d. frei bartolomeu dos mártires

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FREI RAÚL DE ALMEIDA ROLO, O.P. VENERÁVEL D. FREI BARTOLOMEU DOS MÁRTIRES O “ARCEBISPO SANTO” 1957 [ Revisão em 2014 ]

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FREI RAÚL DE ALMEIDA ROLO, O.P.

VENERÁVELD. FREI BARTOLOMEU

DOS MÁRTIRES

O “ARCEBISPO SANTO”

1957[ Revisão em 2014 ]

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NOTA PRÉVIA

“O último e principal biógrafo bartolomeano” – assim sereferia, no passado dia 10 de Julho de 2014, em sessão realizada naAcademia das Ciências em Lisboa, o Prof. Artur Anselmo àqueleque “em vida se chamou Frei Raúl de Almeida Rolo”. Foi estafigura simples, austera, quase apagada e ingénua que, já nosrecuados anos oitenta, introduziu muitos de nós na veneração dafigura de Bartolomeu dos Mártires quando, já na etapa final dosseus estudos sobre a vida e obra do agora Bem-AventuradoBartolomeu dos Mártires, passou várias temporadas em Viana doCastelo.

Mesmo que esta pequena biografia do Bracarense anteceda amaior e mais significativa publicação da colossal obra que Frei Raúldeu à estampa, a partir dos primeiros contactos com os manuscritosbartolomeanos, já aqui encontramos aquilo que, com maior rigorhistórico, se pode dizer acerca do seu biografado. De facto, nãotemos aqui a dimensão romanceada e marcadamente apologética deFrei Luís de Sousa na sua Vida do Arcebispo, como não nosdeparamos com a visão polémica e um tanto enviesada da figura“puramente humana” de Frei Bartolomeu, pintada pelo vianenseJosé Caldas, já então contestado por Camilo com a sua mordacidadetípica; também não temos aqui o humor de Aquilino Ribeiro que vaicontando a história de um bonacheirão Dom Frei Bertolameu,calcorreando a passo acelerado as veredas das montanhas do Gerêspara desespero dos extenuados acompanhantes, ou a velocidade damula Águia no regresso de Roma a Trento; menos ainda temos otom oratório de Mons. José de Castro, o feliz descobridor doDecreto cuja publicação o Papa Gregório XVI ordenara já em 23 deMarço de 1845, reconhecendo oficialmente as virtudes heroicas doServo de Deus, que, a partir de então este autor se orgulhava deapresentar como Venerável, em primeiríssima mão.1

1 MONS. JOSÉ DECASTRO, D. FreiBartolomeu dos Mártires eoutros escritos sobre oVenerável, Presbyterium,Bragança, 2014. EsteDecreto esteve perdido,ignorando-se mesmo a suaexistência durante umséculo, de 1845 a 1845. Foidurante as suas investiga-ções sobre os portuguesesno Concílio de Trento comque elaborou uma obramonumental que estedeparou com a surpresa dadescoberta, tal como contana obra aqui referida.

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O contacto que, por diversas vezes e pelos mais variadosmotivos, tive que manter com algumas das obras de FreiBartolomeu, as suas intervenções no Concílio de Trento ou asdémarches do notável e corajoso Arcebispo no Concílio Provincialde Braga e perante os seus cónegos, ajudou a crescer a sementeoutrora semeada por Frei Raúl, mas esquecida no meio das pedrasde outros afazeres, eventualmente abafada pelos espinhos dealguma insensibilidade, mas não comida pelos pássaros daindiferença. Do Estímulo dos Pastores lido e relido, ao Catecismo,da constatação da sua acção social ou da formação e acçãointelectual, cotejando mesmo os seis colossos dos EscritosTeológicos, não sem passar pelo Compendio de Doutrina Espiritual,tudo ajudou a reler agora esta Vida do Bem-Aventurado Bartolomeudos Mártires numa perspectiva mais atenta e cuidada, a partir dolivrinho que agora propomos, em moderna forma, como aperitivopara uns, como prato forte para aqueles que não poderão ir maislonge, como sobremesa para os já conhecedores da figura e da obrado Santo Arcebispo.

Gostaríamos de manter a fidelidade ao texto original de FreiRaúl, apesar da tentação de rever alguma coisa aqui, acrescentar umpormenor ali. Por isso não fomos mais longe que uma meracorrecção de algumas gralhas, uns retoques na pontuação, algumasdicas e notas de rodapé, enfim, nada de especial. Assim, face aocontexto das Comemorações Centenárias em que esta singelainiciativa de facilitar uma biografia breve e séria se insere, comoface a alguns dados que entretanto foram sendo facultados, nãodeixámos de acrescentar breves apontamentos no sentido de,eventualmente, aguçarmos o apetite ou estimularmos a curiosidadedos nossos leitores para um mais profundo conhecimento e estimada figura ímpar que foi Bartolomeu dos Mártires. Um homem que“não conformado com este mundo”, “ardeu” intensamenteaquecendo as sessões da última etapa do Concílio de Trento,espalhou ou seu fogo pelas mais de mil e duzentas paróquias daDiocese de Braga [com Viana do Castelo, Vila Real e grande partede Bragança] e continua a “iluminar” a Igreja de hoje, com uma

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chama agora particularmente espevitada pela “originalidade” doPapa Francisco. Escrevo entre aspas porque, depois de se conhecera vida e acção de Frei Bartolomeu e de ler os seus escritos, se podever que há mais de quatrocentos anos já alguém tinha as ideiasapregoadas agora por tantos como surpreendentemente originais…

E todos nós sabemos o quanto isso lhe custou…

Viana do Castelo, 17 de Setembro de 2014P. Jorge Alves Barbosa

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No ano de 1945 acendeu-se um fogo novo à volta de uma dasmais prestigiosas figuras de homem e de santo que Portugal deu àhumanidade e à Santa Igreja: o Venerável D. Frei Bartolomeu doaMártires.

Um Investigador de renome, Mons. José de Castro, encontrouem Roma um Decreto da Sagrada Congregação dos Ritosdeclarando a heroicidade das suas virtudes. Foi providencial estadescoberta, pois fazia precisamente um século da sua promulgação.As circunstâncias religiosas e políticas do tempo dessa notávelpromulgação eram adversas e fizeram passar o facto sem o realcemerecido. Assim não sucedeu agora quando esse mesmo Decreto,foi arrancado à sombra do esquecimento. Quando Mons. José deCastro se empenhou em ser “carrilhão da glória de FreiBartolomeu”, Portugal caiu de joelhos e levantou o coração a Deusa pedir os milagres necessários para a glorificação sobre os altaresdaquele que em vida foi por todos considerado e altamenteproclamado “SANTO”: livros, conferências, revistas e jornais,novenas e preces têm levado a todos os cantos de Portugal a notícia,o conhecimento e a devoção do grande Servo de Deus que foi oVenerável D. Frei Bartolomeu dos Mártires.

