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Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: [email protected] O SAMPAULEIRO: ROMANCE DE JOÃO GUMES por MARIA DA CONCEIÇÃO SOUZA REIS Orientador: Profª. Drª. Célia Marques Telles SALVADOR 2004

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Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras

Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: [email protected]

O SAMPAULEIRO:

ROMANCE DE JOÃO GUMES

por

MARIA DA CONCEIÇÃO SOUZA REIS

Orientador: Profª. Drª. Célia Marques Telles

SALVADOR 2004

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Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras

Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: [email protected]

O SAMPAULEIRO: ROMANCE DE JOÃO GUMES

por

MARIA DA CONCEIÇÃO SOUZA REIS

Orientador: Profª. Drª. Célia Marques Telles

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Letras. Área de concentração: Teorias e Crítica da Literária e da Cultura.

SALVADOR

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2004 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA

MARIA DA CONCEIÇAO SOUZA REIS

O SAMPAULEIRO: ROMANCE DE JOÃO GUMES

Tese para obtenção do grau de Doutor em Letras

Salvador, 30 de março de 2004

Banca Examinadora

________________________________ Maria da Glória Bordini

Doutora em Letras Universidade Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul

________________________________

Sônia Maria Von Dijck Lima Doutora em Letras

Universidade Federal da Paraíba

________________________________ João Santana Neto Doutor em Letras

Universidade Católica de Salvador

________________________________ Albertina Ribeiro da Gama

Doutora em Letras Universidade Federal da Bahia

________________________________

Célia Marques Teles

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4

Doutora em Letras Universidade Federal da Bahia

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5

A Miguel, responsável pela re-significância da vida.

AGRADECIMENTOS

A Deus, todo poderoso, pela minha existência.

À minha orientadora, Profa Dra Célia Marques Telles pela amizade,

solicitude, competente orientação e pelo despertar em mim o interesse

pelos estudos filológicos.

À Profa Dra Rita de Cássia Ribeiro Queiroz, pela amizade,

companheirismo e pela tradução do resumo para a língua francesa.

À Profa Dra Albertina Ribeiro da Gama, pela amizade e primeiras

orientações deste trabalho.

Ao Mestre Dr. Nilton Vasco da Gama, o nosso eterno mestre.

Aos meus alunos da UNEB–Caetité por me fazerem conhecer João

Gumes.

À minha família pela compreensão, apoio e incentivo sempre e na

execução deste trabalho.

A José, por tudo: o companheirismo, as reflexões, a firmeza nas horas

mais difíceis, a compreensão nas constantes ausências...

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6

Às amigas Rosa Borges Santos Carvalho e Ana Júlia Tavares, pela

amizade e incentivos.

À Profa Maria Belma, pela gentileza e confiança ao emprestar o

primeiro volume do romance O Sampauleiro.

Aos colegas e amigos do Arquivo Municipal de Caetité pela constante

troca de experiências.

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RESUMO

Trata-se da apresentação e edição do romance O Sampauleiro do caetiteense João

Antônio dos Santos Gumes. Apresentam-se o escritor e sua representatividade literária,

situando-o no regionalismo nacional e no panorama dos romancistas da literatura baiana.

Mostra-se a obra de João Gumes, revelando o seu estado de conservação, a riqueza de

materiais e as possibilidades de análise que poderão ser desenvolvidas na perspectiva dos

estudos filológicos. Determina-se o comportamento do pesquisador e editor e expõe-se a

estrutura da edição crítica, bem como os critérios que foram adotados na edição da obra de

João Gumes e o texto criticamente estabelecido do segundo volume do romance O

Sampauleiro.

Palavras-chave: edição, literatura baiana, regionalismo, romance folhetim, resgate

cultural.

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RÉSUMÉ

Ce travail a pour le bet l’édition du roman “O Sampauleiro” du caetiteense João

Antônio dos Santos Gumes. On présente l’écrivain et sa représentativité littéraire dans le

régionalisme national et dans le panorama des romanciers de la littérature baianaise. L’oeuvre

de João Gumes est montrée a travers de son état de conservation, de la richesse des matériels

et des possibilités d’analyse qui pourrant être develloppées dans la perspective des études

philologiques. On determine le conduite de l’investigateur et de l’éditeur, on expose la

structure de l’édition critique au delà des critères adoptés dans l’édition de l’oeuvre de João

Gomes et le texte critiquement établi du deuxième volume du roman “O Sampauleiro”.

MOTS–CLEF: édition, littérature baianaise, régionalisme, roman-feuilleton, rachat culturel.

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS

LISTA DE SIGLAS

LISTA DE SINAIS UTILIZADOS

RESUMO

RÉSUMÉ

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

12

1 JOÃO GUMES: VIDA E OBRA 16

1.1 O HOMEM E O ESCRITOR 16

1.2 UM REGIONALISTA NO PANORAMA NACIONAL 23

1.3 UM ROMANCISTA NO MEIO BAIANO 26

2 O RESGATE DA OBRA

32

2.1 A OBRA 46

2.2 SOBRE O CONTEÚDO DE ALGUNS TEXTOS 53

2.2.1 O Sampauleiro 53

2.2.2 Os Analphabetos 53

2.2.3 Pelo Sertão 54

2.2.4 Vida Campestre 54

2.2.5 Abolição 55

2.2.6 Seraphina 56

2.2.7 Mourama 56

2.2.8 Sorte Grande e A Vida Doméstica 57

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10

2.2.9 Outros trabalhos 57

2.2.9.1 A tradução 57

2.2.9.2 A partitura de música

58

3 A CONSTRUÇÃO DO TEXTO DE JOÃO GUMES 59

3.1 INTRODUÇÃO 59

3.2 PARA UMA EDIÇÃO CRITICA DE O SAMPAULEIRO 63

3.2.1 O Sampauleiro: do manuscrito ao texto definitivo 69

3.2.1.1 Descrição 69

3.2.1.2 Enredo 71

3.3 EDIÇÃO DOS TEXTOS: NOTAS FILOLÓGICAS 76

3.3.1 Estrutura da Edição 76

3.3.2 Metodologia 76

3.3.2.1 O texto de base 80

3.3.2.2 A ordenação dos textos 80

3.3.2.3 Os aparatos: variantes autorais e textuais 81

3.3.2. 4 As normas adotadas no estabelecimento dos textos 81

3.3.2.5 As siglas remissivas para as versões 83

3.3.2.6 Classificação estemática 84

3.3.3 O Sampauleiro: o texto crítico e o aparato de variantes autorais e da

tradição impressa

86

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 599

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 501

5.1 OBRAS DO AUTOR 501

5.1.1 LIVROS 501

5.1.2 MANUSCRITOS 501

5.1.3 CRÔNICAS 501

5.2 SOBRE O AUTOR E SUA OBRA 506

5.3 SOBRE LITERATURA BAIANA 507

5.4 TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIAS 508

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11

5.5 CRÍTICA TEXTUAL 511

5.5.1 ELEMENTOS DE CRÍTICA TEXTUAL 511

5.5.2 EDIÇÕES CRÍTICAS 516

5.5.3 ELEMENTOS DE CRÍTICA GENÉTICA 519

5.6 VOCABULÁRIO 520

ANEXO

LISTA DE FIGURAS

Fig. 1: Foto de João Antônio dos Santos Gumes. 15

Fig. 2: Foto do manuscrito do livro traduzido por João Gumes. 38

Fig. 3: Penúltimo fólio do manuscrito do drama Abolição. 39

Fig. 4: Recto do último fólio do manuscrito do drama Abolição. 40

Fig. 5: Verso do último fólio do manuscrito do drama Abolição. 40

Fig. 6: Folha de rosto do primeiro volume do romance O Sampauleiro. 41

Fig. 7: Contracapa do romance O Sampauleiro. 42

Fig. 8: Fólio do manuscrito do segundo volume do romance O Sampauleiro. 43

Fig. 9: Foto das partituras da música “À memória do Dr. Joaquim Manuel Rodrigues Lima”.

44

Fig. 10: Foto do manuscrito do romance Seraphina e do drama Abolição. 44

Fig. 11: Foto da coleção do jornal A Penna correspondente ao ano de 1898. 45

Fig. 12: Classificação estemática do segundo volume do romance O Sampauleiro. 85

Fig. 13: Classificação estemática da edição crítica do romance O Sampauleiro. 85

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LISTA DE SIGLAS

SP O Sampauleiro, manuscrito.

SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929.

SPF O Sampauleiro, publicado no Jornal A Penna.

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LISTA DE SINAIS UTILIZADOS

< > segmento autógrafo riscado

(?) leitura duvidosa

† palavra ilegível

[ ] acréscimo

< >/ / substituição por sobreposição, na relação <substituído> /substituto/

< >[↑] substituição por riscado e acréscimo na entrelinha superior

< >[↓] substituição por riscado e acréscimo na entrelinha inferior

< > [ ] substituição à frente

<†>[ ] substituição de um segmento apagado, riscado ou ilegível

/ mudança de linha

// mudança de fólio

( ) itálico intervenções do editor (acréscimo e informações em itálico)

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A necessidade de resgatar o patrimônio cultural de um povo não é uma

preocupação da modernidade. Sua origem remonta aos gregos, aproximadamente entre os

anos de 322 a 146 a.C., quando deram início à atividade de resgatar, de preservar e de

divulgar o saber produzido pelos eruditos daquela época. Pode-se dizer que a Edição Crítica

de Textos é uma das atividades mais antigas da filologia. Apropriando-se das palavras de

Erich Auerbach1, é a atividade mais nobre, a mais clássica e a mais autêntica da filologia, que

se ocupa da reconstrução do texto, com a finalidade de restabelecê-lo de acordo com a última

vontade do autor. Segundo Heinrich Lausberg,2 a filologia tem de cumprir com os textos: “a

tarefa tripla da crítica textual, interpretação de textos e a integração superior dos textos tanto

na história literária como na fenomenologia literária.”

1 Cf. Erich AUERBACH. Intodução aos estudos literários. Trad. de José Paulo Paes. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1972. p.11. 2 Cf. Heinrich LAUSBERG. Lingüística românica. Trad. de Marion Ehrhardt e Maria Luísa Schemann. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1981. p. 22.

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Reunir e editar a obra de um escritor que tem uma produção literária significativa

como João Gumes, mas que, infelizmente, se encontrava sob uma camada espessa de poeira e

não recebera o valor que lhe era devido, é buscar integrá-la na história e na fenomenologia

literária, cumprindo com um dos deveres que a filologia tem com para o patrimônio espiritual

produzido por uma comunidade.

Firmou-se, então, como propósito desta pesquisa, a reunião de todos os

testemunhos e materiais paratextuais do segundo volume do romance O Sampauleiro, para

fixar-lhes os textos críticos.

O resgate da produção literária e jornalística de João Gumes fazia-se necessário

em Caetité. O trabalho desenvolvido resgata a memória cultural local e garante a sua

permanência. Conforme se expõe mais adiante, tomando-se a produção literária e jornalística

de João Gumes como objeto de estudo e desenvolvendo abordagens à luz da Filologia, poder-

se-iam apresentar três produtos distintos, a saber: preparação de edições críticas ou crítico-

genéticas, estudo do vocabulário e esboço da história de vida do escritor a fim de caracterizar

histórico-socialmente o período em que ele viveu, registrando-se a sua atuação como

jornalista, fazendo-se o inventário de sua produção intelectual, inserindo-o no meio literário

baiano de seu tempo, e, principalmente, avaliando os seus escritos mais relevantes.

Tornar transparente a produção de Gumes, desvelar as primeiras incursões

literárias dos escritores baianos e detectar a importância documental desta produção,

enfim, contribuir para que as lacunas da historiografia literária baiana possam ser

preenchidas, constituem os fins últimos deste trabalho.

A escolha do segundo volume do romance O Sampauleiro para constituição do

corpus de estudo que culminou na elaboração da presente tese de doutorado justifica-se por

quatro motivos: primeiro, porque o segundo volume do romance O Sampauleiro apresenta

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três testemunhos: manuscrito autógrafo, edição em folhetim e testemunho em livro, situação

textual ideal para a Ecdótica; segundo, porque é a principal obra responsável pela

representatividade literária de João Gumes no panorama da literatura baiana e brasileira;

terceiro, porque, conforme se pode depreender da leitura de algumas crônicas3 publicadas no

jornal A Penna, a obra aborda o tema que foi objeto de uma das suas principais preocupações:

o processo de migração instalado no Alto Sertão Baiano, que levou ao despovoamento da

região e, conseqüentemente, ao seu empobrecimento; quarto, porque o romance é um

testemunho vivo do pensamento de Gumes sobre questões políticos, sociais e culturais, e

constitui memória cultural que deve ser disponibilizada à comunidade de modo geral.

O presente trabalho está organizado em três capítulos, a saber: 1, João Gumes:

vida e obra; 2, O resgate da obra; 3, A construção do texto de João Gumes.

No primeiro capítulo, apresenta-se o escritor e sua representatividade literária,

situando-o no regionalismo nacional e no panorama dos romancistas da literatura baiana.

O segundo capítulo mostra a obra de João Gumes, revelando o seu estado de

conservação, a riqueza de materiais e as possibilidades de análise que poderão ser

desenvolvidas na perspectiva dos estudos filológicos.

Em A construção do discurso de João Gumes, terceiro capítulo, determina-se

o comportamento do pesquisador e editor; expõe-se a estrutura da edição crítica, bem

como os critérios adotados na edição da obra de João Gumes e o texto criticamente

estabelecido do segundo volume do romance O Sampauleiro.

Por fim, no quarto capítulo, fazem-se as considerações finais.

3 Não constitui pretensão nossa classificar quanto ao gênero os textos de Gumes publicados no A Penna. Usamos, no presente trabalho, a designação "crônica" para seus textos de caráter jornalístico, porque ele assim os designava.

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Fig. 1: Foto de João Antônio dos Santos Gumes.

1 JOÃO GUMES: VIDA E OBRA

1.1 O HOMEM E O ESCRITOR

João Antônio dos Santos Gumes, filho do professor João Antônio dos Santos

Gumes e de Ana Luiza da Veiga Neves, nasceu em Caetité4 em 1858 e morreu em 1930. Aos

vinte e seis anos de idade casou-se com sua prima Antônia Dulcina Pinto Gumes, com quem

teve 16 filhos: Maria Sofia, Júlia Adelaide, Laura Luiza, Ana Rufu, Sadi Rútilo, Luís

Antônio, Huol, Carmen, Heloísa, Cândida Stela, Dulce Áurea, Eponina Zita, Célia, Celina,

João Kardec e Antonio. Em 1922 fica viúvo.

Homem de poucos recursos financeiros, mas admirado e respeitado por todos,

participou ativamente da vida pública e cultural de sua terra natal. Foi, entre outras coisas,

escrivão da Coletoria Geral, tesoureiro e secretário da Intendência, secretário da Câmara

4 A cidade natal de João Gumes fica localizada no sudoeste do Estado da Bahia, a 757km de Salvador. Hoje o seu prestígio cultural, político e econômico é menos relevante, mas, nos fins do século XIX e início do século XX, período em que viveu Gumes, era um dos principais centros difusores de cultura e importante pólo político-econômico do estado. Cidade berço cultural, destacava-se pelo alto nível de seus institutos educacionais de seus moradores. Forneceu vários governadores do Estado da Bahia, é local onde o educador Anísio Teixeira nasceu e desenvolveu suas idéias revolucionárias sobre Educação.

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Municipal, advogado provisionado, professor, arquiteto, músico, tipógrafo, desenhista,

dramaturgo, tradutor, escritor e jornalista.

Como arquiteto idealizou e executou o projeto arquitetônico do Mercado Público

e do Teatro Centenário, prédios hoje demolidos. Como músico, mesmo sem nunca ter

estudado ou visto antes alguns instrumentos musicais, afinava-os e compôs diversas partituras

que executava com maestria no violoncelo. Na pintura fez réplicas de obras clássicas. Todas

foram destruídas, a única que sobreviveu é um retrato de Allan Kardec. Na arte dramática,

além de ter fundado uma sociedade dramática que fomentava o desenvolvimento das

representações cênicas na cidade, compôs dramas e comédias que foram e são até hoje

encenados nas festividades religiosas e cívicas caetiteenses.

Um apaixonado pela região sudoeste do estado da Bahia, desde muito jovem

abraçou como uma de suas principais causas defender os direitos do homem nordestino,

especialmente daqueles que habitavam o denominado Alto Sertão5. Um ser simples mas de

alma elevada. Defendia veementemente a bandeira dos oprimidos homens do campo

esquecidos e explorados pelos "engravatados da cidade grande", dos escravos maltratados, e

combatia o analfabetismo reinante naquele período no nordeste brasileiro. Parece que escrevia

com este propósito e deixava isto explícito, pois considerava seu romance Os analphabetos

"uma propaganda em favor da alfabetização do nosso povo como meio seguro de melhorar a

sua condição e torná-lo últil à prosperidade de sua terra."6 Assuntos estes abordados tanto na

sua produção literária como na jornalística.

5 Define-se normalmente por Sertão baiano uma extensa região com particularidades nos seus aspectos físico, econômico, social e cultural. O Alto Sertão a que se refere este texto diz respeito às regiões da Chapada Diamantina e da Serra Geral, no século XIX. Erivaldo Fagundes Neves diz que: “Geralmente definem região de modo pouco preciso, física ou sócio-economicamente, como área que se pretende delimitar, (...); região do sertão, caracterizada pela morfologia da vegetação; região do Alto Sertão da Bahia, referenciada na posição relativa ao curso do rio São Francisco na Bahia e ao relevo baiano, que ali projeta as maiores altitudes”. Cf. NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). Salvador: EDUFBA / Feira de Santana:UEFS, 1998. p. 22. 6 Cf. João GUMES. Os analphabetos. Bahia: Escola Tipográfica Salesiana, 1928. 216 p.

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Como ambicionava extinguir o analfabetismo em Caetité e em cidades vizinhas e

acreditava que a melhor forma para alcançar este objetivo era o incentivo à leitura e à

propagação de textos, não mediu esforços para fazer circular, em 25 de setembro de 1896, o

primeiro periódico7 editado e impresso no sudoeste do estado da Bahia: O Caetiteense. Um

ano depois implanta definitivamente a imprensa no Alto Sertão baiano, fazendo circular o

jornal A Penna8. Segundo o próprio João Gumes, A Penna foi o principal órgão de imprensa

daquela região e “um dos mais importantes fatores do progresso social.”9 O jornal fundado

por Gumes também pode ser considerado patrimônio da memória da imprensa baiana, uma

vez que toda publicação de relevo da região sudoeste do estado, naquele período, passou por

sua oficina de artes gráficas, bem como a própria história da imprensa em Caetité confunde-se

com a de sua tipografia.

Gumes escreveu romances, comédias, dramas e crônicas. Publicou os romances:

O Sampauleiro,10 Os Analphabetos,11 Pelo Sertão12 e Vida Campestre13. Deixou inéditas as

seguintes obras: Seraphina,14 Abolição,15 Mourama16 e Sorte Grande17.

A sua obra, além de possuir grande valor literário, é de fundamental importância histórica. O modo de pensar, viver e agir da época em que viveu o autor são registrados em seus textos, seja na pele do sertanejo que se desloca do nordeste para a região sul e sudeste do país em busca de melhores condições de vida, ou na figura do homem campestre, rude e analfabeto, que repudiava os livros e a leitura por

7 O Caetiteense, primeiro jornal editado por Gumes, teve vida efêmera: edição única. Cf. O CAETITEENSE, Caetité, 25 set. 1896. 8 Mesmo com poucos recursos financeiros e sua quase total reclusão à região Sudoeste, Gumes viajou 757km no lombo de um burro para adquirir na capital do Estado da Bahia um prelo para montar sua tipografia que, em 05 de março de 1897, fez circular o jornal A Penna, publicação quinzenal que, apesar das várias interrupções por questões financeiras, sobreviveu até 1942. 9 Cf. João GUMES. Os analphabetos, citado à n. 3, p.7. 10 Cf. João GUMES. O sampauleiro: romance de costumes sertanejoos. Caetité: A Penna, 1929. 2v. 11 Cf. João GUMES. Os analphabetos, citado à n. 3, p.7. 12 Cf. João GUMES. Pelo sertão. Caetité: A Penna. 11 jul. 1913 – 27 mar. 1914. 13 Cf. João GUMES. Vida campestre. Caetité: A Penna. 6 set. 1917. A data aqui apresentada refere-se ao último capítulo publicado em folhetim no jornal A Penna. 14 Cf. João GUMES. Seraphina. Caetité, [s.d.]. 15 Cf. João GUMES. Abolição. Caetité, [s.d.]. 16 Cf. João GUMES. Mourama. Caetité, [s.d.]. 17 João GUMES. Sorte grande. Caetité, [s.d.].

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serem prejudiciais à alma humana e “não colocarem panela no fogo”, ou ainda na figura da escrava maltratada mas subserviente ao seu amo.

Em seus textos de caráter literário parece haver a intenção de representar,

registrar, documentar, perpetuar e divulgar tudo o que, segundo seu ponto de vista, é

característico de seu povo, de sua região. Isso é explicitamente revelado no prefácio do

romance Os Analphabetos, onde se lê:

Continuando o meu proposito de tornar conhecida esta região em tudo quanto concerne ao seu interesse e aproveitamento dos seus opulentos recursos, considerei que o melhor meio era escrever narrativas de factos verossimeis acompanhados de descrição do nosso territorio e costumes do povo sertanejo. É o que fiz na "Vida Campestre", no "O Sampauleiro", no "Pelo Sertão" e n'este livro. O fim collimado creio ser justo; mas não sei si alcancei. Convenço-me, e ninguem poderá contestar-me, que o romance, a novella, ou qualquer trabalho d'este genero, é o que melhor propaganda faz. 18

Como era muito exigente consigo mesmo, não atribuía valor literário aos seus

romances. Considerava-os tãosomente o único meio possível de contribuir para o combate ao

analfabetismo e para fazer sua região conhecida. No trecho a seguir podemos verificar qual

era o seu ponto de vista a respeito de seus romances:

Não se pense que este livro tenha merito litterario e que possa figurar entre tantos que lustram e enriquecem a litteratura brasileira, que põem em evidencia o crescente progresso das lettras no nosso paiz, quanto têm ellas se aprimorado e enriquecido n'estes ultimos tempos. É tão opulenta de alguns annos a esta parte a litteratura a que me refiro, que pode ser arguido de ousadia, mesmo temeridade dirigida, apresentar-se em publico com um trabalho mal burilado, sem expressão, de modo que não fique bem esclarecido o pensamento; sem os lavores de estylistica que attrahem, encantam e prendem o espirito do leitor.

(...) ousei escrever neste gênero embora me falhe competencia para figurar entre os escriptores que têm produzido livros d'essa natureza, que attrahem a attenção do leitor instruindo-o de muitas cousas que lhe são desconhecidas.19

18 Cf. João GUMES. Os analphabetos, citado à n. 3, p.8.

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Como jornalista de A Penna, escreveu centenas de crônicas e foi redator de

diversas colunas. Essas crônicas constituem um manancial inesgotável de informações que

podem servir de fonte de pesquisa sobre os mais variados assuntos, como por exemplo:

a) a seca e a emigração na região:

Há cerca de um mez já reclamamos, e voltamos agora á carga porque, dia a dia, a nossa situação torna-se mais afflictiva.// Já não é a secca que nos incommoda o espirito; é a sahida de quasi todo o povo em abalada, como que impulsionado por uma fatalidade. O commercio paralysa-se, as situações agricolas são abandonadas. Não é agora somente o jornaleiro que emigra: são familias inteiras, são povoações20.

b) questões da economia local e regional:

Com muito interesse acompanhamos os movimentos de alta e baixa do café, pois é sabido que muito influe na situação economica e financeira de todo o paiz a valorisação da preciosa rubiacea. As ultimas noticias são alarmantes e dão o lugar a mil conjecturas sobre as causas da baixa d’esse genero de commercio.21 Não lemos a lei orçamentaria do Estado porque nem sempre vemos a folha official, e os jornaes da Capital, não sabemos porque, não lhe dão como deveram, a publicidade e diffusão que tanto nos interessam. Entretanto consta-nos que uma taxa, ultimamente creada incide sobre as engenhocas productoras do assucar e rapaduras entre nós.22

c) localização e descrição de recursos naturais dos povoados, vilas e cidades

vizinhas, como no trecho da crônica Monte Alto, publicada em 12 de setembro de 1913:

Quem transpõe a serra Geral, indo dos municipios de Umburanas ou Caeteté, em busca do valle do S. Francisco, avista largos trechos da região a que os naturaes do sertão denominam baixio. Da estrada de Caeteté a Bella Flor, porem, quer da ladeira “Isabel” quer da “Belem” melhor aprehende-se em synthese a forma e disposição d’aquelle vasto territorio. A paizagem é

19 Cf. João GUMES. Os analphabetos, citado à n. 3, p. 8. (Grifos nossos.) 20 Cf. João GUMES. Despovoamento do sertão: o povo emigra á falta de trabalho. A Penna, Caetité, n. 33, p.1, 11 abr. 1913. 21 João GUMES. A baixa do café. A Penna, Caetité, n. 41, p. 1, 01 ago. 1913. 22 Cf. João GUMES. As engenhocas. A Penna, Caetité, n. 27, p.1, 17 jan. 1913.

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soberba e empolgante. Ao fundo, no ultimo plano, a serra do Monte Alto, esgalho do principal systema ortographico, encantadora, semelhando uma muralha a prumo, colorida de róseo e azul em extensos lanços perpendiculares, estriada por desfiladeiros e contrafortes, e recortando caprichosa e bellissimamente no azul de bobadas achatadas e cippos gigantescos. Essa admiravel construcção natural tem por assento o Baixio, que é um extenso talude, de declividade quasi imperceptivel á commum apreciação, levemente abaulado, orlado pelo sulco dos ribeirões que formam o rio das Rans, eriçado de morros, pequenas cadeias, collinas, extensos largados de formação primitiva e bacias onde se reunem as aguas meteóricas. O solo em geral é esbranquiçado, argiloso e impregnado de saes diversos, e a vegetação natural é de caatingas altas onde se encontram boas madeiras de lei e extensos prados onde vicejam optimas forragens. Nas encostas e proximidades dos morros a terra é carregada de oxido de ferro assim como nos contrafortes da serra: esse elemento chimico é um auxiliar valiosissimo para que ahi a vegetação seja a mais desenvolvida. Em geral o terreno é algodoeiro, mas é feracissimo para diversas culturas. As uvas, laranjas e muitos outros fructos de pomar dão-se alli perfeitamente bem, são dulcissimos e de surprehendente desenvolvimento. As aguas saturadas de saes inoffensivos, o ar quente e quasi permanente em uma boa temperatura e o constante varrer dos ventos alisios, tornam essa região saluberrima, propria á criação de toda a sorte de gados, que alli proliferam e se desenvolvem admiravelmente, e procurada como reconhecido Sanatorium que é para diversas enfermidades do homem.23

A riqueza de informações históricas sobre a região constantes tanto na sua

produção literária como na não-literária é tão significativa que se torna praticamente

impossível, ao pesquisador de várias áreas do saber, realizar qualquer estudo sobre o Alto

Sertão Baiano sem tomar a obra de Gumes como uma das principais fontes de pesquisa. Um

bom exemplo é a dissertação de mestrado desenvolvida por Estrela24, na área de geografia,

intitulada Os sampauleiros do alto sertão da Bahia: cotidiano e representações, que teve,

como uma das principais fontes, para a realização da investigação sobre as representações do

cotidiano dos chamados sampauleiros, a obra publicada de Gumes.

Um outro aspecto importante que ainda deve ser observado a respeito dos textos

do autor é a sua riqueza vocabular. Uma leitura, mesmo que superficial, da sua produção

23Cf. João GUMES. Monte Alto. A Penna, Caetité, n. 44, p.1, 12 set. 1913. 24 A dissertação de Mestrado, intitulada Os sampauleiros: cotidiano e representações, defendida no Departamento de Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,

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literária, revela-nos que os textos de temática regional, como O Sampauleiro, Os

Analphabetos, Pelo Sertão, Vida Campestre e Sorte Grande, em que são documentados os

hábitos e os costumes da região sudoeste do estado da Bahia, apresentam um vocabulário

regional riquíssimo. Estes vocábulos são, na sua maioria, nomes de objetos, animais,

utensílios, atividades, ações, qualidades e comportamentos e/ou atitudes. Arrancador,

babugem, bitu, bruaca, bolsava, cabaz, cacôca, caramanche, caxerengue, croá, desabusado,

deslindar, embasbocado, embuchar, grenha, jornaleiro, latagão, mazarrol, sopitado, sovelão

e pandarana são apenas alguns exemplos de itens lexicais utilizados intencionalmente por

Gumes para documentar e, ao mesmo tempo, revitalizar o seu uso. Isso porque, conforme se

pode depreender da leitura de alguns de seus textos, acreditava que eram usados apenas na sua

região e estavam entrando em desuso na língua corrente de seus contemporâneos.

Todo esse manancial histórico, literário e lingüístico encontrava-se disperso e na

eminência de desaparecer por completo. Fazia-se necessário reuni-lo, preservá-lo em caráter

permanente e colocá-lo ao alcance de pesquisadores e da comunidade de modo geral. O

resgate da memória cultural desse período da história de Caetité permite não só reconstruir a

vida cultural local mas contribuir para a (re)escritura de um capítulo da historiografia literária

baiana, inserindo o nome de um escritor com uma produção expressiva e significativa como a

do caetiteense João Antônio dos Santos Gumes.

em agosto de 1999, sofreu algumas alterações e foi publicada em 2003. Cf. Ely Souza ESTRELA. Os Sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas FFCH/USP; Fapesp; Educ, 2003. 256 p.

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1.2 UM REGIONALISTA NO PANORAMA NACIONAL

Nas três primeiras décadas do século XIX, inicia-se no Brasil um movimento

cultural em busca de uma literatura própria, de cor local, sem influências externas, exposta

com recursos estilísticos autônomos. Os intelectuais desejavam alcançar a independência

literária, contrapartida da liberdade política. Evidentemente que, no romantismo brasileiro, os

nossos escritores exploraram alguns elementos nacionais, objetivando alcançar uma literatura

livre das influências advindas de outras terras. Bem que tentaram, mas a exploração do

indianismo esgotou-se rapidamente, decretando sua substituição pelo regionalismo. O

indígena estaria, portanto, sendo substituído por um símbolo mais adequado, vaga ocupada

pelo tipo regional: o sertanejo, o cangaceiro, o gaúcho, que protagonizava as obras de alguns

nomes de nossa literatura, como, por exemplo, o Visconde de Taunay, Bernardo Guimarães,

Franklin Távola, José de Alencar, entre outros.

As conseqüências imediatas da exploração desses novos elementos regionais

foram o maior acercamento à realidade e à valorização do cenário local. Este fato, por seu

turno, tem um outro efeito que confere ao regionalismo importância superior às circunstâncias

que regeram o seu nascimento. Proveio daí um maior interesse pelas questões da terra e seus

ocupantes; e a glorificação do herói cedeu lugar às reflexões em torno à miséria econômica e

alijamento do poder das camadas campesinas.

É neste cenário cultural, marcado por uma ruptura estilística e temática, que João

Antônio dos Santos Gumes se lança como um homem das letras baianas, escrevendo

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romances que denunciam e apresentam as riquezas naturais e humanas existentes em sua

província.

O caetiteense poderia geograficamente encontrar-se afastado dos grandes centros

de efervescência dos ideais libertadores, mas espiritual e intelectualmente estava muito

próximo. Gumes vivencia de perto essas transformações, deixando-se contaminar por todos os

ideais "libertadores". É natural que isso acontecesse, pois, autodidata e curioso, ainda muito

criança desvendou os mistérios do ler e do escrever, o que lhe permitiu ter acesso às idéias

revolucionárias veiculadas nos livros, nos jornais e nas revistas circuladas nos grandes centros

urbanos, mas que, com muitas dificuldades, tardiamente chegavam às pequenas cidades e aos

vilarejos do Alto Sertão baiano. Talvez Marcolino, protagonista do seu romance Os

Analphabetos25, tenha razão: "a leitura não põe fogo à panela mas traz perturbações à alma

humana". As leituras mexeram com "as idéias" do jovem Gumes e o fizeram um abolicionista

convicto, defensor das classes menos favorecidas de nossa sociedade, um revoltado com as

diferentes formas de tratamento dispensadas a cada região do país, em que umas, as

privilegiadas, Sul e Sudeste, recebiam todos os incentivos e as outras, o Nordeste pobre e

seco, especialmente o Sertão, eram esquecidas.

É natural também que a inclinação ao regional alimentasse o seu fazer literário.

Os romances Os Analphabetos, O Sampauleiro, Vida Campestre e Pelo Sertão apresentam os

aspectos singulares da "cor local". Nessas obras, situadas nos limites das Serras Gerais, ele

trata das relações do homem com a seca e com a miséria. Denuncia as relações de favor e a

política do coronelismo, prevalecendo o interesse pelo social e coletivo. O romance funciona,

para Gumes, como um instrumento precioso de denúncia e de revelação de "tudo que for

concernente à sua região"26. Dedica-se a um realismo documental, revelador tanto de

25 Cf. João GUMES, Os Analphabetos. p. 8, citado à n.5. 26 Cf. João GUMES, Os Analphabetos. p. 7, citado à n.3.

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indivíduos mal inseridos numa coletividade, como de estruturas familiares e de compadrio. E

daí decorrem as demais peculiaridades de seus textos, como, por exemplo, o vocabulário

empregado e os costumes apresentados, que se destacam por se diferenciarem, se contrapostos

a um certo modelo convencionado como universal.

Os críticos literários, tantos os que tratavam da produção de âmbito nacional como

os de âmbito local, praticamente não fazem menção à prosa ficcional de João Gumes. Os

raros comentários encontrados são fragmentados, mesmo porque os primeiros obstáculos para

executar tal tarefa estavam em recuperar as obras das quais apenas se tinham notícias. Miguel-

Pereira, ao tratar dos grupos de escritores brasileiros que participaram do chamado

movimento regionalista, aponta Gumes como um dos baianos que escreveu romances dentro

desse gênero:

No Norte, porque com Oliveira Paiva e Domingos Olímpio, no Ceará, e Lindolfo Rocha, na Bahia, empreendeu o romance, fez-se o regionalismo menos rígido, permeável a concepções mais gerais do homem, ganhando em humanidade o que perdia em pitoresco. A este grupo se poderá prender João Gumes, que, em O Sampauleiro, estuda a emigração dos baianos das lavras para as lavouras paulistas, embora seja o seu livro de menor valor do que os dos acima citados. E também Luís Araújo Filho cujas Recordações Gaúchas, menos novela que crônica romanceada, reconstituem com grande interesse os costumes locais. 27

Pedro Calmom, em História da literatura bahiana,28 ao tratar da prosa na Bahia,

limita-se a incluir o nome de Gumes no rol dos que aqui, no início do século passado,

produziram romances.

A Enciclopédia de Literatura Brasileira29 cita João Gumes como teatrólogo e

romancista, apontando o drama Abolição e as comédias A Intriga Doméstica e A Sorte

27 Cf. Lúcia MIGUEL-PEREIRA. História da literatura brasileira: prosa de ficção - de 1870 a 1920. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio/Brasília/INL, 1973. p. 184. (grifos nossos). 28 Cf. Pedro CALMON. História da literatura bahiana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. p.218.

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Grande como sendo sua produção literária. Interessante observar que se trata de textos

inéditos e que suas obras éditas, O Sampauleiro e Os Analphabetos, não constam nessa lista.

1.3 UM ROMANCISTA NO MEIO BAIANO

É sabido que quase todos os grandes romancistas da literatura brasileira divulgaram as suas primeiras obras em capítulos publicados semanalmente em folhetim, que alguns jornais faziam circular, inicialmente, nas grandes cidades e, depois, nas pequenas e longínquas províncias. Isso se dava porque, naquele período da nossa história literária, praticamente inexistiam editoras interessadas em publicar livros e o índice de analfabetismo era desanimador. Somando-se a isso, as próprias limitações da tecnologia e a falta de público leitor contribuíram para que isso acontecesse. Esse estado de coisas não se restringia apenas aos limites das fronteiras brasileiras. Ocorreu também na França no último quartel do século XVIII. Hohlfeldt30, ao tratar da evolução do gênero, diz que, naquele país, toda a ficção da segunda metade do século XIX foi essencialmente difundida através do romance-folhetim. E diz ainda que a democratização educacional, mediante o acesso à leitura, e o significativo desenvolvimento tecnológico e o conseqüente barateamento dos produtos advindos das tipografias, refletiam sobre a produção jornalística e livresca.

Ele aponta o nome de Émile de Girardin como iniciador desse tipo de expediente,

quando, em 1836, idealizou La Presse, publicação que revolucionou o jornalismo, mediante a

ampliação da publicidade e o aumento significativo da tiragem, o que levou ao barateamento

dos custos. Essa nova tendência de publicar os romances em folhetim ultrapassa as fronteiras

francesas e, com o passar dos anos, se generaliza por vários países da Europa e, felizmente,

chega ao Brasil, em 1838, quando o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, acompanhando as

novidades literárias da época, divulga o romance-folhetim de Alexandre Dumas, Capitão

Paulo.

Hohlfeldt31 afirma que, no Brasil, a divulgação de romances em folhetim inicia-se com o Romantismo e se estende até o Naturalismo. Vejamos o que diz:

29 Cf. Afrânio COUTINHO, J. Galante de SOUSA (Dir.). Enciclopédia de literatura brasileira. 2 ed., ver., amp., atual., il. São Paulo: Global; Fundação Nacional; Academia Brasileira de Letras, 2001. v.1. 30 Cf. Antonio HOHLFELDT. Deus escreve direito por linhas tortas: o romance-folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 a 1900. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p.20. 31 Cf. id., ibid, p.20.

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(...) os escritores surgidos na maré do Romantismo brasileiro utilizariam o mesmo princípio para a divulgação de suas obras, e a circulação dos romances, no Brasil, através dos jornais, permaneceria até meados do século XIX, fazendo com que não apenas os textos românticos quanto os autores das tendências que se seguiriam, especialmente o Realismo e o Naturalismo, adotassem o mesmo tipo de veiculação. Também os textos de peças teatrais consagradas chegaram a ser veiculados no espaço do folhetim.

Tânia Rebelo Costa Serra32 aponta 1839 como o ano em que chegaram aos jornais

brasileiros o romance-folhetim e o romance em folhetim.33 Sua pesquisa sobre o tema,

resultando na Antologia do romance-folhetim, tem esse ano como ponto de partida e o de

1870 como término.

José Ramos Tinhorão34 diz que

O romance-folhetim antecedeu O Filho do Pescador, o primeiro romance brasileiro, de Teixeira e Souza, de 1843. Desde os inícios da década de 30 do século XIX publicava-se novelas e romances em capítulos nos jornais brasileiros.

Hohlfeldt35 é categórico ao afirmar que o primeiro romance-folhetim de autor

nacional, divulgado nas páginas do Jornal do Comércio, foi um texto anônimo, denominado A

Ressurreição de Amor, subintitulado Crônica Rio-grandense, editado nos dias 23, 24 e 25 de

fevereiro de 1839.

Como acontecera além-mar, entre nós essa prática gradativamente foi generalizando-se em diversos jornais que circulavam em várias cidades, principalmente nos grandes centros. Os nossos periódicos se encarregavam tanto de publicar traduções de romances estrangeiros como de divulgar textos nacionais.

32 Cf. Tânia Rebelo Costa SERRA. Antologia do romance-folhetim: (1839 a 1870). Brasília: Universidade de Brasília, 1997. p. 20. 33A autora estabelece diferenças entre o romance-folhetim e romance em folhetim. O primeiro é voltado para o grande público, que recorre ao romance em busca de diversão, e como, muitas vezes, era construido dia a dia até o total esgotamento da curiosidade do público, apresentava freqüentemente fallhas na unidade. O segundo, como existe uma preocupação com a organização interna em busca de uma unidade de estrutura para alcançar o valor estético, tem preocupações estruturais e temáticas que diferem das do romance-folhetim. Cf. Tânia Rebelo Costa SERRA. Antologia do romance-folhetim (1839 a 1870). Brasília: Universidade de Brasília, 1997. Para mais informações sobre o assunto Cf. Marlyse MEYER. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 34 Cf. José Ramos TINHORÃO. Os romances em folhetins no Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1994. P. 9 e 13. 35 Cf. Antonio HOHLFELDT, citado à n. 27.

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Não podemos esquecer também que as primeiras manifestações literárias no

Brasil foram em verso. Acreditamos não ser nenhum exagero afirmar que até o início do

século XX o verso, em relação à prosa, gozou de mais prestígio entre os nossos escritores. As

razões desta preferência devem-se à maior facilidade de sua divulgação. Como vimos

anteriormente, era uma época em que inexistiam as editoras de livros, e um poema poderia se

tornar público por meio da declamação ou aparecer num rodapé de jornal: os escritores

privilegiavam o gênero, adaptando-o às modalidades disponíveis de comunicação. Além

disso, a poesia se alimentou da contribuição oral, pela familiaridade com o cancioneiro

popular, que estaria muito mais próximo do gosto cultivado da época, fato que levou muitos

críticos do período a afirmar que o Brasil era a terra dos poetas.

As cidades eram pequenas, como também eram reduzidos os instrumentos de

difusão. A solução encontrada pelos intelectuais para resolver essa questão foi uma espécie de

aliança sob a égide de um jornal literário. Fundaram-se vários periódicos, com a finalidade de

abrigar os escritores. Pode-se afirmar que o primeiro fenômeno de industria cultural no Brasil

foi a produção ficcional para a publicação na imprensa periódica brasileira no século XIX.

Esses periódicos eram, para os intelectuais da época, o único meio de difundir seus romances,

contos e novelas. Esse meio de divulgação dos textos em prosa terminou por levar os

escritores a desenvolver uma técnica de narração adequada ao padrão folhetinesco, que era a

de apresentar características de romance impressionantes e sensacionalistas. A descrição

pormenorizada certamente provocava muito interesse nos leitores do folhetim do período, que

era basicamente constituído de estudantes e senhoras da sociedade, conforme se lê no artigo

do Visconde de Taunay36 sobre os consumidores de ficção no periódico.

36 Cf. Visconde de TAUNAY. Reminiscências. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1908. p. 86-7. Mais informações sobre o assunto consultar: Sainte BEUVE. De la littérature industriale. Revue des Deux Mondes, Paris, p. 685, ler. sep. 1839.

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Fato é que, apesar de o país ainda ser analfabeto, foi através do jornalismo que a literatura popularizou-se, multiplicando os leitores. Talvez a motivação desses leitores decorresse da evasão de problemas mais imediatos, sobretudo os de sua vida estreita.

Quanto à situação do estado da Bahia em relação à publicação de romances em

folhetim, Lizir Arcanjo Araújo Alves37 diz que desde os primeiros decênios do século XIX

novelas e romances na Bahia não têm a mesma relevância encontrada nas demais regiões do

país.

Esta falta de prestígio do texto em prosa levou Carvalho Filho38 a se perguntar se

teriam os baianos fracassado no romance. É claro que desde os primeiros anos do século XIX

as novelas e os romances são produzidos.

David Salles, ao tratar das primeiras manifestações da ficção na Bahia, diz que

...existiram causas influentes conduzindo a argumentos de natureza sociológico-literária para explicar a conseqüência, ou seja, a quase ausência ou pobreza indigente da manifestação ficcional na Bahia do século passado. E arrumadas a modo de esquema, seriam: a) neoclassicismo baiano retardatário; b) prestígio literário e popular da retórica oratória, na tribuna e no púlpito; c) preferência e predomínio da manifestação poética, favorável à conquista rápida de notariedade social no meio provinciano; d) culto da erudição em decorrência da projeção da Faculdade de Medicina como núcleo da vida cultural baiana; e) ausência de autores.39

Pedro Calmon afirma que a Bahia teve um número expressivo de romancistas:

Romancistas, é preciso dizer, os teve em bom número a província, alguns com desenganada vocação para o gênero, porém todos – antes de Xavier Marques e Afrânio Peixoto - estranhamente limitados à sua área de produção, quer pela modestia das tentativas, quer pelo desfavor ou incúria dos editores que as não encorajava. Numa relação de escritores de romances, contos e novelas têm de figurar Manuel Carijé, Sérgio Cardoso, Cirilo Eloi,

37 Cf. Lizir Arcanjo ALVES. Poesia e vida literária na Bahia de 1890 a 1915. São Paulo, 1986. Dissertação de Mestrado, USP, 1986, p.199. 38 Cf. Aloysio de CARVALHO FILHO. A Bahia no romance brasileiro. Diário Official do Estado da Bahia,. Salvador, jul. 1923, p. 99-101. Edição especial do centenário da Independência. 39 Cf. David SALLES. Primeiras manifestações da ficção na Bahia. Salvador: UFBA, 1973. p.12 (Estudos Baianos, 7). (grifos nossos).

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Ana Ribeiro de Góis Bittencourt, Amélia Rodrigues, o sertanejo João Gumes. 40

O estado da Bahia apresenta uma produção de narrativas ficcionais expressiva, mas o que lhe faltava eram as editoras que estivessem interessadas em publicar a produção local.

Certamente não será exagero afirmar que Gumes, mesmo sendo um homem simples e pacato, limitado pela longa distância que o separava dos grandes centros, e, praticamente, pela inexistência dos meios de comunicação de massa, esteve ao longo de sua vida “conectado” com o processo de desenvolvimento cultural, intelectual, sobretudo o que se refere à divulgação de conhecimentos através do texto escrito, que se processava nas grandes urbes brasileiras e, porque não, mundiais. Apesar de o romance-folhetim não ter sido tão bem acolhido pelos periódicos da Bahia como nas demais regiões do país, e da província onde vivia estar a uma distância de 757 quilômetros da capital baiana, esses fatos não impediram que Gumes se colocasse como sujeito agente de uma tendência iniciada na França e que estava se propagando no Brasil: divulgação de romances em folhetim. Ele não só divulgou como também escreveu seus romances seguindo, em linhas gerais, as mesmas características de seus contemporâneos.

Suas principais preocupações eram contribuir para combater o analfabetismo que

reinava no Brasil, mas principalmente nas províncias mais distantes dos grandes centros

urbanos, porque, segundo Gumes, somente através do conhecimento adquirido nos livros as

pessoas poderiam lutar e conquistar a libertação de todos os tipos de opressão e injustiça

social. Desejava contribuir para o progresso social e cultural de sua região. E, como bom

cidadão, é natural que desejasse compartilhar seu conhecimento com os demais. Talvez essas

preocupações o tenham motivado, mesmo conhecendo suas limitações enquanto escritor, a

criar um jornal e publicar capítulo a capítulo os seus romances, inscrevendo seu nome no rol

daqueles pioneiros na produção e divulgação de textos desse gênero. As suas obras Pelo

Sertão e Vida Campestre são os primeiros exemplos de romance folhetinesco na região

sudoeste do estado da Bahia.

O jornal de Gumes desempenhou um papel central não apenas em Caetité, mas em

toda a província, pois contava com a participação de sócios de várias cidades do interior.

40 Cf. Pedro CALMON. História da literatura bahiana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. v.2, p.218. (Grifos nossos.)

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Facultou a constituição de um sistema complexo de intercâmbio de idéias e produções

literárias, bem como a consolidação de uma cultura com características próprias.

A iniciativa de Gumes, de criar o jornal A Penna e de escrever prosa para ser veiculada nesse periódico, provavelmente não foi a única nas províncias pertencentes ao nosso estado, principalmente aquelas mais prósperas e próximas da capital. Essa possibilidade leva a crer que algo no sentido de levantar e resgatar esta produção deva ser realizado com uma certa urgência.

2 O RESGATE DA OBRA

O material de Gumes, tão rico em quantidade de informações e diverso em

qualidade, estava prestes a desaparecer por completo. Poucos tinham conhecimento de sua

existência. E os que o tinham, utilizavam-no da pior forma possível: ou era mero objeto de

curiosidade, ou só servia para os estudantes do ensino médio cumprirem tarefas41 nas

tradicionais gincanas escolares.

Após tomar conhecimento da existência do jornal A Penna na cidade de Caetité,

procuramos obter mais informações a respeito do autor, do local e/ou locais onde poderiam

ser encontrados os exemplares do jornal, os manuscritos, os textos impressos, as partituras, os

dados pessoais, enfim, tudo que fora produzido e que pertencesse ao escritor João Antônio

dos Santos Gumes.

O primeiro passo tomado no intuito de reunir a produção foi procurar os

familiares de João Gumes que ainda residiam em Caetité. D. Heloísa Gumes, uma das filhas

do escritor, em entrevista, revelou-nos que seu pai tinha o hábito de arquivar um exemplar de

cada número do jornal A Penna e todos os manuscritos dos romances que havia produzido ao

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logo de sua vida. Entretanto, após a sua morte, os filhos, quando se casaram, levaram consigo

caixas contendo documentos e livros, dispersando dessa forma a obra. No entanto, no porão

da casa onde vivera o escritor, ainda existiam vários exemplares do jornal A Penna e alguns

manuscritos referentes a sua produção literária. Ainda segundo D. Heloísa, parte destes

documentos que sobraram no porão da sua casa e que estavam sob seus cuidados, tinha sido

emprestada a alguns professores da faculdade42 para fazerem estudos. Os mesmos nunca

haviam retornado para lhe devolver o referido material. Existia ainda uma parte no porão

mas, infelizmente, ela não permitiria a mais ninguém vê-la ou pegá-la. Nada sairia daquele

local.

Explicamos a D. Heloísa o nosso interesse em criar o Acervo do escritor, a fim de

colecionar, classificar, preservar e tornar acessível à pesquisa os escritos e os jornais de João

Gumes. Informamo-la da importância de se reunir esse material que estava disperso e

susceptível de ser destruído por completo, privando, assim, a comunidade científica e a

sociedade de modo geral de a ele terem acesso ou, pelo menos, de saberem da sua existência.

Muitas foram as tentativas de convencê-la a fazer-nos a doação. Informamo-la

também da criação do Arquivo Público Municipal de Caetité pelos professores Maria de

Fátima Pires e Paulo Henrique Duque e garantimos que o acervo de João Gumes ficaria em

uma sala especial do Arquivo Público e, lá, ele seria organizado e protegido. Os documentos

não poderiam ficar espalhados como estavam, mas deveriam estar em poder de uma

instituição séria e responsável que se comprometesse a conservá-los e disponibilizá-los, de

forma segura, ao alcance de todos.

41Muitos exemplares do jornal A Penna circulavam com uma certa freqüência entre os estudantes de Caetité nas tradicionais gincanas escolares. Normalmente, os exemplares emprestados nestas ocasiões não retornavam e, quando isso raramente acontecia, sempre estavam multilados: recortados, riscados, rasgados. 42 A faculdade a que nos referimos é a Universidade do Estado da Bahia, especialmente o atual Departamento de Ciências Humanas – Campus VI de Caetité.

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D. Heloísa se mostrou muito preocupada em nos fazer a doação. Hesitava porque

não mais confiava em ninguém. Temia que fizéssemos o mesmo que os outros professores

haviam feito quando a procuraram anteriormente: desaparecer com os documentos. Levamo-

la ao Arquivo Público para mostrar o estatuto do mesmo e o local onde os documentos seriam

acomodados e acondicionados. Um mês após a visita ao Arquivo Público, ela resolveu nos

procurar e fazer a doação, meio tímida, de alguns exemplares avulsos do jornal A Penna.

De posse dessa primeira doação, procuramos um dos professores mencionados por

D. Heloísa na entrevista. O professor, depois de negar que possuisse material pertencente a

Gumes, revelou-nos que realmente tinha em suas mãos uma tradução feita pelo escritor de um

livro do francês para o português e os exemplares do A Penna correspondentes ao período de

20 de maio de 1898 a 12 de maio de 1905. Acrescentou, porém, que, infelizmente, não

poderia devolvê-los porque ainda não concluíra a pesquisa iniciada a uns seis anos atrás. Com

muita insistência conseguimos ver esse material e fotografar a coleção do jornal que estava

em seu poder (cf. figura 11). A devolução da coleção de A Penna foi impossível porque o

professor pretendia concluir suas pesquisas sobre a história da Educação em Caetité e as

crônicas de Gumes publicadas no jornal eram sua fonte principal. Os jornais estão em estágio

avançado de decomposição: o papel desintegra-se com o simples toque dos dedos. Mas,

felizmente, depois de uma série de investidas, a tradução retornou às mãos D. Heloísa para

que ela pudesse nos fazer sua doação.

Diante da atitude do professor, D. Heloísa resolveu nos doar os manuscritos que

estavam em seu poder, de um exemplar do romance Os Analphabetos e do segundo volume

do romance O Sampauleiro e da tradução de um livro descritivo do interior do Brasil escrito

pelo francês Ferdinand Denis.

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Outro passo tomado para concretização de nossa missão foi proceder a buscas nas

bibliotecas mas, infelizmente, nada foi localizado. Apesar de por ora sermos obrigados a

apresentar um primeiro produto, a tese de doutoramento, a recensio dos documentos

pertencentes ao escritor caetiteense continua. A dificuldade consiste no fato de os parentes

que possuem algo do escritor não mais se encontrarem na terra natal de Gumes. E de as

pessoas negarem possuir material que havia pertencido ao escritor. Buscamos localizar nas

bibliotecas particulares e públicas e nos arquivos públicos textos completos ou fragmentos de

obras publicados em periódicos: revistas e jornais. Dessa busca, até o momento, só foi

localizado um fragmento do romance Os Analphabetos, publicado em 14 de agosto de 1928,

no jornal A Tarde.

Tentamos localizar o Sr. Silvio Gumes, que atualmente reside em São Paulo, e o

Sr. Marcelo Gumes, que mora na cidade de Vitória da Conquista, na expectativa de

conseguirmos o restante da obra do escritor, em especial os manuscritos dos romances Pelo

Sertão, Vida Campestre, Os Analphabetos e o primeiro volume de O Sampauleiro, que

acreditamos estar no poder do Sr. Silvio Gumes.

À medida que íamos recebendo esse material, procedíamos à higienização, à

leitura superficial para uma primeira organização, à organização dos manuscritos em

conjuntos, ao arquivamento dos manuscritos em pastas e à organização cronológica dos

jornais.

No momento do nosso encontro e início do envolvimento com a obra do autor,

acreditávamos que a catalogação dos documentos seria o grande problema a ser resolvido

quanto ao projeto que pretendíamos desenvolver. No entanto, ao darmos início às pesquisas,

verificamos que a reunião da obra do escritor João Gumes para a constituição do Acervo seria

uma tarefa muito árdua e difícil de ser executada. Ainda hoje parece-nos quase impossível

Page 37: ROMANCE DE JOÃO GUMES - Ufba Reis.pdf · Fig. 6: Folha de rosto do primeiro volume do romance O Sampauleiro. 41 Fig. 7: ... SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929. SPF O

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reunir a sua produção intelectual e aquilo que o fez um intelectual: a sua biblioteca. Onde

estão os livros que Gumes manuseou e leu? Não mediremos esforços para um dia, obviamente

não muito distante, conseguir localizar a sua produção e o seu acervo bibliográfico.

No desenvolvimento de nossa pesquisa, resgatar os textos de Gumes não foi o

único problema com que nos deparamos. Outro tão grave, ou até mais, a depender do ponto de

vista de que se encare o problema, é a impossibilidade de seu manuseio. O material

recenseado também apresenta problemas sérios de conservação. A leitura de alguns

exemplares do jornal A Penna, conforme atesta a figura 11, é impossível, devido às péssimas

condições físicas do suporte. Muitos exemplares estão total ou parcialmente destruídos e os

que aparentemente se encontram em boas condições de conservação não podem ser

manuseados em decorrência do avançado estado de desidratação e do alto nível de acidez; o

papel rompe-se ao simples leve toque da mão ao serem abertos. A situação é tão grave que

quase não nos restam alternativas. Se abrirmos os jornais para fazermos microfilmagem,

escaneá-los ou fotografá-los, corremos o risco de destruí-los por completo. Em contrapartida,

se não os abrirmos, não teremos acesso nem a uma parte significativa da produção literária de

João Gumes, que foi publicada em forma de folhetim no jornal A Penna como, por exemplo,

os romances Pelo Sertão e Vida Campestre, nem às centenas de crônicas que fazem parte de

sua produção como jornalista. Se escolhermos esta ou aquela opção estaremos, da mesma

forma, cometendo um crime contra a preservação do patrimônio cultural baiano, uma vez que

inviabilizaríamos, é claro que de formas distintas, a manutenção e a veiculação do saber

produzido pelo intelectual caetiteense. Em relação a outros exemplares do jornal, a situação é

um pouco diferente, mas não menos grave: foram recortados e apresentam partes faltantes,

justamente nas colunas em que se encontrava um texto de Gumes. A título de ilustração, o

exemplar de no 163, página 2, traz publicado um capítulo do romance O Sampaleiro.

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Justamente nessa coluna, falta metade da página que corresponde à coluna onde iniciava o

capítulo do romance.

O estado de conservação dos impressos em forma de livro e dos manuscritos não é

muito diferente da situação dos periódicos. Dos impressos, o romance Os Analphabetos é o

que apresenta piores condições de conservação: papel está amarelado, nota-se a ação de

insetos em quase todas as páginas, as margens superior e inferior apresentam rasgos e a parte

superior das últimas 5 páginas foi totalmente destruída. O segundo volume do romance O

Sampauleiro, quanto aos aspectos físicos do suporte, encontra-se em boas condições de

conservação, mas, quanto à mancha escrita, a tinta de péssima qualidade esvaeceu e, em

muitas páginas, o conteúdo do texto é praticamente ilegível. Os manuscritos apresentam, na

sua grande maioria, um quadro melhor: o suporte revela ação do tempo, está amarelado, em

estágio inicial de desidratação, com manchas de tinta, de água e de fungos; o descuido levou

ao desaparecimento de fólios de alguns conjuntos. A título de exemplificação, o drama

Abolição tem seus últimos fólios rasgados ao meio e a parte inferior, correspondente à 11a

cena do último ato, desapareceu. A outra parte desse fólio foi localizada em meio a outros

manuscritos. O manuscrito da tradução do livro escrito pelo francês Ferdinad Denis encontra-

se em ótimas condições de conservação (cf. figura 2), excetuando-se os primeiros fólios.

Estes, devido ao fato do volume ser encadernado e à falta de cuidados em seu manuseio,

foram colados à capa do livro manuscrito montado pelo próprio João Gumes,

impossibilitando, portanto, identificar o título, nome do autor, editora e data de publicação do

original em francês.

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Fig. 2: Foto do manuscrito do livro traduzido por João Gumes. Os primeiros fólios encontram-se colados à capa, impedindo a sua leitura. Observa-se o cuidado do autor ao costurar os cadernos de papel almaço e o seu estado de conservação.

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Fig. 3: Penúltimo fólio do manuscrito do drama Abolição.

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Fig. 4: Recto do último fólio do manuscrito do drama Abolição.

Fig. 5: Verso do último fólio do manuscrito do drama Abolição.

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Fig. 6: Capa do segundo volume do romance O Sampauleiro.

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Fig. 7: Contracapa do romance O Sampauleiro.

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Fig. 8: Fólio do manuscrito do segundo volume do romance O Sampauleiro.

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Fig. 9: Foto das partituras da música “À memória do Dr. Joaquim Manuel Rodrigues Lima”.

Fig. 10: Foto do manuscrito do romance Seraphina e do drama Abolição.

