romaria dos mÁrtires da caminhada...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme...

16
Minervina e Marilene Pataxó Hã Hã Hãe, mãe e irmã de Galdino, assassinado em 1997 – Foto: Priscila D. Carvalho ISSN 0102-0625 Povo Bororo não pode viver em terra homologada Página 12 Orçamento cresce, mas verba para demarcações diminui Página 4 Ano XXVII N 0 287 Brasília-DF Agosto-2006 R$ 3,00 CELEBRAÇÃO LEMBRA AQUELES QUE MORRERAM DEFENDENDO A VIDA pág. 8 e 9 ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA CELEBRAÇÃO LEMBRA AQUELES QUE MORRERAM DEFENDENDO A VIDA ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA Ano XXVII N 0 287 Brasília-DF Agosto-2006 R$ 3,00

Upload: others

Post on 19-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

Min

ervi

na e

Mar

ilene

Pat

axó

Hã H

ã Hã

e, m

ãe e

irm

ã de

Gal

dino

, ass

assi

nado

em

199

7 –

Foto

: Pr

isci

la D

. Car

valh

o

ISSN

010

2-06

25

Povo Bororo não pode viverem terra homologada

Página 12

Orçamento cresce, mas verbapara demarcações diminui

Página 4

Ano XXVII • N0 287 • Brasília-DF • Agosto-2006R$ 3,00

CELEBRAÇÃO LEMBRA AQUELES QUE MORRERAM DEFENDENDO A VIDApág. 8 e 9

ROMARIA DOSMÁRTIRES DA CAMINHADACELEBRAÇÃO LEMBRA AQUELES QUE MORRERAM DEFENDENDO A VIDA

ROMARIA DOSMÁRTIRES DA CAMINHADA

Ano XXVII • N0 287 • Brasília-DF • Agosto-2006R$ 3,00

Page 2: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

2Agosto - 2006

FFFFFaça sua assinatura,aça sua assinatura,aça sua assinatura,aça sua assinatura,aça sua assinatura,enviando cheque ou

vale postal em nome deCIMI-PORANTIM

PREÇOSPREÇOSPREÇOSPREÇOSPREÇOS:

Ass. anual:Ass. anual:Ass. anual:Ass. anual:Ass. anual: R$ 40,00

Ass. de apoio:Ass. de apoio:Ass. de apoio:Ass. de apoio:Ass. de apoio: R$ 60,00

América latina:América latina:América latina:América latina:América latina: US$ 25,00

Outros POutros POutros POutros POutros Países:aíses:aíses:aíses:aíses: US$ 40,00

Edição fechada em 01/08/2006

PPPPPublicação do Conselho Indigenistaublicação do Conselho Indigenistaublicação do Conselho Indigenistaublicação do Conselho Indigenistaublicação do Conselho IndigenistaMissionário (Cimi), organismo vinculado àMissionário (Cimi), organismo vinculado àMissionário (Cimi), organismo vinculado àMissionário (Cimi), organismo vinculado àMissionário (Cimi), organismo vinculado àConferência Nacional dos Bispos do BrasilConferência Nacional dos Bispos do BrasilConferência Nacional dos Bispos do BrasilConferência Nacional dos Bispos do BrasilConferência Nacional dos Bispos do Brasil

(CNBB).(CNBB).(CNBB).(CNBB).(CNBB).

Na língua da nação indígenaSateré-Mawé, PORANTIM

significa remo, arma, memória.

Dom Gianfranco MasserdottiDom Gianfranco MasserdottiDom Gianfranco MasserdottiDom Gianfranco MasserdottiDom Gianfranco MasserdottiPRESIDENTE

PPPPPaulo Maldosaulo Maldosaulo Maldosaulo Maldosaulo MaldosASSESSOR POLÍTICO

Marcy PicançoMarcy PicançoMarcy PicançoMarcy PicançoMarcy PicançoEDITORA

RP 44458/SP

Editoração eletrônica:Editoração eletrônica:Editoração eletrônica:Editoração eletrônica:Editoração eletrônica:Licurgo S. Botelho

(61) 3349-5274

Revisão:Revisão:Revisão:Revisão:Revisão:Leda Bosi

Impressão:Impressão:Impressão:Impressão:Impressão:Gráfica Teixeira(61) 3336-4040

Administração:Administração:Administração:Administração:Administração:Dadir de Jesus Costa

Redação e Administração:Redação e Administração:Redação e Administração:Redação e Administração:Redação e Administração:SDS - Ed. Venâncio III, sala 310

Caixa Postal 03.679CEP 70.084-970 - Brasília-DF

TTTTTel: (61) el: (61) el: (61) el: (61) el: (61) 2106-16502106-16502106-16502106-16502106-1650FFFFFaxaxaxaxax: (61) : (61) : (61) : (61) : (61) 2106-16512106-16512106-16512106-16512106-1651

E-mail:E-mail:E-mail:E-mail:E-mail: [email protected] InternetCimi InternetCimi InternetCimi InternetCimi Internet: www.cimi.org.br

Registro nº 4,Port. 48.920,

Cartório do 2º Ofíciode Registro Civil - Brasília

Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.

Opinião

ISS

N 0

102-

0625

como, aos meios para financiar suas fun-ções autônomas.

Além do direito a tratamento pelosEstados como povos distintos, rejeitan-do quaisquer formas discriminatórias ouintegracionistas, a Declaração reconhe-ce o direito dos povos e dos indivíduosde pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições.

Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação, de atendimen-to à saúde são reconhecidos como direi-tos, cabendo aos Estados assegurar mei-os para o seu desenvolvimento. Os direi-tos a terra e recursos que possuam emrazão de propriedade ou uso tradicionaltambém são reconhecidos, cabendo aosEstados garantir a proteção jurídica, res-peitando-se os costumes e os sistemasde posse da terra pelos povos indígenas.

No que se refere às formas de relaçãodestes povos com o Estado, o texto se des-taca pela convergência com o que eles vêmreivindicando. Trata-se do direito de “par-ticipar na adoção de decisões nas ques-tões que afetem a seus direitos, vidas edestinos, por intermédio de representan-tes eleitos por eles” e a previsão de que“os Estados celebrarão consultas e coo-perarão de boa fé com os povos indíge-

APOIADORES

UNIÃO EUROPÉIA

A

PPPPPriscila Driscila Driscila Driscila Driscila D. Carvalho. Carvalho. Carvalho. Carvalho. CarvalhoEDITORA

RP 4604/02 DF

CONSELHO DE REDCONSELHO DE REDCONSELHO DE REDCONSELHO DE REDCONSELHO DE REDAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAntônio C. Queiroz

Benedito PreziaEgon Heck

Nello RuffaldiPaulo Guimarães

Paulo MaldosPaulo Suess

recente decisão do Conselhode Direitos Humanos da Orga-nização das Nações Unidas deaprovar a Declaração sobre os

Direitos dos Povos Indígenas representaum fato relevante no debate internacio-nal sobre a afirmação dos direitos dospovos indígenas.

O Conselho acolheu a proposta doGrupo de Trabalho da Comissão deDireitos Humanos, que foi encarregado,em 1994, de elaborar um projeto dedeclaração.

O texto, que deve ser submetido àapreciação da Assembléia Geral da ONU,projeta no cenário normativo interna-cional parâmetros que a OrganizaçãoInternacional do Trabalho já consagrarana Convenção n° 169, de 1989, que foiincorporada ao nosso ordenamentojurídico, em 2004.

Em seus 43 artigos, a Declaraçãoprojeta o reconhecimento mundial emrelação aos direitos específicos e à di-ferença étnica e cultural dos povos in-dígenas. Ela estabelece que ao exerce-rem seus direitos à livre determinação,estes povos têm direito à autonomia ouao autogoverno nas questões relacio-nadas aos seus assuntos internos, assim

Melhor mudar de canalAs grandes empresas de telecomunica-

ção pediram e o governo atendeu: o padrãoda TV digital brasileira será japonês. Em tro-ca da promessa cumprida, o presidente Lulapediu o apoio das emissoras de TV paracriar um canal com uma programação quemostre o Brasil “bonito”. As emissoras ce-deriam produções que mostram as belezasnaturais e a cultura brasileira (como costu-ma fazer o “Globo Repórter”) que seria trans-mitida internacionalmente com o intuito delimpar a imagem nacional lá fora.

Dizem que Lula acha muito ruim viajarpelo exterior e ver na TV tantos problemasrecorrentes em seu país, como a violência,o desrespeito ao meio ambiente e os direi-tos indígenas.

Taí uma boa solução para os problemasdo Brasil... mudar de canal!

Magnata quer comprara Amazônia

Trata-se de uma piada antiga, mas de vezem quando retorna. Agora foi a vez do mag-nata, Johan Elliach, presidente de uma em-presa sueca de materiais esportivos propora compra da Amazônia para proteger a flo-resta e a natureza.

A proposta, no mínimo absurda, foiapresentada em Londres em um simpósiosobre mudanças climáticas promovido poruma empresa de seguros. Johan, que já é pro-prietário de 160 mil hectares da florestaamazônica, acredita que com cerca 39 bi-lhões de reais é possível levar a floresta in-teira ... a pergunta é: com ou sem seus habi-tantes?

Devastação na Amazônia Os satélites do Sistema de Proteção da

Amazônia (Sipam) confirmaram o queambientalistas e indigenistas vêm denun-ciando insistentemente nos últimos anos:4% (cerca de 546 Km²) das áreas de proteçãoambiental da fronteira sul das florestas doestado do Amazonas foram devastadaspelos interesses econômicos predatórios.

Um detalhe importante apontado peloestudo é que as terras indígenas, que teori-camente deveriam ser protegidas pelo po-der público, são as mais afetadas na região.

Declaração da ONU sobre osdireitos dos povos indígenas

MARIOSAN

nas interessados, por meio de suas insti-tuições representativas para obter seuconsentimento prévio, livre e informadoantes de adotar e aplicar medidaslegislativas e administrativas que os afe-tem”, ou “antes de aprovar qualquer pro-jeto que afete suas terras ou territórios eoutros recursos, particularmente em rela-ção com o desenvolvimento, a utilizaçãoou a exploração de recursos minerais,hídricos ou de outro tipo”.

Garantias desta natureza são funda-mentais como referência para a adminis-tração dos interesses desenvolvimen-tistas e o respeito às especificidadesétnicas e culturais dos povos indígenas.

A aprovação pela ONU de Declaraçãocom este conteúdo significará importan-te balizamento na regulação dos direi-tos constitucionais no Brasil, expressosna elaboração do novo Estatuto dos Po-vos Indígenas, que se espera venha a serdefinitivamente aprovado pelos deputa-dos federais e senadores e promulgadopelo Presidente da República, na próxi-ma legislatura, que resultará das eleiçõesde outubro.

Paulo Machado Guimarães eCláudio Luiz dos Santos Beirão

Advogados e Ass. Jurídicos do Cimi

Porantinadas

Page 3: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

3 Agosto - 2006

Conjuntura

O mundo vem sendo transformadodrasticamente nos últimos 25anos pela hegemonia das políti-cas neoliberais, que se materiali-

zam na redução dos investimentos sociais,no foco dos governos em priorizar o paga-mento de dívidas mantendo juros altos,além da política de privatizações. Em pa-ralelo, ocorre a globalização neoliberal,pela qual os países do Terceiro Mundo sãoexplorados pelos do Primeiro, e tambémpelas multinacionais, que quebram a indús-tria e a produção nacionais.

Resultados visíveis dessas políticas têmsido o desemprego estrutural, massivo, e,conseqüentemente, a precarização do em-prego. Diminui o número de trabalhado-res com carteira assinada. Há 20 anos, noBrasil, chegamos a ter 60% dos trabalhado-res registrados; hoje, mais da metade dostrabalhadores está no emprego informal.Quem consegue trabalhar submete-se abaixos salários, pouca proteção social ejornada de trabalho prolongada.

