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Autores Bruno Zeni Stélio Furlan Romantismo e Realismo na Literatura Portuguesa 2009

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AutoresBruno Zeni Stélio Furlan

Romantismo e Realismo

na Literatura Portuguesa

2009

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© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

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www.iesde.com.br

Z54 Zeni, Bruno; Furlan, Stélio / Romantismo e Realismo na Literatura Portuguesa. / Bruno Zeni; Stélio Furlan

— Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009.188 p.

ISBN: 978-85-7638-895-1

1. Literatura Portuguesa – História e Crítica. 2. Poesia. 3. Prosa. 4. Movimentos Literários. I. Título.

CDD 869.09

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Sumário

Trovadorismo | 7

Classicismo: poesia lírica | 21Lírica clássica: Camões | 23Conclusão | 29

Classicismo: poesia épica | 37Conceito de epopéia | 39Os Lusíadas: um prodígio arquitetônico | 39Conclusão | 50

Barroco | 55Pode-se falar em Barroco? | 55Poesia barroca portuguesa | 57Prosa barroca portuguesa | 61Conclusão | 65

Arcadismo | 71A reação contra o Barroco literário | 72Principais lemas dos poetas árcades | 74Bocage e o Arcadismo | 78Conclusão | 79

A alma romântica | 87Introdução | 87Contexto histórico | 88O espírito romântico | 90Os três momentos do Romantismo português | 93Primeiras obras românticas em Portugal | 95

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O primeiro momento romântico | 101Introdução | 101Almeida Garrett | 102Alexandre Herculano | 105António Feliciano de Castilho | 107

O Ultra-Romantismo | 113Entre a paixão e a melancolia | 113Soares de Passos | 114Camilo Castelo Branco | 117Outros autores ultra-românticos | 119

A Questão Coimbrã e a transição para o Realismo | 123O terceiro momento romântico | 123A polêmica entre Castilho e Antero de Quental | 124João de Deus | 125Júlio Dinis | 128Outros autores do terceiro momento romântico | 130

O Realismo em Portugal | 135Introdução | 135Contexto histórico e ideológico do movimento na Europa | 136Características do movimento | 137Principais nomes do Realismo na Europa | 138O Realismo em Portugal | 139As primeiras manifestações realistas | 142

A prosa realista | 147Introdução | 147Eça de Queirós | 148Eça e Machado | 152Outros prosadores | 153

A poesia realista | 159A Geração de 70 e a poesia | 159Antero de Quental | 160Cesário Verde | 163

Gabarito | 171

Referências | 181

Anotações | 187

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Apresentação

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Carlos Drummond de Andrade

“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é pre-ciso, viver não é preciso’. Quero para mim o espírito [d]esta frase, trans-formada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. Essa conhecida passagem de Fernando Pessoa serve-nos de mote para justificarmos as travessias e os percursos pelo vas-to espaço da Literatura Portuguesa.

O objetivo principal é o de compreender elementos para o estudo crítico-produtivo das manifestações canônicas da Literatura Portuguesa, entre 1189 e 1890, situando-a no contexto da literatura ocidental. Utiliza-remos essas datas menos como marcos definitivos do que como balizas temporais para localizarmos, entre aproximações e distanciamentos, cada arte poética ao longo desse recorte temporal.

Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento dis-cursivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações li-terárias do medievo ao final do século XIX, a saber: o Trovadorismo (séc.XII – XV), o Classicismo (1527-1580), o Barroco (1580-1765), o Arcadismo (1756-1825), o Romantismo (1825-1865) e o Realismo (1865-1890).

Alguns estudiosos das origens da Literatura Portuguesa conside-ram 1189 um dos anos prováveis da escrita da “Canção da Ribeirinha”, de Paio Soares de Taveirós, a quem se atribui o primeiro poema escrito. Os historiadores da Literatura Portuguesa consideram o ano de 1890, com a publicação de Oaristos, de Eugênio de Castro, o marco do fim do Realismo português e o começo do Simbolismo, movimento que antecipa a poesia moderna em Portugal.

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Desejamos que estas páginas sobre literatura portuguesa estimu-lem a reflexão sobre a importância da literatura como um modo privi-legiado de conhecimento, como uma maneira especial de ver e dizer o mundo. E também que possam incentivar o contato prazeroso com o texto, o que chamaremos de fruição textual.

Bruno Zeni e Stélio Furlan.