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Fig. 11: Foto da coleção do jornal A Penna correspondente ao ano de 1898. Observa-se o estado de conservação e a impossibilidade de sua consulta.

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2.1 A OBRA

Visando a realizar uma das propostas apresentadas no item anterior, realizou-se o

levantamento preliminar de todos os dados e testemunhos existentes sobre a obra de Gumes,

para a conseqüente análise de sua tradição. Até o presente momento foram reunidos:

a) dos éditos:

• O Sampauleiro: romance de costumes sertanejos

Os dois volumes da publicação textual, sendo uma cópia xerox do primeiro

volume, gentilmente cedido pela sobrinha do escritor Maria Belma Gumes, e um exemplar do

primeiro; parte do manuscrito autógrafo correspondente aos últimos capítulos do segundo

volume; e os capítulos do segundo volume publicados no jornal A Penna.

• Os Analphabetos

Do romance Os Analphabetos, publicado, em 1927, pela Escola Tipográfica Salesiana, temos um exemplar do impresso bastante danificado devido à ação de insetos e uma cópia xerox de outro exemplar em perfeito estado de conservação.

• Vida Campestre

Do romance Vida Campestre localizaram-se o primeiro e o último capítulo que circularam em 25 de junho de 1914 e em 6 de setembro de 1917, respectivamente, e os folhetins correspondentes aos capítulos XXIV, XXV, XXVI e XXVII, dos quais, infelizmente, não foi possível identificar a data de publicação devido ao estado de conservação dos jornais, faltando justamente a parte superior das folhas, local onde se encontra a datação.

• Sorte Grande e A Vida Doméstica

Apesar de Gumes, em O Sampauleiro, ter feito referência aos textos Sorte Grande e A Vida Doméstica como sendo duas comédias, até o momento, nada de concreto pode ser localizado que comprovasse a existência das mesmas.

• Pelo Sertão

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Do romance Pelo Sertão localizou-se o primeiro capítulo e a conclusão que circularam em A Penna, em 4 de abril de 1913 e em 27 de março de 1914, respectivamente.

b) dos inéditos:

• Mourama

Do Mourama localizou-se o manuscrito autógrafo do qual fizemos uma leitura

paleográfica.

• Abolição

Do drama Abolição localizou-se o manuscrito autógrafo completo, com emendas

autorais e uma cópia do prólogo feita pelo próprio autor. Uma vez que os textos apresentam

um número expressivo de emendas autorais, dentre elas, supressões e acréscimos nas

entrelinhas superior e inferior, procedeu-se uma leitura paleográfica da versão completa e do

prólogo, utilizando uma bateria de sinais, para que as emendas ficassem manifestas ao leitor,

principalmente o leitor especialista, que se deparará com um material revelador do processo

de construção do texto de Gumes.43

Seraphina

Do projeto de romance filosófico, segundo o próprio autor, localizou-se o manuscrito autógrafo dos capítulos que já tinham sido escritos quando da sua morte.

c) da produção jornalística:

As crônicas publicadas no jornal A Penna correspondem ao período de 19 de

dezembro de 1911 a 01 de setembro de 1916, que somam um total de 99 textos e que já foram

transcritas.44 Vale dizer que nem todos os exemplares do jornal desse período tiveram

condições de manuseio, o que significa que a reunião da produção jornalística ainda não pôde

ser concluída. As crônicas, que puderam ser lidas e transcritas, vão relacionadas a seguir:

43 A leitura paleográfica do drama Abolição não faz parte desta tese, porque, em trabalho deste gênero, necessário se faz realizar recortes possíveis de ser, efetivamente, concretizados dentro dos prazos legais.

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TÍTULO NOTA DE IMPRENTA

Programma 19 dez. 1911, n. 1, p.1-2.

Êxodo 09 jan. 1912, n . 2, p.1.

Ainda o Êxodo 26 jan. 1912, n. 3, p. 1.

Micro-Chronica 26 jan. 1912, n. 3, p. 2-3.

Educação 09 fev. 1912, n. 4, p. 1.

24 de fevereiro 28 fev. 1912, n. 5, p. 1.

Rio Branco 28 fev. 1912, n. 5, p. 2.

Rio Branco 15 mar. 1912, n. 6, p.1-2.

Açudes 29 mar. 1912, n. 7, p.1.

Max Leuret 12 abr. 1912, n. 8, p.1-2.

Açudes 26 abr. 1912, n. 9, p.1.

O Cobre 10 maio 1912, n. 10, p.1.

A ferro-via 24 maio 1912, n. 11, p. 1.

Theatro 07 jun. 1912, n. 12, p. 1.

Theatro 21 jun. 1912, n. 13, p. 1.

Theatro 05 jul. 1912, n. 14, p. 1.

Theatro 19 jul. 1912, n. 15, p.1.

TÍTULO NOTA DE IMPRENTA

Theatro 02 ago. 1912, n. 16, p.1.

Theatro 23 ago. 1912, n. 17, p.1.

Theatro 06 set. 1912, n. 18, p. 1.

Açudes 20 set. 1912, n.19, p. 1.

A canna de assucar 08 out. 1912, n. 20, p. 1.

Paiz ignoto 18 out. 1912, n. 21, p.1.

Paiz ignoto [continuação] 01 nov. 1912, n .22, p. 1.

A proposito de K. Martello 15 nov. 1912, n. 23, p. 1.

44 As noventa e nove crônicas recolhidas do A Penna não constituirão corpus do presente trabalho. Serão objeto de outra investigação que em breve concluiremos.

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19 de dezembro 19 dez. 1912, n. 25, p.1.

Renovação 03 jan. 1913, n. 26, p. 1.

As engenhocas 17 Jan. 1913, n. 27, p.1.

A lavoura: seu estado actual 31 jan. 1913n. 28, p.1,.

A lavoura: causas do seu atrazo 19 fev. 1913, n. 29, p.1.

A lavoura 28 fev. 1913, n. 30, p.1.

Nossa situação 09 mar. 1913, n. 35, p.1.

A lavoura: há probabilidade de um futuro prospero

entre nós?

14 mar. 1913, n. 31, p. 1.

Instituto de Butantan 14 mar. 1913 n. 31, p. 1.

Despovoamento do sertão - 11 abr. 1913, n. 33, p.1.

Emigração: recrudesce o mal 25 abr. 1913, n. 34, p.1.

Emigração: o alpha. Correspondecia de bebedouro

n’elle publicada.

23 maio 1913, n. 36, p.1.

Hookworm: verme do amarellão. 23 maio 1913, n. 36, p. 4.

O emigrante : como se creou o typo entre nós 06 jun. 1913, n. 37, p.1.

A victoria do civilismo 20 jun. 1913, n. 38, p.1.

Dous de Julho 04 jul. 1913, n. 39, p.1.

Açudes: trabalhos da commissão de obras contra as

seccas.

18 jul. 1913, n. 40, p.1.

A baixa do café: opiniões sobre as causas d’ella. 01 ago. 1913, n. 41, p. 1.

Engenhocas: o orçamento deve ser melhor estudado no

art. 30 da tabella n.2

15 ago. 1913, n. 42, p.1.

TÍTULO NOTA DE IMPRENTA

Pelles: uma riqueza 29 ago. 1913, n. 42, p. 1.

Monte Alto: riqueza do município. Optima situação da

villa.

12 set. 1913, n. 44, p.1.

Monte Alto: riqueza do município. Optima situação da

villa. [Continuação]

26 set. 1913, n. 45, p.1.

Retorno 10 out. 1913, n. 46, p.1.

Repatriamento 05 dez. 1913, n. 50, p.1.

Rememorando 19 dez. 1913, n. 51, p.1.

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Invasão 02 jan. 1914, n. 52, p.1.

Contra as seccas 30 jan. 1914, n. 54, p.1.

Clama: ne cesses 13 fev. 1914, n. 55, p. 1.

A eleição 27 fev. 1914, n. 56, p. 1.

A catastrophe 27 mar. 1911, n.58, p. 1.

Meios de transporte 10 abr. 1914, n. 59, p.1.

As festas ao 2 de julho 9 jun. 1914, n. 64, p.1-2.

Situação angustiosa: falta-nos tudo. Achamo-nos

assediados. Habeas corpus

25 jun. 1914, n. 62, p.1.

As estradas: são ellas o elemento do qual depende em

primeiro lugar o nosso progresso.

25 jun. 1914, n. 63, p.1.

Cemiterios: ruinas e abandono. 23 jul. 1914, n. 65, p.1.

Pelo commercio: um problema a resolver 06 ago. 1914, n. 66, p.1.

A emissão do papel 03 set. 1914, n 68, p.1.

Imprevidência 12 nov. 1914, n. 71, p.1.

O fogo: como meio de amanho da terra 26 nov. 1914, n 72, p.1.

Conciliação 19 dez. 1914, n. 73, p.1.

[Não vimos, por estas linhas, assignalar grandes

conquistas...]

19 dez. 1914, n. 73, p.1.

O anno que vae-se 31 dez. 1914, n. 75, p. 1.

Conciliação 28 jan. 1915, n. 76, p. 1.

O correio 11 fev. 1915, n. 77, p.1.

Ainda o correio 25 fev. 1915, n.78, p.1.

TÍTULO NOTA DE IMPRENTA

Exploração 11 mar. 1915, n. 79, p.1.

O correio 25 mar. 1915, n. 80, p. 1.

Tivemos correio !! 08 abr. 1915, n. 81, p. 1.

14 de abril 22 abr. 1915, n. 82, p.1.

Exodo 03 jun. 1915, n. 86, p.1.

A secca: este alto sertão da Bahia tambem norte e acha-

se

17 jun. 1915, n. 87, p.1.

Associado pela secca 01 jul. 1915, n. 88, p.1.

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53

A epidemia 15 jul. 1915, n. 89, p. 1.

Epidemia? 29 jul. 1915, n. 90, p. 1.

Ainda a epidemia 26 ago. 1915, n. 92, p.1.

Rainha do sertão? 21 out. 1915, n. 96, p. 1.

Choveu 04 nov. 1915, n. 97, p. 1.

15 de novembro 18 nov. 1915, n 98, p. 1.

Mendicancia 02 dez. 1915, n. 99, p. 1.

Um quatriennio 19 dez. 1915, n. 100, p. 1.

Os nossos males 12 fev. 1916, n. 104, p.1.

As searas 24 fev.1916, n. 105, p. 1.

Exprobrações 10 mar. 1916, n. 106, p. 1.

O café 23 mar. 1916, n. 107, p. 1.

O mercado 06 abr. 1916, n 108, p. 1.

O açude da cachoeirinha 20 abr. 1916, n. 109, p. 1.

Triste 04 maio 1916, n. 110, p. 1.

Riacho de S. Anna versus Caeteté 18 maio 1916, n. 111, p. 2.

Os nossos productos 01 jul. 1916, n. 112, p. 1.

Theatro 15 jun. 1916, n. 113, p. 1.

Do presente ao futuro 29 jun. 1916, n. 114, p. 1.

Em abandono 20 jul. 1916, n. 116, p. 1.

Os mercados públicos 04 ago. 1916, n. 117, p. 1.

Unamo-nos 01 set. 1916, n. 119, p. 1.

d) se outros trabalhos:

Da obra dispersa de João Gumes localizou-se ainda uma tradução de um livro de

história do Brasil cujo original é em língua francesa; a partitura de uma música intitulada À

memória do Dr. Joaquim Manuel Rodrigues Lima; a certidão para inscrição do jornal A

Penna, datada de 20 de fevereiro de 1924 e assinada pelos membros da sociedade: João

Antônio dos Santos Gumes e seus dois filhos Saadi Rutilho dos Santos Gumes e Luiz Antônio

dos Santos Gumes; o contrato de constituição de uma sociedade mercantil e industrial da

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"Empreza Typografica d'A Penna estabelecida no prédio no. 17, à rua 2 de Julho", datado de

1º de janeiro de 1921, constando ainda as assinaturas dos três sócios; e o livro de Registro de

Assignantes d' A Penna entre 1924 a 1927. O livro de assinaturas, organizadas em ordem

alfabética,traz uma lista com 442 nomes de assinantes com a indicação da cidade onde

residem.

As buscas das obras foram (e continuam sendo) realizadas nos acervos públicos e

particulares, bem como nas bibliotecas públicas e particulares da cidade e da região sudoeste

do estado da Bahia e em vários outros lugares. Após a conclusão da recencio, o acervo da

obra de João Gumes deverá ser constituído de manuscritos e das edições em livros e em

periódicos em vida e post mortem do autor.

2.2 SOBRE O CONTEÚDO DE ALGUNS TEXTOS

2.2.1 O Sampauleiro

O Sampauleiro, romance escrito entre 1917 e 1929, quando se intensificava a

emigração do homem simples do campo para São Paulo, publicado primeiramente em

folhetins quinzenais no jornal A Penna durante um longo período que não pode ser

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determinado com precisão, porque a coleção de que dispomos ainda se encontra incompleta,

sendo possível apenas consultar os folhetins que correspondem ao segundo volume. Em 1929,

toma fomato de livro na própria gráfica do jornal. Trata do movimento dos sertanejos em

direção aos estados do Sul à procura do eldorado. Nele o autor descreve o sofrimento do

homem do campo com as freqüentes e duradouras secas que o obriga a deixar suas

propriedades e seus familiares em estado de flagelo para partir em busca de soldos que

possam lhes garantir a sobrevivência. Característico dos romances que se prestavam à

divulgação em folhetim45, apresenta quatro personagens principais: o herói, João Lopes, a

heroína, Maria da Conceição, o vilão, Abílio, e o amigo e protetor, Professor Serafim.

2.2.2 Os Analphabetos

Os Analphabetos, romance escrito em 1927 e publicado em 1928 pela Escola

Tipográfica Salesiana em Salvador, é, segundo o próprio autor, uma obra de propaganda

contra o analfabetismo na região. Descreve os costumes e crenças do homem simples e rude

do campo. Marcolino, o pai do protagonista do romance, é a representação do homem simples

do sertão baiano, desprovido de instrução, limitado a reproduzir e a perpetuar os valores

herdados de seus antepassados. Por esta razão, considera o conhecimento adquirido através

dos livros algo maléfico ao ser humano, porque o transforma em ser pensante e

revolucionário.

45 Cf. Marlyse MEYER. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 472p. Consulte ainda Antônio HOHLFELDT. Deus escreve direio por linhas tortas: o romance-folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 1 1900. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. 321p.

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2.2.3 Pelo Sertão

Apesar de a contracapa do romance O Sampauleiro trazer a informação de que é

um texto inédito, Pelo Sertão circulou em A Penna, no período de 4 de julho de 1913 a 27 de

março de 1914. Segundo o próprio autor, descreve os costumes da zona alto-sertaneja.

2.2.4 Vida Campestre

Vida Campestre provavelmente circulou em A Penna entre 25 de junho de 1914 e

6 de setembro de 1917 (a primeira data refere-se ao início e a última à conclusão). Sobre o seu

conteúdo pouco se pode dizer porque os capítulos localizados oferecem apenas algumas

pistas. Entretanto, dois fatos autorizam a inferir que trata dos costumes do homem sertanejo e

do folclore da região. O primeiro é que, conforme Gumes, no segundo volume d'O

Sampauleiro, ao tratar das "queimadas", diz: "Na “Vida Campestre”, nosso trabalho ainda

infelizmente inédito, já fizemos uma demorada descrição desses incêndios." O segundo é que

a contracapa do romance O Sampauleiro traz: "VIDA CAMPESTRE – (Interessante romance

de folklorismo desta zona). Inédito".

Viu-se que no capítulo X, às linhas 103-110, e na contracapa do romance O

Sampauleiro, Gumes faz referência a sua obra Vida Campestre como sendo um texto ainda

inédito. Interessante observar que, em 1929, quando a obra que traz essas informações foi

publicada, Vida Campestre já havia circulado em folhetim, como atestam os exemplares do A

Penna que circularam em 25 de junho de 1914 e em 6 de setembro de 1917. Ao chamá-la de

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"obra inédita" Gumes poderia ter se equivocado ou, simplesmente, não considerava a

veiculação de um texto em periódico como uma forma de publicação que o tornaria um édito.

2.2.5 Abolição

Gumes classifica a obra como comédia drama. É um texto inédito que trata da

permanência da escravidão na região das Serras Gerais após a abolição, ou seja, depois de

assinada a Lei Áurea que proibia essa prática no Brasil. O drama, composto de um prólogo e

três atos, apresenta onze interlocutores, a saber: Alferes Bonifácio, o solteirão Rocha, o

negociante de escravos Antenor de Sá, Dr. Francisco de Oliveira, o escravo Domingos,

Conselheiro Santos, o protagonista Capitão Sescuando, Antônio, Emília e Ussina. Apesar de

não ter sido publicado, provavelmente, esta é a obra de João Gumes mais conhecida na

atualidade, talvez, seja porque, em vida do autor, foi encenada repetidas vezes e ainda

costuma ser encenada nas comemorações cívicas.

2.2.6 Seraphina

Seraphina é um projeto de romance moralizador e filosófico. O manuscrito doado

ao Arquivo Municipal de Caetité está incompleto. Gumes apenas escreveu os cinco primeiros

capítulos, a saber: A velha Margarida, O aprisco e o pastor, A recém chegada,

Contrariedades, Nunca estamos isolados. Do sexto capítulo Gumes deixou apenas o seu

título: O club.

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A contracapa do romance O Sampauleiro traz a seguinte informação a respeito

dessa obra: "SERAPHINA - romance moralisador e philosophico. Inédito." Diante desta

informação, pergunta-se: Na contracapa de um livro, onde estão listadas as "OBRAS DO

MESMO AUTOR" ,Gumes incluiria o título de um texto que apenas era projeto? Ele já teria

concluído o seu texto e, por uma razão qualquer, resolveu passar a limpo o que escevera, não

dispondo mais de tempo suficiente para concluí-lo e o deixando incompleto? Se o romance foi

concluído, onde estão os seus originais?

2.2.7 Mourama

Mourama, texto inédito, trata dos costumes sertanejos. Manuscrito autógrafo

completo, classificado por Gumes em auto comédia.

2.2.8 Sorte Grande e A Vida Doméstica As obras Sorte Grande e A vida doméstica também aparecem, na contracapa do

romance O Sampauleiro, no rol das "OBRAS DO MESMO AUTOR", somente com a indicação de serem comédias. Como ainda não foram localizadas, inferências a respeito do seu conteúdo não podem ser feitas. Pelas mesmas razões que expusemos no item 2.2.6, não sabemos se as duas comédias de fato foram escritas, apesar da segunda ter sido citada, na Enciclopédia de literatura brasileira46, com o título A intriga doméstica, como uma das produções de Gumes. Estas e outras dúvidas somente serão solucionadas quando os manuscritos forem localizados ou, quem sabe, quando a coleção de A Penna estiver completa e for possível consultá-la.

2.2.9 Outros trabalhos

46 Cf. Afrânio COUTINHO, J. Galante de SOUSA, citado à n. 26.

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2.2.9.1 A tradução

Gumes também se dedicou à tradução de um livro de história do Brasil escrito em

francês. A obra descreve com riqueza de detalhes vários aspectos da flora, da fauna, da vida e

dos costumes do povo brasileiro.

O manuscrito doado por dona Heloisa ao Arquivo Municiopal de Caetité, pela

letra cuidada, pela falta de emendas e pelas gravuras ilustrativas que foram cuidadosamente

coladas, compondo uma unidade significativa, tem características de um texto passado a

limpo. Os cadernos de papel almaço foram costurados formando um grosso volume que

recebeu uma capa dura. Infelizmente, apesar da dedicação e do zelo de Gumes, os seus

primeiros fólios foram colados à capa, impedindo que as informações sobre autoria da obra

original e título fossem identificados. A identificação só se concretizará quando for viável a

sua restauração para separar os dois primeiros fólios da capa.

2.2.9.2 A partitura de música

A partitura da canção À memória do Dr. Joaquim Manuel Rodrigues Lima consta de 12 folhas, com a mancha escrita apenas no recto, não numeradas. No ângulo superior esquerdo de cada folha lê-se: Canção/ Rodrigues Lima. É uma composição de Ernesto Dantas Barbosa sendo Gumes encarregado de elaborar a partitura. Conforme sugere o próprio título, trata-se de uma homenagem post mortem a seu ilustre conterrâneo: primeiro governador do Estado da Bahia eleito pelo voto direto.

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3 A CONSTRUÇÃO DO TEXTO DE JOÃO GUMES 3.1 INTRODUÇÃO

Do exposto até o momento dá para se ter uma idéia da diversidade de

possibilidades de estudos que podem ser desenvolvidos com a obra de João Gumes.

Resumidamente, elencam-se três recortes viáveis.

A primeira seria submeter os textos ao tratamento da Critica Textual Moderna,

preparando edições críticas para os textos impressos e edições crítico-genéticas ou genético-

críticas para os textos que apresentam testemunhos manuscritos, esclarecendo o processo de

criação do Autor, que deixa marcas de manipulação no texto. Essas marcas são correções

autógrafas, estilísticas e lingüísticas, que determinam a seleção realizada pelo escritor entre as

diversas possibilidades que o sistema lingüístico lhe oferece ao construir o texto. Desse modo,

faz-se um estudo genético da prosa de Gumes, visando depreender como o autor constrói o

seu texto, quais os instrumentos que utiliza e quais são os seus hábitos. Estar-se-ia, portanto,

buscando caracterizar o seu usus scribendi e o seu modus faciendi.

A segunda seria traçar a história de vida do escritor a fim de caracterizar histórico-

socialmente o período em que ele viveu, registrando a sua atuação como jornalista, fazendo-se

o inventário de sua produção intelectual, inserindo-o no meio literário baiano de seu tempo, e,

principalmente, avaliando os seus escritos mais relevantes. Seja qual for o caminho que se

trilhe, o trabalho a ser desenvolvido deverá registrar a memória cultural e garantir a sua

permanência porque, tornando transparente a produção de Gumes, desvelando as primeiras

incursões literárias dos escritores baianos e detectando a importância documental dessa

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produção através de uma leitura ancorada na metodologia do gênero, haverá uma contribuição

sobremaneira válida para que as lacunas da historiografia literária baiana possam ser

preenchidas. Enfim, com esse resgate, utilizando-se do periódico fundado por João Gumes,

pode-se reconstruir a vida cultural da região sudoeste do estado da Bahia naquele período

porque, apropriando-se das idéias de Di Decca47, é através da vida guardada pelos grupos

vivos e, em seu nome, que ela está permanentemente aberta à dialética da lembrança e do

esquecimento, vulnerável a todas as utilizações e manipulações, susceptíveis a longas

latências e a súbitas revitalizações. A história é reconstrução sempre problemática e

incompleta daquilo que já não é mais. A memória é um fenômeno sempre atual, uma ligação

do vivido com o eterno presente.

A terceira seria estudar o léxico da obra do autor a fim de caracterizar tanto os

seus usos lingüísticos específicos como a língua utilizada por seus contemporâneos daquela

região. Assim também se estaria resgatando os aspectos sócio-culturais do Sudoeste baiano,

pois, como é sabido, o léxico de uma língua é constituído por um conjunto de vocábulos que

representa a herança sócio-cultural de uma comunidade. Apropriando-se de Matoré48, poder-

se-ia dizer que a palavra analisa e objetiva o pensamento individual, tendo um valor coletivo,

pois a sociabilidade é própria da língua. E, por essa razão, torna-se testemunha da própria

história dessa comunidade, assim como de todas as normas sociais que a regem. O estudo

sobre o léxico permite compreender os conceitos e as ocorrências da vida cotidiana, por ser

modelo e modelador de uma cultura.

Um outro aspecto que também deve ser considerado importante é que no estudo

da formação de uma dada língua faz-se necessário levar em consideração a influência

47 Cf. Edgard Salvadori DI DECCA. A memória e a cidadania. In: DI DECCA, Edgard Salvadori. Direito à memória: patrimônio histórico e a cidadania. São Paulo: DPH, 1992.p. 129-135. 48 Cf. George MATORÉ. La méthode en léxicologie. Paris: Didier, 1953. p.37.

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exercida pelo ambiente através da experiência social. Esse contato entre língua e realidade irá

determinar a linguagem como reflexo da realidade e, sobretudo, como força geradora da

imagem do mundo que o indivíduo possui. Genericamente, pode-se considerar como princípio

o fato de que um vocábulo é aceito como elemento da língua, a partir do momento em que ele

passa a exprimir todos os valores de um determinado grupo social e, sobretudo, satisfazer suas

necessidades.

A língua concebida como um organismo vivo e dinâmico encontra-se em contínuo

processo de transformação, e essas transformações são explicadas pelo próprio funcionamento

da língua. Elas são motivadas por vários fatores, como por exemplo, geográficos, sócio-

culturais e históricos. E, por mais reduzido que seja um espaço geográfico, o estado natural

de uma língua nele inserida é o estado da mutabilidade. Toda essa dinamicidade da língua

evidencia-se, sobremaneira, no seu léxico, nível lingüístico que melhor documenta o modo

como um povo vê e representa a realidade em que vive. O vocabulário de um determinado

grupo social atesta seus valores, suas crenças, suas formas de nomear os referentes do mundo

físico e do universo cultural nas diferentes épocas da história. Ou seja, o vocabulário de uma

língua expressa a mutabilidade das estruturas sociais e a maneira como uma dada sociedade

vê e representa a realidade.

Daí acreditar que o vocabulário da obra regional de João Gumes mereça ser objeto

de estudo. Estudar o léxico da obra de um escritor regionalista e realista como Gumes é de

fundamental importância para a caracterização de seus usos lingüísticos específicos e da

língua utilizada por seus contemporâneos em uma dada região.

Uma leitura, mesmo que superficial, da obra de João Gumes aponta algo bem

particular em relação à escolha dos itens lexicais. Os seus textos literários de caráter regional

revelam certa predileção pelo uso de um vocabulário de “cor local”. Nessas obras, percebe-se

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que o autor tem duas intenções: 1) documentar todos os hábitos e costumes da região sudoeste

do estado da Bahia, especialmente os da cidade de Caetité e de cidades circunvizinhas; 2)

documentar/registrar os vocábulos utilizados por seus contemporâneos. Essa intencionalidade

é explicitada pelo próprio autor no prefácio do romance Os Anaphabetos:

“Continuando o meu propósito de tornar conhecida esta região em tudo quanto concerne ao seu interesse e aproveitamento dos seus opulentos recursos, considerei que o melhor meio era escrever narrativas de fatos verossímeis acompanhados de descrição do nosso território e costumes do povo sertanejo. (...) o romance, a novella, ou qualquer trabalho d'este genero, é o que melhor propaganda faz.” 49

Os textos literários que tratam de outra temática e as crônicas publicadas no jornal

A Penna não apresentam a mesma característica. Nesses textos, diferentemente daqueles,

talvez movido por outras razões, principalmente com o objetivo de disseminar conhecimento

e de contribuir para “combater o analfabetismo reinante na região”, Gumes parece ter dado

preferência a termos mais “eruditos”, sobretudo de origem latina. Nesse caso também se

percebe a presença de palavras, expressões e frases em latim, italiano e francês.

Conforme foi demonstrado anteriormente, podem-se enfocar aspectos diferentes

da obra de João Gumes, mas, infelizmente, os prazos que devem ser obedecidos para o bom

andamento de um programa de pós-graduação, durante o processo de elaboração de uma tese

de doutoramento, são relativamente curtos, fato que obriga a escolher a primeira opção

apresentada, ou seja, submeter os textos ao tratamento da Crítica Textual Moderna. Mesmo

optando por este recorte, faz-se ainda necessário delimitar o objeto de estudo. O material já

reunido de Gumes consta de alguns textos que merecem e devem receber o tratamento

científico da Crítica Textual Moderna. Editar todo o conjunto demanda muito tempo, por isso,

elegeu-se o romance O sampauleiro porque esse texto, na perspectiva da Crítica Textual, é o

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que apresenta as melhores condições para serem aplicados os procedimentos metodológicos

concernentes à preparação de uma edição crítica.

3.2 PARA UMA EDIÇÃO CRITICA DE O SAMPAULEIRO

A Crítica Textual Moderna procura editar a última versão de um texto. O seu

material de trabalho são os textos de autores modernos, cuja tradição é marcada pela variação

dos originais manuscritos ou das edições avaliadas pelo autor. A possibilidade de estudar

estes novos objetos levou os editores de textos modernos a rever alguns comportamentos,

reformular alguns instrumentos teóricos e metodológicos e criar outros. E,

conseqüentemente, abriu também novas possibilidades de estudo: fazer a edição crítica com

texto-base autógrafo ou autorizado pelo autor (Critica Textual Moderna), e estabelecer a

dinâmica do processo criativo a partir das marcas de correções de vários tipos deixadas pelo

autor nos seus manuscritos (Crítica Genética).

A Crítica Textual Moderna tem procurado estabelecer parâmetros científicos em

conformidade com o texto moderno, definido por sua organização interna e pelas

determinações contextuais. Impõe-se como questão relevante observar o modo de proceder

em relação à organização da produção regionalista de um escritor cuja obra foi produzida ao

longo de algumas décadas. Conforme já se disse, a necessidade de resgatar o patrimônio

cultural de um povo não é uma preocupação da modernidade, sua origem remonta aos gregos.

Nesse sentido as duas disciplinas, a Crítica Textual e a Crítica Genética, atuariam

conjuntamente em favor do texto editado, analisando-se tanto os procedimentos da

49 Cf. João GUMES. Os analphabetos, citado à n. 3, p.8.

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organização textual como a recepção do texto, apresentando-os como traços que devem

fornecer subsídios para uma teoria geral do processo de criação.

A filologia textual tem revelado o quanto é importante estudar o processo de

criação do texto artístico, partindo-se dos resquícios que sobrevivem no trabalho de

construção do discurso. Um estudo desta natureza reverte, sem dúvida, em benefício para o

estabelecimento crítico do texto. Almulh Grésillon,50 por exemplo, defende que os editores e

os geneticistas devem trabalhar juntos. Estes ocupando-se do processo de criação, aqueles

estabelecendo o texto definitivo, mas ambos comungando do objetivo de dar relevo à

textualidade literária.

Tavani também compartilha de tal idéia. Segundo ele,51 a colaboração da Crítica

Genética para a Crítica Textual pode ser muito mais preciosa do que a tradicional colaboração

entre editores e historiadores. Em outro trabalho,52 aponta a Crítica Genética e a

Manuscriptologia como duas disciplinas que muito contribuem para o estabelecimento do

texto.

Tavani ainda aponta a necessidade de definir princípios teóricos gerais e critérios

básicos rigorosamente científicos, mas flexíveis e adaptáveis às particularidades de cada

situação textual, para que a subjetividade exerça influência. Diz que, numa edição crítica, o

objetivo deve estar na fixação do texto e que, quando se leva em consideração o processo de

criação literária, se está buscando atender à exigência de fixar um texto, de restituí-lo em sua

integridade, de estabelecer a realidade planejada e realizada pelo autor.

50 Cf. Almuth GRÉSILLON. Eléments de critique génetique: lire les manuscrits modernes. Paris: PUF, 1994. p.202 51Cf. G. TAVANI. Los textos del siglo XX. In: LITTERATURE LATINO-AMERICAINE ET DES CARAÏBES DU XX SIÈCLE: THÉORIE ET PRATIQUE D’ EDITION CRITIQUE. Roma: Bulzoni, 1988. p.55-56. 52 Cf. G. TAVANI. Le Texte: son importance, son intangibilité. In: LITTERATURE LATINO-AMERICAINE ET DES CARAÏBES DU XX SIÈCLE: THÉORIE ET PRATIQUE D’ EDITION CRITIQUE. Roma: Bulzoni, 1988. p. 34.

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Luiz Fagundes Duarte, em Prática de edição: onde está o autor?,53 diz que,

dependendo do material de que o filólogo dispõe, uma edição crítica de textos modernos deve

ser crítico-genética. Enquanto crítica, procura estabelecer o texto mais próximo da intenção

final do autor; enquanto genética, busca documentar o percurso seguido pelo escritor na

construção de seu texto. Aquele que recebe o tratamento critico-genético terá, portanto, a sua

fixação mais autorizada e um aparato crítico-genético ou genético- crítico. O aparato crítico

registra as variantes da tradição impressa e o aparato genético reconstitui de modo codificado

a evolução da escrita de uma determinada passagem do texto.

Duarte apresenta algumas situações com as quais o editor pode se deparar.

Enquanto o editor crítico deve trazer à tona o texto que contém a última vontade do autor e

limpá-lo das adulterações introduzidas pela tradição, partindo-se do postulado de que a obra,

quando foi elaborada por seu autor, tinha como objetivo primeiro ser lida por outra pessoa; o

geneticista deve lidar com o manuscrito autógrafo trabalhando com as obras publicadas sob as

vistas do autor ou com as obras não terminadas ou deixadas inéditas. As informações

genéticas são preciosas porque permitirão ao geneticista identificar o modus faciendi

característico do autor e deduzir uma matriz estilística. Diz ainda que cabe ao editor crítico

genético a tarefa de apresentar ao leitor um texto legível, não como o texto final, mas como o

nível máximo a que conduziu o processo. Entretanto, não sendo possível estabelecer a vontade

derradeira do autor, deve-se considerar a pluralidade de vontades que se manifesta entre o

primeiro jato de escrita e o nível terminal do manuscrito.

Telê Porto Ancona Lopez54 assinala a impossibilidade de se relacionarem

manuscritos a uma edição crítica sem recorrer ao auxílio da Crítica Genética. O manuscrito

53 Cf. Luiz Fagundes DUARTE. Prática de edição: onde está o autor? In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE PESQUISADORES DO MANUSCRITO E EDIÇÕES, 4. GÊNESE E MEMÓRIA. Org. Philippe Willemart. Anais... São Paulo: ANNABLUME, 1995. p. 335-376. 54 Cf. Telê Porto Ancona LOPEZ. Manuscrito: dimensões. Manuscrítica, 7. São Paulo, p. 39, mar. 1998.

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moderno caracteriza-se por ser um texto marcado por alterações de toda ordem, substituições,

deslocamentos, acréscimos e supressões que expressam vontades do autor. O texto artístico,

resultado de uma cultura, dita o comportamento a ser adotado pelo editor, podendo ser

analisado em diferentes ângulos: narratologia, psicanálise, semiótica, poética etc.

As reflexões que aqui foram expostas definem os procedimentos que poderão ser

adotados também na edição dos textos do escritor baiano João Antônio dos Santos Gumes.

Desse modo far-se-á o uso de estratégias metodológicas que procurem englobar a elaboração

de edições críticas de textos modernos, orientando-se pelos princípios teóricos preconizados

pela Crítica Textual Moderna, considerando que editar criticamente um texto de autor

moderno leva, na medida do possível, a um tratamento genético de seus manuscritos.

O nosso objeto – o texto de João Gumes – tem-se apresentado sob formas

diferentes, completo, incompleto, inacabado, em prosa, com muitas ou poucas correções

lingüísticas e estilísticas, consubstanciadas em supressões, substituições e acréscimos. Os

autógrafos apresentam uma quantidade razoável de dados materiais, contabilizáveis e

comparáveis, reveladores de manipulação do texto pelo autor.

A leitura dos autógrafos de João Gumes oferece elementos que nos permitem

inferir: o escritor deixa marcas lingüísticas que revelam o seu usus scribendi, fato que

particulariza o seu modus faciendi diante de outros escritores. É através dessas marcas

deixadas nos manuscritos e da escolha vocabular que o autor expressa sua visão de mundo e

sua intenção poética, além disso, dialoga com as obras que o precedem, ao tempo que elabora

seu texto pressionado pela tradição literária.

A partir do estudo dos manuscritos do escritor que tenham versões diferentes de

um mesmo testemunho, poder-se-ia apresentar a gramática estilística de João Gumes. Para

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tanto, procura-se seguir o método lingüístico aplicado por Luiz Fagundes Duarte55 aos

autógrafos de Eça de Queiroz, fazendo-lhes, é claro, os ajustes necessários de acordo com os

manuscritos de Gumes.

O método demonstrado por Luiz Fagundes Duarte tem como objetivo definir a

peculiar estrutura gramatical que está subjacente a cada um dos momentos de escrita,

reescrita, correção, e correção a correção. Constitui-se de seis etapas, a saber: 1) constituição

de uma amostra representativa do corpus, abarcando todos os testemunhos disponíveis; 2)

marcação dos níveis e momentos de todas as transformações textuais; 3) classificação por

classe gramatical, 4) elaboração de cálculos estatísticos acerca da distribuição de cada classe

em termos tipográficos; 5) elaboração de probabilidade; 6) matriz de probabilidade de

ocorrências.56

É possível encontrar no espólio de João Gumes textos em que se podem notar as

marcas que se registram ao longo da produção textual. O autor põe em confronto diversos

materiais lingüísticos, que vai testando, pondo em prática mecanismos de recusa, substituição,

acréscimos, até encontrar ou não aqueles que melhor servem para as suas representações da

realidade.

Nesses documentos autógrafos, pode-se observar que, na tentativa de alcançar o

texto "perfeito", mais elaborado, procede a leituras, releituras e reformulações da linguagem.

Essas reformulações consistem em reorganizações locais limitadas ao texto, manifestadas na

pontuação, na ordem das palavras, nas construções sintáticas, nas escolhas de termos

gramaticais e lexicais.

55 Cf. Luiz Fagundes DUARTE. A fábrica dos textos: ensaios de crítica textual acerca de Eça de Queiroz. Lisboa: Cosmos, 1993. 56 A professora Dra Rosa Borges Santos Carvalho, em sua tese de doutorado defendida em 2001, na Universidade Federal da Bahia, analisou exaustivamente os textos relativos ao mar que compõem a Coletânea poemas do mar do poeta baiano Arthur de Sales, aplicando-lhes o método demonstrado por Fagundes Duarte. O seu trabalho é excelente modelo de aplicação desse método a autores brasileiros. Cf. CARVALHO, Rosa Borges Santos.

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Mas o editor da obra de Gumes não poderá perder de vista o que se subentende da

leitura de sua obra: seu desejo em tornar público os seus romances, único meio, segundo ele,

de contribuir para divulgação da cultura local e da dissiminação do conhecimento livresco na

região onde vivera. Tendo isso como ponto de referência, o editor crítico deve, antes de

realizar qualquer outro trabalho com a obra do escritor baiano João Gumes, trazer à tona o

texto que contém a última vontade do autor e limpá-lo das adulterações introduzidas pela

tradição, partindo do postulado de que a obra, quando fora elaborada, tinha como objetivo

primeiro ser lida.

Por isso, não consistirá meta desta tese identificar e interpretar, sistemática e

estatisticamente, as marcas reveladoras do processo de construção do discurso de João

Gumes, nem se terá como propósito último traçar o matrizamento da sua gramática estilística,

como fizera Fagundes Duarte em A fábrica dos textos57. Aqui, pelo contrário, oferecerá

elementos para que os geneticistas e/outros especialistas, que têm como objeto de trabalho os

manuscritos literários, sobre eles se debrucem e realizem as suas análises e conclusões.

Constitui como pretensão propor apenas a elaboração de uma edição crítica para o segundo

volume do romance O Sampauleiro, pelas razões acima apresentadas.

Edição crítico-genética dos "Poemas do mar" de Arthur de Salles. 2001. 901f. Tese de Doutorado orientada por Dr. Nilton Vasco da Gama, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1999. Cf. Luiz Fagundes DUARTE. A fábrica dos textos: ensaios de crítica textual acerca de Eça de Queiroz. Lisboa: Cosmos, 1993.

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3.2.1 O Sampauleiro: do manuscrito ao texto definitivo

3.2.1.1 Descrição

O Sampauleiro, romance em dois volumes, concluído em 8 de

dezembro de 1929, apresenta três testemunhos: um manuscrito

autógrafo contendo apenas os últimos capítulos do segundo volume; e

dois éditos: uma publicação em folhetim em A Penna e outra em livro,

sendo uma cópia xerox do primeiro volume e um exemplar do segundo.

(Cf. item 2.1 A OBRA)

GUMES, João Antonio dos Santos. O Sampauleiro. Caetité, 1929.

O manuscrito, autógrafo, de texto não definitivo, apresenta um número

significativo de emendas autorais. Mancha escrita lançada no recto e no verso do papel

almaço amarelado, desidratado, pautado, em tinta azul. Letra regular, bem traçada. Encontra-

se incompleto, desordenado, assinado e datado. Agentes químicos externos, cola e tinta,

prejudicam a leitura de algumas partes. Números arábicos no ângulo superior direito indicam

a numeração dos fólios.

GUMES, João Antonio dos Santos. O Sampauleiro. A Penna, Caetité, 1918- 1929.

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Testemunho publicado em edições quinzenais no jornal A Penna. Alguns

exemplares não podem ser manuseados devido ao estado físico do suporte: papel desidratado,

decompondo-se ao simples toque das mãos. Os números que se acham em condições de

manuseio apresentam dificuldade de leitura ora pela impressão de má qualidade ora pelas

condições materiais do papel: rasgões nas bordas, furos provocados pela ação de insetos e

produtos químicos, e pela ação do homem que recorta, rasga, risca. Os capítulos do romance

estão distribuídos em 3 ou 4 colunas das páginas do jornal A Penna, com a indicação do título

da obra: O SAMPAULEIRO, do capítulo em algarismos romanos: XX, seguida da expressão

Continuação, quando for o caso. Após o texto, vem a indicação da autoria de João Gumes.

GUMES, João Antonio dos Santos. O sampauleiro: romance de costumes sertanejoos. Caetité: A Penna, 1929. 2v.

Primeira publicação textual completa, editada pela Tipografia D’A Penna- Gumes

& Filhos, Caetité, Bahia. Composta em dois volumes, formato 10 cm x 14 cm, com capa dura,

vermelha. O primeiro e o segundo volumes trazem na folha de rosto: o nome do autor, JOÃO

GUMES, em tipo de letra diferente e maior, o título e subtítulo, O SAMPAULEIRO.

Romance de costumes sertanejos, a indicação da casa publicadora e local, TYP. D’A

PENNA – Gumes & Filhos – CAETITÉ – BAHIA. Volume 1: contém um A Modo de

Prefácio e três partes, a saber, O Sampauleiro, subdividido em capítulos I e II; SEGUNDA

PARTE, Sr. Seraphim, sem subdivisão em capítulos; TERCEIRA PARTE, Maria da

Conceição, subdividida em 29 capítulos, perfazem um total de 292 páginas. Volume 2:

dividido em duas grandes partes, a saber, QUARTA PARTE, Migração, subdividido em 11

capítulos; QUINTA PARTE, Abilio em acção, subdividido em 23 capítulos; e uma conclusão

intitulada PARA FINALIZAR, totaliza 384 páginas.

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3.2.1.2 Enredo

Gumes, no primeiro volume do romance O Sampauleiro, trata do funcionamento

dos garimpos em Diamantina das Lavras, do abandono das atividades agrícolas em busca de

fortuna rápida, através da extração de pedras preciosas e do ciclo econômico, social e cultural

na região do Alto Sertão Baiano. Descreve as atividades agrícolas e vegetação da região. No

segundo volume, estuda a migração no Alto Sertão Baiano, apontando os principais fatores e

as conseqüências do fenômeno. A seguir, apresenta-se o enredo dos dois volumes do

romance.

V. 1

A história é narrada pelo amigo do Sr. M. que, depois de dias cavalgando

pela região do Alto Sertão Baiano, com o amigo param em uma modesta e asseada casa

a que pedem pouso. São gentilmente recebidos, têm sua refeição preparada e se

encantam com o tratamento que lhe foi dispensado e com a beleza da respeitosa dona da

casa. Após a refeição e o merecido descanso, continuam a viagem, mas, como não

conhecem as estradas, tomam uma direção errada que os leva à casa do Senhor Serafim.

Este dá abrigo aos dois. Durante a estadia, os viajantes, através do professor Serafim,

descobrem que aquela generosa senhora era mais uma vítima do processo de emigração

instalado naquela região que obrigava muitos bons pais de famílias a abandonarem seus

lares em busca do Eldorado em São Paulo.

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O amigo do Sr. M., após ouvir o professor Serafim, narra a história de vida

do mestre-escola, como ele chegou a Caetité e como conheceu os personagens principais:

a sua comadre Maria da Conceição, o esposo João Lopes e o malvado Abílio que,

fazendo-se de amigo, praticava muitas crueldades contra o jovem casal.

Serafim, filho de uma mulata e de um português, nasce em São Felix do

Paraguaçu e ainda criança perde os pais e tudo que possui em uma enchente. Revoltado

com o infortuito que a vida lhe reservou, parte sem destino. Anda vários dias sem rumo

até que chega a Diamantina das Lavras, cidade para onde todos corriam em busca de

diamantes. Não lhe restando outra opção e motivado pela esperança de encontrar uma

boa e grande pedra preciosa, resolve também se dedicar à atividade de extração de

pedras preciosas. O esforço de seu arduo trabalho no garimpo rende-lhe poucos frutos.

Certo dia, o seu bom e fiel escravo, após seguir seu rastro por todos os lugares por onde

passara, o encontra. Movido pelo dever de ajudar o amo a obter riquezas, lança-se ao

ofício de garimpar em regiões muito perigosas. Durante uma gananciosa e perigosa

tentativa de encontrar uma “boa pedra” sofre um acidente e tem uma de suas pernas

amputada. Não agüenta o sofrimento da perda da perna e a infecção que se alastra em

seu corpo e morre. O jovem novamente sozinho, abalado, isolado e passando fome,

conhece um caixeiro-viajante que, penalizado pela situação em que o encontra, o

convida para acompanhá-lo em sua viagem de regresso a Caetité, prometendo trazê-lo

de volta a Diamantina das Lavras, caso não se adapte na sua propriedade.

Serafim, já nas propriedades do novo amigo, se encanta com as belezas

naturais da região, faz novas amizades, trabalha na lavoura, torna-se mestre-escola,

economiza algum pecúlio, compra pequena fazendola e constitui família. Conhece João,

Maria da Conceição e Abílio ainda crianças e, como mestre dos mesmos, tem

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oportunidade de estudar o comportamento, o caráter e os sentimentos de seus

discípulos: Abílio é rico, mas de mau caráter, mesquinho e capaz de praticar a mais vil e

baixa ação para alcançar os seus objetivos (contrair matrimônio com Maria); João, ao

contrário, é um rapaz pobre, honesto, puro, ingênuo e trabalhador; e Maria, uma

mulher virtuosa, pura, honesta, formosa, que amava João. O mestre-escola acompanha

o crescimento de seus discípulos e os sentimentos que os jovens nutrem pela bela Maria.

Certo dia, Abílio resolve pedir a mão de Maria em casamento a seu pai. Mas este,

mesmo desejando proceder conforme os costumes da época – casar a filha por conveniência

social e interesses financeiros –, quando conhece os sentimentos da filha, permite que ela

escolha o seu pretendente. Ao receber a recusa do pedido de casamento, Abílio sente-se

ofendido e desprestigiado, sentimentos que lhe despertam a vontade de vingança e atiçam

ainda mais a paixão que nutre e o desejo de conquistar a sua amada. Abílio, na tentativa de

denegrir a imagem de Maria para que a família de seu escolhido não permita a união, falsifica

cartas em que a jovem declara seu amor por ele. Com a ajuda de sua mãe dona Úrsula, as

cartas falsificadas chegam ao conhecimento de Dona Senhorina, a mãe de João Lopez. A

notícia deixa dona Senhorinha muito triste, chegando a adoecer, mas, mesmo assim, a

bondosa mãe nada revela ao filho. A empregada da casa, Umberlina, ouve a conversa a

respeito da carta e comenta com a empregada de Serafim. O esperto Serafim descobre e

desfaz as armações de Abílio e de sua mãe. Maria finalmente se casa com João Lopez e vai

morar na casa da sogra. Após o casamento, o pai de Maria “arrebanha” um bom número de

sertanejos e emigra para São Paulo, levando consigo a comitiva de sampauleiros. O perverso

Abílio desconfia que a mexeriqueira Umberlina tenha roubado a carta falsificada e a tenha

entregue ao professor Serafim e, por isso, ele espanca a velha praticamente até à morte.

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O professor Serafim, na tentativa de neutralizar novas investidas de Abílio, o

procura e lhe revela ter conhecimento das crueldades que praticara contra o jovem casal e do

espancamento de Umberlina para que ela confessasse ter roubado a carta. Abílio revela ao

professor ser ainda apaixonado por Maria, mas promete esquecê-la, uma vez que irá para São

Paulo.

V. 2

Abílio chega a São Paulo, faz amizade com pessoas de caráter duvidoso, arquiteta

novo plano para denegrir a imagem de Maria e separá-la de João e retorna para sua fazenda

em Caetité a fim de pôr em prática o seu plano. Fingindo-se de amigo do casal, aproxima-se,

oferece ajuda financeira. Com a colaboração de sua mãe, envenena a sogra de Maria,

deixando João vulnerável. Sem que ninguém saiba, faz com que João perca quase tudo que

herdara, inclusive a casa em que mora, em despesas de contendas judiciais. Compra algumas

letras promissórias na mão de alguns credores de João para que este lhe fique devedor e,

conseqüentemente, ele possa colocar em prática a segunda parte do seu plano. João, pobre e

sem condições de saldar sua dívida com o amigo e sentindo-se humilhado resolve migrar para

São Paulo e lá permanecer somente o tempo necessário de obter o pecúlio suficiente para

quitar sua divida, recuperar sua dignidade e tocar sua pequena propriedade.

Durante a longa viagem até São Paulo, João conhece Calisto, homem simples,

honesto e trabalhador, por quem desenvolve longa e fiel amizade. Os dois amigos trabalham

juntos, economizam tudo quanto podem e, à medida que João obtém pecúlio suficiente para ir

saldando as letras, envia-as a Maria. Enquanto isso, Abílio faz investidas no intuito de lograr

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o afeto de Maria, mesmo que para isso manche a reputação da esposa fiel e virtuosa. Como

não consegue alcançar seus propósitos, intercepta todas as correspondências enviadas por

João a sua esposa. Descobre o paradeiro de João. Falsifica as letras promissárias e aumenta o

valor para que João continue seu devedor, o que tornará mais fácil obter o objeto do seu

desejo. O Professor Serafim desfaz o mal-entendido e quita o débito de João. Incorformado

com a situação, Abílio insufla um meeiro de João a cometer um atentado contra Serafim,

porque, sem o “anjo protetor” no seu caminho o vigiando e guardando o casal, poderá atuar

com mais liberdade. Mas seu plano de tirar a vida do professor falha. Viaja novamente a São

Paulo, assume outra identidade, envia cartas ao pai de Maria, denegrindo a imagem da filha,

contrata um homem para manchar a imagem de João na fazenda onde trabalha e insuflar um

irmão de Maria a pronunciar-se contra a dignidade de sua irmã, de João e do professor

Serafim. As informações que abalam a honra e fidelidade de Maria chegam ao conhecimento

de João. Este regressa a Caetité para apurar os fatos, mas, durante a longa viagem, é vítima de

emboscada encomendada por Abílio.

O Professor Serafim, como conhecia a fundo o caráter de Abílio e tinha artes de

detetive, associa todos os acontecimentos ocorridos na Bahia e em São Paulo que apontam

Abílio como o responsável por tudo.

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3.3 EDIÇÃO DOS TEXTOS: NOTAS FILOLÓGICAS 3.3.1 Estrutura da Edição

A obra de João Antônio dos Santos Gumes é composta de textos éditos e inéditos. Os éditos dividem-se em edição textual, isto é, publicação completa em livro, e pré-textual, publicação em jornal. A inédita é composta de manuscritos autógrafos. Toda a sua produção, seja literária ou não-literária, conforme dito anteriormente, encontrava-se dispersa, na eminência de ser destruída definitivamente.

Daí ter-se apontado como uma das possibilidades de estudo a preparação de

edições críticas, quando for o caso de textos literários e jornalísticos de versão única e édita.

As edições crítico-genéticas incidem sobre os inéditos (o drama Abolição, Mourama e o

romance inacabado Seraphina) ou a parte do romance O Sampauleiro na qual se encontram

autógrafos. O corte atual inclui apenas a edição crítica do segundo volume do romance O

Sampauleiro, aplicando-lhes os critérios da Crítica Textual.

3.3.2 Metodologia

No estabelecimento crítico dos textos de João Gumes serão seguidos os princípios

que fundamentam a Crítica Textual Moderna preconizados tanto no Brasil como em Portugal,

respeitando-se, todavia, as particularidades de cada um deles, pois, como se sabe, cada texto

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tem sua problemática específica e, em Crítica Textual, não há uma fórmula que possa ser

universalmente aplicada a todos os textos.

As normas estabelecidas para a edição crítica da Obra de João Gumes seguirão as

aquelas que vêm sendo preconizadas para as edições de textos modernos tanto no Brasil58,

principalmente aquelas que vêm sendo praticadas pelo Grupo de Crítica Textual da

Universidade Federal da Bahia,59 como em Portugal, especialmente os da Obra de Eça de

Queirós60 e da Equipa Pessoa61.

58 Vejam-se, entre outras, as edições de Memórias de um sargento de milícias (Cf. Cecília de LARA Introdução. In: Manuel Antonio de ALMEIDA. Memórias de um sargento de milícias. Ed. crítica por Cecília de Lara. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979. 368p.), As Três Marias (Cf. Marlene Gomes MENDES. Edição crítica em uma perspectiva genética de As Três Marias, de Raquel de Queiroz. Niterói: EDUFF, 1998. 325 p.), de Macunaíma (Cf. Telê Porto Ancona LOPEZ. Introdução. In: Mario de ANDRADE. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Ed. crítica coord. por Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: CNPq, 1988. LII + 480 p. il. (Arquivos, 6)) e Poesias completas de Mario de Andrade (Cf. Mário de ANDRADE. Poesias completas. Ed. crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: EDUSP, 1987.). Vejam-se também Célia Marques TELLES. No caminho de uma edição crítico-genética. Qvinto Império, Salvador, n. 11, p.29-37, agost. 1999; Célia Marques TELLES. A crítica textual no Brasil. Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador, n. 21-22, 39-58, jun. – dez. 1998. 59 Os trabalhos desenvolvidos pelo Grupo tiveram início em 1977, sob orientação do prof. Dr. Nilton Vasco da Gama, que preparou a edição crítica do Prólogo e da primeira parte do poema regional Sangue- mau. Neste mesmo ano, criou-se, no Instituto de Letras da UFBA, o Grupo de Edição Crítica de Textos. A seguir, estabeleceram-se os critérios a serem adotados na edição crítica da obra do poeta baiano, e iniciou-se a preparação da edição do poema Sangue- mau que teve sua publicação em 1981. Veja-se a propósito: Arthur de SALLES. Sangue- mau. Edição crítica sob a direção de Nilton Vasco da Gama. Salvador: UFBA, 1981. xiii + 332p. il. Alguns dos resultados obtidos representam trabalhos desenvolvidos pelos estudantes do Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística. Célia Goulart de Freitas TAVARES, Hilda Maria de Melo FERREIRA, Silvia Rita OLINDA. Edição crítica do poema Sub-Umbra. Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador, n. 3, p.57-68, jul. 1985. Apresentação de Albertina Ribeiro da Gama; Rosa Borges Santos CARVALHO. O poema “Anchieta” de Arthur de Salles: tentativa de edição. Hyperion Letras, Salvador, n. 4, p. 53-66, jul. 1992; Rita de Cássia Ribeiro QUEIROZ. Sonetos de Arthur de Salles: tentativa de edição crítica. Dissertação de Mestrado, orient. por Nilton Vasco da Gama- Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, 1995 239 f. ; Rosa Borges Santos CARVALHO. Poemas do Mar de Arthur de Salles: tentativa de edição crítica. Dissertação de Mestrado, orient. por Nilton Vasco da Gama- Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, 1995. 226f.; Maria da Conceição S. REIS. O Ramo da fogueira obra regional de Arthur de Salles: proposta de edição crítica: Dissertação de Mestrado, orient. por Albertina Ribeiro da Gama - Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, 1996.150f; CARVALHO, Rosa Borges Santos. Edição crítico-genética dos "Poemas do mar" de Arthur de Salles. 2001. 901f. Tese de Doutorado orient. por Dr. Nilton Vasco da Gama, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001. 60 Cf. QUEIRÓS, Eça de. Alves e Ca. Ed. crítica de Luiz Fagundes Duarte e Irene Fialho. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1994.; QUEIRÓS, Eça de. Textos de Imprensa. VI (da Revista de Portugal). Ed. crítica de Maria Helena Santana. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1995. 147p. (Edição crítica das Obras de Eça de Queirós); QUEIRÓS, Eça de. A Capital!:começos duma carreira. Ed. crítica de Luiz Fagundes Duarte. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1992. (Edição crítica das Obras de Eça de Queirós) 61 Entre outros trabalhos, Cf. Ivo CASTRO. Edição crítica de Pessoa: o modelo editorial adoptado. In: UM SÉCULO DE PESSOA; ENCONTRO INTERNACIONAL DO CENTENÁRIO DE FERNANDO PESSOA, 1988. p. 30-39.; Ivo CASTRO. Editar Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1990. 116 p. (Edição crítica de Fernando Pessoa, Estudos, 1); PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos. Ed. de Cleonice

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Os critérios norteadores de uma edição de textos impressos de versão única,

publicada em vida do autor e aos próprios cuidados do escritor requer do filólogo uma postura

diferente daquela que deveria ser adotada ao editar textos marcados por uma tradição

complexa: a presença de testemunhos diversos e de versões diferentes. O primeiro volume do

romance O sampauleiro é versão única, publicado em vida e em um periódico fundado e

administrado pelo próprio autor. Essa situação textual em que inexistem tanto as variantes

autorais como as textuais resultantes de sua tradição desautoriza o editor a preparar uma

edição com o rótulo de crítica. Em seu lugar seria mais coerente a elaboração de uma edição

fac-similar, via fotografia digital.

Embora a situação textual do primeiro volume conduza a uma edição fac-similar,

o mesmo será submetido a uma leitura para eliminar do texto as gralhas, os erros óbvios e

sofrerá atualização ortográfica, para que possa ser lido pelo leitor moderno não especialista.

Essa decisão de editá-lo aplicando as normas já preconizadas para a fixação de textos críticos

foi motivada, principalmente, pelas condições materiais internas e externas do texto, pelos

custos altíssimos que a operação de uma edição fac-similar acarretaria, e pelo fato de ser

imperioso a sua divulgação, dada a riqueza de informações históricas, culturais e lingüísticas

que a obra armazena e que é urgente “o seu tornar público” não só para o leitor especialista,

mas, sobretudo, para o leitor comum, pois a finalidade de um trabalho de resgate do

patrimônio espiritual produzido por uma comunidade, em uma dada época, é trazê-lo a lume,

disponibilizando-o às gerações futuras.

Adverte-se que, devido à exigüidade do tempo e ao fato de não ser facultado ao

editor crítico o direito de cometer deslizes na preparação de uma edição com o rótulo de

crítica, porque, apenas, lhe resta o acerto ou o erro, optou-se, para o momento, apresentar

Berardinelli. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1990. 573 p.il. (Edição Crítica de Fernando Pessoa,

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uma edição via reprodução xerocopiada do primeiro volume, pois seria muito temerário, no

afã de concluir os trabalhos, apresentar um produto com falhas.

O segundo volume apresenta três testemunhos: manuscrito, pré-textual, textual. O

manuscrito está incompleto, o pré-textual é o texto publicado em forma de folhetim no jornal

A Penna, e o textual teve como editor-tipográfico o próprio João Gumes. Os três testemunhos

representam, portanto, versões autorais, atropeladas pelas reduzidas possibilidades oferecidas

pela linotipia, ou pela montagem tipo a tipo, que leva a inúmeras gralhas no texto impresso.