Voltam a ocorrer situações que nos fa-zem lembrar o início do capitalismo: tra-balho escravo, exploração de crianças, trá-fico de mulheres, de crianças, migração detrabalhadores da Ásia para a Inglaterra, daAmérica Latina para os EUA, da África paraa Europa.

As “novas” idéiasda “nova” sociedade

A política neoliberal veio acompanha-da pela difusão de uma nova ideologia. Abase moral que sustentava a sociedade –direitos humanos, sociais, trabalhistas, dig-nidade da pessoa humana – foi sendo des-montada.

Tudo se reduz ao indivíduo. Cada umdeve trabalhar para obter saúde, educação,moradia. O ser humano não é mais sujeitode direitos, é consumidor; não há serviçospúblicos, mas bens a serem comprados. OEstado nada deve fazer, porque qualqueração de proteção social será tachada de“paternalismo”.

Por que isto afeta osmovimentos sociais?

Os novos valores não produzemunião, solidariedade, consenso. Ao con-trário, a ideologia individualista afasta apossibilidade de atuação coletiva. Se an-tes a pobreza era fruto do trabalho mal-remunerado, hoje ela é vista como frutoda incompetência individual. Comoconseqüência, a riqueza está atrelada à

competência. E este é só um dos muitosexemplos.

O desemprego desestrutura umadas bases da organização dos trabalhado-res, os sindicatos. Para sobreviver, aspessoas têm de trabalhar muito mais(tanto os empregados como, sobretudo, osdesempregados) e, com isso, o tempo paraa mobilização parece escassear.

Também as motivações para a luta di-minuem, pois elas vinham da crença de queos seres são sujeitos de direitos, que po-dem lutar unidos pela dignidade. Se nãohá mais direito, ou se direito é privilégio,lutar em nome de quê? O que fazer se que-rer salário melhor é provocar o aumentoda inflação? Na ideologia neoliberal, estasituação é apresentada como inevitável,como conseqüência do progresso, da glo-balização: esconde-se que ela é produzidapelo ser humano, que é injusta.

No BrasilAqui, depois da ascensão dos movi-

mentos sociais entre o fim dos anos 70 e adécada de 80, vimos o triunfo doneoliberalismo e sua hegemonia duranteos anos 90. Depois de anos enfrentandocom dificuldade o governo FernandoHenrique Cardoso, a esquerda finalmenteconseguiu derrotá-lo, graças a um discur-so coerente e de mudança.

O novo governo, no entanto, deu con-tinuidade às políticas econômicas da eraFHC. Os movimentos sociais ficaram per-didos durante o primeiro ano do governoLula. Divididos em setores (funcionalismopúblico X trabalhadores do setor privado),divididos quanto à postura face ao gover-no (“governo em disputa” x “nosso gover-no”), divididos sobre como agir no PT (“en-frentar o governo” ou “se submeter”?).

O governo Lula conseguiu dividir osmovimentos sociais. Quando fazem críti-cas, os movimentos são acusados de “fa-zer o papel da direita”. É uma das táticas

para manter o apoio a um governo que é,de fato, de direita. E, mesmo se o governonão consegue convencer a todos, conse-gue reduzir a intensidade da luta. Os últi-mos três anos e meio foram anos de con-tenção dos movimentos. E a tática dacooptação também funcionou muito, atra-vés da oferta de benefícios, de cargos.

Como resultado, vivemos no Brasil ummomento em que existe mobilização, mas,de modo geral, ela está em baixa. Algunssetores mantiveram e até ampliaram suamobilização como, por exemplo, o movi-mento indígena. Outros setores se dividi-ram: houve um racha nos movimentos sin-dical e ecológico, por exemplo.

Com baixa mobilização é difícil sefazer ouvir. Assim, o governo conseguiuaprovar leis contrárias aos interesses dostrabalhadores, como a liberação dostransgênicos, a Lei de Falências, o leilãoanual das áreas de exploração do petróleo.E o governo está preparando para 2007 areforma trabalhista, para flexibilizar a pro-teção dos trabalhadores.

No entanto, apesar das condiçõesadversas, a mobilização social conseguiubarrar, até agora, o projeto de autonomiado Banco Central. A partir da greve de fomede D. Luiz Cappio, conseguiu obrigar aodebate e interromper, ao menos tempora-riamente, o projeto de transposição do rioSão Francisco. Obteve a homologação da

terra indígena Raposa Serra do Sol, embo-ra com modificações.

Estas vitórias só foram conseguidasgraças a uma ampla mobilização - do pró-prio movimento e dos seus apoiadores:alguns parlamentares, setores da socieda-de civil, da universidade, parte da IgrejaCatólica, movimentos de trabalhadoresrurais. Foi somente a articulação de mui-tos movimentos e de muitos setores da so-ciedade que conseguiu, até o momento,barrar algumas das investidas do governopara atender aos interesses dos grandes.

Alguns objetivos, no entanto, até agoranão foram alcançados: a realização da refor-ma agrária, a ruptura com o agronegócio, arealização de uma auditoria da dívida exter-na, a mudança da política econômica.

No confronto entre movimento sociale governo, este último costuma usar osseguintes meios para enfraquecer o movi-mento: dificultar a articulação do própriomovimento, dificultar a comunicação domovimento com o conjunto da sociedade,dificultar o acesso aos meios de comunica-ção, enquanto os grandes meios seguemdifundindo a ideologia individualista edivulgando uma imagem negativa dos mo-vimentos (“destruidores da propriedade”).

Já os movimentos, para alcançar seusobjetivos, precisam reforçar a consciênciade seus membros, fortalecendo a crença nalegitimidade de sua luta por direitos. Pre-cisam criar consenso junto à sociedade emtorno de sua luta, o que exige comunica-ção (dar visibilidade a suas idéias e a seusargumentos). Um movimento, sozinho,pouco consegue: ele precisa manter eaumentar a articulação com outros movi-mentos e ganhar o apoio de outros seto-res da sociedade, para aumentar a suaforça e incidência.

(* )Professor da Universidade Federal doRio de Janeiro (UFRJ) e Membro dacoordenação da ONG Iser Assessoria.

Enquanto o país mantém prioridades de estado mínimo e reduz investimentos sociais, movimentosenfrentam ideologia individualista que dificulta mobilização, mas seguem tentando crescer

A transformação do cidadão em consumidor

Ivo Lesbaupin (*)

Sociólogo

Foto

: Arq

uivo

Cim

i

Page 4: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

4Agosto - 2006

A

Política Indigenista

Priscila D. CarvalhoRepórter

análise das ações específicas paraos povos indígenas no orçamentobrasileiro entre os anos 2000 e2005 conclui que houve aumento

no gasto da administração pública estatal,mas diminuíram os recursos destinados àregularização fundiária e à proteção dosterritórios indígenas. Este tipo de investi-mento é considerado “estratégico para asustentabilidade social e econômica des-ses povos” pelo autor da análise, o pesqui-sador Ricardo Verdum, do Instituto de Es-tudos Socioeconômicos (Inesc).

Em valores reais, isto é, atualizadospela inflação, o orçamento indigenista au-mentou 138%. Foi de R$ 144,75 milhõesem 2000 para R$ 345,46 milhões em 2005(ver tabela). O período avaliado engloba osúltimos três anos do mandato do ex-presi-dente FHC e os três primeiros anos dogoverno Lula.

Ao longo dos seis anos, a pesquisaconstata que as políticas indigenistas fo-ram sendo distribuídas por diversos minis-térios e que isso resultou na “fragmenta-ção e falta de coordenação das ações”. Aanálise aponta também que a participação

indígena na gestão das políticas públicasnão passou das intenções. “Falta uma ins-tância que articule políticas, que dê dire-trizes gerais. Esta é a idéia de propostascomo a da criação do Conselho Nacio-nal de Política Indigenista. E fal-ta incluir indígenas na formu-lação de programas, definir seteremos uma reedição da ve-lha política integracionista, ago-ra aliada a um discurso de inclusão social,ou se é algo novo, voltado para a autono-mia das comunidades em definirem as po-líticas voltadas para elas”, afirmou Verdumem entrevista ao Porantim.

No sentido oposto ao aumento dosgastos totais, o estudo constata a diminui-ção do gasto com demarcação de terras in-dígenas desde 2002. O maior investimen-to ocorreu em 2001, quando foram gastosR$ 67,138 milhões, 151% a mais do que noano anterior. Daí para frente, os valorescaíram de R$ 53,323 milhões, em 2002para R$ 42,49 milhões em 2005. No orça-mento de 2006, essa tendência se mantém,pois estão previstos R$ 42,081 milhões parao mesmo conjunto de ações.

“Houve, neste caso, uma sensíveldiminuição nos investimentos e no ritmo dostrabalhos, o que certamente deve estar re-

Orçamento indigenista cresce, mas dinheiropara demarcações diminui

lacionado com oscompromissos dogoverno federal com oschamados setoresestratégicos para ageração de superávitsprimários – particularmente, ocapital investido no agronegócio –, a pon-to de desacelerar e até paralisar a demar-cação das terras indígenas”, diz apublicação, de junho de 2006.

Do total de investimentos, que somacerca de R$ 1,5 bilhões, 64,5% (R$ 1,036bilhões) foram gastos com ações de pre-venção, controle e recuperação da saúdeindígena, de responsabilidade da FundaçãoNacional de Saúde (Funasa). Em relação à

saúde, a análise daaplicação do orça-

mento termina comquestionamentos: “Considerando as cons-tantes invasões indígenas às sedes daFunasa nos estados; as denúncias de usopolítico da máquina administrativa e dedesvio de recursos; as greves de funcio-nários; os problemas de relacionamento en-volvendo técnicos contratados e indígenas;a persistência de situações graves de saú-de, como os casos dos Guarani e dosXavante, e o agravamento dos proble-mas de saúde entre os Yanomami, se fazurgente avaliar o que está gerando tudoisso, apesar do aumento dos recursos fi-nanceiros alocados no orçamento”.

O estudo indica, nos últimos seis anos,que aumentaram os gastos com suporte aprojetos de geração de alternativas econô-micas para a população indígena, mas ava-lia que os resultados práticos ainda estão“aquém das expectativas”.

“No Ministério do Meio Ambiente, oPDPI (Projetos Demonstrativos dos PovosIndígenas) ficou praticamente parado aolongo dos três primeiros anos do governoLula, em meio à crise que decorre da faltade definição sobre seu destino político eadministrativo, da burocratização do pro-cesso orçamentário interno do Ministérioe da perda de prestígio junto ao movimen-to indígena da Amazônia. O projeto Car-teira Indígena, que conta com recursos doMinistério do Desenvolvimento Social paraapoiar pequenos projetos de organizaçõesindígenas, também sofreu com cortes derecursos e vem tendo dificuldades de su-perar a ainda incipiente capacidade demonitorar e assessorar os projetos apoia-

que também atendem a esta população.Segundo Renata Leite, assessora do Pro-grama de Promoção de Igualdade de Gê-nero, Raça e Etnia, os recursos do ministé-rio gastos com apoio a projetos voltadospara áreas como recuperação de áreas de-gradadas, gestão e controle territorial,manejo ambiental e de recursos naturaise produção agroecológica, foram de R$1,16 milhões em 2004 e chegaram a R$ 2milhões em 2005. Em 2004, os recursosforam destinados a oito projetos e, em2005, para 11. No primeiro semestre de2006, houve outros 12.

Renata Leite destaca que cresceu onúmero de comunidades indígenas queapresentam propostas. Elas propuserammais projetos em 2005 do que em 2004,quando a maioria ainda eram propostasvindas de entidades não indígenas. A as-sessora avalia, no entanto, que ainda háproblemas na qualidade dos projetos, nofoco – que não pode ser para compra de

dos”, analisa Verdum na análise publicadapelo Inesc.

Funcionando desde 2001, o PDPI dura-ria até 2006, mas será prorrogado para per-mitir que a verba do projeto que ainda nãofoi aplicada – quase dois terços do total –possa ser utilizada. Ainda restam R$ 24milhões para aplicação em projetos.