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Classicismo: poesia líricaStélio Furlan

De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Esse poema de Vinicius de Moraes é, por certo, um dos mais conhecidos da poesia brasileira, em-bora nada tenha de popular, exceto, no sentido de ser bastante divulgado. Ao lê-lo, talvez não se perce-ba como o poeta consegue disfarçar uma mensagem sob a sua rígida arquitetura.

Conforme o título “Soneto de Fidelidade“ o poema trata de um refinado soneto, o que suscita al-gumas questões: Por que se chama “soneto” à composição? Desde quando se escrevem sonetos em língua portuguesa? Quais as implicações da escolha dessa manifestação por excelência da “poesia clás-sica”? Enfim, por que ler os “clássicos”?

Para compreendermos melhor o poema de Vinicius de Moraes, vamos investigar alguns traços marcantes da poesia praticada em Portugal, no século XVI, bem como uma possível interlocução com a poesia lírica de Luís Vaz de Camões. Comecemos pela escolha formal.

O soneto é uma das mais dificultosas e fascinantes manifestações líricas do Renascimento1. Conforme o étimo, soneto deriva do provençal sonet, diminutivo de son, modalidade poética ligada à

1 Afora o soneto, entre os gêneros líricos característicos da poesia do Renascimento, que se convencionou chamar de Classicismo, vale referir a écloga ou égloga (quadro, geralmente dialogado de tipos populares, sobretudo pastoris); a elegia (poema de tonalidade melancólica ou sen-tenciosa); a ode (texto em geral laudatório); a epístola (carta); e o epitalâmio (composição congratulatória dirigida aos recém-casados) (Saraiva; LOpes, 2001, p. 244).

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música desde a sua origem no século XIII. Como se pode notar no “Soneto de Fidelidade”, sua estrutu-ra formal é composta de quatorze versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos. As estrofes de-vem possuir o mesmo número de versos, sendo que o mais utilizado é o chamado decassílabo. É muito importante que a última estrofe contenha a “chave de ouro”, o remate, a condensação de sentido, nou-tras palavras, o ponto de vista do poeta.

O soneto foi trazido da Itália e divulgado em Portugal por Francisco Sá de Miranda2, em 1527, re-ferência temporal a que os historiadores da literatura portuguesa datam a primeira Era Clássica, a saber, o Classicismo3. O termo deriva de scriptor classicus que, segundo Aulo Gélio (130-175), significa aque-le que escreve de modo claro, que privilegia o que é conveniente, útil e agradável, em conseqüência, pode ser elevado à condição de modelo a ser estudado nas “classes” de aula e imitado como exemplo do “bom poeta”.

Daí que o Classicismo, enquanto movimento estético e literário, fundamenta-se no estudo dos grandes modelos da Antiguidade Grega e Latina, a exemplo de Horácio4, e dos escritores consagrados pela tradição, entre os quais vale mencionar Petrarca5, a quem se atribui a invenção do soneto.

“Portugaliae” (Portugal), in Theatrum Orbis Terrarum (teatro do mundo), Abraham Ortelius (1579?).

Se o medievo nos legou uma Arte de Trovar, um dos principais estudos teóricos sobre as novas re-gras da arte deve-se a Antônio Ferreira6.

2 Francisco Sá de Miranda (1497, Coimbra–Quinta da Tapada, Minho). Completou o curso de Leis (Direito). Em 1521 viaja à Itália, onde toma conhecimento das formas poéticas que viria a introduzir e divulgar em Portugal. Foi o primeiro, na Literatura Portuguesa, a compor églogas, sonetos e tercetos, inovações formais que datam o início da Era Clássica, em Portugal.3 Não raro divide-se o período entre 1527 e 1825 em três movimentos. O Classicismo (1527 a 1580), no qual se constata o diálogo com a tex-tualidade italiana; o Barroco (1580-1765), cuja textualidade se revela condicionada pelas manifestações oriundas da Espanha, e, por fim, o Neo Classicismo ∕ Arcadismo (1765-1825), que apresenta nítida influência da literatura francesa. 4 Quinto Horácio Flaco (65-8 d.C), poeta da literatura italiana, autor de Arte Poética, um dos principais estudos sobre os preceitos da arte na antiguidade. A Carta XII a Diogo Bernardes, de Antônio Ferreira, teórico do classicismo português, é uma tradução dos principais elementos da poesia clássica sintetizados por Horácio. Um livro indispensável para a compreensão de tais preceitos intitula-se Introdução à Poética Clássica, de Segismundo Spina.5 Francesco Petrarca (Arezzo, 20 de Julho de 1304 – Pádua, 19 de Julho de 1374) foi um importante intelectual, poeta e humanista italiano. Graças ao seu interesse pelos manuscritos antigos, contribuiu para o conhecimento de escritos da Roma Antiga e Grécia Antiga, o que favore-ceu o advento da Renascença.6 Antônio Ferreira (Lisboa, 1528-1569) estudou na Universidade de Coimbra e, em 1555, obteve a licenciatura em Direito Canônico e o título de Doutor. Foi um dos principais estudiosos e divulgadores da Poética, de Aristóteles e Arte Poética, de Horácio em meados do século XVI.