O segundo volume do romance O Sampauleiro, objeto de estudo da presente tese

de doutoramento, terá seu texto depurado dos erros de imprensa mais visíveis e das

incongruências microtextuais seguramente não atribuíveis a particularidades do estilo do

autor, e será acompanhado de aparato crítico onde serão registradas as variantes autorais,

textuais e as observações crítico-filológicas feitas pelo pesquisador-editor, conforme as

espeficidades do texto.

Apesar de se comungar com aqueles que defendem que as características lingüísticas e

estilísticas do texto objeto de uma edição crítica sejam respeitadas conforme o usus scribendi

do escritor e da época que foi escrito, adota-se aqui uma postura modernizadora porque

acredita-se que se o objetivo fim do trabalho de resgate é divulgar a obra de João Gumes,

conforme dito anteriormente, e, ao lado do texto crítico, apresenta-se o aparato de variantes,

no qual são registradas as interferências do editor, não se justificaria oferecer um texto que

apresente ao leitor moderno dificuldades de leitura.

O modelo de edição adotado permite ao leitor ter, à esquerda, acesso ao texto que se

quer crítico, à direita, ao aparato de variantes que lhe possibilita fazer as suas próprias análises

sobre a tradição e as particularidades ortográficas da obra, abaixo, às notas de rodapé

Série Maior, 2); PESSOA, Fernando. Poemas de Ricardo Reis. Ed. crítica de Luiz Fagundes Duarte Lisboa:

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contendo esclarecimentos do vocabulário e, quando for o caso, informações sobre

divergências entre o testemunho manuscrito e os testemunhos impressos.

3.3.2.1 O texto de base

A preparação de um texto que represente o ânimo autoral exige o cumprimento de

determinadas etapas preliminares, como, por exemplo, a recensio, a collatio, a eliminatio,

para que se escolha o texto de base.

Alguns critérios definem a escolha do texto de base. Para um texto de testemunho

único, este será o texto de base, pois não há possibilidade de escolha. Para o texto com mais

de um testemunho, conforme as normas já utilizadas pelos especialistas em crítica textual,

tanto brasileiros como estrangeiros, faz-se a opção pelo testemunho mais recente. No caso

específico do romance O Sampauleiro, o texto de base é a publicação textual, porque os

demais testemunhos, além de serem anteriores, estão incompletos; o manuscrito não tem

características de texto "acabado", e o pré-textual foi publicado em folhetim em A Penna, tipo

de publicação passível de sofrer enganos advindos as limitações do espaço, da linotipia ou da

montagem tipo a tipo.

3.3.2.2 A ordenação dos textos

Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1994. 481 p.il..

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Na descrição, as versões serão apresentadas na seguinte seqüência: o manuscrito

autógrafo, a versão pré-textual e a versão textual, obedecendo à cronologia. No aparato crítico

e /ou crítico-genético, as versões também se encontram organizadas de acordo com a sua

cronologia de publicação ou de momento textual, conforme for o caso.

Oferece-se a edição crítica e o aparato crítico do segundo volume de O Sampauleiro e, em anexo, a edição via reprodução xerocopiada do primeiro.

3.3.2.3 Os aparatos: variantes autorais e textuais

O aparato crítico figura ao lado direito do texto criticamente estabelecido, em

fonte menor. Nele se encontram registradas as variantes autorais/textuais.62 As alterações

realizadas relativamente ao texto-base, assim como quaisquer esclarecimentos do editor

figurarão em itálico, entre parêntesis ( ) .

3.3.2. 4 As normas adotadas no estabelecimento dos textos

Na edição crítica do segundo volume do romance O Sampauleiro buscam-se

manter as particularidades do texto de base, mas atualiza-se63 a ortografia segundo as normas

62 Como o romance O Sampauleiro e as crônicas tiveram sua composição gráfica na oficina tipográfica de propriedade de João Gumes, provavelmente, foi executada pelo próprio Gumes ou sob sua supervisão. Sendo autor-editor de seus textos, as variantes textuais são também de sua responsabilidade. 63 O editor tem uma postura conservadora, só intervém no texto quando os procedimentos metodológicos lhe permitem: corrigir os erros óbvios de gralha, proceder à atualização e à normatização ortográfica, segundo as normas vigentes, resolver alguns problemas de pontuação para diminuir as peturbações provocadas pela falta de uma vírgula.

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vigentes, uniformizam-se a grafia de algumas palavras em conformidade com o percentual de

ocorrências.

Casos de oscilação. Respeitam-se as variantes gráficas. As formas grafadas com

apóstrofe são, sempre que possível, atualizadas por contração (d’um > dum, n’um> num).

As consoantes duplas. Simplificam-se todos os casos de grafia dupla: tanto nomes

comuns como os próprios (bella> bela, Anna > Ana).

Maiúsculas. Aplica-se, como critério geral, a norma vigente.

Formas variantes. Utilizam-se as formas empregadas pelo Autor, mesmo quando

essas não se encontram registradas nos dicionários.

Pontuação. Mantém-se a pontuação original, mesmo quando esta não obedece às

normas atuais. Apenas altera-se em situações de manifesto lapsus calami ou gralha

tipográfica, em que a omissão ou troca de sinais perturba a construção do texto. A emenda do

editor é indicada no aparato.

Palavras estrangeiras. Mesmo nos casos em que foram adaptadas à fonética e à

ortografia portuguesa, conserva-se a grafia original, pondo-as em itálico para uniformizá-las

conforme comportamento normal do autor e indicando a grafia “correta” em notas de rodapé.

Acentuação. Introduzem-se os acentos de acordo com as normas vigentes.

Page 84: ROMANCE DE JOÃO GUMES - Ufba Reis.pdf · Fig. 6: Folha de rosto do primeiro volume do romance O Sampauleiro. 41 Fig. 7: ... SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929. SPF O

84

Erros. Salvo em casos duvidosos, os erros explicáveis por lapsus calami ou gralha

tipográfica simplesmente são corrigidos, com indicação no aparato crítico.

Opções tipográficas. Respeita-se o seccionamento dos textos (parágrafos), bem

como as opções tipográficas do autor no que diz respeito à utilização de aspas e sublinhado,

salvo nos casos de palavras estrangeiras ou que representem formas da língua oral.

Registradas no texto-base em maiúsculas e sublinhadas no manuscrito autógrafo, serão

apresentadas no texto crítico em itálico, como era intenção do autor ao pô-las em destaque,

em maiúsculas, o que se deve aos parcos recursos tipográficos da época. Numera-se o texto,

linha por linha, indicando a numeração de cinco em cinco, desde a primeira linha do texto e

reiniciando em cada capítulo.

3.3.2.5 As siglas remissivas para as versões

Na descrição, no aparato crítico e nos estemas, as versões estão representadas por

siglas referentes ao documento, isto é, livro e jornal onde foram publicadas ou manuscrito

original.

Seguem-se as siglas para as versões dos textos do romance O Sampauleiro:

SP O Sampauleiro, manuscrito.

SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929.

SPF O Sampauleiro, publicado no Jornal A Penna.

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85

3.3.2.6 Classificação estemática

A leitura e transcrição de SP revelam que entre ele e SP1 e SPF deve ter existido

outro manuscrito contendo a redação final que originou as versões impressas. A hipótese da

existência de outro testemunho manuscrito deve-se a cinco razões, a saber: 1) SP apresenta

um número expressivo de emendas autorais. O primeiro jato de tinta, em algumas passagens é

interrompido à medida que vai se materializando conforme é concebido virtualmente na

mente do seu autor. Outras vezes, Gumes revisita seu texto procedendo a acréscimos e

supressões. 2) Localizou-se em alguns capítulos a construção de uma narrativa divergente da

dos impressos. 3) O número de emendas de SP é significativo, deixando a leitura de algumas

passagens confusa. Seria pouco provável que o tipógrafo utilizasse para a composição dos

folhetins uma cópia com muitas emendas e borrões, mesmo que este fosse o próprio Gumes.

4) Outro fato importante é que, quando da elaboração de seus textos, Gumes organizava os

cadernos de papel almaço que julgava serem necessários para o seu projeto de texto,

consturando-os em pequenos blocos e/ou livros. O próprio SP tem os cadernos organizados e

costurados antes da mancha escrita ter sido lançada sobre o papel. Sobram muitas folhas sem

mancha escrita, evidenciando esse tipo de comportamento. 5) Gumes, ao elaborar, por

exemplo, o drama Abolição, submete-o a pelo menos a três intervenções: uma campanha de

escrita e duas de correção,64 e, mesmo não sendo um texto passado a limpo, tem os cadernos

de papel almaço costurados. Em Seraphina, romance inacabado, muitos cadernos de papel

estão em branco, revelando a forma de proceder do escrito.

64 A1 - texto-base, com correções feitas em curso de redação, algumas supressões e substituições, tanto por sobreposição como por substituição na entrelinha superior, com um x ou não nos lugares emendados. A2 - correções por supressões, substituições, acrescentamento, quase sempre localizados na entrelinha superior do texto-base. A3 - correções por supressões realizadas em uma terceira releitura do texto. Cf. Maria da Conceição Souza REIS. Características lingüísticas na obra de Gumes. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIN, n.2, Anais... Fortaleza: Imprensa Universitária, 2003, p. 467-71

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86

Daí, na classificação estemática para o segundo volume do romance O

Sampauleiro, incluir X, testemunho manuscrito do qual SP1 e SPF são cópias. O stemma

codicum representativo da árvore genealógica do texto em questão é o seguinte:

SP ↓ X ↓

SPF ↓

SP1

Fig. 12: Classificação estemática do segundo volume do romance O sampauleiro.

A edição crítica do segundo volume de O Sampauleiro tem o seguinte stemma

codicum:

SP1 → Texto Crítico

Fig. 13: Classificação estemática da edição crítica do romance O sampauleiro.

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3.3.3 O Sampauleiro: o texto crítico e aparato de variantes autorais e da tradição impressa

QUARTA PARTE

MIGRAÇÃO

I

5

10

João e sua esposa eram felizes, tanto quanto

podem desejar criaturas modestas, simples em suas

aspirações, tendo por base da sua felicidade a paz e a

tranqüilidade de espírito. As suas almas singelas e boas

viam realizada a ventura que sonhavam, e haviam criado

para si um paraíso na residência de dona Senhorinha,

porque esta boa senhora não quis por forma alguma que

o jovem casal dela se separasse.

SPF, SP1: creaturas

SPF, SP1: tranquillidade; espirito

SPF, SP1: realisado

SPF, SP1: creado; paraiso;

residencia; d. Senhorinha

SPF, SP1: quiz

SPF, SP1: joven; della

15

20

A fortuna que o senhor Oliveira aspirava para

sua filha com um casamento rico não coadunava com as

modestas aspirações de Maria, cuja alma simples tinha

horror ao luxo estardalhante e ostentativo que se procura

impor pelo prestígio e que não conquista corações, mas

cria um ambiente de lisonja e adulação. As conquistas

que realizam a bondade, a ternura e o carinho são

firmadas sobre alicerces indestrutíveis; têm como

fulero65 a virtude. Assim não pensava o senhor Oliveira

que, embora bom, tinha saudades do aparatoso trato em

que fora criado por seus afortunados pais, e desejava-o

SPF, SP1: prestigio

SPF, SP1: crea

SPF, SP1: realisam

SPF, SP1: indescuctiveis

SPF, SP1: apparatoso; paes

65 Fulero: sem valor, insignificante. Palavra espanhola da qual originou fuleiro em português.

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para sua filha.

25

30

35

O pobre homem, como sucede a todos os ricos

que caíram em pobreza, mesmo por muito desejar o bem

de sua querida filha, só no seu casamento com Abílio

antevia o ressurgimento do esplendor que circundaria a

sua família tornando-a uma das mais conceituadas e

veneradas desde os seus antepassados. Mesmo por ser

bom, mas dessa bondade irrefletida e, podemos dizer,

inocente e infantil, que julga os outros por si próprio,

Oliveira não fazia acepção entre bons e maus, não

estudava a fundo os caracteres e, deixando-se explorar,

decaíra do antigo conceito que gozava, porque ficou

pobre.

SPF, SP1: succede

SPF, SP1: cahiram

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: resurgimento; circumda

SPF, SP1: familia

SPF, SP1: d’essa; irreflectida

SPF, SP1: innocente; proprio

SPF, SP1: accepção

SPF, SP1: dechaira; gosava

40

Entre João e Abílio, aquele o tabaréu grosseiro

que outra aspiração não tinha a não ser a labuta rural,

este fidalgote, ativo, inteligente, de maneiras corteses e

delicadas, não havia que escolher; o último nada

deixava a desejar aos planos e aspirações de Oliveira.

Em um dos seus momentos de fraqueza, maior do que a

que lhe era ordinária, não pôde resistir ao visível

sofrimento de sua filha, e cedeu.

SPF, SP1: Abilio; aquelle; tabareo

SPF, SP1: activo; intelligente;

cortezes

SPF, SP1: ultimo

SPF, SP1: ordinaria; visivel

SPF, SP1: soffrimento

45

Cedeu para logo depois se arrepender, mas sem

coragem de revogar a concessão feita a Maria. Só lhe

restava depois disso mudar-se para o Estado de São

SPF, SP1: arrepender-se

SPF, SP1: d’isso; S. Paulo

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89

50

Paulo, pelas razões que o leitor já conhece e, além delas,

por sentir-se atraído pelo esplendor, riqueza e

magnificência que lhe constava ali encontrar, com a

possibilidade de tornar-se rico e adquirir a posição

social que havia perdido.

SPF, SP1: ja; alem; d’ellas

SPF, SP1: attrahido

SPF, SP1: magnificencia; alli

SPF, SP1: adequerir

55

Entretanto, Maria sentia-se feliz com o seu eleito

e satisfeita no ambiente modesto que escolhera, e que

lhe era preferido aos meios faustosos e brilhantes para

os quais acorrem os vícios, os enganos, a lisonja e a

hipocrisia, atraídos pelo pingue pábulo66 que neles

encontram.

SPF, SP1: Entretanto ( , )

SPF, SP1: quaes; accorrem; vicios

SPF, SP1: hypocrisia; attrahidos;

n’elles

60

65

Sabia a criteriosa filha de Oliveira que Abílio, o

fidalgote pretensioso, cujo gênio conhecia desde o seu

condiscipulado, procuraria agradá-la cercando-a de todo

o luxo e grandeza que a sua fortuna poderia facultar-lhe

sem que fosse abalada; mas, avessa por índole às

pompas e suntuosidades, preferiu a simplicidade de

João, os hábitos de dona Senhorinha, a quem conhecia e

venerava desde a sua infância pela sua bondade sem

estardalhaços, pela sua modesta e sincera amizade. Os

hábitos simples e honestos desta boa senhora e seu filho

atraíam-na em flagrante contraste com a tolice

pretensiosa de dona Úrsula e a dissimulação de Abílio

que, embora inteligente, não podia, debalde tentando-o,

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: pretencioso; genio

SPF, SP1: agradal-a

SPF, SP1: indole; ás pampas

SPF, SP1: sumptuosidades

SPF, SP1: habitos; d. Senhorinha

SPF, SP1: infancia

SPF, SP1: habitos; d’esta

SPF, SP1: attrahiam-n-a

SPF, SP1: d. Ursula; Abilio

66 Pingue pábulo: algo ou local fértil que serve de motivo ou assunto à maledicência.

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90

70

75

que, embora inteligente, não podia, debalde tentando-o,

ocultar aos olhos da bela menina o seu orgulho mau

como o seu caráter ardente e apaixonado que muitas

vezes explodira, quando ele em criança ainda não

dispunha dos meios de contê-los como logo que a razão

se lhe desenvolveu.

SPF, SP1: intelligente

SPF, SP1: occultar; bella; máu

SPF, SP1: caracter

SPF, SP1: elle; creança

SPF, SP1: contel-os

80

85

A afinidade, essa lei suprema que tudo rege no

universo físico, também é um elemento de suma

preponderância no mundo dos espíritos. É ela que faz a

felicidade dos seres pensantes, religando-os pela

cordialidade. É também ela que congrega os maus, os

pertubadores da harmonia que devera imperar absoluta

na humanidade. Por ela atraímos as “forças ocultas” –

que não são mais que seres inteligentes que pululam67

nos espaços em torno do planeta, invisíveis e

imponderáveis, numa constante permuta entre os de lá e

os desta vida de relação. O mal ainda predomina lá e cá

assombrosamente. Conforme as nossas tendências e

pensamentos, atraímos de lá bons ou maus elementos

que sejam afins com os nossos.

SPF, SP1: Affinidade

SPF, SP1: physico; tambem; summa

SPF, SP1: preponderancia; espiritos;

ella

SPF, SP1: presentes ( , )

SPF, SP1: tambem; elle; máus

SPF, SP1: ella; attrahimos; occultas

SPF, SP1: intelligentes; pullulam

SPF, SP1:invisiveis

SPF, SP1: imponderaveis; n’uma

SPF, SP1: tendencias

SPF, SP1: attrahimos; la

SPF, SP1: affins

90 Entretanto, há entre nós espíritos de eleição –

posto que raros em faces de maldosos, – os quais, pelas

virtudes e inquebrantabilidade, conseguem resistir à

tentação, tornando-a ineficiente.

SPF, SP1: Entretanto ( , ); espiritos

SPF, SP1: quaes

SPF, SP1: á tentação

67 Pululam: multiplicam.

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tentação, tornando-a ineficiente. SPF, SP1: inefficiente

95

100

Maria era um desses espíritos privilegiados. Por

cada dia que se passava, dona Senhorinha descobria

mais uma preciosa qualidade no tesouro inexaurível que

era o coração de Maria, repositório dos mais nobres e

apreciáveis dotes de sentimento, e mais se sentia atraída

por aquele belo espírito. Maria, a esposa ideal, dava a

dona Senhorinha o doce nome de mãe e esta, encantada,

tinha-a como sua filha estremecida e não deixava um

momento sequer de render graças a Deus pela mercê

que lhe concedeu e a seu filho.

SPF, SP1: d’esses; espiritos

SPF, SP1: d. Senhorinha

SPF, SP1: thesouro; inexhaurivel

SPF, SP1: repositorio

SPF, SP1: apreciaveis; attrahida

SPF, SP1: aquelle; bello; espirito;

Maria ( , ); idéal;

SPF, SP1: d. Senhorinha

SPF, SP1: siquer

105

110

Maria era laboriosa e, apesar das constantes

reclamações de Pulquéria, que também fazia parte

daquele pequeno e aprazível mundo e assumira a função

de cozinheira, auxiliada pela filha de Umbelina, atirava-

se a todo e qualquer serviço doméstico, às vezes

invadindo as atribuições da velha crioula. Inteligente,

metódica e arrumadeira, a jovem esposa tudo punha em

ordem e asseio, não se esquecendo das coisas as mais

insignificantes. Como era apaixonada pelas flores,

tomou a seu cargo tratar do jardim de João, aumentou-o,

melhorou-o, dando às flores uma certa disposição e

harmonia, pelas cores, forma e dimensões das plantas,

que revelam seu gênio artístico e paciência. Cultivava e

SPF, SP1: apezar

SPF, SP1: Pulcheria; tambem

SPF, SP1: d’aquelle; aprazivel

SPF, SP1: funcções; Umbellina

SPF, SP1:domestico; ás vezes

SPF, SP1: attribuições; creoula

SPF, SP1: methodica; joven

SPF, SP1: cousas

SPF, SP1: augmentou-o

SPF, SP1: m elhorou-o ( , ); ás flores

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115

120

que revelam seu gênio artístico e paciência. Cultivava e

tratava o jardim com esmero e não se esquecia de colher

todas as manhãs as flores suas prediletas, que dispunha

em dois vasos de porcelana conservados desde o lar

paterno. Tudo isso era um encanto para dona

Senhorinha, que se rejubilava, considerando aquelas

flores a imagem da candura e virtudes trescalantes68 de

sua querida filha.

SPF, SP1: genio; artistico; paciencia

SPF, SP1: predilectas

SPF, SP1: dous

SPF, SP1: d. Senhorinha

SPF, SP1: aquellas

125

130

135

Serafim, o amigo sincero e constante de todos os

tempos, estimado e acatado por todos, freqüentava a

casa de dona Senhorinha quase todos os domingos, ora

só, ora acompanhado de sua senhora. Então a alegria

redobrava naquela feliz vivenda. O velho amigo sempre

alegre, comunicativo sempre, enchia com sua

jovialidade o dia. A sua agradável conversação nunca

deixava de ser condimentada com o tique sentencioso e

a gargalhada peculiar do nosso velho conhecido. À

tarde, quando se retirava, todos se sentiam saudosos e

pediam-lhe com insistência que voltasse no seguinte

domingo trazendo sua “dona.”

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: d. Senhorinha; quasi

SP1: aiegria (Erro óbvio.)

SPF, SP1: n’aquella

SPF, SP1: communicativo

SPF, SP1: agradavel

SPF, SP1: Á tarde; sentiam-se

SPF, SP1: insistencia

Voltando de São Paulo, Abílio insistiu com sua

mãe para que freqüentasse a família de dona

Senhorinha, reprovando que não o tivesse feito durante

a sua ausência. A velha mostrou-se avessa a isso, não só

SPF, SP1: S. Paulo; Abilio

SPF, SP1: por que (Emendou-se.);

familia; d. Senhorinha,

SPF, SP1: não tivesse (Emendou-

se.)

68 Trescalante: exalando cheiro forte.

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140

145

a sua ausência. A velha mostrou-se avessa a isso, não só

por despeitada pela taboca69 pregada por Maria, bem

como por considerar indigna das suas relações aquela

gente forreca70. Conseguiu, porém, convencê-la Abílio

dizendo-lhe que, afastando-se de lá, tê-la-iam por

despeitada e a ele também, o que seria ridículo para os

dois. Que o teriam por “de cabeça inchada” pela perda

de um partido tão vantajoso, carregando com ironia

estas três últimas palavras.

SPF, SP1: ausencia

SPF, SP1: aquella

SPF, SP1: porem; convencel-a;

Abilio

SPF, SP1: la; tel-a-iam

SPF, SP1: elle; tambem; ridiculo

SPF, SP1: dous

SPF, SP1: tres; ultimas

150

155

Dona Úrsula, a fidalga orgulhosa e toleirona,

aceitou a imposição de seu filho e, lá uma vez por

semestre, aparecia em casa de dona Senhorinha. Embora

afetando em suas visitas um ar bondoso e certa

cordialidade, a hipócrita velhota não inspirava confiança

à boa família. Levava a sua mentida generosidade a

ponto de desculpar a dona Senhorinha o não pagar71 as

suas visitas, o que não arrefeceria por forma alguma a

sua velha amizade. Entretanto, apesar das

recomendações do filho, levava o tempo a conversar

sobre riquezas, prosápias72 e quejandas73 grandezas

entremeadas de tolices que, aos espíritos perspicazes,

SPF, SP1: D. Ursula

SPF, SP1:acceitou; la

SPF, SP1: apparencia; d. Senhorinha

SPF, SP1: affectando

SPF, SP1: hypocrita

SPF, SP1: á boa familia

SPF, SP1: ao ponto de (Emendou-

se); d. Senhorinha; PAGAR

SPF, SP1: apezar

SPF, SP1: recommendações

SPF, SP1: prosapias

SPF, SP1: epiritos

69 Taboca: negativa, recusa. O mais usual é a expressão “passar taboca”, que significa romper noivado para casar com outrem. 70 Forreca: indivíduo insignificante, sem importância. 71 Pagar: retribuir visitas. 72 Prosápia: linhagem. 73 Quejandas: semelhantes; que tem a mesma natureza ou qualidade de outrem.

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160

deixavam perceber o seu gênio frívolo e jactancioso, e,

aos simples, antipatia e enfado.

SPF, SP1: genio; frivolo

SPF, SP1: antipahtia

165

Dirigindo-se a Maria com ares maternais, dizia-

lhe dona Úrsula toda risonha que não lhe perdoava ser

tão esquiva a ponto de não ir à sua casa; mas isso não a

inibia de continuar sua amiga dedicada e admiradora de

sua formosura.

SPF, SP1: matternaes

SPF, SP1: d. Ursula

SPF, SP1: ao ponto (Emendou-se.);

á sua

SPF, SP1: inhibia

170

175

Nesse dia a modesta família de dona Senhorinha

via-se numa dobadoura74 e sentia-se constrangida,

porque, pelos modos de dona Úrsula, pelas

autogabações, pelo referir-se aos seus gostos refinados e

hábitos de fidalga, exigia um trato especial. Não

diremos que a gabolas75 isso fizesse como exigência;

mas involuntariamente assim deixava compreender. Era

então preciso que saíssem à luz os mais preciosos

aparelhos, as toalhas da mais fina lençaria e tudo quanto

as nossas famílias sertanejas de certo trato conservam

guardado cuidadosamente para ocasiões solenes. Além

disso os acepipes76 deviam ser escolhidos e preparados a

capricho para que a visita não se desagradasse.

SPF, SP1: N’esse; familia; d.

Senhorinha

SPF, SP1: n’uma; dobadôra

SPF, SP1: d. Ursula; auto-gabações

SPF, SP1: habitos

SPF, SP1: exigencia

SPF, SP1: comprehender

SPF, SP1: sahisse; á luz

SPF, SP1: apparelhos

SPF, SP1: familias

SPF, SP1: occasiões

SPF, SP1: solemne; Alem; d’isso

180

Em ocasiões tais Pulquéria via-se em uma roda

viva. Maria e dona Senhorinha, obrigadas a fazer sala à

velha pretenciosa, não podiam ir a cozinha para ao

SPF, SP1: occasiões; taes; Pulcheria

SPF, SP1: d. Senhorinha; á velha

74 Dobadoura: variante de dobadoira; roda-viva. 75 Gabolas: quem se gaba a si mesmo. 76 Acepipes: petiscos.

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95

185

190

195

velha pretenciosa, não podiam ir a cozinha para ao

menos determinarem qual devia ser o cardápio, ficando

à velha crioula a incumbência de arranjar o almoço e o

mais de um modo que dona Úrsula não tivesse ocasião

de fazer reparo. Pulquéria nada deixava a desejar à visita

pois era emérita na arte de preparar os pitéus77 e

guloseimas. Se já não soubéssemos que dona Úrsula,

nos seus modos de agradar grosseiramente, fazia as suas

apreciações da boca para fora, diríamos que tudo aquilo

excedia à sua expectativa e causava-lhe muita

satisfação, tão rasgados elogios fazia à família e à

cozinheira pelo arranjo que notava, repetindo os gabos a

cada bocado que tragava, ao mesmo tempo que

Pulquéria, que a espiava, esconjurava o “diabo da velha

prosa” ardendo por vê-la pelas costas.

SPF, SP1: cardápio; á velha

SPF, SP1: creoula; incumbencia

SPF, SP1: d. Ursula; occasião

SPF, SP1: Pulcheria; á visitar

SPF, SP1: emerita; pitéos;

gulozeimas; Si

SPF, SP1: soubessemos; d. Ursula

SPF, SP1: bocca; diriamos; aquillo;

á sua

SPF, SP1: satisfacção

SPF, SP1: á familia; á cozinheira

SPF, SP1: boccado

SPF, SP1: Pulcheria

SPF, SP1: vel-a

200

Abílio vinha também à casa visitar o casal

mostrando-se muito amigo de João, a quem fazia

protesto de sincera afeição e oferecimentos; mas nunca

com sua mãe. Tendo voltado de São Paulo, não pense o

leitor que a sua longa ausência houvesse apagado a sua

ardente paixão que lhe conhecemos e que prometera a

Serafim esquecer. Pelo contrário, essa ausência como

que aumentou o incêndio passional que lavrava o seu

peito e o ardente desejo de possuir Maria, – aquele ente

SPF, SP1: Abilio; tambem; á casa

SPF, SP1: affeição

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: ausencia

SPF, SP1: prometteu (Emendou-se.)

SPF, SP1: Seraphim; contrario;

ausencia

SPF, SP1: augmentou; incendio

77 Pitéus: petiscos.

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96

205

peito e o ardente desejo de possuir Maria, – aquele ente

singular, – mesmo que, para alcançá-la, lhe fosse preciso

lançar mão dos meios os mais reprováveis e ominosos.78

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: alcançal-a

SPF, SP1: reprovaveis

210

215

220

No seu jeito já conhecido pelo leitor, o astuto

mancebo aparentava uma calma que bem longe estava

do seu espírito. Até com sua mãe Abílio aguardava uma

absoluta reserva sobre seus sentimentos e projetos em

relação à Maria e seu esposo. Leviana como era dona

Úrsula, sabia que tudo transtornaria e, quando a velha

tocava em tão melindroso assunto, referia-se à má

escolha feita pela filha do Senhor Oliveira, procurando

deprimir o feliz pretendente, pondo-o em contraste com

seu filho e, com isso, acordando despeitos nascidos da

embófia79 e pretensões que a animavam, Abílio

repreendia-a e enaltecia o caráter de João e as virtudes

de Maria, confessando-se amigo dedicado e

intransigente de ambos.

SPF, SP1: geito; ja

SPF, SP1: espirito; Abilio

SPF, SP1: projectos

SPF, SP1: a Maria; d. Ursula

SPF, SP1: assumpto

SPF, SP1: á má

SPF, SP1: accordando

SPF, SP1: embofia; pretenções;

Abilio

SPF, SP1: reprehendia-a; caracter

SPF, SP1: Maria ( , )

225

Afinal convenceu-se dona Úrsula de que seu

filho havia varrido de sua idéia toda e qualquer

pretensão sobre Maria, e que era amigo sincero de seus

antigos condiscípulos. Isso a desgostava, é certo, porque

suas idéias baixas e infames julgavam possível ainda

uma conquista mesmo com prejuízo da honra e boa

SPF, SP1: d. Ursula

SPF, SP1: idéa

SPF, SP1: pretenção

SPF, SP1: condiscipulos;

desgostava-a

SPF, SP1: idéas; possivel

SPF, SP1: prejuizo

78 Ominoso: execrável; detestável. 79 Embófia: orgulho vão, soberbo.

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230

fama da virtuosa esposa. Essa conquista seria a

revelação da superioridade da sua estirpe sobre aquela

família reles que, se conseguisse uma lícita ligação com

a sua, viria enxovalhá-la.

SPF, SP1: aquelle; familia

SPF, SP1: licita

SPF, SP1: enxovalhal-a

235

240

O leitor deve lembrar-se que dona Úrsula,

quando malograda a pretensão de seu filho, sentia-se

despeitada e prazerosa. Despeitada pelo desaforo

daquela gente, que refugou80 um partido como Abílio, e

prazerosa porque lhe repugnava vincular o seu nome ao

de Oliveira e sua gente. Então, desejando que seu filho

fosse satisfeito em sua paixão, somente achava em seu

bestunto81 um meio conciliatório: Abílio tomar a jovem

por amante.

SPF, SP1: d. Ursula

SPF, SP1: mallograda; pretenção

SPF, SP1: d’aquella; Abilio

SPF, SP1: conciliatorio; Abilio;

joven

245

Afagada a vaidade da velha fidalga caricata por

seu filho, que bem a conhecia, dispôs-se ela a reatar

relações com dona Senhorinha e sua família; não só pelo

desejo de satisfazer a Abílio, como também para dar

pasto à sua bisbilhotice.

SPF, SP1: ella; dispoz-se

SPF, SP1: d. Senhorinha; familia

SPF, SP1: Abilio; tambem

SPF, SP1: á sua

250

Dois anos depois do casamento de João, o jovem

casal havia sido abençoado com dois filhinhos, que o

leitor já conhece: – Corina e João, este de meses.

Sobreveio então um ano crítico no qual os gados foram

SPF, SP1: Dous; annos; joven

SPF, SP1: mezes

SPF, SP1: anno; critico

80 Refugar: rejeitar; desprezar. 81 Bestunto: cabeça de curto alcance, ou estúpida.

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255

260

atacados de uma terrível epizootia82 que o dizimou em

grande porcentagem. Como é geralmente sabido entre

nós, os nossos criadores, em sua maioria, atribuem a

mortandade do gado vacum a causas que não são

verdadeiras. A peste, como é geralmente denominada

toda e qualquer doença dos irracionais, por coincidir as

mais das vezes com as maiores secas, tem por causa

exclusiva, como supõem, a escassez de pastagens,

quando é certo que isso apenas concorre para a

recrudescência do mal.

SPF, SP1: terrivel

SPF, SP1: maioria ( ,.); attribuem

SPF, SP1: vaccum

SPF, SP1: irraccionaes

SPF, SP1: SECCAS

SPF, SP1: suppõem

SPF, SP1: recrudescencia

265

270

João lançou mão de todos os meios e recursos

em uso nos nossos sertões, os quais consistem na

retirada dos armentos para os campos gerais, onde

existem fontes perenes e pastagens naturais. Essa

medida muito concorre para a propagação do mal, pois

as levas de gado em grande número põem em contato os

animais sãos com os atacados do mal e, além disso, dão

lugar a grandes prejuízos pelo extravio dos gados e

outros inconvenientes. Ademais os agricultores mais

pobres, ocupados com isso, descuidam-se das

plantações, ou não podem fazê-las e tratá-las em tempo.

Entre nós não existem veterinários competentes, e os

SPF, SP1: quaes

SPF, SP1: GERAES

SPF, SP1: perennes; naturaes

SPF, SP1: numero; contacto

SPF, SP1: animaes; alem; d’isso

SPF, SP1: prejuizos

SPF, SP1: occupados

SPF, SP1: fazel-a; tratal-as

SPF, SP1: veterinarios

82 Epizootia: doença que ataca numerosos animais ao mesmo tempo e no mesmo lugar.

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nossos alveitares83, quase todos de uma crassa84

ignorância, não acertam com a verdadeira causa do mal.

SPF, SP1: quasi; ignorancia

275

280

Dos poucos animais que João possuía escapou

um número resumidíssimo, a sua lavoura pouco

produziu, e o pobre mancebo viu-se a braços com sérias

dificuldades porque, tendo contraído compromissos que

esperava solver com os produtos da agricultura, não

poderia satisfazer em tempo aos seus credores. Para

cúmulo de males dona Senhorinha adoeceu rapidamente

e faleceu de um dia para outro, sem que se pudesse

saber qual a causa nem tomar providências que a

salvassem.

SPF, SP1: animaes; possuia

SPF, SP1: numero; resumidissimo

SPF, SP1: serias

SPF, SP1: difficuldades; contrahido

SPF, SP1: productos

SPF, SP1: creadores

SPF, SP1: cumulo; d. Senhorinha

SPF, SP1: falleceu

SPF, SP1: podesse; providencias

285

290

295

A dor que experimentaram os jovens esposos

pode ser avaliada pelo leitor. Aquela perda irreparável,

além do que o vinha afligindo, muito desanimou a João.

Maria, a heroína que conhecemos na prosperidade como

na desventura, procurando consolar e reanimar a seu

esposo, apenas conseguia que este aparentasse

tranqüilidade para consolá-la. O pobre rapaz chorava às

ocultas a perda de um ente que lhe era tão caro. Apesar

disso, Maria, que era perspicaz, sentia-se aflita e

intranqüila, notando o retraimento de João, o seu

forçado sorrir quando lhe procurava despertar a antiga

SPF, SP1: esposos, (Emendou-se a

pontuação.)

SPF, SP1: Aquella; irreparavel

SPF, SP1: alem; afflingindo

SPF, SP1: heroina

SPF, SP1: apparentasse;

tranquillidade; consolal-a; ás

occultas

SPF, SP1: Apezar; d’isso

SPF, SP1: afflicta; intranquilla

SPF, SP1: retrahimento

83 Alveitares: curandeiro de doenças de animais. Figurativamente usado como médico inábil. 84 Crassa: intensa, grande.

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alegria, ameigando-o e desviando habilmente a sua

atenção do quadro desolador que a ambos se afigurava.

SPF, SP1: alegria ( , )

SPF, SP1: attenção

300

305

Serafim, o amigo de sempre, acompanhou-os na

amarga conjuntura que lhes sobreveio, não cessando de

vir ao sítio, e procurando animar o mancebo,

lembrando-lhe as responsabilidades que lhe

sobrevinham como pai, ainda maiores naquela

emergência. Consolava-o com a certeza de que sua mãe,

mesmo de lá onde estava, não deixaria de vir acalentá-lo

com o mesmo carinho e desvelo. Lembrava-lhe as

virtudes da boa senhora e o prêmio a que fizera jus pelos

seus dotes especiais e pelo que sofreu.

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: conjunctura

SPF, SP1: sitio; mancebo ( , )

SPF, SP1: pae

SPF, SP1: n’aquella; emergencia

SPF, SP1: acalental-o

SPF, SP1: premio; jús; especiaes

SPF, SP1: soffreu

310

315

320

Dona Úrsula e Abílio vieram apresentar as suas

condolências ao jovem casal, previamente tendo sido

recomendada a velha de como devia proceder. A visita

dos dois, para não incomodar a família, não foi

demorada; mas dona Úrsula teve tempo para chorar

abraçada a Maria, memorando as singulares virtudes da

morta. Abílio mostrou-se amigo carinhoso, afligiu-se

muito com os revezes que sobrevieram aos seus antigos

condiscípulos e, em particular, fez oferecimentos a João

exigindo bondosamente que não procurasse outro

quando necessitasse de dinheiro ou outro qualquer

auxílio.

SPF, SP1: D. Ursula; Abilio

SPF, SP1: condolencia; joven

SPF, SP1: recommendada

SPF, SP1: dous; incommodar;

familia

SPF, SP1: d. Ursula

SPF, SP1: Maria ( , )

SPF, SP1: Abilio; affligiu-se

SPF, SP1: condiscipulos;

offerecimentos

SP: ontro (Erro óbvio.)

SPF, SP1: auxilio

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325

330

335

340

João, o homem bom e de boa fé, sentiu-se

enternecido e, agradecendo a espontaneidade dos

generosos oferecimentos, comprometeu-se a procurá-lo

quando se sentisse em aperturas. O pobre João ignorava

os precedentes de Abílio no que tocava às suas

pertensões sobre Maria e os fatos que se deram entre ele

e Serafim, porque este julgou de bom aviso guardar

reserva sobre a má e repreensível conduta do

pretendente malogrado, e Maria, também discreta,

considerou que tal revelação enublaria a paz do lar sem

que disso adviesse proveito a seu esposo. Seria isso

fomentar dissídios entre os dois mancebos, impróprio do

caráter honesto da esposa carinhosa, e muito mal a

recomendaria. Seria a sua indiscrição uma leviandade e

desmentido caráter, rebaixando-a às proporções de

enredadora e intrigante; um elemento de perturbações e

desordem. Por isso a criteriosa esposa chegou a

recomendar insistentemente a Pulquéria que, nem de

leve, deixasse escapar a quem quer que fosse o que

sabia respeito às pretensões de Abílio.

SPF, SP1: expontaneidade

SPF, SP1: offerecimentos;

comprometteu-se; procural-o

SPF, SP1: Abilio; ás suas

SPF, SP1: pretenções; factos; elle

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: reprehensivel; conducta

SPF, SP1: mallogrado; tambem

SPF, SP1: ennublaria

SPF, SP1: d’isso

SPF, SP1: dissidios; dous; improprio

SPF, SP1: caracter

SPF, SP1: recomendaria;

indiscreção

SPF, SP1: caracter (,)

SPF, SP1: ás proporções

SPF, SP1: recommendar; Pulcheria

SPF, SP1: ás pretenções; Abilio

Diz-se que muitas vezes se perde por falar e

outras por não falar. No caso de João e Abílio eram

aplicáveis a negativa e a afirmativa deste adágio.

Serafim considerava que “abrir os olhos” a João seria

SPF, SP1: Abilio; applicaveis

SPF, SP1: adágio

SPF, SP1: Seraphim

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345

350

afligi-lo e pôr em dúvida o caráter de Maria à apreciação

de seu esposo, que, cego como todos os que amam em

extremos, nem ao menos consentiria que o objeto de sua

afeição fosse desejado por outro. João bem poderia,

desde que soubesse da pretensão de Abílio, conhecendo-

lhe o gênio ardente e pertinaz, tomar-se de ciúmes ao

pensar que algum dia sua esposa dedicou o seu afeto a

outro que não ele e que das cinzas desse amor

resurgisse, como a fênix, um amor reprovável.

SPF, SP1: affligil-o; duvida;

caracter; á apreciação

SPF, SP1: objecto; affeição

SPF, SP1: pretenção; Abilio

SPF, SP1: genio

SPF, SP1: ciumes

SPF, SP1: affecto; elle

SPF, SP1: phenix; reprovavel

355

360

O ciúme é a carcoma85 do amor. Trabalhando

insidiosamente, aquela paixão desagrega as mais íntimas

afeições, envenena os sentimentos os mais puros,

dissocia os bons elementos que, atraíndo-se

irresistivelmente, constituem o fundamento da paz, da

tranqüilidade, da harmonia, que fazem a felicidade da

família ou da sociedade.

SPF, SP1: ciume

SPF, SP1: aquella; desaggrega;

intimas

SPF, SP1: affeições

SPF, SP1: atrahindo-se

SPF, SP1: tranquillidade

SPF, SP1: familia

365

A confiança que João tinha na sua eleita, que

bem a merecia pelas suas virtudes, era calma como a

superfície serena de águas tranqüilas, que nem a mais

leve bafagem enrugasse. Bastava, porém, que os zelos

assoprassem aquele espelho onde se refletiam a paz, o

sossego e a ventura, para que ele se agitasse oscilando

entre a luz fugace da confiança, e as sombras dos

receios, das dúvidas e das inquietações.

SPF, SP1: superficie; aguas;

tranquillas

SPF, SP1: porem

SPF, SP1: aquelle; reflectiam

SPF, SP1: socego; elle; oscillando

85 Carcoma: corrosão, destruição lenta.

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receios, das dúvidas e das inquietações. SPF, SP1: duvidas

370

375

Entre os dois alvitres que lhe sugeria um caso tão

melindroso conforme o adágio, Serafim preferiu o de

calar-se e vigiar sem descanso, porque, por mais sincera

que fosse a promessa que lhe fez Abílio de esquecer

Maria, o sagaz mestre-escola considerou que aquele

movimento generoso da sua alma era momentâneo; que

a raiz daquela violenta paixão não estava extirpada e

que a reflexão posterior dar-lhe-ia novo alento auxiliada

pelo despeito e pelo orgulho.

SPF, SP1: dous; suggeria

SPF, SP1: adagio; Seraphim

SPF, SP1: descanço

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: momentaneo

SPF, SP1: d’aquella

380

385

Entretanto, o arguto espírito de Abílio, depois de

um demorado exame de todas essas circunstâncias e

conveniências, como que adivinhando o que pensava

Serafim, sentia-se seguro pela sua discrição e de Maria

e, com receio da vigilância de seu velho mestre,

procurava levar-lhe as lampas,86 trabalhando com mais

cuidado e dissimulação no sentido de conseguir os seus

maldosos intentos.

SPF, SP1: Entretanto (,); espirito;

Abilio

SPF, SP1: circunstancias

SPF, SP1: conveniencias

SPF, SP1: Seraphim; discreção

SPF, SP1: vigilancia

SPF, SP1: lampas (,)

86 Levar as lampas: levar vantagem a.

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II

5

10

Morta dona Senhorinha, João, não só pelo

abatimento e tristeza que este inopinado acontecimento

lhe causou, como porque não se lembrou dessa

imposição legal, não tratou de requerer em juízo, dentro

dos trinta dias da lei, fosse feito o inventário dos bens do

casal. Além disso, alheio às coisas de foro, com o qual

nunca esteve em contato, mesmo que cogitasse de tal

coisa, não suporia que, sendo ele o único sucessor de

sua mãe, fosse indispensável essa formalidade judicial

para que entrasse na posse dos bens.

SPF, SP1: d. Senhorinha

SPF, SP1: Juizo

SPF, SP1: inventario

SPF, SP1: Alem; d’isso; ás causas

SPF, SP1: contacto

SPF, SP1: cousa; supporia; elle;

unico

SPF, SP1: successor; indispensavel

15

20

Entretanto, alguém, como que de espreita,

despertou os funcionários do foro, logo decorrido o

prazo, e João foi citado ex-offício. Embora contrariado,

não quis desobedecer, e compareceu perante o Juízo no

dia assinado. Por esse tempo os processos desse gênero

eram muito simplificados e não se impunham

formalidades que exigem advogado para acusar citações

e falar em juízo; mas aconselharam-lhe que convinha

constituir procurador para tratar do feito em seu lugar,

pois assim poderia voltar tranqüilo para o sítio a cuidar

dos seus afazeres, e não lhe seria preciso perder na

cidade dias e dias à espera da terminação do feito.

SPF, SP1: alguem

SPF, SP1: funccionarios

SPF, SP1: ex-officio

SPF, SP1: quiz; Juizo

SPF, SP1: assignado

SPF, SP1: d’esse; genero

SPF, SP1: accusar

SPF, SP1: Juizo

SPF, SP1: tramquillo; sitio

SPF, SP1: affazeres

SPF, SP1: á espera

O conselho pareceu razoável a João e aceitou-o, SPF, SP1: razoavel

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25

30

tanto mais que nada sabia daquilo. Contratou um

procurador, deu-lhe os necessários poderes e instruções

que lhe exigiram e voltou tranqüilo para sua residência,

onde aguardaria o resultado de tamanha maçada que

amedronta o pobre roceiro e muita vez fá-lo passar por

desgostos, vexames e contrariedades.

SPF, SP1: acceitou-o; d’aquillo

SPF, SP1: Contractou; necessarios;

instrucções

SPF, SP1: tranquillo; residencia

SPF, SP1: fal-o

35

Passados muitos dias, recebeu João uma carta do

procurador na qual era informado de que todo o trabalho

fora perdido, tendo o mandatário o cuidado de dizer-lhe

que o culpado fora o próprio João que, nas instruções,

não informara que, por morte de seu pai e, até, de seus

avós, não se fez inventário nem se partilhou os bens,

como foi provado em juízo por outros interessados.

SPF, SP1: mandatario

SPF, SP1: proprio; instrucções

SPF, SP1: pae

SPF, SP1: inventario

SPF, SP1: Juizo

40

45

Lá foi João de novo à cidade, onde pintaram-lhe

o caso como muito intrincado, e, aproveitando-se da sua

ingenuidade e boa fé, enleiaram-no nas malhas da

tarrafa87 judiciária. Os interessados eram herdeiros de

seus avós, que já se achavam na posse das suas

legítimas desde muitos anos sem que se processe às

diligências ou formalidades judiciais. João protestou,

mas esses sucessores adventícios provaram com

certidões negativas que se não fizeram as partilhas, e

ameaçaram levantar litígio no qual provariam que se

SPF, SP1: La; á Cidade

SPF, SP1: enleiaram-n-o

SPF, SP1: judiciario

SPF, SP1: legitimas; annos; ás

deligencias

SPF, SP1: judiciaes

SPF, SP1: successores; adventicios

SPF, SP1: litigio

87 Tarrafa: armadilha para pegar algo ou alguém. Normalmente, o instrumento é muito utilizado na prática de pescaria amadora.

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achavam prejudicados.

50

55

60

65

Estabeleceu-se uma balbúrdia, os tais herdeiros

apresentaram listas de bens semoventes em cópia, que

alegaram não terem recebido; atribularam o pobre João

dizendo-o responsável por esses bens, por terem ficado

com seus pais, apresentando escrituras antigas, e

estavam prontos ao que desse e viesse. Foi então que

Abílio, todo maneiroso e delicado, mostrou-se amigo

dedicado de João e interessado por ele, aconselhou-lhe

que melhor lhe seria em avença pacífica entre ele e os

outros herdeiros, porque as demandas são ruinosas.

Convenceu-o de que a sua conhecida honradez corria

perigo naquela contenda, porque os herdeiros

adventícios tinham provas documentais e testemunhais

esmagadoras. Não havia dúvida que venceria no pleito

e, afinal, teriam dúvidas sobre sua honestidade, dando-o

como sonegador de bens do casal. Abílio mostrou-se tão

amigo de João, usou de tais argumentos, e tanto

procurou conciliar os ânimos exaltados daquela malta de

herdeiros, que, por fim, o filho de dona Senhorinha

esteve por tudo quanto quiseram.

SPF, SP1: balburdia; taes

SPF, SP1: copia; allegaram;

attribularam

SPF, SP1: responsavel

SPF, SP1: paes; escripturas

SPF, SP1: promptos; désse

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: pacifica; elle

SPF, SP1: n’aquella

SPF, SP1: adventicios; documentaes

SPF, SP1: testemunhaes; duvida

SPF, SP1: duvidas

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: taes; animos

SPF, SP1: d’aquella; porgim

SPF, SP1: d. Senhorinha

SPF, SP1: quizeram

70

Findo o processo e homologado pelo juiz,

achava-se o pobre João reduzido à extremidade, porque

teve que despender muito. Foi-lhe preciso vender as

SPF, SP1: á extremidade

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107

75

terras e a parte que lhe tocou na casa onde nasceu e

passou a sua infância e mocidade. Restava-lhe, depois

de tudo concluído, um trato de terra vestido de capoeiras

e uma pequena faixa de mato virgem, da legítima que

coube a Maria por morte de sua mãe, e poucos animais.

SPF, SP1: infancia

SPF, SP1: concluido; tracto

SPF, SP1: matto; legitima

SPF, SP1: animaes

80

85

João entristeceu-se porque nem ao menos tinha

um casebre onde se abrigar com a família daí a dois

meses, prazo que lhe foi concedido para desocupar a

casa de seus pais; mas Serafim, o amigo de todos os

tempos, animou-o aconselhando-o a construir uma casa

modesta nas terras que lhe ficaram, prontificando-se a

ajudá-lo com seus filhos. Maria mostrou-se animada até

o heroísmo, sempre disposta e risonha, comprometendo-

se a prestar o seu concurso nos traballhos projetados,

tanto quanto lhe fosse possível. Assim, João não gastaria

o restante pecúlio de sua reserva.

SPF, SP1: familia; d’ahi; dous

SPF, SP1: desoccupar

SPF, SP1: paes; Seraphim

SPF, SP1: promtificando-o

SPF, SP1: ajudal-o

SPF, SP1: heroismo;

compromenttendo-se

SPF, SP1: projectados

SPF, SP1: possivel

SPF, SP1: peculio

90

95

Antes dos dois meses a casa estava construída,

embora não estivesse toda aparelhada. Todos

trabalharam com afã e boa vontade, sendo Serafim o

pedreiro e carpinteiro. Eram poucos os compartimentos,

os estritamente necessários; mas de futuro podiam ser

aumentados em número. João para ela mudou-se e

preparou cômodos para os seus animais, antes mesmo

de concluir o aparelhamento interior e exterior, que foi

SPF, SP1: dous; construida

SPF, SP1: apparelhada

SPF, SP1: afan; Seraphim

SPF, SP1: estrictamente; necessarios

SPF, SP1: augmentada; numero; ella

SPF, SP1: commodos; animaes

SPF, SP1: apparerelhamento

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108

realizado depois. SPF, SP1: realisado

100

O que é certo é que, antes da estação das chuvas,

estava acomodado com todos os seus e já havia

preparado terreno para fazer as suas plantações. Na

parte posterior da casinha, uma larga baixa era cortada

pelo ribeiro, que se prestava a irrigá-la em toda a sua

extensão. Nela seriam cultivados o arroz e a cana de

açúcar. Como a baixada fosse extensa e João

considerasse que ele só não poderia cultivá-la, deu-a em

grande parte a meeiros, reservando para si a parte que

era mais próxima da casa.

SPF, SP1: accomodado

SPF, SP1: irrigal-a

SPF, SP1: N’ella; canna

SPF, SP1: assucar

SPF, SP1: elle; cultival-a

SPF, SP1: proxima

105

110

Entretanto, via-se João embaraçado porque não

lhe foi possível solver alguns compromissos, e isso

muito intraqüilizava o seu espírito de homem honesto,

que sempre foi pontual no cumprimento da sua palavra.

Trabalhando muito e economizando a rigor, calculava

que, mesmo em um ano, não poderia libertar-se dos seus

credores. Como era muito conhecida a sua probidade,

poderia conseguir uma mora. Isso, porém, muito o

afligia e envergonhava.

SPF, SP1: Entretanto (,)

SPF, SP1: possivel

SPF, SP1: intranquilizava; espirito

SPF, SP1: anno

SPF, SP1: porem

SPF, SP1: affligia

115

Abílio veio visitar o seu antigo condiscípulo logo

depois da sua mudança para a nova morada. Preferiu um

domingo para não interrompê-lo nas suas ocupações

rurais. Era a primeira vez que ia encontrá-lo na sua nova

SPF, SP1: Abilio; condiscipulo

SPF, SP1: interrompel-o; occupações

SPF, SP1: ruraes; encontral-o

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residência. João não estava em casa, e Maria veio

recebê-lo.

SPF, SP1: residencia

SPF, SP1: recebel-o

120

125

A esposa, na aparência, era a mesma formosa

donzela, de uma beleza cativante que justificava o nome

que Serafim lhe escolheu quando menina. O leitor pode

bem calcular que impressão causou a Abílio aquela

mulher a quem ainda adorava apaixonadamente. De pé

em frente de Maria, enleiado pelo olhar daquela visão

empolgante, o mancebo, coato88, como fascinado,

assemelhava-se a um tímido colegial em frente do

severo pedagogo.

SPF, SP1: apparencia

SPF, SP1: donzella; belleza;

captivante

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: aquella

SPF, SP1: d’aquella

SPF, SP1: coacto;

SPF, SP1: timido; collegial

130

Foi preciso que Maria, contra todas as regras da

etiqueta, o saudasse em primeiro lugar com a maior

naturalidade estendendo-lhe a mão, convidasse-o a

assentar-se e tomasse-lhe o chapéu, que ele, indeciso,

conservava na mão, para que Abílio fosse readquirindo

uma calma relativa e, pouco a pouco, tomasse posse de

si.

SPF, SP1: chapeu; elle

SPF, SP1: Abilio

135

–Está um calor sufocante, minha senhora! –

disse Abílio por fim, enxugando o rosto com o lenço.

SPF, SP1: suffocante

SPF, SP1: Abilio; porfim

–O senhor quer banhar o rosto? – perguntou

Maria delicadamente, sem denunciar que conhecia a

causa daquela perturbação.

SPF, SP1: d’aquella

88 Coato: coagido.

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110

140 –Não senhora, dona Maria. Graças a Deus aqui

está mais fresco. Eu desejava ver a João.

SPF, SP1: d. Maria

–Ele saiu, mas está perto e volta já. Posso

mandar chamá-lo.

SPF, SP1: Elle; sahiu

SPF, SP1: chamal-o

145

–Não o incomode; eu o aguardarei. Só hoje pude

sair de casa, tantas atrapalhações me apareceram. Vim

fazer-lhes uma visita um pouco tardia em sua nova

morada, e peço desculparem-me.

SPF, SP1: incommode

SPF, SP1: sahir; appareceram

150

–Não há de que desculpar. Sabemos que a vida

do campo quase não nos dá tempo para cumprirmos as

nossas obrigações sociais.

SPF, SP1: quasi

SPF, SP1: sociaes

155

160

–Ainda bem que o sabe. Hoje, principalmente,

que escasseiam entre nós os recursos e os abraços,

lutamos com sérias dificuldades. E o pobre João,

coitado! Calculo como não se viu embaraçado com

tantas atrapalhações que lhe sobrevieram! Como sabe,

minha senhora, João é o meu mais íntimo amigo desde a

infância e muito me interesso por ele. Por isso, vendo-o

em apuros e explorado miseravelmente na cidade, tomei

a peito defender os seus interesses e consegui salvá-lo

de piores consequências.

SPF, SP1: luctamos; serias;

difficuldades

SPF, SP1: Calcúlo

SPF, SP1: intimo; infancia

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: era explorado

SPF, SP1: salval-o; peores

SPF, SP1: consequencias.

–Somos-lhe muito gratos – agradeceu Maria,

conhecendo a intenção do visitante.

SPF, SP1:Maria ( , )

–Entretanto, João não me procurou quando teve SPF, SP1: Entretanto ( , )

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111

165

que construir a sua nova instalação apesar de oferecer-

lhe com insistência o meu auxílio em tudo que lhe fosse

prestável!

SPF, SP1: installação; apezar;

offerecer-lhe

SPF, SP1: insistencia; auxilio

SPF, SP1: prestavel!

–Guardam-se os amigos para as ocasiões de

maior aperto.

SPF, SP1: occasião

170

–Podia haver ocasião mais apertada do que esta

que felizmente ele venceu?

SPF, SP1: occasião

SPF, SP1: elle

–O compadre Serafim veio oferecer-se para

ajudar-nos no trabalho das construções e, como sabe,

ele trabalha de pedreiro e carpinteiro. Só ele poderia

prestar-nos esse concurso.

SPF, SP1: Seraphim; offerecer-se

SPF, SP1: construcções

SPF, SP1: elle; elle

175

180

185

Estas palavras de Maria pareceram a Abílio um

remoque ou leve censura ao seu procedimento. Nelas

eram postos em confronto o espontâneo oferecimento do

velho mestre-escola e o modo de proceder do mancebo

quando a família se achava abarbada dia e noite para

que tivesse um abrigo. Abílio sentiu doer-lhe o espinho

da sutil arguição que lhe fazia a jovem, porque era justo

o que delicadamente lhe censurava. Se era o amigo

dedicado de João, como não lhe apareceu quando este se

via a braços com a maior das dificuldades? É que Abílio

era desses que acodem os amigos quando o seu auxílio

já se tornou dispensável. “Largas salas e estreitas

camarinhas” como diz o vulgo. Entretanto, o mancebo

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: N’ellas

SPF, SP1: expontaneo; oferecimento

SPF, SP1: familia

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: subtil; joven

SPF, SP1: Si

SPF, SP1: appareceu

SPF, SP1: difficuldades; Abilio;

d’esses

SPF, SP1: auxilio; dispensavel

SPF, SP1: Entretanto ( , )

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112

não se desconcertou e disse calmamente:

190

–Sabe, minha senhora, que eu, na

impossibilidade de prestar os meus serviços do oficial

obreiro, pois de ofícios não entendo, somente poderia

auxiliar a João com algum pecúlio. E, por mais de uma

vez, pus a minha bolsa à sua disposição.

SPF, SP1: official

SPF, SP1: officios; sómente

SPF, SP1: peculio

SPF, SP1:puz; á sua

195

–João é muito escrupuloso como o senhor sabe;

por isso tem receio de contrair dívidas que não possa

solver com pontualidade. Mesmo que lhe restava algum

dinheiro escapo89 das grandes despesas.

SPF, SP1: contrahir; dividas

SPF, SP1: despezas

Estavam nesse ponto da conversação quando

João chegou.

SPF, SP1: n’esse

200 –Estávamos aqui conversando a seu respeito,

João – disse Abílio todo carinhoso e risonho, depois de

cumprimentarem-se cordialmente.

SPF, SP1: Estavamos

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: cordealmente

–De que se trata?

205

–Pois você vê-se em dificuldades e não me

procura, a mim, seu amigo da infância, seu vizinho?

SPF, SP1: difficuldades

SPF, SP1: mim(,); infancia; visinho?

210

–Procurá-lo, Abílio, quando, mesmo por causa

do aperto em que me achava, vi-me forçado a trabalhar

dia e noite para que não esgotasse o prazo que me deram

para entregar a minha casa – a casa onde nasci e fui

criado – ,sem que tivesse um abrigo para minha família?