Mudanças positivasEntre as mudanças ocorridas durante

o governo Lula, Ricardo Verdum avalioucomo positiva a expansão das ações doMinistério do Meio Ambiente para além daregião Amazônica e o aumento da atuaçãodo Ministério do Desenvolvimento Agrário(MDA).

O MDA tem, desde 2004, um programade assistência técnica à produção voltadopara indígenas, um programa de Promoçãoda Igualdade de Raça, Gênero e Etnia eações em todas as suas secretarias que nãotêm verbas específicas para indígenas, mas

Crédito e apoio técnico à produção ainda são demandasementes, por exemplo, mas paraestruturação da produção. Afirma que fal-ta, em alguns casos, estruturação das or-ganizações indígenas que muitas vezes nãotêm sequer CNPJ.

Orçamento indigenistaValores atualizados pela inflação2000 144,75 milhões2001 251, 66 milhões2002 258, 56 milhões2003 248, 21 milhões2004 208, 118 milhões2005 345,46 milhões

Gastos com demarcação de terras2000 26,73 milhões2001 67, 13 milhões2002 53,32 milhões2003 51,03 milhões2004 47,87 milhões2005 42,49 milhões

4Agosto - 2006

Publ

icad

o no

Jor

nal d

o In

esc

Verba aumentou 138% entre 2000 e 2005, mas o valor destinadoa demarcações decaiu a partir de 2002. Do total do orçamentodos últimos seis anos, 64,5% foram gastos com saúde

Page 5: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

5 Agosto - 2006

Marcy PicançoEditora do Porantim

pesar das questões específicas emcada região do país, há algumasreivindicações e situações comunsem relação à educação escolar in-

dígena. A forma de contratação dos pro-fessores e a situação deles é atualmenteum dos grandes desafios para a área.

Segundo dados do censo escolar de2005, há 8 mil professores indígenas nas2324 escolas que funcionam em terras in-dígenas no Brasil.

Na região sul da Bahia, por exemplo,há 21 escolas públicas indígenas. Algunsdos professores foram contratados apósconcursos específicos, outros são efetiva-dos de acordo com a CLT (Consolidação dasLeis Trabalhistas), outros trabalham comcontratos temporários, sem direitos, comoférias e 13º salário, regulamentados. Estasituação de precariedade no trabalho foiuma das questões que representantes dospovos do sul e extremo sul da Bahia(Pataxó, Pataxó Hã–Hã-Hãe e Tupinambá)apresentaram ao ministro da educação,Fernando Haddad, em uma audiência rea-lizada em 6 de julho, em Brasília.

Além dos problemas trabalhistas dosprofessores, a reunião discutiu soluções paraa grave realidade que os povos da regiãovêm enfrentando em relação à educaçãoescolar. Há escassez de professores: são 100para cerca de 4 mil alunos, segundo Agnal-do Pataxó. Além disso, os salários giram emtorno de 100 e 350 reais e, freqüentemente,atrasam. Há também falta de merendaescolar e transporte em muitas aldeias.

“Temos feito tudo do ponto de vistaorçamentário e pedagógico para a educa-ção indígena. Este esforço não chegar naponta é muito frustrante”, declarouHaddad. Ele garantiu que o problema nãoé falta de recursos: “Faz pouco tempo nósliberamos R$ 25 milhões para o governoda Bahia via Prodeb (Programa de Apoioao Desenvolvimento da Educação Básica)”.

O ministro se comprometeu a intervirjunto à Secretaria Estadual de Educação da

Educação

Bahia para que parte desta verba fosseusada para sanar os problemas emergenciaisdas escolas indígenas. Para encaminhar estetema, o secretário de Educação Continua-da, Alfabetização e Diversidade, RicardoHenriques, se reuniu com a secretária AnaciPaim um dia após a audiência.

Em relação à contratação de professo-res, a secretária garantiu que vai tentarrealizar os concursos ainda esse ano. Se-gundo a professora Pataxó Hã-Hã-Hãe,Margarida, que esteve na audiência, Anacijá havia prometido, no segundo semestrede 2005, que realizaria os concursos emmaio de 2006, porém isto não ocorreu.

Na avaliação de Haddad, uma das ra-zões que pode dificultar a realização dosconcursos é a falta de regulamentação. “Alei do concurso público é universal. Preci-sa de uma norma dizendo que para ser pro-fessor indígena o concurso não é univer-sal“ completou o ministro, que garantiuelaborar uma proposta de lei que regula-mente esta questão.

“Acho que temos leis claras. Elas têmque ser aplicadas, pois não dá mais pra veros nossos filhos fora da escola”, discordouAgnaldo Pataxó, integrante da ComissãoNacional de Educação Escolar Indígena. Naopinião dele, deveria haver um subsistemafederal para educação indígena com orça-mento próprio. “Esta proposta saiu da úl-tima Conferência Nacional”, reforçou.

SubsistemaA criação de uma lei que regulamente

os concursos específicos não atende os in-teresses de todo o movimento indígena,pois isto se confronta com a cultura decontrole social sobre os professores, exer-cido por alguns povos. Para o movimentode Pernambuco, por exemplo, a efetivaçãode professores deve ser avaliada em con-junto com as lideranças e os contratadosprecisam atender ao perfil definido peloseu povo. “A lógica do concurso publiconão é a lógica dos povos indígenas emPernambuco. O concurso é feito no nosso

Povos da Bahia ePernambuco na lutapor uma educaçãoescolar de qualidadeRegulamentação da educação escolar indígena é discutidaem audiência com Ministro da Educação e encontrode professores em Pernambuco

Outra questão central discutida noXV Encontro dos Professores Indígenasde Pernambuco foi o fortalecimento darelação do movimento de professorescom a entidade que representa os po-vos da região Nordeste, a Apoinme. Omovimento dos professores seaprofunda em temáticas pedagógicas ede gestão da educação escolar. Mas aeducação está ligada a todos os outrosaspectos da vida das comunidades e o

país por vários motivos, entre eles superaro nepotismo, medir competências. Estenão é o nosso caso. Já somos professoreslegitimados pelas comunidades, fomos es-colhidos pelo povo e atendemos o perfildo professor indígena que foi construídopor cada povo, então não tem mais o queselecionar. Em nosso caso, pra que concur-so?”, questiona a professora PretinhaTruká. Junto com professores de oito po-vos, ela participou, entre 5 e 9 de julho, doXV Encontro da Comissão de ProfessoresIndígenas de Pernambuco (Copipe), quetambém debateu a questão da contrataçãodos professores, entre outros assuntos dapolítica escolar indígena.

Os povos de Pernambuco também têmdiscutido a estruturação de um subsistemaespecífico para educação indígena, deabrangência estadual. Eles vão avançar nes-se debate e levar essa questão para V Con-ferência Estadual de Educação Indígena,prevista para acontecer no mês de agostocom cerca de 400 participantes.

A

Educação avança com movimento indígena fortedades e ampliar a presença de cada umadelas nos espaços de debate da outra.Para isso, sugerem que a Articulaçãodos Povos do Nordeste, Minas Gerais eEspírito Santo retome o investimentona organização de encontros para discu-tir com profundidade questões comoa relação com o Estado e temas comoterra, saúde e educação, além de aumen-tar o conhecimento sobre os povos e ointercâmbio entre eles.

movimento sabe que, para garantir quali-dade de ensino, precisa de terras demar-cadas e de políticas públicas que só serãocriadas a partir da pressão de todo omovimento indígena. Em última análise,a estruturação da educação escolar indí-gena depende da existência de um movi-mento indígena forte.

Por isso, os professores reunidos defi-niram que, para fortalecer a Apoinme, é pre-ciso melhorar a comunicação entre as enti-

Representantesdos povos dosul da Bahiaexigiram deFernandoHaddadmedidas pararesolver aprecáriasituação daeducaçãoescolarindígena naregião

Professoresde PEdiscutiramcriação desubsistemaparaeducaçãoindígena eparticipaçãonos espaçosda Apoinme

Foto

: Wan

derle

y Pe

ssoa

/ M

EC

Foto

s: C

imi N

E

Page 6: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

6Agosto - 2006

Mato Grosso do Sul

Egon Heck / Lucia RangelCimi MS / Antropóloga–PUC/SP

oncam os tratores. Caem os últi-mos barracos ou o pouco de es-trutura que sobrou de alguns. Osque manejam as máquinas talvez

não saibam que essa estrutura material queestão destruindo ficará para sempre naalma desse povo. Foi meio ano de heróicaresistência Guarani-Kaiowá, desde dezem-bro de 2005, quando foram despejados desua terra Nhanderu Marangatu, no municí-pio de Antônio João (MS).

A Kuña Aty Guasu (Assembléia das Mu-lheres Guarani), realizada entre 22 e 24 dejunho, oficializou o retorno dos quase 500indígenas que estavam acampados à mar-gem da BR-384 à sua terra.

Os homens com as máquinas têm pres-sa, pois o asfalto precisa ficar pronto. Afi-nal, o progresso não pode ser estagnadopor alguns índios e as eleições se avizi-nham. Hamilton Lopes, uma das lideran-ças do acampamento, ao sentir a chegadadas máquinas, falou: “Para onde queremque a gente vá agora? Para o segundo an-dar, em cima das árvores?”

A conclusão do asfaltamento da estra-da entre Bela Vista e Antônio João expul-sou definitivamente os Guarani do acam-pamento onde viveram por mais de seismeses e os levou a voltar para a terra queé deles, mas que ainda está ocupada porfazendeiros.

Meio ano tenso e intensona beira da estrada

Sentamos com Hamilton Lopes e LéiaAquino para conversar sobre esses seismeses e alguns dias de acampamento. Fo-ram dias marcados por muito sofrimento,mortes, poeira, frio, chuva, calor intensosob as lonas pretas.

Hamilton fez uma pequena cronologiadas expectativas, promessas e fatos. “Logo

que fomos despejados, no dia 15 de de-zembro, se dizia que, no máximo em doismeses, o Supremo Tribunal Federal pode-ria julgar a ação. Passaram três meses, enada. Deram vários prazos. A gente ficavaesperando para a qualquer momento teruma notícia favorável e voltar para nossaterra. O tempo foi passando e nada de re-solver a situação. O desânimo e o cansaçoforam tomando conta de alguns. Mas o gru-po continuou unido e com esperança. Oassassinato de Dorvalino e as mortes dealgumas crianças que não agüentaram afome doeram, mas nos fortaleceram. Re-cebemos muitas ameaças, mas ficamos fir-mes. Por fim, o pessoal criou coragem ecomeçou a voltar para seus barracos deonde foram despejados. Não tinha outrasaída. O asfalto estava chegando e a gentenão tinha pra onde correr”.

Nesses seis meses, o acampamento re-cebeu inúmeras visitas de instituições na-cionais e internacionais, repórteres, comis-sões, curiosos, amigos e inimigos. Estive-ram lá o Secretário Especial de DireitosHumanos, o presidente da Funai, represen-tantes do governo do Mato Grosso do Sule o prefeito de Antonio João, entre outros.Em Brasília, os Guarani falaram com Minis-tros do Superior Tribunal de Justiça, comparlamentares e com representantes dogoverno federal. Também relataram a situ-ação em que viviam para um representan-te da ONU.

As lições, a luta e o futuro As lições ficaram. A luta continua. A

cada lua que passa, é dado um passo adi-ante. “Nunca mais vamos sair da nossa ter-ra. Aprendemos muito nesses seis meses.Tivemos muito tempo para ver, pensar, co-nhecer o mundo e o pensamento dos nãoíndios. Engolimos muita poeira, amassa-mos muito barro, passamos muito frio esofremos com o calor. Mas a dor maior eraficar aí à toa, sem ter onde trabalhar, olhan-do para nossa terra aí em frente, presa,proibida. Mas não desanimamos. Recebe-mos muita força de nossos deuses, dosantepassados, dos nossos aliados. Nossos

filhos serão guerreiros e vão ter orgulhoda luta que enfrentamos”, relata Léia.