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23|Classicismo: poesia lírica

Vejamos alguns dos principais elementos dessa poética sistematizada na sua Carta XII a Diogo Bernardes. Aqui, o “princípio da imitação” surge como elemento fundamental para o bom poetar:

Na boa imitação, e uso, que o fero Engenho abranda, ao inculto dá arte, No conselho do amigo douto espero.

Assim, ao bom poetar calha a obsessão infatigável da lima, o que os mestres designavam Limae labor et mora, o trabalho da lima e do tempo. Para compor um poema se fazia necessário lapidá-lo, eli-minar o “sobejo” (remover os excessos), retocá-los constantemente a fim de se alcançar a justa propor-ção entre as partes:

Corta o sobejo, vai acrescentando O que falta, o baixo ergue, o alto modera Tudo a ûa igual regra conformando.

Nota-se que Antônio Ferreira minimiza a importância da “inspiração” (fero, também no sentido de ardente, impulsivo, impensado) a favor da boa imitação, o respeito aos preceitos poéticos utilizados pe-los escritores consagrados pela tradição. Em conseqüência, prefere ao “engenho”, à auto-suficiência, as qualidades que considera indispensáveis ao artista: a perseverança (tempo) na busca da perfeição for-mal e o conhecimento das formas e modelos canônicos (estudo):

Muito, ó Poeta, o engenho pode dar-te. Mas muito mais que o engenho, o tempo e estudo. Não queiras de ti logo contentar-te.

Não convém esquecer a missão pedagógica que Antônio Ferreira atribuía à poesia. A censura ao uso da linguagem coloquial, o culto da poesia sofisticada e erudita se destinava ao enobrecimento da língua e da literatura portuguesa.

Lírica clássica: CamõesDentre os poetas que fizeram jus aos preceitos da arte poética clássica se eleva a enigmática figu-

ra de Luís Vaz de Camões. Como só ia acontecer com os poetas do medievo e do Renascimento, há pou-cos dados biográficos sobre ele. Costuma-se apontar o ano de 1531 como uma das datas possíveis do seu nascimento, em Lisboa, onde faleceu em 1580.

Considerado o príncipe dos poetas pelos seus contemporâneos, Camões é conhecido pela mo-numental epopéia Os Lusíadas, publicada em 1572, a melhor dos tempos modernos e que haveria de se tornar um verdadeiro breviário da nacionalidade. Não menos conhecida é a sua poesia lírica, publicada em primeira mão no livro póstumo Rhythmas, organizado por Fernão Rodrigues Lobo a partir da reco-lha de vários manuscritos e publicado por Estevão Lopes em 1595.

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Camões Capa do livro Rhythmas

A primeira edição de Rhythmas foi dividida em cinco partes: a primeira apresenta 65 sonetos; a segunda parte, 10 canções, uma sextina e 5 odes; a terceira parte, 4 elegias e 3 oitavas; na quarta parte, 8 éclogas; e, por fim, na quinta parte, 68 composições escritas em versos redondilhos (versos de 5 ou 7 sílabas poéticas) bem ao gosto popular.

Trocando em miúdos, interessa destacar que em Rhythmas se encontram textos representativos do Classicismo, seja pela rigidez das normas de composição, conforme os padrões consagrados pela tra-dição (soneto, écloga, elegia, ode...), a predileção pela medida nova (os versos decassílabos), seja pelo campo semântico (conteúdo) dessas composições, no caso, as várias alusões mitológicas, a consciência da brevidade da vida, a concepção neoplatônica de amor ou o seu questionamento.

A rigor, não se pode dizer que Camões seja o melhor representante da primeira época Clássica lu-sitana. Atento às novidades do seu tempo, ele recolhe os fios poéticos da tradição para com eles bordar outros textos. Não só ajusta o tom de sua lira nas composições ao gosto popular (trovas e cantigas es-critas em versos redondilhos) como também cria com habilidade à luz das inovações formais típicas da poética renascentista.