SPF, SP1: Procural-o; Abilio (,)

SPF, SP1: exgottasse

casa, Emendou-se.)

SPF, SP1: familia

89 Escapo: livre de obrigações.

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113

–Podia escrever-me. Sei que se acha em sérias

dificuldades, e por mais de uma vez franqueei-lhe o

meu auxílio.

SPF, SP1: difficuldades

SPF, SP1: auxilio.

–Quais essas dificuldades? SPF, SP1: Quaes; difficuldades

215

–Soube há bem poucos dias; mas deixemos isso

porque, graças à minha intervenção, pode você ficar

tranqüilo. Tudo, como amigo, irei remediando.

SPF, SP1: á minha

SPF, SP1: tranquillo

–Sou-lhe muito grato, Abílio, pelo interesse que

liga à minha situação presente...

SPF, SP1: Abilio (,)

SPF, SP1: á minha

220 –Como liguei quando o perseguiam há pouco. SP1: ha

–É certo, e não pense que esqueço disso. Mas...

graças a Deus já consegui aplainar os maiores

embaraços que me sobrevieram.

SPF, SP1: d’isso

225

–Não tanto, pois sei que ainda não se extinguiu

por completo a perseguição que moveram contra você.

–Que! Pois ainda se lembram de fazer-me mal?

–Acalme-se, amigo! Não estou eu aqui para

defendê-lo dos seus vis perseguidores?

SPF, SP1: defendel-o

–Mas que novos males inventam contra mim?

230 –Não se aflija, nem é preciso que você saiba do

que há, porque logo me pus a campo em sua defesa e

mais uma vez fui feliz.

SPF, SP1: afflija

SPF, SP1: puz-me

–É preciso, porém, que eu, o verdadeiro

interessado, saiba de tudo.

SPF, SP1: porem

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114

235

–Já me arrependo de ter-lhe falado nisso! Pois já

não lhe disse que fui feliz? Não crê no seu amigo?

SPF, SP1: n’isso

240

–Creio muito: mas tenho o direito incontestável

de saber que nova ordem de perseguições movem

contra mim. Vivo aqui a laborar sem descanso, não

incomodo a quem quer que seja, nem ao menos vou à

cidade desde que de lá saí enojado...

SPF, SP1: incontestavel

SPF, SP1: incommodo; á Cidade

SPF, SP1: sahi

–É mesmo por isso, pelo seu retraimento, que se

dão certas coisas ignoradas por você.

SPF, SP1: retrahimento

SPF, SP1: cousas

–Mas quais são elas? Insisto por saber e estou

certo que Maria também.

SPF, SP1: quaes; ellas

SPF, SP1: tambem

245

250

–Já que insiste, meu amigo, direi, com a

condição de não se agastarem comigo por ter me

intrometido nisso sem primeiro consultá-los. Não havia

tempo para isso; você não aparece em Caetité há meses

para que fosse informado diretamente a tempo de se

defender e eu, que me interesso por sua honra e créditos

firmados, como de sobejo tenho provado, só agindo logo

poderia afastar o perigo, e não poderia entrar com o meu

bom amigo em confabulação a respeito antes de se

realizar o negócio.

SPF, SP1: commigo

SPF, SP1: intromettido; n’isso;

consultal-os

SPF, SP1: Caitete; apparece

SPF, SP1: directamente

SPF, SP1: creditos

SPF, SP1: realisar; negocio

255

–Deixe de parte tudo isso que já sei de sobra,

Abílio, e vamos ao caso, que estou em brasas.

SPF, SP1: Abilio; brazas

–Pois bem. Você não tem compromissos a

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115

solver?

–Tenho, mas por vencerem.

260

265

–Embora seja assim, a insídia propalou entre os

seus credores que você está insolvente. Como me viram

à frente de seus interesses combatendo os seus

perseguidores, vieram a mim os seus credores

desanimados queixando-se de prejuízos possíveis e

fazendo péssima idéia dos seus créditos. Não houve

argumentos que os convencessem, e o único meio que

achei de acreditarem no que eu asseverava, foi resgatar

as letras. Esse meio era o único que aceitavam, como

declararam positivamente.

SPF, SP1: insidia

SPF, SP1: viram-me (Emendou-se

ênclise para próclise.)

SPF, SP1: a frente (Emendou-se.)

SPF, SP1: prejuizos; possiveis

SPF, SP1: pessima; idéa; creditos

SPF, SP1: unico

SPF, SP1: lettras; unico; acceitavam

–Nesse caso é você afinal o meu único credor? SPF, SP1: N’esse; unico

270

–Não há dúvida; mas você sabe que comigo não

tem que se incomodar. Dar-lhe-ei fogo morto; pagar-

me-á quando lhe for possível e sem embaraço de outro

qualquer interesse.

SPF, SP1: duvida; commigo

SPF, SP1: incommodar

SPF, SP1: possivel

275

João, entretanto, sentiu-se de alguma sorte

desgostoso com o procedimento de Abílio, embora não

denunciasse o pesar que lhe ia pelo ânimo de ver-se

colocado em plano inferior. O seu orgulho bom de

homem honesto não admitia que alguém duvidasse das

suas intenções de homem honrado, e acudiu-lhe à mente

que, por mais bem intencionado que fosse o amigo que

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: pezar; animo

SPF, SP1: collocado

SPF, SP1: admittia; alguem

SPF, SP1: á mente

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116

280

285

tão generosamente corria em defesa do seu crédito e

dignidade, isso o feria profundamente. Pelo menos esse

amigo tê-lo-ia em conta de insolvente senão naquela

ocasião, pelo menos de futuro e era testemunha, embora

única, do estado precário em que se achava. Como fugaz

relâmpago passou pelo seu pensamento a idéia de ir a

São Paulo como outros que ali somente encontraram

fáceis meios de ganhar quanto lhes bastasse para

restabelecerem o seu crédito e melhorarem a sua

situação.

SPF, SP1: credito;

SPF, SP1: feria-o (Emendou-se

ênclise para próclise.)

SPF, SP1: tel-o-ia; sinão; n’aquella;

SPF, SP1: occasião; testemunha (,)

SPF, SP1: unica; precario

SPF, SP1: relampago

SPF, SP1: idéa; S. Paulo

SPF, SP1: alli; faceis

SPF, SP1: credito

290

Todos esses pensamentos desfilaram diante da

mente do mancebo em poucos momentos. Depois,

erguendo a fronte que havia curvado, disse a Abílio:

SPF, SP1:deante

SPF, SP1: Abilio

295

300

–Agradeço-lhe, Abílio, o que fez por mim, e sei

que assim praticou em boa intenção e como amigo

sincero; mas observo-lhe que foi um tanto leviano,

desculpe-me a franqueza de amigo. As minhas letras

não estavam vencidas e só uma vencer-se-á em poucos

dias. Para o resgate dessa já tenho o pecúlio com alguma

sobra e quanto às outras três, espero em Deus que as

resgatarei. Que poderiam fazer esses meus credores

contra mim antes de vencido o prazo!

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: lettras

SPF, SP1: d’essa; peculio

SPF, SP1: ás outras; tres

–Não fui leviano, João. Se é certo que você em

tempo coseguirá solver as suas dívidas nos prazos

SPF, SP1: Si

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117

305

tempo coseguirá solver as suas dívidas nos prazos

estipulados, não pode contestar que isso levará a efeito

mediante um moirejar90 mortificante. Os recursos do

nosso meio são por demais escassos e problemáticos

para que consigamos vencer as grandes dificuldades que

vêm inesperadamente. As que lhe vieram há bem pouco

tempo não são prova disso?

SPF, SP1: dividas

SPF, SP1: effeito

SPF, SP1: problematicos

SPF, SP1: difficuldades

SP1: ha

SPF, SP1: d’isso?

310

–Já sei que você abunda nas idéias que correm a

respeito do meu crédito.

–Não pense isso, João, que você me ofende.

SP1: Ja; SPF: idéas

SPF, SP1: credito

SPF, SP1: offende

315

–Desculpe-me; mas ouça. Não seria melhor que

você aguardasse o desenrolar dos fatos? Você não sabia

se eu estava ou não em estado de pagar, pelo menos a

letra que se vencerá em primeiro lugar. Não seria mais

vantajoso que eu fizesse o pagamento diretamente ao

credor? Assim não conseguiria eu demonstrar que eu

não estou insolvente como pensam?

SPF, SP1: factos

SPF, SP1: si

SPF, SP1: lettra

SPF, SP1: directamente

320

Diante de uma lógica tão apertada Abílio sentiu-

se embaraçado; mas não era homem que se desse por

vencido e não achasse uma saida airosa.91

SPF, SP1: Deante; logica; Abilio

SPF, SP1: désse

SPF, SP1: sahida

–Confesso que, realmente, fui um pouco

afobado, meu amigo; mas que quer? Não havia tempo

para consultá-lo, fiquei nervoso e indignado e procedi

SPF, SP1: consultal-o

90 Moirejar: variante de mourejar. Trabalhar incessantemente. 91 Airosa: elegante.

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118

325 assim quase inconsideradamente, em vista da urgência

do caso. Se o desagradei, João se lhe não é agradável

dever a mim, peço-lhe mil desculpas e a dona Maria.

Sabe que o que vale é a intenção.

SPF, SP1: quasi; urgencia

SPF, SP1: Si; si

SPF, SP1: agradavel; d. Maria

330

–Não já lhe disse que creio firmemente ser boa a

sua intenção? Não se zangue comigo. O que está feito

não está por se fazer. Somos e seremos sempre amigos

leais. Ainda mais, se eu precisar de dinheiro, já sei que o

encontrarei em sua mão.

SPF, SP1: commigo

SPF, SP1: leaes; si

335

–E, procurando-me, causar-me-á muito prazer.

Desejo ser-lhe prestável em tudo quanto estiver no meu

alcance.

SPF, SP1: prestavel

–Reconheço, Abílio. SPF, SP1: Abilio

340

–Deixemos isso de negócios que surgiu

incidentemente em nossa conversação. Vim apenas

visitá-lo, que há muito tempo não o vejo.

SPF, SP1: negocios

SPF, SP1: visital-o

SPF, SP1: ha

–Como já sabe, as minhas ocupações nem me

deixam tempo para cumprir os meus deveres sociais.

Você bem avalia e por certo me desculpará.

SPF, SP1: occupações

SPF, SP1: sociaes

345

–Que dúvida, meu amigo! Entre nós não deve

haver etiquetas. Sou mesmo refratário a exagerados e

meticulosos cerimoniais entre amigos.

SPF, SP1: duvida

SPF, SP1: refractario

SPF, SP1: ceremoniaes

A conversação dos dois derivou para este e

outros assuntos sem importância, tomando Maria parte

SPF, SP1: dous

SPF, SP1: assumptos; importancia

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119

350

nela. Abílio, sempre delicado ao extremo, mesmo

cativante no seu modo de expor, mostrando-se o amigo

dedicado da família, pondo em prática uma estudada

delicadeza e habilidade que mal encobriam à jovem

esposa a afetação tendenciosa que tinham por

fundamento.

SPF, SP1: n’ella; Abilio

SPF, SP1: captivante

SPF, SP1: familia; pratica

SPF, SP1: a joven

SPF, SP1: affectação

355

Pulquéria espiava-o esconjurando-o; mas teve

que deixar o seu ponto de observação para servir o café.

Horas depois se retirou a visita pedindo a João que

frequentasse sua casa com dona Maria, que isso seria

muito do agrado de sua mãe.

SPF, SP1: Pulcheria

SPF, SP1: retirou-se (Emendou-se

ênclise para próclise.)

SPF, SP1: d. Maria

III

5

10

João, apesar de dar crédito às reiteradas

afirmações de Abílio e de tê-lo como amigo sincero e

dedicado, não só por seu gênio bondoso e boa fé, como

por ignorar os precedentes de que o leitor está inteirado

desde o dia daquela visita tornou-se triste e

meditabundo.92 Sentia-se como depreciado aos olhos da

sociedade e, como obsedado por uma idéia fixa, muitas

vezes, quando não o distraía o trabalho, ou quando à

noite a insônia o atribulava, sentia percorrer-lhe o corpo

um frêmito de terror.

SPF, SP1: apezar; creditos; às

retiradas

SPF, SP1: affirmações; Abilio; tel-o

SPF, SP1: genio

SPF, SP1: inteirado; (Emendou-se.)

SPF, SP1: d’aquella

SPF, SP1: idéa

SPF, SP1: destrahia; á noite

SPF, SP1: insomnia; attribulava

SPF, SP1: fremito

92 Meditabundo: pensativo.

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120

15

Até então, se bem considerasse arriscada e

aflitiva a sua situação de comprometido por dívidas que

muito excediam os seus recursos ordinários, sentia-se

forte e animado, contando que, com um moirejar

incessante e uma economia severa, conseguiria tudo

pagar em tempo.

SPF, SP1: si

SPF, SP1: afflictiva; compromettido;

dividas

SPF, SP1: ordinarios

SPF, SP1: severa ( , )

20

25

30

Então, Maria, que nada ignorava dos seus

negócios e compromissos, ajudava-o com o seu

conselho e labor. Agora, porém, como que se lhe abriam

os olhos diante de um abismo incomensurável que

ameaçava tragar a sua dignidade, os seus reconhecidos

foros de homem de bem, o seu bom nome. Sobretudo

amargurava-o sentir-se como tutelado de Abílio, que se

arvorava em seu protetor, como que a pôr em confronto

a sua posição de fidalgo endinheirado com a de amigo

pobre e arruinado. Não passava pelo pensamento de

João que o procedimento de Abílio algo contivesse de

tendencioso, não; tanto mais quanto cria firmemente que

o seu condiscípulo fora constragindo a assim proceder

com o louvável e generoso fito de pôr e resguardar a

honra e os créditos do amigo.

SPF, SP1: negocios

SPF, SP1: porem

SPF, SP1: deante; abysmo;

incommensuravel

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: proctetor

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: condiscipulo; foi

SPF, SP1: louvavel

SPF, SP1: credito

35

Entretanto, sentia-se colocado em posição muito

inferior, e incapaz de corresponder, como desejava, a

um rasgo de tamanha liberalidade. Mesmo que fosse

SPF, SP1: collocado

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121

40

pontual na solvência de seus compromissos, só Abílio

seria testemunha da sua pontualidade e, por mais que

este asseverasse em público a probidade e retidão do

amigo, diriam os maldizentes que o rico mancebo se

sacrificara para salvar a honra daquele a quem era

dedicado, com uma generosidade digna de tantos

elogios quanto tinha de depreciativa do caráter do

protegido.

SPF, SP1: solvencia; Abilio

SPF, SP1: publico; rectidão

SPF, SP1: d’aquelle

SPF, SP1: caracter

45

50

Nesse ponto o louvável orgulho de João impelia-

o a lançar mão de recurso extremo. Qual esse recurso?

Achava-se agora convencido de que o seu trabalho, por

mais afanoso que fosse, que a sua economia, por mais

estrita que a pusesse em prática, tinham contra si o

futuro, todo problemático, que muitas vezes traz consigo

embaraço e até obstáculos que o esforço humano não

pode vencer.

SPF, SP1: N’esse; louvavel; impellia-

o

SPF, SP1: trabalho (,) SPF, SP1: fosse; (,) SPF, SP1: estricta; puzesse; pratica

SPF, SP1: problematico; comsigo

SPF, SP1: obstaculos

55

Como o naúfrago que, desalentado e quase sem

esperança de salvar-se, bracejando na superfície

encapelada do mar, tem a morte diante dos olhos, João

avistou uma taboa93 de salvação: – o estado de São

Paulo. Como asseveravam muitos baianos que lá

estiveram e trabalharam, o dinheiro corria ali a rodo e o

trabalho era magnificamente remunerado. Já muitas

testemunhas que lhe mereciam fé haviam-lhe informado

SPF, SP1: naufrago; quasi

SPF, SP1: encapellada; deante

SPF, SP1: S. Paulo; bahianos; la

SPF, SP1: alli; rôdo

SP1: Ja

93 Taboa: variante de tabua.

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122

60

65

testemunhas que lhe mereciam fé haviam-lhe informado

o quanto esplendorosos eram o progresso, a riqueza e o

desenvolvimento industrial e comercial do opulento

estado do Sul, sem que conseguissem abalar-lhe o

ânimo e sugestioná-lo como a muitos baianos honestos

que, depois de procurarem aqui, debalde, meios de

livrar-se de aperturas como as que presentemente o

afligiam, somente lá haviam conseguido o pecúlio de

que tanta necessidade tinham para solver compromissos,

sobrando-lhes ainda com que dessem desenvolvimento à

sua fazenda...

SPF, SP1: commercial

SPF, SP1: animo; suggestional-o;

bahianos SPF, SP1: affligiam; la conseguiram;

peculio

SPF, SP1: déssem; á sua

70

75

80

“Com trabalho, inteligência e economia, só não é

rico quem não o quer ser” lera João algures e adotara

como postulado que devemos todos ter presente à nossa

memória. É certo que essa sentença não mencionava,

além dos três fatores lembrados, a eventualidade e o

imprevisto; mas o nosso mancebo considerava que os

fatores enunciados, sendo puramente humanos, eram os

únicos que estão ao nosso alcance, tendo Deus

reservado para si os outros, dependendo afastar a sua

influência quando prejudicial, de uma fé profunda na

Providência; de seguir-se sempre, sem desfalecimentos,

o caminho reto do bem; de termos uma conduta

irrepreensível; de não nos esquecermos um só momento,

SPF, SP1: intelligencia

SPF, SP1: adoptara

SPF, SP1: á nossa

SPF, SP1: memoria

SPF, SP1: alem; tres; factores

SPF, SP1: factores; são

SPF, SP1: unicos

SPF, SP1: influencia

SPF, SP1: Providencia;

desfallecimentos

SPF, SP1: recto; conducta

SPF, SP1: irreprehensivel

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123

85

dando-lhe graças que do Céu nos vem o auxílio em toda

e qualquer circunstância, quando agimos com indefesa

energia e coragem, arrimados à confiança nAquele que

jamais deixa de estender a mão à boa vontade e

intenção.

SPF, SP1: Céo; auxilio

SPF, SP1: circumstancia

SPF, SP1: á confiança; n’Aquelle

SPF, SP1: á boa

90

95

100

105

Um homem honesto e laborioso, de aspirações

modestas, que tenha como sagrados os seus deveres de

unidade social que deve trabalhar tanto para si como

para o bem da coletividade; que seja respeitador

daqueles a quem se subordina, que seja bom cidadão,

bom esposo; bom pai; um homem de bem, em suma, em

um meio opulento como o do estado de São Paulo, em

menos de um ano conseguirá ali uma fortuna que, se

para o rico estado é modesta, para nós, os atrasados

sertões, será de encher as vistas. Tanto pensou João

nisso, guardando absoluta reserva, sem revelar, nem

mesmo a Maria, as idéias que o iam progressivamente

dominando sem procurar conselho de quem quer que

fosse; que por elas foi subjugado, chegando por fim à

definitiva resolução de emigrar como muitos outros,

tomado da esperança de, no estado leader94 da União,

encontrar os recursos de que tinha tanta necessidade

para solver os seus compromissos e melhorar a sua

situação.

SPF, SP1: collectividade

SPF, SP1: d’aquelles

SPF, SP1: pae; summa

SPF, SP1: Estado de S. Paulo

SPF, SP1: anno; alli; si

SPF, SP1: Estado; atrazados; nós(,)

SPF, SP1: sertões (,)

SPF, SP1: n’isso

SPF, SP1: idéas

SPF, SP1: dominando;

SPF, SP1: fosse; (Emendou-se a

pontuação.); ellas

SPF, SP1: LEANDER

94 Leander: líder.

Page 124: ROMANCE DE JOÃO GUMES - Ufba Reis.pdf · Fig. 6: Folha de rosto do primeiro volume do romance O Sampauleiro. 41 Fig. 7: ... SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929. SPF O

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situação.

IV

5

10

15

20

Eis como se forma atualmente o caráter do

sampauleiro honesto, bem intencionado e digno que, por

si, toma a deliberação de emigrar, por um lado premido

por circunstâncias adventícias, por outro atraído por

aquele centro de movimento e riqueza. Destes que

constituem uma classe, podemos asseverar que

dificilmente se abalam do nosso meio, levando no seu

coração a dor e no pensamento as mais dolorosas

reminiscências de uma vida até então tranqüila no seio

amorável da terra querida onde abriram os olhos a esta

existência, onde passaram a infância e a mocidade;

levando a saudade, essa amargura adulçorada pela

esperança de retorno e pela imagem da esposa, dos

inocentes filhinhos, dos parentes, dos amigos que atrás

deixaram, a quem tanto amou e por quem são capazes

de todos os sacrifícios, e que se estampa na sua

retentiva, risonha, em uma objetividade acariciadora que

os anima incitando-os a prosseguir a despeito de tudo,

como a ampará-los com angelical doçura e carinho que

constitui uma segura promessa.

SPF, SP1: actualmente; caracter

SPF, SP1:circumstancias;

adventicias; attrahido

SPF, SP1: aquelle; D’estes

SPF, SP1: difficilmente

SPF, SP1: reminiscencia; tranquilla

SPF, SP1: amoravel

SPF, SP1: existencia; infancia

SPF, SP1: innocentes; atraz

SPF, SP1: sacrificios

SPF, SP1: ampararal-o

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25

30

35

40

Arrastando-se pela via dolorosa que uma como

fatalidade abrigou-os a trilhar, vergados ao peso da triste

conjuntura que os impele com o seu poderoso aguilhão

– cruel, porque impõe com inexorabilidade; meigo e

suave, porque indica uma finalidade risonha e feliz –

não se esquecem, um momento sequer, da gleba que,

desde os seus maiores, vêm, pacífica e tranqüilamente

arroteada,95 para desabotoar os seus tesouros em ótimos

frutos; do arroio96 perene e murmuroso onde os seus

nédios97 rebanhos vão dessedentar-se98 e que, obediente

à sua inteligente direção, vai umedecer as plantações

para emprestar-lhes o viço que verdeja como a

esperança; da colina que a primavera floreja com seus

opulentos tesouros de bela e atraente policromia; do

tanque, vasto espelho cristalino, que reflete as

encantadoras ribas vestidas de uma vegetação

luxuriante, que guarda o piscoso alimento e atrai um

variado mundo de aves aquáticas, a sua alma sonante e

buliçosa que enche o ambiente com uma rumorosa e

esquisita harmonia; dos bosques, dos prados, das

árvores vetustas que os viram nascer; dos rochedos e

penhascos impassíveis, como austeros vigias da

SPF, SP1: conjunctura; impelle

SPF, SP1: siquer

SPF, SP1: tranquillamente

SPF, SP1: thesouros; optimos

SPF, SP1: fructos; perenne

SPF, SP1: á sua intelligente;

direcção; vae; humedecer

SPF, SP1: collina

SPF, SP1: thesouros; bella;

attrahente; polycromia

SPF, SP1: crystalino; reflecte

SPF, SP1: atrahe

SPF, SP1: acquaticas

SPF, SP1: exquisita

SPF, SP1: arvores

SPF, SP1: impassiveis

95 Arroteada: cultivada. 96 Arroio: pequeno curso de água. 97 Nédio: lustroso; brilhante. 98 Dessedentar: saciar, matar a própria sede.

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45

50

eternidade no tempo, pacientemente enredados, mas não

vencidos, pelas lianas99 floridas, cobertos de musgos e

coroados de cactus; enfim do brilhante sol tropical que,

se caustica e flagela nas grandes estiagens, é um

indispensável elemento de vida, dessa vida estuante e

opulenta que maravilha e delicia os advenas dos outros

países.

SPF, SP1: cactus; emfim

SPF, SP1: si cauticas; flagella

SPF, SP1: indispensavel; d’essa

SPF, SP1: paizes.

A essa classe pertencem outros que são

constrangidos ao exílio por circunstâncias diferentes das

que impeliam João ao expátrio, mas tão peníveis como

elas.

SPF, SP1: exílio; circunstancias;

differentes

SPF, SP1: impelliam; expatrio;

peniveis

SPF, SP1: ellas

55

60

65

Quantos pobres baianos destes altos sertões que

viviam tranqüilos, trabalhando, em seguida aos seus

antepassados, no campo que lhes pertence de fato e de

direito, vítimas de clamorosas injustiças, perseguidos

por poderosos, espoliados de sua fazenda em favor de

vizinhos invejosos da sua modesta propriedade, ou de

inimigos gratuitos que lhe movem demandas e

processos-crimes, caluniados por testemunhas adrede100

arranjadas, não se vêm por fim obrigados a fugir sob a

ameaça dos mandões, a arrastar-se penosamente por

centenares de léguas, sofrendo privações, lutando com

inúmeras dificuldades, tendo como última esperança,

SPF, SP1: bahianos; d’estes

SPF, SP1: tranquillos

SPF, SP1: facto

SPF, SP1: victimas

SPF, SP1: visinhos

SPF, SP1: calumniados

SPF, SP1: porfim

SPF, SP1: leguas; soffrendo; luctando

SPF, SP1: innumeras; difficuldades;

ultima

99 Liana: trepadeira lenhosa, geralmente de grande tamanho, semelhante a cipó. 100 Adrede: intencional.

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como seguro amparo, escravizar-se aos ricos

fazendeiros paulistas e seus subordinados!

70

75

80

Levando o coração torturado pela dor e pela

saudade de sua terra, muita vez conduzindo a esposa e

os filhos que os sobrecarregam de maiores embaraços e

privações, chegam ao termo da sua viagem nús e

famintos, são tratados como “retirantes” que fogem às

faladas “secas” e à fome que por cá não existem, são

recebidos com soberano desprezo, e assim concorrem

indiretamente para o descrédito da Bahia, por lá

considerada estéril, adusta101 e inóspita, quando,

entretanto, deixaram atrás fartas messes102, o solo

umedecido pela chuva benéfica, os campos cobertos de

verdura. Os que escapam a essas injustas perseguições,

ou que por ora se acham esquecidos dos tiranetes,103 são

um atestado do que afirmamos, e prova irrefragável de

que entre nós, mesmo nas maiores estiagens, jamais nos

faltaram os recursos instalados pela subsistência.

SPF, SP1: ás faladas

SPF, SP1: “seccas”; á fome

SPF, SP1: indirectamente; descredito

SPF, SP1: esteril; inospita

SPF, SP1: atraz; SP1: mésses

SPF, SP1: humedecido; benefica

SPF, SP1: tyrannetes

SPF, SP1: attestado; affirmamos;

irrefragavel

SPF, SP1: subsistencia

85

Há ainda a classe dos iludidos por promessas

falaciosas, aliciados por hipócritas e exploradores.

Nunca tinham ido a São Paulo, ouviam falar-se na

riqueza e esplendor daquele estado; mas tinham dúvidas

a respeito do que lhes informavam, tanto mais quanto

SPF, SP1: illudidos

SPF, SP1: fallaciosas; alliciados;

hypocritas

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: d’aquelle; duvidas

101 Adusta: queimada, abrasada. 102 Messes: seara em bom estado de se ceifar 103 Tiranete: aquele que oprime os que dele dependem.

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90

95

a respeito do que lhes informavam, tanto mais quanto

viam voltarem alguns desiludidos e pobres. Os

aliciadores, porém, acham meios de convencê-los,

prometem colocações vantajosas e, embora sejam

baianos, não se envergonham de desacreditar a sua terra

para conseguirem os seus fins, que são: arrebanhar essa

nova espécie de escravos, que já têm contratados a tanto

por cabeça e locupletar-se104 com o trabalho dos

ingênuos que lhes caem nas garras de aves rapaces105.

Quantos desses por lá perambulam desiludidos e

impossibilitados de voltarem!

SPF, SP1: alliciadores; porem;

conhecell-os

SPF, SP1: promettem; collocações

SPF, SP1: bahianos

SPF, SP1: especie; contractados

SPF, SP1: ingenuos; cahem

SPF, SP1: d’esses; desilludidos

100

105

110

Há muitos emigrados baianos que, abandonando

mulher e filhos, esquecem-se das pessoas que lhes

deviam ser caras. Atraídos, como a falena106, pelo brilho

da civilização paulista, por tantas magnificências que lá

encontram e aqui nunca viram, deixam-se mais levar

pelo esplendor contínuo que presenciam e que para eles

é uma festa permanente, e desperdiçam levianamente o

que em São Paulo conseguiram ganhar. Renegam o seu

estado natal, como renegam os seus mais íntimos

parentes; envergonham-se de serem baianos e chegam a

constituir naquelas terras longínquas nova família, ilícita

se ainda lhes resta algum escrúpulo, aparentemente legal

SP1: Ha; SPF, SP1: bahianos

SPF, SP1: Attrahidos; phalena

SPF, SP1: civilisação; magnificencias

SPF, SP1: continuo; elles

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: intimos

SPF, SP1: bahianos

SPF, SP1: n’aquellas; longinquas;

famillia; illicita

104 Locupletar-se: tornar-se rico, enriquecer-se. 105 Rapaces: raptadoras. 106 Falena: espécie de borboleta noturna, mariposa.

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115

se ainda lhes resta algum escrúpulo, aparentemente legal

por meio de um consórcio anulável, quando são

desabusados e audazes. A pobre esposa e os filhos,

abandonados por cá, passam pelas mais cruéis e

angustiosas dificuldades. Esperando indefinidamente o

chefe do casal, rodeados de inocentes criancinhas, é

dolorosa a sua situação. Se é honesta e criteriosa, a

esposa vale-se do trabalho incessante, indefeso, para

salvar a prole.

SPF, SP1: escrupulo

SPF, SP1: apparentemente;

consorcio; annullavel

SPF, SP1: crueis

SPF, SP1: difficuldades

SPF, SP1: innocentes creancinhas

SPF, SP1: Si

120

125

130

Quantas dessas pobres mártires, se

compreendem as responsabilidades que lhes cabem

como esposas, velando pelo seu bom nome, guardando a

sua virtude como uma vestal, exaurem-se no labor,

sacrificam a sua saúde ou a sua vida, ocultas, ignoradas

do mundo, no humilde gineceu107 que lhes coube por

uma sorte mofina, e conseguem, depois de anos de uma

luta estiolante, formar o caráter de um filho que vem a

substituir no lar o seu desalmado progenitor! Quantas

ingênuas, incapazes de lutar até o fim, sem nítida

compreensão dos seus deveres sagrados, arriscam-se a

procurar um protetor estranho, – muitas vezes um

hipócrita e filaucioso108 compadre que favoreceu a

emigração do marido, que até forneceu-lhe dinheiro para

SPF, SP1: d’essas; martyres; si

SPF, SP1: comprehendem

SPF, SP1: exhaurem-se

SPF, SP1: saude; occultas

SPF, SP1: gyneceu

SPF, SP1: annos

SPF, SP1: lucta; caracter

SPF, SP1: ingenuas; luctar; nitida

SPF, SP1: comprehenção

SPF, SP1: protector; extranho

SPF, SP1: hypocrita; philaucioso

107 Gineceu: parte da habitação grega destinada às mulheres. 108 Filaucioso: egoísta.

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135

a viagem, com o infame propósito de apartá-lo como

impecilho que era aos seus desejos reprováveis! Neste

caso, a incauta vem a cair no abismo da perdição.

SPF, SP1: proposito; apartal-o

SPF, SP1: reprovaveis!, N’este

SPF, SP1: caso (,); incauta, (Erro

óbvio.) cahir; abysmo

140

145

E assim desorganiza-se a família no meio pobre

do proletariado baiano-sertanejo, porque heroínas como

as que acima descrevemos são raras. Destas mesmas, se

a prole é feminil, ou se, exaustas pelo trabalho, morrem

ou, pela enfermidade, tornam-se impossibilitadas de

continuar a sua faina debilitante, algumas, conservando-

se puras, não conseguem salvar os filhos que, sem uma

segurança direção honesta, perdem-se enxurros dos

vícios, dos prostíbulos, das vilezas.

SPF, SP1: familia

SPF, SP1: bahiano-sertanejo;

heroinas

SPF, SP1: D’esta; si

SPF, SP1: si; exhaustas

SPF, SP1: direcção

SPF, SP1: vicios; prostibulos

150

155

O leitor não tome por exagerado o quadro

desolador que aqui delineamos. Quiséssemos ilustrá-lo

com fatos, deles encontraríamos facilmente em cópia;

estão no conhecimento de todos nós. Basta que se visite

e examine o cenário onde se passam esses horrores, para

que sinta o coração confrangido e se avalie, –

comparando a feracidade do nosso território e a sua

opulência em propriedades naturais para um grande

desenvolvimento econômico – que uma causa poderosa

que não são as “secas” e a “fome” tão faladas, arrastou-

nos à mais triste das situações. E, se, quem visitá-lo e

observá-lo, já o conheceu há quarenta anos atrás como

SPF, SP1: Quizessemos; illustral-o

SPF, SP1: factos; d’elles; copia

SPF, SP1: scenario

SPF, SP1: territorio

SPF, SP1: opulencia; naturaes

SPF, SP1: economico,

SPF, SP1: “seccas”

SPF, SP1: á mais; si; visital-o

SPF, SP1: observal-o; annos; atraz

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nós, mais convencido ficará do que aqui acertamos. SPF, SP1: assertamos.

160

165

170

Conhecemos grandes casas de campo,

verdadeiras habitações senhoriais, que foram

construídas no primeiro quartel do século passado por

fazendeiros ricos, com vastas dependências que, pelas

suas dimensões, equivaliam às atuais casas de fazenda.

Os currais, mangas de pasto, barragens que retiram as

águas, e outras construções indispensáveis a uma

fazenda de criação de gados, eram de grandes

proporções e feitas com solidez. Algumas dessas antigas

habitações campestres, quando erguidas nos contrafortes

da serra e próximas de ribeiros perenes, tinham ao lado

grandes pomares, extensas plantações de cana e outras

culturas que dependem de irrigação. Nesse caso havia

aquedutos, engenhocas, moinhos movidos por água e

outros benefícios.

SPF, SP1: senhoriaes

SPF, SP1: construidas; seculo

SPF, SP1: dependencias

SPF, SP1: ás actuaes

SPF, SP1: curraes

SPF, SP1: construcções;

indispensaveis

SPF, SP1: d’essas

SPF, SP1: proximas; perennes

SPF, SP1: canna

SPF, SP1: N’esse

SPF, SP1: acqueductos água

SPF, SP1: beneficios.

175

180

Muitas dessas grandes habitações, depois de

passarem a herdeiros de duas gerações, foram

traspassadas a estranhos que as demoliram para vender

os materiais. Hoje, quem visitar essas situações

agrícolas, onde ainda alcançamos um grande

movimento, verá escombros, restos de alicerces, paredes

esboroadas109. Enormes madeiros que restam dos currais

e cercas apodrecem sob a ação da chuva. Nos terrenos

SPF, SP1: extranhos

SPF, SP1: materiaes

SPF, SP1: agricolas

SPF, SP1: curraes

SPF, SP1: acção

109 Esboroada: desmoronada.

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185

190

e cercas apodrecem sob a ação da chuva. Nos terrenos

planos ainda se percebem sinais das valetas onde faziam

as plantações de rega; os aquedutos, em completo

abandono, não mais conduzem a água; as árvores de

pomar que restam, mas resistentes, vencidas pelas

parasitas, são emaranhadas nas silvas e plantas

indígenas que reconquistam pouco a pouco os seus

domínios. E sobre tudo isso paira o silêncio e a tristeza,

contrastando com o antigo ruído e alegria que

conhecemos ali, que nos atraíam e empolgavam,

naqueles tempos que já se foram e dos quais guardamos

uma saudosa reminiscência.

SPF, SP1: si; signaes

SPF, SP1: acqueductos; réga

SPF, SP1: água; arvores

SPF, SP1: emmaranhadas

SPF, SP1: indigenas

SPF, SP1: dominios; silencio

SPF, SP1: ruido

SPF, SP1: alli; attrahiam

SPF, SP1: naquelle; quaes

SPF, SP1: reminiscencia.

195

200

Falta-nos, entretanto, dar ao leitor o

conhecimento do sampauleiro típico, de cuja informação

fomos afastados pela digressão acima. Ele não pertence

às classes que acima descrevemos. O sampauleiro

característico é o homem forte e destemido que já tem

feito reiteradas viagens ao opulento estado do Sul. Ele já

o conhece de sobejo; já sabe quais as melhores

oportunidades de ir ali ganhar dinheiro; já se acha

familiarizado com muitos fazendeiros; já se acreditou

pela sua probidade como jornaleiro; já conhece os

perigos que por lá podem ameaçá-lo e sabe evitá-los.

SPF, SP1: typico

SPF, SP1: Elle

SPF, SP1: ás classes

SPF, SP1: caracteristico

SPF, SP1: Elle

SPF, SP1: quaes

SPF, SP1: opportunidades; alli

SPF, SP1: ameaçal-os; evital-os.

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210

215

220

Para esse tipo, – que se assemelha ao cule

hindustânico ou chinês, – as viagens quase anuais, que

faz a São Paulo e de retorno à sua terra, onde deixou

esposa, filhos, parentes e amigos de quem se não

esquece, são um brinco; para ele a enorme distância que

por mais de uma vez transpôs parece diminuir por cada

dia que se passa. Está habituado de tal forma a essa

viagem, que diz com ênfase aos timoratos110: “Para mim

São Paulo está ali detrás da porta.” E só, ou

acompanhado de outros da sua têmpera, continua desde

muitos anos a sua vida de andejo. Entretanto, é esse

sampauleiro um dos mais perigosos propagandistas da

emigração, se bem que indireto, pelo exemplo e pelos

modestos proveitos que lhe têm advindo das suas

viagens; porque justamente os fortes e resolutos, que

seriam aqui um valioso elemento para o nosso

desenvolvimento econômico, sentem-se incitados a

seguir a mesma vida de aves de arribação.

SPF, SP1: typo; kuli

SPF, SP1: indostanico; chinez,; quasi;

annuaes

SPF, SP1: S. Paulo; á sua

SPF, SP1: elle; distancia

SPF, SP1: transpoz,

SPF, SP1: emphasis

SPF, SP1: S. Paulo; alli; detraz

SPF, SP1: tempora

SPF, SP1: annos; Entretanto ( , )

SPF, SP1: si; indirecto

SPF, SP1: economico

110 Timorato: medroso.

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V

5

10

Ainda nos recordamos de como se iniciou o

atual movimento emigratório do baiano desta região;

fomos testemunhas do seu começo e conhecemos-lhe as

causas mediatas e imediatas. Estas, mais próximas no

tempo, ainda se acham vivas na memória de muitos

velhos que, como nós, são delas testemunhas; aquelas

porém, mais remotas, conhecemos, parte por tradição e

parte por documentos que compulsamos e estudamos

com interesse.

SPF, SP1: iniciou-se

SPF, SP1: actual; migratorio; bahiano

SPF, SP1: immediatas; proximas

SPF, SP1: memoria

SPF, SP1: d’ellas; aquellas

SPF, SP1: porem

15

20

É sabido que a Bahia, por ser primitivamente a

sede do governo geral do país, tornou-se desde o meado

do século XVI, o empório mais importante do tráfico de

escravos africanos no Brasil, favorecido pelo governo

para evitar a escravização do nosso íncola. O nosso

desenvolvimento econômico dependeu sempre do

escravo negro. Numerosas escravarias deram entre nós

um grande impulso à agricultura a começar da sede da

capitania e, tais foram os resultados conseguidos por

esse meio de progresso, posto que ilícito e de más

consequências futuras, que não foram previstas, e que se

propagou por todo interior logo que os nossos sertões

foram desbravados. Viviamos do negro, trabalhador

resistente e submisso.

SPF, SP1: séde; paiz

SPF, SP1: seculo 16º (Emendou-se.);

emporio; trafico

SPF, SP1: incola

SPF, SP1: economico

SPF, SP1: á agricultura; séde

SPF, SP1: taes

SPF, SP1: postoquê; illicito

SPF, SP1: consequencias; futuras ( , )

SPF, SP1: propagou-se

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25

30

35

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Caetité, um dos mais antigos e importantes

meios da região sertaneja do Sul baiano desde o fim do

século XVI, tornou-se por sua vez um empório

secundário desse comércio. Quando Minas do Rio de

Contas e o Norte de Minas preocupavam-se quase

exclusivamente com a mineração, Caetité e a vasta

região que o circunda procuravam desenvolver a

indústria pecuária e o amanho111 das suas terras ferazes,

desde cedo compreendendo que mais vantajosa e segura

é a indústria agrícola. A imigração portuguesa trouxe-

nos logo depois uma colônia avultada, que entre nós

repetia os processos de cultura do seu país, pondo-a de

acordo com a dos naturais e admitindo a lavoura extensa

nos uberosos latifúndios que se estendiam desertos,

vestidos de carrascos e caatingas, desde o vale do alto

São Francisco até a orela das riquíssimas matas, então

ainda inexploradas, que demoram na região da

Conquista.

SPF, SP1: Caitete

SPF, SP1: bahiano

SPF, SP1: seculo 16º (Emendou-se.);

emporio

SPF, SP1: secundario; d’esse;

commercio

SPF, SP1: quasi

SPF, SP1: Caitete

SPF, SP1: industria; pecuaria

SPF, SP1: comprehendendo

SPF, SP1: industria; agricola;

portugueza

SPF, SP1: colonia; SP1: entré (Erro

óbvio.)

SPF, SP1: paiz

SPF, SP1: accordo; naturaes

SPF, SP1: latifundios

SPF, SP1: S. Francisco; orella;

riquissimas; mattas

45

O africano, mesclado depois com os indígenas e

com os brancos, engedrou uma raça forte que, sendo

apta para todos os grosseiros trabalhos agrícolas, era,

entanto mais resoluta e destemida. Os mamalucos112 são

um frisante exemplo do destemor, resolução e valor na

SPF, SP1: indigenas

SPF, SP1: agricolas

SPF, SP1: emtanto

111 Amanho: cultivo. 112 Mamaluco: variante de mameluco.

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50

formação da nossa pátria territorialmente considerada, e

os mulatos, também valorosos e de cerebração potente,

são os que têm mais concorrido para a organização

política da nossa nacionalidade. Nas nossas

“escravarias” estes mestiços de negro e branco

predominavam em número.

SPF, SP1: patria

SPF, SP1: tambem

SPF, SP1: tem

SPF, SP1: politica

SPF, SP1: mistiços

SPF, SP1: numero.

55

60

O assomo, o atrevimento, desenvolvida

inteligência dos mulatos, cabras e outros mestiços de

africanos e brancos em diversos graus, eram uma

ameaça contra a servidão. Daí a necessidade de quebrar-

lhe os estímulos por meio de sevícias; de privá-los,

enquanto sob o julgo servil, de desenvolverem e

aproveitarem as suas aptidões intelectivas a não ser

naquilo que concernisse a trabalhos grosseiros. O

escravo, no modo de ver dos seus senhores, não devia

ser mais que uma máquina de carne e osso.

SPF, SP1: intelligencia

SPF, SP1: d’ahi

SPF, SP1: estimulos; prival-os

SPF, SP1: emquanto

SPF, SP1: intellectivas

SPF, SP1: n’aquillo

SPF, SP1: machina

65

70

Resultou disso a degenerescência dos nossos

costumes, quanto à compreensão dos direitos do

homem, na classe numerosíssima e predominante dos

nossos meios populares, especialmente dos campos. Daí

o tão falado analfabetismo, a crassa ignorância que

medra entre nós, derivados, não somente da falta de

escolas, mas também, e como causa perniciosa que pede

um estudo acurado, a aversão que tem a maioria do

SPF, SP1: d’issso

SPF, SP1: comprehensão

SPF, SP1: numerossisima

SPF, SP1: D’ahi

SPF, SP1: analphabetismo;

ignorancia

SPF, SP1: tambem

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nosso povo, principalmente rural, ao conhecimento o

mais rudimentar das letras.

SPF, SP1: lettras.

75

80

85

Além desses inconvenientes, o contato imediato

do proletário pobre com a classe obnóxia113 abastardou

o caráter do povo, arrastou-o em geral a uma lastimável

degradação, ao servilismo abjeto, à adulação vil, a uma

prejudicialíssima subordinação, que é a causa de tantos

males que nos afligem. Conhecemos na mocidade

muitos agregados, jornaleiros e vaqueiros que, residindo

nas terras do domínio de ricos proprietários, pouco

diferiam dos escravos. Freqüentavam as senzalas à

noite, muitas vezes com as famílias em estreitas relações

com os escravos; chegavam a ser deles dependentes

como dos senhores; com eles transigiam a sua dignidade

e de pessoas por cuja honra eram responsáveis; tratavam

ilícitas e indignas combinações e desciam à mais baixa

abjeção por interesses inconfessáveis. Assim formou-se

o caráter do nosso proletariado rural.

SPF, SP1: Alem; d’esses; contacto;

immediato

SPF, SP1: proletario

SPF, SP1:caracter; lastimavel, SP1:

(Erro óbvio.)

SPF, SP1: á adulação; abjecto

SPF, SP1: prejudicalissima

SPF, SP1: affligem

SPF, SP1: aggregados

SPF, SP1: dominio; proprietarios

SPF, SP1: differiam; á noite

SPF, SP1: familias

SPF, SP1: d’elles

SPF, SP1: elles

SPF, SP1: responsaveis

SPF, SP1: illicitas; a mais

SPF, SP1: abjecção; inconfessaveis

SPF, SP1: caracter

90

Ao mesmo tempo em que a agricultura do Sul

do país, mesmo no antigo regime, acarinhada pelo

gorverno central, adquiria grande desenvolvimento e

necessitava de maior número de braços: a nossa,

altamente produtora, impossibilitada de exportar as

superabundâncias, à falta de fáceis meios de transportes,

SPF, SP1: tempo que

SPF, SP1: paiz

SPF, SP1: adqueria

SPF, SP1: numero

SPF, SP1: productora

113 Obnóxia: servil.

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138

95

100

105

110

superabundâncias, à falta de fáceis meios de transportes,

falecia progressivamente no sertão. Infelizmente as

classes dirigentes, desanimadas, consideravam bastante

o que produzíssemos para o consumo local. Foi então

que, do Sul de Minas e de São Paulo, vieram-nos

traficantes de escravos, e começou em 1850 e tantos,

impedida a importação de africanos, a emigração

forçada do elemento negro. Os compradores instalavam-

se em Caetité, considerada então o centro mais

importante da região sertaneja do Sul da Bahia, e daí,

em viagens continuadas pelas fazendas, compravam os

escravos por preços vantajosos e convidativos. Tivemos

entre nós um tal Cunha, que era um terrível algoz dos

negros, um Antonino Carvalho e um Luiz Vieira, além

de outros menos dinheirosos, que aqui permaneceram,

por algum tempo arrebanhando grande número de

escravos.

SPF, SP1: superabundancias; á falta;

facies

SPF, SP1: fallecia

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: installavam-se

SPF, SP1: Caitete

SPF, SP1: d’ahi

SPF, SP1: terrivel

SPF, SP1: Antonyno; alem

SPF, SP1: numero

115

O grande desenvolvimento desse comércio

execrado trouxe a Caetité um florescimento estupendo

que não podia deixar de ser transitório. O dinheiro corria

à farta, davam-se pomposas festas religiosas e cívicas

que atraiam ricos visitantes, mesmo da nossa capital; a

jogatina quase diuturna entre os ricos e potentados era

SPF, SP1: d’esse; commercio

SPF, SP1: Caitete

SPF, SP1: transitorio

SPF, SP1: á farta; civicas

SPF, SP1: attrahiam

SPF, SP1: quasi

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120

125

desenfreada, e o lagsquenet114, então em uso, arruinou

muitos homens de fortuna modesta. O luxo em bailes,

recepções, bodas e diversões era deslumbrante; os

impostos de exportações de escravos rendiam

anualmente centenares de contos, e o povo sentia-se

feliz e jubiloso, dessa felicidade e júbilo efêmeros que

nos arrastam à triste desilusão e tristeza. Pois não

previam os loucos daqueles tempos que a mercadoria

afinal viria a esgotar-se?

SPF, SP1: LAGSQUENET

SPF, SP1: annualmente

SPF, SP1: jubilo; ephemeros

SPF, SP1: á triste; desillusão

SPF, SP1: d’aquelles

SPF, SP1: exgottar-se

130

135

De fato, quando se procedeu em 1871 à

matrícula dos escravos deste Município de Caetité como

determinava a lei, embora ainda fosse muito extensa

esta circunscrição, a população servil recenseada foi

somente de sete mil unidades cerca. O tráfico continuou,

já sob a direção de baianos, a sangrar os municípios

sertanejos, e, ao proceder-se à segunda matrícula anos

depois, restavam apenas dois mil escravos no de Caetité,

que ainda tinham quase a mesma extensão. Entretanto, a

nossa agricultura ainda produzia muito mais do que o

necessário ao consumo local. O ano de 1887 foi tão

abundante que os nossos produtos da primeira e

imediata necessidade baixaram de preços a cotações

mais que ridículas.

SPF, SP1: facto; á matricula

SPF, SP1: d’este; Município; Caitete

SPF, SP1: circumscripção

SPF, SP1: trafico

SPF, SP1: direcção; bahianos;

municipios

SPF, SP1: á segunda; matricula;

annos

SPF, SP1: Caitete

SPF, SP1: quasi; Entretanto ( , )

SPF, SP1: necessario; anno

SPF, SP1: productos

SPF, SP1: immediata

SPF, SP1: ridiculas.

114 Lagsquenet: lasquenet.

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140

140

145

150

A lei de 13 de maio de 1888 ainda encontrou-

nos em boas condições; mas, abolida a escravidão, os

ex-escravos restantes, não só por gozarem do inesperado

benefício que lhes era concedido, como porque os

antigos senhores em sua maioria os repeliam e não lhes

consentiam trabalhar em suas terras, mesmo pagando

renda, entraram a vagabundear. Raros deles

conseguiram estabelecer-se. Os fazendeiros e grandes

lavradores retiravam-se do campo, removendo-se para

as cidades e outros centros populosos e abandonando a

lavoura por completo. Podemos dizer que fecharam a

sete chaves os seus enormes latifúndios – ainda vestidos

de matos – ao trabalho do pequeno lavrador.

SPF, SP1: Maio

SPF, SP1: gosarem

SPF, SP1: beneficio

SPF, SP1: repelliam

SPF, SP1: d’elles

SPF, SP1: latifundios,

SPF, SP1: mattos

155

160

Em 1889, além de que a lavoura se achava

reduzidíssima, entregue a poucos agricultores que

trabalhavam em pequenas glebas da sua propriedade, ou

posses em terrenos de condomínio, as chuvas foram

escassas, resultando disso a fome de 1890, que atingiu

grande número de ex-escravos e de famílias

paupérrimas que, em outras épocas semelhantes, sempre

resistiram às crises econômicas semelhantes.

SPF, SP1: alem; achava-se (Emendou

-se ênclise para próclise.)

SPF, SP1: reduzidissima

SPF, SP1: condominio

SPF, SP1: escassas(,); d’isso; attingiu

SPF, SP1: numero; familias

SPF, SP1: pauperrimas; epochas

SPF, SP1: á crises; economicas

Além das terríveis causas do flagelo acima

apontadas, a mudança das instituições políticas, que

trouxe grandes vexames à população pobre dos campos,

SPF, SP1: Alem; terriveis; flagello

SPF, SP1: politicas

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141

165

170

175

180

trouxe grandes vexames à população pobre dos campos,

foi um fator importante que em muito concorreu para o

sofrimento do povo. Aqueles que conseguiram salvar-se,

passada a crise, abriram caminho à emigração. Minas

Gerais, depois São Paulo, foram os pontos colimados. A

baixa do câmbio, o encilhamento como sua variedade de

papel-moeda, eram um chamariz tentador. Os primeiros

emigrados incitaram a cobiça de agiotas que

emprestavam dinheiro aos emigrantes a juros de 50 e

100 por cento; a exploração dos avarentos e levava-os a

aconselhar aos incautos o expátrio; muitos baianos

tornaram-se aliciadores do pobre povo trabalhador, que

arrebanhavam por meios de lisonjeiras promessas e

levavam em numerosos grupos para São Paulo. Assim

iniciou-se a corrente emigratória que até hoje está no

vezo115 do nosso povo dos campos, ora tomando grande

intensidade, ora diminuindo, conforme as

circunstâncias.

SPF, SP1: a população

SPF, SP1: factor

SPF, SP1: Aquelles

SPF, SP1: á emigração

SPF, SP1: Geraes; S. Paulo;

collimados

SPF, SP1: cambio

SPF, SP1: expatrio; bahianos

SPF, SP1: alliciadores

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: emigratoria

SPF, SP1: veso

SPF, SP1: circumstancias.

Eis a gêneses desse flagelo constante que há

perto de quarenta anos estiola as forças econômicas do

nosso rico e futuroso Estado. Eis a origem do

sampauleiro.

SPF, SP1: genesis; d’esse; flagello

SPF, SP1: annos; economicas

115 Vezo: costume vicioso ou criticável.

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142

VI

5

10

João, depois de ter assentado definitivamente a

São Paulo, refletiu com mais calma e, como era

criterioso e honesto, ateve-se logo, e em primeiro lugar,

ao meio de realizar os seus negócios de modo que, na

execução do seu plano, não ficasse sua esposa

sobrecarregada de dificuldades. Era preciso, como logo

considerou, que o pagamento de suas dívidas fosse feito

ao vencer dos títulos, para que o seu crédito ficasse de

pé, mesmo à apreciação de Abílio, embora o tivesse

como seu amigo sincero, ou mesmo por isso, para que

lhe não fosse preciso pedir mora a quem já tinha sobre

ele ganho uma tal ou qual superioridade que lho

repugnava.

SPF, SP1: S. Paulo; reflectiu

SPF, SP1: realisar; negocios

SPF, SP1: difficuldades

SPF, SP1: dividas

SPF, SP1: titulos; credito

SPF, SP1: á apreciação; Abilio

SPF, SP1: móra

SPF, SP1: elle

15

20

Com essa idéia, afervorou-se no trabalho e

reduziu ainda mais os seus gastos de acordo com Maria,

a esposa criteriosa que vibrava em consonância os

sentimentos e escrúpulos de João. Como avarentos

incorrigíveis, adotaram os dois um regime de estreita

frugalidade, aproveitavam os vestidos ao extremo e não

descançavam um momento. À noite, de dias em dias,

davam balanço em suas economias, que aumentavam

mais ou menos satisfatoriamente. Quantas ânsias não

afligiam aquele pobre casal apossado dessa idéia fixa!

SPF, SP1: idéa

SPF, SP1: accordo

SPF, SP1: consonancia

SPF, SP1: escrupulos

SPF, SP1: incorrigiveis; adoptaram;

dous; regimem

SPF, SP1: A’ noite

SPF, SP1: augmentavam

SPF, SP1: satisfactoriamente; ancias

SPF, SP1: affligiam; aquelle; d’essa;

idéa

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143

25

Quanta tristeza não se apossava dele quando Serafim

fazia-lhe a sua visita aos domingos e deixavam de

apresentar àquele amigo dedicado e leal um trato digno

dele!

SPF, SP1: d’elle; Seraphim

SPF, SP1: áquelle

SPF, SP1: d’elle!

30

35

O velho Professor notava aquele modo de viver

dos seus queridos e simpáticos amigos; mas, sempre

discreto e criterioso, não dava a perceber quanto o

aquilo o afligia, convencido de que a miséria tocava

aquele lar que lhe era tão afeiçoado. Por seu turno, os

jovens esposos não deixavam transparecer no seu

semblante a menor sombra de tristeza. Entretinham

alegre palestra com o jovial visitante, que sempre

achava desculpas por não vir acompanhado da família,

como reiteradamente lhe pediam João e Maria.

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: sympaticos

SPF, SP1: aquillo; afflingia; miseria;

aquelle

SPF, SP1: affeiçoado

SPF, SP1: familia

40

45

Entretanto, muito delicadamente, Serafim e a

família não deixavam de mandar presentes a Maria e

aos seus, o que não lhes devia ser estranho, porque era

um hábito antigo. Muitas vezes Serafim instava116 com

seus discípulos para que fossem passar o domingo em

sua casa e fingia-se zangado com João por negar-se a

isso, alegando que estava apertado por dívidas, que

desejava solver em tempo, sendo-lhe preciso trabalhar

sem descanso.

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: familia

SPF, SP1: extranho

SPF, SP1: habito; Seraphim

SPF, SP1: discipulos

SPF, SP1: allegando (,); dividas (,)

116 Instar: insistir.

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144

–Não vê como vamos vivendo, Professor? –

observava João – É preciso muito trabucar117 e

economizar para que eu consiga o meu intento.

50

Serafim oferecia ajudá-lo emprestando-lhe

algum dinheiro das suas economias; mas o outro achava

meios de convencê-lo da desnecessidade disso, entanto

mostrando-se grato ao Professor, a quem muito

estimava e sabia sincero na sua generosa proposta.

SPF, SP1: Seraphim; offerecia;

ajudal-o

SPF, SP1: convencel-o; d’isso;

emtanto

55

60

Entretanto, João e Maria, acompanhados de

Pulquéria e dos meninos, não deixavam, de vez em

quando, de ir aos domingos à casa de Serafim, onde

eram acolhidos com muito prazer e carinho. Então

reinava grande alegria no lar do Professor, as duas

crianças eram cumuladas de carícias e andavam de mão

em mão. Passeavam por todo o sítio, visitavam os

humildes agregados vizinhos, sendo acolhidos por todos

com muita consideração e verdadeira estima.

SPF, SP1: Entretanto ( , )

SPF, SP1: Pulcheria

SPF, SP1: á casa; Seraphim

SPF, SP1: creancas; caricias

SPF, SP1: sitio

SPF, SP1: aggregados; visinhos

65

Balanceando os seus haveres em espécie quando

se aproximava o resgate da letra que primeiro venceria,

João verificou haver uma sobra apreciável que, com

mais algum pecúlio, daria de sobejo para o pagamento

da segunda. Logo no dia do vencimento o mancebo

resgatou a letra primeira vencida, recebendo de Abílio o

título da dívida. Isto muito animou o jovem casal,

SPF, SP1: especie

SPF, SP1: approximava; lettra

SPF, SP1: apreciavel

SPF, SP1: peculio

SPF, SP1: lettra; Abilio

117 Trabucar: trabalhar com grande afã.

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145

70

75

título da dívida. Isto muito animou o jovem casal,

ficando demonstrado o quanto vale o trabalho

perseverante e uma cerrada economia; mas nem por isso

João abandonou a idéia de viajar a São Paulo logo

terminasse as colheitas de sua lavoura e recebesse dos

meieiros a parte que lhe tocava.

SPF, SP1: titulo; divida; joven

SPF, SP1: idéa; S. Paulo

80

A safra naquele ano foi satisfatória. Recolhido

ao celeiro o que João considerava preciso à manutenção

da família por um longo prazo, foi o mais levado aos

mercados e reduzido a espécie. Pôde então o mancebo

resgatar a segunda letra e reservar ainda pecúlio que

daria para as despesas da viagem e para necessidades

imprevistas que sobreviessem, em sua ausência, a

Maria.

SPF, SP1: n’aquelle; anno;

satisfactoria

SPF, SP1: celleiro; a manutenção

(Emendou-se.)

SPF, SP1: familia

SPF, SP1: á especie (Emendou-se.)

SPF, SP1: lettra; peculio

SPF, SP1: despezas

SPF, SP1: ausencia

85

90

João, entregando à sua esposa o pecúlio, só

então lhe revelou francamente a sua resolução de ir a

São Paulo, alegando que, sendo de maior vulto as duas

dívidas restantes, só conseguiria solvê-las, fazendo esse

sacrifício. Os prazos eram alongados bastante para o

resgate das letras e, dentro dele, esperava o mancebo no

rico estado obter com sobra o pecúlio preciso para o

pagamento.

