apostila da literatura portuguesa

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FTESM Literatura Portuguesa I Professora Deize Fonseca [email protected]

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Introdução à Literatura Portuguesa

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FTESM

Literatura Portuguesa I

Professora Deize [email protected]

Fundação Técnico-Educacional Souza Marques Curso de LetrasDisciplina: Literatura Portuguesa IProfa. Deize Fonseca – [email protected]

PROGRAMA DA DISCIPLINA

Março:22. Origens da Língua e da Literatura Portuguesa29.Trovadorismo (aula 1)

Abril05. GQ112. O Trovadorismo (aula 2)19. O Trovadorismo (aula 3)26. O Trovadorismo (aula 4)

Maio03. O Humanismo10. Gil Vicente O Auto da Barca do Inferno 17. Gil Vicente O Auto da Barca do Inferno24. Gil Vicente A Farsa de Inês Pereira31. Gil Vicente A Farsa de Inês Pereira

Junho07. GQ214. Revisão21. Revisão28 GQE

Julho05 Avaliação do curso12 GQF

Bibliografia

AMORA, A.S, SPINA, S & MOISÉS M. Presença da Literatura Portuguesa. História e Antologia. Era Medieval Vol. 1. São Paulo: DIFEL, 2006

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo. Ed. Cultrix, 1997.

SARAIVA, A. José. Iniciação à Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, 1998.

VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. São Paulo: O Globo/Klick Editora,1997

http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/bases-tematicas/literatura-portuguesa.html

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp - Download gratuito das obras de Gil Vicente

Introdução

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Portugal ocupa especial posição geográfica no mapa da Europa. Reduzido território

de menos de 90 000 km2, limita-se com a Galiza ao norte, com a Espanha a leste, e

com o Oceano Atlântico ao sul e a oeste. Como empurrado contra o mar, toda a sua

história, literária e não, atesta o sentimento de busca dum caminho que só ele

representa e pode representar. Tal condicionamento geográfico, enriquecido por

exclusivas e marcantes influências étnicas e culturais (árabes, germânicas,

francesas, inglesas, etc.), havia de gerar, como gerou, uma literatura com

características próprias e permanentes. A "fatalidade" de ser a Língua Portuguesa

seu meio de comunicação ajuda a completar e explicar o quadro.

Diante da angústia geográfica, o escritor português opta pela fuga ou pelo apego à

terra, matriz de todas as inquietudes e confidente de todas as dores, centro de

inspiração e nutridora de sonhos e esperanças. A fuga dá-se para o mar, o

desconhecido, fonte de riqueza algumas vezes, de males incríveis e de emoção

quase sempre; ou, transcendendo a estreiteza do solo físico, para o plano

metafísico, à procura de visualizar numa dimensão universal e perene a inquietação

particular e egocêntrica.

Assim, a Literatura Portuguesa oscila entre posições extremas, com certeza porque

uma compensa a outra. Ao lirismo de raiz, por vezes carregado de pieguice e

morbidez, corresponde um sentimento hipercrítico, exagerado, pronto a agredir, a

ofender, a mostrar no "outro" a chaga ou a fraqueza. A sátira, não raro levando ao

desbocamento e ao destempero pessoal, dialoga com o culto fetichista da sensação,

do sentimento, exacerbado por atitudes de confessionalismo adolescente. Uma

atitude esconde a outra, a tal ponto que na base íntima de todo satírico ou erótico

se percebe logo o sentimental, o hipersensível, que defende suas tibiezas com o

verniz do procedimento contrário. E vice-versa.

Vem daí que seja uma literatura rica de poetas: aquela ambivalência constitui o

suporte do "fingimento poético", na expressão feliz, e hoje tornada lugar-comum, de

Fernando Pessoa. A poesia é o melhor que oferece a Literatura Portuguesa, dividida

entre o apelo metafísico, que significa a vivência e a expressão de problemas

fundamentais e perenes (a existência ou não de Deus, o ser e o não-ser, a condição

humana, os valores do espírito, etc.), e a atracção amorosa da terra (representada

por temas populares, folclóricos), ou um sentimento superficial, feito da confissão

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de estados de alma provocados pelos embates amorosos primários, tendo por fulcro

o eterno "eu-te-gosto-você-me-gosta", de que fala Carlos Drummond de Andrade.

Não obstante essa derradeira tendência se constitua em pólo permanente, a

Literatura Portuguesa ocupa lugar de relevo no mapa literário europeu graças a

alguns poetas vocacionados para a contemplação metafísica, como Camões,

Bocage, Antero, Fernando Pessoa, entre outros.

Literatura pobre em teatro, eis outra afirmação indiscutível. Decorrência natural do

arraigado lirismo egocêntrico e sentimental, a dramaturgia portuguesa só poucas

vezes alcançou sair do nível medíocre ou meramente razoável. Tirante Gil Vicente,

Garrett (sobretudo o de Frei Luís de Sousa) e alguma coisa de António José da Silva,

tudo o mais vive no esquecimento. O grande surto teatral operado nos dias que

correm, embora prometedor e já realizador de peças notáveis, é ainda muito

recente para permitir afirmar que a actividade cénica em Portugal conhece uma

quadra de reviravolta e mudança radical.

O romance, que jamais foi o forte da Literatura Portuguesa, entrou em depressão

após a morte de Eça de Queirós, em 1900. Modernamente, sobretudo depois de

1940, numa convergência de várias direcções no campo da ficção, o romance

português vive uma época de evidente esplendor, pela quantidade e qualidade de

seus cultores.

Ao contrário da poesia, que corre mais ou menos ofuscada pelo brilho da obra

pessoana, a prosa de ficção vem-se tornando nos últimos anos, o prato de

resistência da Literatura Portuguesa contemporânea. Se isso denuncia alguma

transformação profunda na mentalidade do povo português, é um vaticínio que

ninguém pode fazer, em sã consciência.

A crítica literária, por sua vez, não pode ser o forte duma literatura acentuadamente

lírica: as mais das vezes, ou se resolve num historicismo arquivístico mais ou menos

superficial, quando não inócuo ou pedante, ou se resolve num impressionismo

sentimental e ufanista, extremado no elogiar e no tripudiar. Atitudes racionalistas,

de bom senso, ou de ensaismo criador, constituem excepções, que só na última

vintena se vêm fazendo mais frequentes, mercê da influência recebida da crítica

alienígena, a experimentar métodos de rigor e de análise mais objectivos e

endereçados ao cerne estrutural das obras antes que ao seu envoltório eruditivo.

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País europeu, embora de fisionomia peculiarmente voltada para a América e a

África, Portugal tem acompanhado todas as mutações histórico-literárias operadas

no resto da Europa, sobretudo na França. Delas deriva a ideia da existência de uma

série de lapsos históricos, caracterizados pela imposição e predomínio de certo

estilo de vida e de cultura. Graças à predominância de uns valores sobre outros,

esses "momentos" ou "processos" históricos possuem individualidade própria, e

assim devem ser entendidos. Os estudiosos têm-nos rotulado de modo diverso,

conforme a perspectiva e a base ideológica em que se apoiam: Humanismo,

Classicismo, Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Simbolismo,

Decadentismo, Surrealismo, Impressionismo, etc., uma legião de "ismos" com vário

significado. Pondo de parte toda a complexa problemática que envolve essa

rotulação um tanto quanto arbitrária e colocando-nos ao nível objectivado por este

livro, dir-se-ia que as denominações servem, antes de mais nada, para situar os

escritores em épocas históricas, tendências e movimentos literários ou estéticos.

Evidentemente, a simples localização deles no tempo e no estilo de vida e cultura

correspondente não quer dizer que estejam resolvidos todos os problemas

correlatos, mas ajuda a sanar elementares e corriqueiras falhas interpretativas.

Por outro lado, é preciso alertar o leitor para o erro oposto: há quem julgue,

certamente por primarismo ou imaturidade intelectual, que todos os problemas

relativos a determinado escritor podem ser explicados, justificados e

compreendidos, pelo simples encaixilhamento dele no seu lugar histórico, como se

ele, por viver em certa época, tivesse fatalmente de participar da tendência literária

colocada em primeiro plano.