Trajectórias de uma vida

Nasceu o Venerável Bartolomeu dos Mártires em Lisboa, a 3de Maio de 1514, com o nome familiar de Bartolomeu Fernandes, aque depois acrescentaria “do Vale”. Bem cedo sentiu o chamamentode Deus a uma vida mais perfeita, nomeadamente quando, na idapara a escola, acompanhava o seu avô já cego para a Igreja deNossa Senhora dos Mártires, atravessando o actual Chiado. Asensibilidade particular daquele “menino dos olhos tortos” como erareconhecido e as orações do avô que o confiava aos cuidadosmaternais de Maria, orando enquanto o pequeno recebia as lições degramática, haveriam de lançar os alicerces de uma personalidademarcante e de uma vocação religiosa. Por isso mesmo, cedo sedeslocou ao convento de S. Domingos de Benfica, no dia de São

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Martinho de 1528, onde se confrontou com a oposição e as dúvidasdo respectivo Prior, espantado com a vontade daquele adolescenteem seguir a vida de austeridade própria da ordem dominicana.Deveria então preparar-se para: abstinência perpétua, jejunsprolongados, vigílias frequentes, grande pobreza no vestir,limitações no dormir, tudo propostas capazes de quebrar asnaturezas mais robustas quanto mais a de um adolescente de 14anos.

Perante esta desafiadora proposta, respondeu: “Padre,trabalhos busco e aborreço mimos; por fugir de mimos que mesobejam e provar trabalhos que desejo e sei que para a salvação mesão necessários, busco a vida religiosa. Não temo esses, nem meassustam outros maiores, porque que não há corpo fraco onde ocoração é forte”. E aqui se definia o seu verdadeiro programa devida, um programa que o haveria de marcar até ao fim dos seusdias.

Veio, por isso, a fazer a sua profissão dominicana no anoseguinte, a 20 de Novembro, mantendo o nome de Batismo eacrescentando “do Vale” em memória do seu avô, que depoismudaria para “dos Mártires” por devoção à padroeira da suaparóquia. Frei Bartolomeu dos Mártires distinguiu-se desde oprincípio pela piedade e talento. A carreira dos seus estudos – quese estendeu de 1529 a 1537 – foi brilhante e os superioresdistinguiram-no com a inscrição entre os alunos do colégiouniversitário que El-Rei D. Manuel fundara no convento de S.Domingos, sob o Patrocínio de São Tomás de Aquino.

Em Setembro de 1537, passou Frei Bartolomeu o exame deLeitor de Artes e Teologia, ficando a leccionar Filosofia no mesmocolégio onde acabava de ser aluno. Daí passou ao Mosteiro daBatalha para reger essa mesma cátedra, nos estudos gerais que aOrdem de S. Domingos aí criou em 1540. Foi neste grande mosteiroque ele acabou de temperar a sua alma no saber profundo e virtudesólida, apanágio da sua acção extraordinária na Igreja de Deus.

Por volta de 1542 já D. Frei Bartolomeu passara da cátedra deFilosofia à de Teologia, a qual lhe absorveu o resto da sua longavida de professor. Durante catorze anos consecutivos a Teologia foi

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a grande preocupação da sua alma. Os volumosos códices das suasnotas doutrinais, ainda hoje conservados, dão pleno testemunho degrande saber, da profundidade do seu espírito e da inflamada unçãocom que explicava os mistérios de Deus. Em 1545, o Rei D. JoãoIII passou um alvará declarando as aulas de D. Frei Bartolomeu,dadas na Batalha, válidas para o grau de Licenciatura em Teologia,como se tivessem sido dadas numa universidade pública. O seuprestígio de grande saber acrescentou-se cada vez mais, a ponto deo Capítulo da Província de S. Domingos de Portugal o propor parao grau de Mestre em Teologia ao Capítulo Geral que a Ordem iareunir em 1551 na cidade de Salamanca. D. Frei Bartolomeu foi, eas suas provas de grande teólogo, dadas no Capítulo, foram tãobrilhantes, que o título de Mestre2 lhe foi concedido, no meio dosmaiores elogios: “suficiência de doutrina e destreza de engenho”.

Regressando a Portugal, continuou como professor noMosteiro da Batalha até que, em 1552, foi para Évora a convite doPríncipe D. Luís, para ser o mestre de seu filho D. António, futuroPrior do Crato. A chegada do famoso mestre foi celebrada comentusiasmo, elevando imediatamente o nível dos estudos, a ponto deos Padres Jesuítas, que assistiam também a essas aulas, escreverempara Roma a Santo Inácio dizendo que “com um mestre que agoranos veio de novo, homem muito douto, da Ordem de S. Domingos,se melhoraram muito os estudos”.

“Contemplata aliis tradere”[ transmitir aos outros as coisas contempladas ]

O Venerável Bartolomeu dos Mártires, alma de perfeito Domi-nicano, nunca deixou de dar aos seus estudos e ensinamentos umafeição apostólica. Juntamente com o diploma de professor, foi-lhedada a faculdade de pregador e, nos seus escritos, encontram-sefrequentes vestígios da sua actividade apostólica directa junto dasalmas. Sabemos que trazia sempre escrito num pequenino caderno:“De estudo sem devoção e de pregação sem preceder oração poucoproveito se pode esperar”. No seu ensino, ora explicaabreviadamente a matéria, “porque não há tempo para a expor

2 O grau académico de Mestrecorresponde ao actual título deDoutor em Teologia, conferidono dia 17 de Maio de 1551nesse Capítulo Geral da OrdemDominicana em Salamanca.

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artigo por artigo” como ele próprio confessa, ora faz uma citação decor sem tempo de ir conferir o lugar exacto, remetendo os alunos“ao 3.º ou 4.º artigo”, de determinada questão da Suma Theologicade São Tomás de Aquino.3 Ao chegar à doutrina sobre o pecadooriginal, confessa mais expressamente que toca apenas algumasdificuldades, e brevemente, porque vários assuntos urgentes lhe nãopermitem escrever mais por extenso. O Venerável Frei Luís deGranada, que sabia bem de sua vida, como Superior e grande amigoque era do Venerável Bartolomeu, diz-nos claramente que essasocupações eram as necessidades das almas, a que poderíamosacrescentar a solicitude pelos pobres, ao afirmar que ele tevecomunicação com algumas pessoas espirituais e praticando,algumas vezes, com elas, aperfeiçoou mais os seus conhecimentosda Teologia Mística; e, noutra passagem, afirma mais claramenteque, em S. Domingos de Lisboa, D. Frei Bartolomeu “se achavainquieto com muitas ocasiões de negócios e visitas...”