SPF, SP1: a sua (Emendou-se.);

peculio

SPF, SP1: revelou-lhe (Emendou-se

ênclise para próclise.)

SPF, SP1: S. Paulo; allegando

SPF, SP1: dividas; solvel-as (,)

SPF, SP1: sacrificio

SPF, SP1: lettras; d’elle

SPF, SP1: Estado, (Emendou-se.);

peculio

Avalia o leitor a dolorosa surpresa que uma tal

notícia causou à jovem. Entretanto, pôde conter-se e

SPF, SP1: surpreza

SPF, SP1: noticia; á joven; Entretanto

( , )

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146

95

conservar-se superior a um golpe tão profundo. João,

mirando-a enternecido, advinhava o que ia pelo coração

de sua querida esposa. Ah! Se fosse possível – pensava

ele, – eu não empreenderia semelhante viagem; mas é

preciso, é indispensável.

SPF, SP1: si; possivel, (Emendou-se.)

SPF, SP1: elle(,); emprehenderia

SPF, SP1: indispensavel

100

105

110

115

O pobre mancebo também sofria; sentia rasgar-

se-lhe o coração ao ver a atitude de sua querida Maria,

que, sem um gesto, sem uma lágrima, parecia meditar.

Considerava que, quando a dor chega ao extremo, é

assim que se manifesta. Desejava ouvir da sua esposa

uma palavra de aprovação ou reprovação da medida

extrema que ia tomar. No primeiro caso, viajaria mais

confortado; no segundo como que obcecado, dominado

pela idéia que o escravizava, incapaz de ceder a uma

influência contrária, acharia argumentos convenientes

que provassem a Maria quanto era urgente dela separar-

se por algum tempo, a fim de pôr sua honra e os seus

créditos a resguardo sem que, entanto, o seu amor por

seus queridos arrefecesse; antes pelo contrário, esse

amor e o interesse pela esposa e pelo futuro de seus

filhos, eram o móvel principal que o impelia ao expátrio

temporário a que se expunha.

SPF, SP1: tambem

SPF, SP1: attitude

SPF, SP1: lagrima

SPF, SP1: approvação

SPF, SP1: idéa

SPF, SP1: influencia; contraria

SPF, SP1: d’ella

SPF, SP1: afim de

SPF, SP1: creditos; emtanto

SPF, SP1: contrario

SPF, SP1: movel; impellia; expatrio

SPF, SP1: temporario

Por fim abalançou-se João a inquirir de sua

querida qual a sua opinião a respeito.

SPF, SP1: Porfim

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147

–Ah! Que posso eu dizer, João? Tu assim

pensas, é porque mais esse sacrifício nos é

indispensável.

SPF, SP1: sacrificio

SPF, SP1: indispensavel

120 –Entretanto, desejo que me digas com toda a

franqueza se achas bom ou mau o que tenho decidido.

–Não refletiste sobre os bons ou maus resultados

que te podem advir da tua ausência?

SPF, SP1: reflectiste

SPF, SP1: ausencia

125

–Tudo pensei, tudo medi e calculei, concluindo

que, sem esse enorme sacrifício, não poderei alcançar a

tranqüilidade feliz que gozávamos e que a fatalidade

veio transtornar.

SPF, SP1: concluindo

SPF, SP1: sacrificio

SPF, SP1: tranquillidade; gosavamos

130

–Então? Por mais dolorosa que me seja essa

separação, só posso é conformar-me com ela e, velando

por nossos filhos e pela boa ordem dos nossos recursos,

pedir sempre a Deus pela tua felicidade como pela

nossa.

SPF, SP1: ella

135

–Tudo isso já sei, Maria, e sabes que não ponho

em dúvida; mas, desculpa-me, minha querida, não estás

sendo franca. Eu desejo que me digas se achas bom ou

mau que eu viaje. Tu tens juízo, e sabes que um

conselho muito vale em tais circunstâncias. A ninguém

revelei esse projeto. Abro-me contigo em primeiro lugar

porque assim devia ser, e muito confio em teu critério.

SPF, SP1: duvida

SPF, SP1: taes; circumstancias;

ninguem

SPF, SP1: projecto; comtigo

SPF, SP1: criterio

140

–João, ninguém pode fazer cálculos seguros SPF, SP1: ninguem; calculos

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148

145

150

sobre o futuro; mas quem se escravizar exclusivamente

a essa idéia, nada conseguirá; sempre irresoluto,

indeciso sobre o caminho que deve seguir, sem fé na

Providência, que nunca deixa de auxiliar a nossa boa

vontade, nunca poderá remediar a sua situação quando

precária. Sei que és honesto, laborioso e confiante em

Deus. Vai, pois, a São Paulo como tens deliberado, pois

sei que a isso te resolves para o nosso bem, e que aqui

deixas preso o teu coração. Coragem e fé em Deus. Eu

cá farei o que puder para corresponder à confiança que

depositas em tua mulher.

SPF, SP1: idéa

SPF, SP1: Providencia

SPF, SP1: precaria

SPF, SP1: Vae; S. Paulo

SPF, SP1: podér; á confiança

155

–Obrigado. Maria, e fica certa de que não me

esquecerei de ti e dos nossos filhinhos um só momento.

Traduziste perfeitamente o meu modo de pensar. Outra

pessoa depois de ti merece-me inteira confiança...

–O professor Serafim – atalhou Maria.

–Ele mesmo. Não posso tomar uma semelhante

resolução sem comunicar-lhe. Deixar de o fazer seria

falta imperdoável. Quanto a Abílio...

SPF, SP1: Elle

SPF, SP1: imperdoavel; Abilio...

160 –Quanto a este, deves apenas despedir-te –

atalhou de novo Maria.

–Certamente. Sei que me oferecerá dinheiro para

viagem...

SPF, SP1: offerecerá

–E tu aceitarás ? SPF, SP1: acceitaras

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149

165

–Não. Se mesmo para pagar-lhe o que devo vou

empreender esta viagem! Depois, Maria, digo-te com

franqueza: em negociações, Abílio é daqueles de quem

se diz “Negócios, negócios; amigos à parte.”

SPF, SP1: Si

SPF, SP1: emprehender

SPF, SP1: Abilio; d’aquelles

SPF, SP1: Negocios, negocios; á

parte

170

–Entretanto, João, Abílio generosamente pagou

as tuas dívidas – aventurou Maria com alguma malícia e

ironia.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: dividas; malicia

175

180

185

–Retira esse “generosamente”, minha querida. É

certo que Abílio se tem mostrado meu amigo; que me

prestou alguns serviços por ocasião do malfadado

inventário, embora, com o seu gênio conciliador, muito

favorecesse aos meus parentes intrusos, mas, como

sabes, é agiota; é desses que “não pregam prego sem

estopa”. Pode ser engano meu, não gosto de fazer

juízos temerários, principalmente quando se trata de um

amigo da infância; mas quem sabe se Abílio, pagando

minhas dívidas antes do vencimento das letras –

certamente com desconto –, não teve em vista, além de

prestar-me um serviço, ter lucro nessa transação? Se

esse seu gesto prova que ele tem confiança no mau

caráter, e que tem como certo pagamento, não deixou de

desgostar-me porque me colocou, pobre roceiro, em

posição de protegido de um homem rico que goza de

conceito como fidalgo de estirpe. É por tudo isso, minha

SPF, SP1: “generosamente” (,)

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: occasião

SPF, SP1: inventario; genio

SPF, SP1: intruzos

SPF, SP1: estopa

SPF, SP1: juizos; temerarios

SPF, SP1: infancia; Abilio

SPF, SP1: dividas; lettras

SPF, SP1: alem

SPF, SP1: transacção; Si

SPF, SP1: elle; caracter

SPF, SP1: collocou

SPF, SP1: gosa

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150

190

195

querida, que me submeti ao enorme sacrifício no qual tu

me foste um auxiliar valioso. Ultimamente, porém,

tenho receio de não conseguir levar a fim o meu

propósito, porque as duas dívidas restantes montam a

quantia tão avultada, que considerei não bastar o

trabalho e a economia que temos levado até aqui; é

preciso mais, e, como os prazos dar-me-ão tempo,

resolvi emigrar, bem à contragosto, confesso. Sei

quanto é arriscado o passo que vou dar, mas a minha

dignidade assim o exige.

SPF, SP1: submetti; sacrificio

SPF, SP1: porem

SPF, SP1: proposito; dividas

SPF, SP1: a contra-gosto (Emendou-

se.)

200

Maria, que durante a longa exposição do marido,

ouvia-o atenta e silenciosa, apesar de sentir o coração

despedaçar-se, heróica como sempre, superior às

provanças que lhe vinham e ao seu querido, com

aparente serenidade de ânimo, aprovou a deliberação do

marido.

SPF, SP1: attenta; apezar

SPF, SP1: heroica; ás provanças

SPF, SP1: apparente; animo;

approvou

205

210

–Compreendo, João; já o compreendia antes que

me desse esta exposição. Sei que a tua resolução vem ao

encontro dos nossos interesses e da nossa dignidade.

Deus jamais deixou de auxiliar propósitos tão dignos.

Tenho inteira fé nEle e espero que, afinal, a vitória será

nossa. Vai, meu amigo, e serás guardado por Jesus e

pela sua Santíssima e Bondosa Mãe.

SPF, SP1: Comprehendo;

comprehendia

SPF, SP1: propositos

SPF, SP1: n’Elle; victoria

SPF, SP1: Vae

SPF, SP1: Santissima

João, no dia seguinte, que era domingo, foi logo

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151

215

220

225

230

235

cedo à casa de Serafim e expôs-lhe a sua nova

resolução. Ao ter conhecimento dela, o velho mestre-

escola surpreendeu-se a princípio; mas depois,

refletindo sobre a extrema pobreza a que supunha ter

chegado aquela pobre família, considerou que o seu

antigo discípulo achava-se tocado da “moléstia” – que

assim denominava a emigração dos sertanejos baianos

para São Paulo – que se propagou desde muitos anos

nestes sertões com intermitentes intensificações e

arrefecimentos. Mas, expostas por João, com

minuciosidade, como já o fizera a Maria, as razões que

o levavam contrariado a tão arriscada aventura, chegou

a desconfiar que o mancebo estava informado da velha

pretensão de Abílio à posse de Maria. Por fim, no correr

da conversação, convenceu-se da realidade da situação:

o nobre orgulho de homem honesto e zeloso da sua

honra e independência era o único móvel que impelia o

seu antigo discípulo a tão aventurosa viagem.

Compreendeu que a indigência que notara no jovem

casal era o esforço econômico da dignidade da tão

honrada gente, e que o ressentimento de João não tinha

por origem ridículo ciúme, pois compreendeu que o

mancebo não sabia da antiga pretensão de Abílio.

Admirou o heroísmo daquele simpático casal e a

SPF, SP1: á casa; exppoz-lhe

SPF, SP1: della

SPF, SP1: surprehendeu-se; pincipio

SPF, SP1: reflectindo; suppunha

SPF, SP1: aquella; familia

SPF, SP1: discipulo; molestia

SPF, SP1: bahianos

SPF, SP1: S. Paulo; annos

SPF, SP1: intermittentes

SPF, SP1: Pretenção; Abilio; á posse;

Porfim

SPF, SP1: independencia; unico;

movel; impellia

SPF, SP1: discipulo

SPF, SP1: comprehendeu; indigencia;

joven

SPF, SP1: economico

SPF, SP1: ridiculo; ciume;

comprehendeu

SPF, SP1: pretenção; Abilio

SPF, SP1: heroismo; daquelle;

sympatico

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152

resignação e coragem de Maria que, varonil como uma

espartana, antepunha ao seu amor a salvação do crédito

e da honra do seu estremecido esposo.

SPF, SP1: credito

240

Enternecido à franca exposição que o mancebo

lhe fez dos enormes sacrifícios a que se submetera para

não ficar indignamente sob a dependência, quase tutela,

do filho de dona Úrsula Serafim chegou a comover-se.

SPF, SP1: á franca

SPF, SP1: sacrificios; submettera

SPF, SP1: dependencia; quasi

SPF, SP1: D. Ursula; Seraphim;

commover-se

245

–Meu filho – disse com certa solenidade, – estou

velho e quase nada mais valho; porém aqui fico em tua

ausência; basta que assim te diga.

SPF, SP1: solemnidade

SPF, SP1: quasi; porem

SPF, SP1: ausencia

250

255

–Eu conto muito com a sua dedicação e sincera

amizade. Por isso mesmo é que o procurei, depois de

Maria, para tudo expor como expus. Vou tranqüilo,

porque aqui fica aquele em quem mais confio, em quem

deposito a confiança que tenho em minha querida, meu

tesouro, aquela que Deus me deu por companheira. Mas

a mulher, por mais forte e varonil que seja, necessita de

um amparo visível; tem a necessidade de quem a proteja

contra a maledicência e os maus juízos, quando isolada

no seu lar, alheia ao que possam pensar os

murmuradores a seu respeito.

SPF, SP1: expuz; tranquillo

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: thesouro; aquella

SPF, SP1: visivel

SPF, SP1: malidicencia; juizos

260

–Quantas vítimas de injustas apreciações não

conhecemos entre nós, meu professor, quando os seus

esposos ou os seus pais se acham ausentes em longas

SPF, SP1: victimas

SPF, SP1: paes

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153

viagens!

265

–Tudo isso é certo; mas – fé em Deus – tua

esposa terá em mim um dedicado e defensor em toda e

qualquer circunstância. Vai sossegado, João, e eu, como

já disse, aqui fico.

SPF, SP1: circumstancia; Vae;

socegado; João (,)

270

–Tenho mais que lhe pedir. Logo que eu remeter

a Maria o dinheiro preciso para o pagamento pontual

das minhas dívidas, o senhor me fará o obséquio de

incumbir-se do resgate das letras. Dar-lhe-ei escrita uma

nota dos prazos estipulados e do mais preciso.

SPF, SP1: remetter

SPF, SP1: dividas; obsequio

SPF, SP1: lettras; escripta

Nesse dia reuniram-se as duas famílias em casa

de João, sendo providenciado tudo quanto preciso para

a sua viagem e ausência, ficando assentado que o

mancebo seguiria o seu destino oito dias depois.

N’esse; familias

SPF, SP1: ausencia

VII

5

Na véspera da viagem de João, já tudo disposto,

foi ele despedir-se de Abílio, mesmo para que seu

credor ficasse ciente que sua dívida seria paga em

tempo e não fizesse mau juízo a seu respeito. Abílio

mostrou-se altamente surpreendido ao ter ciência de que

seu amigo tomara esse alvitre para poder pagar-lhe no

prazo prefixo.

SPF, SP1: vespera

SPF, SP1: elle: Abilio

SPF, SP1: sciente; divida

SPF, SP1: juizo; Abilio

SPF, SP1: surprehendido; sciencia

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10

–Pois que! – dizia fingindo-se triste – Por minha

causa você abalança-se118 a isso?

–Então? É meu amigo e deve considerar justo o

meu propósito. Faço distinção entre o amigo e o credor,

mesmo porque é generoso comigo.

SPF, SP1: proposito; distincção

SPF, SP1: commigo

15

–Prova-me antes não ter confiança em seu velho

amigo.

–Não pense em tal, Abílio. Com essa minha

resolução quero antes corresponder à generosidade que

me dispensou. Não quero ficar por baixo – acrescentou

sorrindo.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: á generosidade

20 –Se sou eu o seu único credor! Se a minha única

idéia foi ser-lhe útil!

SPF, SP1: Si; unico; Si; unica

SPF, SP1: idéa; util

–Não desejo abusar da sua gentileza.

–Abusar! Supõe que me possa passar isso pelo

pensamento?

SPF, SP1: Suppõe

25 –Não passará pelo seu pensamento, estou certo;

mas pelo daqueles que, como disse, vieram afobados

procurá-lo, supondo-me um devedor insolvável.

SPF, SP1: d’aquelles

SPF, SP1: procural-o; suppondo-me;

insolvavel

–Ninguém saberá dos nossos negócios. SPF, SP1: Ninguem; negocios

–Pior. SPF, SP1: Peor.

30 –Quando me perguntarem sobre isso, direi que

estamos quites.

118 Abalançar-se: aventurar-se.

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–Nesse caso obrigo-o a asseverar uma

inexatidão; repousa a minha dignidade sobre uma falsa

informação.

SPF, SP1: N’esse

SPF, SP1: inexactidão; SP1: á minha

(Suprimiu-se crase.)

35 –Será sempre você um cabeçudo incorrigível. SPF, SP1: incorrigivel

–Seja. Bem sabe que, quando se me encasqueta

uma idéia, não há quem dela me demova.

SPF, SP1: idéa; della

40

–Pois bem, seu teimoso. Ofereço-lhe os meus

préstimos. Terá quanto dinheiro for preciso à sua

viagem, cartas para amigos que tenho em São Paulo e a

segurança de que a sua família nada faltará em sua

ausência.

SP1: SEU; SPF, SP1: Offereço-lhe

SPF, SP1: prestimos; á sua

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: familia

SPF, SP1: ausencia.

45

–Para a viagem já tenho o pecúlio preciso, e

deixo a Maria quanto baste para lhe assegurar a

subsistência e de nossos filhos. Quanto às cartas, aceito-

as.

SPF, SP1: peculio

SPF, SP1: subsistencia; acceito-as.

50

Como João tivesse que viajar no dia seguinte

cedo, Abílio tratou logo de escrever as cartas que

entregou ao condiscípulo. Eram credenciais dirigidas a

fazendeiros de pontos diversos do Estado de São Paulo,

as quais faziam linsonjeiras referências ao mancebo e

recomendavam-no como honesto e capaz de dirigir

qualquer serviço, como executá-lo com as suas próprias

mãos.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: condiscilo; credenciaes

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: quaes; referencias

SPF, SP1: recommendavam-n-o

SPF, SP1: execultal-o; proprias

55

João retirou-se não se esquecendo, porém, de SPF, SP1: porem

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156

60

procurar dona Úrsula, de quem se despediu. A velhota

mostrou-se muito interessada pela feliz viagem do

jovem sampauleiro, usando de seus recursos de

dissimulação e hipocrisia, como logo patenteou quando

viu o rapaz pelas costas em tal distância que não

pudesse ouvi-la.

SPF, SP1: d. Ursula

SPF, SP1: joven

SPF, SP1: hypocrisia

SPF, SP1: distancia

SPF, SP1: podésse; ouvil-a

–Muito bem! – disse logo a Abílio. – Está a tal

Maria no campo como muitas outras. Eis em que deu a

fidalguia dos Oliveiras.

SPF, SP1: Abilio

65 –Mãe, tenha compaixão daquela pobre gente;

não critique os males alheios, que bem podem recair

sobre nós.

SPF, SP1: d’aquella

SPF, SP1: rechair

70

75

–Quem mandou aquela desmiolada preferir

aquele bolas a um homem de família como tu? São

sempre assim; conheço a geração daquele casal de

forrecas. A tal moça bonita é bisneta da Rosa que, de

tanto cheirar a torto e a direito, foi crismada pelos filhos

da Candinha com o nome Cheirosa. Era casada, meu

filho; mas... cala-te boca! – e a velha tapava a boca com

a mão. – Do outro, o tal João-ninguém, conheci muito

os pais e os avós; eram uns tabaréus chapados sem

nome nem importância.

SPF, SP1: aquella

SPF, SP1: aquelle; familia

SPF, SP1: d’aquelle

SPF, SP1: chrismada

SPF, SP1: cal’-te; bocca; bocca

SPF, SP1: bocca; João-ninguem

SPF, SP1: paes; tabaréos; SP1: sem

sem (Erro óbvio.)

SPF, SP1: importancia

–Mãe, não convém isso de estar se vangloriando

diante do sofrimento do próximo.

SPF, SP1: convem

SPF, SP1: deante; soffrimento;

proximo.

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80 –E eu estou me vangloriando? Quem fala a

verdade não merece castigo.

–Mas nem todas as verdades convém se dizer. A

senhora gostaria que assim criticassem os nossos

parentes?

SPF, SP1: convem

85

90

–Os nossos parentes! Tu bem sabes que meu avô

foi um capitão-mor que, naqueles tempos, valia mais

que um coronel de hoje. Teu pai era de uma das

principais famílias do baixio. Era irmão de um padre,

tinha um primo doutor e vinha de uma fidalga de

Portugal. Além disso eram todos ricos fazendeiros.

SPF, SP1:capitão-mór; n’aquelles

SPF, SP1: pae

SPF, SP1: principaes; familias

SPF, SP1: Alem; d’isso

–Mas o povo conta coisas horríveis do tal

capitão-mor.

SPF, SP1: cousas; horriveis

SPF, SP1: capitão-mór.

–Inveja, pura inveja de maledicentes.

95

–Assim, também o que dizem da tal Rosa pode

ser invenção da maledicência.

SPF, SP1: tambem

SPF, SP1: maledicencia.

–O que! Pois se eu ainda a conheci! Estava

idosa, mas ainda descarada.

SPF, SP1: si

SPF, SP1: edosa

–Admito que seja verdade, mas dona Maria é

uma senhora virtuosa.

SPF, SP1: Admitto; d. Maria

100

–Virtuosa! É porque ainda não chegou o tempo

de mostrar-se. Meu filho, é certo que “filho de peixe é

peixinho”. A tal Maria não passa de uma sonsinha. O

pai, um banana que não sabia governar a filha, depois

SPF, SP1: pae

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105

de cair na miséria e desprestígio, deu-lhe uma boa

mestra, a Virgínia, que misturada com tal virtuosa

menina, ensinou-lhe bem boas coisas.

SPF, SP1: cahir; miseria; desprestigio

SPF, SP1: Virginia

SPF, SP1: cousas

–Cuidado com a sua língua, minha mãe.

–Estamos em família; não há perigo.

–Mas as paredes têm ouvidos.

SPF, SP1: lingua

SPF, SP1: familia

110 –Olha, Abílio; não faz mal que eu te diga: a

Maria é o retrato vivo da Rosa, e não posso negar que é

um peixão como foi a bisavó. Em breve os concorrentes

aparecerão, e, antes que outro vá adiante...

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: apparecerão; adeante

115

120

125

E a velhota, fazendo reticências com seu riso

cínico peculiar, sabia que o filho, habilíssimo em

contrafazer como ela os seus planos e idéias,

compreenderia aquela ignóbil sugestão. O filho, que por

sua vez, compreendendo-a, se guardava um certo recato

diante de sua mãe e com ela não concordava

expressamente, era porque o retinha um resto de

respeito, podemos dizer instintivo, em relação àquela

que lhe deu o ser. A bronca dona Úrsula, ao vê-lo

silencioso e impassível às suas veladas e infames

insinuações, supunha que o “ingênuo menino” não a

compreendia e mesmo, se chegasse a compreendê-la,

era um tímido e medroso.

SPF, SP1: reticencias

SPF, SP1: cynico; habilissimo

SPF, SP1: contra-fazer; ella; idéas

SPF, SP1:comprehenderia; aquella;

ignobio; suggestão

SPF, SP1: comprehendendo-a; si

SPF, SP1: deante; ella

SPF, SP1: instinctivo; áquella

SPF, SP1: d. Ursula; vel-o

SPF, SP1: impassivel; ás suas

SPF, SP1: suppunha; ingenuo

SPF, SP1: comprehendia;

comprehendel-a

SPF, SP1: timido

E era essa mãe, que devia ser o anjo da guarda

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130

135

de seu filho para encaminhá-lo ao dever de uma conduta

moral, quem o incitava a praticar uma infâmia, a

realizar uma idéia reprovável, encorajando-lhe os mais

infames propósitos cujos germes sabia existirem no seu

ânimo perverso e repulsivo! Adivinhando o ardente

desejo de Abílio, a paixão desenfreada que laborava em

seu sentimento e pensamento, vinha ao seu encontro a

satânica e má mulher, chegando a ponto de revelar um

crime, que seu filho ignorava, e planos criminosos que

ainda tinha em mente.

SPF, SP1: encaminhal-o; conducta

SPF, SP1: infamia

SPF, SP1: realisar; idéa; reprovavel

SPF, SP1: propositos

SPF, SP1: animo

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: satanica; ao ponto de

(Emendou-se.)

140

–Abílio, vocês, moços, são uns moleirões; são

uns maricas que desmentem o valor dos antigos. O

caminho vai se abrindo dia a dia para tua conquista, e

eu já consegui afastar a velha do teu caminho. Deu-me

trabalho mas foi-se andando...

SPF, SP1: Abilio, vocês (,); moços (,)

SPF, SP1: vae

–Que... Foi a senhora??!! – Exclamou Abílio

como estarrecido.

SPF, SP1: Abilio

145 –Que dúvida! – obtemperou a infame velha com

o seu sorriso – Era preciso...

SPF, SP1: duvida

–Mãe ...mãe! ...

–Que tem isso? Não foi tão bom para ti? Foi-se

ela, agora vai o João... mais tarde irá mais outro...

SPF, SP1: ella; vae

150

–Mãe, isso é uma imprudência que acaba nos

comprometendo. Pense bem. Certamente houve um

SPF, SP1: Mãe (,); imprudencia;

compromettendo

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160

intermediário... SPF, SP1: intermediario…

155

–Qual filho! Eu sei fazer as coisas. Não dizem

que os presentinhos alimentam as amizades? Os

presentinhos não falam e, quando se quer, alimentam

outras coisas...

SPF, SP1: cousas

SPF, SP1: allimentam

SPF, SP1: allimentam; cousas

E dona Úrsula, no seu hábito, sorria de boca

fechada como quem se reconhecia vitoriosa.

SPF, SP1: d. Ursula; habito; bocca

SPF, SP1: victoriosa

160

–Compreendo, mãe – disse Abílio mais

tranqüilo – mas esses presentinhos, que não falam,

quantas vezes não têm sido uma prova, um testemunho

do crime? Não convém continuar com esses processos

perigosos para quem recebe os presentes como para

quem os manda.

SPF, SP1: Comprehendendo; Abilio;

tranquillo

SPF, SP1: convem

165

–Ora! Alguém ao menos desconfiou que a velha

Senhorinha embarcou119 antes do tempo? O mesmo

Serafim, que era um sabichão, comeu a peta120. O João,

esse coitado! é um banana. Não é ele tão amigo teu?

Não foi o caso tão bom para ti?

SPF, SP1: Alguem

SPF, SP1: EMBARCOU

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: elle

170

–É certo; mas se no caso de dona Senhorinha

fomos felizes, em outro podemos fracassar. Não faça de

agora por diante sem me consultar.

SPF, SP1: si; d. Senhorinha

SPF, SP1: deante

–A gente vai mudando. Hoje por uma forma;

amanhã por outra.

SPF, SP1: vae

119 Embarcou: morreu. 120 Peta: mentira.

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161

175

–Bem; mas de outra vez não se meta em tais

enrascadas sem me ouvir.

SPF, SP1: metta; taes

180

185

Abílio já conversava com o ânimo algum tanto

serenado quanto ao caso de dona Senhorinha; mas ainda

receava, temendo que sua mãe se metesse em outra

empresa como essa, porque, como pensava, “tantas

vezes vai o cântaro121 à água, que por fim se quebra”.

Conhecia o gênio de sua mãe aliado a uma grande

ignorância dos modernos meios de conseguir-se

eliminações como a de dona Senhorinha. Quando

menos, temia ser desmascarado como se deu por

ocasião da carta falsa. Sendo ele o principal interessado

nesse negócio, afinal recaíriam as culpas sobre sua

pessoa, e por forma alguma lhe convinha denunciar a

cúmplice ou principal criminosa, que, em todo caso, era

sua mãe.

SPF, SP1: Abilio; animo

SPF, SP1: d. Senhorinha

SPF, SP1: mettesse

SPF, SP1: empreza

SPF, SP1: vae; á agua; porfim

SPF, SP1: genio; alliado

SPF, SP1: ignorancia

SPF, SP1: d. Senhorinha

SPF, SP1: occasião; elle

SPF, SP1: n’esse; negocio

SPF, SP1: recahiriam; convinha-lhe

(Emendou-se ênclise para próclise.)

SPF, SP1: cumplice

190

195

Dona Úrsula herdava o caráter de seu avô,

capitão-mor, cuja fama de temível e autoritário mandão

que cometeu impune toda a sorte de atrocidades chegou

a tornar-se lendária e ainda causa horror aos modernos

que ouvem o seu relato. Mas o capitão-mór viveu nos

tempos ominosos122 em que prepotentes como ele

podiam agir às escâncaras sem que alguém lhes fosse às

SPF, SP1: D. Ursula; capitão-mór

SPF, SP1: temivel; autoritario

SPF, SP1: commetteu; attrocidades,

(Emendou-se.)

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: ás escáncaras;alguem; ás

mãos

121 Cântaro: vaso grande bojudo. 122 Ominiso: nefasto.

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162

mãos. Hoje, pensava, consegue-se o mesmo, mas por

caminhos outros, ocultos pela astúcia e insídia. Mesmo

assim, é preciso muita habilidade e vigilância.

SPF, SP1: occultos; astucia; insidia

SPF, SP1: vigilancia

200

205

210

215

Abílio, cauto ao exagero quando urdia os seus

planos de maldade, era capaz – que perversidade não

lhe faltava – de pôr em execução atos nefandos como o

envenenamento de dona Senhorinha. O leitor disso não

duvidará, recordando-se da cena trágica que se deu

entre ele e a mulata Umbelina; mas era inteligente, mais

ou menos instruído, conhecia intimamente a sociedade

dos grandes centros civilizados e os modernos

processos de iludir, agir às ocultas e fazer o mal ao

próximo sem ser pressentido. Além disto tinhas relações

estreitas com cavalheiros distintos que o tinham como

honesto e incapaz de cometer atos indignos e

reprováveis. Tinha, como se diz, uma reputação a zelar,

e temia perdê-la. Por isso era escrupuloso nos seus

processos de insídia, e receiava que sua mãe, grosseira e

violenta, ainda alheia aos costumes modernos, e

imbuída de antigos preconceitos de fidalguia e riqueza,

cometesse uma leviandade fiada na sua posição, que

supunha torná-la imune à ação da Justiça e, quando

menos, ao repúdio da opinião. O digno filho de dona

Úrsula, somente quando bem firme e seguro no que de

SPF, SP1: – Abilio

SPF, SP1: actos

SPF, SP1: d. Senhorinha

SPF, SP1: duvidará (,); scena; tragica

SPF, SP1: elle; intelligente

SPF, SP1: instruido

SPF, SP1: illudir; ás occultas

SPF, SP1: proximo; presentido;

Alem; d’isto

SPF, SP1: distinctos

SPF, SP1: commeter; actos;

reprovaveis

SPF, SP1: prendel-a

SPF, SP1: insidia

SPF, SP1: imbuida

SPF, SP1: commettesse

SPF, SP1: suppunha; tornal-a

SPF, SP1: immune; á acção

SPF, SP1: repudio; d. Ursula

SPF, SP1: ante-mão

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163

220

antemão preparava pacientemente, poderia praticar uma

violência, assim mesmo valendo-se de algum

instrumento que agisse inconscientemente como se

tratasse dos seus próprios interesses.

SPF, SP1: violencia

SPF, SP1: proprios

225

230

235

Retirando-se para o seu gabinete, ia meditativo.

O receio que a princípio o assaltara ao saber do crime

de sua mãe, receio que assumiu as proporções do temor,

desapareceu do seu espírito logo que teve explicação do

meio empregado, e calmamente estudou as

conseqüências dele, que, antes, fora-lhe vantajoso, pois

conseguira uma tal ou qual escravização do esposo de

Maria, a quem reduzira a pobreza e condição de seu

devedor a ponto de emigrar. Vangloriava-se de ter, por

sua habilidade, sabido “agarrar a ocasião pelos

cabelos”, de conseguir tanto, conservando a antiga

amizade do seu condiscípulo e, até, a sua gratidão por

serviços que lhe prestara e que, na realidade, eram mais

em favor do protetor do que do protegido.

SPF, SP1: principio

SPF, SP1: desappareeceu; espirito

SPF, SP1: consequencias; d’elle

SPF, SP1: ao ponto de (Emendou-se

conforme regência.)

SPF, SP1: occasião

SPF, SP1: condiscipulo

SPF, SP1: protector

240

Tudo ia bem, e o golpe dado por sua mãe foi

aproveitado. Restava-lhe agora o futuro, e era preciso

trabalhar para a conquista da esposa abandonada, o

ponto culminante dos seus ardentes desejos. Lembrou-

se então de um meeiro que trabalhava no sítio de João e

fora ali admitido sob sua recomendação. Era um sujeito

SPF, SP1: sitio

SPF, SP1: alli; admittido;

recommendação

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245

250

ignóbil, servil e que sempre se lhe mostrou muito

dedicado. Quando Abílio o apresentou a João, alegando

ser o tipo um bom trabalhador e honesto, fê-lo

maliciosamente esperando que algum dia ser-lhe-ia útil.

Sempre taciturno, trabalhando sempre com afã, esse

meeiro conquistou a confiança de João porque

desempenhava o seu trabalho com perícia e, por ocasião

de pagar a renda, foi de uma correção a toda prova.

Tinha, pois, Abílio um bom intermediário que lhe

serviria a olhos fechados.

SPF, SP1: ignobil

SPF, SP1: Abilio; allegando

SPF, SP1: typo; fel-o

SPF, SP1: util

SPF, SP1: afan

SPF, SP1: pericia; occasião

SPF, SP1: correcção

SPF, SP1: Abilio; intermediario

255

260

265

Chegara o tempo de aproveitar aquele homem,

que não deixava de aparecer aos domingos e dias de

guarda na sua residência, mostrando-se-lhe muito grato

pela colocação que lhe dera e pela amabilidade com que

era tratado. Algumas vezes procurara-o pedindo-lhe

dinheiro emprestado, e Abílio, como se tratava de

pequenas quantias, não deixou de servi-lo, entanto

estudando-lhe o caráter por meio de ligeiras palestras e

habilidosas indagações. Convenceu-se, pois, que

dispunha de um maleável que muito lhe servia,

restando-lhe somente procurar o meio de servir-se dele

para os seus fins.

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: apparecer

SPF, SP1: residencia (,)

SPF, SP1: collocação

SPF, SP1: abilio

SPF, SP1: sevil-o; emtanto

SPF, SP1: caracter

SPF, SP1: maleavel

SPF, SP1: d’elle

Era preciso primeiro aproximar-se muito de

Maria sob qualquer pretexto. A ausência de João

SPF, SP1: approximar-se

SPF, SP1: ausencia

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270

275

autorizava-o a freqüentar sua esposa, como amigo

dedicado que era do seu condiscípulo para fazer-lhe

oferecimento de seus ofícios em caso de necessidade. O

único tropeço que ainda existia no seu caminho era o

velho mestre-escola; mas Serafim morava distante de

João e, além disso, não teria que estranhar que um

amigo da casa visitasse a senhora e procurasse prestar

os seus serviços em caso de necessidade. Serafim era

arguto; mas ele também o era. Enfim, veria Abílio o que

devia fazer depois de um estudo acurado e de traçado o

seu plano.

SPF, SP1: frequentar

SPF, SP1: condiscipulo

SPF, SP1: offerecimento; officios

SPF, SP1: unico

SPF, SP1: alem; extranhar

SPF, SP1: elle; tambem; Emfim;

Abilio

VIII

5

10

À noite Serafim foi com a família mais uma vez

dizer adeus ao seu querido discípulo e amigo que

viajaria de madrugada. Já o bondoso mestre-escola

havia insistido com João que não viajasse a pé,

chegando a oferecer-lhe uma boa mula arreada; mas o

mancebo por forma alguma aceitou a sua proposta,

alegando que seria o animal um trabalho que retardaria

as suas marchas diárias; que se sentia bem disposto para

vencer as etapas e, mesmo, que um sampauleiro deve

chegar em São Paulo com os trajos característicos,

mostrando logo que é um homem disposto ao trabalho e

SPF, SP1: Á noite; familia

SPF, SP1: discipulo

SPF, SP1: offerecer-lhe

SPF, SP1: acceitou

SPF, SP1: allegando

SPF, SP1: diarias

SPF, SP1: S. Paulo; caracteristicos

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mostrando logo que é um homem disposto ao trabalho e

às dificuldades da vida, como os antigos bandeirantes.

SPF, SP1: ás difficuldades

15

20

25

30

Apesar da grande tristeza que invadira o lar,

Maria, a nossa conhecida heroína, conservava-se

aparentemente calma; mas quem a conhecia como João

e Serafim, bem avaliava quanta dor a pobre Maria

sopitava em seu coração de esposa e mãe. Serafim, não

comunicativo como sempre, conservava-se sério, e

limitava-se a conversar sobre a viagem do seu bom

amigo, a quem dava proveitosos conselhos de homem

prático que, através de sua existência, tinha provado

amarguras e dificuldades que o haviam retemperado

para as lutas da vida. Não se esqueceu de uma só das

coisas e preocupações indispensáveis em tão extensa

viagem como a que seu antigo discípulo ia empreender;

mas João tinha sido previdente e fez uma resenha de

tudo quanto levava. Notou, porém, Serafim que ao

viajante era preciso uma boa arma para sua defesa; pois

quem atravessa tão grandes e desconhecidos territórios,

pode encontrar indivíduos malvados e tem que se

defender de agressões injustas.

SPF, SP1: apezar

SPF, SP1: heroina

SPF, SP1: apparentemente

SPF, SP1: communicativo; serio

SPF, SP1: pratico; atravéz; existencia

SPF, SP1: difficuldades; retemperaram

SPF, SP1: luctas; cousas

SPF, SP1: indispensaveis

SPF, SP1: discipulo; emprehender

SPF, SP1: previdente,

SPF, SP1: porem

SPF, SP1: territorios

SPF, SP1: individuos

SPF, SP1: aggressões

–Levo uma boa arma, professor: a prudência –

disse João possuído de fé em Deus e na sua conduta.

SPF, SP1: prudencia

SPF, SP1: conducta.

35

–Não basta, João – retorquiu Serafim. – Há

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indivíduos que só atendem a um argumento positivo e

material, e que somente respeitam a quem traz um Broly

na cinta. Pensa bem.

SPF, SP1: individuos; attendem

SPF, SP1: BROLY

40

–Nesse caso, como fazer, se não tenho uma arma

nessas condições?

SPF, SP1: N’esse; si

SPF, SP1: n’essas

–Tenho duas e cedo-te uma que sempre trago

comigo, às vezes que saio de casa.

SPF, SP1: commigo

João aceitou o conselho e a arma que seu mestre

lhe ofereceu com a suplementar provisão de cargas.

SPF, SP1: acceitou

SPF, SP1: offereceu

45

50

55

Serafim retirou-se com a família, mas prometeu

vir assistir à saída do mancebo. João dormiu mal e, logo

às três horas da madrugada, estava de pé. Pulquéria, que

andava muito triste deste que soube da resolução do

“senhor moço”, já se achava na cozinha preparando a

refeição que o viajante devia tomar. A boa velha não

sabia ocultar como Maria o grande pesar que sentia e,

como todos os males que vinham à família desde a

morte de dona Senhorinha atribuía a Abílio, aquele

“traste123 ruim” a quem votava antipatia, não deixava de

esconjurá-lo e volta e meia resmungando impropérios.

SPF, SP1: familia; prometteu

SPF, SP1: á sahida

SPF, SP1: ás tres

SPF, SP1: Pulcheria

SPF, SP1: occutar; pezar

SPF, SP1: á familia

SPF, SP1: d. Senhorinha;attribuia;

Abilio

SPF, SP1: aquelle; antipathia

SPF, SP1: esconjural-o

SPF, SP1: improperios.

–Ô coisa ruim! – dizia. – Não foi senão ele que

meteu isso na cabeça de ioiô; mas Deus não dorme.

Deixa estar, que eu apronto aquele sem vergonho.

SPF, SP1: sinão; elle

SPF, SP1: metteu; Yoyô

SPF, SP1: aprompto; aquelle;

SEMVERGONHO.

123 Traste: pessoa de mau caráter, sem préstimo.

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60

65

70

75

80

E a pobre preta terminava seu sermão

derramando lágrimas copiosas. O ódio instintivo que

votava a Abílio e que naquele momento recrudescia,

não impedia de preparar a capricho a refeição destinada

ao viajante. Era a sua despedida; que não sabia por

quanto tempo não prepararia um quitute para “sinhô

João.” Ela bem sabia que São Paulo era “um fim de

mundo” pois, quando moça, teve parente e conhecidos

que foram vendidos para as “matas do café” e nunca

mais tivera notícias deles. Quantos pobrezinhos não

foram chorando “barra a fora” deixando pai, mãe,

irmãos! Quantas mães apanhavam a força o caminho

daquela terra, levando os filhinhos encanchados, outras

deixando-os cá! Quantas não morreram! Ah! Justiça do

Céu! Esses mesmos brancos que não tiveram dó dos

seus negros; que os vendiam como gado, hoje estão

pagando em seus filhos e netos que vão no mesmo

caminho, sofrendo como fizeram sofrer, passando por

toda sorte de calamidades para, na terra do café, serem

governados como escravos. O castigo está aí, e não o vê

quem não quer.

SPF, SP1: lagrimas; odio; instictivo

SPF, SP1: Abilio; n’aquele

SPF, SP1: Ella; S. Paulo

SPF, SP1: mattas

SPF, SP1: noticias; delles

SPF, SP1: pae

SPF, SP1: a força; d’aquella

SPF, SP1: Céo

SPF, SP1: soffrendo; soffrer

SPF, SP1: para (,)

SPF, SP1: ahi

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169

85

–Sinhô João, coitadinho! Tão bom, tão caridoso,

nunca fez dessas coisas com os pobres dos negros; nem

ao menos era nascido naquele tempo; mas seu avô fez

muito mal, surrou e vendeu muito negro, para agora o

pobrezinho estar pagando. Seu Abílio também vem a

pagar o que sua mãe, seu pai e ele mesmo fizeram. Se

não estão pagando agora, é porque o tempo ainda não

chegou. –Todos estes pensamentos amarguravam a

pobre crioula.

SPF, SP1: cousas

SPF, SP1: n’aquelle

SPF, SP1: mau

SPF, SP1: Abilio; tambem

SPF, SP1: pae; elles (Erro óbvio.); Si

SPF, SP1: creoula

90

´95

100

Servida a refeição, chegou Serafim. Vinha triste

e meditativo. Quase não dormira pensando nas muitas

dificuldades que poderiam sobrevir a Maria e seus

filhinhos na ausência do chefe do casal. Vinha-lhe à

idéia o dito popular; “Sabe-se quando se sai, ignora-se

quando se volta.” Quantos como João correram atrás da

fortuna que anteviam em São Paulo, esperando voltar

munidos dos meios que desejavam adquirir para porem

em ordem os seus negócios, e não conseguiram ao

menos recursos para a viagem de retorno, ou tiveram

que voltar piores do que foram! Quantos lá chegaram

em ocasião inoportuna e, perambulando pelas fazendas

sem encontrar colocação, e afinal reduzidos à miséria,

doentes e paupérrimos em terra estranha, só alcançaram

uma desilusão terrível que os arrastou ao desespero!

SPF, SP1: Quasi

SPF, SP1: difficuldades

SPF, SP1: ausencia; á idéa

SPF, SP1: sahe (,)

SPF, SP1: atraz

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: pôrem

SPF, SP1: negocios

SPF, SP1: peores

SPF, SP1: occasião; inopportuna

SPF, SP1: collocação; á miseria

SPF, SP1: pauperrimos; extranha

SPF, SP1: desillusão; terrivel

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105

110

Quantos de ânimo bondoso, de uma boa fé e

liberalidade como João, não foram explorados naquele

meio por astutos e maliciosos! Quantos ainda, voltando

com o resultado pecuniário do seu rude maiorejar, não

foram assaltados na estrada e perderam o seu dinheiro e

às vezes a vida!

SPF, SP1: animo

SPF, SP1: n’aquelle

SPF, SP1: pecuniario

SPF, SP1: ás vezes

115

De fatos semelhantes estava Serafim inteirado

por inquéritos que fazia com segurança, ouvindo

testemunhos que lhe mereciam inteira fé. Homem

prático que era, tanto amava o seu discípulo e amigo e

conhecia-lhe o gênio, que temia o futuro da sua

odisséia. Conversando com João no momento da sua

partida, todos os inconvenientes que lhe vinham à idéia,

lembrava-lhe a puridade, para não afligir Maria,

aconselhando-lhe precauções mais severas.

SPF, SP1: factos; Seraphim

SPF, SP1: inqueritos

SPF, SP1: pratico; discipulo

SPF, SP1: genio

SPF, SP1: odysséa

SPF, SP1: á idéa (,)

SPF, SP1: á puridade; afflingir

120

125

Afinal chegou o momento da separação. Ao

alcear o saco às costas, João abraçou a sua querida

esposa, mal retendo ambos a torrente de lágrimas que

procurava romper a sua energia. Pulquéria, de joelhos,

abraçou as pernas do seu “sinhô moço” lavada em

lágrima, sem poder proferir uma palavra. Serafim,

apesar de forte, tinha os olhos úmidos, conseguindo mal

se conter diante do quadro que presenciava, e evitando

falar para não denunciar o que lhe ia pelo coração.

SPF, SP1: sacco; ás costas

SPF, SP1: lagrimas

SPF, SP1: Pulcheria

SPF, SP1: lagrima

SPF, SP1: apezar; humidos

SPF, SP1: conter-se; deante

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130

–Meus filhos! – exclamou João. – Quero

despedir-me também deles.

P1, SPF: tambem; delles

135

As criancinhas foram trazidas, estremunhantes, a

Corina com os olhos de espantada diante do estranho

quadro que se lhe apresentava; o João, o menor, a

choramingar por ter sido desperto às pressas.

Estreitando-os nos seus braços, o pobre pai não pôde

conter as lágrimas.

SPF, SP1: creanças

SPF, SP1: deante; extranho

SPF, SP1: ás pressas

SPF, SP1: pae

SPF, SP1: lagrimas

140

145

–Adeus, meus queridos anjinhos! – dizia

soluçando. – Deixo-vos, meu precioso tesouro, à guarda

do anjo de bondade que, para mim, representa Deus na

terra: minha querida companheira. Professor, Pulquéria,

Maria, peçam a Deus por mim, vocês em quem eu

confio. – Todos choravam; as lágrimas, como punhos,

romperam os diques das conveniências, brotando

copiosas dos olhos de todos os assistentes dessa tocante

cena.

SPF, SP1: thesouro; á guarda

SPF, SP1: Pulcheria

SPF, SP1: lagrimas

SPF, SP1: conveniencias (,)

SPF, SP1: d’essa

SPF, SP1: scena

150

Parecerá ao leitor exageramos. Não é assim,

porém. Para muitos sampauleiros já por estarem afeitos

à extensa viagem que João ia empreender, já por terem

o coração pouco ou nada afetivo, quebrados os

sagrados laços que os prendem ao seu berço, à sua

esposa, aos seus filhos, a uma viagem destas não causa

emoção alguma; podemos até avançar que

SPF, SP1: porem; afflitos

SPF, SP1: á extensa; emprehender

SPF, SP1: affectivo

SPF, SP1: á sua

SPF, SP1: d’estas

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155

160

165

emoção alguma; podemos até avançar que

experimentam certa alegria estes últimos, considerando-

se, desde que se ausentam do lar, isentos das

responsabilidades e deveres domésticos que até então

pesavam sobre os seus ombros. Estes infelizes

degenerados são tais por ignorância, ausência de uma

educação regular, nenhuma compreensão dos deveres

sociais e a péssima influência mesológica derivada dos

tristes exemplos de indolência, desídia e indiferença das

classes que se colocam à frente da sociedade para

tirarem proveito, para exercerem o mando mais

reprovável de senhores medievais, para acumularem

grandes fortunas, pouco se lhes dando que se

desorganize a família humilde, do poviléu124,

justamente da classe a mais numerosa da qual depende

o progresso econômico e a felicidade do meio.

SPF, SP1: ultimos

SPF, SP1: se (,)

SPF, SP1: domesticos

SPF, SP1: hombros

SPF, SP1: taes; ignorancia; ausencia

SPF, SP1: comprehensão

SPF, SP1: sociaes; pessima; influencia,

mesologica

SPF, SP1: indolencia; desidia;

indifferença

SPF, SP1: collocam; á frente

SPF, SP1: reprovavel; mediavaes;

accumularem

SPF, SP1: familia; poviléo

SPF, SP1: economico

170

João arrancou-se dos braços de sua esposa e dos

seus queridos, temendo fraquejar, e sumiu-se no escuro

da madrugada, tendo como testemunha da sua dor o

firmamento ainda enegrecido como uma crepe125

tauxiada de fúlgidos brilhantes.

SPF, SP1: ennergecido

Maria, prostrada, não pôde reter o pranto. Então

é que a realidade da sua situação mostrava-se-lhe mais

124 Poviléu: ralé. 125 Crepe: fita ou tecido negro que se usa em sinal de luto.

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175

180

clara e patente. A esperança, que nos mantém mais ou

menos firme, antes de realizar-se o que tememos, apesar

de vacilante, como que se esvai por fim em casos como

este. Pulquéria, acocorada a um canto, contemplava sua

“iaiazinha” através das lágrimas que lhe ensopavam o

rosto cor de ébano, brilhante à luz da candeia. Serafim,

por fim, disse:

SPF, SP1: mantem

SPF, SP1: realisar-se

SPF, SP1: apezar; vacillante; esvae;

porfim

SPF, SP1: Pulcheria; accocorada

SPF, SP1: “yayazinha”; atravéz;

lagrimas

SPF, SP1: ebano; á luz; Seraphim

SPF, SP1: porfim (,)

185

190

195

–Minha comadre, sei que tem coragem para

encarar com heroísmo a soledade que fica. Ela,

entretanto, tenho fé em Deus, é o preparo rude do futuro

regozijo, quando João voltar tendo colhido bom

resultado da aventurosa viagem que hoje encetou. João

é honesto, inteligente e laborioso, qualidades que em

São Paulo são muito apreciadas no baiano, como estou

informado. A saudade que nos deixou é muito justa e

muito natural; mas Deus, que não deixa de auxiliar as

boas e louváveis intenções de suas criaturas, amparará o

nosso querido ausente, pois são nobres e dignos os seus

propósitos. Se outros têm sido infelizes em São Paulo, é

sempre por sua própria culpa. Uns conduzem-se mal e

desacreditam-se; outros trabalham e ganham, mas são

esbanjadores. Um homem laborioso e econômico como

João não deixará de ganhar e fazer um bom fundo de

reserva que muito lhe servirá no futuro para garantir a

SPF, SP1: heroismo; Ella

SPF, SP1: regosijo

SPF, SP1: intelligente

SPF, SP1: S. Paulo; bahiano

SPF, SP1: louvaveis; creaturas

SPF, SP1: propositos; Si; S. Paulo

SPF, SP1: propria

SPF, SP1: economico

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200

205

independência almejada. Além de honesto e laborioso

que é, como eu já disse, ele já deu provas a minha

comadre de que tem a força de vontade precisa para

gastar somente o estritamente preciso; é econômico.

Conversei bastante com ele a respeito da sua viagem e

vi que tomará as precauções precisas para que o seu

intento não fracasse, chegando até a escrever como a

senhora talvez saiba, a norma de vida que seguirá na sua

ausência.

SPF, SP1: independencia; Alem

SPF, SP1: é (,); elle

SPF, SP1: estrictamente

SPF, SP1: economico; elle

SPF, SP1: ausencia

–De tudo isso quanto diz estou certa; mas o

futuro?... ah! o futuro!

210

215

220

–O futuro pertence a Deus. Não podemos prevê-

lo exatamente; mas calculá-lo aproximadamente, tendo

por estudos os antecedentes e por complemento esse

mesmo Deus, que é a Bondade, o Amor e a Justiça.

Tenhamos confiança em Deus e pratiquemos o bem

entregando-nos inteiramente a Ele, que nunca deixa de

recompensar o merecimento. Deixemos, porém, este

assunto. Seja qual for o futuro, confiantes em Deus e

em nós próprios, aguardêmo-lo tranqüilos e façamos o

que nos compete. Minha comadre tem inteira confiança

nos seus meeiros durante a ausência do seu marido?

SPF, SP1: prevel-o; exactamente;

calculal-o; approximadamente (,)

SPF, SP1: Elle

SPF, SP1: porem

SPF, SP1: assupmto

SPF, SP1: proprios; aguardemol-o;

tranquillos

SPF, SP1: ausencia

–Sempre mereceram a confiança de João. São

laboriosos, honestos nas suas prestações e nunca

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175

225

tivemos que lhes exprobar falta alguma. Há

especialmente um, o Roberto, que prima pela sua

sinceridade e exação.

SP1: exacção

–Conheço-os a todos três, e justamente o que

menos me parece agradável é o que a comadre

reconhece como o mais sério e honesto.

SPF, SP1: tres

SPF, SP1: agradavel

SPF, SP1: serio

–Oh! Logo esse?!

230

–É sério de mais. O homem sério que me agrada

é aquele que apesar de sisudo, mostra-se alegre e

comunicativo. O Roberto é mudo como uma pedra, não

sorri...

SPF, SP1: serio; serio

SPF, SP1: aquelle; apezar; sizudo

SPF, SP1: communicatrivo

235

–Mas cumpre todos os seus deveres e obrigações

com uma lisura digna de louvores.

–Desculpe o que digo a respeito do Roberto. São

caturrices de velho e não desejo que por ora as tome ao

sério.

SPF, SP1: serio

240

–Por ora? – inqueriu Maria, percebendo a

sutileza de Serafim.

SPF, SP1: Seraphim

–Sim por ora; porque desde que se ausentou

João, podem as coisas mudar de aspecto. Entanto,

ponhamo-nos de observação, e não mude o modo de

tratar esses rendeiros. Serei vigilante como um argos.

SPF, SP1: cousas; Emtanto

245

Roberto era o meeiro colocado no sítio de João

mediante pedido e recomendação de Abílio. Serafim

SPF, SP1: collocado; sitio

SPF, SP1: recommendação; Abilio

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250

255

260

sabia disso e, quando João teve que admiti-lo, consultou

o mestre-escola que, sempre desconfiado, não quis,

entretanto, aconselhar desastradamente. Contudo

procurou conhecer o novo agregado, cuja seriedade

exagerada e taciturnidade achou singulares e dignas de

um estudo discreto e minucioso. Conhecedor que era do

gênio astucioso e hipócrita de Abílio, como dos seus

antecedentes quando pretendente à mão de Maria, o

velho mestre-escola achou nestas razões e na

apresentação do meeiro Roberto uma coincidência

muito significativa, e, desde logo, desconfiou do

apresentado e do apresentante. Procurando com

habilidade conhecer o meeiro, debalde tentou conseguir

dele próprio informações sobre os seus antecedentes; o

homem respondia por monossílabos quando era

abordado, chegando às vezes a denunciar, por leves e

quase imperceptíveis gestos, uma certa má vontade. A

desconfiança de Serafim mais se acentuou.

SPF, SP1: d’isso; admittil-o

SPF, SP1: quiz

SPF, SP1: Comtudo

SPF, SP1: aggregado

SPF, SP1: genio; hypocrita; Abilio

SPF, SP1: á mão

SPF, SP1: coincidencia

SPF, SP1: d’elle; proprio

SPF, SP1: monosylabos

SPF, SP1: ás vezes

SPF, SP1: quasi; imperceptiveis

SPF, SP1: accentuou-se (Emendou-se

ênclise para próclise.)

265

270

Ao demais, como pensava o mestre-escola, se

Abílio descobria em Roberto as boas qualidades que o

recomendavam, porque, em lugar de colocá-lo em suas

terras – pois também ele admitia meeiros e agregados, e

possuia grandes tratos de terreno ótimos para cultura –

vinha pedir a João admiti-lo como seu meeiro?

SPF, SP1: si

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: recommendava; collocal-o

SPF, SP1: tambem; elle; admittia;

aggregados

SPF, SP1: tractos; optimos

SPF, SP1: admittil-o

Page 177: ROMANCE DE JOÃO GUMES - Ufba Reis.pdf · Fig. 6: Folha de rosto do primeiro volume do romance O Sampauleiro. 41 Fig. 7: ... SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929. SPF O

177

275

280

285

Serafim nem de leve tocou nisso com alguém;

guardou consigo no maior sigilo as conjecturas que lhe

vieram à idéia quanto a Roberto e quem o recomendava.

A primeira vez que se arriscou a falar sobre o assunto

foi esta, com sua comadre, que guardaria reserva, estava

certo. Maria ignorava as falcatruas usadas por Abílio

quando pretendente à sua mão, nem talvez lhe passase

pela mente a idéia de que sua paixão ainda persistisse.

Serafim, que, como dissera, era um argos, adivinhava

que o mancebo malogrado não abrira mão de todo às

suas antigas pretensões, e, trazendo-o de vista, estudava

as suas relações de amizade com o antigo rival. Ora,

ausente João, não seria possível que Abílio, apaixonado

e perverso como era, tentasse qualquer coisa no sentido

de possuir Maria ou vingar-se do seu repúdio?

SPF, SP1: n’isso alguem (Emendou-se

acrescentando com.)

SPF, SP1: comsigo; sygillo;

SPF, SP1: a idéa; recommendava

SPF, SP1: assumpto, (Emendou-se.)

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: á sua

SPF, SP1: idéa

SPF, SP1: mallogrado; ás suas

SPF, SP1: pretenção

SPF, SP1: possivel; Abilio

SPF, SP1: cousa

SPF, SP1: repudio

Esses pensamentos muito atribulavam o espírito

do velho mestre-escola, que se tinha como responsável

pela segurança da pobre esposa e da integridade de sua

honra, ainda mais tendo sido recomendado por João.

SPF, SP1: attribulavam; espirito

SPF, SP1: responsavel

SPF, SP1: recommendado

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IX

5

10

Em dois dias de marcha o nosso sampauleiro

conseguiu chegar a Lençóis de Minas. Nunca tendo

feito tão longa tirada, João chegou muito estrompado126

àquele povoado. Por essa ocasião o êxodo dos nossos

sertanejos havia tomado grande incremento e

numerosos grupos de emigrados de pontos diversos do

sertão baiano seguiam o mesmo destino do nosso

sampauleiro, que a nenhum deles se incorporou por ser

marinheiro de primeira viagem e temer não pudesse

viajar com a rapidez dos outros antes de treinado.

SPF, SP1: dous

SPF, SP1: Lencóes

SPF, SP1: áquelle; occasião; exodo

SPF, SP1: bahiano, (Emendou-se.)

SPF, SP1: d’elles

SP1, SPF podesse

15

20

Em Lençóis teve João que demorar muitas horas

e pernoitar e, com assombro, soube do número

incalculável de baianos que ali passavam em grupos em

demanda do opulento estado do Sul. Também por ali

passavam alguns de retorno ao seu lar, mas em número

menor. Estes traziam notícias contraditórias, afirmando

uns que a baixa do café dera lugar a uma grande

quebradeira a ponto de não poderem os fazendeiros

pagar aos jornaleiros, e os empreiteiros verem-se na

contingência de passarem letras aos trabalhadores.

Outros, porém, asseverando que aquilo por lá era um

paraíso; que dinheiro naquela terra se podia catar no

chão como mamona nas capoeiras da Bahia.

SPF, SP1: Lencóes

SPF, SP1: assombro(,); numero

SPF, SP1: incalculavel; bahianos; alli

SPF, SP1: Tambem; alli

SPF, SP1: numero

SPF, SP1: noticias; contracdictorias;

affirmando

SPF, SP1: ao ponto de (Emendou-se

conforme regência.)