Hamilton expressa a vivência dos seismeses destacando suas preocupações eexpectativas: “Foi uma grande lição paratodos nós. Seis meses de resistência paraconseguirmos empurrar o processo judici-al adiante. Precisamos nos apoiar muito enossas lideranças mostraram muita firme-za e clareza. Pensei muitas coisas nessetempo. A mais importante foi o sonho deliberar o Marangatu e organizar nosso tra-balho de produzir os alimentos. Penseimuito nas crianças que vão viver nessa ter-ra. Queremos preparar a casa para nossosfilhos. A escola e os professores são muitoimportantes. Muitos jovens se enforcaramno acampamento. Teve tempo de um sui-cídio por mês aqui.”

Léia desabafa: “Vamos sair da beira daestrada para o asfalto passar. Já estamoscansados de ser enganados e tratadoscomo crianças. Que a Justiça faça algumacoisa. Os que mataram Marçal, Dorvalinoe outros estão todos soltos. Porque estão

Histórias e Lições de Nhanderu Marangatudemorando todo esse tempo para julgar oprocesso que nos expulsou da terra?”

Hamilton, vendo os tratores escavan-do a estrada e refletindo todo esse tempode desprezo e ódio que sofreram, diz: ”Senão querem nos reconhecer e dar nossaterra, nossos direitos, então que peguemessas máquinas façam um buraco bem gran-de e nos joguem todos lá dentro. Assimficaremos para sempre em nossa terra”.

Mas a dureza da vida não lhes roubouo sonho e a certeza de que vão construirum futuro melhor para seus filhos. Hamil-ton fala, com os olhos brilhando, comopensa em ajudar a organizar a produçãode alimentos, fazer um desenvolvimentosustentável para dar exemplo para o muni-cípio, para o Brasil e para o mundo. Léiaconclui a conversa lembrando que “nós in-dígenas temos um coração que ama todos,não apenas nós mesmos”.

“Será preciso estender essatarja preta para lembrartantas vidas sacrificadas

para os privilégios eenriquecimento de alguns

poucos”

E a cruz de Dorvalino, fincada no lo-cal em que ele tombou, próximo ao portãode entrada para algumas fazendas, perma-necerá para sempre no chão ou na lembran-ça daquela memória perigosa dos quelutaram por essa terra.

Guarani acampados à beira deestrada retornam para sua terra

R

Assassinatode Dorvalino,

mortes decrianças, mas

tambémmuita força,

união eesperança

marcaram osseis meses deacampamento

Foto

s: E

gon

Hec

k / C

imi M

S

Page 7: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

7 Agosto - 2006

Cleber César BuzattoMarline Dassoler Buzatto

Ivan César CimaCimi Sul

stá cada dia mais grave a situaçãodos Guarani do oeste de SantaCatarina que foram acolhidos, pro-visoriamente, há quase cinco anos,

na terra Toldo Chimbangue, do povoKaingang, no município de Chapecó.A Fundação Nacional do Índio (Funai) pa-ralisou o processo de regularização da ter-ra dos Guarani, desrespeitando o Decreto1775/96. Enquanto isso, no fim de junho,uma criança morreu em função do rigor doinverno somado às precárias condições emque eles estão vivendo.

Desde outubro de 2001, mais de 20famílias de Guarani, que somam cercade 90 pessoas, vivem sobre oito hectaresda terra Toldo Chimbangue que, alémde estar invadida por não-índios, aindaabriga os Kaingang que são seus ocupan-tes tradicionais.

O espaço onde vivem os Guarani énotadamente insuficiente para a sobrevi-vência física e cultural destas famílias. Alémdisso, há a constante frustração da expec-tativa de retorno à terra tradicional, queocorre em função do atraso no processode sua demarcação. Isso tudo, somado àscondições climáticas e à ineficiente assis-tência dos órgãos públicos, tem feito comque estas famílias continuem vivendo emcondições precárias e degradantes.

A aldeia fica numa região montanho-sa, próxima ao poluído Rio Irani. Ela temenfrentado tremendas dificuldades emfunção, por um lado, da forte umidade edo frio rigoroso durante o inverno e, poroutro, da escassez de água potável nosperíodos de estiagem que seguidamentetêm atingido a região. Além disso, no lo-cal onde vivem há quase seis anos, osGuarani não têm condições de produzir onecessário à sua alimentação. Plantampequenas lavouras de milho, feijão e man-dioca e cultivam verduras em pequenashortas. A produção advinda disso, no en-tanto, não é suficiente para se manterem.De acordo com o guarani Maximino Mo-rais Mariano “era pra nós ficarmos aqui só

Santa Catarina

pouco tempo. Aqui não dá pra plantar quechega, não tem fonte de água boa. É difícil avida aqui”.

Em função disso, apresentam grandedependência da assistência governamental.E esta tem se mostrado falha. O depoimen-to do cacique João Barbosa atesta esta afir-mativa. Segundo ele, falta comida e, “naseca, as fontes escasseiam, chegam a secar. Aías pessoas pegam de caneca, pela manhã, umpouquinho de água que junta durante a noite.Tem que parar as aulas por que não tem águapra nada. As crianças ficam com sede. Demoradias pra trazerem água no caminhão pipa”.

Terra Guaranide Araça’í: exílio,resistência e lutaEnquanto o processo de regularização está parado na Funaidesde janeiro, uma criança morreu em função das precáriascondições em que vivem os Guarani

Desde o final do século XIX, há rela-tos da presença Guarani no oeste de San-ta Catarina, mais precisamente na regiãoonde, atualmente, estão localizados osmunicípios de Cunha Porã e Saudades.Apesar disso, as terras desta região fo-ram consideradas “devolutas”, de propri-edade do Estado. Isto serviu de justifi-cativa para que fossem repassadas, pelogoverno de Santa Catarina, a empresasparticulares. Elas passaram a “povoar” aregião a partir de uma visão puramentemercadológica, ou seja, com o único in-tuito da obtenção de lucros.

Em função disso, a partir da décadade 1920, período em que foi iniciada acolonização nestes municípios, os Guaraniforam sendo expulsos pela empresa Co-lonizadora Sul Brasil, que tratou de fazera chamada “limpeza da área”. Ou seja, ex-

Enquanto isso, o processo de regula-rização da terra guarani continua na de-pendência de encaminhamentos da Funai.O relatório antropológico, publicado emsetembro de 2005, identificou e delimitoua “Terra Indígena Guarani de Araça’í”, com2.721 hectares. Em janeiro de 2006, quan-do encerrou o período do contraditório,os agricultores, as prefeituras de Saudadese Cunha Porã e o governo de Santa Catarinaapresentaram contestações ao relatório.Estas estão, desde então, em análise naCoordenação Geral de Identificação e De-limitação (CGDI), da Diretoria de Assuntos

Fundiários (DAF) da Funai em Brasília. Oprazo para conclusão de tal análise, con-forme o decreto 1775/96, é de até 60 dias.No entanto, já se passaram seis meses eesta parte do processo ainda não foi con-cluída.

Vivem, portanto, uma situação limite.Conseqüentemente, a indignação, a inqui-etação e a revolta têm sido potencializadas.Neste sentido, a afirmativa do rezadorguarani Clementino Barbosa, 94 anos, éenfática: “Já perdemos uma criança na al-deia. Não estamos dispostos a morrer es-perando”.

propriar a terra dos posseiros que ocupavama área “objeto” da colonização. A terra “lim-pa” tinha maior valor comercial.

Nesse procedimento, de acordo com oSr. Fontoura de Castro “se dizia: ´compra oute arranca´. Às vezes dava morte. Quem era debem agarrava e saía quieto pra diante. E aque-le que era bonzote ficava lá mesmo”. Feita aretirada dos “intrusos”, como a EmpresaColonizadora chamava os indígenas, a áreafoi sendo loteada e vendida a pequenos agri-cultores, na sua grande maioria descenden-tes de imigrantes europeus vindos do RioGrande do Sul.

Para não serem todos mortos, osGuarani atravessaram o rio Uruguai e se re-fugiaram na terra do povo Kaingang deno-minada Nonoai, no norte do Rio Grande doSul. Ali permaneceram até julho do ano2000, quando partiram para realização da

retomada de sua terra tradicional, emSanta Catarina. Os Guarani reivindicavama criação de um Grupo de Trabalho (GT)para identificação e delimitação da terradesde 1998, mas somente a partir dessaretomada é que a Funai constituiu o GT,em setembro de 2000. No mês seguinte,no entanto, com base numa liminar con-cedida por um Juiz da Justiça Federal deChapecó, sem que fossem previamentecomunicados, os Guarani foram nova-mente expulsos de sua terra e conduzi-dos compulsoriamente, mais uma vez, àterra Nonoai, pelas polícias Federal eMilitar de Santa Catarina.

Permaneceram naquele local atéoutubro de 2001, quando retornaram aSanta Catarina e foram acolhidos,provisoriamente, pelos Kaingang daterra Toldo Chimbangue.

Histórico dos Guarani no oeste de Santa Catarina

EVinte famíliasGuarani estãovivendo,provisoriamente,há quase cincoanos na terraKaingang Toldodo Chibangue

Foto

s: C

imi S

ul

Page 8: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

8Agosto - 2006

Mártires tornam visível injustiçavivida pelo povo no dia-a-dia

A cada cinco anos, no mês dejulho, milhares de pessoas se

encontram em RibeirãoCascalheira, no interior do Mato

Grosso, para realizar umaromaria dedicada à memóriadaqueles que foram mortos

defendendo a vida. É umencontro que celebra causas: aindígena, a de negros e negras,

mulheres marginalizadas,meninos e meninas de rua, dosoperários. Os participantes da

caminhada renovam seucompromisso com as lutas pela

Vida e pela Justiça.

8Agosto - 2006

NPriscila D. Carvalho

Repórter

este ano, a Romaria dos Mártiresda Caminhada ocorreu em 15 e 16de julho, na Prelazia de São Félixdo Araguaia. Este é um local impor-tante na construção de uma IgrejaCatólica comprometida com a luta

do povo indígena, caboclo e ribeirinho, des-de a época em que o Mato Grosso começavaa ser invadido pelo latifúndio incentivado pelaideologia desenvolvimentista, nos anos 70.

Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pas-toral da Terra (CPT), condensa o espírito daRomaria:

“Cada mártir é um símbolo, um sinal, da-queles índios, posseiros, negros que forammassacrados, e que são milhões. Na AméricaLatina se conta 80 milhões de massacrados.Esse martírio não é de cada um deles. É detodo um povo. Eles apenas tornam visível essainjustiça vivida no dia-a-dia”.

Dom Tomás lembrou que um levantamen-to da CPT mostra que dos cerca de 1.000assassinatos que ocorreram nos últimos 11

anos, 70 geraram processos e só foram con-denados 14 posseiros e 7 mandantes. “Quan-do um mártir cai, é sinal de que milhares es-tão caindo e eles servem para dar voz aosque não têm voz. O martírio denuncia umasituação de injustiça, outros milhares forammortos sem que ninguém se incomode”,disse Dom Tomás em entrevista.

Os assassinos de Simão Bororo, MarcosVeron, Dorival Benitez, João Araújo Guajajara,Pe. Rodolfo Lunkenbein, João Bosco PenidoBurnier, Vicente Cañas, Irmã Cleusa Rody Co-elho ou nem chegaram a ser condenados ou

continuam respondendo a processos queduram anos – e até décadas - para seremfinalizados. Ao mesmo tempo, centenas deindígenas e camponeses respondem a pro-cessos criminais por fazerem retomadas desuas terras para voltar a viver nelas. Situa-ção como esta tem sido enfrentada pelo povoXukuru, que tem 35 lideranças respondendoa um único processo por reagirem após umatentado que matou dois jovens e feriu ocacique deste povo em 2003. Centenas demilitantes de movimentos sociais vivemsituações semelhantes.