Arcebispo Primaz

Homem notável pelas suas qualidades de espírito e de carácter,não faltou quem lembrasse à Rainha D. Catarina o nome de FreiBartolomeu, então Prior do Convento de São Domingos de Benfica,para suceder a D. Frei Baltazar Limpo na Mitra Primacial dasEspanhas. Boa e bem aceite foi a sugestão dada Por Frei Luís deGranada à Rainha. A dificuldade veio depois quando se tratou delevar D. Frei Bartolomeu a conformar-se com ela. Profundamentehumilde, ele fez quanto pôde, junto da Rainha e de todos, para nãoter de suportar a mitra bracarense. Só a obediência ao seu Superioro fez ceder à eleição para tão alta responsabilidade e dignidade.Obedeceu, mas a aflição foi tamanha que o fez cair gravementedoente. A cena dramática em que, diante de todos os frades doconvento, Frei Luís de Granada lhe impõe, por obediência, queaceite imediatamente o Arcebispado, teve lugar no coro de S.Domingos de Lisboa, em 8 de Agosto de 1558. D. Frei Bartolomeuvergou e prostrou-se diante da obediência devida ao seu superior,aceitou o ofício como uma camisa de forças – uma “braga”, dizia

3 A Suma Theológica de SãoTomás de Aquino, juntamentecom as Sentenças de PedroLombardo e respectivoscomentários eram as grandesreferências do ensino daFilosofia e da Teologianaqueles tempos. Os EscritosTeológicos de Frei Bartolomeudão-nos conta de “notas”pessoais colocadas à margemdesses escritos, comoreferências para os alunos ouentão textos a serem ditados.

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ele jogando com o nome da Arquidiocese – que carregou quase atéao fim da sua vida, sendo a comoção do momento tão profunda que,em Novembro seguinte, os Jesuítas do colégio de S. Roquenotificavam para Roma que o Arcebispo ainda estava “mal dis-posto”. Esta doença e a lentidão dos negócios, própria do tempo,fizeram com que a confirmação papal só tivesse lugar em 27 deJaneiro de 1559, que a concessão do pálio fosse feita no consistóriode 6 de Março, vindo a sagração a ter lugar, mais de um ano depoisda eleição, em 3 de Setembro, na igreja de S. Domingos em Lisboa.

O Bom Pastor

A acção pastoral do Venerável D. Frei Bartolomeu dosMártires marca toda a profundeza do arrojo e virtude da sua grandealma e revela o rasgo mais característico da sua santidade. A páginapastoral do Arcebispo é das mais sublimes que os heróicos anais devinte séculos de cristianismo nos legaram. O Venerável era, antes detudo, um pastor de almas, e todo o resto da sua vida pastoral nãoteve outro sentido senão o de se dar todo pelas suas ovelhas.Conhecedor das grandes necessidades da sua Igreja, imediatamentepensou em reorganizar e aperfeiçoar os estudos do Colégio de S.Paulo e, como ele escreve, voltou logo os olhos para os Padres daCompanhia de Jesus como coadjutores seus na obra do Senhor.Alguns anos depois, o colégio albergava mais de mil alunos.

Para pregar a Palavra de Deus e ensinar Teologia na Sé e noPaço, levou quantos dominicanos lhe pôde dispensar o Provincial,de que são bem conhecidos os nomes, alguns ilustres, de Diogo doRosário, Jerónimo Borges, António Pegado, Melchior de Monsanto,Diogo de Leiria, Reginaldo de Melo e João de Leiria, que foi obraço direito do Arcebispo enquanto viveu. Para socorrer maispermanentemente a cidade de Viana do Castelo, fundou nela oconvento, de Santa Cruz, onde os seus irmãos de hábito seriamcomo que embaixadores do seu zelo e vigilância junto das almas.Canalizando para o Convento de Santa Cruz de Viana muitos dosrecursos materiais e humanos do Convento de São Salvador daTorre, procurava o Arcebispo enfrentar os diversificados problemas

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com que a cidade de Viana se confrontava na sua relação com omar, o comércio marítimo, o considerável movimento de pessoas emercadorias com todas as vantagens e perigos que isso envolve:naufrágios, pirataria, roubos, prostituição, ao lado de especiaiscondições de enriquecimento nem sempre lícito.

Mas Frei Bartolomeu foi sempre o primeiro a agir. Ele nuncaconsentiu governar o seu rebanho de longe, mas queria, como bome solícito pastor, chamar a todas as suas ovelhas pelo próprio nomee que todas elas conhecessem a sua voz. Por isso fez sempre pes-soalmente a visita pastoral da Arquidiocese de três em três e dequatro em quatro anos, quando já mais acabado, não havendo nemfrios, nem chuvas, nem intempéries, nem calores estivais que lhebarrassem o caminho até das mais escarpadas penediastransmontanas, nem muito menos, as objecções dos seuscolaboradores assustados com os riscos do frio e da neve e até comoo facto de São Geraldo ter morrido lá para as bandas do Barroso aopretender enfrentar o seu rigoroso inverno. Pelos vistos, desde entãonunca o Arcebispo de Braga lá tinha voltado. Pois foi precisamente,no coração do inverno de 1560 que Frei Bartolomeu saiu para avisitação e, em 4 de Fevereiro, atestam os Padres Jesuítas que oArcebispo “anda muito ocupado nas coisas do arcebispado”. EmJulho seguinte, atestam de novo que ele “anda visitando”.4

Numa carta ao Papa Gregório XIII, diz D. Frei Bartolomeu quepassa “a maior parte do ano” visitando a sua Igreja. No fim do seugoverno, quando recebe a notícia de que lhe foi aceite a resignaçãodo Arcebispado, ainda é “andando visitando a comarca de Valençado Minho”,5 como o próprio Venerável atesta, que essa carta lhechegou.

Pai dos Pobres

No seu paço episcopal escolheu um pequeno quarto com umacama feita de “três tábuas mal lavradas, atravessadas sobre doisbanquinhos do mesmo tipo; por cima, uma enxerga de palha e, emcima dela, um colchão de pano grosso que já trouxera do seuconvento. Possuía, na mesa de cabeceira, uma pequena escudela

4 Não deixa de ser deliciosa aforma bem humorada comoAquilino Ribeiro, em Dom FreiBertolameu, relata uma dasvisitas do Arcebispo que eletransfere para a região doGerês. É que ali ao menosainda lhe pôde proporcionar aAbadia de Bouro pararetemperar forças… até FreiBartolomeu se lembrar decontinuar viagem paradesespero dos seus acompa-nhantes, mulas incluídas…

5 Mons. José de Castro colocao Arcebispo em visita a Trás-os-Montes aquando dachegada da carta deresignação ao passo que JoséMarques fala de Viana da Fozdo Lima.