SP1: jonaleiros (Erro óbvio.)

SPF, SP1: contigencia; lettras

SPF, SP1: porem; aquillo

SPF, SP1: paraiso; n’aquella

126 Estrompado: muito cansado.

Page 179: ROMANCE DE JOÃO GUMES - Ufba Reis.pdf · Fig. 6: Folha de rosto do primeiro volume do romance O Sampauleiro. 41 Fig. 7: ... SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929. SPF O

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chão como mamona nas capoeiras da Bahia.

25

30

35

40

João estudava criteriosamente o que ouvia dos

moradores do arraial e de alguns sampauleiros que

naquele dia ali encontrou regressando. Por tudo o

quanto lhe veio ao conhecimento, quer direta, quer

indiretamente, concluiu que, se havia verdade nas

informações que lhe davam, a gabada riqueza de São

Paulo não era generalizada em todo o Estado como

afirmavam muitos que de lá voltavam; que muitos dos

informantes nada conseguiram, talvez por serem

levianos e dissipadores, por não terem procurado as

zonas mais prósperas, por serem de má conduta ou por

outras quaisquer circunstâncias que não dependiam

daquele meio e sim do próprio informante. Tudo isso

que ouvia, entretanto, eram instruções que muito lhe

serviam e o convenciam da necessidade que tinha de um

cicerone que o guiasse naquele país para ele estranho;

mas era preciso que esse guia fosse homem fidedigno,

experiente e honesto. Onde encontrá-lo, porém? A

Providência reservava-lhe um, como o leitor vai ver.

SPF, SP1: n’aquelle; alli

SPF, SP1: directa

SPF, SP1: indirectamente; si

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: generalisada

SPF, SP1: affirmava

SPF, SP1: prospera; conducta

SPF, SP1: quaesquer; circumstancias

SPF, SP1: d’aquelle; proprio

SPF, SP1: instrucções

SPF, SP1: n’aquelle; paiz; elle;

extranho

SPF, SP1: encontral-o; porem

SPF, SP1: Providencia; vae

45

Dois dias depois, quando João se aboletava em

um arraial insignificante que depois soube ser o

“Papagaio”, foi alcançado por um pequeno grupo de

emigrantes que ali pernoitou com ele. Eram todos gente

SPF, SP1: Dous

SPF, SP1: “Papagaio”(,)

SPF, SP1: alli; elle

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50

55

do seu distrito, alguns dos quais já tinha visto de relance

na feira de Caetité; mas entre eles já um seu conhecido

com quem já tinha feito transações, cuja fisionomia era

simpática e insinuante. Com ele não tinha entretido

relações muito estreitas nem sabia do lugar onde residia,

mas tinha o seu nome. Deram-se a conhecer, e o

Calisto, que conhecia bem e sempre o via nos mercados

trajando como pessoa de qualidade, mostrou-se

admirado de vê-lo agora, seguindo viagem a pé, de saco

às costas.

SPF, SP1: districto; quaes

SPF, SP1:Caiteté; elles

SPF, SP1: transacções; physionomia

SPF, SP1: sympathica; elle

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: vel-o; sacco

SPF, SP1: ás costas

60

65

Calisto era comunicativo e alegre. Também se

simpatizava desde muito com o mancebo. Entraram a

conversar e explicar-se reciprocamente, vindo afinal a

ligar-se por essa amizade que muitas vezes brota

espontânea entre dois indivíduos, máxime quando se

encontram fora de sua terra e nas condições em que

aqueles dois se achavam. Ficou assentado que João

viajaria incorporado ao grupo, afirmando-lhe Calisto

que os outros companheiros, embora fossem homens

ignorantes e rudes, eram honestos e pacíficos.

SPF, SP1:Calixto; communicativo;

Tambem

SPF, SP1: sympathisava-se

SPF, SP1: expontenea; dous;

individuos; maxime

SPF, SP1: aquelles; dous

SPF, SP1: affirmando-lhe; Calixto

SPF, SP1: pacificos

70

Calisto, que já orçava por quarenta anos de idade

como se via, pelo seu aspecto, conhecia São Paulo

palmo a palmo como informou ao novo amigo. Contou-

lhe que em 1893 fez a sua primeira viagem para o Sul;

SPF, SP1: Calixto; annos; edade

SPF, SP1: S. Paulo

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80

85

90

porém, como se estava em revolução, foi recrutado e

incorporado às forças legalistas que Floriano colocou

em defesa contra os revoltosos do Rio Grande, temendo

que se incorporassem à gente de Custódio de Melo. Fez

toda a campanha, e muito aproveitou naquela vida rude.

Como sempre teve uma conduta exemplar e fosse um

soldado obediente, mereceu a confiança dos seus

comandantes, chegando a galgar o posto de sargento

apesar de pouco saber ler. Pacificando o país, conseguiu

a sua baixa e voltou para Bahia, onde continuou a

trabalhar na lavoura. Morrendo seu pai, ficaram a viúva

e os filhos na pobreza. Constava a prole do casal

paterno de duas filhas e Calisto que, como o mais velho,

tomou a direção da casa. Naquele tempo a lavoura do

sertão baiano estava em grande decadência à falta de

braços, em conseqüência da abolição do cativeiro e da

emigração do nosso sertanejo. Contudo, a esforços

incríveis, conseguiu Calisto fazer alguma coisa e juntar

algum pecúlio que lhe serviu para voltar a São Paulo e

deixar sua mãe e irmãs com a subsistência garantida na

sua ausência.

SPF, SP1: porem; estava-se (Emendou-

se ênclise para próclise.)

SPF, SP1: ás forças; collocou

SPF, SP1: Grande (,)

SPF, SP1: á gente; Custodio; Melle

SPF, SP1: n’aquella

SPF, SP1: conducta

SPF, SP1: commandantes (,)

SPF, SP1: apezar; paiz

SPF, SP1: pae; viuva

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: direcção; N’aquelle

SPF, SP1: bahiano; decadencia; á falta

SPF, SP1: consequencia; captiveiro

SPF, SP1: Comtudo

SPF, SP1: incriveis; Calixto; cousa

SPF, SP1: peculio; S. Paulo

SPF, SP1: subsistencia

SPF, SP1: ausencia

95

Calisto foi feliz nessa segunda viagem. Corria

muito dinheiro de papel em São Paulo, os jornais eram

SPF, SP1: Calixto; n’essa

SPF, SP1: S. Paulo; jornaes

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110

convidativos e os fazendeiros instavam127 por

trabalhadores para estabelecerem novas plantações.

Voltando à sua terra com farta economia, fez a

arrumação de suas duas irmãs e pôde desenvolver a sua

lavoura. Desde então quase todos os anos fazia uma

viagem a São Paulo. Os anos críticos de 1898 e 1899

deram-lhe grande prejuízo e obrigaram-no a contrair

compromissos que ia amortizando de ano a ano com o

que ganhava em São Paulo. Tendo-se casado,

aumentadas a sua família e responsabilidades, já

resgatados os antigos compromissos, contraiu uma

dívida maior para dar impulso à sua agricultura, e agora

ia de novo ao grande estado a fim de ganhar com que

pagá-la. Conhecia um fazendeiro que não deixaria de

lhe dar trabalho e, até, adiantar-lhe dinheiro; pois era

homem que o tinha em muita boa conta. Assim

informado, João conheceu que a Providência dava-lhe

um ótimo cicerone, em quem, por cada dia que

passava, descobria qualidades apreciáveis.

SPF, SP1: á sua

SPF, SP1: ARRUMAÇÃO

SPF, SP1: quasi; annos

SPF, SP1: S. Paulo; annos; criticos

SPF, SP1: prejuizo; contrahir

SPF, SP1: anno; anno

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: augmentadas; familia

SPF, SP1: contrahiu

SPF, SP1: divida; á agricultura

SPF, SP1: afim de

SPF, SP1: pagal-a

SPF, SP1: adeantar-lhe

SPF, SP1: Providencia

SPF, SP1: optimo

SPF, SP1: apreciaveis

115

João seguiu, pois, com o grupo através do

Estado de Minas; mas embora a todos tratasse com tal

afabilidade e fosse geralmente estimado e considerado

pelos outros, conversava mais e amiúde com Calisto,

que era o único inteligente e capaz de informá-lo de

SPF, SP1: atravéz

SPF, SP1: affabilidade

SPF, SP1: a meude; Calixto

127 Instar: solicitar.

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120

que era o único inteligente e capaz de informá-lo de

tudo quanto lhe era estranho do costume que ia

encontrar.

SPF, SP1: unico; intelligente; informal-

o

SPF, SP1: extranhos

125

130

135

Para os sampauleiros pedestres Mucoca era uma

espécie de ante-sala do estado de São Paulo. Parece-nos

que a necessidade de viajarem em grupos para a comum

defesa, levava-os sempre juntos até ali, de onde

somente tomava cada um a direção que mais lhe

convinha, de acordo com as suas conveniências e

conhecimentos que tinham. João e Calisto, ao chegarem

ali, separaram-se dos companheiros e seguiram rumo de

Cravinhos em procura do rio Mojiguaçu, em cuja bacia,

nas proximidades desse rio, estava situada a fazenda

que Calisto achava mais conveniente procurarem,

porque conhecia o fazendeiro, um cavalheiro que lhe

merecia confiança, e para quem já havia trabalhado

muitas vezes.

SPF, SP1: especie; S. Paulo

SPF, SP1: comum

SPF, SP1: alli

SPF, SP1: direcção

SPF, SP1: accordo; conveniencias

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: alli

SPF, SP1: Mogyguassú; baccia

SPF, SP1: d’esse

SPF, SP1: Calixto

140

João encantava-se diante da luxuosa perspectiva

que aquele solo feracíssimo apresentava-lhe nas matas,

nas caudais128 e no resultado do trabalho desenvolvido

do homem fazendo brotar da terra os opulentos tesouros

que ela encerra. Calisto, como emérito e inteligente

cicerone que era, ia chamando a atenção do novel129

SPF, SP1: deante

SPF, SP1: aquelle; ferracismo; mattas

SPF, SP1: caudaes

SPF, SP1: thessouros

SPF, SP1: ella; Calixto; intelligente

SPF, SP1: attenção; nóvel

128 Caudal: cachoeira. 129 Novel; inexperiente.

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155

sampauleiro para o cenário que se desdobrava às suas

vistas e tudo explicava e informava miudamente. Aqui

avistavam lindas vivendas campestres cercadas de

variadas culturas; ali extensas pastagens onde se viam

rebanhos e armentos aproveitando tranqüilamente o

pingue pábulo; acolá trechos de mata em derribada,130

incipientes plantações de cafeeiros, construções em

começo; mais além grandes cafezais riscando o solo,

trepando as colinas e os suaves aclives, em pleno

desenvolvimento. Toda aquela região, relativamente

nova no seu desbravamento e cultura, era movimentada

por um formigueiro de trabalhadores. Das estradas

ouvia-se um zumzum de colméia, percebendo-se uma

ou outra palavra do nosso idioma ou da algaravia

estrangeira, nesta sobressaindo o italiano em maior

número ou o brado álacre131 do operário nacional, típico

do nosso trabalhador quando na faina rude.

SPF, SP1: scenario; ás suas

SPF, SP1: alli

SPF, SP1: tranquillamente

SPF, SP1: mattas

SPF, SP1: construcções

SPF, SP1: alem; cafezaes

SPF, SP1: collinas

SPF, SP1: aquella

SPF, SP1: colmeia

SPF, SP1: n’esta; sobresahindo; máior

SPF, SP1: numero; operario; typico

160

Os nossos dois viajantes tiveram que atravessar

trilhos de via-férrea, transpor pontes, vadear ribeiros,

pernoitar em galpões mediante paga e quase sempre

vendo gente a trabalhar ou em viagem. Também

atravessaram povoados nascentes que em breve seriam

cidades movimentadas. Afinal conseguiram, depois de

SPF, SP1: dous

SP1, SPF: via-ferrea

SPF, SP1: quasi

SPF, SP1: Tambem

130 Derribada: colocada no chão; desmatada. 131 Álacre: alegre; entusiasmado.

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165

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175

alguns dias, chegar à fazenda colimada que, para João,

era uma esplêndida instalação; mas para Calisto, que

conheceu a antiga côlonia Dumont e depois muitas e

enormes instalações modernas do mesmo gênero, como

as fazendas do alemão Schmidt e a Santa Gertrudes do

conde Prates, – para mencionarmos as mais

importantes, – a instalação do coronel Paulino não

passava de uma fazendola de classe inferior. Assim

manifestou Calisto ao seu companheiro o seu razoável

modo de pensar. Entretanto João, que já vinha

admirando algumas instalações agrícolas mais ou

menos do porte desta, quais avistou de relance da

estrada que vinha percorrendo, ao ver de mais perto e

detidamente a do coronel Paulino, como que se sentiu

deslumbrado.

SPF, SP1: á fazenda; collimada

SPF, SP1: installação; Calixto

SPF, SP1: colonia

SPF, SP1: installações; genero

SPF, SP1: installação

SPF, SP1: Calixto; razoavel

SPF, SP1: installações; agricolas

SPF, SP1: d’esta; quaes

180

185

–É aqui o nosso paradeiro, senhor João.

Conheço muitas fazendas mais opulentas; mas prefiro

esta porque o coronel Paulino, para quem tenho

trabalhado muitas vezes e que me conhece de sobra, é

um homem bom, honesto e tratável com quem podemos

conversar diretamente. É um pouco esquisito e

desagrada à primeira vista; mas depois se conhece que

se trata de gente correta e agradável.

SPF, SP1: tratavel

SPF, SP1: directamente; exquisito

SPF, SP1: á primeeira; conhece-se

SPF, SP1: correcta; agradavel

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195

200

205

Da estrada avistava-se em meia encosta de uma

extensa colina a linda residência do coronel, uma alta

construção feita com arte, cuja frente era ornada de

varandas e pavilhões simetricamente colocados a um e

outro lado do vestíbulo erguido no centro e que

constava de um largo patim132 defendido na frente por

uma balaustrada artística e aberto pelos lados para

escadas com corrimões. O patim e os dois pavilhões das

extremidades da linha da frente eram salientes e

ornados de belas pilastras que iam ao teto, e o conjunto

sobranceava um largo pátio plantado com arte de

arbustos e árvores de ornato, abaixo do qual estendia-se

o terreiro de seca do café. Viam-se, além da residência,

fileiras de galpões e casas modestas para alojamento

dos trabalhadores bem como as casas das máquinas e

depósitos. Depois de tudo isso Calisto mostrar e

explicar a João, tomaram ambos o caminho da casa,

mas, ao aproximar-se dela, aquele deixou João à espera

e foi ao coronel, que avistou no patim, assentado em

uma cadeira, a fumar cigarros e contemplar o cair da

tarde.

SPF, SP1: collina; residencia

SPF, SP1: construcção

SPF, SP1: symetricamente; collocados

SPF, SP1: vestibullo

SPF, SP1: artistica

SPF, SP1: dous

SPF, SP1: bellas; tecto; conjucto

SPF, SP1: pateo

SPF, SP1: arvores

SPF, SP1: sécca; alem; residencia

SPF, SP1: machinas

SPF, SP1: depositos; Calixto

SPF, SP1: approximar-se d’ella;

aquelle; á espera

SPF, SP1: cahir

210

A colina onde se achava situada aquela fazenda

era um dos contrafortes que rematam para Este as

vertentes que derramam para o Moji-Guaçu, à sua

SPF, SP1: collina; aquella

SPF, SP1: E’ste

132 Patim: pequeno patamar.

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215

vertentes que derramam para o Moji-Guaçu, à sua

esquerda. Do ponto onde João ficou à espera de Calisto

avistavam-se as alturas que demoram entre São Carlos e

Araraquara, confundido o seu azul diáfano com o do

firmamento. Destas maiores alturas, que chegam a mais

de 2000 metros, o solo vai declinando para Araraquara.

Jabuticabal e Bebedouro até encontrar, em rumo de

Noroeste, as planícies de Barretos, já na larga bacia do

rio Grande ou Paraná.

SPF, SP1: Mogy-Guassú; á sua

SPF, SP1: á espera; Calixto

SPF, SP1: S. Carlos

SPF, SP1: diaphano

SPF, SP1: vae

SPF, SP1: Noroéste; planicies; Barretos

220

225

Em plano mais próximo João via o ondulado do

solo e as colinas listradas de filas de cafeeiros, traçadas

a capricho, mas perto, destacados, patenteando o viço e

o lustroso verdor das frondes, mas em distância

confundindo-se sem solução de continuidade e, lá para

os confins do horizonte, tomando a aparência de telas

afustuadas. Aqui e ali via largos traços de mata intensa,

sobrepujando-os gigantescos jequitibás como os reis da

floresta e êmulos das soberbas araucárias. Via pelas

baixadas lindos canaviais e arrozais e pelas encostas

extensas culturas forragíneas.

SPF, SP1: proximo

SPF, SP1: collinas; caféeiros

SPF, SP1: distancia

SPF, SP1: horisonte; apparencia

SPF, SP1: alli; matta

SPF, SP1: emulos; araucarias

SPF, SP1: canaviaes; arrozaes

SPF, SP1: forragineas

230

Todo esse conjunto risonho, virente como a

esperança, que se estendia por todos os lados a perder

de vista, entrançado aqui e ali de fios dágua que

cintilavam à luz do sol poente, absorvia o espírito do

SPF, SP1: conjeuncto

SPF, SP1: alli; d’agua

SPF, SP1: scintillavam; á luz; espirito

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240

245

250

255

nóvel sampauleiro, que o contemplava perplexo. O

ruído da natureza que ia entrar em repouso, quando as

aves, feito o repasto diurno, procuravam asilo na

espessura das frondes, despedindo-se alacremente do

dia com os cantos, trilos e chilrear variadíssimos; o

rumor das águas escachoantes de uma torrente próxima,

o vozear dos operários ocupados no beneficiamento dos

produtos da farta lavoura, e todos os mais sons que se

entrecruzavam nos arredores, eram para João uma

estranha harmonia que, pouco a pouco, lhe despertava a

saudade da terra querida que deixou, e dos seus

queridos que lá ficaram. Então como o seu espírito,

voando, vencia a enorme distância que o separava da

sua vivenda modesta. Parecia-lhe ouvir Maria, a sua

querida, falando-lhe com aquela meiga voz que para ele

era uma deliciosa melodia; o papaguear da sua

Corinazinha; ver o seu Joãozinho a sorrir-lhe

estendendo-lhe os bracinhos rosados, e ouvir a

gargalhada alegre do seu velho professor. Parecia-lhe

tê-los ao pé de si, abraçá-los, sentindo aquele afeto

sincero que impregnava o seu coração saudoso e bem

formado. Estava nesta funda abstração, quando foi

desperto por Calisto que só conseguiu acordá-lo depois

de chamá-lo mais de uma vez e tocá-lo com a sua mão.

SPF, SP1: novel

SPF, SP1: ruido

SPF, SP1: asylo

SPF, SP1: variadissimos

SPF, SP1: águas; proxima

SPF, SP1: operarios; occupados

SPF, SP1: productos

SPF, SP1: extranha

SPF, SP1: espirito

SPF, SP1: distancia

SPF, SP1: aquella; elle

SPF, SP1: tel-os; abraçal-os(,); aquelle;

affecto

SPF, SP1: n’esta

SPF, SP1: abstracção; Calixto

SPF, SP1: accoral-o; camal-o

SPF, SP1: tocal-o

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–Já estive com o coronel, senhor João. – disse

Calisto. – Com ele conversei, e deseja vê-lo.

SPF, SP1: Calixto; elle; vel-o

260

265

E seguiram ambos para a casa da fazenda. O

Coronel viu-os quando se aproximavam, mas não se

mexeu da cadeira, a cavaleiro do pátio, de modo que, se

os dois viajantes se aproximassem muito, não poderiam

vê-lo. Era um homem alto, esgrouviado,133 de fartos

bigodes; mas denunciando saúde e vigor. Calisto

aproximou-se o mais que lhe foi possível e de certa

distância, enquanto o coronel soprava uma baforada de

fumo do cigarro, fez a seu modo a apresentação do

companheiro.

SPF, SP1: approximavam

SPF, SP1: cavalleiro; pateo

SPF, SP1: dous; aproximassem;

muito(,)

SPF, SP1: vel-o

SPF, SP1: saude; Calixto

SPF, SP1: approximou-se; possivel

SPF, SP1: distancia; emquanto

270 –Aqui está o homem, senhor coronel.

–Sim – respondeu o coronel voltando o rosto

pachorrento e, mirando João dos pés à cabeça, depois de

alguma demora, perguntou-lhe: – Está acostumado com

o nosso trabalho?

SPF, SP1: á cabeça

275 –É a primeira vez que venho a São Paulo, senhor

coronel – respondeu João.

SPF, SP1: S. Paulo

–É a primeira vez que vem a São Paulo... mas

em sua terra não se trabalha? O que fazia o senhor

então?

SPF, SP1: S. Paulo

280 –Nasci e vivi trabalhando em lavoura.

133 Esgrouviado: magro e alto de cabelo desgrenhado. Variante de esgrouvinhado.

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–Nasceu e viveu trabalhando em lavoura. Mas a

lavoura da sua terra não é como a nossa.

–Já sei; estou informado.

285

–Já sabe, está informado. Não bastam, porém,

informações, meu moço. Por cá o trabalho é realizado

com mais método e disciplina do que por lá.

SPF, SP1: porem

SPF, SP1: realisado

SPF, SP1: methodo

–Estou certo disso, senhor coronel.

–Está certo disso.

SPF, SP1: d’isso

SPF, SP1: d’isso.

–O senhor Calisto já me informou tudo. SPF, SP1: sr. Calixto

290 –O senhor Calisto já o informou de tudo. Mas o

senhor Calisto não lhe disse que sou um sujeito

impertinente e aborrecido.

SPF, SP1: sr. Calixto

SPF, SP1: Calixto

–Pelo contrário, senhor coronel, disse-me muito

bem de vossa senhoria.

SPF, SP1: contrario

295 –Pelo contrário, disse-lhe bem de mim. E o

senhor acreditou?

SPF, SP1: contrario

–Certamente, porque o senhor Calisto me

merece confiaça.

SPF, SP1: calixto

300

–Certamente, porque o senhor Calisto lhe

merece confiança. Hoje, meu baianito, a confiança anda

muito barata.

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: Hoje(,); bahianito

–Não entre homens de bem, senhor coronel.

–Não entre homens de bem. O senhor então é

um homem de bem como o senhor Calisto.

SPF, SP1: Calixto

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305 –Vossa Senhoria o saberá depois.

–Eu o saberei depois. Como se chama? É

casado?

–João Lopes. Sou casado e tenho dois filhinhos. SPF, SP1: dous

–João Lopes. É casado e tem dois filhinhos. SPF, SP1: dous

310

315

O coronel fazia esse interrogatório com pachorra

como um juiz de instrução, e como que ia ditando à sua

consciência, que o registrava na retentiva. Era um sestro

do coronel, a que talvez se habituasse como funcionário

policial. João já se achava aborrecido com aquele

repetir as suas palavras como eco; mas Calisto fazia-lhe

ver por mímicas que convinha ter paciência, mas de

modo que o coronel Paulino não o visse.

SPF, SP1: interrogatorio

SPF, SP1: instrucção; dictando; á sua

SPF, SP1: consciencia; séstro

SPF, SP1: funccionario

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: echo; Calixto

SPF, SP1: mimica; paciencia

320

–Senhor coronel – disse por fim Calisto com

certo desplante, – nós estamos muito cansados,

viajamos hoje muitas léguas.

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: desplante(,); cançados

SPF, SP1: leguas

–Estão muitos cansados, viajaram muitas léguas.

Naturalmente querem descansar.

SPF, SP1: leguas; cançados

SPF, SP1: descançar

–Queremos descansar e pedimos ao senhor

alojamento na colônia.

SPF, SP1: descançar

SPF, SP1: colonia.

325 –Pedem alojamento na colônia. Procurem um

daqueles galpões que você já conhece e lá se aboletem.

Lá mandarei mais tarde o meu encarregado.

SPF, SP1: Colonia

SPF, SP1: d’aquelle

Os dois saudaram o coronel e Calisto levou SPF, SP1: dous; Calixto

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330

consigo o companheiro. João ia aborrecido com a

pachorra do coronel Paulino.

SPF, SP1: comsigo

–Que coronel esquisito! – dizia João – Põe-se do

alto do seu trono a interrogar e repetir como eco o que

ouve como se fora um príncipe!

SPF, SP1: exquisito

SPF, SP1: throno; echo

SPF, SP1: principe

335

–Mas é um homem bom, senhor João – disse

Calisto.

SPF, SP1: Calixto

–Porém trata a gente em ar de resto. SPF, SP1: Porem

340

345

–Isso é de todos eles, meu amigo; é costume dos

da terra conosco, quando são dinheirosos e

independentes. Ah! Senhor João! Eu conheço outros

fazendeiros que, intratáveis, malcriados e incivis,

metem ódio à gente do nosso pano. Há muitos deles que

são liberais e bondosos, mas que, à primeira vista, nos

desagradam. Conheço o velho Schmidt, para o qual já

trabalhei. É o rei do café; mas ninguém mais tratável e

singelo. Não procuro uma das suas fazendas porque são

tantas que ele não pode diretamente dirigi-las e, quanto

aos seus empregados, nem sempre tratam a gente como

o velho. Este coronel que o senhor viu, é tal qual o

velho Schmidt, com a diferença da exagerada pachorra.

SPF, SP1: elles

SPF, SP1: comnosco

SPF, SP1: intrataveis

SPF, SP1: mettem; odio; á gente;

panno; delles

SPF, SP1: liberaes; á primeira

SPF, SP1: ninguem; tratavel

SPF, SP1: elle; directamente; dirigil-as

SPF, SP1: differencça

350 –Mas porque aquela indiferença e majestade? SPF, SP1: aquella; indifferença;

magestade

–Ah! meu amigo! Aquilo é nada. Tenhamos

paciência e estudemos os homens como eles nos

SPF, SP1: Aquillo

SPF, SP1: paciencia; elles

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355

360

365

estudam. A culpa da desconfiança que há entre os

paulistas contra nós é dos nossos patrícios que têm

praticado ações indignas que desacreditaram os baianos.

Eu sei do pouco caso que fazem de nós em geral; mas

também sei que, ganhando-se a confiança dos

fazendeiros por meio de uma conduta exemplar, tem-se

tudo quanto se queira. O senhor foi feliz em vir comigo.

O que – não digo por me gabar – influiu para que fosse

logo admitido no trabalho. Levemos tudo com paciência

sem adular, mostrando-nos sempre superiores aos

canalhas e tudo nos correrá bem. Verá. Eu já fui

soldado, cheguei a sargento, nunca adulei a diabo

nenhum e consegui, pela minha paciência e prontidão

em executar tudo quanto me ordenavam, ser elogiado

em ordem do dia.

SPF, SP1: patricios

SPF, SP1: acções; bahianos

SPF, SP1: tambem

SPF, SP1: conducta

SPF, SP1: commigo

SPF, SP1: paciencia

SPF, SP1: paciencia; promptidão

Assim conversando, chegaram os dois

sampauleiros à colônia de imigrantes.

SPF, SP1: dous

SPF, SP1: á colonia; immigranres

X

5

A colônia, como vulgarmente denominam os

imigrantes o agrupamento de acomodações que os

fazendeiros paulistas destinam aos seus trabalhadores,

era, na fazenda do coronel Paulino, um arruamento de

casas modestas e largos galpões, aquelas destinadas a

SPF, SP1: colonia

SPF, SP1: immigrantes;

accommodações

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casas modestas e largos galpões, aquelas destinadas a

famílias estes ao alojamento de homens solteiros que ali

viviam em comum, às vezes em tal camaradagem que

aquilo tomava a afeição de uma república.

SPF, SP1: aquellas

SPF, SP1: familia; alli

SPF, SP1: commum; ás vezes

SPF, SP1: aquillo; affeicção;

REPUBLICA

10

15

Calisto e João chegaram já sol posto no galpão

por aquele escolhido, justamente quando voltavam do

serviço os trabalhadores da fazenda, cada qual

procurando o cômodo que ocupava, tocando ao

alojamento dos nossos dois companheiros um certo

número deles.

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: commodo; occupava

SPF, SP1: dous

SPF, SP1: numero; d’elles

20

25

Logo ao chegarem em frente ao arruamento de

cômodos que lhes eram destinados, antes de se

acomodarem, ouvia-se um rumor contínuo, um vozear

incessante do centro do qual se destacavam palavras,

gargalhadas, juras e diálogos gritados, em todos os

diapasões, em calão brasileiro do norte, em italiano, em

português estropiado pelos estrangeiros, percebendo-se

que mulheres, crianças e varões faziam parte dos

magotes134 que se aproximavam destacados como vagas

de uma torrente.

SPF, SP1: commodos

SPF, SP1: accomodarem; continuo

SPF, SP1: dialogos

SPF, SP1: portuguez; extrangeiros

SPF, SP1: creanças

SPF, SP1: approximavam

O galpão preferido por Calisto já era por ele

conhecido. Era um recinto espaçoso que media cerca de

oitenta metros quadrados de superfície com pavimento

SPF, SP1: Calixto; elle

SPF, SP1: superfície

134 Magote: grande quantidade de pessoas.

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35

40

45

de terra socada, aqui e ali lajeada em pequenos círculos

que serviam de lareira. Fechado ao fundo por paredes

que subiam até os frechais,135 era na frente defendido

por uma meia tapagem de adobes sobre a qual

repousava uma balaustrada tosca que a completava até o

cimo e tendo, bem ao meio, a larga porta que dava

acesso ao interior. O amplo teto de telhas vãs,

sustentado por enormes asnas,136 que se apoiavam sobre

grossas vigas, tinha por suporte potentes esteios

fincados no solo. O dormitório constava de esteiras ao

longo das paredes, acima de cada uma das quais cada

um dos jornaleiros pendurava em tornos grosseiros os

sacos e bornais137 onde guardavam as roupas, e

prateleiras toscas nas quais depositavam diversos outros

objetos. Quando tinham de preparar as suas refeições ou

garantir-se contra o frio quando intenso, reuniam-se em

grupos, aqueles que se acamaradavam, em torno de

lareiras, mesmo os que não tivessem de fazer cozinha,

por terem a bóia por contrato. Muitos deles preferiam

dormir ao pé da lareira.

SPF, SP1: alli; lageada; circulos

SPF, SP1: frechaes

SPF, SP1: accesso

SPF, SP1: tecto

SPF, SP1: supporte

SPF, SP1: dormitorio

SPF, SP1: quaes

SPF, SP1: saccos; bornaes

SPF, SP1: quaes; objectos

SPF, SP1: aquelles

SPF, SP1: boia

SPF, SP1: contracto; d’elles

50

João, a exemplo de Calisto, acomodou-se ao seu

lado junto a uma das lareiras, e já acendiam lume para o

preparo da sua refeição, quando os trabalhadores que ali

SPF, SP1: Calixto; accomodou-se

SPF, SP1: accendiam

135 Frechal: viga de madeira na qual se pregam os barrotes, à beira do telhado. 136 Asna: tesoura. 137 Bornal: saco de pano ou couro, utilizado a tiracolo, para transportar roupas, ferramentas.

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60

65

70

preparo da sua refeição, quando os trabalhadores que ali

se arranchavam entraram de roldão ruidosa e

alacremente. Calisto percebeu entre eles dois baianos já

seus antigos conhecidos e chamou-os a fazerem parte

do seu grupo. Foi um alegrão para os dois ao verem

Calisto, vindo outros também se incorporarem ao

rancho, uns por que já tinham preferência por aquela

lareira, outros por simples curiosidade, fazendo parte

deles um italiano já conhecido ali. As atenções

voltavam-se para os novos vindiços, os baianos

ansiosos por terem notícias da sua terra. Calisto, que já

conhecia os hábitos dos seus patrícios, e, por sua vez,

desejava informar-se do estado dos jornais e outra

coisas, deu logo conta de sua odisséia e do que se

passava nos sertões da Bahia, havendo permuta de

notícias e informes que muito importavam a uns e

outros, estabelecendo-se logo familiaridade entre todos

que, em grupo, circulavam a lareira. João ficou logo

conhecido como bom companheiro e recebeu

comprimentos até do italiano, que já falava alguma

coisa da nossa língua entressachando-a de maior

número de palavras e frases do calão napolitano.

SPF, SP1: alli

SPF, SP1: Calixto; elles; dous;

bahianos

SPF, SP1: dous

SPF, SP1: Calixto; tambem;

encorporarem-se (Emendou-se

ênclise para próclise.);

preferencia; aquella

SPF, SP1: d’elles; alli; attenções

SPF, SP1: bahianos

SPF, SP1: noticias; Calixto

SPF, SP1: habitos; patricios

SPF, SP1: jornaes

SPF, SP1: cousas; odyséa

SPF, SP1: noticias

SPF, SP1: algumma

SPF, SP1: cousa; língua; numero

SPF, SP1: phases

Mais tarde entrou o encarregado do coronel

Paulino acompanhado de pessoas que conduziam a

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Paulino acompanhado de pessoas que conduziam a

pitança138 que devia ser distribuída com aqueles

jornaleiros que a ela tinha direito por contrato.

SPF, SP1: distribuida; aquelles

SPF, SP1: ella; contracto

–O senhor Melquíades! – exclamou Calisto ao

ver o encarregado. –Folgo muito por ainda ser o

encarregado do patrão.

SPF, SP1: Melchiades; Calixto

80 –O senhor Calisto! – respondeu Melquíades. –

Bons olhos os vejam. Eu já sabia pelo coronel que era

dos nossos. Temos que conversar; mas espere que eu

conclua cá o meu serviço.

SPF, SP1: Calixto; Melchiades

85

Feita a distribuição das rações naquele galpão,

Melquíades foi fazê-la nos outros, depois do que voltou

ao rancho de Calisto.

SPF, SP1: n’aquelle

SPF, SP1: melchiades; fazel-a

SPF, SP1: Calixto

90

–Soube que trouxe consigo um companheiro –

disse o encarregado a Calisto. – Já sei que se trata de

boa gente, porque o amigo nunca nos trouxe senão ouro

da lei.

SPF, SP1: comsigo

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: sinão

–É certo. –E fez a apresentação do seu

companheiro.

–É o senhor João Lopes? – disse Melquíades

dirigindo-se a João.

SPF, SP1: Melchiades

95 –Sou, sim senhor.

–Já sei que é casado, que tem dois filhinhos e

que é a primeira vez que vem a São Paulo. Em que

SPF, SP1: dous

138 Pitança: ração diária; pensão.

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que é a primeira vez que vem a São Paulo. Em que

serviço quer o senhor ocupar-se?

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: occupar-se

100

–Em qualquer trabalho de lavoura. Sei roçar,

derribar, plantar, capinar...

–Bem; mas nós por cá temos trabalho que na

Bahia não se usa, como apanhar café, derriçar139, arruar

e... tutti quanti – concluiu Melquíades já um pouco

enfronhado na língua ausônica.

SPF, SP1: TUTTI QUANTI

SPF, SP1: Melchiades

SPF, SP1: lingua ausonica

105 –De tudo isso me acho informado – observou

João – e estou disposto a pôr em prática.

SPF, SP1: acho-me

SPF, SP1: pratica

–Quer trabalhar a seco ou a molhado? SPF, SP1: secco

–Quanto a isto, guio-me pelo senhor Calisto. SPF, SP1: Calixto

–Guia-se muito bem – obtemperou Melquíades. SPF, SP1: Melchiades

110 –Preferimos trabalhar a molhado, senhor

Melquíades – disse Calisto.

SPF, SP1: melchiades; Calixto

115

–A bóia, como os senhores chamam, não é um

jantar ou almoço como talvez o senhor Lopes esteja

acostumado a tomar; mas garanto que lhe é asseada e

satisfatória.

SPF, SP1: satisfactoria

–De tudo já estou informado pelo meu

companheiro – disse João.

–Também informo aos senhores que o coronel

está disposto a dar um grande serviço de empreitada,

SPF, SP1: Tambem

139 Derriçar: tirar os frutos dos galhos do cafeeiro, correndo a mão de cima para baixo e deixando-os cair no cesto.

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120 porque talvez prefiram este contrato. SPF, SP1: contracto

–É coisa para já, senhor Melquíades? – inquiriu

Calisto.

SPF, SP1: cousa; Melchiades;

inqueriu

SPF, SP1: Calixto

–Há tempo para pensarem e tomarem as suas

medidas.

125 –Nesse caso, iremos trabalhando a jornal, e

depois, conforme...

SPF, SP1: N’esse

130

–Estamos entendidos quanto a isso. –E

Melquíades concluiu acertando com os novos

trabalhadores a respeito ao jornal vigente e qualidade do

serviço. Quanto a horários e outras circunstâncias não

lhe era preciso entrar em combinações, porque Calisto

já tinha conhecimento disso até as minudências140 e

tudo informaria ao seu companheiro.

SPF, SP1: á isso (Emendou-se.)

SPF, SP1: Melchiades

SPF, SP1: horarios;

circumstancias

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: d’’isso; ás minudencias

(Emendou-se.)

135

–Que tal achou o senhor Melquíades? –

perguntou Calisto ao mancebo ao sair o encarregado.

SPF, SP1: Melchiades

SPF, SP1: Calixto; sahir

–Não pode ser melhor a impressão que me

deixou.

140

Os outros jornaleiros conversavam entre si nos

diversos grupos, logo feita a refeição. João, apesar de

tudo o quanto lhe ia satisfazendo o desejo de alcançar

meios seguros de ganhar o preciso para melhorar as

suas finanças e levar meios que lhe facilitassem na

Bahia o desenvolvimento da sua agricultura e a

SPF, SP1: apezar

140 Minudência: pormenor, miudeza.

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160

Bahia o desenvolvimento da sua agricultura e a

comodidade daqueles que lhe eram tão queridos, sentia-

se deslocado naquele meio estranho. Tendo, desde

criança, gozado de uma abastança em sua terra, nunca

passou pela sua idéia o pensamento de ver-se reduzido

à condição de jornaleiro, de viver misturado com toda a

sorte de gente num comunismo que lhe parecia perigoso

e degradante. Achava-se agora rebaixado à condição de

reles camarada, a serviço de um patrão, como servo que

devia respeitar exageradamente até os prepostos dele,

para que não fosse expulso e arrastado a estado ainda

mais desprezível; para que não perdesse o seu crédito e

a sua honra não fosse nodoada. Era-lhe preciso

confraternizar com todos os seus companheiros de

trabalho, sem escolha, sem procurar saber da sua

condição, da sua índole, da sua educação. Era este o

único e mais seguro meio de chegar aos seus fins;

melhorar a sorte de sua querida esposa e de seus

inocentes filhinhos.

SPF, SP1: commodidade;

d’aquelles

SPF, SP1: n’aquelle; extranho

SPF, SP1: creança; gosado

SPF, SP1: idéa

SPF, SP1: á condição; mixturado

SPF, SP1: n’um; communismo

SPF, SP1: á condição

SPF, SP1: réles

SPF, SP1: d’elle

SPF, SP1: desprezivel; credito

SPF, SP1: indole

SPF, SP1: unico

SPF, SP1: innocentes

165

Então lhe vinham ao pensamento aqueles entes

queridos que se achavam tão longe, afastados do seu

imediato carinho por uma distância que lhe parecia

incomensurável. O que pensava, o que fazia naquele

momento aquela a quem uniu para sempre o seu

SPF, SP1: vinham-lhe; aquelles

SPF, SP1: immediato; distancia

SPF, SP1: incommensuravel;

n’aquelle

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momento aquela a quem uniu para sempre o seu

destino? Sabia-a de ânimo varonil; mas também

avaliava quanta tristeza invadia o seu espírito; quanta

dor apuava141 aquele coração tão terno e afetuoso. E,

através do espaço mediante entre esses dois espíritos

que, desde a infância, se concertavam nos mesmos

sentimentos, na mesma vontade, no mesmo afeto –

espaço intransponível à pesada indúvia carnal – parecia

fundirem-se em um só. Caindo em funda abstração, o

pobre mancebo tentava, por um enorme esforço de

concentração – parecendo-lhe que o conseguia – ver o

que se passava no seu lar naquele momento. Calisto,

compreendendo-o, porque já passara por situação como

a do seu companheiro, fitava-o compadecido como

quem vela o sono reparador de pessoa querida.

SPF, SP1: aquella

SPF, SP1: animo; tambem

SPF, SP1: espirito

SPF, SP1: aquelle; affectuoso

SPF, SP1: atravéz; dous; espiritos

SPF, SP1: infancia

SPF, SP1: affecto

SPF, SP1: intransponivel; á

pesada;

SPF, SP1: Cahindo; abstracção

SPF, SP1: concentracção,

SPF, SP1: n’aquelle; Calixto

SPF, SP1: comprehendeu-o

SPF, SP1: somno

195

Quando João mais imerso achava-se naquele

sonho, ouviu o canto suave e melodioso de uma voz

impregnada de ternura nostálgica, que lhe parecia vir

dos céus, como se fora um acusmata142 que o

acalentasse e somente a ele se dirigisse. As palavras do

canto eram-lhe incompreensíveis; mas tão suave era a

melodia; tal encanto emprestava-lhe a voz do cantor,

quase infantil, límpida e argentina; tal ritmo, e a toada,

SPF, SP1: immerso; n’aquelle

SPF, SP1: nostálgica

SPF, SP1: si; acúsmata

SPF, SP1: sómente; elle

SPF, SP1: incomprehensiveis

SPF, SP1: quasi

SPF, SP1: limpida; rythimo

141 Apuar: torturar. 142 Acusmata: alucinação auditiva.

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200

que se assemelhava ao balançar sereno sobre águas

levemente agitadas pela brisa; que somente a música,

como romanza, bastava para impressionar-lhe

agradavelmente os sentidos e avultar docemente a

saudade da sua terra e dos entes queridos que lá deixara.

SPF, SP1: o balanço (Emendou-se

conforme regência.); aguas

SPF, SP1: sómente; musica

SPF, SP1: ROMANZA

SP1: la

205

210

215

220

Era o italiano, um mancebo imberbe e

simpático, que cantava. A sua voz lembrava pelo timbre

o tanger de sinos de cristal. Denunciava-se, a quem

percebesse o seu idioma, pelas leves asperezas do calão,

que em nada alteravam a maviosidade do idioma, filho

do Meio-Dia da Itália e, pelo motivo do canto, genuíno

napolitano, embora natural de Sorrento, o alvo ninho

alcandorado da rocha à beira do abismo, a cavaleiro do

lindo e tranqüilo mar e em frente da penhascosa e

virente Capri que se eleva como encantadora corbelha

de verdura; Sorrento, o encantador miradoiro de onde se

avista o Vesúvio, gigantesco, empenachado de fumo de

dia e à noite coroado por uma chama como se a

Natureza, que foi ali tão pródiga, quisesse dotar o sítio

de um farol eterno e imponente, cintado de jardins e

ridentes aldeias. Por todos os lados bosques de

limoeiros, romeiras e olivedos; por todos os lados

penhascos abruptos emergindo da verdura, vinhedo,

brilhantes lavas cristalizadas rebrilhando em cambiantes

SPF, SP1: sympathico

SPF, SP1: crystal

SPF, SP1: Meio dia; Italia

SPF, SP1: genuino

SPF, SP1: á beira; abysmo;

cavalleiro

SPF, SP1: tranquillo

SPF, SP1: Vesuvio

SPF, SP1: empennachado; á noite

SPF, SP1: chamma; si; alli

SPF, SP1: prodiga; quizesse; sitio;

pharol

SPF, SP1: crystalizadas; á luz

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203

225

à luz do sol. E o mar sereno, como vasto espelho azul-

claro, quase opalino, refletindo os tufos de verduras que

emergem das ilhotas, as velas dos barcos de pesca, o

casario das cidades, as colinas, os templos e a rudeza

natural do cenário terrestre.

SPF, SP1: quasi; reflectindo

SPF, SP1: collinas

SPF, SP1: scenario

230

Às últimas notas do canto João foi despertado do

seu enlevo por uma voz feminina que, apesar de meiga

e argentina, contrastava com a melodia de romanza.

SPF, SP1: Ás ultimas

SPF, SP1: apezar

SPF, SP1: ROMANZA

–Ah! Mio Genarino! – dizia – Diacino de

cantore incantevole!

SPF, SP1: AH! MIO

GENARINO! DIACINO DE

CANTARE INCANTEVOLE!

–Zito, grazioza bambina! Il diavolettino tenta! –

disse Genaro sorrindo.

SPF, SP1: ZITO, GRAZIOZA

BAMBINA! IL DIAVOLETTINO

TENTE!

235

240

Por alguns momentos os dois entretiveram em

seu idioma um interessante diálogo que revelava

recíproca inclinação amorosa; mas nenhum dos

circunstantes entedia o derriço pelo que ouvia; mas os

esgares eram tão expressivos que João e Calisto bem

percebiam do que se tratava no colóquio.

Repentinamente uma voz de mulher que partia da

casinhola vizinha interrompeu os dois namorados.

SPF, SP1: dous

SPF, SP1: dialogo

SPF, SP1: reciproca

SPF, SP1: circumstantes

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: colloquio

SPF, SP1: visinha

SPF, SP1: dous

–Giuditta! Civetta svergognata – gritou a voz. SPF, SP1: GIUDITTA! CIVETTA

SVERGOGNATA

–Per la madona! È mamma! SPF, SP1: PER LA MADONA! E

MAMMA!

245

E tocando nos lábios os dedos em feixe,

transmitiu de longe, a sorrir, um beijo a seu Genarino, e

SPF, SP1: labios

SPF, SP1: transmittiu

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250

fugiu dizendo: “addio!” repetidas vezes. João

escandalizado, estranhou a desenvoltura da rapariga;

mas Calisto sorria fazendo-lhe ver que aquilo era

comum naquela gente e não afetava os créditos da

donzela. Os pais somente reclamam, dizia, quando o

casamento é desvantajoso quanto ao interesse

econômico e financeiro.

SPF, SP1: “ADDIO”

SPF, SP1: extranhou

SPF, SP1: Calixto; aquillo

SPF, SP1: commum; n’aquella;

affectava; creditos

SPF, SP1: donzella; paes

SPF, SP1: economico

255

260

– “Cantam na primavera as cigarras – continuou

Calisto – e brotam as flores; chega o verão, perdem o

brilho, despontam os frutos; o outono tudo amadurece;

o inverno tudo desfaz.” Quando estavamos acampados

nas imediações de Itararé, assim dizia um velho e

pachorrento oficial do meu batalhão, ao ver um moço

alemão atrair com seu canto uma sua linda patrícia com

quem namorava. Isso se dava perto do acampamento

num pequeno arraial de mercadores que por ali se

formou.

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: fructos

SPF, SP1: immediações

SPF, SP1: official

SPF, SP1: allemão; attrahir;

patricia

SPF, SP1: dava-se (Emendou-se

ênclise para próclise.)

SPF, SP1: n’um; alli

265

João achou espírito no que dizia o velho militar,

vindo-lhe à memória sua querida Maria e seus filhinhos,

que considerava o florejar da sua existência.

SPF, SP1: espirito

SPF, SP1: á memoria

SPF, SP1: existencia.

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205

XI

5

10

15

No dia seguinte João e Calisto achavam-se

colocados na fazenda como jornaleiros; mas aquele,

esperançado de mais tarde tomar uma empreitada

vantajosa, de parceria com seu companheiro, que dia a

dia mais se revelava judicioso, prático e bom e leal

amigo digno de sua inteira confiança. Embora o nosso

herói, pelas informações que Calisto lhe dera

detidamente, já conhecesse bem os costumes adotados

nas fazendas, nem por isso deixou de surpreender-se ao

ver o formigueiro de trabalhadores de ambos os sexos

que enchia as ruas de cafeeiros que se estendiam a

perder de vista fazendo a colheita do fruto, que já se

achava em meio, ou derriçando as plantas já despidas

dele. Aos dois novos jornaleiros couberam outros

trabalhos que não a apanha143.

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: collocados; aquelle(,)

SPF, SP1: pratico

SPF, SP1: heróe; Calixto

SPF, SP1: adoptados

SPF, SP1: surprehender-se

SPF, SP1: caféeiros

SPF, SP1: fructo

SPF, SP1: d’elle; dous

SPF, SP1: APANHA.

20

Por todo aquele oceano de verdura, estriado em

toda a extensão de verdadeiras avenidas

caprichosamente traçadas em plano levemente inclinado

e retas impecáveis, via-se e ouvia-se um movimento e

burburinho constantes, mais ou menos distintos

conforme a distância do lugar onde se davam. Estas

manifestações de vida e progresso estimulavam os

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: rectas; impeccaveis

SPF, SP1: distinctos

SPF, SP1: distancia; logar

143 Apanha: ato de colher os frutos da lavoura; colheita.

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25

trabalhadores que azafamados, em porfia, procuravam

vencer-se reciprocamente no desempenho do que estava

a seu cargo realizarem.

SPF, SP1: realisarem

30

Como os exércitos em ação comunicam-se o

valor entre todos os combatentes, qual mais inusitado

pelo entusiasmo comum e esperança de colher vitória;

assim, nesse ajuntamento de operários, os mais

diligentes emprestam aos mais fracos e tardigrados o

que de um para outros sobra em atividade, força e

operosidade.

SPF, SP1: exercitos; acção;

communicam-se

SPF, SP1: enthusiasmo; commum;

Victoria

SPF, SP1: n’esse; operarios

SPF, SP1: actividade

35

40

Nas lutas cruentas o empenho é de morte e

destruição; nas do trabalho é de vida e construção.

Naquelas nem sempre há nobreza; nestas o empenho é

sempre nobre, digno e honesto. Naquelas é o solo

ensopado de sangue e de lágrimas; nestas o suor do

pacífico moirejar umedece a gleba como uma benção. A

guerra tala os campos cultivados, dá lugar ao terror, ao

desespero, à miséria; o trabalho pacífico cobre-o do

verdor da esperança, da alegria poética, da riqueza e

prosperidade.

SPF, SP1: luctas

SPF, SP1: construcção

SPF, SP1: N’aquellas; n’estas

SPF, SP1: N’aquellas

SPF, SP1: lagrimas; n’estas

SPF, SP1: pacifico; humidece

SPF, SP1: á miseria; pacifico

SPF, SP1: poetica

45

João sentiu-se animado, mesmo distraído das

amarguras da saudade, fortalecido na confiança do

futuro e alegre com a esperança de colher proveito da

humilde e penosa condição a que se submeteu por amor

SPF, SP1: destrahido

SPF, SP1: submetteu

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207

50

55

dos seus queridos que lá deixara tão longe. Lembrando-

se de sua esposa e filhinhos, já experimentava algum

contentamento antecipado, prevendo como certo o

regozijo que experimentara quando, de regresso ao seu

lar, levasse, a entes a quem tanto amava e por quem se

sacrificava, com a sua presença, meios de subsistência,

a tranqüilidade, a independência. Todas às más

eventualidades que, na calma, lhe afligiam o espírito,

esvairam-se das suas cogitações para deixar-lhe uma

confiança radicada que se estendia pelo futuro em fora

como um clarão que se projeta do presente.

SP1: la

SPF, SP1: regosijo

SPF, SP1: subsistencia

SPF, SP1: tranquillidade;

independencia; ás más

SPF, SP1: affligiam; espirito

SPF, SP1: esvahiram-se

SPF, SP1: extendia

SPF, SP1: projecta

60

65

Não há espírito, por mais criterioso e refletido

que seja, que em certos momentos da vida, não

experimente como João essas antecipadas alegrias. Essa

faculdade, que Deus nos concedeu carinhoso e paternal,

é um forte incitativo que nos impele aos mais difíceis e

custosos empreendimentos. Não fora ela, o progresso

humano ficaria paralisado, a humanidade cairia em uma

seqüência de incalculáveis prejuízos e não avançaria um

passo em busca das conquistas que a têm elevado ao

surpreendente e assombroso progresso que

presenciamos nos tempos modernos.

SPF, SP1: espirito; reflectido

SPF, SP1: impelle; difficeis

SPF, SP1: emprehendimentos; ella

SPF, SP1: paralysado

SPF, SP1: cahiria; incalculáveis;

prejuizos

SPF, SP1: surprehendente

70

Por mais de dois meses João, trabalhando a

jornal, só se preocupava com seu labor afanoso,

SPF, SP1: dous; mezes

SPF, SP1: preoccupava

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208

75

80

discreto, bom amigo de todos, aceitando, sem a menor

objeção, todo e qualquer serviço que lhe fosse

determinado. Era o primeiro a erguer-se do leito rude,

ao ouvir o sinal da sineta, sem temer o frio e as

asperezas da intempérie, e a seguir para o seu moirejar

diurno. Aos domingos raramente saía da fazenda, apesar

de o convidarem a ir com eles a passear, alguns dos

seus companheiros de trabalho, que procuravam os

povoados mais próximos, onde havia diversões e muitos

onde gastavam as férias até o último vintém, voltando

alguns meio embriagados. Calisto, que era regrado e

econômico, era o exemplo que nosso herói seguia.

SPF, SP1: acceitando (,)

SPF, SP1: objecção

SPF, SP1: signal

SPF, SP1: intemperie

SPF, SP1: sahia; apezar de

SPF, SP1: elles

SPF, SP1: proximos

SPF, SP1: ferias; ultimo; vintem

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: economico; heróe

85

90

O encarregado do coronel Paulino, que era um

sujeito perspicaz, notava a conduta regular de João,

convencendo-se por fim que Calisto lhe trouxera ouro

de lei, como dissera a princípio. A seriedade de João o

seu afã no trabalho, a sua solicitude em desempenhar –

e desempenhar bem, – todo e qualquer trabalho que lhe

fosse cometido, muito acreditaram o mancebo no

conceito de Melquíades, que, admirado da sua exação

no cumprimento dos seus deveres, teve-o como a pérola

dos seus trabalhadores e considerou-o digno de inteira

confiança, o que fez ver ao coronel.

SPF, SP1: conducta

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: principio

SPF, SP1: afan

SPF, SP1: commettido

SPF, SP1: Melchiades; exacção

SPF, SP1: perola

95

Obrigado a uma economia restrita, João, até o SPF, SP1: restricta

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seu vestuário de trabalho, que já se achava bastante

estragado, lavava ele próprio, remendava e consertava

nos dias de descanso.

SPF, SP1: vestuario

SPF, SP1: elle; proprio

100

Desconfiado uma feita que Calisto reparava-o a

miúde e talvez o tomasse por um avarento repugnante,

foi franco com seu amigo, que já o era até à intimidade,

e referiu-lhe as tristes circunstâncias que o obrigaram a

deixar a sua família, e quanto lhe importava solver os

seus compromissos para ser livre.

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: meude

SPF, SP1: á intimidade

SPF, SP1: circumstancias

SPF, SP1: familia

105 Calisto abraçou-o com afeto dizendo-lhe: SPF, SP1:Calixto; afecto

110

–Até nisso, amigo há semelhança na nossa

situação. Se bem que eu não fosse casado, nem tivesse

filhos, vim aqui forçado por circunstâncias iguais à sua.

É preciso, para realizarmos o que desejamos, que

tomemos uma empreitada. O Melquíades já me falou de

novo sobre o projeto do coronel, e creio que este não

demorará em propô-la. Se quiser, podemos nós

contratá-la. Isso de jornais não nos aproveita como em

trabalho de avanço.

SPF, SP1: n’isso

SP1: Sibem

SPF, SP1: filhos(,);

circumstancias; eguaes; á sua

SPF, SP1: realisarmos

SPF, SP1: Melchiades

SPF, SP1: projecto

SPF, SP1: propol-a; Si; quizer

SPF, SP1: contractal-a; jornaes

115 –Se quero! Autorizo-o a contratar para nós

ambos.

SPF, SP1: Si; auctorizo-o;

contractar

Dias depois Calisto conversou com Melquíades

sobre o que lhe dissera sobre o projeto do coronel

Paulino e ficou ciente de que estava de pé a idéia da

SPF, SP1: Calixto; Melchiades

SPF, SP1: projecto

SPF, SP1: sciente; idéa

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210

120

125

empreitada, que consistia no desbravamento de muitos

alqueires de terreno ainda vestido de floresta intonsa e

pujante, no qual queria o coronel formar um cafezal em

continuação do que já possuía. Calisto, aproveitando um

domingo foi em companhia de João visitar e examinar a

mata a derribar, tudo mostrou e explicou o companheiro

e, como mais prático e entendido, calculou o valor da

empreitada.

SPF, SP1: FORMAR

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: matta

SPF, SP1: pratico

130

135

140

Dias depois foi combinado o contrato, discutido

o caso com o coronel, que procurava avaliar em menos

os cálculos feitos por Calisto; mas este, que já calculava

o regatear144 do fazendeiro, havia dado uma demasia na

importância a pedir, mesmo que havia feito a avaliação

a olho aproximadamente. Depois da discussão,

acordaram as partes contratantes. Os empreiteiros

começariam o trabalho três meses depois, e obrigavam-

se a dar o cafezal pronto em três anos, sendo

ressalvados casos imprevistos que não fossem

ocasionados pelos empreiteiros. O coronel financiaria o

dinheiro preciso para as primeiras despesas com

ferramentas e aquisições de operários em número

suficiente, pagaria por prestações a importância da

empreitada à medida que fosse sendo realizado o

trabalho, levando-se em favor dos empreiteiros os

SPF, SP1: contracto

SPF, SP1: coronel (,)

SPF, SP1: calculos; Calixto;

este(,)

SPF, SP1: importancia

SPF, SP1: approximadamente

SPF, SP1: accordaram;

contractantes

SPF, SP1: tres; mezes

SPF, SP1: prompto; tres; annos

SPF, SP1: occasionados

SPF, SP1: acquisições; operarios;

numero

SPF, SP1: sufficiente;

imoportancia

SPF, SP1: á medida; realisado

144 Regatear: questionar acerca do preço de, para comprar mais barato; pechinchar.

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211

145

150

155

trabalho, levando-se em favor dos empreiteiros os

prejuízos da plantação motivados pela intempérie, mas

ficando sempre parte reservada para garantia ou caução.

Afora a roçada, derribada e outros trabalhos

preliminares, o que tudo era calculado à parte, os

cafeeiros eram pagos por unidade. Os empreiteiros

tinham direito a um pequeno trato de terreno para sua

instalação provisória até o final do trabalho, feita a

roçagem dele por sua conta, podendo edificar o rancho,

acomodação de animais e engorda de cevados e

galináceos, e outras dependências; e podiam fazer para

si plantação de cereais, horta, etc., mesmo em todo

terreno destinado ao cafezal, contanto que esse não

fosse prejudicado no seu desenvolvimento.

SPF, SP1: prejuizos; intemperie

SPF, SP1: á parte

SPF, SP1: caféeiros

SPF, SP1: tacto

SPF, SP1: installação; provisoria

SPF, SP1: d’elle

SPF, SP1: accomodação; animaes

SPF, SP1: gallinaceos;

dependencias

SPF, SP1: cereaes

SPF, SP1: cafesal; comtanto

160

Tudo assim assentado, entrou Calisto a

arrebanhar145 trabalhadores baianos, entre os que já

estavam em São Paulo e escrevendo para a Bahia a

conhecidos seus que desejassem trabalhar ali mediante

bons jornais que lhe garantia.