Foto

s: E

gon

Hec

k, G

eertj

e va

n de

r Pas

e P

risci

la D

. Car

valh

o

Page 9: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

9 Agosto - 2006

Presença indígenaZezinho Bororo (foto acima), que foi

baleado há 30 anos, na terra Merure, noMato Grosso, no mesmo dia em que foramassassinados Simão Bororo e o padreRodolfo Lunkenbein, participou da Roma-ria este ano. Ele contou ao Porantim umadessas histórias de impunidade:

“A Funai tinha determinado a demarca-ção da nossa terra. Achavam que a missãoé que ficava fazendo a cabeça dos índios,mas a gente já tinha percebido que a situa-ção não estava boa e que a nossa luta erapela terra mesmo. O Rodolfo era visadoporque era diretor da Missão Salesiana.Quando a demarcação começou, no dia 15de julho de 1976, tinha três frentes traba-lhando. Eu estava na roça. O cacique avi-sou que tinha chegado um carro com fa-zendeiros que queriam parar a demarcação.

Fomos para o colégio. Eles disseramque já tinham parado o trabalho de umafrente de demarcação e o Rodolfo disse quetinham que procurar a Funai, em Brasília.

Quando iam sair, já estavam quase nocarro, o João Mineiro, um dos cabeças, vol-tou e começou a falar palavrões. Percebemosque ele ia agredir o padre. Logo depois co-meçaram os tiros. Atiraram no padre Rodolfopor trás, o tiro pegou na perna. Eu, o Simão,o Gabriel e o cacique Lourenço estávamoslá. O Gabriel foi esfaqueado.

No começo, veio a Polícia. Deu proces-so, prenderam uns. Eles ficaram presos umtempo, depois foram soltos”.

Estevão Taukane, do povo Bakairi, quetambém vive no Mato Grosso, foi à Roma-ria pela memória do padre João BoscoPenido Burnier, assassinado por causa dotrabalho que desenvolvia com os Bakairi. ARomaria lembrou especialmente os 30 anosdo assassinato de Burnier. “Este é um mo-mento de reflexão, para ver onde avança-mos e como proceder no relacionamentocom os potenciais aliados. Refleti sobre omovimento indígena, vim buscar um pou-co de ânimo, de conhecimento e de humil-dade. Padre João tinha conhecimento, ins-trução, e era muito humilde, era conselhei-ro. Por isso faço questão de vir quando re-cebo o convite”, avaliou Estevão.

Os indígenas acenderam, com tochas,a fogueira na qual foram acesas as velas queromeiros carregaram pelos seis quilômetrosde caminhada noturna realizada no sába-do, 15 de julho, que reuniu 4 mil pessoas,segundo sua organização.

Na manhã de domingo, dia 16, uma mis-sa campestre teve a participação de MarcosXukuru. Perguntado por Dom PedroCasaldáliga sobre que frutos a caminhada de-veria produzir, o cacique respondeu: “Cadaum e cada uma deve defender um ideal elutar pelas causas populares. E levar daquinão só a camiseta, a lembrança, mas que levedentro do peito a força dada por Tupã eTamaim. E que possa orar e fazer algo nãoapenas pelos povos indígenas, mas pelosnegros, pelos sem terra. Nós povos indíge-nas não queremos o Brasil inteiro. Quere-mos apenas terra para sobreviver neste paíspluriétnico e pluricultural”, disse.

Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaiaaté 2005, Dom Pedro Casaldáliga, ou simples-mente Pedro, como gosta de ser chamado, se-gue na sua luta para manter forte uma Igrejaao lado do povo. Aos 78 anos, ele continuavivendo na Prelazia situada na região onde vi-vem os povos Karaja, Xavante e Tapirapé. Aentrevista que segue foi concedida antes daRomaria ao Porantim e a uma equipe dedocumentaristas.

Como foi seu primeiro contato com osindígenas aqui na Prelazia?

Foi com o povo Tapirapé, por causa dasIrmãzinhas que já desde os anos 1950 esta-vam lá. E também com o povo Karajá, que apa-recia discretamente nas ruas de São Félix. Nosquatro meses de preparação daquele curso doCenfi [voltado para os missionários que vêmdo exterior para trabalhar no Brasil] a gentecomeçou a sentir o mundo indígena por algu-ma leitura, alguma palestra que nos deram.

Depois, tem sido a briga, a luta diária. Cri-amos, entre outros muitos, o Cimi.

Depois, se ampliou a visão e foi se crian-do consciência de Ameríndia nesse contatocom os vários países da América Latina.

O trabalho primeiro e fundamental do Cimifoi possibilitar encontros de chefes indígenas,que descobriram raízes, lutas, massacres co-muns. E o inimigo comum. Criou entre elessolidariedade e os povos manifestam, se fa-zem presentes: há organizações, confedera-ções. Há bastante intersolidariedade, até oponto de haver consciência de Ameríndia. Digosempre que a causa dos indígenas só se salva-rá se os povos se unirem continentalmente emreivindicação de terra, autonomia.

Como vê a situação dos povos indígenashoje?

Infelizmente, a política indigenista destegoverno é quase nula, na região do Araguaia eno Brasil. É omissa. Falta demarcar muitasáreas, muitas áreas demarcadas estão sendoinvadidas.

O Estatuto dos Povos Indígenas está aíesperando para ser votado, mas é melhor nem 9 Agosto - 2006

A causa indígena só se salvarácom união continental

mexer, porque a bancada ruralista é perigosa,pode até estragar. Até a Constituição Federalé questionada.

Todas as políticas oficiais da América La-tina, ao longo dos últimos 500 anos, têm sidode integração [às sociedades nacionais], dedesintegração dos povos indígenas paratorná-los pobres. Brasileiros, mexicanos ouguatemaltecos pobres, negando sua identi-dade, sua terra, sua língua, sua cultura.

Às vezes a Igreja colaborou, perseguindoreligiões. Nos primeiros tempos, queimaramtemplos, códigos sagrados.

E como está a situação dos povosindígenas que vivem na região da Prelazia?

Na região, temos casos difíceis. OsXavante da Suiá-Missu [terra Marãiwatsedé],impedidos de voltar para a sua terra. A justi-ça pediu três laudos antropológicos [sobreesta terra]. Já no Parque Indígena do Xingu,há uma situação de expectativa. Há 16 po-vos, há fazendas por perto e como não hápolítica que dê à Funai capacidade de ser oque deveria, tudo é precário.

Em outra parte, quando cheguei contavam100 mil índios, hoje há mais de 700 mil.

Os povos indígenas cresceram em núme-ro. Cresceram em consciência. Cresceram emorganização. Cresceram em intersolidariedade,as várias ramas do mesmo tronco, e de povopara povo. Inclusive há setores indígenas im-portantes que têm consciência de Ameríndia,de todo o continente. Já não é a causa de umpovo, de uma aldeia, é a causa de um mundo,o mundo indígena.

Como você vê a participação popular naRomaria?

A presença das pessoas anima, nesta horaem que há decepção na política, até no cam-po eclesial, corrupção na política. A partici-pação do povo dá ânimo. Todo esse povoé fermento mesmo, vem das pastorais, dasolidariedade.

Temos percebido muita intersolidarie-dade, que é uma coisa de duas mãos, quevem e vai, vai e vem.

Dom PedroCasaldáliga,Dom TomásBalduino e ocaciqueMarcos Xukuruparticipam decelebraçao namanhã dedomingo, 16 dejulho

Fotos: Priscila D. Carvalho, Geertje van der Pas e Egon Heck

D. Zenilda, viúva do cacique Xicão Xucuru, assassinato em 1998, veio de Pernambucopara participar da caminhada que reuniu cerca de 4 mil pessoas

Page 10: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

10Agosto - 2006

Maurício HashizumeAgência Carta Maior

eunidos em Brasília, representan-tes da sociedade civil e gestoresgovernamentais participaram, en-tre 6 e 7 de julho, do primeiro

encontro de reaproximação entre as par-tes, como resultado do compromisso as-sumido desde a suspensão da greve defome promovida ao longo de dez dias (26de outubro a 6 de novembro do ano passa-do) pelo frei Dom Luiz Flávio Cappio, bis-po de Barra, na Bahia.

Pedro Bertone, coordenador do grupode trabalho intergovernamental sobre oprojeto de integração do Rio São Francis-co com as bacias do Nordeste Setentrional– como o governo denomina o projeto detransposição -, reconhece que houve errona forma como a questão foi colocada an-teriormente. Agora, confirma o assessor, aordem do Palácio do Planalto é a de inten-sificar o diálogo com base em referênciasmais amplas, para além da mera obra deengenharia da transposição. “A obra estáintegrada a outro projeto maior de desen-volvimento para a região do Semi-Árido.Sem outras ações, como a própriarevitalização do Rio São Francisco, a obradeixa de ter sentido”, argumenta.

Dom Cappio participou dos dois diasde conversa. Estiveram presentes, também,Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pasto-ral da Terra (CPT) e representantes do Co-mitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Fran-cisco (CBHSF), de organizações como a Ar-ticulação do Semi-Árido (ASA) e de movi-mentos sociais com forte atuação no Nor-deste. “O encontro foi bastante esperan-çoso. Pela primeira vez, a sociedade civilestá sentada ao lado do governo para dis-

cutir não só a questão da obra, mas as pos-sibilidades de ações para o povo que viveno Semi-Árido”, define Dom Cappio. Paraele, a primeira oficina – que se desdobraráem encontros posteriores com as popula-ções das regiões envolvidas – teve o méri-to da transparência. “Cada um disse o quepensa. Essa é a principal senha para se de-bater pontos divergentes com clareza eobjetividade”, assinala, ressaltando que osacordos que surgirem da interlocuçãoreativada ainda precisam ser cumpridos“para que não sejamos apenasinstrumentalizados”.

A segurança hídrica – principal justifi-cativa do projeto de transposição - nãobasta, enfatiza o bispo, para atender osinteresses do povo e da nação. “Lá em Bar-ra, onde vivo, vejo de uma das janelas orio São Francisco. Há populações miserá-

veis que vivem bem próximas da água.Quem garante que essa mesma água vaigarantir o desenvolvimento aos de longese nem quem está perto é atendido?”,questiona. “Desenvolvimento é bem maisdo que água”.

O religioso identifica o início de ummovimento importante de esclarecimentodos pontos de concordância e divergênciaentre os atores sociais. “Eu quero acredi-tar no processo. Esse primeiro encontronão foi importante apenas para o diálogoda sociedade civil com o governo. Foi im-portante também para o diálogo do gover-no com setores do próprio governo”.

Foram definidos três grandes gruposde trabalho temáticos – disponibilidadehídrica, revitalização do rio São Franciscoe projetos de desenvolvimento no Semi-Árido. Nesses espaços, o número de inte-grantes do governo e de membros da soci-edade civil deve ser igual. Eles serão enca-minhados pela comissão que está à frentedo processo, formada por 12 representan-tes de entidades civis e por representan-tes da Casa Civil, Secretaria Geral da Presi-dência da República e de ministérios liga-dos ao tema.

Entre os povos indígenas, a mobi-lização de resistência à obra de transposi-ção nunca esmoreceu, relata MarcosSabaru, do povo Tingui-Botó, de Alagoas.“Começa na Ilha de Assunção, onde vivem

os Truká, e une diversos povos comoos Tumbalalá, os Tingui. etc.”.Para Sabaru, o diálogo foi reaberto

Rio São Francisco

Encontro instauradiálogo entre governoe movimentosSociedade civil e governo retomaram discussões em torno de umtema mais amplo - o desenvolvimento do Semi-Árido

pelo governo por causa do calendário elei-toral: para não contrariar indígenas, pes-cadores, quilombolas, setores da IgrejaCatólica e diversos outros segmentos quesão contra o projeto. “Mas também é im-portante ouvir as pessoas. Aqui é só con-versa. Se tiver validade, tem que aparecerem atos”.