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com água que deitava nos olhos para não adormecer durante oestudo ou a oração. Alimentava-se particularmente de pão, água elegumes.6 À porta do paço há milhares de visitantes certos: são osseus pobres. Mas os pobres mais pobres são os que lá não vão, sãoos deserdados da fortuna a quem a vergonha impede de estender amão. D. Frei Bartolomeu manda secretamente tirar informação edar remédio. Alguns nomes destes protegidos chegaram até nós,como o da família de D. Filipa de Sá e de D. Isabel Henriques.Àquela e à sua filha Antónia, viúva, e aos demais de sua famíliadava, por meio dos Padres do Colégio de S. Paulo, esmola “quechegava para comer”, e a Isabel Henriques, depois de “amparadaem vida, deixou-lhe no testamento dez mil reis anuais para a suasustentação”. São encantadores os ditos e as cenas que se contamacerca da generosidade de Frei Bartolomeu, algumas quaseanedóticas como quando os cónegos de Braga lhe queriam fazeruma estátua e ele respondeu: “Vocês são piores que o diabo quequeria que Jesus transformasse pedras em pão, pois queremtransformar o pão dos pobres em pedras…”

A sua misericórdia e solidariedade para com os mais miserá-veis teve a suprema consagração na peste de 1570. Ao saber que acidade estava infestada, corre a ela como quem acode a fogo. Che-gam cartas de D. Sebastião e do Cardeal D. Henrique para que eviteo perigo, mas nada faz retirar o Arcebispo. Ele manda aos Padres daCompanhia de Jesus que não tratem directamente com osempestados, para ter, em caso de necessidade, uma reserva segura,mas o Arcebispo vai pessoalmente visitar, socorrer, consolar, animara todos. A Frei João de Leiria dá ordens de não pagar salários aninguém nem fazer despesa alguma que não seja dar tudo,absolutamente tudo, para deter a calamidade e socorrer os atacadosde peste. O Padre Inácio de Tolosa, que assistira em Braga a tudo edonde tirámos estas notícias, termina o seu relato enviado a Roma aS. Francisco de Borja, com este comentário: “Mostrou bem osenhor Arcebispo neste tempo a santidade que Deus lhe temcomunicado, porque pedindo-lhe El-Rei e o Cardeal com instânciaque saísse da cidade para parte segura, nunca quis, mas, pelocontrário, ele próprio ia em pessoa, algumas vezes, consolar os

6 Procurava levar os seusacompanhantes a fazerem omesmo, ainda que lhestolerasse uma alimentação maiscuidada e alguma cedência aosprazeres da mesa. A não serquando, nas visitas pastoraisera acolhido para almoço poralgum rico lá da terra e sepunha a andar da mesa depoisde petiscar algo, obrigando acomitiva esfomeada a surripiaruns rissóis ou um bifito parameter ao bolso…

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enfermos e a todos provia do necessário com muita caridade e diziaao Padre Frei João que gastasse com eles quanto tinha e que nestetempo nem pagasse pensão, nem a criado, tanto era o zelo que tinhade acudir aos pobres. Deus guarde na sua Igreja um prelado tãosanto”.

Em favor dos pobres, quando já velhinho e retirado noconvento que tinha construído em Viana do Castelo, chegou a atirarpela janela a própria enxerga e travesseiros da sua pobre cama,7

passando a dormir sem conforto algum, até que os frades lhedescobriram e remediaram a necessidade. Deus não podiaabandonar quem Lhe dava tudo na pessoa dos pobrezinhos, e porisso mais de uma vez se multiplicou maravilhosamente o dinheironas mãos do Venerável em favor dos seus protegidos.

Mestre de Apóstolos

Esta prodigiosa caridade de D. Frei Bartolomeu fluía doardente amor que tinha a Deus, e do zelo pela Sua glória. Por isso,conservou muito particular solicitude pela orientação e formação doseu clero. Ao Cabido da Sé Primacial dispensava a maiorconsideração, apesar das dificuldades que, por vezes, surgiram, edizia que o queria trazer sobre a sua cabeça, pois o considerava a“Suma dessa Santa Igreja e as primeiras colunas e capitéis da glóriae honra de Deus”. Logo que chegou a Braga, reuniu à sua sombra eno próprio Paço um grupo de rapazinhos, nomeadamente os quetrouxera do Barroso para deles fazer os padres que enviaria de novopara aquelas paragens; esses meninos haveriam de constituir oprimeiro núcleo do Seminário de Braga e foram as primícias dosseminaristas de toda a Cristandade.

A ideia de um clero instruído e virtuoso levou o Venerável alutar e a defender intrepidamente, no Concílio de Trento, a fundaçãodos Seminários. Aos Decretos que arrancou ao Concílio deuimediata execução com o Seminário de S. Pedro de Braga. Elepróprio se preocupava do aproveitamento de todos, e vinhapessoalmente assistir aos exames. Aos exames de Ordens dava tantaimportância que, querendo os Padre.do Colégio de S. Paulo recusar-

7 Este célebre acontecimentoque marca o radicalismo dasatitudes de Frei Bartolomeuquando se tratava de socorreros pobres está documentadonuma lápide colocada pordebaixo da referida janela doConvento de São Domingos,que dá para a actual Rua queleva o seu nome. A cela de FreiBartolomeu é hoje uma capelaa ele dedicada, nas instalaçõesafectas aos serviços da CúriaDiocesana. Noutro caso, aindaem Braga, ofereceu àsescondidas, os cortinados doseu quarto a uma senhora paraela fazer um vestido; doutravez foi a sua batina nova quenão escapou depois de opessoal do paço lhe ter tirado avelha que ele não querialargar…

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se a constituir júri para eles, por se afastarem deles por isso oseclesiásticos, o Arcebispo lhes protestou que se passariam osexames ainda que tivesse de ir a Roma a pé buscar poderes paraque se fizessem.

Este zelo ardente do Santo Arcebispo, que se estendia a todasas necessidades da sua Igreja, arrancou a um seu contemporâneo, eainda em sua vida, este elogio: “O Arcebispo de Braga é um homemtodo de Deus, um verdadeiro israelita,8 ilustre pela doutrina, maseminentíssimo pela elevação de sua vida. É um autêntico émulo dossantos Pastores da primitiva Igreja, homem integérrimo de cos-tumes e conduta que, pondo em prática os Decretos do Concílio deTrento, restituiu à sua desolada diocese o esplendor dos maisgloriosos tempos”.