SPF, SP1: Calixto

SPF, SP1: bahianos

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: alli

SPF, SP1: jornaes

O que é certo é que no fim de três meses

assinados no contrato, meteram os empreiteiros mãos à

obra. João e Calisto à frente de um exército de

trabalhadores, que foram divididos em turmas sobre a

direção de escolhidos e tiveram as suas tarefas

SPF, SP1: tres; mezes

SPF, SP1: assignados; contracto;

metteram; á obra

SPF, SP1: Calixto; á frente;

exercito

145 Arrebanhar: recolher.

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165

direção de escolhidos e tiveram as suas tarefas

delimitadas, tanto trabalhavam com afã como

revezavam-se, fazendo uma geral fiscalização.

SPF, SP1: direcção

SPF, SP1: afan

SPF, SP1: faziam (Emendou-se)

170

175

180

Há reais perigos no desbravar aquelas selvas,

como bem sabe a maior parte dos trabalhadores baianos

dos nossos sertões, por isso eram tomadas sérias

precauções no sentido de evitá-los. As picadas dos

insetos venenosos, o morso de uma grande variedade de

serpentes, que, entanto poderiam inocular miasmas

mortíferos ou ocasionar uma instantânea morte, eram

menos temerosos, no entender dos rudes jornaleiros do

que a queda de árvores possantes, mesmo de suas

enormes pernadas, que podiam de um momento para o

outro esmagar um machadeiro menos cauteloso. Daí

serem mais bem remunerados, como incentivo, os

jornaleiros que se ocupavam com a roçagem e

derribadas.

SPF, SP1: reaes; aquellas

SPF, SP1: bahianos

SPF, SP1: serias

SPF, SP1: evital-os

SPF, SP1: insectos

SPF, SP1: mortiferos; occasionar;

intantanea

SPF, SP1: arvores

SPF, SP1: D’ahi

SPF, SP1: occupavam

185

Quanto às feras, que deviam existir em grande

cópia naquelas florestas quando das suas primitivas

explorações, já eram raras naquele trecho, mais ou

menos afugentadas pelos desbravamento e culturas

realizadas nos arredores. Entretanto, não deixavam de

estar atentos os trabalhadores contra aquelas que por ali

pudessem aparecer, armados e munidos para o que

SPF, SP1: ás féras

SPF, SP1: copia; n’aquellas

SPF, SP1: n’aquelle

SPF, SP1: realisadas; Entretanto

(,)

SPF, SP1: attentos; aquellas; alli

SPF, SP1: podessem; apparecer

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190

desse e viesse. A caça, apesar de esquiva e atemorizada

pelo estrépito do trabalho, não raro aparecia para o

proveito e regalo daquela gente nas horas de descanso.

SPF, SP1: désse; apezar

SPF, SP1: apparencia

SPF, SP1: d’aquella; descanço

195

200

João, como todos os nossos sertanejos desta

região quase toda povoada de carrascos e catingas,

quando viam pela primeira vez aquelas matas soberbas,

achou-se a princípio tomado de surpresa diante daquela

magnificência natural; mas por fim acostumou-se,

afincando-se ao trabalho, sem mais se preocupar com

ela, como os mais experientes trabalhadores. Havia,

porém, trabalhadores baianos das nossas zonas

florestais da Bahia que não se surpreendiam à vista das

matas de São Paulo, que não são mais majestosas do

que as nossas.

SPF, SP1: d’esta

SPF, SP1: quasi

SPF, SP1: aquellas; mattas

SPF, SP1: principio; deante;

surpreza; d’aquella

SPF, SP1: magnificencia; porfim

SPF, SP1: affincando-se;

preoccupar-se (Emendou-se)

SPF, SP1: ella

SPF, SP1: porem; bahianos

SPF, SP1: Bahia, (Emendou-se.);

surprehendiam; á vista

SPF, SP1: mattas; S. Paulo;

magestosas

205

210

Como precaução contra a perigosa queda das

árvores mais possantes, entre as quais o jequitibá era

considerado o rei das florestas, para derribá-las

armavam jiraus146 que as mantinham de pé mesmo

decepadas, depois de despidas de sua galhada. Muitos

desses mejestosos espécimes vegetais eram derribados

por empreitadas depois de feita a roçagem e desbastada

a floresta das árvores de porte menor e de corte mais

fácil.

SPF, SP1: árvores; quaes

SPF, SP1: derribal-as

SPF, SP1: GIRAUS; ás

mantinham (Emendou-se.)

SPF, SP1: especimes; vegetaes

SPF, SP1: arvores

SPF, SP1: facil

146 Jiraus: armação de madeira em forma de estrado ou palanque.

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215

220

225

Alguns meses depois, em meio da geral

devastação, viam-se ali pilhas enormes de possantes

madeiros que seriam retirados e desde logo conduzidos

para o aproveitamento industrial, para lenha aquelas que

para isso somente serviam, e para as serrarias os que

deviam ser reduzidos a taboas, pranchões ou outras

espécies aplicadas às construções e objetos de

marcenaria ou carpintaria. As queimadas eram feitas

com muita cautela para que se evitassem incêndios

prejudiciais, sendo feitas parcialmente, insuladas por

largos aceiros, e, de preferência, sobre os tocos que

deviam ser destruídos, não convindo para arrancá-los

armarem engenhos apropriados que demorariam o

trabalho e torna-lo-iam mais dispendioso. Em tudo isso

a atividade e experiência de Calisto iam adiante da boa

vontade de João, que não dispensava o seu conselho e

direção

SP1: Alguna (Erro óbvio.); SPF,

SP1: mezes

SPF, SP1: alli

SPF, SP1: aquellas

SPF, SP1: especies; applicadas; ás

construcções; objectos

SPF, SP1: incendios

SPF, SP1: prejudiciaes

SPF, SP1: preferencia; tócos

SPF, SP1: destruidos; arrancal-os

SPF, SP1: tornal-o-iam;

despendioso

SPF, SP1: actividade; experiencia;

Calixto; adeante

SPF, SP1: João (,)

SPF, SP1: direcção

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QUINTA PARTE SP: Quinta parte (sublinhado)

ABÍLIO EM AÇÃO SP: Abilio em acção; SPF, SP1:

ABILIO; ACÇÃO

I

5

10

João, sempre e desde que lhe foi possível, quer

caminho do exílio, quer de São Paulo, não deixava de

trazer Maria e seu velho mestre informados de tudo

quanto lhe ocorria. Assim, achavam-se as pessoas que

lhe eram tão queridas, cientes de tudo quanto vimos

narrando desde a sua saída do lar. Além disso, fazia

recomendações sobre recomendações respeito os seus

negócios, quer a um quer a outra.

SP, SPF, SP1: possivel

SP, SPF, SP1: exilio; S. Paulo

SP, SPF, SP1: occoria; achavam-se

pessoas (Emendou-se.)

SP, SPF, SP1: scientes

SP, SPF, SP1: sahida; Alem;

d’isso(,)

SP, SPF, SP1: recommendações;

recommendações

SP, SPF, SP1: negocios; a outra

15

20

Quando faltava cerca de um mês para o

vencimento e resgate da terceira letra que se achava

com Abílio, recebeu Serafim o dinheiro preciso para o

pagamento dela e da última, que poderia ser resgatada

com desconto, ficando, portanto, João livre do seu

credor e podendo daí por diante acumular meios que

lhe facilitassem melhorar o futuro de sua família. Se

isso muito contentamento trouxe a Maria, por outro

lado, a notícia de que seu marido teria que prolongar a

sua ausência não deixou de entristecê-la.

SP, SPF, SP1: mes

SP, SPF, SP1: lettra

SP, SPF, SP1: Abilio; Seraphim

SP, SPF, SP1: d’ella; ultima

SP, SPF, SP1: d’ahi; deante;

accumular

SP, SPF, SP1: familia; Si

SP, SPF, SP1: lado (,)

SP, SPF, SP1: noticia

SP, SPF, SP1: ausencia; entristecel-

a

Nunca uma ventura é completa, pensava Maria

considerando que dois anos mais ou menos faltavam

SP, SPF, SP1: dous; annos

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25

30

35

para que tivesse a dita a ver e abraçar seu querido

esposo. E tinha razão, porque não era somente a

saudade que a afligia. Ausente João, a sua fazenda ia

deteriorando-se a olhos vistos, pois os meeiros não

cuidavam com interesse da conservação dos

tapumes147, e às vezes deixavam de cultivar parte do

terreno; e os poucos animais que o casal possuía não

podiam ser zelados e tratados a tempo e hora como se

fazia mister. Serafim, como prometera, vinha

constantemente ali, e mostrava-se solícito e

prestimoso; mas era tão atarefado nos seus trabalhos

de lavoura, que Maria deixava de procurá-lo

constantemente temendo vexá-lo; só em casos de

maior importância recorria ao seu auxílio e conselho.

SP, SPF, SP1: affligia

SP, SPF, SP1: ás vezes

SP, SPF, SP1: animaes; possuia

SP, SPF, SP1: Seraphim;

promettera; alli

SP, SPF, SP1: solicito

SP, SPF, SP1: procural-o

SP, SPF, SP1: vexal-o; importancia

SP, SPF, SP1: auxilio

40

Serafim, recebida a incumbência de João, logo

no domingo seguinte, procurou Abílio em sua casa

para realizar os pagamentos mesmo antes da data dos

vencimentos; mas, recebido por dona Úrsula,

informou-lhe ela que seu filho havia viajado e

demoraria mais de um mês ausente.

SP, SPF, SP1: Seraphim;

incumbencia; seguinte (,)

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: realisar

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: mes

45

–Nesse caso a senhora pode receber o dinheiro

que eu lhe trouxe, passando-me uma ressalva148.

SP, SPF, SP1: N’esse

SP, SPF, SP1: resalva

–Abílio nada me recomendou sobre seus SP, SPF, SP1: Abilio;

recommendou

147 Tapume: vedação provisória de um terreno feita com madeiras ou silvas. 148 Ressalva: documento para garantia de alguém.

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negócios. SP, SPF, SP1: negocios

50

A nenhuma objeção ou pedido do velho

professor atendeu a velha, chegando a zangar-se com a

insistência dele. Não passou pela idéia de Serafim que

a viagem do filho e a teimosia de sua mãe fossem

calculadas; mas podemos garantir que havia propósito

da parte do mancebo, como passaremos a demonstrar.

SP, SPF, SP1: objeçcão

SP, SPF, SP1: attendeu

SP, SPF, SP1: insistencia; d’elle;

idéa; Seraphim

SP, SPF, SP1: temosia

SP, SPF, SP1: proposito

SP, SPF, SP1: mancebo (,)

55

60

65

70

Desde que João viajou, era empenho de Abílio

saber onde ele pararia em São Paulo e, tomado dessa

idéia, freqüentava quase sempre o correio de Caetité,

logo que calculou terminada a sua viagem. Veio, por

fim, a encontrar na estação postal uma das cartas que o

seu condiscípulo endereçava a Serafim e ofereceu-se

para levá-la, pois o destinatário era seu vizinho, o que

conseguiu. Em casa violou-a de modo que pudesse

fechá-la de novo e ninguém viesse a suspeitar da sua

ação indigna. A letra era-lhe conhecida bastante desde

os tempos escolares, por isso estava certo de ser do

próprio João. Aberta a do professor e lida com

atenção, a curiosidade levou-o a violar e ler a de

Maria. Rejubilando-se porque ficou inteirado do

paradeiro de seu condiscípulo e de tudo quanto lhe

convinha quanto aos seus negócios e esperanças, repôs

as cartas no estado em que estavam e fez a entrega no

SP, SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: elle; S. Paulo; d’essa

SP, SPF, SP1: idéa; frequentava;

quasi

SP, SPF, SP1: porfim

SP, SPF, SP1: condiscipulo;

Seraphim; offereceu

SPF, SP1: leval-a; destinatario;

visinho

SP, SPF, SP1: podésse

SPF, SP1: fechal-a; ninguem;

viesse

SP, SPF, SP1: acção; lettra

SP, SPF, SP1: proprio

SP, SPF, SP1: attenção

SP, SPF, SP1: condiscipulo

SP, SPF, SP1: negocios; repoz

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dia seguinte. Não lhe convinha repetir a miúdo esses

processos e, quando vinham cartas de João com valor

declarado, se por ventura as encontrava, negava-se a

levá-las ao seu destino.

SP, SPF, SP1: miudo

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: leval-as

75

80

85

Estava, pois, ciente Abílio por esta, e por uma

ou outra carta simples que conseguiu violar depois, da

insistência com que João se referia ao pagamento das

suas letras, prometendo realizá-lo logo que recebesse

do fazendeiro uma das prestações da empreitada. Em

uma delas João prefixava a data da remessa do

dinheiro preciso para o pagamento das duas últimas

letras, uma com antecipação do prazo estipulado.

Ciente disso, viajou logo que calculou mais ou menos

chegar o dinheiro às mãos de Serafim, recomendando

a dona Úrsula que não recebesse dinheiro algum

durante a sua ausência.

SP, SPF, SP1: sciente; Abilio

SP, SPF, SP1: insistencia

SP, SPF, SP1: lettras (,);

promettendo; realisal-o

SP, SPF, SP1: d’ellas

SP, SPF, SP1: ultimas

SPF, SP1: lettras

SP, SPF, SP1: Sciente; d’isso

SP, SPF, SP1: ás mãos;

Seraphim(,); recommendando

SP, SPF, SP1: D. Ursula

SP, SPF, SP1: ausencia

90

Por que e por que Abílio assim procedia?

João, confiado no sigilo epistolar, por mais de uma vez

revelara à sua esposa e ao seu velho mestre o desejo

ardente de libertar-se de Abílio pagando-lhe o que lhe

devia sem que entrasse em minudentes explicações do

motivo dessa sua idéia, dizendo apenas ligeiramente

que, tanto Maria como Serafim, bem sabiam porque.

Isso levou o filho de dona Úrsula a matutar sem

SP, SPF, SP1: Porque; Abilio

SP, SPF, SP1: sigillo

SP, SPF, SP1: a sua

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: d’essa; idéa

SP, SPF, SP1: Seraphim

SP, SPF, SP1:d. Ursula

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219

95

100

105

110

descanso. Desejava decifrar o enigma, saber porque

João desconfiava do seu antigo condiscípulo e rival.

Estava convencido de que Serafim não havia revelado

a João nem a Maria a sua infame conduta anterior;

pois, estudando o caso e estabelecendo confrontação,

atilado como era, conhecendo desde a infância o gênio

de João que, se era manso e superficialmente humilde,

em contraste, possuía um fundo de orgulho e

susceptibilidade irredutíveis, capaz de ações violentas,

concluiu que, se ele soubesse de alguma coisa, teria

rompido franca e violentamente os laços de amizade

que os prendiam, antes de sua viagem. Estava, pois,

convencido de que não era esse o motivo da

desconfiança que João revelava a seu respeito em mais

de uma carta, dizendo francamentre que era “sua

aspiração libertar-se de Abílio pelas razões que o

professor e Maria bem conheciam.”

SP, SPF, SP1: condiscipulo

SP, SPF, SP1: Seraphim

SP, SPF, SP1: conducta

SP, SPF, SP1: infancia; genio

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: possuia

SP, SPF, SP1: irreductiveis; acções

SP, SPF, SP1: si; elle

SP, SPF, SP1: cousa

SP, SPF, SP1: Abilio

SP1: conheciam.(”)

115

Estas palavras eram o móvel da questão e

causavam-lhe uma espécie de ciúme e de ódio

recrescentes que em seu ânimo tomavam proporções

na altura da sua desmesurada e inconsiderada paixão

por Maria. Estava certo de que Serafim não havia

revelado aos jovens consortes, senão por bem dele

Abílio, mas pela tranqüilidade e harmonia que

SP, SPF, SP1: movel

SP, SPF, SP1: especie; ciume; odio

SP, SPF, SP1: animo

SP, SPF, SP1: Seraphim

SP, SPF, SP1: sinão; d’elle

SP, SPF, SP1: Abilio;

tranquillidade

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220

120

desejava com ardoroso interesse existisse sempre no

seio daquele casal, por quem daria a vida e a quem

muito mais estimava do que a ele, pobre repudiado e

relegado a um desprezo que o professor mal podia

encobrir.

SP, SPF, SP1: d’aquelle

SP, SPF, SP1: elle (,)

125

130

135

140

Afinal chegou a admitir, como único e

possível meio usado por Serafim para afastá-lo do

venturoso casal, a informação lenta e cautelosa, mas

sintética, em modo geral, sem que fosse precisado um

fato, apontada uma falta, indicada uma jaça149, – do

caráter daquele que considerava um perigo iminente,

uma ameaça à felicidade dos seus protegidos, daqueles

dois entes que estremecia e pelos quais seria capaz de

sacrificar a ele Abílio. Fora Serafim, e não outro que

prevenira João falando-lhe em modo geral do seu

caráter, do tendencioso dos seus modos polidos e

delicados e outros predicados maus que lhe emprestou

condimentando-os com algumas qualidades boas que

eram sobrepujadas pelos defeitos. O velho professor

era inteligente e experimentado bastante para

conseguir que João se premunisse contra ele sem

declarada inimizade.

SP, SPF, SP1: unico

SP, SPF, SP1: possivel; Seraphim;

afastal-o

SP, SPF, SP1: synthetica

SP, SPF, SP1: facto; um jaça

(Emendou-se para uma jaça.)

SPF, SP1: caracter; d’aquelle;

imminente

SP, SPF, SP1: á felicidade;

d’aquelles

SP, SPF, SP1: dous; quaes

SP, SPF, SP1: elle; Foi Abilio;

Seraphim

SP, SPF, SP1: previniu

SP, SPF, SP1: caracter

SP, SPF, SP1: intelligente

SP, SPF, SP1: elle

Um ódio terrível contra Serafim brotou no

coração de Abílio arrastando aquele espírito

SP, SPF, SP1: odio; terrivel;

Seraphim

149 Jaça: mancha, falha.

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221

145

150

coração de Abílio arrastando aquele espírito

apaixonado a uma espécie de alucinação. O despeito, o

ciúme, o desejo insopitável de possuir Maria a todo o

transe açulavam aquele espírito enfermo contra o

velho mestre que, como um argos, vigiava-o a todo o

momento, estudava todos os movimentos, chegava a

adivinhar os seus mais íntimos pensamentos; que,

como atalaia150 incansável, era-lhe um embaraço e,

como um cérbero151, guardava o que ele mais

ambicionava: Maria. Era preciso, indispensável,

inutilizar, mesmo eliminar aquele homem.

SP, SPF, SP1: Abilio; aquelle;

espirito

SP, SPF, SP1: especie

SPF, SP1: allucinação; ciume;

insopitavel

SP, SPF, SP1: aquelle; espirito;

emfermo

SP, SPF, SP1: advinhar; intimos

SP, SPF, SP1: incançavel

SP, SPF, SP1: cèrbero; elle

SP, SPF, SP1: indispensavel

SP, SPF, SP1: aquelle

155

160

Restava-lhe achar o meio eficiente, mas um

meio que não despertasse desconfianças nem lhe

prejudicasse os cálculos. Era preciso um instrumento

dócil que agisse por si próprio convencido de que não

trabalhava para outrem, e Abílio o possuía em

Roberto, o meeiro de João, o taciturno a que Serafim

se referira quando conversava com Maria. O refalsado

amigo de João vinha desde muito tempo estudando o

caráter de Roberto, que somente com ele se abria,

somente para ele sorria, mas com esse sorriso que

denuncia uma alma perversa e capaz de tudo para o

mal, embora fosse manifestação de alegria, dessa

SP, SPF, SP1: efficiente

SP, SPF, SP1: calculos

SP, SPF, SP1: docil; proprio

SP, SPF, SP1: possuia; Abilio

SP, SPF, SP1: Seraphim

SP, SPF, SP1: caracter; elle

SP, SPF, SP1: sómente; elle

SP, SPF, SP1: d’essa

150 Atalaia: vigia, guarda. 151 Cérbero: guarda ou porteiro intratável, grosseiro.

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165

alegria malsã que é o regozijo dos maus quando

vencida ou planeada uma das suas empreitadas com

probabilidades de vitória. Era, em suma, o ricto da

besta fera.

SPF, SP1: regosijo

SP, SPF, SP1: victoria; summa;

rictus

170

175

180

185

Abílio, estudando a fundo aquele caráter

esquisito e perigoso, simpatizou-se com ele, pode-se

assim dizer, porque a sua alma afinava-se pela dele,

apenas com a diferença de, pela sua inteligência

bastante desenvolvida, e pela cultura e trato com a boa

sociedade, saber e conseguir ocultar os seus maus

desígnios e conter os seus movimentos impulsivos. Por

meio de uma grande liberdade que dispensava a

Roberto em favores e deferências152 em particular,

procurando sempre se colocar a cavaleiro de tão abjeta

criatura, conseguiria que o seu protegido o obedecesse

até o servilismo e chegasse a ser-lhe dedicado como

um rafeiro153. Restava-lhe aguardar uma oportunidade

que ele saberia preparar cautelosamente por meio das

suas conhecidas astúcias para chegar ao negregado fim

que tinha em vista, ou aproveitar um incidente

qualquer que lhe oferecesse azo154 para efetivar o que

desejava.

SP, SPF, SP1: Abilio; aquelle;

caracter

SP, SPF, SP1: exquisito;

sympathizou-se; elle

SP, SPF, SP1: d’elle

SP, SPF, SP1: differença;

inteligencia

SP, SPF, SP1: occutar

SP, SPF, SP1: designios

SP, SPF, SP1: deferencias

SP, SPF, SP1: collocar-se;

cavalleiro; abjecta

SP, SPF, SP1: obedessesse

SP, SPF, SP1: opportunidade

SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: astucias

SP, SPF, SP1: offerecesse; aso;

effectivar

152 Deferências: consideração, acatamento, respeito. 153 Rafeiro: cão treinado para guardar o gado. 154 Azo: motivo, ensejo.

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223

190

195

200

Esse ensejo chegou. Quando, feita a colheita

do arroz, teve Roberto que entregar a Maria a parte

que lhe competia. Serafim, a pedido dela, achava-se

presente, como era de mister, porque o velho professor

era prático nisso, e Maria nenhuma experiência tinha a

respeito, nem poderia fazer qualquer reclamação que

fosse precisa porventura. Os dois outros meeiros foram

corretos, mas Roberto não. O arroz não estava

convenientemente soprado, isto é ventilado a fim de

separar o bom grão do palhiço155 e dos chochos,156 de

sorte que, se de novo fosse ventilado, ficaria reduzido

quase à metade. Serafim observou-lhe que não podia

receber, tanto mais que os outros meeiros haviam

trazido toda a sua colheita, bem limpa, para ser medida

e partilhada e ele não, o que levantava desconfiança

quanto à honestidade de Roberto.

SP, SPF, SP1: colheta

SP, SPF, SP1: Seraphim; d’ella

SP, SPF, SP1: pratico; experiencia

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: correctos

SP: soprado; SPF, SP1:

SOPRADO; afim de

SP, SPF, SP1: si; quasi

SP, SPF, SP1: á metade; Seraphim

SP, SPF, SP1: colheta

SP, SPF, SP1:elle; á honestidade

–Eu não sou ladrão! – disse Roberto com certo

azedume e ar de exprobração157.

SP, SPF, SP1: exprobacção

205

–Nem eu estou dizendo que você o seja.

–Se você não receber, eu trago todo e não

quero mais saber desta...

SP, SPF, SP1: Si

SP, SPF, SP1: d’esta

E o malcriado, sem respeitar o velho e a

senhora, terminou com uma palavra porca e indecente

155 Palhiço: palha traçada ou moída. 156 Chocho: infrutífero, peco. 157 Exprobração: acusação.

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224

210

senhora, terminou com uma palavra porca e indecente

que nos pesa aqui escrever.

–Mais respeito! – exclamou Serafim, escarlate

de indignação.

SP, SPF, SP1: Seraphim

–Você mesmo anda de propósito comigo –

vociferou o atrevido fremindo de ódio.

SP, SPF, SP1: proposito; commigo

SP, SPF, SP1: odio

215 –Você! Sou um velho a quem deve respeitar.

Não quero discussões.

220

Roberto saiu pisando duro e resmungando

impropérios. Os outros meeiros, indignados diante

daquela conduta irregular e insolente, ofereciam-se

para desancar o patife; mas Serafim nada quis que lhe

fizessem.

SP, SPF, SP1: sahiu

SP, SPF, SP1: improperios; deante

SP, SPF, SP1: d’aquella; conducta;

offereciam-se

SP, SPF, SP1: Seraphim; quiz

–Deixá-lo! É um pobre e miserável

degenerado. –E, voltando-se para Maria: –Eu não lhe

disse comadre?

SP, SPF, SP1: miseravel;

desgenerado

225

Os dois restantes meeiros informaram então

que já tinham ciência de que Roberto era um patife e

que, por isso, não queriam relações com ele. Chegaram

a referir fatos que demonstravam quanto ele era

insolente e de maus costumes.

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: sciencia

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: factos ; elle

230 –Que Deus se compadeça dele – observou o

professor com fleuma158.

SP, SPF, SP1: d’elle

SP, SPF, SP1: phleugma

158 Fleuma: severidade.

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225

Nesse dia Roberto desapareceu. SP, SPF, SP1: N’esse;

desappareceu

II

5

Era quase noite fechada quando Roberto

chegou à casa de Abílio; mas este ainda não tinha

voltado da sua viagem. Dona Úrsula, que muito o

conhecia, viu-o de pé à frente da casa e, curiosa, já

farejando alguma novidade, pois o camarada só ali

aparecia aos domingos, veio à porta.

SP, SPF, SP1: quasi

SP, SPF, SP1: á casa; Abilio

SP, SPF, SP1: D. Ursula

SP, SPF, SP1: á frente

SP, SPF, SP1: alli;

SPF, SP1: apparecia; á porta

–O que quer? – perguntou a velha com os seus

modos de senhora, que Roberto já conhecia de sobra.

10 –Estou desempregado, patroa – respondeu

Roberto descobrindo-se e mostrando-se servil diante

da velha, que considerava uma generosa fidalga da

gema – e vim procurar a proteção do patrão.

SP, SPF, SP1: deante

SP, SPF, SP1: gemma; protecção

–Botaram você pra fora? SP, SPF, SP1: pr’a

15 –Que dúvida! Tanto monta! SP: Tanto monta!, SPF, SP1:

duvida;TANTO MONTA!

–O que houve, então? – inquiriu a velha

ansiosa pela novidade.

SP, SPF, SP1: inqueriu

SP, SPF, SP1: anciosa

–Eu não posso aturar um velho pernóstico que

por lá anda metendo o nariz em tudo.

SP, SPF, SP1: pernóstico

SP, SPF, SP1: la; mettendo

20 –É um tal Serafim? SP, SPF, SP1: Seraphim

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226

–Esse mesmo, patroa. Aquilo é um

malcriadão.

SP, SPF, SP1: Aquillo

–Que fez ele? SP, SPF, SP1: elle

–Me pôs de ladrão por mór do arroz da

meia159.

SP, SPF, SP1: poz; ‘mor

25 –E agora?

–Deixei lá tudo de esmola pra aqueles

famintos e vim ficar aqui.

SP, SPF, SP1: la; p’ra; aquelles

–É assim mesmo, meu filho. Quem se mete

com porcos...

SP, SPF, SP1: mette

30 –Só come o farelo. SP, SPF, SP1: Sò

–Abílio não está aqui, mas chega nestes dois

dias. Fique por aí até a chegada dele. –E deu-lhe a

chave de um quarto de arranchamento de camaradas.

SP, SPF, SP1: Abilio; SP: dous

SP, SPF, SP1: ahi; delle

–Eu trago muita fome, patroa.

35 –Descanse que disto não morrerá aqui. Mais

tarde conversaremos melhor.

SP, SPF, SP1: Descance

Roberto foi aboletado160 e teve ceia farta.

40

No dia seguinte, dona Úrsula achou jeito de

conversar detidamente com o ex-meeiro de João e

saber do que se deu minudentemente. É bem certo que

o informante alterou a verdade quanto lhe pareceu

necessário para que a razão ficasse de seu lado e fosse

SP, SPF, SP1: seguinte (,); d.

Ursula; geito

SP, SPF, SP1: necessario

159 Por mór do arroz da meia: por modo do arroz de meia. 160 Aboletado: instalado; alojado.

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227

45

50

55

ele uma vítima da injustiça do velho mestre-escola.

Dona Úrsula, não se esquecendo das reiteradas

recomendações de seu filho, ia cautelosamente

emitindo a sua opinião a respeito de Serafim, a quem

muito odiava; mas sempre de modo que açulasse161 o

rancor do seu novo protegido e acendesse em seu

espírito uma vingança que já se delineava nele, como

ela percebeu no correr da conversação. Tanto quanto

lastimava a injustiça praticada contra Roberto, ainda

mais por fim, mostrava-se carinhosa com a vítima, e

chegando a despir-se dos seus hábitos arrogantes de

fidalga empafiosa e soberba. Roberto sentia-se

lisonjeado e agradecido, pois a velha conseguiu

enxugar lágrimas de crocodilo ao ouvir sua narração.

SP, SPF, SP1: elle; victima

SP, SPF, SP1: D. Ursula

SP, SPF, SP1: recommendações

SP, SPF, SP1: emittindo; Seraphim

SP, SPF, SP1: accendesse

SP, SPF, SP1: espirito; n’elle

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: porfim; victima

SP, SPF, SP1: habitos

SP, SPF, SP1: lagrimas

60

Terminado o colóquio entre aqueles dois

patifes, conseguiu dona Úrsula que Roberto se

conservasse oculto de modo que ninguém soubesse do

seu paradeiro até que Abílio, que estava a chegar,

dissesse-lhe o que tinha de fazer e qual o destino que

devia tomar; pois calculou que não convinha soubesse

Serafim que o meeiro expulso ali se achava.

SP, SPF, SP1: colloquio; aquelles

dous

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: ninguem

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: Seraphim; alli

65

Abílio chegou no terceiro dia à noite. Dona

Úrsula achava-se tão ansiosa por dar a seu filho a

grande novidade que, mesmo durante a ceia, foi-lhe

SP, SPF, SP1: Abilio; á noite; D.

Ursula

SP, SPF, SP1: anciosa

SP, SPF, SP1: novidade, que

( l l 161 Açular: provocar, estimular.

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228

grande novidade que, mesmo durante a ceia, foi-lhe

dizendo:

mesmo (Deslocou-se a vírgula

separando o adjunto adverbial.)

–Alvíssaras162, Abílio! O seu Serafim brigou

com o Roberto e pô-lo fora das terras da Maria.

SP, SPF, SP1: Alviçaras; Abilio;

Seraphim

SP, SPF, SP1: pôl-o

70

–É certo? Como sabe, minha mãe? – inquiriu

Abílio já alvoraçado e calculando o proveito que desse

incidente poderia tirar.

SP, SPF, SP1: inqueriu

SP, SPF, SP1: Abilio; ja; d’esse

75

–Como sei? Pois se o Roberto está aqui desde

anteontem à tua espera! Recomendei-lhe que se

ocultasse até a tua vinda, porque achei que assim

muito convinha.

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: ante-hontem; á tua;

Recommendei-lhe

SP, SPF, SP1: occultasse

–Obrou com acerto. Amanhã verei o que se

faz.

80

–Agora, Abílio, o que vais fazer? Continuas

amigo do tal Serafim, que foi tão desatencioso

despedindo o teu recomendado? Isso não foi uma

desfeita do grosseirão?

SP, SPF, SP1: Abilio; vaes

SP, SPF, SP1: Seraphim;

desattencioso

SP, SPF, SP1: recommendado

–Nenhum juízo podemos adiantar sobre isso.

Não se sabe ao certo o que se deu.

SP, SPF, SP1: juizo; adeantar

85

–Não se sabe! Estou bem informada. O velho

malcriado pôs o rapaz de ladrão, insultou-o e botou-o

para fora com as mãos vazias, ficando com tudo

quanto lhe pertencia. Um rapaz honesto e trabalhador

como o Roberto! Pode-se aturar uma coisa destas?

SP1: rapoz (Erro óbvio.); SP, SPF,

SP1: poz

SP, SPF, SP1: p’ra; vasias

SP, SPF, SP1: cousa; d’estas

162 Alvíssara: interjeição utilizada para anunciar boas novas.

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229

como o Roberto! Pode-se aturar uma coisa destas?

90

–Deixe isso, minha mãe; trataremos do que

mais importa. Diga-me: o professor veio?

–Ora se veio! Como um feixinho de lenha. SP, SPF, SP1: si

–E o que fez a senhora?

95

–O que me recomendaste. O maldito

esbravejou, disse o diabo... não sei como não me

bateu! Mas não quis receber o dinheiro nem lhe

mostrei as letras.

SP, SPF, SP1: recommendaste

SP, SPF, SP1: quis

SP, SPF, SP1: lettras

100

Abílio bem sabia que tudo aquilo era

inventivas de sua mãe, que bem conhecia como

embusteira163 e maldosa; mas aparentou dar fé à

informação, embora estivesse certo de que o velho

mestre-escola era incapaz de proceder assim.

SP, SPF, SP1: Abilio; aquillo

SP, SPF, SP1: apparentou; á

informação

105

–Andou mal o pobre velho; mas devemos

perdoar-lhe essas imprudências. O essencial é não ter

resgatado as letras no prazo. A senhora andou bem,

obrou com juízo. Assim é que eu quero que minha mãe

proceda.

SP, SPF, SP1: imprudencias

SP, SPF, SP1: lettras; praso

SP, SPF, SP1: juizo

110

Dona Úrsula ficou em extremo lisonjeada com

os gabos propositais do filho e, considerando que já

merecia a inteira confiança dele, supôs que pudesse

penetrar o segredo dos seus planos.

SP, SPF, SP1: D. Ursula

SP, SPF, SP1: propositaes

SP, SPF, SP1: d’elle; suppoz

163 Embusteira: qualidade atribuída às pessoas que costumam mentir.

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230

115

–O que eu não posso compreender, Abílio, é

para que te sujeitas a ter um grande prejuízo deixando

de receber o teu dinheiro! Aquela gente não é graça,

meu filho. Quem tem o passarinho na mão não deve

dizer “chô”.

SP, SPF, SP1: comprehender;

Abilio

SP, SPF, SP1: prejuizo

SP, SPF, SP1: Aquella

–Deixe estar, minha mãe; logo saberá. É um

capricho que tomei.

–Um capricho que dará lucro à tal Maria mais

o Serafim. Comem o teu cobre e ficam fanfando164.

SP, SPF, SP1: á tal (Retirou-se a

crase.)

SP, SPF, SP1: Seraphim

120

125

–João possui terras e propriedades que bem

garantem a dívida. Andou por aí dizendo que era o

meu escravo porque me devia e que ia tratar de

libertar-se. Quero por capricho conservá-lo preso à

minha gaveta. Ofendeu-me em dizer isso e provou que

não é um amigo leal.

SP, SPF, SP1: possue

SP, SPF, SP1: divida; ahi

SP, SPF, SP1: conserval-o; á minha

SP, SPF, SP1: Offendeu-me

130

–Eis aí o que são os tais amigos. Em todo o

caso, como a dívida está garantida pelos teres165 dessa

gente, acho que a tua idéia é boa. Não faz mal que

fiquem na miséria e sem um rancho para se

acomodarem. E a Maria...hum!

SP, SPF, SP1: ahi; taes

SP, SPF, SP1: divida; d’essa

SP, SPF, SP1: idéa

SPF, SP1: miseria

SPF, SP1: accommodarem

Ao ouvir esta última interjeição que dona

Úrsula acompanhou de um gesto e o seu rir peculiar de

zombaria, receiou Abílio que ela achasse a ponta da

SPF, SP1: ultima; d. Ursula

SPF, SP1: Abilio; ella

164 Fanfando: alardeando. 165 Teres: posses, bens.

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231

135

140

145

meada dos seus planos e deu por terminada a conversa

alegando estar cansado da viagem. Não desejava

alongar o diálogo, temendo lhe escapasse uma outra

palavra que esclarecesse a velha, o que lhe não

convinha por forma alguma, pois dona Úrsula já não

lhe merecia a confiança de antes, principalmente

quando o assunto lhe parecia de certa gravidade. Se

nem sempre a maldosa velha, em sua leviandade e

bisbilhotice, cometia imprudências, era porque temia o

filho, que sobre ela havia adquirido grande autoridade

e já, por muitas vezes, chegara a repreendê-la

severamente quando a apanhava em faltas.

SPF, SP1: allegando; cançado

SPF, SP1: dialogo

SPF, SP1: d. Ursula

SPF, SP1: assumpto

SPF, SP1: Si

SPF, SP1: commettia;

imprudencias

SPF, SP1: ella; auctoridade

SPF, SP1: reprehendel-a

150

É triste que não nos inspire confiança uma

pessoa a quem devemos o ser e todo o nosso amor e

carinho; mas, infelizmente, não é rara esta aberração

dos mais nobres preceitos e sentimentos morais,

quando pais e filhos não são dotados de bons

sentimentos, ou não receberam uma educação regular

e conforme aos bons preceitos da ética.

SPF, SP1: mas (,)

SPF, SP1: moraes

SPF, SP1: paes

155

Perto de dez horas da noite vamos encontrar

Abílio trancado no seu gabinete. Assentado em frente

à sua secretária, examinava, pela translucidez em

frente de um candeeiro belga, quatro notas

promissórias impressas e cheias nos seus intervalos a

SPF, SP1: Abilio;

SPF, SP1: á sua; examinava (,)

SPF, SP1: promissorias; intervallos

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165

170

175

manuscrito, as quais eram superpostas duas a duas

para a minuciosa verificação que fazia. A caligrafia

das duas via-se, pela transparência, coincidia

perfeitamente em todos os seus traços, concluindo-se

daí que se tratava de sua falsificação. Era de fato.

Tratava-se das letras passadas por João, às quais o

mancebo aumentara os valores inscritos. O falsário

aproveitou quanto possível o que estava escrito à mão,

cobrindo a sombra pela transparência do papel; mas as

importâncias, quer por extenso, quer por algarismos,

foram feitas por outro processo. As assinaturas e datas,

como eram apostas sobre estampilhas que lhe

tornavam opaco o papel, foram aproveitadas na parte

que excedia dos selos pelo primeiro processo, sendo o

restante inteirado por meio de outro papel como se via

pelos modelos que ali estavam. Terminado o exame

pela transparência, Abílio mostrou-se satisfeito; porém

é de crer que o restante deixou para examinar à luz do

dia.

SPF, SP1: manuscripto; quaes

SPF, SP1: caligraphia

SP, SPF, SP1: transparencia

SPF, SP1: d’ahi; facto

SPF, SP1: lettras; ás quaes

SPF, SP1: augmentara; falsario

SPF, SP1: possivel; escripto; a mão

SPF, SP1: transparencia

SPF, SP1: importancias,

SPF, SP1: appostas

SPF, SP1: sellos

SPF, SP1: alli

SPF, SP1: transparencia; Abilio;

porem

SPF, SP1: á luz

180

A viagem por ele empreendida teve por fim

assegurar a sua tratada como passamos a explicar. O

primeiro credor de João, um pobre homem ignorante,

simplório e paupérrimo, foi um achado que Abílio

soube aproveitar tendenciosamente para a realização

SPF, SP1: elle; emprehendida

SPF, SP1: simplorio; pauperrimo;

Abilio

SPF, SP1: realisação

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185

190

195

200

205

do que tinha em vista, e que veio à idéia como parte do

seu programa. Foi mais um elemento que a sua

habilidade encontrou por acaso e considerou precioso

como auxílio do todo dos planos que engendrara.

Protegendo-o às ocultas por ocasião do inventário de

dona Senhorinha, conseguiu captar-lhe a confiança e

gratidão. Aguçando-lhe a ambição de indivíduo pobre

e sem iniciativa que desejava enriquecer-se sem

esforço e para quem um conto de réis é uma fortuna

invejável, recomendava-lhe o maior sigilo para que o

seu negócio não fosse por água abaixo. Ao mesmo

tempo o astuto mancebo pintava-lhe o estado de São

Paulo como um país ideal onde o pax-vobis, com o

resultado da herança que pleiteava, viria a adquirir

uma enorme fortuna, pondo ao seu dispor os seus

préstimos quando deles tivesse necessidade para

emigrar. De tais argumentos e lábias valeu-se Abílio,

que tudo conseguiu à medida dos seus negregados

desejos. Conseguindo que João passasse duas letras

logo que realizado o negócio e, sob o mesmo segredo

recomendado, negociou-as com desconto. O pobre

homem, de posse de grande fortuna, deslumbrado,

esteve por tudo quanto Abílio quis. Como era solteiro

e não tinha ligações estreitas no meio, seguiu logo para

SPF, SP1: á idéa

SPF, SP1: programma

SPF, SP1: auxilio

SPF, SP1: ás occutas; occasião;

inventario

SPF, SP1: individuo

SPF, SP1: invejavel;

recommendava-lhe

SP, SPF, SP1: negocio; agua

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: paiz

SPF, SP1: prestimos; d’elles

SPF, SP1: taes; labias; Abilio

SPF, SP1: á medida

SPF, SP1: lettras

SPF, SP1: realisado; negocio

SPF, SP1: recommendado

SPF, SP1: Abilio; quiz

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São Paulo influído pelo seu protetor que muito lhe

recomendou dar-lhe notícias suas para que, mesmo de

cá, continuasse a dispensar-lhe a sua proteção.

SPF, SP1: S. Paulo; influido;

proctetor

SPF, SP1: recommendou; noticias;

que (,)

SPF, SP1: protecção

210

215

220

Entretanto o protegido de Abílio, por descuido

ou desídia, não deu notícias de si, e isso muito afligia o

tendencioso protetor, que ardia por saber do seu

paradeiro, se se resolvera a voltar, se lá permanecia.

Aproximando-se o vencimento das letras, o ardiloso

filho de dona Úrsula empreendeu a sua última viagem

para fazer indagações sobre o emigrado, pois alguns

dos seus companheiros de bando já tinham regressado

e poderia dar notícias do seu companheiro de viagem.

O falsificador temia que o pobre homem, procurando o

seu antigo devedor, descobrisse a sua tratantada166.

Compreendia Abílio que isso lhe transtornaria os

cálculos e mais punha às claras o seu caráter.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: desidia; noticias

SPF, SP1: proctetor

SPF, SP1: si; si; la;

SPF, SP1: Approximando-se;

lettras

SP, SPF, SP1: d. Ursula;

emprehendeu; ultima

SPF, SP1: noticias

SPF, SP1: Comprehendia; Abilio

SPF, SP1: calculos; ás claras;

caracter

225

Tudo o que se dava no espírito do astucioso

mancebo era uma inquietação, uma espécie de suplício

a que se submetia, que o afligia como um aviso

constante da Providência, que lhe mostrava o transvio

em que estava e prevenia-o de que maiores

sofrimentos, maiores dores experimentaria realizando

o mau intento. Podemos dizer que era uma graça

proveniente que Deus lhe dispensava solícito e

SPF, SP1: espirito

SPF, SP1: especie; supplicio

SPF, SP1: submettia; aflingia

SPF, SP1: Providencia

SPF, SP1: soffrimentos; realisando

SPF, SP1: solicito

166 Tratandada: burla.

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235

230

235

proveniente que Deus lhe dispensava solícito e

carinhoso; mas o infeliz que, no seu procedimento

irregular, antes relevava ignorância e cegueira do que

atilamento e sagacidade, marchava incauto em

caminho da perdição supondo, em seu orgulho de mau,

que ninguém, mais do que ele, possuía critério e

melhor sabia guiar-se.

SPF, SP1: ignorancia

SPF, SP1: suppondo

SPF, SP1: ninguem; elle; possuia;

criterio

240

Ah! Quantos desses enfatuados167, supondo

trabalharem seguramente para a sua felicidade com

desprezo manifesto dessa influência invisível e

poderosa que tudo vê, que em tudo nos auxilia quando

para o bem, ou para o mal, influência que,

infelizmente, bem poucos reconhecem, trabalham para

a sua perda!

SPF, SP1: d’esses; suppondo

SPF, SP1: influencia; invisivel

SPF, SP1: influencia

245

250

Abílio, depois de alguns dias de viagem por

lugares diversos, a pretexto disto ou daquilo,

conseguiu saber de mais de um dos sampauleiros de

retorno que o pascácio168 que tanto o amedrontava

conseguira colocar-se, que se achava deslumbrado

com a riqueza e progresso de São Paulo e, rumando

para zona de Bauru, não mais regressaria à sua terra

natal.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: d’isto; d’aquillo

SPF, SP1: pascacio

SP, SPF, SP1: collocar-se

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: á sua

167 Enfatuado: cheio de de si, presumido. 168 Pascácio: tolo, idiota. Forma documentada no léxico de Guimarães Rosa, Cf. Nilce Sant’Anna MARTINS. O léxico de Guimarães Rosa. 2 ed. São Paulo:Editora da Universidade de São Paulo, 2001. p.373.

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236

255

Ciente de tudo isso, considerando-se seguro

nos seus cálculos, Abílio, entretanto, tinha receio de

Serafim que, além de perspicaz, já o conhecia como

falsário. Para ele o velho mestre-escola era o espectro

de Banquo.169 Era uma necessidade afastá-lo do seu

caminho. Mas a falsificação da carta? Só um meio

havia de livrar-se dele, e esse meio, que não valeu a

Macbeth, pensava o mancebo que lhe serviria à

medida dos seus desejos.

SPF, SP1: Sciente

SPF, SP1: calculos; Abilio

SPF, SP1: Seraphim; alem;

perpicaz

SPF, SP1: falsario; elle

SPF, SP1: Bancquo; afastal-o

SPF, SP1: d’elle

SPF, SP1: á medida

III

5

10

Abílio despertou cedo. Achava-se bem disposto e

satisfeito com os resultados que ia colhendo em caminho da

realização do seu ardente desejo. A sua satisfação era tal que

chegava a relegar do seu pensamento a idéia de Serafim estar

vigilando170 como argos os seus planos insidiosos. Fez as suas

abluções171 matinais, vestiu-se, tomou café como dos hábitos

sertanejos, sempre tomado da sua idéia fixa, numa introspecção

tal que, ao papaguear constante de dona Úrsula, mal respondia lá

uma ou outra vez com um monossílabo ou um gesto quase

imperceptível. Isso não inquietava a velha, que já conhecia os

modos do filho quando preocupado com os seus negócios.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: realisação

SPF, SP1: satisfacção

SPF, SP1: idéa; Seraphim

SPF, SP1: matinaes; habitos

SPF, SP1: idéa; n’uma

SPF, SP1: d. Ursula

SPF, SP1: la

169 Banquo: fantasma de Banquo. Governador da Escócia, séc. XI, permaneceu espectador mudo do assassino de seu senhor por Macbeth, e posteriormente, tornou-se suspeito do homicídio, o que o levou a suicidar-se no meio de um banquete. 170 Vigilando: vigiando, velando. Forma não dicionarizada. 171 Ablução: banho de todo o corpo, ou de parte dele, com esponja embebida em água ou com toalha molhada.

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modos do filho quando preocupado com os seus negócios. SPF, SP1: monosyllabo; quasi;

imperceptivel

SPF, SP1: preoccupado; negocios

15

20

25

30

Em certa altura, ouvindo de sua mãe uma qualquer

referência a Roberto, voltou ao presente, pois o seu espírito até

então adejava172 pelo risonho futuro que se lhe afigurava. Bastou

isso para que ele se lembrasse de Serafim, voltasse-lhe o receio

da sua vigilância e a necessidade de tolher-lhe todo e qualquer

movimento que impedisse o seu avanço no caminho que vinha

trilhando. O único alvitre que lhe sugeria o espírito

desescrupuloso era a eliminação do velho; mas para consegui-la,

era-lhe indispensável um instrumento que, inconsciente, supondo

agir no seu próprio interesse, prestasse-lhe esse repugnante

serviço. O incidente que se deu entre Roberto e o velho,

aproveitado habilmente, daria um resultado satisfatório. O ex-

meeiro, entretanto, não lhe era perfeitamente conhecido, máxime

quanto à capacidade exigida como indispensável ao desempenho

de obra tão nefanda. Era preciso sondar-lhe o caráter, verificar

até que ponto achava-se despeitado e encaminhá-lo jeitosamente,

caso fosse aproveitável, ao fim colimado.

SPF, SP1: referencia

SPF, SP1: espirito

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: vigilancia

SPF, SP1: unico

SPF, SP1: suggeria; espirito

SPF, SP1: conseguil-a; indispensavel

SPF, SP1: suppondo

SPF, SP1: proprio

SPF, SP1: satisfactorio

SPF, SP1: maxime; á capacidade

SPF, SP1: indispensavel

SPF, SP1: caracter

SPF, SP1: encaminhal-o

SPF, SP1: geitosamente; aproveitavel

SPF, SP1: collimado

35

Depois de ter examinado de novo, à luz do dia e por

uma lupa, os documentos falsificados em confronto com os

verdadeiros, resultando daí ficar tranqüilo quanto a essa parte do

seu diabólico programa, organizou Abílio um plano de estudo de

SPF, SP1: á luz

SPF, SP1: d’ahi

SPF, SP1: tranquillo; diabólico

172 Adejava: voava.

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238

40

Roberto e do modo por que devia conduzi-lo ao fim dos seus

propósitos.

SPF, SP1: programma; Abilio

SPF, SP1: conduzil-o

SPF, SP1: propositos

45

Roberto dormia a sono solto, ressonando ruidosamente,

quando o mancebo chegou ao limiar da porta do seu esconderijo;

mas, ouvindo os seus passos, despertou rapidamente. Isso para

Abílio, foi um movimento apreciável: o sujeito era vigilante,

possuía ouças de felino que o isentavam de surpresas.

SPF, SP1: somno; resomnando

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: apreciavel; possuia

SPF, SP1: surprezas

50

55

60

Abílio observou-lhe que não se achava recatado como

era de mister, e poderia ser visto por alguém e denunciado.

Roberto desenhou na catadura173 o seu ricto de celerado174,

afirmando numa fanfarronada que não era homem para ter medo;

que se o patrão tinha... O patrão estranhou a liberdade do seu

futuro assecla175; mas julgou conveniente aparentar que não a

percebera. Jeitosa e, podemos dizer, amistosamente, aconselhou

ao patife fazendo-lhe ver que ter prudência não é ter medo; que

os homens os mais valorosos eram precatados. Afagando a

vaidade do celerado, ia habilmente guiando-o como era o seu

desejo e incitando-o à prática da vingança, como justa e

consentânea com o direito e a razão. Nos seus conselhos e

maldosas insinuações usava Abílio uma linguagem que o

camarada compreendesse perfeitamente.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: alguem

SPF, SP1: ricto; scelerado; affirmando;

n’uma

SPF, SP1: extranhou

SPF, SP1: apparentar

SPF, SP1: Geitosa

SPF, SP1: prudencia

SPF, SP1: scelerado

SPF, SP1: á pratica

SPF, SP1: consentanea

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: comprehendesse

65

Depois, sem tocar no nome de Serafim, procurou saber

porque tinha Roberto deixado as terras de dona Maria, uma

senhora tão distinta. Foi isso pôr fogo à mecha. O ex-meeiro, por

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: d. Maria; disctincta

173 Catadura: aparência; disposição de ânimo. 174 Celerado: criminoso, perverso, mau. 175 Assecla: partidário.

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70

75

80

senhora tão distinta. Foi isso pôr fogo à mecha. O ex-meeiro, por

entre pragas e palavrões grosseiros e indecentes, bolçou um ódio

irrefreável contra Serafim. Começou historiando o porquê saiu

das terras de João; mas o fez ao seu modo, atribuindo ao velho

professor o motivo disso, adulterando os fatos e dizendo-se

vítima de uma clamorosa injustiça. Serafim era descrito por ele,

na sua linguagem grosseira e entremeada de insultos, um sujeito

miserável, um caráter baixo capaz das maiores infâmias; um

ladrão que lhe roubou o suor do rosto e queijandas calúnias e

mentiras que Abílio ouvia silencioso como quem desse crédito,

embora soubesse que tudo aquilo eram invencionices do

miserável que, quanto mais explicava o que se dera, mais

provava, em suas contradições, em favor do honrado velho a

quem emprestava tão más qualidades.

SPF, SP1: á mecha

SPF, SP1: odio

SPF, SP1: irrefreavel; Seraphim

SPF, SP1: porque; sahiu

SPF, SP1: attribuindo; d’isso

SPF, SP1: factos; victima

SPF, SP1: Seraphim; descripto; elle

SPF, SP1: miseravel; caracter

SPF, SP1: infamias

SPF, SP1: calumnias; Abilio

SPF, SP1: credito

SPF, SP1: aquillo; miseravel

SPF, SP1: contradicções

85

90

Abílio conhecia de sobra o caráter de Serafim e era

arguto bastante para avaliar as mendazes176 informações do

despeitado meeiro; mas convinha-lhe mostrar-se crédulo,

cogitando criminosamente tirar proveito do incidente que veio ao

encontro dos seus desejos gerados pela antipatia que lhe

inspirava a austeridade do velho professor; como lhe serviria de

subsídio, em caso extremo, aos seus trabalhos de sapa177,

arredando178 aquele embaraço do caminho, aquele miserável

celerado.

SPF, SP1: Abilio; caracter; Seraphim

SPF, SP1: argúto

SPF, SP1: credulo

SPF, SP1: antipathia

SPF, SP1: subsidio

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: aquelle; miseravel; scelerado

176 Mendaz: mentirosa, hipócrita, desleal. 177 Sapa: abertura de fossos, trincheiras, galerias subterrâneas, normalmete, próximo ao pé de um muro, para derrubá-lo. 178 Arredando: afastando, desviando.

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95

100

105

A muitos políticos modernos sucede assim nestes vastos

sertões e, quiçá, em meios que se proclamam mais adiantados em

civilização do que o nosso. Lançando mão de elementos iguais a

Roberto, que lhes têm preço, para seu engrandecimento social, se

não odeiam a virtude, nem se manifestam francamente contra ela,

por temerem-na como um tropeço aos seus desígnios,

perseguem-na e desacreditam-na de sorrelfa179. Bem se vê que

Abílio era talhado para político de aldeia, dos mais desabusados,

e Roberto seria um jagunço de primeira qualidade.

SPF, SP1: politicos; succede

SPF, SP1: adeantados; civilisação

SPF, SP1: eguaes

SPF, SP1: si; odeam

SPF, SP1: ella; temerem-n-a

SPF, SP1: designios; perseguem-n-a

SPF, SP1: desacreditam-n-a; Abilio

SPF, SP1: politico

110

115

120

Roberto, à proporção que falava, ia exaltando-se.

Gesticulava, arrotava valentias, fazia juras e tornava-se feroz,

bestial, terrível, mostrando-se tal qual era: um celerado de marca.

Transfigurado, transmudando o rosto em catadura de tigre

assanhado, tendo em seu semblante o rito dos assassinos

congêneres, com os olhos injetados de sangue, em sua figura de

energúmeno tornou-se horrível a ponto de causar terror ao seu

patrão, a quem, como louco, sem mais acatar como dantes,

tocava com a mão crispada, apertava o braço irreverentemente,

emburrava e chegava a maltratar, procurando mostrar-lhe como

faria a qualquer que o provocasse. Era o homo delinquente de

Lombroso, um perigoso neurótico, produto, sem dúvida, de

ascendentes degenerados pelo alcoolismo.

SPF, SP1: á proporção

SPF, SP1: terrivel

SPF, SP1: scelerado

SPF, SP1: rictus

SPF, SP1: congeneres; injectados

SPF, SP1: energumeno; horrivel; ao ponto

(Emendou-se.)

SPF, SP1: d’antes

SPF, SP1: irreverentemente (,)

SPF, SP1: HOMO

SPF, SP1: DELINQUENTE; nevrotico

SPF, SP1: producto; duvida (,)

Abílio, pálido, silencioso, já arrependido de ter SPF, SP1: Abilio; pallido

179De sorrelfa: diz-se daquele que age dissimuladamente, sonsamente.

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241

125

130

provocado aquele miserável que o amedrontava, pôde somente

falar-lhe com muito jeito, com estudada doçura e promessas,

quando o sujeito, exausto, a arquejar, não mais era vítima da

violenta crise intensa de ferocidade que o assaltava e, rilhando180

os dentes numa espécie de trismo181, apenas proferia uma ou

outra palavra. O mancebo conseguiu acalmá-lo para que nada lhe

faltasse, pedindo-lhe, quase suplicante, que se resguardasse até

que lhe desse uma colocação, que lhe garantiu seria boa.

SPF, SP1: aquelle; miseravel

SPF, SP1: geito

SPF, SP1: esausto

SPF, SP1: victima

SPF, SP1: especiem

SPF, SP1: acalmal-o

SPF, SP1: quasi; supplicante

SPF, SP1: désse; collocação

135

140

145

Retirando-se meditativo, ia Abílio tomado de susto e

receios, seguindo outra ordem de idéias que lhe sugeria a crise de

Roberto. A impressão que lhe deixou no espírito aquele espécime

de teratologia moral, fez-lhe ver que o instrumento, por ele

escolhido como auxiliar dos seus planos em execução, excedia

em muito à sua expectativa, tornando-se perigosíssimo. Além de

indiscreto e capaz de tomar o freio nos dentes, poderia, num

daqueles momentos assassiná-lo, ou comprometer a sua

reputação e prestígio, cometendo às escâncaras um crime e

confessando-se garantido pelo patrão. Era um paranóico a quem

não poderia o mancebo guiar e que, por uma simples palavra mal

interpretada, mesmo por um gesto, poderia revoltar-se contra

quem quer que fosse, pertencesse mesmo às classes as mais

elevadas que conseguem dominar essa gente servil.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: idéas

SPF, SP1: suggeria

SPF, SP1: espirito; aquelle; especimen

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: á sua

SPF, SP1: perigosissimo; Alem

SPF, SP1: n’um; d’aquelles

SPF, SP1: assassinal-o; comprometter

SPF, SP1: prestigio; commettendo; ás

escancaras

SPF, SP1: paranoico

SPF, SP1: gesto (,)

SPF, SP1: ás classes

180 Rilhando: rangendo os dentes. 181 Trismo: alteração motora dos nernos trigêmeos, que impossibilita a abertura da boca, constituindo sinal característico e precoce de tétano.

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150

155

160

165

170

O medo sobrepujava em Abílio o gênio artimanhoso e

causava-lhe um grande embaraço, pois considerava dificílima,

senão impossível, a solução do intricado problema que, ao sondar

mais profundamente a alma de Roberto, seguiu-lhe

inopinadamente diante do espírito. Aproveitar aquele sujeito ou

rejeitá-lo despedindo-o seria uma rematada imprudência.

Aproveitá-lo não convinha porque o seu caráter oferecia duas

faces inteiramente opostas: uma, a primeira, que o iludiu a

princípio fazendo-lhe crer que se tratava de um indivíduo

discreto, capaz de realizar automaticamente o que lhe fosse

determinado e guardar reservas, era a seriedade taciturna, que

apenas denunciava pelo ricto, gênio perverso que sem hesitação,

executaria as piores empresas criminosas; a outra era a explosão

que se deu denunciando o desastrado que, em seu acesso de

vesânia182, a ninguém atendendo, não guardaria conveniências,

tudo poria a perder, tanto mais quanto contava com um protetor

que supunha capaz de garanti-lo em todos os atos que praticasse,

e que denunciaria procurando garantir-se na idéia de que o patrão

era intangível e invulnerável à ação da justiça.