Assim sendo, compreende-se que este roteiro da Literatura Portuguesa esteja

dividido em nove fundamentais "momentos" evolutivos. Quanto às datas

empregadas para os delimitar, constituem somente pontos de referência, pois

nunca se sabe ao certo quando termina ou começa um "processo" histórico: quando

muito, funcionam como sinal, indício de que alguma coisa de novo está

acontecendo, sem significar a morte definitiva do padrão velho até aí em voga. Há

uma interpenetração contínua das estéticas literárias, e é só por desejo didáctico de

clareza que as delimitamos artificialmente com o auxílio de datas. Para escolhê-las,

o estudioso usa de seu livre-arbítrio, dado o carácter relativo e provisório da

demarcação temporal dos fluxos estéticos. Entretanto, sob pena de levar à

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anarquia, dois critérios podem presidir à selecção de datas: um, o critério cultural,

que, enfatizando a interdependência das mudanças culturais, se apoia em datas de

valor total para marcar o início de épocas histórico-literárias (a Revolução Francesa

assinalaria o começo dum novo ciclo de cultura, cujas profundas transformações

incluiriam necessariamente a Literatura: o Romantismo literário seria sua

consequência imediata); o critério literário, que isola o fato literário balizado pelo

aparecimento duma obra, dum escritor ou duma ocorrência apenas importante para

a Literatura (o Romantismo francês iniciar-se-ia em 1820, com a publicação de Les

Méditations, de Lamartine). Transpondo o exemplo para o caso português, teríamos

que a revolução liberal do Porto, em 1820, corresponderia ao despontar de algo de

novo, culturalmente falando (por sua vez ligado à Revolução Francesa: o critério

prevê sua utilização em vários níveis conforme a importância universal ou nacional

do acontecimento em causa), enquanto a publicação de Camões, de Garrett, em

1825, daria começo ao Romantismo literário propriamente dito.

Na verdade, por serem ambos os critérios igualmente válidos e legítimos, pode o

estudioso optar por qualquer um deles. No entanto, a opção deverá manter-se

aberta, isto é, admitir que um critério não exclui terminantemente o outro: em

vários casos, é forçoso apelar para aquele que se pôs de parte, a fim de esclarecer

aspectos que doutro modo permaneceriam obscuros. Por isso, em atenção ao

conceito de Literatura enunciado no prefácio, vou adoptar o critério literário, mas,

sempre que possível e necessário, chamarei à baila o cultural. Aliás, o próprio

carácter da introdução geral a cada capítulo denuncia o compromisso e a interacção

existentes, por natureza, entre o conspecto histórico e a actividade literária ao longo

das nove épocas da Literatura Portuguesa.

Qualquer que seja o critério escolhido, cabe pôr uma questão preliminar: quando

começou a actividade literária em Portugal?

Antes de respondê-la, importa salientar que a Literatura Portuguesa, em

consequência duma conjuntura histórico-cultural que não vem ao caso discriminar,

nasceu quase simultânea mente com a nação onde se enquadra. Em 1094, Afonso

VI, Rei de Leão, um dos reinos em que a Península Ibérica era dividida (os outros:

Castela, Aragão e Navarra), casa suas filhas, Urraca com o Conde Raimundo de

Borgonha, e Teresa com D. Henrique. Ao primeiro genro, doa uma extensa região de

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terra correspondente à Galiza; ao segundo, o território compreendido entre o rio

Minho e o Tejo, com o nome de "Condado Portucalense". Após a morte de D.

Henrique (em 1112 ou 1114), D. Teresa toma as rédeas do governo e estreita

relações com os galegos, especialmente com o Conde Ferrão Peres de Trava. O

Infante, Afonso Henriques, rebela-se contra a mãe, e inicia uma revolução que

culmina em 24 de Junho de 1128, na batalha de S. Mamede, nos arredores de

Guimarães: os revoltosos vencem e sagram o Infante seu soberano. Ainda não era

tudo, pois faltava, o reconhecimento de Leão e Castela, que só se efectuou em

Outubro de 1143, na Conferência de Samora, quando Afonso VII reconhece Afonso

Henriques como rei. O País tornava-se autónomo, mas a luta pela consolidação

levaria muito tempo, sobretudo dedicado à expulsão dos sarracenos.

Ora, a data que se tem utilizado para marcar o início da actividade literária em

Portugal, é a de 1198 (ou 1189), quando o trovador Paio Soares de Taveirós compõe

uma cantiga (designada como Cantiga de Garvaia, palavra que designava um

luxuoso vestido de Corte), endereçada a Maria Pais Ribeiro, também chamada A

Ribeirinha, favorita de D. Sancho I. A cantiga, oscilando entre ser de amor e de

escárnio, revela tal complexidade na estrutura e na composição das imagens, que

só se justificaria num estágio avançado da arte de poetar. Isso equivale a dizer que

decerto houve, antes dessa cantiga, considerável actividade lírica, infelizmente

desaparecida: via de regra, os trovadores memorizavam as composições que

interpretavam, fossem suas ou alheias, e só em alguns casos as transcreviam em

cadernos de notas, que podiam extraviar-se, perder-se ou ser postos fora. Por isso,

toda uma anterior produção poética - cujo volume e cujos limites jamais poderão ser

fixados - desapareceu por completo. Em vista de tal circunstância, compreende-se

que se tome a cantiga de Paio Soares de Taveirós como marco inicial da Literatura

Portuguesa apenas pelo fato de ser o primeiro documento literário que se possui em

Língua Portuguesa, o que de forma alguma significa negar a existência duma

intensa actividade poética antes de 1198.

Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa

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«Toda a glória de viverdas gentes é ter dinheiro,

e quem muito quiser tercumpre-lhe de ser primeiro

o mais ruim que puder»

Gil Vicente, Auto da Feira – 1527

Origens da Literatura Portuguesa

A Formação de Portugal

A Península Ibérica está separada do resto da Europa pela cadeia dos Pirineus e

estende-se rumo ao Oceano Atlântico.

O encontro de vários povos, há cerca de dez mil anos, gerou um processo de

miscigenação e aculturação. No entanto, as várias culturas existentes na Península

foram reduzidas a um denominador comum a partir do domínio romano. (cerca de

219 a . C)

A língua falada pelos conquistadores, o latim, dominou toda a região, sendo que o

latim falado, também chamado de latim vulgar, deu origem à Língua Portuguesa.

No século V, vários bárbaros invadiram a região, mas sofreram um processo de

romanização. Formou-se uma sociedade dividida em três níveis: o clero, a nobreza e

o povo.

No século VIII acontece a invasão muçulmana (árabe), que dura alguns séculos e

modifica algumas estruturas. O norte, não ocupado, serviu de refúgio aos cristãos,

que dali realizaram a Reconquista (retomada dos territórios ocupados pelos árabes).

A definição do território de Portugal e a sua existência como entidade política

independente no Oeste peninsular, está intimamente ligada ao processo da

Reconquista (Séculos VIII-XV). A Reconquista Cristã deu-se com a formação do

condado Portucalense em 1096, quando D. Afonso VI separou este território da

Galiza para o conceder ao conde D. Henrique de Borgonha, que viera para a

Península para ajudar na luta contra os mouros, concedendo-lhe também a mão de

sua filha Tereza. Em 1128, Afonso Henriques, filho do casal, declara a independência

do Condado Portucalense, combatendo o reino de Leão. Era o início da dinastia de

Borgonha, a primeira dinastia portuguesa. Portugal constitui-se, portanto, em plena

era medieval.

A Evolução da Língua Portuguesa

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O latim vulgar passa por uma fase de transição, dando origem a vários dialetos que

recebem o nome de romanço (do latim romance, que significa “maneira de falar dos

romanos”). Daí surgiram as várias línguas neolatinas, como o Castelhano, o Catalão,

o Galego-português. Deste último, surge a língua portuguesa.

Cronologicamente, o galego-português ficou limitado ao período compreendido

entre os séculos XII e XIV, coincidindo com a época da Reconquista. Nesse idioma

surgiram as primeiras manifestações literárias de Portugal, as cantigas.

O Trovadorismo

As origens da literatura portuguesa remontam ao século XII, quando Portugal se

constituiu como um país independente. Nessa época, com a unificação da

linguagem de Portugal e Galícia, passou-se a utilizar a língua galego-portuguesa.

Dois traços marcantes devem ser lembrados para uma visão da sociedade da época:

o teocentrismo, no plano religioso, e o feudalismo, no plano político-econômico.

Com o teocentrismo, isto é, a centralização da vida humana em Deus, expressava-

se a intensa religiosidade, que acompanhou toda a luta dos portugueses

empenhados na expulsão dos mouros da Península Ibérica.

Com o feudalismo, os nobres que possuíssem feudos exerciam os poderes do

governo por meio de um sistema de vassalagem, que era baseado numa espécie de

contrato que implicava obrigações mútuas entre o senhor e o vassalo. Os vassalos

obedeciam ao senhor e o serviam pela proteção e ajuda econômica que dele

recebiam. Esse sistema de vassalagem refletiu-se na poesia trovadoresca

principalmente nas cantigas de amor, em que o trovador se colocava normalmente

na condição de vassalo diante da dama.

É uma cantiga de amor o primeiro documento literário português, datado de 1189

(ou 1198). Trata-se da “Cantiga da Ribeirinha” (ou “da Guarvaia”), do poeta Paio

Soares de Taveirós, dedicada a D. Maria Paes Ribeiro, a Ribeirinha. Esse poema

assinala o início da época trovadoresca, que se estende até 1418, quando Fernão

Lopes é nomeado arquivista oficial da Torre do Tombo.