Trento

A imortalidade para as páginas brilhantes da História da Igrejae a universal fama de santidade de que ainda em vida gozou oVenerável D. Frei Bartolomeu dos Mártires, conquistou-as ele noConcílio de Trento. Saindo de Braga em 24 de Março de 1561, comuma marcha aceleradíssima para os meios do tempo, entrou emTrento a 18 de Maio, onde era esperado pelos Cardeais Mântua eSeripando e por dez bispos de Itália.9 A viagem estava estruturadaem etapas marcadas pela existência de conventos dominicanos, depreferência, onde pernoitava, o mais incógnito possível.10

Logo que chegou a Trento, o Venerável deu provas do seusaber e virtudes. O bispo de Modena, no dia seguinte à chegada “doBracarense”, comunicou ao Cardeal Morono que “a melhornovidade de Trento, por aqueles dias, fora a chegada do Arcebispode Braga que chegara rico de dois grandes fulgores: uma grandeciência e uma vida edificantíssima”. Outro tanto fizeram osCardeais Legados para o Papa e para S. Carlos Borromeu, sobrinhoe Secretário de Estado de Pio IV. Depois de uma “longa conversa”com o Bracarense, a impressão que lhes deixou foi a de um“homem modesto”, “bom prelado”, “feito Arcebispo pela suadoutrina e boas qualidades”. Imediatamente S. Carlos Borromeu

8 A expressão “um verdadeiroisraelita” leva-nos à passagemdo Evangelho segundo SãoJoão, onde se relata ochamamento de Natanael/Bartolomeu: “ora aí está umverdadeiro israelita em quemnão há fingimento” (Jo 1, 47).Joga-se aqui com a relaçãoentre o Arcebispo e o Apóstolodo mesmo nome, o que levariao autor do texto do Hino a FreiBartolomeu a escrever: “Comoem Natanael da Galileia / nãohouve em sua vida fingimento /pregando ao povo simples,numa aldeia / ou discursandono Concílio, em Trento”.

9 O itinerário das diferentesviagens realizadas por FreiBartolomeu encontra-sedescrito numa espécie de diáriode viagem, publicado emtradução portuguesa porANTÓNIO DE MATOS REIS,“Itinerário de Braga a Roma,seguido por Frei Bartolomeudos Mártires”, in EstudosRegionais, Viana do Castelo,1992, p. 33-68.

10 Por várias vezes acabou porser identificado, sendo logoalvo das maiores deferênciaspela honra que sentiam em oreceber, mas com notórioincómodo para a humildade epresença discreta de FreiBartolomeu. Então asperipécias com o CardealLorena durante a viagem paraRoma e depois já na cidadeeterna por causa do lugar ondedeveria ficar, entre Embaixadade Portugal ou o convento deMinerva, são do melhor que há.

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responde aos Legados manifestando a alegria do Papa e sua, eprometendo grande benevolência de ambos para com o Arcebispode Braga, o primeiro de além-Alpes que chegara a Trento.

Durante todo o Concílio, onde apresentou 268 “petições” oupropostas,11 o prestígio de D. Frei Bartolomeu e a veneração de suasvirtudes acrescentaram-se cada vez mais. O zelo do Arcebispoelevou-o a primeiríssimo plano entre os Padres do Concílio e asinceridade e franqueza das suas intervenções conquistaram-lheuniversal respeito e veneração pelo seu parecer, nomeadamente pelofacto de “dizer muito em poucas palavras”.12 Nos problemas maisdelicados e difíceis, a opinião do Arcebispo de Braga representavafrequentemente uma viragem do Concílio. Dezenas de Arcebispos eBispos resumiam o seu voto dizendo: “sou da opinião doBracarense”... Ao nível da “política de alianças” fazia um poucocomo São Paulo com fariseus e saduceus no tribunal de Cesareia(Act 23, 6).13

As suas propostas para a elaboração dos Decretos de reformadisciplinar constituem um verdadeiro e completo programa de vidasacerdotal e eclesiástica ideais. De um desses votos escreve JoãoStrozio que foi o melhor que ouviu em todo o Concílio. Mas asinvectivas de D. Frei Bartolomeu eram ditas com tanto zelo epiedade que, mesmo os que se podiam melindrar com elas, nuncadeixaram de considerá-lo um homem de eminente virtude. OArcebispo de Zarad, aludindo a uma fogosa intervenção doVenerável, escreve que ele “falou por muito tempo e sempre comgravíssima força de piedade, como homem douto e religiosíssimoPrelado”. Outras vezes chamam-lhe “homem douto e de santíssimavida”. Nas Actas do Concílio de Trento aparecem ainda para ele asexpressões de “homem verdadeiramente santíssimo e inflamado emzelo”, e esta atitude do Venerável era tão constante, que as Actasnão se esquecem de fazer notar que o Bracarense “falou com muitapiedade e zelo, como costuma fazer sempre”, e ainda, que tal outraintervenção foi feita com o seu “costumado zelo e piedade”. Ocrédito destas qualidades e virtudes subiu tanto em todo o Concílioque, desejando o Venerável visitar Roma, os Legados opuseram-sequanto puderam e, finalmente, escreveram, ao Papa expondo as

11 Os temas apresentados porFrei Bartolomeu prendiam-secom questões variadas, desde aresidência dos Bispos nasdioceses ou a eleição do Papa,ao sacramento da Ordem ou àquestão candente da comunhãosobre as duas espécies.

12 A não ser quando se tratou dedefender o primado de Bragasobre as dioceses de Portugal eEspanha porque ai, ao que sediz, nunca mais se calava…

13 Quem quiser saber como eem que medida FreiBartolomeu trabalhou emTrento assim numa perspectivaséria, deve ler os estudos deMons. José de Castro,Portugueses no Concílio deTrento, ou então o resumo nasua obra já citada, D. FreiBartolomeu dos Mártires;quem o quiser saber assim deuma forma mais divertida, leiao livro de Aquilino Ribeiro.Não sendo certo que tenhadefendido a dispensa docelibato para os pobres padresdo Barroso – “Saltembarrosani” (ao menos para osdo Barroso) – mais consistenteé a afirmação de que “osEminentíssimos Cardeaisprecisam de uma eminentíssi-ma reforma”.

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dificuldades que tinham em o deixar partir porque, diziam,“partindo prelados da sua qualidade... parecerá uma espécie dedissolução do Concílio”.14

A esta carta dos Legados respondeu de Roma S. CarlosBorromeu que “o Arcebispo de Braga, vindo a Roma, será o bem-vindo”, protestando ao mesmo tempo a benevolência do Papa e aisua própria para com ele. No dia 18 de Setembro de 1563, partepara Roma, e o Cardeal Paleotto, notificando-o nas Actas do Concí-lio, aproveita a oportunidade para lhe chamar “homem de grandesantidade e religiosidade”.