Como dissemos, a arte poética clássica se define pela rigorosa obediência ao “princípio da imita-ção”: a aceitação de modelos preexistentes. Em Camões, isso se observa pela valorização do soneto e o empréstimo de versos ou de temas, aos quais adiciona engenho e arte. Se para Antônio Ferreira o mo-delo de eleição é Horácio, em Camões se constata o diálogo com Petrarca.

Selecionamos para análise dois sonetos de Camões, conhecidos pelo primeiro verso, a saber, Eu cantarei de amor tão docemente, e Transforma-se o amador na coisa amada. Vamos ao primeiro:

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Eu cantarei de amor tão docemente,Por uns termos em si tão concertados, (concertados: harmoniosos).Que dois mil acidentes namorados (acidentes namorados: ocorrências amorosas).Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente, (avivente: anime).Pintando mil segredos delicadosBrandas iras, suspiros magoados,Temerosa ousadia e pena ausente. (temerosa: tímida; pena; saudade).

Também, Senhora, do desprezo honesto (desprezo honesto: orgulho da sua linhagem, altivez).De vossa vista branda e rigorosa, (a menor parte se refere ao pequeno defeito ou aoContentar-me-ei dizendo a menor parte. desprezo que ele chama de “honesto”).

Porém, pera cantar de vosso gesto (pera: para; gesto: rosto).A composição alta e milagrosaAqui falta saber, engenho e arte. (falta conhecimento dos preceitos, o talento ou inspiração e a técnica poética).

Ao longo do soneto escrito, conforme a tradição italiana, se constata uma celebração do amor e da singularidade da mulher. Nota-se que o amor é apresentado de maneira contraditória, feito de “brandas iras” e “temerosa ousadia”, embora capaz de despertar os que não vivenciaram esse complexo sentimento.

No que diz respeito à figuração do feminino, Camões se refere a uma senhora, dona de um olhar a um só tempo brando e rigoroso, o que pode sugerir tanto a sua condição social quanto o distanciamen-to dela em relação ao sujeito poético.

Curioso notar que, ao tentar descrever o gesto, a expressão facial da senhora, a composição alta e prodigiosa do rosto, o poeta afirma modestamente não ser possuidor de “engenho e arte”, o que não deixa de ser contraditório, pois o soneto é esteticamente perfeito. O nosso interesse se concentra na chave de ouro com que se arremata o poema. A fatura meta-poética se caracteriza no verso “Aqui falta saber, engenho e arte”:

Saber :::: – lembrar que na Carta XII, de Antônio Ferreira, recomendava-se o saber como princí-pio fundamental: “Do bom escrever, saber primeiro é fonte”, ou “Quem não sabe do ofício não o trata”, pois considerava inadmissível a mediocridade ou a auto-suficiência.

Engenho e arte:::: – o engenho remete à capacidade de concepção, à inspiração que deve ser disciplinada pelas regras da arte. Lembrar que, entre os preceitos da ars poética clássica, pode-se mencionar a adequação do tema ao estilo, a lapidação do verso, o referido Limae labor. E o trabalho da lima se constata na seleção vocabular, na elaboração de 14 versos decassílabos, no esquema regular de rimas e de estrofação, o que torna o trabalho do poeta similar ao de um ourives, como um joalheiro a lapidar um diamante7.

7 Camões, juntamente com Bocage, Antero de Quental e Florbela Espanca são considerados os principais representantes, em Portugal, dessa ourivessaria verbal.

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Observe:

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Eu ∕ can∕ ta∕ rei∕ de a∕ mor∕ tão∕ do∕ ce∕ men∕ te

O verso decassílabo é composto de dez sílabas métricas ou poéticas. Conta-se até a última sílaba tônica. O verso é chamado de decassílabo heróico quando acentuado na sexta e na décima sílaba po-ética, caso do verso supracitado.

Quanto à adequação do tema ao estilo, da linguagem ao assunto, pode-se notar a valorização do padrão culto da língua. Isso era uma verdadeira bandeira dos clássicos. Como dissemos, a demanda pela afirmação do idioma português corria paralela à da afirmação da nacionalidade. No século XVI, em Portugal se verifica não só a completa unificação territorial, a centralização do poder nas mãos do rei, a unificação dos pesos e medidas, mas também o desenvolvimento do próprio idioma. Já não se trata mais do português arcaico, misto de galego e português, uma vez que os poemas de Camões atestam a fixação do português erudito e moderno.

Enfim, se uma das condições de possibilidade da poesia clássica era a imitação dos antigos, vale dizer que Camões cede ao gosto do tempo ao “imitar” o soneto de Petrarca “Io canterei d`amor si nova-mente”. A aceitação dos modelos canônicos desafiava o poeta a tentar superá-los. Não se tratava de plá-gio, mas de emulação.