Os poetas dessa época eram chamados de trovadores. A palavra trovador vem do

francês trouver, que significa “achar”, “encontrar”. Dizia-se que o poeta “achava” a

música adequada ao poema e cantava acompanhado de instrumentos como a

cítara, a viola, a lira ou a harpa.

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A poesia trovadoresca tem sua importância como documento da história de nossa

língua, de costumes da época e como inspiradora do lirismo de poetas de escolas

posteriores. Carolina Michaelis de Vasconcelos foi a responsável pelo resgate dos

textos da Idade Média.

As poesias trovadorescas estão reunidas em cancioneiros, que estão reunidas em

três coletâneas:

Cancioneiro da Ajuda (séc. XIII , contendo 310 cantigas),

Cancioneiro da Vaticana (contendo 1205 cantigas)

Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, anteriormente chamado de

Colocci-Brancutti (sendo estes cópias de textos mais tardios, contendo 1647

cantigas).

Assim se dividiam os artistas:

Trovador: era o poeta, quase sempre um nobre, que compunha sem preocupações

financeiras.

Jogral, segrel ou menestrel: homem de condição social inferior, que se empregava

de castelo em castelo, entretendo a alta nobreza. Às vezes também compunha.

Soldadeira ou jogralesa – moça que dançava, cantava e tocava castanholas ou

pandeiro;

A cultura trovadoresca, surgida entre os séculos XI e XII, reflete bem o momento

histórico que caracterizava o período: na Europa cristã, a organização das Cruzadas

em direção ao Oriente, na Península Ibérica, a luta contra os mouros; o poder

descentralizado e as relações entre os nobres determinadas pelo feudalismo; o

poder espiritual em mãos do clero católico, detentor da cultura e responsável pelo

pensamento teocêntrico

Os trovadores de maior destaque na lírica galego-portuguesa são: Dom Duarte, Dom

Dinis, Paio Soares de Taveirós, João Garcia de Guilhade, Aires Nunes e Meendinho.

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No trovadorismo galego-português, as cantigas são divididas em: Satíricas (Cantigas

de Maldizer e Cantigas de Escárnio) e Líricas (Cantigas de Amor e Cantigas de

Amigo).

Cantigas de Maldizer: através delas, os trovadores faziam sátiras diretas, chegando

muitas vezes a agressões verbais. Em algumas situações eram utilizados palavrões.

O nome da pessoa satirizada podia aparecer explicitamente na cantiga ou não.

Cantigas de Escárnio: nestas cantigas o nome da pessoa satirizada não aparecia. As

sátiras eram feitas de forma indireta, utilizando-se de duplos sentidos.

Cantigas de Amor: neste tipo de cantiga o trovador destaca todas as qualidades da

mulher amada, colocando-se numa posição inferior (de vassalo) a ela. O tema mais

comum é o amor não correspondido. As cantigas de amor reproduzem o sistema

hierárquico na época do feudalismo, pois o trovador passa a ser o vassalo da amada

(suserana) e espera receber um benefício em troca de seus “serviços” (as trovas, o

amor dispensado, sofrimento pelo amor não correspondido).

Cantigas de Amigo: enquanto nas Cantigas de Amor o eu-lírico é um homem, nas de

Amigo é uma mulher (embora os escritores fossem homens). A palavra amigo

nestas cantigas tem o significado de namorado. O tema principal é a lamentação da

mulher pela falta do amado. 

Causas da decadência do trovadorismo

Rodrigues Lapa aponta as seguintes causas para a decadência do trovadorismo:

Decadência do mecenatismo real - até a metade do século XIV, os reis portugueses

mantinham os jograis, segréis, menestréis e as soldadeiras da Corte. Consta que D.

Pedro I de Portugal, por volta de 1366, foi o responsável pela extinção do lirismo

jogralesco na Corte. Na França, o gênero já entrara em decadência, saindo dos

ambientes palacianos para a porta das tavernas.

Aburguesamento de Portugal – a arte trovadoresca, essencialmente palaciana, já

não tinha llugar a partir da mudança estrutural da sociedade após a Revolução de

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Avis (1383-1385). A vida portuguesa tomou outros rumos e Lisboa converteu-se em

grande empório comercial.

Conflitos entre Portugal e Espanha – o galego-português foi a língua do

trovadorismo em toda a Península Ibérica, graças à importância das peregrinações à

Santiago de Compostela, na Galiza, que influenciaram toda a região.Entretanto, a

partir do reinado de D.Afonso IV, as relações entre Portugal e Espanha tornaram-se

tensas, o que causou a separação linguística e literária.

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Cantigas de Amor

As cantigas de amor têm origem provençal, sendo a Provença uma região do sul da

França.

“Contêm a confissão amorosa do trovador, que padece por desejar uma dama

inacessível em consequência de sua condição social superior ou de ele

desdenhar a sua posse, visto proibi-lo o sentimento espiritualizante de que

está possuído”. (Moisés, 1997)

O ambiente das cantigas de amor é sempre o palácio, com o trovador declarando

seu amor a uma dama.

Nestas Cantigas, o eu-lírico é sempre masculino. Aliás, só homens escreviam

cantigas, pelo menos em Portugal, já que às mulheres não era dada a oportunidade

da alfabetização. A mulher é chamada de mia senhor (minha senhora), pois em

galego-português a palavra era invariável, servia para os dois gêneros. Ela sempre é

a Dona. (A palavra Dona procede do latim domina, a mesma palavra que resultou

em português no verbo dominar.)

A declaração amorosa (em linguagem rebuscada) do trovador obedece a

determinadas convenções conhecidas como amor cortês (cortês relativo à corte e

ao ambiente palaciano).

As convenções do amor cortês refletem a hierarquia do mundo feudal: a mulher

sempre inatingível, é a senhora a quem o trovador se dirige em vassalagem

amorosa. Por isso, a figura feminina é sempre objeto de adoração por parte do eu -

lírico. O sofrimento amoroso é conhecido como coita, que transforma o trovador em

um “coitado”.

A mesura é uma das convenções do amor cortês, obrigando o trovador a conter-se

na expressão do sentimento (contenção amorosa), a não divulgar jamais o nome da

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mulher amada (para proteger a honra da dama) e a situar a mulher acima de tudo e

de todos, inclusive dele próprio, daí temos o advento da idealização amorosa

Cantiga da Ribeirinha, de Paio Soares de Taveirós

Esta cantiga de Paio Soares de Taveirós é considerada o mais antigo texto escrito em galego-português:1189 ou 1198, portanto fins do século XII. Uns a tomam por cantiga de amor; outros por de escárnio. Segundo consta, foi dedicada a D. Maria Paes Ribeiro - apelidada "A Ribeirinha", amante do rei D. Sancho I - e pertence ao Cancioneiro da Ajuda. É também conhecida como Cantiga da Garvaia.

No mundo nom me sei parelha, mentre me fôr como me vai, ca ja moiro por vós - e ai mia senhor branca e vermelha, queredes que vos retraia quando vos eu vi em saia! Mau dia me levantei, que vos enton nom vi fea!

E, mia senhor, dês aquel dia, ai!  me foi a mi mui mal,e vós, filha de don Paai Moniz, e ben vos semelha d'haver eu por vós guarvaia, pois eu, mia senhor, d'alfaia nunca de vós houve nem hei valia d'ua correa".

O exame dos aspectos extrínsecos da cantiga de Paio Soares de Taveirós nos pode

ensinar quanto a certos termos de técnica poética empregados durante a

florescência trovadoresca. A estrofe recebia o nome de cobra, cobra ou talho. O

verso denominava-se palavra, e quando sem rima (como se afigura o segundo verso

da segunda cobra: "me foi a mi mui mal"), palavra perdida. O encadeamento (ou

"enjambement:') entre dois versos, ocorrido entre o terceiro e o quarto da primeira

cobra (queredes que vos retraia quando vos eu vi en saia!"), era designado pelo

vocábulo atafinda. Repare-se que a cantiga, formada de duas oitavas, não possui

estribilho ou refrão: por isso, chama-se cantiga de maestria. (Moisés, 1997)

Cantiga de D. Dinis

D. Dinis A cantiga seguinte, sendo inequivocamente de amor, ressaltará, por

contraste, o que no cantar de Paio Soares de Taveirós constitui licença

poética tomada de empréstimo à cantiga de escárnio. Para tanto, recorremos

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ao Rei D. Dinis (1261-1325), protetor de poetas, amante da cultura (fundou a

Universidade de Lisboa, primeira do País em 1290), e trovador dos mais

insignes e o que mais cantigas escreveu (são-lhe atribuídas 138 composições,

das quais 76 de amor, 52 de amigo e 10 de maldizer). A cantiga selecionada,

uma das mais densas dentre as que elaborou o Rei-Trovador, aparece

registrada no Cancioneiro da Vaticana, sob o n.·97, e no Cancioneiro da

Biblioteca Nacional, sob o n.· 459: (Moisés, 1997)

Hun tal home sei eu, ai ben talhada,que por vós ten a sa morte chegada; Vêdes quem é e seed'en nenbrada; eu, mia dona.