Aos pés de S. Pedro

A fama da virtude e saber do Arcebispo de Braga precederam-no de muito em Roma. O seu nome estava já ligado ao santo zeloque inspirava todas as suas acções, e isto era bem conhecido doPapa Pio IV e do seu sobrinho, S. Carlos Borromeu. Só assim seexplica que, tendo ido D. Frei Bartolomeu a Roma, numa romagemde piedade, a visitar os lugares santificados pelos Príncipes dosApóstolos, tenha sido chamado a tratar tantos assuntos com o Papano curto espaço dos 17 dias que permaneceu na Cidade Eterna. Afrequência dos encontros era tal que o nosso Arcebispo estavaconvidado a tomar as refeições com o próprio Papa, o que eleaceitou por algumas vezes, não sem aproveitar para censurar oPontífice por usar baixelas de prata. Lá lhe conseguiu impingirumas porcelanas da China das que se usavam em Portugal… bemmais baratas, dizia ele, embora se pudessem quebrar com maisfacilidade.

É o próprio Venerável, quando voltar a Trento, quem apoiarádepois as suas opiniões sobre a reforma, com o fundamento de quefalou muitas vezes destes Decretos com o Papa quando estiveramem Roma, acrescentando que, por vezes, exortara o próprio Papapara que a reforma se fizesse em profundidade e em todos os sec-tores da vida da Igreja. O Papa ouvia complacente- mente oArcebispo15 e depositou neste homem sábio e santo uma confiançacompleta, abrindo-lhe plenamente o seu espírito. A tal ponto foi

14 Consta que quandoperguntaram ao grandehistoriador da Igreja eespecialista no Concílio deTrento, Hubert Jedin quemteria sido o maior entre osPadres de Trento, respondeusem hesitação: “O Bracaren-se”.

15 Este “complacentemente”faz lembrar o rei Herodes quetambém escutava com prazer oJoão Baptista, mas em poucoseguia os seus conselhos. E oresultado é o que se sabe. Éque o Papa Pio IV, quando setratava de seguir as ideias deBartolomeu dos Mártires eraum pouco como Herodesperante João Baptista ou osatenienses depois do discursodo São Paulo no Areópago:“Havemos de ouvir-te outravez!...”

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assim que, depois do discurso de D. Frei Bartolomeu ao Concílio,sobre os planos e intenções do Pontífice em matéria de reforma, oCardeal de Lorena, que estivera em Roma na mesma altura, pornegócios conciliares, apoia-se na exposição do Venerável paraapontar ao Concilio as directrizes do Papa. “De tudo isto, conclui oCardeal na sua exposição, é testemunha o Bracarense, quepatenteou ao Concílio o parecer do Santo Padre”. A benevolênciado Papa para com D. Frei Bartolomeu foi ao ponto de lhe chegar aoferecer um dos seus anéis e a Águia, uma das melhores mulas dasua cavalariça, a fim de fazer a viagem de regresso a Trento ao nívelda concorrência dos cavalos do Cardeal Lorena. E foi esta a mulaque o trouxe até Braga.

Cinco dias depois de regressar a Trento, D. Frei Bartolomeuescreveu a Pio IV uma carta cheia de gratidão pelas “bênçãos edons de que fora cumulado” e pedindo desculpa da “audácia” a quese atrevia “ao ver n’Ele tantos sinais de amor e benevolência”.Nesta mesma carta comunica ao Papa as intrigas que se teciam emFrança para frustrar os resultados do Concílio. O Papa ficougratíssimo, e mandou a S. Carlos que enviasse essa carta aosCardeais presidentes do Concílio “para que pudessem considera-la”,acrescentando S. Carlos que, se bem escreve a D. Fr. Bartolomeu daparte do Papa, lhes manda que também eles lhe agradeçam a “so-licitude e zelo que mostra” e o ”animem a continuar”. Mas toda aestima que o Arcebispo conquistara de Pio IV, foi o próprio Papaquem a patenteou ao nosso Cardeal D. Henrique que recomendarana corte romana uns negócios da Igreja Bracarense: “ele provou-nosno Concilio, escreve o Papa, tamanha probidade, religiosidade edevoção, que ficámos com uma tão favorável opinião de talPrelado, que nenhumas contendas no-la podem imutar”. Mais tarde,o Papa S. Pio V, que também conhecera o Venerável em Roma,numa carta a D. Sebastião, diz que “pela sua exímia santidade todoso deviam amar e reverenciar”.

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O encontro de dois Santos

Falava o Venerável Bartolomeu com Pio IV de assuntos daReforma, quando entrou S. Carlos. O Papa toma o sobrinho Cardealpela mão e entrega-o ao Arcebispo dizendo: “aqui vo-lo entrego;este há-de ser o primeiro que me haveis de reformar”. Há quemveja nestas palavras do Papa uma boa ironia;16 outros preferem tê-las por proféticas; nós simplesmente as consideramos umafidelíssima expressão do que sucedeu.

Paschini põe na boca de Pio IV esta outra afirmação dirigida aD. Frei Bartolomeu: “meu sobrinho encontrou na vossa pessoa umhomem segundo o seu coração”. Realmente dois corações foramestes que nunca mais se separaram. A grande amizade que os uniunaqueles breves 17 dias, passados em Roma por D. FreiBartolomeu, acrisolou-se sempre mais e mais. O programa de vidade S. Carlos será para sempre um livrito que o VenerávelBartolomeu levava escrito de sua mão, o Stimuius Pastorum17 deque mandou fazer uma cópia que ofereceu ao jovem Cardeal.

S. Carlos foi um discípulo de D. Frei Bartolomeu não só defacto, mas de uma maneira expressa e consciente. Numa carta de1565, diz-lhe que o tomara por modelo de sua vida: “tenho-voscontinuamente diante dos meus olhos, e tomei como modelo daminha a vossa vida, virtuosa e louvável sob todos os aspectos». Boaprova da sinceridade destas palavras é a nova conduta de S. Carlosdepois do seu encontro com o Arcebispo de Braga. Num só diadespediu oitenta dos seus criados; aos que ficaram não permitiumais que se vestissem de seda; ele próprio começou a jejuar a pão eágua, um dia por semana. Para poder cumprir convenientemente osdeveres principais de Pastor, começou a exercitar-se na pregação ea aprofundar a Teologia, sob a orientação do Dominicano FreiFrancisco Foreiro, recomendado por D. Frei Bartolomeu em cartade 15 de Dezembro de 1563.

Os dois Santos consultavam-se mutuamente sobre osproblemas das suas igrejas. S. Carlos, mandando as Actas dosSínodos Provinciais, declara ao Venerável Bartolomeu que o fazpara que lhe dê sobre eles o “seu parecer e correcção”. À carta em

16 Ironia porque, nada apostadoem mudar de vida, e conscienteda incapacidade da maioria dosCardeais em deixarem a suavida dissoluta, Pio IV aponta,para começar, o Cardeal CarlosBorromeu, um dos poucos queainda se aproveitavam, no meioda degradação geral, comoobjecto da “eminentíssimareforma dos Cardeais”…Proféticas porque, efectivamen-te, o Cardeal Carlos Borromeu“derradeira expressão do idealcatólico dentro do Vaticano”,(JOSÉ CALDAS, FreiBartolomeu dos Mártires, p.364), tornou-se num grandeArcebispo, um grandereformador na sua Diocese deMilão, um confidente de FreiBartolomeu e um Santo poucodepois canonizado.