E o mesmo se pode dizer do soneto “Transforma-se o amador na cousa amada”, cujo mote tam-bém foi tomado de empréstimo a Petrarca, “L’amante nell’amato si trasforma”. Leia-se:

Transforma-se o amador na coisa amada,Por virtude do muito imaginar;Não tenho logo mais que desejar, Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,Que mais deseja o corpo de alcançar?Em si somente pode descansar, Pois consigo tal alma está ligada.

Mas esta linda e pura semidéia,Que, como o acidente em seu sujeito,Assim como a alma minha se conforma,

Está no pensamento como idéia; O vivo e puro amor de que sou feito,Como a matéria simples busca a forma.

Trata-se de um dos mais antológicos e perfeitos sonetos “clássicos” de Camões, uma vez que se cultua o limae labor, o que se constata na tessitura do soneto escrito em decassílabos heróicos, com es-quema regular de rimas (abba abba cdc cdc) e por aí afora.

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Para identificar se há ou não regularidade no esquema rímico (de rimas), observe a terminação dos versos e os nomeie com as primeiras letras do alfabeto. Assim, nos quartetos, o final do primeiro ver-so rima com o quarto verso e o segundo com o terceiro, conforme o esquema abba. Já as rimas do pri-meiro terceto se repetem de modo alternado no segundo terceto conforme o esquema cdc. Observe:

____________________________ a ____________________________ b ____________________________ b ____________________________ a

____________________________ a ____________________________ b ____________________________ b ____________________________ a

____________________________ c ____________________________ d ____________________________ c

____________________________ c ____________________________ d ____________________________ c

Amor com engenho e artePara Antonio Candido, o soneto é um instrumento expressivo italiano (ou fixado e explorado por

eles) apto pela sua estrutura a exprimir uma dialética; isto é, uma forma ordenada e progressiva de ar-gumentação. Antonio Candido nota certa analogia entre a marcha do soneto e a de certo tipo de ra-ciocínio lógico, uma vez que, em geral, contém uma proposição ou uma série de proposições e uma conclusão (CANDIDO, s∕d, p. 20). A definição se aplica ao texto de Camões?

Por certo, o soneto “Transforma-se o amador na coisa amada” desenvolve uma linha de raciocínio na qual se contrastam dois conceitos sobre o amor: como idéia e como forma.

Nos quartetos, identifica-se a união do amante com a amada por meio do imaginar, termo que significa evocação, pensamento. Daí decorre a despersonalização do sujeito poético, cuja identificação é tão intensa que ele termina por se fundir espiritualmente à pessoa desejada. Aqui, emerge uma con-cepção de amor enquanto idéia, ou representação de um ideal superior, imaterial, o que se convencio-nou chamar de neoplatonismo8.

Contudo, se ao poeta do Classicismo se exige a imitação dos antigos, não é menos certo dizer que o mesmo deve acrescentar engenho e arte com vistas à emulação. Deve ter a capacidade de suplemen-tar o dado.

8 Segundo José de Nicola, Camões retoma a filosofia de Platão. “Platão concebia dois mundos: o mundo sensível, em que habitamos, e o mun-do inteligível, das idéias puras. Neste, encontramos as divinas essências, as verdades: Deus, o Belo, o Bom, a Sabedoria, o Amor, a Justiça etc. No mundo sensível, as realidades concretas são simples sombras ou reflexos das idéias puras. As almas, que são imortais, habitam o mundo in-teligível; quando as almas caem da esfera inteligível para a sensível, conservam uma recordação que podem avivar por meio da reminiscência. Há, dessa forma, uma constante busca do ideal, que não é mais uma tentativa de ascensão do mundo sensível (das realidades concretas, meras imitações particulares) ao mundo inteligível (da essência, a verdade universal). No mundo sensível temos, por exemplo, amores particulares; no mundo inteligível, temos o Amor (a maiúscula indica sempre a essência, a idéia) ou melhor, o Amor platônico” (NICOLA, 1990, p. 64).

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Assim, como se pode ler nos tercetos finais, do soneto em questão, Camões acrescenta um toque pessoal ao questionar a concepção de amor neoplatônico tomada de empréstimo a Petrarca. Ele argumen-ta que o amor, para ser pleno, não pode invalidar o contato físico, o que o distancia de Platão, uma vez que este desqualificava o sensorial como imperfeição, mero reflexo deformado do amor ideal, das idéias puras.