Hun tal home sei eu que preto sente de si morte chegada certamente; Vêdes quem é e venha-vos en mente; eu, mia dona.

Hun tal home sei eu, aquest'oide: que por vós morr' e vo-lo en partide, Vêdes quem é e non xe vos obride; eu, mia dona.'*'

* ben talhada = formosa; seed' en nenbm.da = lembrai-vos disso; preto = perto; venha-vos en mente = tende em mente; aquest'oide = ouvi isto; vo-lo en partide = desejais que êle parta; non xe vos obriode = não vos olvideis.

Trata-se duma cantiga de refrão, visto repetir-se o mesmo verso ("eu, mia

dona") no final de cada cobra. Os versos da primeira cobra recorrem, com

alterações formais que não de sentido, nas cobras seguintes: esse processo

repetitivo denomina-se paralelismo, e cantigas paralelísticas (ou cossantes)

os poemas que o empregam. Ambos, o refrão e o paralelismo, constituem

recursos típicos da poesia popular. Observe-se, especialmente pela leitura à

meia voz, que o sentimento do poeta evolui como um lamento ininterrupto e

crescente, cujo ponto máximo se localiza no refrão da última cobra. E como o

seu torturante sofrimento amoroso (ou seja, a coita de amor) se tornou

obsessivo, pois que fruto duma causa única e persistente (a indiferença ou a

inacessibilidade da bem-amada), para expressá-lo o trovador somente

encontra as mesmas ou equivalentes palavras. Assim, a reiteração

paralelística decorre do próprio caráter exclusivista da paixão que habita o

poeta. Repare-se que o tormento sentimental pressupõe iincorrespondência

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amorosa da dona e/ou despeito do trovador. O clima geral da cantiga, de

submissão e reverência, deixa-se perpassar por uma aura de espiritualidade

platônica que, porém, não dissimula o conforto erotizante do apelo

masculino: a coita é psíquica e física a um só tempo, mas o confidente se

esmera em sublimá-la, em atenuar-lhe os matizes sensuais e acentuar-lhe os

traços denota dores duma ansiosa expectativa de bens ultraterrenos. Daí

resulta uma cantiga de alta tensão lírica e "verdade" emocional, perante a

qual apenas o leitor distraído ou insensível permanecerá frio ou insatisfeito.

(Moisés, 1997)

Canção de Bernardo de Bonaval, autor galego

A dona que eu am’e tenho por senhoramostráde-mi-a Deus, se vos en prazer for,se non, dáde-mi a morte.

A que tenh’eu por lume destes olhos meuse por que choran sempr’, amostráde-mi-a, Deus,

se non, dáde-mi a morte.Essa que vós fezestes melhor parecerde quantas sei, ai Deus!, fazéde-mi-a veer,se non, dáde-mi a morte.

Ai Deus, que mi-a fezestes mais ca min amar,mostráde-mi-a u possa con ela falar,se non, dáde-mi a morte.

Cantigas de Amigo

Contém a confissão amorosa da mulher, geralmente do povo (pastora,

camponesa, etc.).

Sua coita nasce de entreter amores com um trovador que a abandonou,

demora para chegar, ou está no serviço militar (ou seja, no fossado). A moça

dirige-se à mãe, às amigas, aos pássaros, às fontes, às flores, etc., mas quem

compõe ainda é o trovador. Ao invés do idealismo da cantiga de amor, a de

amigo respira realismo em toda a sua extensão; daí o vocábulo amigo

significar namorado e amante. Conforme o lugar ou as circunstâncias em que

transcorre o episódio sentimental, a cantiga recebe o título de cantiga de

16

romaria, serranilha, pastorela, marinha ou barcarola, bailada ou bailia, alva

ou alvorada. Vistas no seu conjunto, essas configurações da cantiga de amigo

traduzem os vários momentos do namoro, desde a alegria da espera ou do

diálogo entre moças acerca dos seus amores, até a tristeza pelo abandono ou

a separação forçada. (Moisés, 1997)

Têm origem na própria península ibérica. Cronologicamente, são mais antigas

que as de amor, porém não eram escritas. Só com a entrada das cantigas

provençais e o desenvolvimento da arte poética é que passaram a ser

escritas. A natureza faz parte da poesia, na medida em que não existe ainda

nenhum elemento de urbanidade.

Cantiga de Don Dinis

Ai, flores, ai, flores do verde pino

--- Ai, flores, ai, flores do verde pino,se sabedes novas do meu amigo? Ai, Deus, e u é?

Ai, flores, ai, flores do verde ramo,se sabedes novas do meu amado? Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,aquel que mentiu do que pôs comigo? Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,aquel que mentiu do que mi à jurado? Ai, Deus, e u é?

--- Vós me preguntades polo vosso amigo?E eu ben vos digo que é sano e vivo. Ai, Deus, e u é?

Vós me preguntades polo vosso amado?E eu ben vos digo que é vivo e sano. Ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é sano e vivoe seerá vosco ante o prazo saido. Ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é vivo e sanoe seerá vosco ante o prazo passado.

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Ai, Deus, e u é?

Cantiga de Aires Nunes (é uma bailada)

Bailemos nós já todas três, ai amigas,so aquestas avelaneiras frolidase quen for velida, como nós, velidas,     se amig’ amar,so aquestas avelaneiras frolidas     verrá bailar.

Bailemos nós já todas três, ai irmanas,so aqueste ramo destas avelanase quen for louçana, como nós, louçanas     se amig'amar,so aqueste ramo destas avelanas     verrá bailar.

Por Deus, ai amigas, mentr'al non fazemos,so aqueste ramo frolido bailemose quen ben parecer, como nós parecemos,     se amig'amar,so aqueste ramo so lo que nós bailemos     verrá bailar.

*velida= formosa,so=sob, aquestas=estas,verrá= virá,louçana=formosa, mentr’al =enquanto outras coisas,quen bem parecer= quem for bela

Cantiga de Pero da Ponte

Trovador de larga e variada produção (53 composições, sendo 32 satíricas), natural da Galiza, poetou entre 1230 e 1260, tendo freqüentado como segrel as cortes de Fernando III e Afonso X. Com ele já surge o tema do escudeiro, tão explorado mais tarde pelos autores quinhentistas, especialmente Gil Vicente. (Amora, 2006)

Foi-s' o meu amigo d'aqui na hoste, por el-rei servir, e nunca eu depois dormirpudi, mais ben tenh' eu assi que, pois m' el tarda e non ven, el-rei o faz que mi-o deten.

E gran coita non perderei per ren, meos de o veer,ca non há o meu cor lezer, pero tanto de conort' hei que, pois m' el tarda e non ven, el-rei o faz que mi-o deten.

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E ben se devia nembrar das juras que m'enton jurou, u m' el mui fremosa leixou, mais, donas, podedes jurar, que, pois m' el tarda e non ven,el-rei o faz que mi-o deten.

llezer = consolar, cor=coração

Cantigas de Escárnio e Maldizer

As diferenças entre estas duas modalidades irmãs da sátira trovadoresca

residiriam, segundo a Arte de Trovar que antecede o Cancioneiro da Biblioteca

Nacional, no seguinte: a cantiga de escárnio conteria sátira indireta, realizada

por intermédio do sarcasmo, a zombaria e uma linguagem de sentido

ambíguo; a cantiga de maldizer encerraria sátira direta, agressiva,

contundente, e lançaria mão duma linguagem objetiva e sem disfarce algum.

Entretanto, tal distinção nem sempre se torna patente, pois volta e meia

topamos com cantigas que misturam os dois processos. A maior parte, porém,

das cantigas satíricas era de maldizer. (Moisés, 1997)

Cantiga de Pero Garcia Burgalês

Rui Queimado morreu con amor en seus cantares, por Sancta Maria por  ua dona que gran ben queria, e, por se meter por mais trovador, porque lh’ela non quis [o] ben fazer(1), fez - s’el  en seus cantares morrer, mas ressurgiu depois ao tercer dia!

Esto fez el por ua sa senhor que quer gran ben, e mais vos en diria: porque cuida que faz i maestria (2), enos cantares que fez sabor(3) de morrer i e desi d’ar viver (4); esto faz el que x’o pode fazer, mas outr’omem per ren non [n] o faria.

