidade de se diferenciar as

pessoas em termos de “raça”. O silêncio a respeito da possibilidade de diferenciar

pessoas em termos de orientações sexuais, contudo, não impede que minorias

requeiram, para suas próprias orientações sexuais, tratamento igualitário

comparativamente ao “padrão” de orientação sexual heterossexual, exigindo a

manifestação jurisdicional acerca de temas como herança e casamento

Fazendo uso de seu poder jurisdicional, frente à lacuna da lei, um grupo de juizes

estende tais direitos a uma dessas minorias, articulando em seu discurso elementos de

uma teoria sociológica como a de Axel Honneth, 35 afirmando que o mesmo processo

que fez serem reconhecidos direitos de minorias raciais, dá origem à demanda por

direitos de minorias sexuais, de forma que, se o legislador ao tempo da formulação da

lei não teve a mesma sensibilidade com cada uma dessas “lutas por reconhecimento”,

nada impede que agora, os juizes a tenham. Isto é, nos termos de Dworkin, os princípios

da comunidade que subjazem às regras explicitas do direito, de acordo com tais juizes,

requerem para sua mais plena concretização, a extensão dos direitos dos heterossexuais

aos homossexuais no que tange aos temas do casamento e da herança.

Ao mesmo tempo, outro grupo de juizes frente ao mesmo problema, articula em seu

discurso, para suprir a lacuna nos textos de lei, elementos de um discurso religioso que

impossibilita a metáfora que assemelha as demandas de minorias sexuais às demandas

de minorias raciais, pois as primeiras chancelariam o pecado, o que não seria a intenção

34 LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia. 2. ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2006. 246 p. 35 HONNETH, Axel. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Cambridge: MIT Press, 1996. xxi, 215 p.

125

do ordenamento jurídico como um todo. Ou seja, fazendo novamente referência à

metodologia interpretativa de Dworkin, enxergar o Direito sob sua melhor luz, de modo

a concretizar os princípios da comunidade, não admitiria tal metáfora.

O responsável pela delimitação do sentido de termos como a igualdade dentro desse

ordenamento, passa a ser, então, exatamente a hegemonia de um desses discursos.

E se internamente à jurisdição, como descrita por Dworkin, observamos essa luta pela

hegemonia entre discursos que articulam elementos legais e extralegais de forma a

preponderar momentaneamente sobre discursos rivais, podemos também dizer que o

próprio discurso jurisdicional é momento de discursos políticos mais amplos. Afinal,

responsável por preencher significantes da importância de princípios como a igualdade

e a liberdade, além de delimitar o que se encontra no campo da legalidade e o que se

encontra no campo de ilegalidade, as escolhas internas ao discurso jurisdicional podem

se tornar pontos nodais importantes de um discurso, por exemplo, de efetivação de uma

política pública pelo poder executivo, que deve manter sua atuação dentro da legalidade

e agir de forma justa.

Digamos que um dado governo almeje a implementação de uma política de cotas para

estudantes negros. Uma manifestação jurisdicional a respeito da constitucionalidade ou

não de um programa deste tipo, em face do principio jurídico da isonomia, seria

diretamente responsável por torná-la, igualmente, operacionalizável, ou não.

Claro que a obra de Laclau e Mouffe desenvolve conceitos complexos e se localiza

numa herança teórica muito diferente da de Dworkin. Uma articulação entre as duas

teorias, se possível, demandaria um estudo próprio sobre o tema, que ultrapassa nossas

possibilidades no presente trabalho. Logo, tal articulação, agora, só pode aparecer

enquanto sugestão de um tema para trabalhos futuros, ao qual não podemos nos dedicar

adequadamente no momento.

O que deve ficar claro agora é apenas que, numa atual configuração do Poder judiciário

em que a função política de seus membros se esconde sob brumas bem menos espessas

126

que outrora, uma interpretação da atividade jurisdicional como a de Dworkin – que

ressalta o papel de convicções políticas e morais na atividade dos juizes – aliada a uma

teoria política como, aparentemente, por exemplo, a de Laclau e Mouffe – dotada de

categorias especialmente fortes para a análise da política enquanto articulação de

antagonismos sociais dentro de uma determinada formação discursiva, como é o

romance em cadeia do Direito como integridade – pode render bons frutos em pesquisas

que buscam responder nossa questão inicial de demonstrar “para que” e “a quem” vem

servindo o aparelho do Judiciário (VIANNA et al. 1997, p. 16).

Dessa forma, nossa conclusão insiste na importância de Dworkin como teórico do

Direito que oferece à atividade jurisdicional sua melhor e mais útil interpretação, no que

tange a qualquer estudo a ser desenvolvido no âmbito das ciências sociais sobre o tema.

Mesmo que a teoria de Dworkin faça ainda necessárias ferramentas conceituais de

análise externas a ela para que ultrapasse suas próprias pretensões normativas, ela

fornece um ponto de partida interessante para uma sociologia da jurisdição. Ao aliar a

atividade dos juizes, suas convicções morais e teorias políticas mais amplas, Dworkin

nos fornece o ponto da jurisdição obscurecido pelo positivismo. Ao limitar a atividade

judicial pela virtude política da integridade, Dworkin ressalta os limites da jurisdição

esquecidos pelo pragmatismo. Por fim, com sua teoria do Direito como integridade,

Dworkin transforma a jurisdição em um discurso articulado a elementos que

ultrapassam o momento de decisão dos juizes e favorece uma análise relacional sua,

oferecendo à Sociologia um ponto de partida privilegiado frente a outras interpretações

do fenômeno jurídico, rivais da interpretação dworkiniana.

127

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