Para Camões, o amor também deve ser “vivo”, ou vivido, não só intelectualizado. É a matéria que busca a forma, o amador que busca a corporeidade da amada. Nessa busca, há uma afirmação de que o conhecimento do amor deriva da experiência. É o que se lê, de outro modo, no famoso episódio da ilha dos amores, no canto IX de Os Lusíadas, sobre o amor.

Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo, Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

Nesse sentido, caberia perguntar se, ao colocar a impossibilidade de que um amor possa ser ple-no sem correspondência corporal, Camões não sugeriria uma visão de mundo marcada pela afirma-ção das potencialidades humanas, logo, com dominância cultural antropocêntrica? Lembre-se que no Renascimento o ser humano acreditou poder romper os limites até então aceitos, tomou consciência da geografia do planeta por conta das Grandes Navegações, começou a ver o universo com outros olhos, graças ao aperfeiçoamento do telescópio por Galileu, observou mais atentamente o próprio corpo des-cobrindo a circulação sanguínea e por aí afora.

Para concluir, voltemos à epígrafe. Se Camões, ao pensar o Amor na sua integralidade, na qual se misturam o sensível e o inteligível, o ideal e o humano, termina por humanizar a tópica amatória, o que di-zer do soneto de Vinicius de Moraes? De certo modo, vibra no mesmo diapasão do poema camoniano.

Os teóricos da literatura nos ensinam que todo texto é um intertexto, estabelece uma rede de re-lações, de diálogos, de remissões a outros textos.

Na poesia de Vinicius há algumas marcas intertextuais que não passam desapercebidas. O verso “E em seu louvor hei de espalhar meu canto”, destinada a cantar o amor, remete-nos ao verso camonia-no “cantando espalharei por toda a parte” (Os Lusíadas, Canto I), destinado a cantar o seu amor à pátria. Ao escrever:

Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes manifesta a sua recusa ao amor “transcendente”. Ele não usa a palavra “chama” de ânimo leve. Lembra-se que o Amor, na esteira platônica, era concebido justamente como uma cha-ma, luz que ilumina o caminho ascensional para o mundo inteligível, o mundo das idéias puras, abso-lutas, em conseqüência, imortais. Embora Camões prefira conciliar o vivo e o puro amor de que se dizia feito, na chave de ouro do soneto de Vinicius de Moraes também se valoriza o vivo amor (minusculado), pois sensível, corporal, efêmero, enfim, humano. De resto, vale registrar a retomada, no século XX, em pleno modernismo brasileiro, da forma fixa clássica e de temas comuns à poesia do Classicismo portu-guês para se tecer um poema com igual esmero, melhor, com engenho e arte.

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ConclusãoEm sentido amplo, os preceitos da arte poética clássica condicionaram a criação literária ao lon-

go do Barroco e do Arcadismo. Há um empenho em seguir as regras do bom poetar na composição de sonetos, odes, elegias, sátiras, poemas épicos. Praticamente não há inovações no aspecto das manifes-tações formais ao longo dos séculos XVI ao XVIII, salvo no uso que se fez delas, ora como maneira de enaltecer uma fé e a ideologia da Contra-Reforma, no Barroco (1580-1756), ora como reivindicação po-lítica da burguesia emergente, na época do chamado Arcadismo (1756-1825).

Sabemos que a ruptura com a arte poética clássica foi patrocinada pela “vanguarda” romântica, que fez estalar a crosta das convenções mediante a veemência passional, a supervalorização das emo-ções pessoais, cuja origem é, por certo, um remake daquela religião dos trovadores medievais.

Resta voltar a uma das questões iniciais. Por que ler os poemas de Camões? Porque os poemas de Camões são clássicos, nas duas acepções do termo e enquanto textos elaborados segundo determina-da tradição poética.

Mas também, conforme Ítalo Calvino (2001, p. 9-16), porque os clássicos são obras que ultrapas-sam o seu tempo, persistindo de alguma maneira na memória coletiva, sendo atualizados por sucessi-vas leituras no transcurso da história. Porque os clássicos são obras que registram e simultaneamente inventam a complexidade de seu tempo, logo, podem ser tomados como forma de conhecimento, uma vez que transmitem paixões humanas oriundas de um patrimônio universal, que é a experiência do próprio ser humano. Porque os clássicos podem servir para entender quem somos e aonde chegamos. Enfim, porque os textos clássicos são um não contra a morte: por perdurar, a obra clássica ultrapassa o tempo e a finitude humana, o que não deixa de ser um protesto contra o sem sentido da vida.