Para Luiz Carlos da Silveira Fontes, co-ordenador do Baixo São Francisco doCBHSF e professor do Departamento deEngenharia Agronômica da UniversidadeFederal de Sergipe (UFS), a rodada inicialde conversas reabre espaço para questõesque haviam sido perdidas: o debate sobrea gestão das águas do rio São Francisco e adefinição da ordem de prioridades dos in-vestimentos públicos.

Bertone, que foi assessor da Subchefiade Articulação e Monitoramento da CasaCivil, admite que o governo está dispostoa recolocar na mesa as diferenças entregoverno e setores contrários à transposi-ção sobre a destinação da água do rio: usopara consumo humano ou uso econômico.O plano de gestão da Bacia do rio São Fran-cisco, aprovado no âmbito do CBHSF de-pois de um processo longo de consultaspúblicas, não descarta em absoluto a trans-posição, desde que seja limitada e exclusi-vamente para consumo humano. “Nesteprimeiro momento, não houve tentativa deimposição do governo federal. Ainda nãopodemos, porém, antecipar o que vai darno final”, observa Fontes. “Mas está claroque a imposição é o pior caminho. Perpe-tua o conflito”.

R

Discutirmais a

transposiçãofoi

compromissoassumido pelogoverno para o

fim da grevede fome de

Dom LuisCáppio

(segundo daesq. para dir.,

na foto da dir.)

Fotos: Éden Magalhães e Priscila D. Carvalho

Page 11: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

11 Agosto - 2006

PaísAfora

Volmir BavarescoTerezinha Dalcegio

Cimi RO

ntre os dias 10 e 13 de julho,cerca de 60 representantesPuruborá se reuniram na aldeiaAperoi, nas proximidades do rio

Manoel Correia, município de Seringueira,Rondônia. O principal ponto de pauta foi aluta pela reconquista do território tradi-cional. A X Assembléia do povo Karitianaaconteceu nos dias 24 e 25 de junho naAldeia Central, em Porto Velho, com a par-ticipação de 75 indígenas.

O local da Assembléia Puruborá foia casa da D. Emília, que comprou umpedaço da terra que era tradicionalmenteocupada por seu povo. Em 1994, ela e suafamília foram expulsas pela Funai do localem que viviam, porque ele ficava na divisada terra Uru Eu Wau Wau.

Este povo encontra-se espalhado pe-los municípios de Guajará-Mirim, CostaMarques, São Miguel, São Francisco, PortoVelho, Ji-Paraná e Seringueiras. Entretantoseu território tradicional fica no municípiode Seringueira.

A população Puruborá é superior a 400pessoas e os 10 idosos deste povo guar-dam a memória de quando podiam viverem seu terrritório e conhecem profunda-mente os limites da terra de seu povo.

A Assembléia elaborou propostas so-bre como reivindicar junto à Funai o direi-to pela sua terra. De acordo com a Funai,em setembro deverá ser criado um Grupode Trabalho para a delimitação do territó-rio Puruborá. A criação é resultado dainsistência das lideranças em exigir, viaMinistério Público, que a Funai assumissea responsabilidade pelo andamento do pro-cesso de demarcação da terra Puruborá.Outro ganho da luta, na avaliação da as-sembléia, foi o atendimento à saúde, quepassou a ser feito pela Fundação Nacionalde Saúde (Funasa).

A V Assembléia Puruborá renovou aesperança dos outros povos do estado que

Roberto SaraivaCimi NE

ma passeata silenciosa nas ruas deCabrobó, Pernambuco, marcou amemória do assassinato deAdenilson dos Santos Vieira e de

Jorge dos Santos Barros, do povo Truká.Em 30 de junho, mais de mil pessoas car-regaram faixas que expressavam saudadedos guerreiros, executados pela PolíciaMilitar do estado de Pernambuco um anoantes. Até agora, o inquérito para apura-ção das mortes ainda não foi concluído. Oato organizado pelos Truká foi um protes-to contra a impunidade e contra as intimi-dações que continuam ocorrendo contraas lideranças deste povo.

Os policiais envolvidos nos assassina-tos aguardam em liberdade o desenrolardas investigações e a comunidade Trukásente-se intimidada com a proximidade

deles, que seguem trabalhando emCabrobó.

Apesar do clima de tensão e desconfi-ança que havia na cidade, a manifestaçãosilenciosa e pacífica calou a todos osque esperavam um ato violento ouprovocativo. Na celebração que aconteceudentro da aldeia, lideranças e familiarespediram força a Tupã. Os Truká esperampoder viver em paz e solicitam a puniçãoaos culpados, com respeito às leis: “Eu só

peço aos encantados que os assassinos se-jam presos e paguem pelo mal que fize-ram contra nós e contra as mães que so-frem as perdas de seus filhos”, declarou ocacique Neguinho Truká.

A liderança Pretinha Truká resume oque seu povo deseja com o ato: “Espera-mos que as autoridades vejam que só que-remos chamar a atenção para esses fatos,e que não se repita com outras famílias, daaldeia ou da cidade, uma atrocidade igual.

Povos Puruborá e Karitiana realizamassembléias em RondôniaEles discutiram saúde,educação, relacionamento coma Funai e a luta pela terra

Não podemos nos calar diante do dragãoda morte”.

Foi com esse sentimento que estive-ram presentes, além de indígenas Truká ede outros povos, o Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem Terra (MST), a Co-missão Pastoral da Terra (CPT), o Centrode Cultura Luiz Freire (CCLF), o Movimen-to Nacional de Direitos Humanos (MNDH),a Pastoral dos Pescadores (CPP) e o Con-selho Indigenista Missionário (Cimi).

U

11 Agosto - 2006

Povo Truká clama por justiça em ato silencioso

O Marechal Rondon contatou os Puruborá em 1919 e os deixou na região dorio Manoel Correia, aos cuidados de um encarregado do Serviço de Proteção aoÍndio (SPI), José Felix do Nascimento. No mesmo ano, o Marechal Rondon demar-cou a terra deste povo. Em 1925, o doutor Benjamim Rondon, filho do Marechal,reabriu a demarcação. Nos anos seguintes, os Puruborá foram acometidos porepidemias que dizimaram o povo. O encarregado do SPI deixou seringueiros tra-balharem dentro da área e os ajudava a explorar o trabalho dos indígenas.

KaritianaOrlando Karitiana coordenou a Assem-

bléia que, entre outras reivindicações, exi-giu mais uma vaga no Conselho Distritalde Saúde, já que o povo Joari precisou sejuntar aos Karitiana, quando restaram ape-nas homens entre os remanescentes. Opresidente do Conselho, Aurélio Tenharim,comprometeu-se a levar esta questão paradiscussão.

A Assembléia também requisitou aaquisição de computadores para estudan-tes indígenas universitários, pois atualmen-te há apenas duas máquinas. Osman Bra-sil, administrador da Funai em Porto Velhoprometeu equipar uma sala com computa-dores exclusivos para os estudantes.

Todos os participantes demonstraramgrande interesse em continuar firmes naluta pela ampliação de seu território bemcomo reforçar a luta junto aos demais po-vos e movimento indígenas. A Assembléiacontou com a presença de representantesdo Cimi, Funai e Funasa.

lutam pela revisão dos limites ou delimita-ção de seus territórios. O evento contoucom o apoio do Cimi, a presença do Minis-tério Público Federal, da Secretaria Esta-dual de Educação, da Funai e da Funasa.

Histórico do povo Puruborá

E

Ato com maisde milpessoaslembrou umano doassassinatode Adenilsondos SantosVieira e deseu filho

Os Karitianase reuniramna AldeiaCentral, emPorto Velho.Abaixo,alguns idososdo povoPuruborápresentes àAssembléiadeste povo

Foto

: Cim

i RO

Foto

: Cim

i Ne

Page 12: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

12Agosto - 2006

A situação vivida pelos Bororo deJarudóri não é única no Brasil. Pelo me-nos 17% das 382 terras indígenas que játiveram seu processo de demarcação con-cluído, isto é, que foram homologadas ouregistradas, continuam invadidas por fa-zendeiros ou posseiros, que mantêm aposse da terra.

Não fazem parte desta lista as terrasinvadidas apenas com intenção de roubode recursos naturais, como o garimpo, aextração ilegal de madeira e a pesca. Seesses tipos de invasão fossem considera-dos, a lista seria ainda maior.

São pelo menos 66 mil indígenas que,apesar de terem terras demarcadas, con-

tinuam vivendo em permanente tensãocom os invasores, que exploram as ter-ras e contribuem também para a degra-dação dos territórios.

As invasões têm históricos e conse-qüências específicas em cada terra, masuma característica constante, segundo aavaliação do Cimi, é a falta de vontadepolítica para a retirada dos invasores. Asituação se mostra pela falta de verbaspara a retirada de invasores, pela falta defiscalização e mesmo pela demora paraaplicação de recursos já destinados paraindenizações. “O procedimento que aFunai vem adotando em geral é de só in-denizar os invasores depois que os pró-

AforaPaís

A

Povo Bororo não pode viverem terra homologada

pesar de ter seu território de-marcado desde 1945, os Bororoda terra Jarudóri, no Mato Gros-so, são obrigados a viver espa-

lhados em outras terras de seu povo,porque sua área tradicional está invadi-da por cerca de 2,6 mil posseiros. No fimde junho, oito famílias Bororo iniciaramum movimento para tentar recuperar estaterra, que fica no município de Poxoréu,no sul do estado.

Elas estão acampadas em uma áreada vila Jarudore, fundada nas terras dosJarudóri. Os atuais moradores da vila te-mem perder seus imóveis, por isso há ris-co de conflitos.

Segundo a assessoria da Procurado-ria da República no Mato Grosso, boa

parte dos atuais habitantes do lugar sa-bia que a terra era indígena quando ini-ciaram suas construções. Indígenas e en-tidades indigenistas reivindicam a retira-da dos não-índios que vivem em toda aextensão de Jarudóri e em cerca de 40%da terra Teresa Cristina, ambas de ocu-pação tradicional do povo Bororo.

A decisão para a retirada depende daFundação Nacional do Índio (Funai). O pro-curador da República Mário Lúcio Avelarafirmou que vai encaminhar à Justiçauma Ação Civil Pública pedindo a reinte-gração de posse da terra dos Bororo.

HistóricoA expulsão dos Bororo foi iniciada no

início do século passado. Jarudóri faz par-

te das terras demarcadas pelo MarechalRondon, em 1912, e tinha aproximada-mente de 100 mil hectares. Na década de30, a região foi usada para a instalaçãode colônias agrícolas, como parte doPrograma Marcha para o Oeste, e oloteamento intensificou-se a partir dosanos 60. Outras áreas foram invadidas porgarimpeiros. Em 1945, o estado de MatoGrosso criou a Reserva Indígena Jarudóri,reduzindo a área demarcada por Rondonpara 6 mil hectares. A terra sofreu novaredução quando foi registrada, ficandocom 4.706 ha.

Invasões, violência e epidemias – detuberculose e sarampo - contribuírampara a saída de muitas das famílias Bororoque ali viviam.

Fazendeiros ainda invadem 16% das terras homologadas ou registradasprios indígenas os expulsam”, afirmaSaulo Feitosa, vice-presidente do Cimi.Isso prolonga os conflitos e dá margempara processos de criminalização das li-deranças.

A lista inclui terras localizadas empelo menos 16 estados. O levantamentomais completo vem de Roraima, e foi re-alizado pelo Conselho Indígena deRoraima (CIR). Lá, 18 terras registradas ehomologadas são invadidas por possei-ros e fazendeiros.

Rio Grande do Sul e Mato Grosso doSul também se destacam, com seis terrascada um, seguidos por Maranhão e Bahia,com cinco terras cada.