17 Destinado apenas a ser umaespécie de manual para usopessoal, com base em citaçõesdos escritos de grandes Padres– São Bernardo, São GregórioMagno, Santo Agostinho, SãoJoão Crisóstomo – o Estímulode Pastores acabou por serpublicado a instâncias de FreiLuís de Granada depois de lidoem cópia pelo próprio CarlosBorromeu.

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Arcebispo Santo

Retirado para o Convento de Viana, depois de aceite pelo PapaGregório XIII o seu pedido de resignação, D. Frei Bartolomeu deuexpansão à sua ardente caridade para com os pobrezinhos, que já oconsideravam um “santo” e recorriam a ele confiados no seu poderjunto de Deus. O seu “Arcebispo Santo”, aquele que, velhinho, saíaainda a catequizar as verdejantes ribeiras do Lima

, mesmo cá da

terra era já o seu patrono do céu. Corria voz que nas suas mãos semultiplicavam milagrosamente as moedas para lhes acudir; ao sinalda cruz traçado pela sua mão abençoada, sobre os vagalhões quesubiam do mar encapelado pela barra do Lima, amainava atempestade; ao contacto da estamenha dos seus hábitos, cediam asmoléstias mais rebeldes, destruidoras de corpos e atormentadoras dealmas. Frei Luís de Granada, que escrevia em vida do SantoArcebispo estas maravilhas, desafia os cépticos a irem a Viana tirarsuas dúvidas à vista dos miraculados.

Poucas vezes na vida de um Servo de Deus a santidade foi tãounânime e manifestamente proclamada por toda a parte e por todasas classes sociais como o foi na vida do Venerável D. FreiBartolomeu dos Mártires. Todos os que trataram com o Arcebispo,pobres e ricos, humildes e magnatas, príncipes e Papas, não calarama viva impressão de santidade que irradiava da sua pessoa. OsJesuítas de Braga referem-se a esta opinião geral de santidadequando dizem que ele é um “prelado de mui conhecida santidade edoutrina” e, no momento da morte de D. Frei Bartolomeu, contandocomo o Reitor do Colégio de S. Paulo acompanhou a Viana o

que Venerável comunica ao Santo Cardeal que a resignação daIgreja Bracarense lhe fora, finalmente, aceite pelo Papa e que já seencontra retirado no seu Convento de Santa Cruz de Viana doCastelo, responde S. Carlos que a leu “com uma secreta inveja”, eacaba pedindo-lhe as suas orações, porque “quanto mais seguronavegais junto ao porto da salvação – escreve S. Carlos – tanto maisardentemente espero que rogareis por mim a Jesus Cristo”.

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Arcebispo D. Frei Agostinho de Jesus, para assistir ao transe doVenerável, tecem-lhe espontaneamente este sentido elogio: “Este éaquele Bartolomeu, homem sapientíssimo, santo e austero a quemnem a aspereza das regiões transmontanas, nem rigores alguns defrio ou calor ou outra qualquer intempérie puderam deter o passopara cumprir por si próprio todos os deveres de um óptimo pastor ede iluminar vigilantissimamente a sua Diocese. Retirando-se ao seuConvento de Viana, aí, por causa da sua admirável virtude,conquistou em todos suma veneração… e mereceu o cognome deSanto, de tal sorte que o seu cadáver teve de ser vigiado com forçaarmada para não ser furtado para Braga às escondidas dosvianenses, como se pretendia”.

Aquele corpo do Arcebispo que a alma abandonara no dia 16de Julho de 1590, ficou insepulto durante três dias para poderreceber o último preito de gratidão e uma escaldante lágrima deprofunda saudade de um povo que sinceramente o venerava eamava. À hora da sua morte, quando as grandezas humanas semedem pelo padrão dos valores eternos, a consideração dasantidade do Venerável D. Frei Bartolomeu dos Mártires sobrepujoutudo o mais, e ficou gravado no coração do seu povo e escrito nelecom indelével tinta de lágrimas o seu nome de “ARCEBISPOSANTO”.18

Nas sendas da glória

“Voz do povo, voz de Deus”. O Arcebispo de Braga era, defacto, uma alma santa. Fizeram-se os processos em ordem àBeatificação e Canonização do Servo de Deus, coroados com plenoêxito pelo Decreto da Sagrada Congregação dos Ritos, de 23 deMarço de 1845, declarando “constar de tal modo a existência dasvirtudes Teologais e Cardeais e suas anexas em grau heróico doVenerável Servo de Deus Bartolomeu dos Mártires, da Ordem dosPregadores, que foi Arcebispo de Braga, que com toda a segurançase pode proceder aos assuntos ulteriores, isto é, à discussãosimplesmente dos quatro milagres”.

D. Frei Bartolomeu faz parte de uma galeria numerosa de

18 Foi sepultado na Igreja doConvento em Viana, emcampa rasa, do lado direito doaltar-mor; no entanto umapersistente gota de água quecaía daquele lado levou a quese decidissem a mudar asepultura para o ladoesquerdo, em 1609, local ondeum mausoléu condigno oguarda actualmente. Estasepultura foi alvo de algumasviolações, em 1702 e 1847, eaberta oficialmente algumasvezes também: 1877 e 1929. Aúltima delas foi precisamenteno dia 23 de Abril do ano de2014, na presença dos bisposdas quatro dioceses que oBeato pastoreou, consultoresdiocesanos de Viana doCastelo e alguns convidados,autoridades sanitárias, osquais puderam fazer oreconhecimento das ossadas.Feito um momento de oraçãopresidido pelo Bispo de Vianado Castelo, procedeu-se àextracção de algumas relíquiasdestinadas às dioceses deBraga, Vila Real e Bragança-Miranda e entregues aosrespectivos Bispos presentes,e ainda para o relicário quefaria a peregrinação por todasas paróquias da Diocese deViana do Castelo. Neste casoum osso do braço direito,“aquele com que o Bem-aventurado Bartolomeu dosMártires muito terá abençoadoo povo das nossas dioceses”no dizer do Bispo de Viana doCastelo, Dom AnacletoOliveira. Do evento foilavrada uma Acta peloChanceler da Cúria Diocesanae que foi assinada pelospresentes.

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grandes Santos que viveram no seu tempo, ligando-se a muitos comlaços de amizade: S. Pio V, S. Carlos Borromeu, S. RobertoBelarmino, Santo Inácio de Loyola, S. Francisco Xavier, S. Fran-cisco de Borja, São Filipe Neri, S. João da Cruz, Santa Teresa deJesus, Beato Inácio de Azevedo e tantos outros; são nomes quebrilham no firmamento da Igreja e glorificam as pátrias que lhesserviram de berço. Em poucos ou nenhum destes a santidade foi tãoaltamente proclamada como no Venerável D. Frei Bartolomeu dosMártires.