Eis a importância de se ler Camões, cuja poesia é uma janela aberta aos ventos, inquietudes e certezas de seu tempo, numa frase-valise de Georges Le Gentil incarne à lui seul tous les courants de son temps (encarna sozinho todas as correntes de seu tempo). Como remate, deixemos as últimas palavras com Carlos Drummond de Andrade, dedicadas a Luís Vaz de Camões:

Camões: História, Coração, LinguagemCarlos Drummond de Andrade

na folha branca vieste demonstrando e que ao homem, na luta contra o fado, cabe tentar, cabe vencer, perder, e nisto se resume a irresumível humana condição no eterno jogo sem sentido maior que o de jogar. E quando de altos feitos te entedias e voltas ao comum sofrer pedestre do desamado, não te vejo a ti perdido de saudades e desdéns. Luís, homem estranho, que pelo verbo és, mais que amador, o próprio amor

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latejante, esquecido, revoltado, submisso, renascente, reflorindo em cem mil corações multiplicado. És a linguagem. Dor particular deixa de existir para fazer-se dor de todos os homens, musical, na voz de órfico acento, peregrina. Que pássaro lascivo se intercala no queixume sutil de tua estrofe e não se sabe mais se é dor, delícia, e espinho, afago, e morte, renascença? Volúpia de gemer, e do gemido destilar a canção consoladora a quantos de consolo careciam e jamais a fariam por si mesmos? (Amaldiçoado dia de nascer que em bênçãos para nós se converteu!) Já tenho uma palavra pré-escrita que tudo exprime quanto em mim se turva. Pelos antigos e pelos vindouros, foste discurso de geral amor. Camões, oh som de vida ressoando em cada tua sílaba fremente de amor e guerra e sonho entrelaçados!

Textos complementares

Romantismo e ClassicismoAnatol Rosenfeld / J. Guinsburg

[...]

No que se baseou tão cerrada empresa artística? Quais são os seus princípios? De acordo com Croce, em sua Iniciação à Estética, o Classicismo se distingue fundamentalmente por elementos como o equilíbrio, a ordem, a harmonia, a objetividade, a ponderação, a proporção, a serenidade, a disciplina, o desenho sapiente, o caráter Apolíneo, secular, lúcido e luminoso. É o domínio do diur-no. Avesso ao elemento noturno, o Classicismo quer ser transparente e claro, racional. E com tudo isso se exprime, evidentemente, uma fé profunda na harmonia universal. A natureza é concebida essencialmente em termos de razão, regida por leis, e a obra de arte reflete tal harmonia. A obra de arte é imitação da natureza e, imitando-a, imita seu concerto harmônico, sua racionalidade profun-da, as leis do universo.

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Outro aspecto relevante é o disciplinamento dos impulsos subjetivos. O escritor clássico domi-na os ímpetos da interioridade e não lhes dá pleno curso expressivo. De certo modo, pode-se consi-derar que ele se define precisamente por esta contenção. [...]

Há evidentemente, nesse domínio, certa autolimitação. O autor desaparece por trás da obra, não quer manifestar-se. Ou melhor, seu desejo manifesto é o de ser objetivo. A obra é o que vale como tal e não pelo que ela diz de seu criador. Ela é uma comporta fechada e não aberta. Tal fato exige uma maneira de formar rigidamente ligada ao objeto ou à idéia que se tem dele. Daí a impor-tância dos procedimentos que exumem um caráter de regras. Na medida em que se enquadra em tais leis, a obra é boa, “clássica”. f. o caso das “três unidades” na dramaturgia. Julga-se que elas deter-minam a exemplaridade de uma peça.

Ao mesmo tempo, vigora no Classicismo uma rígida separação das artes: elas não se confun-dem, cada uma obedece a seus próprios ditames. De igual modo, dentro da literatura, cada gênero tem suas leis específicas. A poesia lírica não deve valer-se do padrão épico e este não se confunde com a poesia dramática. A cada gênero correspondem preceitos especiais e a confusão entre os vá-rios tipos de composição é tida como um grave defeito. A obra deixa de ter o valor que poderia al-cançar se se conformasse exatamente às regras dos respectivos gêneros.

Relevante também é a lei da tipificação: a arte clássica não quer diferenciar e individualizar, seu propósito é sempre chegar ao geral e ao típico. Na pintura e na escultura, sua busca é a do univer-sal. Na literatura, esquiva-se de descer a distinções psicológicas, muito minuciosas. Em todas as suas formas de expressão, tenta fixar o universalmente humano.