E non há já de sa morte pavor, senon sa morte mais la temeria, mas sabede ben, per sa sabedoria, que viverá, des quando morto for e faz - (s’) en seu cantar morte prender, desi ar viver: vede que poder

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que lhi Deus deu, mas que non cuidaria.

E, si mi Deus a mim desse poder, qual oi’el há, pois morrer, de viver, jamais morte nunca temeria.

1.porque ela não lhe quis atender as súplicas; 2. porque ele imagina que tem talento; 3. a gosto, satisfeito; 4. de aí morrer e, mais tarde, reviver.

Esta cantiga enquadra-se entre as de escárnio, visto que Pêra Garcia procura

mofar de Rui Queimado (trovador dos fins do século XIII e princípios do XIV)

com "palavras cobertas”. . No tocante à matéria da canção, Pêro Garcia satiriza o

vezo que tinha esse poeta, e não poucos outros confrades do tempo, de confessar,

nas suas cantigas, que se consumia de amor pela "dona" dos seus cuidados. Mas

como sua reiterada morte fosse apenas lírica, o trovador acabou por cair em

ridículo. E nesse estado Pêro Garcia o surpreendeu. O tom da composição é, pois,

irônico e conceituoso; todavia, na primeira cobra o trovador enfatiza a sátira ao

dizer que o seu desafeto "fez-s'el en seus cantares morrer" porque sua dama "non

quis [o] ben fazer" (ou seja: atender-lhe os rogos). Note-se, inclusive, o terceiro

verso da mesma cobra: "mas ressurgiu depois ao tercer dia!". Seu conteúdo

sarcástico e irreverente, e a exclamação final dão idéia de ápice do relato da

situação grotesca em que se enfiara Rui Queimado. Por fim, cabe salientar o

seguinte ponto: embora a cantiga de maldizer tenda, no geral, a ser à elef (quer

dizer: referir-se a circunstâncias e pessoas encobertas ou dissimuladas), a peça de

Pêro Garcia ainda nos diz alguma coisa graças à sua cristalina equação humana,

que semelha viva nos dias que correm, na medida em que perdura a dissociação

entre o poeta-criador e o poeta-homem: Rui Queimado morria como poeta, em

imaginação, ao passo que, como homem, se mantinha vivo. (Moisés, 1997)

Cantiga de João Garcia de Guilhade

Ai dona fea! fostes-vos queixar porque vos nunca louvo en meu trobar mais ora quero fazer un cantar en que vos loarei toda via e vedes como vos quero loar:dona fea, velha e sandia!

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Ai dona fea! se Deus me perdon! e pois havedes tan gran coraçon que vos eu loe en esta razon, vos quero já loar toda via; e vêdes qual será a loaçon: dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei en meu trobar, pero muito trobei;mais ora já un bon cantar farei en que vos loarei toda via; e direi-vos como vos loarei: dona fea, velha e sandia!

ora = agora; tôda via = sempre, completamente; sandia = louca; que vos eu toe en esta razon = mereceis a justiça de eu louvá-la. loaçon = louvor; pero = todavia.

Trata-se, como se vê, duma cantiga de maldizer, porquanto o trovador se

dirige diretamente à "dona fea, velha e sandia". Sua estrutura revela

nitidamente o caráter popular desse tipo de cantiga: além de se arquitetarem

segundo o esquema paralelístico, as cobras finalizam em estribilho. Quanto

ao conteúdo, é fácil imaginar as causas da invectiva do trovador: com

certeza, a mulher a que ele destina a sátira se julgara merecedora duma

cantiga de amor, e, quem sabe, das atenções do poeta. este, na resposta,

observa as leis do comedimento, por isso que a interlocutora já possuía os

defeitos que tornavam improcedente e ridícula sua pretensão: "dona fea,

velha e sandia". No nível de zombaria altiva e superior, posto que cortante e

frontal, e na feliz concentração de notas satíricas que o trovador alcança

realizar no estribilho demora a vitalidade da cantiga, igualmente viva naquilo

em' que retrata uma situação social que persiste, ou seja, a duma "dona fea,

velha e sandia" que anseia ser cortejada por um jovem. Atente-se para o fato

de que a sátira trovadoresca, sobretudo na vertente de "maldizer", por

circular em ambientes tabernários, somente por exceção apresentava a

moderação de João Garcia de Guilhade: não raro acolhia as expressões mais

chulas e licenciosas de que é capaz a Língua Portuguesa (...) (Moisés, 1997)

A Prosa do Trovadorismo

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A prosa, na época do Trovadorismo, é representada pelas novelas de cavalaria, os

livros de llinhagens, as hagiografias e os cronicões. Os livros de linhagens

eram listas de nomes estabelecendo nexos genealógicos entre famílias

fidalgas. Os cronicões não raro escritos em Latim, possuem escasso valor

literário embora constituam os primeiros documentos historiográficos em

Portugal. Menor ainda é a valia literária das hagiografias (vidas de santos),

também redigidas em Latim. No conjunto, apesar da existência duma obra-

prima como A Demanda do Santo Graal, a produção prosística dessa época

ofuscou-se pelo brilho da poesia trovadoresca.

Novelas de Cavalaria: Originárias da França e, remotamente, da Inglaterra, as

novelas de cavalaria resultaram da prosificação das canções de gesta (poemas

de assunto épico). Organizavam-se em três ciclos: o ciclo bretão ou arturiano,

em torno do Rei Artur e os seus cavaleiros; o ciclo carolíngio, protagonizado

por Carlos Magno e os doze pares de França; o ciclo clássico, de temas greco-

latinos. Somente o ciclo bretão vingou em Portugal através das narrativas

vertidas do Francês. Delas restaram três espécimes: a História de Merlim, o

José de Arimatéia e A Demanda do Santo Graal. Da primeira ficou

uniicamente a tradução espanhola, baseada na portuguesa, que se perdeu. O

José de Arimatéia permanece quase todo inédito

A Demanda do Santo Graal francesa, que teria sido composta por Gautier Map cerca

de 1220, pertencia a uma trilogia integrada por Lancelote e A Morte do Rei

Artur, e foi vertida para o vernáculo no século XIII. (Moisés, 1997)

A lenda sobre a demanda do Santo Graal era, originalmente, pagã, de origem

celta; por volta de 1220, por influência do clero, teve sua versão

cristianizada.

Sobre A Demanda do Santo Graal

Um resumo da obra A Demanda do Santo Graal pode ser encontrado no Livro de

Vespasiano (1496). Novela mística, tem começo numa visão celestial de José de

Arimateia e no recebimento dum pequeno livro (A Demanda do Santo Graal). José

parte para Jerusalém; convive com Cristo, acompanha-lhe o martírio da Cruz, e

recolhe-lhe o sangue no Santo Vaso. Deus ordena-lhe que o esconda. Tendo-o feito,

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morre em Sarras. O relato termina com a morte de Lancelote: seu filho, Galaaz, irá

em busca do Santo Graal.

A Demanda do Santo Graal corresponde, assim, à terceira parte da trilogia. A lenda,

de remotas origens célticas, foi inicialmente cantada em verso, tendo Perceval como

herói. A volta de 1220, em França, por influxo clerical, opera-se a prosificação da

lenda, da autoria presuntiva de Gautier Map, e então Galaaz substitui Perceval.

A lenda, até então de cunho nitidamente pagão, cristianiza-se, passando seus

principais símbolos (o Vaso, a Espada, o Escudo, etc.) a assumir valor místico. Com

isso, em vez de aventuras marcadas por um realismo profano, tem-se a presença da

ascese, traduzida no desprezo do corpo e no culto da vida espiritual, e exercida

como processo de experimentação das forças físicas e morais de cada cavaleiro no

sentido da Eucaristia, fim último anelado por todos.

A Demanda do Santo Graal constitui-se, por isso, numa novela de cavalaria mística

e simbólica. Os cavaleiros lutam por chegar à Comunhão sobrenatural, mas só um,

Galaaz, a alcança. Homem "escolhido", dotado dum nome de ascendência bíblica

(Galaad significa o "puro dos puros", o próprio Messias), simboliza um novo Cristo,

ou um Cristo sempre vivo, em peregrinação mística pelo mundo. Próximos dele em

grandeza física e moral, situam-se Boorz e Perceval, e mais distantes, embora com

seu quinhão de glória, Lancelote, Tristão, Palamades, Erec, Galvão, Ivam, Estor,

Morderet, Meraugis e outros.

Em síntese, A Demanda do Santo Graal contém o seguinte: em torno da "távola

redonda", em Camelot, reino do Rei Artur, reúnem-se dezenas de cavaleiros. É

véspera de Pentecostes. Chega uma donzela à Corte e procura por Lancelote do

Lago. Saem ambos e vão a uma igreja, onde Lancelote arma Galaaz cavaleiro e

regressa com Boorz a Camelot. Um escudeiro anuncia o encontro de maravilhosa

espada fincada numa pedra de mármore boiando n'água. Lancelote e os outros

tentam arrancá-la debalde.