Terras invadidas por posseirosAlagoas, Paraíba, São Paulo 1 terra cadaSanta Catarina, Mato Grosso, Pernambuco 2 cadaTocantins, Rondônia, Paraná e Acre 3 terras cadaPará 4 terrasMaranhão e Bahia 5 terras cadaMato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul 6 terras cadaRoraima 18 terras

Fonte: Cimi e Cir

Em julho, oito famílias Bororo iniciaram um movimento para tentar recuperar estaterra e voltaram a viver em uma pequena parte dela

O seminário“Povo Boe-

Bororo:Território

Tradicional eDireitos às

TerrasIndígenas

Tereza Cristinae Jarudori”

buscousensibilizar

a sociedadecivil para as

questõesfundiárias

deste povo.Participaram

representantesdos Bororo, da

Funai, doMinistério

Público, entreoutros

México temde 15 a 25milhões deindígenas

Priscila D. CarvalhoRepórter

Brasil não é o único paísda América Latina em quedados recentes revelam aexistência de uma popula-

ção indígena maior do que a quecostumava ser contabilizada empesquisas mais antigas. No Méxi-co, que tem 103 milhões de habi-tantes, os censos oficiais contavamentre 8 e 10 milhões de indígenas.Entretanto, um estudo publicadoeste ano pelo Instituto Nacional deAntropologia e Historia (INAH)informa que existem 15 milhõesde indígenas no país.

Os levantamentos no Méxicomostram também que, dependen-do da forma como se faz o censoe dos critérios utilizados, os resul-tados mudam – e muito. O censooficial considera como indígenasapenas os cidadãos que falamidiomas tradicionais. Já o estudodo INAH inclui pessoas que seautodenominam indígenas sem te-rem, obrigatoriamente, que falaridiomas dos povos originários.Pela Convenção 169 da Organiza-ção Internacional do Trabalho, aautodenominação deve ser o cri-tério para a identificação de indi-víduos e grupos indígenas.

Para o pesquisador que orga-nizou a publicação, Miguel AlbertoBartolomé Bistoletti, o novo nú-mero demonstra uma realidadedistinta. Estas informações podemproporcionar as bases para o de-senvolvimento de políticas públi-cas mais coerentes para a popula-ção indígena. O estudo foi publi-cado no livro Visões da Diversida-de: Relações Interétnicas e identi-dades indígenas no México atual.

Segundo a organização cató-lica que atua com os indígenas noMéxico, o Centro Nacional deAyuda a las Misiones Indígenas(Cenami), a população indígenado país pode chegar a 25 ou até30 milhões de pessoas, se foremcontados também os indígenasque saíram de suas áreas de ori-gem e vivem nas cidades mexica-nas, sem abandonar sua identida-de cultural.

O

Foto

s: C

arlo

s W

erne

r e G

onça

lo O

choa

Page 13: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

13 Agosto - 2006

AMarcy Picanço

Editora do Porantim

s lutas contra o neoliberalismo epela autodeterminação dos povosforam duas prioridades nas discus-sões do primeiro Tantachawi, ou

Congresso da Coordenação Andina deOrganizações Indígenas, que ocorreu de15 a 17 de julho no histórico santuáriode Cusco, no Peru. O evento reuniu 500delegados oficiais representantes dosKichwa, Aymara, Mapuche, entre outrospovos vindos da Colômbia, Equador, Peru,Bolívia, Chile e Argentina.

A criação da Coordenação começou aser pensada quatro anos atrás, a partir deintercâmbio entre os povos que vivem naCordilheira dos Andes e da percepção deque há muitos problemas comuns que afe-tam a região. “Estão nos impondo um pla-no militar de iniciativa regional. O PlanoColômbia é para expulsar os indígenas doseu território. O Plano Dignidade, na Bolí-via, é para perseguir indígenas, campone-ses e cocaleros. Querem nos impor os tra-tados de livre comércio (TLC), a Alca, quepretende tirar nossos territórios, água e se-mentes”, explicou à Agência MingaHumberto Cholango, nomeado Coordena-dor Político da Coordenação Andina e pre-sidente da Ecuarunari, uma das entidadesque organizaram o Congresso.

A Declaração de Cusco, aprovada ao fimdo evento, rejeita a imposição dos TLC edos grandes projetos que estão ingressan-do em terras dos povos indígenas sem odevido consentimento destes. Tambémpropõe que “as instâncias internacionaisdeixem de nos invisibilizar e nos substituir,e levem em conta nossos direitos, em par-ticular que a Comunidade Andina das Na-ções e o Mercosul, em todos seus proces-sos e decisões, respeitem nossos DireitosColetivos com a devida consulta e consen-timento. Igualmente, que a OrganizaçãoMundial do Comércio (OMC) respeitenossos direitos de Territorialidade, Auto-nomia e patrimônio intelectual e cultural,e seu caráter coletivo e transgeneracional.”

AutonomiaA construção de Estados plurinacionais

e sociedades interculturais é o eixo guiada Declaração de Cusco, que inicia afirman-do: “Não queremos que os Estados nosdêem uma mão, mas sim, que tirem suasmãos de cima de nós”.

Em entrevista ao Porantim, MenthorSanchez, da Conaie, explica que os Estadosacham perigosa a luta dos povos indígenaspor autonomia, mas não questionam a atu-ação de empresas transnacionais: “Os go-vernos acham que vamos querer Estadosdentro dos Estados e vamos acabar com asoberania dos países. Mas, eles é que estãoentregando sua soberania, quando vendem

Um dos pontos centrais na agenda deatuação da Coordenação junto aos Estadosno próximo período será a luta pelo territó-rio e pela proteção dos recursos naturais.

Outro ponto importante é a questãoda participação no Estado. Miguel PalacinQuispe, líder indígena Kichwa do Peru, elei-to primeiro Coordenador Geral da Coorde-nação Andina, explica que, em relação aisto, a organização propõe uma refundaçãodos Estados incorporando as propostas dospovos indígenas que aparecem nos proje-tos políticos das organizações indígenasdos diversos países andinos. Dessa forma,se pretende alcançar um Estado Plurina-cional institucionalizado e que incorporea todos.

Outro tema da agenda é a recons-tituição e integração dos povos e naciona-lidades indígenas. Quispe disse à agênciade notícias Minga que eles acham que po-liticamente a integração entre os povostende a crescer. “Assim como os Estadosfazem acordos apenas com governos, nósfazemos acordos entre os povos”, explica.Nesse sentido, há a proposta de reconstruirpoliticamente o Tawantinsuyu (ImpérioInca, na língua quenchua) e ir integrandoos povos vizinhos em uma agenda comum,em uma prática de modelo de desenvolvi-mento baseado nos próprios povos.

Na agenda da Coordenação, tambémhá o tema da participação política indíge-na. Quispe considera que os povos indíge-nas devem participar dos governos desdeos níveis locais da administração até as ins-tâncias nacionais, com uma práticaparticipativa da democracia inclusiva, queé a demandada pelos povos.

Uma das primeiras tarefas da Coorde-nação é a difusão da Declaração de Cusco.Em seguida, devem fazer com que todasas instâncias dos governos dos paísesandinos saibam que agora existe uma or-ganização para representar os povos indí-genas da região. O Congresso fundador daentidade foi organizado pela Ecuarunari,do Equador, pela Conacami, do Peru, pelaConamaq, da Bolívia, pela Onic (Colombia)e pela Citem (Chile). 13 Agosto - 2006

Encontro noPeru reúne líderesindígenas dospovos andinosO evento fundou a Coordenação Andina deOrganizações indígenas e definiu suas prioridades

Ameríndia

para empresas de outros países o direito deexplorar os seus recursos naturais ou quan-do transferem um grande volume de dinhei-ro para outros países. Não sei que sobera-nia é esta”.

Ele afirma que os povos indígenas que-rem a autonomia porque são diferentes:“Por exemplo, temos uma relação com aterra diferente da que os países do ociden-te têm. Não a destruímos, não a tratamoscomo capital”. Ele destaca que os povoslutam pelos seus territórios e para prote-ger os recursos naturais que têm sido ame-açados por projetos governamentais ouempresas privadas transnacionais que ex-ploram petróleo, gás, madeira e até água.

BlancaChancoso eBoaventura deSouza Santosparticiparamdo evento quereuniu 500delegados dediversasorganizaçõesindígenas daAmérica doSul

Foto

s: A

LAI e

Sim

one

Brun

o/M

inga

Info

rmat

iva

Page 14: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

14Agosto - 2006

A VIDA DOS POVOS

Geertje van der Pás*Repórter

ndando pelas ruas da cidade deLábrea, em bairros afastados e es-pecialmente no centro, deparamo-nos a todo instante com homens,

mulheres, jovens, crianças de estatura baixa,cabelos escuros e lisos e olhos amendoados.São indígenas ou descendentes diretos devários povos que habitam as margens doPurus ou as periferias da cidade. A maioria édo povo Apurinã.

Eles vêm à procura de tratamento médi-co, emprego, para receber algum benefíciodo governo como aposentadoria, bolsaescola, auxílio, família… A grande parte dosíndios que procura emprego, não encontra.Muitos deles fazem carvão para vender.Outros pescam, plantam roças nas margensdo rio, roçados em terra firme e tentam sus-tentar toda a família. Alguns vivem há muitotempo em Lábrea, há mais de 40 anos; ou-tros, há alguns meses.

Numa caminhada por um dos maioresbairros da cidade, chamado Fonte, onde há amaior concentração de indígenas, encontra-mos o senhor Edivar Apurinã, que vive nacidade há mais ou menos quinze anos. “Nãoestou satisfeito aqui, venho porque minhafamília está toda aqui. Mas acharia melhor sea minha família estivesse toda na aldeia, masos filhos estão estudando, eles vão somentenas férias.”, diz Edivar Apurinã. “Tenho orgu-lho de ser índio e jamais escondo a minhacondição. A melhor coisa é estar lá na aldeia,porque aqui na cidade não tem como agente sobreviver. Na aldeia, nós temos tudoe é nosso.”

Um outro Apurinã, chamado Juraci, ouvea discussão e complementa: “Entre a aldeia ea cidade, eu não troco um por outro, pois sena aldeia tem facilidades, como a alimenta-ção, aqui na cidade tem facilidades pelo ladoda saúde. Eu não preciso descer o rio reman-do, aqui tem tudo e é perto.”

Porém, conversando com os índios quemoram na cidade, pode-se perceber que ape-sar de tantos anos longe de suas aldeias, elesnão esqueceram uma das atividades mais im-portantes que herdaram de seus antepassa-dos: a medicina tradicional.

Nas florestas, as populações podem en-contrar grande parte do que precisam parasobreviver, desde os alimentos até os remé-dios. As ervas existentes são, na maioria,

Os Apurinã na cidade de LábreaVivendo na cidade há anos, eles ainda preservam sua medicina tradicional

A

“Ele nunca deixava as doenças atingirem agente. Quando a gente pega gripe, não é comantibiótico que a gente vai se curar. A gentefaz o tratamento caseiro. Mesmo porque agente sabe que fortalece a gente. Tem tipode doença que a gente sabe que é pra essetratamento de medicina branca. E tem tipode doença que… por exemplo: um mosquitodá uma ferrada em mim. Se aquela doençapassa mais ou menos um mês, a gente já sabeque é arabani. Daí que a gente sabe que tipode doença a gente tem, e sabe que foi algumpajé que colocou. A gente sabe que a doençaé causada por algum espírito quando a pes-soa começa a fazer certas coisas que não sãonormais.”

*A partir de trechos do relatório “Indios nacidade: uma nova face e um novo desafio”do missionário Hoadsom Leonardo Silva,da equipe Lábrea-AM, elaborado para ocurso de formação básica do Cimi.

Os remédios,feitos de

animais eplantas, sãousados não

apenas pelosApurinã, mas

por algunsmoradores sem

acesso aremédios

industrializados

Foto

s: C

imi /

Equ

ipe

Lábr

ea

Algumas das ervas mais usadas pelos Apurinã que vivem em Lábrea

• Alfavaca, jambú, casca de jatobá, casca de uxí, óleo de andiroba, copaíba,corâma, malvavisco (malva), hortelã = para fazer xarope para curar gripe;

• Casca de goiabeira e de castanheira = para fazer chá para curar diarréia;• Banha de taíra = pinga-se no ouvido para curar dor;• Banha de cobra sucuriju e de jacaré = fricciona-se no local afetado para

curar reumatismo;• Chá de cupim = para curar inchaço.