Trata-se de um princípio fundamental do Classicismo, já estabelecido nitidamente na dramatur-gia por Aristóteles, mas com validade para todas as outras artes. Numa ordem similar de diferencia-ção, os clássicos separam igualmente os estilos. Há um estilo alto, de que faz parte, na dramaturgia, por exemplo, a tragédia. Esta espécie de peça não pode recorrer à palavra de extração inferior, de-vendo ser plasmada e escrita segundo o elevado contexto estilístico que lhe é pertinente. A comé-dia, por seu turno, exige um padrão médio de composição, enquanto a farsa há de ser escrita em estilo baixo. Os mesmos preceitos estilísticos, racionalizados e canonizados, imperam nas demais formas da produção artística, uma vez que o efeito visado é sobretudo o da clareza e regularidade.

Mais um aspecto, que deflui logicamente de tudo quanto já foi dito, é que no Classicismo o valor estético reside na obra, e somente nela. Por trás da arte, deve desaparecer o artista. Sem ser um anônimo mestre ou oficial, este trabalha quase como um artesão, seguindo as regras estabeleci-das, às quais se conforma e se ajusta humildemente. Uma obra, por sua vez, sendo basicamente um autovalor, deve por si fazer-se valer esteticamente, perante o público: mas não para comunicar-lhe apenas a beleza. O efeito da obra terá de ser “dulce et utile”, como diz Horácio. Isto é, além de susci-tar reações aprazíveis, ela deve trazer proveitos de natureza prática, sobretudo didática. Na verdade, segundo a visão classicista, a obra será tanto mais realizada quanto maior o seu poder de veicular, através da bela e suave revelação da forma, ensinamentos e verdades que elevem o conhecimento e contribuam para o aperfeiçoamento do gênero humano.

Nesta conexão, recebe particular destaque o efeito moral do produto artístico. Embora quase todos os grandes poetas e artistas – Dante e Shakespeare não menos do que Corneille e Racine – se-jam de opinião que a obra de arte tem uma função importante, antes de tudo ética, pois deve eno-brecer o homem, purgando-o da carga de paixões que ele acumula na vida social e não consegue

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TrípticoHerberto Helder

Transforma-se o amador na coisa amada, com seu feroz sorriso, os dentes, as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído e silêncio. Traz o barulho das ondas frias e das ardentes pedras que tem dentro de si. E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado silêncio da sua última vida. O amador transforma-se de instante para instante, e sente-se o espírito imortal do amor criando a carne em extremas atmosferas, acima de todas as coisas mortas.

Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro. E a coisa amada é uma baía estanque. É o espaço de um castiçal, a coluna vertebral e o espírito das mulheres sentadas. Transforma-se em noite extintora. Porque o amador é tudo, e a coisa amada é uma cortina onde o vento do amador bate no alto da janela aberta. O amador entra por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate. O amador é um martelo que esmaga. Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher que escuta

descarregar, o Classicismo lhe dá um relevo específico, vinculando-o à boa “forma”, capaz de falar à razão”.

[...]

Disponível em: <www.unb.br/il/tel/Graduacao/romantismo/classicismo_romantismo.htm>.

Acesso em: 11 jun. 2008.

Vale a pena conferir o poema de Herberto Helder que remete ao soneto de Camões conhecido pelo primeiro verso “Transforma-se o amador na coisa amada”.

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fica com aquele grito para sempre na cabeça a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito do amador. Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador, dá-lhe o grito dele. E o amador e a coisa amada são um único grito anterior de amor.

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito de amador. E ela é batida, e bate-lhe com o seu espírito de amada. Então o mundo transforma-se neste ruído áspero do amor. Enquanto em cima o silêncio do amador e da amada alimentam o imprevisto silêncio do mundo e do amor.

(HELDER, Heberto. Transforma-se o amador na coisa amada. In: A colher na boca. 1930.)

Estudos literários1. Leia o poema de Florbela Espanca (1894-1930), intitulado “Fanatismo” (Livro de Soror Saudade –

1923) e descreva processos compositivos que permitem aproximá-lo da arte poética clássica, vi-gente em Portugal a partir do século XVI.

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida. Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão do meu viver, Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida... Passo no mundo, meu Amor, a ler No misterioso livro do teu ser A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa...” Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros: “Ah! Podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...”

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2. Pode-se afirmar que o livro de Luís Vaz de Camões, intitulado Rhythmas, é representativo do Classicismo português? Justifique.

3. Em que consiste o princípio “imitação dos antigos”, uma das características fundamentais da arte poética clássica?

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4. Identifique a máxima que melhor caracteriza a missão ou função da literatura clássica. Justifique a sua escolha.