Nisto Galaaz chega sem se fazer anunciar e ocupa a seeda perigosa (= cadeira

perigosa) que estava reservada para o cavaleiro "escolhido": das 150 cadeiras,

apenas faltava preencher uma, destinada a Tristão. Galaaz vai ao rio e arranca a

espada do pedrão. A seguir, entregam-se ao torneio. Surge Tristão para ocupar o

último assento vazio. Em meio ao repasto, os cavaleiros são alvoroçados e

extasiados com a aérea aparição do Graal (= cálice), cuja luminosidade sobrenatural

os transfigura e alimenta, posto que dure só um breve momento. Galvão sugere que

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todos saiam à demanda (= à procura) do Santo Graal. No dia seguinte, após

ouvirem missa, partem todos, cada qual por seu lado. Daí para a frente, a narração

se entrelaça, se emaranha, a fim de acompanhar as desencontradas aventuras dos

cavaleiros do Rei Artur, até que, ao cabo, por perecimento ou exaustão, ficam

reduzidos a um peque no número. E Galaaz, em Sarras, na plenitude do ofício

religioso, tem o privilégio exclusivo de receber a presença do Santo Vaso, símbolo

da Eucaristia, e, portanto, da consagração de uma vida inteira dedicada ao culto das

virtudes morais, espirituais e tísicas. A novela ainda continua por algumas páginas,

com a narrativa do adulterino caso amoroso de Lancelote, pai de Galaaz, e de D.

Ginebra, esposa do Rei Artur.

Tudo termina com a morte deste último. Tal excrescência contém o resumo de outra

novela, - A Morte do Rei Artur, ou La Mort le Roi Artu, novela Francesa do século XIII.

Justificaria sua presença como apêndice da Demanda o seguinte fato: na intricada

selva da matéria cavaleiresca, havia-se formado uma trilogia, intitulada Lancelote

em Prosa, que continha o Lancelote, a Demanda e A Morte do Rei Artur. Parece

evidente que o tradutor português, ao executar sua tarefa, teve diante dos olhos a

segunda e a terceira parte do tríptico, e resolveu resumir a última, certamente por

considerá-la desnecessária à compreensão do núcleo episódico e dramático da

Demanda.

A Demanda corresponde precisamente à reacção da Igreja Católica contra o

desvirtuamento da Cavalaria. Os cavaleiros-andantes feudais não raro acabaram por

se transformar em indivíduos desocupados, quando não autênticos bandoleiros,

vivendo ao sabor do acaso, amedrontando, pilhando, assaltando. A fim de trazê-los

à civilização, reconvertendo-os aos bons costumes, o Concílio de Clermont, em

1095, decidiu a organização da primeira Cruzada e a correspondente formação

duma cavalaria cristã. Inicia-se uma vasta pregação de ideais de altruísmo e

respeito às instituições. A Demanda, cristianizando a lenda pagã do Santo Graal,

colabora intimamente com o processo restaurador da Cavalaria andante:

caracteriza-se por ser uma novela mística, em que se contém uma especial noção

de herói antifeudal, qualificado por seu estoicismo inquebrantável e sua total ânsia

da perfeição. Novela a serviço do movimento renovador do espírito cavaleiresco, em

que o herói também está a serviço, não mais do senhor feudal mas de sua salvação

sobrenatural, uma brisa de teolo-gismo varre-a de ponta a ponta, o que não impede,

porém, a existência de circunstanciais jactos líricos e eróticos, nem algumas notas

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de fantástico ou mágico, em que o real e o imaginário se cruzam de modo

surpreendente. Cenas de grande tensão mística contracenam com outras dum

realismo vivo e quente, em que a fortaleza de ânimo dos cavaleiros é posta à prova,

como, por exemplo, o episódio no castelo do Rei Brutos, em que a filha deste,

enfebrecida de paixão, penetra de noite nos aposentos de Galaaz (capítulos 106-

116). Novela de alto vigor narrativo e de elevada intenção, acabou por ser o retrato

definido da Idade Média mística, e o maior monumento literário que a época nos

legou no campo da ficção, porquanto traduz um soberbo ideal de vida expresso de

forma artisticamente superior, a ponto de alcançar um grau de perfeição estética

não muito frequente na prosa do tempo.

A Demanda só foi publicada inteiramente (embora ainda com truncamentos quem

sabe propositados, tendo em vista convicções morais do seu editor) em 1944, no

Rio de Janeiro. O manuscrito que lhe serviu de base é o de n.º 2594, existente na

Biblioteca Nacional de Viena da Áustria, e corresponde a uma das cópias da

tradução e adaptação do original Francês, levada a efeito no século XIII, certamente

refundida em fins do XIV e princípios do XV. (Moisés, 1997)

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O Humanismo

O Humanismo é o período que marca a transição do mundo feudal para o mundo

mercantil. A ascensão da burguesia comercial determina os rumos da economia. Os

nobres perdem o poder, e a burguesia financia a expansão. Com isso, o

teocentrismo perde o espaço para o Humanismo. Tal período também é conhecido

como pré-renascentista. A época tem como marco inicial o ano de 1418, quando

D.Duarte nomeia,, de Fernão Lopes para guarda-mor da Torre do Tombo e como

marco final o retorno de Sá de Miranda da Itália, em 1527, que dá início ao Período

Clássico. A Torre do Tombo é até hoje a grande biblioteca da História de Portugal. A

Torre do Tombo foi destruída por um terremoto em 1755, mas o arquivo conservou

sempre o mesmo nome. Em três séculos de história consolida-se um sentimento de

nacionalidade depositado em uma série de textos que compõe o acervo da Torre do

Tombo.

Três atividades mais destacadas compõem esse período: a produção historiográfica

de Fernão Lopes , a produção poética dos nobres , por isso dita Poesia Palaciana , e

a atividade teatral de Gil Vicente .

Incumbido de escrever relatos sobre os acontecimentos de diversos períodos

históricos (as chamadas crônicas), Fernão Lopes destacou-se como um prosador

dono de um estilo rico e movimentado. Não se limitando a tecer elogios a reis, como

a outros cronistas da época; descreveu em detalhes não só do ambiente o corte,

mas também as aldeias, as festas populares e, principalmente, do papel do povo

nas guerras e rebeliões.

Fernão Lopes é reconhecido como historiador de inegável méritos e verdadeiro

narrador-artista preocupado não apenas com a verdade do conteúdo de suas

narrativas, mas também com a beleza da forma. É reconhecido também pela sua

capacidade de observar e analisar personagens históricas.

Em Portugal , graças à preferência do rei D.Afonso V ( 1438-1481) , abriu-se um

espaço na corte lusitana para a prática lírica e poética . Assim , essa atividade

literária sobreviveu em Portugal , ainda que num espaço restrito , e recebeu o nome

de Poesia Palaciana , também identificada por quatrocentista.

Essa produção poética tem uma certa limitação quanto aos conteúdos , temas e

visão de mundo , porque seus autores , nobres e fidalgos , abordavam apenas

realidades palacianas , como assuntos de montaria , festas , comportamentos em

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palácios , modas , trajes e outras banalidades sem implicação histórica abrangente .

O amor era tratado de forma mais sensual do que no Trovadorismo , sendo menos

intensa a idealização da mulher . Também , neste gênero poético , ocorre a sátira .

Formalmente são superiores à poesia trovadoresca , seja pela extensão dos poemas

graças à cultura dos autores , seja pelo grau de inspiração , seja pela musicalidade

ou mesmo pela variedade do metro estes dois últimos recursos conferiam a cada

poema a chance de possuírem ritmo próprio. A diferença mais significativa em

relação às cantigas do Trovadorismo é que as poesias palacianas foram desligadas

da música , ou seja , o texto poético passou a ser feito para a leitura e declamação ,

não mais para o canto .

A poesia produzida na época do humanismo (século XIV) nas cortes de D. Afonso V,

D. João II e D. Manuel, foi compilada (recolhida) por Garcia de Resende, na obra

Cancioneiro Geral, impresso em 1516, quando a tipografia era muito recente em

Portugal. Ressalte-se que não se trata de um códice, de uma coleção de cópias

manuscritas, como o Cancioneiro da Ajuda, mas de um livro impresso, contendo 880

composições, de 286 poetas, escrito em espanhol e em português, já revelando

influência erudita. No Cancioneiro Geral encontram-se produções poéticas de Gil

Vicente, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, D. Pedro (Condestável de Portugal),

Jorge de Aguiar, Diogo Brandão, além do próprio Garcia de Resende.