No século dos Santos, Portugal tem também o seu grandesanto naquele que foi Arcebispo de Braga e Primaz das Espanhas.Alguém chamou, com felicidade, à causa da Beatificação eCanonização do Venerável D. Frei Bartolomeu dos Mártires umacausa nacional. Deus quer a Sua própria glória e a dos Seus Servose também a glória das nações e dos povos e, por isso, nós podemospedir a Deus a glorificação de D. Frei Bartolomeu nos mesmostermos com que o nosso Rei D. João V a pedia ao Papa: “Se outrasvezes instigado da devoção e do desejo da glória dos Santos eedificação dos fiéis interpus as minhas instâncias em causas debeatificação de alguns servos de Deus, agora sobre aqueles motivosconcorre para empenhar-me na do Venerável Arcebispo D. FreiBartolomeu dos Mártires, o crédito que espera conseguir este Reinode que chegue a venerar nos altares hum filho seu tão benemérito”.

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[ EPÍLOGO ]

O Bem-Aventurado Bartolomeu dos Mártires

Apesar da descrença de uns, da desconfiança de outros e dafalta de vontade de muitos mais, relativamente à possibilidade dabeatificação de Frei Bartolomeu dos Mártires, até pelo facto de terpassado tanto tempo após a sua morte e de ele ter perdido ocomboio da beatificação ou da canonização em que seguiram tantosdos seus contemporâneos e amigos, a novidade e surpresa haveriade chegar. Então, aquilo que para o autor deste apaixonadoOpúsculo que acabamos de apresentar – Frei Raúl de Almeida Rolo,da Ordem dos Pregadores, e notável estudioso da vida e obra deFrei Bartolomeu dos Mártires – era afinal ainda um sonho, tornou-se realidade no dia 4 de Novembro de 2011, dia litúrgico de SãoCarlos Borromeu, quando o Papa João Paulo II, Carlos pelo seubaptismo, oferecia ao santo onomástico, a prenda de aniversário dabeatificação do seu grande amigo Bartolomeu dos Mártires, depoisde, a 7 de Julho do mesmo ano, ter reconhecido o milagre propostopara a sua Beatificação. De facto, na breve alocução do Angelus,que se seguiu às celebrações da Beatificação, João Paulo II teveocasião de proferir uma saudação aos portugueses presentes, com asurpresa destas tocantes palavras: “Neste momento do Angelus,desejo recordar São Carlos Borromeu, cuja memória ocorre hoje.Ao meu celeste protector, ofereço a homenagem da beatificação doseu íntimo amigo e confidente, Bartolomeu dos Mártires. Aproveitopara saudar e agradecer a representação de Portugal nesta cerimóniaque viu honrado um dos seus maiores Pastores”.

Na homilia proferida na celebração, a respeito do BeatoBartolomeu dos Mártires, disse o Papa João Paulo II: “O BeatoBartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga, dedicou-se, comsuma vigilância e zelo apostólico, à salvaguarda e renovação daIgreja nas suas pedras vivas, sem desprezar os andaimes provisóriosque são as pedras mortas. Daquelas pedras vivas, privilegiou as que

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tinham pouco ou nada para viver. Tirou à boca, para dar aos pobres.Censurado pela pobre figura que fazia com o pouco que lhe restava,respondeu: ‘Nunca me verão tão desatinado a gastar, com ociosos,aquilo com que posso dar vida a muitos pobres’. Sendo a ignorânciareligiosa a maior das pobrezas, o Arcebispo tudo fez para lhe pôrremédio, começando pela reforma moral e elevação cultural doclero, ‘porque manifesto está escrevia ele que, se o vosso zelocorrespondesse ao ofício, (...) não andariam as ovelhas de Cristo tãofora do caminho do Céu”’. Com o seu saber, exemplo edesassombro apostólico, comoveu e incendiou os ânimos dos Pa-dres Conciliares de Trento para que se procedesse à necessáriareforma da Igreja, que depois se empenhou a realizar comperseverante e invicta coragem”.

Na mesma celebração, a terceira invocação da Oração Univer-sal, proferida em Português, dizia: “O Bispo Frei Bartolomeu dosMártires e o presbítero Paulo Mana [outro dos oito beatificados namesma cerimónia] estão unidos pela mesma solicitude em anunciaro Evangelho a todos os homens. Rezemos por todos aqueles que,nos confins do mundo, na periferia das grandes metrópoles e dasociedade moderna, anunciam o Evangelho testemunhandoheroicamente a predilecção de Deus pelos pobres, para que jamaislhes falte o apoio de toda a Igreja”.

E, como escrevera Frei Raúl, “que nos falta agora”?

O reduzido impacto que o acontecimento e a celebração dabeatificação de Frei Bartolomeu encontraram por parte dosresponsáveis religiosos e mais ainda do povo deste país e mesmodas nossas dioceses, não augurava grandes desenvolvimentos. Ainsensibilidade e a indiferença em que nos encontramosactualmente, cujos resultados estão à vista de todos, não deixam dedar alguma razão aos então detractores da “causa” da beatificação.19

Falta, por isso, nas palavras de Frei Raúl, “que Portugal continue dejoelhos e, apoiado nos retumbantes milagres feitos em vida e nasgraças agora dispensadas por Deus aos devotos do Seu Servo,

19 Mesmo reconhecendo queBartolomeu dos Mártires foi“um santo que viveu e morreufora da compreensão da suaépoca, e não um sábio comomuitos dos seus panegiristasinsistem que ele fosse”, (JOSÉCALDAS, Frei Bartolomeudos Mártires, Profana Verba,Coimbra Editora, Coimbra,1922, p. 363). Face à requeridaexistência de quatro milagrespara a beatificação, por parteda Sagrada Congregação, nostermos do Decreto de 1845,escrevia José Caldas: “… ecomo até hoje tal número deprodígios se não hajaproduzido (…) a causa estásuspensa e cremos suspensaficará através dos séculos, vistoque nem a índole dos temposem que vivemos, nem a féainda a mais viva dos fiéispermitem já agora que taismaravilhas contra a ordemnatural das coisas se produzamem termos de mereceremcrédito” (idem. p 77).

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levante o coração ao alto até que venham, da munificência divina,pelas mãos do Bem-Aventurado, os milagres necessários para a suacanonização”. Resta-nos, por isso, hoje, elevar ao céu as nossasorações e sobretudo dar ao culto e à veneração do Bem-AventuradoBartolomeu dos Mártires aquela dimensão que o tornemverdadeiramente presente na vida da Igreja, das nossas Dioceses eno coração do Povo de Deus, de modo a que tenhamos em breve agraça da sua canonização.

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