• As primeiras referências aos índiosApurinã foram dadas por algumasexpedições em meados do séculoXIX (1852, 1861, 1862 e 1866).

• Os Apurinã estão distribuídos portodo o rio Purus, nos estados deRondônia e Amazonas.

• No Amazonas, eles somamaproximadamente 3100 pessoas,vivendo em 35 terras indígenas.Em Rondônia, são 100 pessoas,todas na terra indígena Roosevelt.

• Na cidade de Lábrea moram maisou menos 300 famílias Apurinã,

• Embora 80% de suas terrasestejam demarcadas, continuamas invasões, principalmente porpeixeiros e madeireiros.

• A língua materna é Apurinã. É dafamília Aruak.

conhecidas pelos pajés. Pela tradição herda-da dos antigos, eles conseguem ajudar seupovo a se livrar de muitos tormentos.

Na cidade, é muito comum a utilizaçãodos remédios naturais, feitos de plantas e deanimais, ou a procura por benzedores. É mui-to mais que, simplesmente, a tradição herda-da dos pais e avós. Muitas vezes, é uma ques-tão de sobrevivência, numa sociedade ondenem todos têm condições de se beneficiar damedicina ou comprar os remédios prescritospelo médico.

Em Lábrea, os Apurinã sempre falam so-bre o conhecimento dos remédios tradicionais.Uma das histórias é sobre como eles se previ-nem contra picadas de cobra: se os pais en-contram uma colméia de abelhas na mata, elesrecolhem toda a colméia e passam no corpoda criança. Uma proteção para toda a vida.

Rosana Apurinã fala sobre o avô dela. Eleera pajé e morava na cidade, mas já morreu.

Page 15: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

15 Agosto - 2006

Resenha

P R E Ç O S

Ass. anual: R$ 40,00 *Ass. de apoio: R$ 60,00 América Latina: US$ 25,00 Outros países: US$ 40,00

* Com a assinatura de apoio você contribui para o envio do jornal a diversas comunidades indígenas do País.

Envie cópia do depósito bancário para o fax (61) 2106-1651, especificando a finalidade do mesmo.

Para fazer a sua assinatura, envie vale postal ou cheque nominal em favor de Cimi/Porantim:(somente por meio de carta registrada)

Caixa Postal 03679 - CEP: 70.084-970 - Brasília-DFInclua seus dados: Nome, endereço completo, telefone, fax e e-mail.

Se preferir faça depósito bancário: Banco Real Ag: 0437 C/C: 7011128-1 - Cimi-Porantim.

Assine o

Faça sua assinatura pela internet: [email protected]

Impunidade

STF dá liberdadepara acusado demandar matarIrmã Dorothy

o dia 29 de junho, a primeira turmado Supremo Tribunal Federal (STF)concedeu habeas corpus para o em-presário Regivaldo Pereira Galvão. Ele

estava preso e é acusado de ser um dos man-dantes do assassinato da Irmã Dorothy Stang,ocorrido em Anapu, no Pará, no dia 12 de fe-vereiro de 2005. Galvão poderá aguardar emliberdade o julgamento. Esta decisão contra-riou todas as resoluções anteriores das ins-tâncias mais próximas do caso (no municípioe no estado).

O relator do caso no STF, ministro CezarPeluso, em seu voto, considerou “a prisão pre-ventiva absolutamente ilegal”, alegando queela não pode ser utilizada como antecipaçãoda pena e como justificativa para a “sedede vingança coletiva”. O voto de Peluso foiacompanhado pelos ministros SepúlvedaPertence e Marco Aurélio Melo. Votaram con-tra o habeas corpus, os ministros RicardoLewandowski e Carlos Ayres Brito.

Em nota, a Comissão Pastoral da Terra,lembrou que esta liberdade poderá ser apro-veitada para a intimidação das testemunhasde acusação. Além disso, pode significar aimpunidade, porque o empresário tem condi-ções econômicas para fugir.

O estado do Pará tem uma históriamarcada pela impunidade em relação aos cri-mes ocorridos no campo. A CPT do Pará en-tregou ao presidente do Tribunal de Justiçado Estado uma relação de 774 assassinatosocorridos no estado nos últimos 35 anos. Des-se total, em cerca de 70% dos casos não houvequalquer apuração sobre a responsabilidadepelos crimes. Não há um mandante sequerdesses crimes condenado e cumprindo penaatrás das grades.

N

Benedito PreziaSão Paulo : Expressão Popular96p. R$3,00

itando o filósofo Walter Benja-min: “A história é um profeta como olhar voltado para trás. Peloque foi e contra o que foi, anun-

cia o que será”, o autor mostra, nessa pers-pectiva, seu interesse em escrever a bio-grafia de Marçal Tupã-i, para que sua figu-ra não ficasse esquecida.

Desde as primeiras décadas do sécu-lo passado, há registros do sofrimento dopovo Guarani. O livro destaca a violênciada qual esse povo sempre foi alvo, os se-guidos assassinatos cometidos pelos“bugreiros” para “limpar a área” a fim deque as terras fossem mais facilmente ocu-padas pelos fazendeiros. Por outro ladoeram utilizados como mão-de-obra bara-ta. Curt Nimuendaju, o grande pesquisa-dor alemão, escreveu num relatório, em1913: “(Os Guarani) constantemente sãoameaçados de morte se eles tentam aban-donar as fazendas onde trabalham. E queisso não é mera invenção deles ou ameaçavaga, provam os numerosos assassinatos...... sem outro motivo como ódio ao “bicho”ou qualquer conta fantástica (contraída nosarmazéns das fazendas).”

Nesse contexto de violência e explo-ração nasceu Marçal, a 24 de dezembro de1920, recebendo o nome de Tupã-i, o pe-queno Tupã, o pequeno senhor do trovão.Acompanhamos a trajetória de Marçal, suasidas e vindas desde a vivência na culturaocidental e a vida evangélica, quando che-gou a ser pregador até sua volta às ori-gens, o retorno à sua identidade étnica “ocaminho de volta ao ser guarani”. Senti-mos como sua vida foi afetada pelo golpede 1964, quando a ditadura militar repre-sentou um reforço do poder dos fazendei-ros e dos grandes grupos econômicos,época em que a questão indígena foi con-siderada de segurança nacional, pois mui-

tas reservas ficavam em áreas estratégicas,em regiões de reserva mineral ou de fron-teira.

Engajado na luta pela sobrevivência deseu povo, sofreu perseguições sendo obri-gado a deixar o lugar onde exercia seu tra-balho de enfermeiro. Mas nunca desistiuou se intimidou e suas mensagens eramfirmes nas denúncias sobre a situação desofrimento a que os Guarani-Kaiowá e to-dos os povos indígenas do Brasil estavamsubmetidos.

Após a participação em várias assem-bléias indígenas, Marçal sentiu a necessi-dade de se criar uma organização indíge-na de âmbito nacional. Em junho de 1980,no Mato Grosso do Sul, foi criada a UNI,União das Nações Indígenas. Durante asreuniões para que se estruturasse essa or-ganização, se discutiu e aprovou a ida deMarçal a Manaus para que representasseos povos indígenas no seu discurso ao PapaJoão Paulo II. Em outubro daquele ano,com uma voz clara e firme, diante da mul-tidão silenciosa que se aglomerava em

frente ao palácio episcopal deManaus, Marçal fez, não umdiscurso de saudação, mas sim,uma denúncia da situação emque viviam os povos indígenasnaquela época, sintetizando500 anos de violência contraesses povos:

“Eu sou representante dagrande tribo guarani, quando,nos primórdios, com o desco-brimento desta pátria, nós éra-mos uma grande nação. (...)Somos uma nação subjugadapelos potentes {poderosos},uma nação espoliada, uma na-ção que está morrendo aospoucos sem encontrar cami-nho, porque aqueles que nostomaram este chão não têmdado condições para a nossasobrevivência. Nossas terras

são invadidas, nossas terras são tomadas,os nossos territórios são diminuídos. (...)Queremos dizer a Vossa Santidade a nos-sa miséria, a nossa tristeza pela morte dosnossos líderes assassinados friamente poraqueles que tomam o nosso chão(...)”.

A publicação do Cimi “Violência con-tra os povos indígenas – 2003/2005”,lançada neste ano, mostra que após 27anos do discurso de Marçal ao Papa JoãoPaulo II, o povo Guarani-Kaiowá continuaa viver sob o signo da violência – assassi-natos, invasão de suas terras, morte pre-matura de suas crianças, despejos injus-tos de seus territórios, suicídios.

E foi também num contexto de vio-lência que ele foi assassinado em 1983, trêsanos após ter discursado para o Papa. Masa voz e a mensagem de Marçal não foramsilenciadas com sua morte. Seu ideal foimantido por lideranças que se sucedem naluta pelo direito à terra e a uma vida dignapara seu povo.

Leda BosiSedoc

Marçal Guarani – A voz que não pode ser esquecida

C

Page 16: ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA...de pertencer a uma comunidade ou na-ção indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas edu-cacional, de informação,

16Agosto - 2006

APOIADORES

UNIÃO EUROPÉIA

16

ntre os muitos povos do médio Amazonas queresistiram à conquista portuguesa, destacou-seo povo Manau, que vivia na região do baixo RioNegro.

O casamento do sargento GuilhermeValente, comandante da fortaleza de São José

do Rio Negro, com a filha de um importante caciqueManau, em 1675, facilitou a presença portuguesa,sobretudo o tráfico de escravos indígenas, irritandolideranças nativas que passaram a discordar dessa prática.

Isso ocorreu com Ajuricaba, filho de Huiuebene, quese retirou com um grupo de guerreiros para o interior. Amorte do pai, vítima de conflitos com os portugueses,causada por desacordo sobre preço desse infamecomércio, motivou o retorno desse líder, que passou aliderar seu povo.

A REBELIÃO DE AJURICABAArticulando-se com lideranças Mayapena, povo do alto

Rio Negro, Ajuricaba conseguiu fazer uma grande frentede resistência, desencadeando uma guerra em 1723, queduraria quatro anos.

Fortificando suas aldeias, passaram a atacar a fortalezado Rio Negro e algumas missões. Para isso tiveram o apoiodos holandeses, que, interessados na região, ofereceramarmas de fogo, além de outras armas obtidas em confrontocom os portugueses.

O governador do Pará hesitava organizar umaexpedição punitiva, pois não tinha certeza de vitória. Issopossibilitou uma negociação entre as partes, sugeridapelos jesuítas, que tentavam ganhar tempo e recuperarindígenas das missões, que estavam no poder dosrebelados. Selou-se um tratado de paz, havendo troca deprisioneiros: 50 indígenas das missões seriam barganhadospor 50 guerreiros Manau que estavam em poder dosportugueses. De sua parte Ajuricaba se comprometia tirara bandeira holandesa que tremulava em seu barco, quepara ele seguramente não passava de um enfeiteprovocativo.

O tratado de paz durou pouco, pois notícias vindasda região diziam que os conflitos haviam recomeçado. Ogovernador mandou um pequeno exército, equipado atécom canhão, para enfrentar os rebelados.

Depois de um cerco de vários dias, a fortaleza indígenacaiu sob o poderio das armas de fogo. Ajuricaba e mais300 guerreiros foram presos, e conduzidos em barcos paraBelém.

No meio da viagem, houve um motim. Como diz orelato do comandante da expedição “ele [Ajuricaba] eoutros homens levantaram-se na canoa, onde estavamsendo conduzidos, agrilhoados, e tentaram matar ossoldados. Estes sacaram suas armas e feriram alguns delese mataram outros. Então Ajuricaba saltou da canoa para aágua, com outro chefe, e jamais apareceu vivo ou morto”.

Ajuricaba, atirando-se nas águas do Amazonas, entroupara a história, como um dos heróis mais importantes daresistência indígena na Amazônia.

Benedito Prezia

E