Alguns exemplos da Poesia Palaciana:

Cantiga sua partindo-se

Senhora partem tam tristesmeus olhos por vós, meu bem,que nunca tam tristes vistesoutros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,tam doentes da partida,tam cansados, tam chorososda morte mais desejososcem mil vezes que da vida.Partem tam tristes os tristestam fora d'esperar bem,que nunca tam tristes vistesoutros nenhuns por ninguém.

João Roiz de Castel-Branco, Cancioneiro Geral, III, 134

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Ó meu bem, pois te partistedante meus olhos coitado,os ledos me farão triste, os tristes desesperado

Triste vida sem prazeroe deixas com grã cuidado,que por meu negro pecadome vejo vivo morrer;meu prazer me destruíste,meu nojo será dobrado,porque sou cativo, triste,de meu bem desesperado.

Diogo de Miranda,Cancioneiro Geral, II, pág 81

O Teatro de Gil Vicente

A biografia de Gil Vicente anda envolta em dúvidas. Terá nascido em 1465 ou 1466,

talvez em Guimarães, e morre entre 1536 e 1540. Ourives e mesmo mestre da

balança Casa da Moeda de Lisboa, começa intempestivamente seu teatro a 7 de

Junho de 1502, por ocasião do nascimento do futuro D. João III, filho de D. Manuel e

de sua segunda mulher, D. Maria de Castela, filha dos Reis Católicos, D. Fernando e

D. Isabel. Penetrando na câmara real a fim de, em nome dos servidores do paço,

saudar o excelso evento, declama em Espanhol o Monólogo do Vaqueiro (ou Auto da

Visitação). Causa tão boa impressão que lhe pedem que repita o monólogo nas

festas de Natal. Em lugar de o fazer, encena outra peça, de tema semelhante: Auto

Pastoril Castelhano. Como o êxito não fosse menor, daí por diante Gil Vicente

dedica-se a escrever e representar teatro para o entretenimento da realeza e da

fidalguia, concomitantemente com suas outras funções junto à Corte. Leva suas

peças em Lisboa e Santarém, até 1536, data relativa à sua última representação, a

Floresta de Enganos.

Durante os anos de sua trajectória teatral, Gil Vicente escreveu e representou

dezenas de peças de vário tema e estrutura, das quais poucas foram publicadas.

Sabe-se que o comediógrafo preparava uma edição de suas obras, mas a morte

frustrou-lhe o intento. Seu filho, Luís Vicente, levou a cabo a tarefa, em 1562,

publicando a Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente. Todavia, fê-lo

defeituosamente, não só omitindo peças que devem ter existido (e das quais duas

foram recentemente descobertas, e uma no século XIX), como também alterando o

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texto em mais de um ponto. Portanto, tem-se, ao todo, 46 peças, das quais uma em

Castelhano e 16 bilíngues.

Didacticamente, pode-se dividir em fases o teatro vicentino, cantas e quantas

conforme o critério escolhido. Parece que se pode falar em três fases principais:

1.ª de 1502 a 1514, em que a influência de Juan del Encina é dominante, sobretudo nos primeiros anos, atenuando-se depois de 1510;

2.ª, de 1515 a 1527, começando com Quem tem farelos? e terminando com o Auto das Fadas: corresponde ao ápice da carreira dramática de Gil Vicente, com a encenação de suas melhores peças, dentre as quais a Trilogia das Barcas (1517-1518), o Auto da Alma (1518), a Farsa de Inês Pereira (1523), o juiz da Beira (1525);

3.ª, de 1528, com o Auto da Feira, até 1536, com a Floresta de Enganos, fase em que o dramaturgo intelectualiza seu teatro sob influência do classicismo renascentista.

Quanto ao tema, o teatro vicentino pode ser dividido em tradicional e de actualidade.

O primeiro diz respeito àquilo que é de evidente e predominante postura medieval: são as peças de carácter litúrgico, como o Auto da Fé (1510), o Auto da Alma (1518), ligadas ao teatro religioso de Juan del Encina e remotamente aos milagres e mistérios Franceses; as peças de assunto bucólico, como o Auto Pastoril Castelhano, o Auto Pastoril Português (1523) ; e as peças de assunto relacionado com as novelas de cavalaria, como D. Duardos (1522), o Auto de Amadis de Gaula (1533).

O teatro de actualidade caracteriza-se por conter o retrato satírico da sociedade do tempo, em seus vários estratos, a fidalguia, a burguesia, o clero e a plebe, como na Farsa de Inês Pereira e em Quem tem farelos? (ou Farsa do Escudeiro), ou pelo teatro alegórico-crítico, como a Trilogia das Barcas.

É óbvio que não se trata de tipos estanques de peças: além de haver entre elas

vários pontos de contacto, há peças de carácter misto, intermediário, de oscilante

classificação, como, por exemplo, o Auto dos Quatro Tempos (1511).

Na Copilaçam, Luís Vicente sugere a seguinte divisão:

1. Obras de devoção (Monólogo do Vaqueiro, Auto Pastoril Castelhano, Auto da

Alma, Auto da Feira, Trilogia das Barcas, etc.);

2. Comédias (Comédia do Viúvo, Comédia de Rubena, Divisão da Cidade de

Lisboa, Floresta de Enganos);

3. Tragicomédias (Exortação da Guerra, Cortes de Júpiter, Frágoa de Amor, D.

Duardos, Templo de Apolo, etc.);

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4. Farsas (Quem tem farelos?, Auto da índia, O Velho da Horta, Inês Pereira, Juiz

da Beira, Farsa dos Almocreves, etc.).

É uma classificação arbitrária e defeituosa: mistura o teatro pastoril com o religioso,

o cavaleiresco com o alegórico, separa as tragicomédias (aliás, rótulo inteiramente

descabido) das comédias, considerando D. Duardos entre as primeiras, e

desprezando o que há de comum entre elas; faz crer numa separação nítida entre a

comédia e a farsa, quando, na verdade, só existe em grau. Gil Vicente, num

documento com a data provável de 1522, certamente com o pensamento na

compilação de suas peças, classifica-as em três categorias, comédias, farsas e

moralidades, o que parece mais consentâneo com a verdade dos fatos.1

Em última instância, porém, inclusive tais rótulos continuariam sendo arbitrários, na

medida em que constituíam meras designações com vistas a distinguir uma peça de

outra e não propriamente títulos. Assim, do mesmo passo que dizemos hoje em dia

que determinada peça gira em torno deste ou daquele assunto (por exemplo, Entre

Quatro Paredes, de Sartre, é uma peça acerca do inferno da incomunicabilidade), Gil

Vicente engendrava um Auto da Alma, em que o termo auto era empregado como

vocábulo genérico, equivalente a peça, e da Alma seria o motivo dela, e não um

componente de título. De onde a conotação variável assumida pelas palavras farsa,

comédia e outras. E cada uma dessas peças ou autos representaria algo como uma

das muitas sessões de arte cénica que criou para o gozo estético da fidalguia do

tempo: semelha que, em verdade, o comediógrafo compôs uma única peça, dividida

em 46 actos (= autos), uma espécie de ampla Comédia Humana -dos fins da Idade

Média e princípios da Renascença.

O teatro de Gil Vicente caracteriza-se, antes de tudo, por ser primitivo, rudimentar e

popular, muito embora tenha surgido e se tenha desenvolvido no ambiente da

Corte, para servir de entretenimento aos animados serões oferecidos pelo Rei.

Graças ao amparo deste, o comediógrafo não precisou comercializar seu talento

para o ver frutificar. Mais importante do que isso é o facto de ele fugir das

1 Outra possível classificação para a obra teatral de Gil Vicente seria dividi-la em dois blocos: autos e farsas.

Autos: peças teatrais de assunto religioso ou profano; sério ou cômico. Os autos tinham a finalidade de divertir, de

moralizar ou de difundir a fé cristã. Os principais autos vicentinos são: Monólogo do Vaqueiro; Auto da Alma; Trilogia

das Barcas (compreendendo: Auto da Barca do Inferno; Auto da Barca da Glória, Auto da Barca do purgatório); Auto

da Feira, Auto da Índia e Auto da Mofina Mendes.

Farsas: são peças cômicas de um só ato, com enredo curto e poucas personagens, extraídas do cotidiano.

Destacam-se Farsa do Velho da Horta, Farsa de Inês Pereira e Quem tem Farelos? (nota da professora)

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concessões que favorecem mas empequenecem, e ter-se guiado sobranceiramente

por suas convicções, numa independência de espírito apenas limitada pelo bom

senso e pelas naturais coerções do meio palaciano.

Essas determinantes são fundamentais para compreender o precoce despontar,

historicamente falando, de um teatro tão rico, denso e variado. Escrevendo para um

público exigente e que detinha nas mãos as rédeas do poder, nem por isso Gil

Vicente deixou de impor-se como teatrólogo e impor seu gosto pessoal. E se por

vezes parece haver obedecido às injunções do ambiente em que vivia e em que

levava o seu teatro, jamais se rebaixou a ponto de se desmerecer, ainda que, para

defender sua autonomia moral, tivesse de camuflá-la com o emprego de disfarces,

truques, símbolos, alegorias e mesmo o riso mais desopilante. Graças a tais

condições de trabalho, legou obra volumosa, fruto duma permanente ebulição

interior, e diversa nos seus ingredientes e recursos cénicos.

Teatro baseado na espontaneidade e tendo em mira divertir a Corte, organizava-se

sob a lei do improviso, de que o texto actual nos oferece pálida imagem. É natural

que as representações caminhassem ao sabor da invenção do momento, quer por

causa dos actores, quer pelo próprio conteúdo das peças. Possivelmente, Gil Vicente

esboçava uma espécie de roteiro básico, apenas para ordenar a encenação numa

sequência mais ou menos verossímil. O resto ficaria ao sabor do momento, e de

todas as alterações impostas pela lei do acaso. A pobreza do texto enquanto

"marcação" teatral é índice claro desse amor primitivo ao improviso; aliás, o próprio

cenário seria convencional ou mesmo ausente, visto as representações se

desenrolarem no salão de festas do paço real: uma cortina, uma cadeira, quando

muito, e o resto era imaginado. Como é fácil compreender, a mímica desempenharia

papel importante nesse teatro de entretenimento e edificação.

Por outro lado, o grande mérito de Gil Vicente reside no facto de ser, antes de tudo,

um poeta, e poeta dramático. Seu talento cénico vem-lhe a seguir, pois naquela fase

da história do teatro não se poderiam entender as coisas de modo diverso.

Enquanto poeta, seu valor manifesta-se numa fluência e elasticidade expressivas

que abarcam todos os matizes, líricos, satíricos, mitológicos, alegóricos, religiosos,

sem perder sua específica fisionomia. O verso brota-lhe simples e contínuo num

ritmo natural e espontâneo, seja nas cantigas que intercala na acção das peças, seja

na própria fala das personagens.

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Enquanto comediógrafo propriamente dito, Gil Vicente se destaca como o mais

importante autor de teatro em toda a história da Literatura Portuguesa. Servindo de

ponte de trânsito, traço de união, entre a Idade Média e a Renascença, fixou em

suas peças o justo momento em que as duas formas de cultura se defrontavam,

uma, para terminar (ou melhor, para diminuir seu influxo e domínio), a outra, para

começar. Daí seu duplo (quando não triplo ou quádruplo) carácter, como apontamos

ao tratar dos tipos de peças: é um teatro que tem, na exacta medida do tempo,

olhos voltados para trás, contemplando o mundo que morria (e a que Gil Vicente

pertencia por espírito e formação), e para a frente, na intuição feliz do novo rumo

tomado pelo embate das ideias.

É em consequência disso que o teatro vicentino se torna lírico ou cómico (ou, ainda,

cómico-lírico): a predominância de temas e duma visão medieval das coisas se

revela por uma sim plicidade característica de quem sofre, sem o perceber, da

nostalgia de um mundo perdido. Nesse tipo de teatro, Gil Vicente realiza-se mais

pelo núcleo ideológico ou sentimental que pelas qualidades propriamente cénicas,

elementares de todo, como é sabido. Podia-se dizer que, em tal caso, o poeta, o

homem cheio de sentimento lírico da vida, ultrapassa o teatrólogo (a este respeito,

vejam-se D. Duardos e o Auto da Alma). Para arquitetar o melhor de seu teatro,

dramaticamente falando, precisou debruçar-se na paisagem humana de seu tempo,

e analisá-la com impiedosa e causticante bonomia.

Por outro lado, quer o teatro de costumes (Inês Pereira), quer o religiosamente

alegórico (Trilogia das Barcas: da Glória do Inferno, do Purgatório), atestam um

dramaturgo compromissado, que coloca sua poesia e seus predicados a serviço dum

espectáculo mais exigente e, por conseguinte, de uma causa: respirando a

atmosfera renascentista e dando expansão a suas virtualidades, Gil Vicente faz de

suas peças uma arma de combate, de acusação, de moralidade.

Teatro de sátira social, não perdoa qualquer classe, povo, fidalguia ou clero. Obra de

moralista, põe em prática o lema do ridendo castigat mores (rindo, corrige os

costumes), realizando o princípio de que a graça e o riso, provocados pelo cómico

baseado no ridículo e na caricatura, exercem uma forte acção purificadora,

educativa e purgadora de vícios e defeitos. O vigor com que Gil Vicente empreende

a tarefa de livre análise e crítica social, especialmente na parte relativa ao seu

anticlericalismo, tem permitido lembrar as ideias de Erasmo de Roterdão (1469-

1536), expostas sobretudo no Elogio da Loucura (1509). Na verdade, trata-se antes

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dum caso de coincidência que de influência do pensador holandês sobre o

dramaturgo português.

A sátira vicentina, contundente e dissolvente porque toca fundo nas feridas sociais

do tempo, é contrabalançada por um elevado pensamento cristão, expresso nas

peças de inspiração medieval, como o Auto da Alma, e, embora subterraneamente,

mesmo nas de carácter satírico. Nessa bipolaridade e no que ela implica de

realização cénica, reside a maior concentração de forças do teatro de Gil Vicente,

suficiente para justificar a criação duma "escola vicentins" durante o século XVI e

seguintes e sua actualidade ainda hoje.

À “escola vicentina" pertencem notadamente: Camões, Afonso Álvares, Baltasar

Dias, António Ribeiro Chiado, António Prestes e Simão Machado. De Camões, tratar-

se-á no lugar próprio. Quanto aos outros: Afonso Alvares, mulato e mestre-escola,

escreveu o Auto do Bem-Aventurado Senhor Santo António, o Auto do Bem-

Aventurado Senhor São Vicente, o Auto de Santa Bárbara e o Auto de Santiago, "a

rogo dos mui honrados e virtuosos Cónegos de São Vicente", e antes de 1531.

Baltasar Dias era cego e natural da Madeira: afora várias obras perdidas, escreveu o

Auto da Paixão de Cristo, o Auto da Feira da Ladra, o Auto de Santo Aleixo, o Auto

de Santa Catarina, o Auto do Nascimento de Cristo, a Tragédia do Mar-ques de

Mântua, a Obra da Famosa História do Príncipe Claudiano, a História da Imperatriz

Porcina, os Conselhos para Bem Casar, o Auto da Malícia das Mulheres. António

Ribeiro, chamado o Chiado, morreu em 1591: padre franciscano, tendo conseguido a

anulação dos votos, passou a levar vida dissoluta embora ainda vestindo o hábito

clerical; escreveu a Prá-tica de Oito Figuras, o Auto das Regateiras, a Prática dos

Compadres, o Auto da Natural Invenção, o Auto de Gonçalo Chambão

(desaparecido). As sete peças de António Prestes foram publicadas em 1587: o Auto

da Ave-Maria, o Auto do Procurador, o Auto do Desembargador, o Auto dos Dous

Irmãos, o Auto da Ciosa, o Auto do Mouro Encantado e o Auto dos Cantarinhos.

Simão Machado, autor das Comédias Portuguesas (impressas em 1601), marca o fim

do teatro vicentino com suas peculiares características, graças à influência do teatro

espanhol do tempo.

Quando sobre a sátira se vai acumulando o conjunto de influências clássicas

(mitologia e linguagem rebuscada), o vigor vicentino cede à moda e perde altura. A

essa evolução para o Classicismo corresponde uma espécie de endurecimento da

estrutura das peças (Cortes de Júpiter, 1521; Jubileu de Amores, 1527). Até então,

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eram compostas um pouco ao sabor da "inspiração", desobedientes a cânones,

verosimilhanças estereotipadas e leis apriorísticas, num à-vontade na correlação

das cenas que destruía qualquer preconcepção e dava espontaneidade e vivacidade

ao entrecho, no uso pessoalíssimo de recursos plásticos, na movimentação

arbitrária das personagens e dos quadros, no uso de uma linguagem que fixava

indelevelmente sua época. Primitivo, utilizando recursos fáceis, mas teatro de

primeira grandeza pelo que consegue de originalidade, verdade e permanência.

Quando, ao fluxo do espontâneo primitivismo, se sobrepôs o apropositado desejo de

acompanhar o sinal de mudança que sua mesma sátira fazia anunciar e erigir;

quando, em coerência sem dúvida com suas inclinações moralistas, experimentou

novos expedientes cénicos, ainda se percebe a presença do talento originário, mas

um tanto quanto sufocado. É que, de tanto observar seu tempo, na face cada vez

mais proeminente de sua dualidade, Gil Vicente não podia deixar de impregnar-se

de Classicismo, posto lhe aceitasse parcialmente as características. (Moisés, 1977)

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