SPF, SP1: Abilio; genio

SPF, SP1: difficilima; sinão; impossivel

SPF, SP1: deante; espirito, aquelle

SPF, SP1: reigeital-o

SPF, SP1: imprudencia; Apriveital-o

SPF, SP1: caracter; offerecia; oppostas

SPF, SP1: illudiu; principio

SPF, SP1: individuo

SPF, SP1: realisar

SPF, SP1: ricto; genio

SPF, SP1: peores; emprezas

SPF, SP1: vesania; ninguem

SPF, SP1: attendendo; conveniencias

SPF, SP1: protector

SPF, SP1: suppunha; garantil-o; actos

SPF, SP1: idéa; intangivel; invuneravel; á

acção

175

Ademais, convenceu-se Abílio de que Roberto, quando

calmo, fazia cálculos egoísticos; que a sua seriedade calculada

era tendenciosa, como a dedicação servil, a modo de gratidão

pela liberalidade que se lhe dispensasse e de que Abílio lançara

mão chegando a dispensar-lhe favores gratuitos e, até, fornecer-

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: calculos; egoisticos

SPF, SP1: Abilio

182 Vesânia: loucura, denominação comum às várias espécies de alienação mental.

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243

180

185

lhe dinheiro com calculada generosidade, procurando captá-lo e

previamente preparando-lhe o espírito em seu favor. Concluiu

desse último raciocínio que bastava o patrão negar-se a uma das

suas exigências, por mais simples que fosse, para que o celerado

se revoltasse contra ele furibundo183, convertendo-se em seu

inimigo acérrimo, e inimigo dessa natureza era uma ameaça

constante e perigosa.

SPF, SP1: captal-o

SPF, SP1: espirito; d’esse; ultimo

SPF, SP1: raciocinio

SPF, SP1: exigencias,

SPF, SP1: scelerado; elle

SPF, SP1: acerrimo

SPF, SP1: d’essa

190

195

Em conclusão, resumindo o seu estudo sobre o caso,

chegou Abílio a pensar que a única saída que lhe restava, do

aperto em que se achava, era a eliminação do miserável, porque

retê-lo em homizio,184 nas condições em que estava, a inação e o

tédio fermentariam no espírito de Roberto idéias perigosas,

lembrar-lhe-iam exigências mais descabidas do que era de se

temer, leva-lo-iam a procurar saber por que era retido como um

detento e a uma exasperação perigosa; colocá-lo na sua lavoura

como agregado ou meeiro seria denunciar-se seu protetor e

levantar suspeitas no espírito do perspicaz professor Serafim.

SPF, SP1: Abilio; unica; sahida

SPF, SP1: miseravel; porque: (Emendou-

se.);retel-o

SPF, SP1: inacção; tedio

SPF, SP1: espirito; idéas

SPF, SP1: exigencias;

SPF, SP1: leval-o-iam;

SPF, SP1: collocal-o; aggregado

SPF, SP1: proctetor

SPF, SP1: espirito; Seraphim

200

205

Estava Abílio nesse cogitar martirizante, justo castigo

que lhe infringia a consciência maldosa, quando ouviu o

estampido de um tiro, um brado e passos de animal cavalgado.

Correu à janela e viu Serafim que, apeando-se do animal, tinha

na mão uma arma curta como quem estivesse disposto a

defender-se de uma agressão. Pálido, aterrado, Abílio recuou

para o interior antes que o professor o visse, adivinhando mais ou

SPF, SP1: Abilio; n’esse; martyrizante

SPF, SP1: consciencia;

SPF, SP1: SPF, SP1: á janella

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: aggressão; Pallido; Abilio

183 Furibundo: furioso, enfurecido. 184 Homizio: esconderijo.

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menos o que se deu. Depois, saiu resoluto para o terreiro. SPF, SP1: sahiu

IV

5

10

Depois que se retirou Abílio, Roberto, que se tinha

acalmado exteriormente, continuou, entanto, exaltado no seu

íntimo. Fervia ali um vulcão de ódio. O veneno que continha

àquela alma endemoniada era inesgotável em seus meios de

elaboração como o vírus do crótalo. Nos intervalos das suas

explosões de cólera, ferviam como caldeira em alta pressão, as

profundezas daquele ente repulsivo, vibrando no seu exterior em

esgares,185 leves gestos e tremores, pelo franzir dos sobrolhos e

pelo ricto e arreganhar os dentes que o semelhavam aos dentes de

um tigre acuado.

SPF, SP1: Abilio

SPF: emtanto (Erro óbvio.)

SPF, SP1: intimo; alli; odio

SPF, SP1: endemoniada, (Emendou-se.);

aquella

SPF, SP1: inexgottavel; virusdo

(Emendou-se.)

SPF, SP1: intervallos

SPF, SP1: colera

SPF, SP1: d’aquelle

SPF, SP1: ricto

15

Estava reclinado em seu catre,186 mas às vezes o impulso

do fervor de ódio era tal naquela alma danada que a levava a uma

como resolução. Então se assentava, mirava uma espingarda que

jazia encostada a um canto, parecia refletir e, depois de

momentos, voltava à primeira posição parecendo procrastinar187 o

que tinha em mente executar.

SPF, SP1: ás vezes

SPF, SP1: odio; n’aquella; damnada

SPF, SP1: assentava-se

SPF, SP1: reflectir

SPF, SP1: á primeira

20

A preocupação de Roberto, verdadeira obsessão, era

vingar-se de Serafim, contra quem ideava uma terrível desforra

depois da sua confabulação com Abílio, que soube açulá-lo

SPF, SP1: preoccupação

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: terrivel

185 Esgares: gestos de escárnio. 186 Catre: leito tosco e pobre. Normalmente é uma cama de lona dobrável, utilizada em viagens. 187 Procrastinar: adiar.

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25

manhosamente, falando-lhe em geral da legitimidade da vingança

e afirmando-lhe que a emboscada é lícita quando não é possível

sem ela conseguir-se o desagravo de uma injúria.

SPF, SP1: Abilio; açulal-o

SPF, SP1: affirmando-lhe

SPF, SP1: licita; possivel; ella

SPF, SP1: desaggravo; injuria

30

Usando dos seus recursos habituais, e com a habilidade

que lhe era peculiar, o perverso mancebo conseguira inocular na

alma do celerado, já predisposta recebê-la, maior dose de vírus do

que ela continha, ou soprar o incêndio que nela apenas começava

a atear-se.

SPF, SP1: habituaes

SPF, SP1: scelerado

SPF, SP1: recebel-a; virus

SPF, SP1: incendio; n’ella

35

40

45

50

Roberto estava convencido de que, fosse qual fosse o

crime que cometesse, teria a proteção de Abílio no sentido de

torná-lo impune. Assim sucede a muitos indivíduos ignorantes

que desconhecem o que é justo e tornam-se temíveis bandidos, tão

malvados como covardes; que tudo são capazes de executar

sugestionados por chefes políticos que sobrepõem a força ao

direito e gabam-se do apoio que lhes prestam indivíduos

miseráveis que lhes guardam as costas inconscientemente

supondo-se guardados e garantidos pelos patrões. Assim fazem

política por estes sertões em fora indivíduos que se impõem pelo

terror e blasonam-se homens de legítima influência no meio onde,

sendo odiados, mandam e são obedecidos pelas massas pacíficas,

pelos elementos conservadores que querem, mas não podem

concorrer para a nossa prosperidade na paz, na ordem e na

harmonia. Se é certo que possuímos legítimos e honestos

influentes, são raros e quase sempre esquecidos dos altos poderes

da nação, os quais por sua vez garantem condottieri de preferência

porque, só esse meio, derramando a cornucópia188 das graças,

esvaziando as arcas do tesouro em benefício de nulidades,

conseguem subir até os últimos degraus da governança. O povo

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: tornal-o; succede

SPF, SP1: individuos

SPF, SP1: temiveis

SPF, SP1: suggestionados; politicos

SPF, SP1: individuos; miseraveis

SPF, SP1: suppondo-se

SPF, SP1: politica

SPF, SP1: blazonam-se; individuos

SPF, SP1: legitima; influencia

SPF, SP1: pacificas

SPF, SP1: Si

SPF, SP1: possuímos; legítimos

SPF, SP1: quase

SPF, SP1: quaes; CONDOTIERI;

188 Cornucópia: corno mitológico, atributo da abundância, símbolo da agricutura e do comércio.

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55

60

65

conseguem subir até os últimos degraus da governança. O povo

honesto e laborioso, que é a verdadeira força, escorchado,189

perseguido injustamente, despossado dos seus teres, sentindo mal

segura a sua situação, já cansado de sofrer, pelo menos nestes

vastos e ubérrimos sertões, foge em multidão para os estados do

Sul, onde espera as garantias que aqui lhe faltam, sujeitando-se à

escravização e talvez aos mesmos inconvenientes que entre nós

deixou; porque o país todo está contaminado; por todo ele a

exploração da política nefasta vigente, a escorcha do fisco em

proveito dos grandes, que nadam em dinheiro à custa do

trabalhador, são a nota do dia.

SPF, SP1: preferencia; sò

SPF, SP1: cornucopia; thesouro

SPF, SP1: beneficio; nullidades

SPF, SP1: ultimos

SPF, SP1: cançado

SPF, SP1: soffre; n’estes

SPF, SP1: á escravização

SPF, SP1: paiz

SPF, SP1: elle; política

SPF, SP1: á custa

70

75

Roberto não era mais que um desses tipos fanfarrões e

desalmados que, à voz de um patrão, congregam-se para as

empreitadas reprováveis, ilícitas e perniciosas que nos infelicitam

em proveito de um ou de outro ambicioso que, sem mérito algum

pessoal, deseja galgar posição de relevo na sociedade. Não

confundamos, porém, esse tipo repelente e desprezível com o

nosso valente e destemido homem do povo. Este, homem

laborioso, pacífico e prudente, verdadeiramente dedicado a

homens de valor, acha-se pronto, ao menor rebate, a reunir-se em

torno daquele, a quem eleger pelos seus reais merecimentos, em

defesa dos mais sãos princípios.

SPF, SP1: d’esses; typos

SPF, SP1: á voz; patrão (,)

SPF, SP1: reprovaveis; illicitas

SPF, SP1: merito

SPF, SP1: porem; typo; repellente;

desprezivel

SPF, SP1: pacifico

SP1: delicado

SPF, SP1: prompto; d’aquelle

SPF, SP1: reaes

189 Escorchado: explorado, roubado.

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247

SPF, SP1: principios

80

85

90

Infelizmente estes últimos são as mais das vezes

relegados ao desprezo, são esquecidos e, quando feridos em sua

dignidade ou seus interesses pelos vis e miseráveis protegidos de

certos poderosos, procuram garantir os seus direitos, são repelidos

injustamente e perseguidos como turbadores da paz e harmonia

sociais, são espoliados das suas terras, dos agros que vêm tratando

e conservando desde os seus antepassados. São eles que,

insultados por toda a sorte de males, impotentes diante dos

poderosos e da malta indigna que os rodeia, procuram outros

estados, senão, por um ato de desespero, se tornam

verdadeiramente criminosos e caem sob a ação das leis penais.

SPF, SP1: ultimos

SPF, SP1: miseraveis

SPF, SP1: repellidos

SPF, SP1: sociaes

SPF, SP1: elles

SPF, SP1: deante

SPF, SP1: rodea; sinão

SPF, SP1: acto

SPF, SP1: cahem; acçaõ; penaes

95

100

105

Estava Roberto nos seus maldosos pensamentos de

vingança e exagerado ódio, quando ouviu o ruído de passadas de

cavalgadura que se aproximava. Por curiosidade talvez, ou mesmo

receio, como sempre se acha a pessoa criminosa ou de maus

instintos, espiou cautelosamente. O que viu, transmudou-lhe

repentinamente a feição, carregando-a de uma terrível expressão

de ódio que fuzilava em seus olhos e fazia-lhe rilhar os dentes.

Repentinamente, como louco, correu ao canto do aposento,

apanhou a espingarda e aproximou-se da porta. Receando ser

visto por Serafim que chegava afastou-se um pouco se apoiando

na ombreira por traz do portal, aperrou a arma, fez ponto e deu no

gatilho. A cápsula estalou. O miserável, contrariado, ia voltando a

arma para de novo escová-la, quando se deu o estampido, já a

espingarda retirada do alvo. Roberto, no maior auge do desespero,

atirou a arma no chão vociferando colérico.

SPF, SP1: odio

SPF, SP1: ruido

SPF, SP1: approximava

SPF, SP1: instinctos

SPF, SP1: terrivel; odio

SPF, SP1: Seraphim; SPF, SP1: apoiando-

se (Emendou-se ênclise para próclise.)

SPF, SP1: capsula

SPF, SP1: miseravel

SPF, SP1: escoval-a;

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110

SPF, SP1: desepero; colerico

–Ah! O diabo tem mendraca; tem o corpo fechado! Esta

arma nunca falhou.

Serafim, ouvindo o disparo, prontamente sacou a sua

arma da cinta, avançou para o interior.

SPF, SP1: Seraphim; desparo

promptamente

115 –Ah! Miserável! – brandou o professor – Valeu-me

Deus, que falhou o teu intento.

SPF, SP1: Miseravel

120

Roberto, vendo falha a sua tentativa, mostrou-se tão

cobarde quanto malvado. Atarantado, ocultou-se num recanto do

quarto, por traz do seu leito rudimentar, cobrindo-se com a esteira

que lhe servia de colchão. A esse tempo Abílio desceu ao terreiro.

Vinha trêmulo e pálido.

SPF, SP1: occultou-se

SPF, SP1: n’um

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: tremulo; pallido

–O que houve?! Escapei de ser assassinado de

emboscada em sua casa.

125 –Quem cometeria essa infâmia?! – perguntou Abílio. SPF, SP1: commetteria; infamia

P1, SPF: Abilio

130

–Um tal Roberto, o meeiro que você recomendou a João

– E, dizendo assim, o velho mestre-escola firmava o seu olhar

límpido e investigador no semblante do mancebo.

SPF, SP1: recommendou

SPF, SP1: limpido

–Ah! Recomendei-o supondo tratar-se de um homem

honesto.

SPF, SP1: SPF, SP1: Recommendei-o;

suppondo

–Você é pouco perspicaz, meu Abílio. SPF, SP1: Abilio

135

A esse tempo chegaram em casa. Abílio mostrava-se

contrariado e requintava as suas demonstrações de interesse pelo

seu velho mestre. Não supunha que Roberto fosse capaz de

tamanha perversidade, ainda mais quanto não lhe constava que ele

fosse inimigo de Serafim. Aparecera ali na sua ausência dizendo a

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: suppunha

SPF, SP1: elle

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140

145

fosse inimigo de Serafim. Aparecera ali na sua ausência dizendo a

dona Úrsula que não continuava meeiro de dona Maria; mas sem

demonstrar a menor contrariedade ou ódio contra quem quer que

fosse. Acolhido por sua mãe, porque pediu que lhe desse pouso

até a sua chegada, ainda não tinha com ele estado. Sabia apenas,

por lhe ter dito sua mãe, que Roberto deixara as terras de João,

prestadas as suas contas em boa paz, sendo até gabado por dona

Maria, que se mostrou pesarosa com a sua retirada.

SPF, SP1: Seraphim; alli

SPF, SP1: ausencia; d. Ursula

SPF, SP1: d. Maria

SPF, SP1: odio

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: d. Maria

SPF, SP1: pezarosa

150

–Tudo mentiras, Abílio, – disse Serafim, ouvindo tudo

isso. E passou a referir o que se deu.

SPF, SP1: Abilio; Seraphim

Abílio mostrou-se altamente indignado contra o biltre190

e asseverou ao professor que ia tomar sérias providências contra

Roberto, que devia ser preso e processado por crime de tentativa.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: serias

SPF, SP1: providencias

155

–Nada disso convém. Não desejo nem quero escândalos

que de alguma forma podem prejudicá-lo em sua reputação,

Abílio. Deixe o diabo solto, que a verdadeira Justiça o punirá.

SPF, SP1: convem

SPF, SP1: escandalos; prejudical-o

SPF, SP1: Abilio

–Mas o professor não teme outra emboscada?

160

165

–Temer um patife daquela ordem! – exclamou Serafim

com uma das suas habituais gargalhadas. – Sou cachoeirano, meu

amigo. Sou descendente daqueles que fizeram o 25 de Junho. Que

venha ele, e terá a sua conta, ainda mais agora, que estou

prevenido. Depois, tenho filhos e amigos que darão a vida por

mim.

SPF, SP1: d’aquella

SPF, SP1: Seraphim; habituaes

SPF, SP1: d’aquelles

SPF, SP1: elle

–Conte-me no número deles, professor. SPF, SP1: numero; d’elles

–Agradecido. Estou certo disso – afirmou Serafim muito

seriamente.

SPF, SP1: d’isso; affirmou;

SPF, SP1: Seraphim

190 Biltre: homem vil, abjeto, infame.

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250

170

–Deve estar certo, porque sempre muito considerei o

meu velho professor – tornou Abílio com disfarçada acrimônia.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: desfarçada; acrimonia

175

–É justamente por esta consideração que eu tenho

certeza da sua amizade. Deixemos, porém, de rasgar sedas por

coisa que não nos adianta. Vim aqui a negócio logo que soube da

sua chegada.

SPF, SP1: porem

SPF, SP1: cousa; adeanta

SPF, SP1: negocio

–Do que se trata, professor? – perguntou Abílio fingindo

ignorar.

SPF, SP1: Abilio

–Dona Úrsula nada lhe disse? SPF, SP1: D. Ursula

–Não.

180

–Vim aqui outro dia resgatar as letras de João, que é o

desejo dele pagar pontualmente antes de vencidos juros.

SPF, SP1: lettras

SPF, SP1: d’elle

–Minha mãe nada me disse; naturalmente esqueceu-se.

Eu mesmo não me lembrava disso.

SPF, SP1: d’isso

185 –Pois vim em tempo, mas a senhora sua mãe não quis

receber o dinheiro. João, portanto, não está em falta.

SPF, SP1: quiz

190

–João é corretíssimo, bem sei, e por isso mesmo é que

não me preocupo com a sua dívida, nem tampouco me lembro do

prazo.

SPF, SP1: correctissimo

SPF, SP1: divida

SPF, SP1: tampouco

–Tratemos, pois, de concluir esse negócio. Veja as letras. SPF, SP1: negocio

SPF, SP1: lettras

195

200

Abílio pediu licença a Serafim para ir ao seu gabinete

em busca das letras. Por esforço enorme pôde conservar-se calmo

e aprumado à vista do professor; mas achava-se tomado de grande

emoção por temer mais uma vez que Serafim descobrisse a sua

tratantada. Entrando no seu gabinete, embora bem soubesse onde

se achavam guardados os documentos, demorou-se perplexo e

irresoluto convencido de que o professor atribuísse a sua

prolongada ausência motivada pela procura deles.

SPF, SP1: Abilio; Seraphim

SPF, SP1: lettras

SPF, SP1: á vista

SPF, SP1: Seraphim

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SPF, SP1: attribuisse; ausencia

SPF, SP1: d’elles

205

210

215

Não era o pesar de cometer uma ação indigna que

ocasionava a perturbação em que se achava Abílio na sua

irresolução. Era o temor daquele terrível agros que, nas suas

palavras, deixaram ver uma tal ou qual desconfiança a seu

respeito quanto ao grave incidente que se deu com Roberto

poucos momentos antes. O seu espírito vacilava entre apresentar

as letras falsas ou as verdadeiras, tendo-as todas em suas mãos e

mais uma vez examinando-as cuidadosamente a fim de verificar

se por um traço, um descuido ou qualquer falha, seria descoberta a

falsificação. Era, entretanto, urgente que se decidisse, porque

também isso daria lugar a desconfianças. Por fim decidiu-se a não

levá-las e declarar que debalde as procurou.

SPF, SP1: pezar; commetter; acção

SPF, SP1: occasionava; Abilio

SPF, SP1: d’aquelle; terrivel

SPF, SP1: palavras (,)

SPF, SP1: espirito; lettras

SPF, SP1: afim de

SPF, SP1: si

SPF, SP1: tambem

SPF, SP1: Porfim; leval-as

–Ora, professor, – disse Abílio quando voltou à sala, –

não pude encontrar as letras. Procurei-as num mar de papéis e foi

debalde.

SPF, SP1: Abilio; á sala

SPF, SP1: sala (,); lettras, n’um

SPF, SP1: papeis

220

225

–Nesse caso, passe-me um recibo com as declarações

indispensáveis a fim de ser salvaguardada a minha

responsabilidade como encarregado, e para que fique pago o

débito. Trago aqui um conto e duzentos mil réis, em quanto orçam

os dois documentos; mas o último não vence agora e João tem

direito a desconto.

SPF, SP1: N’esse

SPF, SP1: indispensaveis; afim de

SPF, SP1: debito

SPF, SP1: reis; dous

SPF, SP1: ultimo

–Creio haver engano, professor. A letra vencida absorve

toda essa quantia. Com ela não ficam pagas as duas.

SPF, SP1: lettra

SPF, SP1: ella

230

–O que?! – exclamou Serafim – Se há engano é de sua

parte, Abílio. A letra mais antiga é de 800$000 e a última de

400$000.

SPF, SP1: Seraphim; Si; ha

SPF, SP1: Abilio; lettra

SPF, SP1: ultima

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400$000.

–Não. A primeira é de 1:200$000 e a outra de 600$000.

235

–E esta! Será possível?! Procure essas letras; é preciso

que esse engano seja desfeito. Vá! Vá! Eu terei paciência para

esperar.

SPF, SP1: possivel; lettras

SPF, SP1: paciencia

240

245

Abílio voltou ao gabinete contrariadíssimo. Não contava

com essa exigência do professor, que, aliás, era razoável. Na sua

indecisão alguma coisa parecia soar na sua consciência

ameaçando-o de um perigo futuro. Serafim amedrontava-o com a

sua fleuma e seriedade. Que fazer? Veio-lhe a idéia apresentar a

letra verdadeira de maior quantia e a menor falsificada. Em todo

caso era preciso demorar alguns minutos à pretexto de procurá-

las. Passava por seu cérebro diversos pensamentos e idéias de

medo e perversidade.

SPF, SP1: Abilio; contrariadissimo

SPF, SP1: exigencia

SPF, SP1: razoavel

SPF, SP1: consciencia

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: phleugma; idéa

SPF, SP1: lettra

SPF, SP1: á pretexto; procural-as;

SPF, SP1: cerebro; idèas

250

255

260

O medo era o sentimento que lhe infundia o professor

com a sua calma denunciativa de desconfiança contra o antigo

discípulo, a quem ele bem conhecia desde criança. A perversidade

com um princípio de rancor consistia na idéia que, desde muito

tempo, o preocupava: ver-se livre daquele espírito vigilante e

perspicaz que lhe era um terrível Cabrião. Ah! Se Roberto não

fosse um desastrado e imprudente; se não tivesse escolhido sua

casa para emboscar-se; se, mesmo assim imprudente, tivesse

conseguido o seu malvado intento, estaria ele fora de perigo,

poderia agir desembaraçadamente. Estava tudo perdido. Roberto,

aquele miserável idiota, pusera uma travanca nos seus planos tão

bem estudados e delineados. Era-lhe preciso recompor tudo

quanto vinha planejado. Um ódio profundo emergia da sua alma

negregada contra o velho mestre-escola e, quanto a Roberto, que

SPF, SP1: discípulo; elle

SPF, SP1: creança

SPF, SP1: principio; idéa

SPF, SP1: preoccupava; d’aquelle; espirito

SPF, SP1: terrivel; Si

SPF, SP1: si

SPF, SP1: si

SPF, SP1: intento; (,); elle

SPF, SP1: aquelle; miseravel; puzera

SPF, SP1: odio

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253

265

se constituiu um perigo à sua segurança, vinha-lhe a idéia de

consumi-lo, fazê-lo desaparecer fosse como fosse.

SPF, SP1: á sua; idéa

SPF, SP1: desapparecer

270

Passados muitos minutos, Abílio apresentava-se a

Serafim com as duas letras. O velho achava-se calmo e sereno;

mas o mancebo, por mais procurasse aparentar serenidade de

ânimo, não conseguia ocultar a perturbação em que estava.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: Seraphim; lettras

SPF, SP1: animo; occutar

275

–Estão aqui as letras, professor. Tive grande trabalho

procurando-as. Realmente a mais antiga, cujo prazo se venceu, é

de 800$000 e a outra de 600$000. Veja.

SPF, SP1: lettras

280

Serafim examinou-as e, sem se alterar, mas com uma

seriedade e frieza que causaram impressão ao mancebo disse:

SPF, SP1: Seraphim

285

290

–Sempre houve um pequeno engano, decerto do João,

que me diz ser de quatrocentos mil réis o débito por vencer. –E,

recebendo as duas letras, pagou-as ambas inteirando a soma dos

títulos apresentados. Abílio queria fazer o desconto, mas Serafim

dispensou. Era tão insignificante a importância dele, dizia o velho,

e João devia tantos obséquios ao credor, que não valia a pena

aproveitar essa migalha. Abílio insistiu, mas o professor

observou-lhe que o desconto ficava em compensação dos juros

vencidos nos dias excedentes do prazo da maior letra.

SPF, SP1: debito; lettras

SPF, SP1: somma; titulos;

SPF, SP1: Abilio; Seraphim

SPF, SP1: importancia; d’elle

SPF, SP1: obsequios

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: lettra

Serafim despediu-se de Abílio e, ao montar-se, sacou a

sua arma da cinta, preparando-se assim para defender-se de nova

agressão; mas Roberto bem longe estava da idéia de nova

SPF, SP1: Seraphim; Abilio

SPF, SP1: aggressão

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295

300

tentativa, temendo até ser visto pelo professor, cuja agilidade que

mostrou, procurando defender-se, deixou uma funda impressão no

espírito cobarde do celerado. Mal desapareceu o velho mestre-

escola, Abílio, certificado de que por ele não seria visto,

encaminhou-se para o esconderijo do seu protegido que, assentado

no recanto mais escuro, não fugiu porque a quadra só tinha a porta

da frente.

SPF, SP1: idéa

SPF, SP1: espirito

SPF, SP1: scelerado; desappareceu

SPF, SP1: Abilio; elle

–Roberto! – chamou Abílio por não vê-lo logo. SPF, SP1: Abilio; vel-o

–Ah! É o patrão! Não me faça nada, patrão.

305 –Não tenha receio de coisa alguma por ora. Mas... que

diabo foi isso?

SPF, SP1: cousa

Ah! Eu perdi a cabeça quando vi aquele diabo! Patrão,

aquilo é mendraqueiro, ou então tem carta de arma.

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: aquillo; d’arma

310 –Por que? Porque (Emendou-se corrigindo conforme

regra de uso do porque.)

–Esta arma – falou com soberba – nunca falhou tiro.

–Mas o tiro saiu, que eu ouvi. SPF, SP1: sahiu

315

–Quebrou a escorva, mas o fogo não pegou logo.

Quando eu vou voltando a arma para consertar, o tiro disparou

fora do ponto e quase me mata. Por um tiquim escapei. Pois o

demônio do velho, não está se vendo que tem reza ou corpo

fechado?

SPF, SP1: p’ra

SPF, SP1: desparou; quasi

SPF, SP1: TIQUIM; demonio

320

325

Roberto revelava-se supersticioso ao extremo, o que

mais convenceu a Abílio de que lhe não servia para a realização

dos seus desígnios. Era indispensável, fosse por que meio fosse,

pelas razões que lhe vieram ao pensamento logo depois da

violenta crise verdadeiramente epiléptica que demonstrou ser o

miserável um paranóico incapaz de refletir calmamente no

momento mais preciso de serenidade e superexcitando-se tanto,

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: realisação; designos;

indispensavel

SPF, SP1: epileptica

SPF, SP1: miseravel; paranoico; reflectir

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transformando-se em fera que a ninguém atenderia, quanto depois

se mostrava cobarde e supersticioso.

SPF, SP1: superexcitando-se

SPF, SP1: ninguem; attenderia; mostrava-

se (Emendou-se ênclise para próclise.)

330 –Agora, o que vai fazer? –perguntou por fim Abílio

depois de alguns momentos de reflexão.

SPF, SP1: vae; porfim

SPF, SP1: Abilio

–Vou-me embora para São Paulo. Já estive lá uma vez.

Não fico mais aqui.

SPF, SP1: Vou-m’embora; S. Paulo; la

335

Abílio resfolegou. Ia ficar livre daquele trambolho. SPF, SP1: Abilio; d’aquelle

–O patrão é meu protetor, e há de me dar algum dinheiro

para viagem e ficar com os trens que eu deixei lá nas terras

daquela gente.

SPF, SP1: proctetor

SPF, SP1: p’ra

SPF, SP1: la; d’aquella

–Está dito. É bom seguir logo viagem.

340 –Amanhã mesmo, de madrugada.

–Quanto precisa de dinheiro?

–O patrão dê o que quiser. SPF, SP1: quizer

345

No dia seguinte, no escuro da madrugada, Roberto

tomou o caminho de São Paulo. Além de dar-lhe algum dinheiro,

Abílio e sua mãe forneceram-lhe um saco com algumas munições

de boca. A velha lastimava não ter o meeiro dado cabo do

canastro do velho Serafim.

SPF, SP1: S. Paulo; Alem

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: sacco; bocca

SPF, SP1: Seraphim

350

–Que pena escapar aquele maldito! –exclamava. –Pode

aparecer outro...

SPF, SP1: aquelle

SPF, SP1: apparecer

V

Serafim, voltando para a sua casa, ia pensando em SPF, SP1: Seraphim

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5

10

15

Abílio. Tudo concorria em seu espírito para suspeitas que lhe

pareciam bem próximas da verdade. Conhecia de sobra o seu

antigo discípulo para que tivesse elementos fartos no seu estudo

ocasional daquele birbante.191 Abílio era hipócrita, mentiroso,

refalsado e capaz de todas as infâmias e perversidades. Quando

da falsificação da carta depreciativa do caráter da donzela, ainda

restava ao professor uma leve esperança de conseguir a

regeneração daquele degenerado; mas os fatos vieram depois

patentear à sociedade que o rapaz era um caso perdido, digno da

sua progenitora, que também Serafim conhecia desde a sua

mocidade como mexeriqueira, refalsada, capaz de praticar as

maiores indignidades.

SPF, SP1: Abilio; espirito

SPF, SP1: proximas

SPF, SP1: discipulo

SPF, SP1: occasional

SPF, SP1: d’aquelle; Abilio; hypocrita

SPF, SP1: infamias

SPF, SP1: caracter; donzella

SPF, SP1: d’aquelle

SPF, SP1: factos; á sociedade

SPF, SP1: tambem; Seraphim

20

25

A tocaia de Roberto na própria casa do seu patrão e o

aumento da dívida de João ofereciam ao espírito arguto do velho

mestre-escola farta messe para o estudo do caráter de Abílio.

Tudo repousava sobre indícios e conjecturas, é certo; mas como

rastrear a obra dos dissimulados senão por aí? O conjunto de

tantos e tão veementes indícios, estudado pelo velho com o

confronto daquele caráter quando na infância, quando a criança

ainda possui em gérmen192 apenas as suas más tendências e não

sabe ocultá-las, segundo apreciava o seu espírito perspicaz,

aproximava agora tanto a conjectura da verdade, que chegava a

confundir a dúvida com a certeza.

SPF, SP1: propria

SPF, SP1: augmento; divida; offereciam

SPF, SP1: espirito

SPF, SP1: caracter; Abilio

SPF, SP1: indicios

SPF, SP1: sinão; ahi

SPF, SP1: conjuncto; vehementes;

indicios

SPF, SP1: d’aquelle; caracter

SPF, SP1: infancia; creança; possue

SPF, SP1: germen; tendencias; occutal-as

SPF, SP1: espirito

SPF, SP1: approximava

SPF, SP1: duvida

Serafim, honesto e escrupuloso em excesso, temia fazer SPF, SP1: Seraphim

191 Birbante: patife, tratante. 192 Gérmen: variante de germe.

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30

35

juízos temerários; mas o fato da carta falsa, crime confesso de

Abílio, do qual lançou mão o mestre-escola procurando afastar o

criminoso do caminho mau que seguia, procedendo com ele

generosamente, era um precioso elemento de modo que provava

até que ponto era baixo o caráter do seu antigo discípulo.

“Cesteiro que fez um cesto...”

SPF, SP1: juizos; temerarios; facto

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: caracter

SPF, SP1: discipulo

40

45

50

O caso da carta era uma fresta por onde ele devassava

bem claramente até que ponto ia a capacidade de Abílio em fazer

mal a outrem para o seu proveito, não desprezando os meios mais

infames e reprováveis. E o anexim193 adaptava-se perfeitamente

ao caso, dando lugar a que Serafim estivesse quase certificado de

que a nota promissória de valor aumentado era mais uma

falsificação feita pelo hábil cesteiro de antanho. Ia examiná-la

cuidadosamente para tirar uma conclusão que se não se afasta da

verdade em sua inteireza. Para que Abílio lançaria mão de meio

tão ignóbil para prejudicar ao seu antigo condiscípulo? Ganância

de lucro? Que valiam duzentos mil réis para um moço rico,

apaixonado, capaz de sacrificar quantia muitas vezes superior

para satisfazer os seus caprichos?

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: reprovaveis; annexim

SPF, SP1: Seraphim; quasi

SPF, SP1: promissoria

SPF, SP1: augmentado; habil

SPF, SP1: examinal-a

SPF, SP1: afasta-se (Emendou-se.)

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: ignobil

SPF, SP1: condiscipulo; Ganancia

55

Depois se lembrava o mestre-escola que a princípio lhe

dissera Abílio que somente o débito maior já vencido, montava a

um conto e duzentos. Dir-se-ia que a letra relativa a este débito

também fora falsificada? Se o fora, por que o mancebo não a

apresentara? Então lhe vinha à idéia tudo quanto presenciara

quando liquidava o negócio: o atarantamento de Abílio quando,

SPF, SP1: lembrava-se (Emendou-se.)

SPF, SP1: principio; Abilio; debito

SPF, SP1: ja

SPF, SP1: lettra; debito; também foi

SPF, SP1: Si o foi; porque

SPF, SP1: apresentou; vinha-lhe

(Emendou-se.); á idéa

SPF, SP1: precenciou; negocio

SPF, SP1: Abílio

193 Anexim: adágio, ditado, provérbio.

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60

65

ao voltar do gabinete, informava não ter encontrado os

documentos, à exigência peremptória que lhe fez de procurá-los

de novo, a qual arrancou ao mancebo um gesto quase

imperceptível de contrariedade; a sua demora na segunda busca,

e tantos outros incidentes para outro insignificantes, mas para ele

de certo valor, enfeixados, pode-se dizer ajustados, como peças

de uma máquina que se reconstitui, tomava feição de prova

inconcussa.

SPF, SP1: á exigencia; peremptoria

SPF, SP1: procural-os

SPF, SP1: gesto; quasi; imperceptivel

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: machina; reconstitue

70

75

Pensou Serafim que Abílio, tendo falsificado ambas as

letras, atrapalhado, indeciso às exigências apertadas do momento,

ou aterrorizado ao ver a serenidade severa com que era apertado,

não teve coragem de apresentar as duas. Tudo isso estava a pedir

um demorado estudo.

SPF, SP1: Seraphim; Abilio

SPF, SP1: lettras; ás exigencias

80

85

Quanto à emboscada, o que pensar? Roberto foi

colocado, a pedido de Abílio, nas terras de João, como meeiro.

Porque o não colocou nas suas, que mais vantagens ofereciam ao

seu protegido? Em torno dessas e outras muitas circunstâncias

girava ao pensamento do velho professor, procurando uma

explicação, e só encontrando esta: o meeiro Roberto fora

colocado por Abílio nas terras do seu jovem amigo e antigo

discípulo para a realização de qualquer ação má. Serafim sabia,

como João também, que o meeiro, desde que ali foi colocado

como rendeiro, aos domingos e dias de folga não deixava de ir à

casa de Abílio, onde, às vezes, chegava a demorar durante o dia;

mas era atribuído por João ao reconhecimento que o sujeito

dedicava ao seu protetor. O mestre-escola não se abalançava a

SPF, SP1: á emboscada

SPF, SP1: collocado; Abilio

SPF, SP1: collocou

SPF, SP1: offereciam

SPF, SP1: d’essas; circunstancias; gyrava

SPF, SP1: professor (,)

SPF, SP1: collocado; Abilio; joven

SPF, SP1: discipulo; realisação

SPF, SP1: acção; Seraphim; tambem

SPF, SP1: alli

SPF, SP1: á casa

SPF, SP1: Abilio; onde ás vezes (,)

SPF, SP1: attribuido

SPF, SP1: protector

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90

95

dedicava ao seu protetor. O mestre-escola não se abalançava a

chamar a atenção de João para isso, não só porque o meeiro, por

um fato, mesmo leve e insignificante, não se tivesse revelado

desonesto, como porque não desejava parecer fautor de

desinteligências entre pessoas que se confiavam como o meeiro e

o seu patrão.

SPF, SP1: attenção

SPF, SP1: facto

SPF, SP1: deshonesto

SPF, SP1: desintelligencias

100

105

110

115

Desde, porém, que o protegido de Abílio, por ocasião de

prestar as suas contas, mostrara uma índole inteira e

diametralmente oposta ao seu anterior procedimento, ficara o

professor convencido de que ele um refinado tratante e que a sua

constante mudez e semblante fechado eram estudados e tinham

fim tendencioso. Um indivíduo bronco e baldo de educação

como ele fez-se conhecer então, levantando uma questão injusta e

rompendo violentamente com pessoas a quem nunca deixara de

respeitar e agora invectivava com palavras indecentes próprias do

canalha o mais ignóbil, era insinuado com certeza por um mestre

hábil, e esse mestre era Abílio. Deixando tudo quanto possuía,

Roberto abandonou o agro, sem recurso algum, e fora

imediatamente acoitar-se em casa do seu protetor e amigo, sendo

acolhido pela boa de sua mãe que, naturalmente, além de dar-lhe

pouso, manteve-o até a chegada do filho, que veio inteirar a

trindade infame e ver que o seu discípulo dedicado ia levando por

diante o que lhe foi recomendado e insinuado.

SPF, SP1: Desde (,); porem; Abiílio

SPF, SP1: occasião; mostrou; indole

SPF, SP1: opposta

SPF, SP1: ficou; elle

SPF, SP1: individuo

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: deixou

SPF, SP1: proprias

SPF, SP1: ignobil

SPF, SP1: habil; Abilio

SPF, SP1: possuia

SPF, SP1: foi immediatamente

SPF, SP1: protector

SPF, SP1: alem

SPF, SP1: discipulo

SPF, SP1: deante; reccomendado

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120

125

130

Para que tudo isso? pensava Serafim. Abílio, o antigo

rival de João, ainda mantinha aceso o incêndio passional que

chegou à prática a mais indigna quando, falsificando uma carta,

procurou compuscar a reputação de dona Maria e precipitá-la do

pináculo da sua virtude no charco imundo das suas pretensões,

impossibilitado como se sabia de elevar-se para possuí-la em tal

altura. Supôs que a sua fortuna pecuniária, deslumbrando a

virtuosa donzela, fosse um meio seguro, uma irresistível tentação

que vencesse a sua repugnância. O casamento, porém, deu por

terra com as pretensões do fidalgote endinheirado e levantou

entre ele e a pretendida um obstáculo: João, a quem ele conhecia

desde a infância como honesto, bem intencionado, mas de uma

excessiva boa fé. Era preciso afastá-lo, e Abílio o conseguiu.

Restava, porém, ele Serafim.

SPF, SP1: Seraphim; Abilio

SPF, SP1: acceso; incendio

SPF, SP1: á pratica

SPF, SP1: d. Maria; precipital-a; pinaculo

SPF, SP1: immundo; pretençoões

SPF, SP1: possuil-a; Suppoz

SPF, SP1: pecuniaria; donzella

SPF, SP1: irresistivel

SPF, SP1: repugnancia; porem

SPF, SP1: pretenções

SPF, SP1: elle; obstaculo

SPF, SP1: elle; infancia

SPF, SP1: afastal-o; Abilio

SPF, SP1: porem; elle; Seraphim

135

140

Ah! Abílio era capaz de todas as infâmias; era mais vil e

abjeto do que lhe parecia, embora já o tivesse em conta de

astucioso e perverso. Para ele não havia embaraço que impedisse

os seus intentos negregados e, se dona Maria não fosse a moça

inteligente e honesta que ele conhecia, já o miserável teria

procurado jeito de apossar-se dela, mesmo por meios violentos.

SPF, SP1: Abilio; infamias

SPF, SP1: abjecto; ja

SPF, SP1: peverso; elle

SPF, SP1: d. Maria

SPF, SP1: intelligente; ja; miseravel

SPF, SP1: jeito; d’ella

145

Neste ponto das suas cogitações Serafim sentiu um

frêmito de horror. Acudiu-lhe à mente a possibilidade de ser

assassinado por Abílio a fim de ser desimpedido o caminho que

ele com pertinácia tentava seguir à conquista da esposa de João;

pois estava convicto de que todas as maranhas que o vil mancebo

tecia, todos os seus planos, urdidos na sombra por ele, tendiam

unicamente a esse fim desonesto e reprovável. Era preciso

SPF, SP1: N’este; Seraphim

SPF, SP1: fremito; á mente

SPF, SP1: Abilio; afim de

SPF, SP1: desempedido; elle; pertinácia,

(Emendou-se.)

SPF, SP1: á conquista

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150

155

160

unicamente a esse fim desonesto e reprovável. Era preciso

prevenir a pobre senhora e recomendar-lhe a mais severa

vigilância, embora isso fosse perturbar a paz e ingênua segurança

que ela gozava, incapaz, pela sua boa fé e candura, de calcular

que o seu antigo pretendente fosse tão infame a esse ponto. O

pobre velho sentia-se profundamente abalado, ansiava como se o

perigo que se lhe afigurava fora iminente, estivesse por horas.

Esporeou o animal e, por um atalho, chegou à casa de sua

comadre. Chegou mais calmo e, tendo refletido sobre este último

passo que lhe veio à idéia, julgou conveniente não alarmar a

pobre senhora; mas preveni-la com prudência contra o malicioso.

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: deshonesto; reprovavel

SPF, SP1: recommendar-lhe; vigilancia

SPF, SP1: ingenua

SPF, SP1: ella; gosava

SPF, SP1: anceava; si

SPF, SP1: imminente

SPF, SP1: á casa

SPF, SP1: reflectido

SPF, SP1: ultimo; á idea

SPF, SP1: prevenil-a; prudencia

165

Maria acolheu o seu velho mestre com a satisfação e a

alegria de sempre; entanto, inteligente, e até certo ponto

perspicaz, notou em seu semblante um quer que fosse de

alteração e inusitada preocupação; mas aguardou que Serafim lhe

dissesse o que o levava ali.

SPF, SP1: emtanto; intelligente

SPF, SP1: preoccupação

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: alli

170 –Minha comadre – foi logo informando o professor

quando se achava na sala, – ninguém nos ouve?

SPF, SP1: comadre, (Emendou-se.)

SPF, SP1: sala (, –); ninguem

–Estamos sós – respondeu Maria meio alvoroçada. – O

que há?

SPF, SP1: alvoraçada; ha

175 –Não se assuste. Acabo de escapar de boa. Roberto

acha-se homiziado194 na casa de Abílio. O miserável procurou

outro da sua igualha195 a quem protege e garante.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: miseravel; egualha

–Calculei logo que Roberto fosse ter com ele. SPF, SP1: elle

194 Homiziado: escondido, refugiado. 195 Igualha: identidade de feito, na maneira de pensar.

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180 –É natural, porque, sendo Abílio o seu protetor, só por

lá poderia acomodar-se; mas o meu juízo não pára nisso, Deus

me perdoe. Roberto é um instrumento do seu protetor para fins

perversos. Andam-nos moiros na costa.

SPF, SP1: Abilio; protector

SPF, SP1: la; accommodar-se

SPF, SP1: juizo; pára n’isso; perdôe

SPF, SP1: protector; peversos

185 –Descobriu alguma coisa? SPF, SP1: cousa

190

–Venho descobrindo há muito tempo; mas sempre

guardando reserva porque não desejo sobressaltá-los. Desde que

o Roberto aqui se apresentou como recomendado por Abílio,

venho desconfiando do protegido e do protetor, dignos um do

outro.

SPF, SP1: sobresaltal-os

SPF, SP1: recommendado; Abilio

SPF, SP1: protector

–Ah! Meu Deus! Isso é grave – exclamou aflita a pobre

moça.

SPF, SP1: afflicta

195

–Não tenha receio. Veio a tempo de tomar-se

precauções a última descoberta que fiz.

SPF, SP1: ultima

–Mas que há, meu Deus! SPF, SP1: ha; SP: meu Deus!? Succedeu-

lhe alguma cousa?

–Não se assuste. Escapei de ser assassinado na própria

casa de Abílio.

SP, SPF, SP1: propria; Abilio

200

–Meu Deus! Abílio tentou contra a vida do senhor? SPF, SP1: Abilio; SP: -Oh!! mas isso é

horrivel! Abilio tentou contra a vida do

senhor?!

–Abílio não; mas o Roberto. Refiro-lhe o fato, mas peço

a maior reserva; não convém que alguém saiba disso, mesmo

pessoa de sua família.

SP, SPF, SP1: Abilio; facto

SP, SPF, SP1: convem; alguem

SP, SPF, SP1: d’isso; familia

205

E Serafim referiu como se deu a tentativa de Roberto, o

malogro dela, a cobardia do miserável, as explicações de Abílio,

que se mostrou contrariadíssimo e até quis prender o agressor, o

que ele, o professor, não consentiu.

SP, SPF, SP1: Seraphim

SP, SPF, SP1: mallogro; d’ella; miseravel

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: contrariadissimo; quiz;

aggressor

SP, SPF, SP1: elle

210

–Nesse caso, Abílio não é responsável pelo atentado. SP, SPF, SP1: N’esse; Abilio; responsavel

SP, SPF, SP1: attentado

–Na aparência, minha comadre. SP, SPF, SP1: apparencia

–Mas há motivo algum para que assim julgue? SP, SPF, SP1: ha

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263

215

220

–Mais tarde saberá. Ainda não estou de posse de todos

os fios da trama urdida por Abílio; apoio o meu juízo em meras

conjecturas que, entretanto, aproximam-se bem da verdade.

Deixemos isso, e tratemos dos negócios de João. Resgatei as

duas letras, que aqui lhe trago. Ei-las. – E entregou a Maria os

dois títulos resgatados pedindo-lhe que os examinasse.

SP, SPF, SP1: Abílio

SP, SPF, SP1: juizo

SP, SPF, SP1: approximam-se

SP, SPF, SP1: negocios

SP, SPF, SP1: lettras; Eil-as

SP1: dous; titulos

SP, SPF, SP1: examinasse (.)

–Mas como é isso!? – exclamou Maria, admirada depois

do exame. –A letra menor de seiscentos mil réis.

SP, SPF, SP1: lettra

–Estão ambas pagas.

225 –Mas o dinheiro mandado por João não dava para o

pagamento.

–Inteirei. Naturalmente João enganou-se.

230

–Não, professor. Estou bem certa de que o total era um

conto e duzentos mil réis,196 e tenho nota disso. Depois, sei,

porque conheço o negócio desde a sua origem, que há um

acréscimo de duzentos mil réis.

SP1: eram; SP, SPF, SP1: um conto e

quatrocentos mil reis, (Emendou-se.);

negocio

SP, SPF, SP1: ha; accrescimo

235

240

–O que é interessante é que Abílio, antes de apresentar-

me as letras, asseverou-me ser o total do débito da importância de

1:800$000. Achei demais. O rapaz procurou no seu gabinete os

dois títulos e voltou dizendo-me que foi debalde; que não os

achou. Exigi com calma que os procurasse de novo, o que o

contrariou bastante; mas da segunda vez voltou com estes.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: lettras

SP, SPF, SP1: debito; importancia

SP, SPF, SP1: dous; titulos

–Neste caso... o que pensar? SP, SPF, SP1: N’este

–Acode-lhe ao pensamento que as letras foram SP: Acho que uma das lettras foi

falsificada.; SP1; SPF: lettras

196 Os três testemunhos apresentam erro óbvio “um conto e quatrocentos meil reis” em vez de “um conto e duzentos mil réis”, confira capítulo IV, linhas 224 – 235.

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falsificadas?

245

–Pelo menos uma. Mas, se o foi, o falsificador é

habilíssimo.

SP: Não so uma, segundo me diz quanto á

primeira informação de memoria dado por

Abilio.; SPF, SP1: si; habilissimo

250

–É o que me parece197. Convém, entretanto, que

guardemos a maior reserva, porque só assim poderemos

descobrir alguma coisa. Quanto ao mais, procurarei por meio de

um pretexto qualquer, pôr os seus restantes meeiros de

sobreaviso; usarei de um estratagema qualquer a fim de não dar

rebate e alarmá-los. Fique tranqüila, minha boa comadre, e tenha

confiança nAquele que é a nossa guarda e proteção segura.

SP: Parece-me que sim...; SPF, SP1:

Convem

SPF, SP1: cousa

SP, SPF, SP1: afim de

SP, SPF, SP1: alarmal-os; tranquilla

SP, SPF, SP1: n’Aquelle

SP, SPF, SP1: protecção

255 E, despedindo-se, Serafim198 seguiu para a sua

residência.

SP: Seraphim despediu-se...; SPF, SP1:

Seraphim

SP, SPF, SP1: residencia

VI

5

10

Dois dias depois do que se passou entre Abílio e o seu

velho professor apeou o mancebo à tardinha, já o sol posto, em

frente da casa de dona Maria que, ouvindo os passos da

cavalgadura, veio à porta. Não deixou de surpreender-se à vista

dessa visita inopinada a tão adiantada hora; mas recebeu-a sem

demonstrar estranheza no semblante. Inteirada como se achava,

por pessoa que tanta confiança lhe merecia como o velho mestre-

escola, o leitor bem pode avaliar que pobre moça só poderia

recear à visita desse hóspede importuno, cujo caráter infame era

SP: Dias depois (...) entre Abilio, Roberto

e o professor, foi Maria SP: surprehendida

á tardinha, já sol posto, por uma visita de

Abilio.; SPF, SP1: Dous; Abilio; á

tardinha; ja; d. Maria

SP, SPF, SP1: susprehender-se; d’essa; á

vista

SP, SPF, SP1: adeantada

SP, SPF, SP1: extranheza

197 SP: Parece-me que sim; mas não comprehendo porque Abilio me apresentou estas somente. (...) Lançarei mão de qualquer meio para isso, para não chamal-os ao ponto de espalharem noticias do facto que se deu commigo, o que não convem. Quanto ao Abilio, estou certo que guardará segredo no seu proprio interesse. Fique... 198 Seraphim despediu-se mostrando-se confiante, mas no seu intimo, achava-se receioso por si e por sua comadre.

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265

15

20

recear à visita desse hóspede importuno, cujo caráter infame era

capaz de tudo praticar de mal. Só agora podia avaliar o perigo

que corre a segurança e até a honra de uma mulher que reside em

lugar ermo, ausente o esposo e qualquer pessoa que a possa

defender, mas, enérgica como era dona Maria, zelosa da sua

integridade moral e dos seus créditos, apelou para Deus e,

fervorosamente pediu-Lhe, por intermédio de Jesus e de sua Mãe

Santíssima, a proteção que lhe falhava no mundo visível.

SP, SPF, SP1: á visita; d’esse; hospede

SP, SPF, SP1: caracter

SP, SPF, SP1: energica

SP, SPF, SP1: d. Maria

SP, SPF, SP1: creditos; appellou

SP, SPF, SP1: intermedio

SP, SPF, SP1: Santissima; protecção

SP, SPF, SP1: visivel

25

Veio-lhe à idéia que Abílio, o pretendente malogrado à

sua mão, refalsado como era, bem capaz seria de uma ação

indigna e violenta, conferindo as suas anteriores idéias a respeito

com o que lhe referiria o velho e perspicaz mestre-escola, homem

honesto e sensato que nunca avançava um conceito sem bases

seguras sobre o seu julgamento.

SPF, SP1: Veio lhe; á idéa; Abilio

SP, SPF, SP1: mallogrado; á sua

SP, SPF, SP1: acção

SP, SPF, SP1: idéas

30

O que queria Abílio àquela hora em sua casa? Todos

estes pensamentos passaram rápidos pelo seu espírito; mas, firme

e confiada no auxílio da Providência, acolheu o visitante como

devia. Uma vez na sala, o mancebo expôs o que ali o levava

como motivo ou pretexto.

SP, SP1, SPF : Abilio; aquella

SP, SPF, SP1: rapidos

SP, SPF, SP1: espirito; auxilio

SP, SPF, SP1: Providencia

SP, SPF, SP1: expoz; alli

35 –Minha senhora, vim comunicar-lhe que o Roberto,

retirando-se daqui, não querendo absolutamente voltar apesar das

minhas insistências vendeu-me tudo quanto aqui possui e seguiu

viagem.

SPF, SP1: senhora (,); communicar-lhe

SP1, SPF: d’aqui

SP1, SPF: apezar; insistencias

SPF, SP1: possue

40

–Estou ciente, e o senhor poderá mandar buscar o que

lhe pertenceu. Quanto ao Roberto, ainda que voltasse, eu não

mais o aceitaria em minhas terras, porque procedeu

SP, SPF, SP1: sciente

SP, SPF, SP1: acceitaria

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266

mais o aceitaria em minhas terras, porque procedeu

pessimamente.

45

–Oh! muito sinto, dona Maria. Sabe que sempre lhe

dediquei o maior afeto e muito me interesso pela sua felicidade e

por João, ainda mais por ser seu esposo.

SPF, SP1: d. Maria; sinto (,)

SPF, SP1: affecto

50

Maria fez-se desentendida à segunda intenção contida

nas palavras de Abílio. Inteligente como era, e ainda mais

prevenida contra o seu antigo pretendente viu nele um começo de

talvez mais graves e frisantes alusões a uma paixão reprovada

que – quem sabe? – queria trazer à tona da conversação

aproveitando-se de se acharem a sós.

SPF, SP1: á segunda

SPF, SP1: Abilio; Intelligente

SPF, SP1: n’elle; frizantes

SPF, SP1: allusões

SPF, SP1: á tona

55

–Obrigado por João – respondeu Maria

intencionalmente.

–Mas... supus que o Roberto tivesse saído

daqui em paz...

SPF, SP1: suppuz; sahido

SP, SPF, SP1: d’aqui

–Em paz saiu: pessoa alguma ofendeu. SP, SPF, SP1: sahiu; offendeu

60

–Soube depois que andou mal, o que muito

senti. Quando o apresentei parecia-me um sujeito

sério e honesto. Nada me disse nem queixou.

SPF, SP1: serio

–O senhor devia logo ver que, quando ele

não quis voltar em procura do que era seu, alguma

coisa devia ter havido.

SPF, SP1: elle

SPF, SP1:quiz; cousa

65

–Não me passou isso pela idéia, tão

placidamente se me apresentou ele. Não quis

voltar, disse-me, porque precisava de algum

dinheiro para viajar, pediu-me que lhe comprasse

ti h i S i f ? S i

SPF, SP1: idéa

SPF, SP1: elle; quiz

SPF, SP1: Sahiu-me

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70 o que tinha aqui. Saiu-me caro, mas que fazer? Sei

que a senhora anda em dificuldades, por isso peço-

lhe aceitar para si o que ele deixou.

SPF, SP1: difficuldades; pesso-lhe;

acceitar

SP1, SPF: elle

–Absolutamente não posso aceitar, nem

estou em dificuldades. João não se tem esquecido

de mim.

SPF, SP1: acceitar

SPF, SP1: difficuldades

75

80

–Oh! Não me faça isso, dona Maria. Se

comprei tais objetos, foi mesmo para servi-la

temendo que estranhos viessem incomodá-la.

Quanto a João, sei que tem passado sem recursos

em São Paulo. O pobre trabalhador baiano ali,

quando não conhece o meio, vê-se em apuros. Para

acudir a familia que cá ficou, vê-se obrigado a

contrair empréstimos, quando é o homem probo

como João.Tenho lá amigos a quem o recomendei,

e constantemente procuro saber do seu estado e

recursos.

SPF, SP1: d. Maria; Si

SPF, SP1: taes; objectos; servil-a

SPF, SP1: vinhessem; incommodal-a

SPF, SP1: S. Paulo

SPF, SP1: bahiano; alli

SPF, SP1:meio (,); à familia (Emendou-

se.)

SPF, SP1: contrahir; emprestimos

SPF, SP1: la

85 –Não é o que João me informa.

90

–É que ele não quer intranqüilizá-la, dona

Maria. Posso asseverar-lhe que é exato o que eu

afirmo. João não poderá voltar cá tão cedo como

pensa porque, apenas vai solvendo um

compromisso, tem necessidade de contrair outro.

Se ao menos o senhor Oliveira pudesse servi-lo;

SPF, SP1: elle; intranquillizal-a; d. Maria

SPF, SP1: asserverar-lhe; exacto; affirmo

SPF, SP1: ca

SPF, SP1: vae

SPF, SP1: contrahir; Si; sr.; servil-o

SP1, SPF: podesse

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mas não pode absolutamente, como sei.

–Entregou-me a Deus e, confiada nEle,

aguardou o futuro.

SPF, SP1: nElle

95 –Há muito tempo desejava eu expor-lhe

tudo isso e pôr-me inteiramente à sua disposição. A

senhora não me procurou apesar de que a João

prometi socorrê-la quando lhe faltassem recursos.

SPF, SP1: Ha

SPF, SP1: á sua

SP1, SPF: apezar

SPF, SP1: prometti; soccorrel-a

100

–Não me está bem procurar o amparo de

estranhos na ausência de meu marido, senhor.

SPF, SP1: extranhos; ausencia

–Entretanto socorre-se do velho Serafim. SPF, SP1: soccorre-se; Seraphim

–Do professor! de um velho respeitado e

honesto que desde criança conheço como digno da

maior veneração e confiança.

SPF, SP1: creança

105 –Também me conhece desde criança e sabe

das minhas disposições a seu respeito – observou

Abílio com certo azedume.

SPF, SP1: Tambem; creança

SPF, SP1: Abilio

–Ignoro quais fossem essas disposições. SPF, SP1: quaes

110

–É uma memória muito fraca, dona Maria!

–disse Abílio com um sorriso canalha. – Por ter

sido repelido, rejeitado com desdém, não supunha

que eu tenha a memória fraca que os meus

pensamentos deixassem de atuar nas minhas

tendências afetivas.

SPF, SP1: memoria; d. Maria

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: repellido; regeitado; desdem;

suppunha

SP1, SPF: memoria

SPF, SP1: actuar; tendencias; affectivas

115

–Respeite-me, senhor. Não posso admitir

que a cobardia se aproveite de estarmos sós

SPF, SP1: admittir

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que a cobardia se aproveite de estarmos sós.

–Em que a desrespeitei, senhora? Há atrito somente

porque a minha cobardia enfrenta um orgulho desmedido.

SPF, SP1: Ha; attrito

–Orgulho bem entendido.

120 –É porque não sabe o que assoalham por aí em fora. SPF, SP1: ahi

–Só podem assoalhar contra mim e contra a honestidade

de uma esposa recatada miseráveis como o senhor.

SPF, SP1: miseraveis

125

130

–Pode insultar-me como quiser, pode odiar-me, nada

disso me fará esquecê-la e querer-lhe mal. Creia, dona Maria,

tanto mais veemente se torna a paixão que tenho por aquela a

quem adoro. O seu orgulho, embora honesto como diz, a sua

irredutibilidade, o desprezo que me vota, são acendalhas que atira

à fogueira que arde em meu peito. Estamos sós. Pois bem,

atenda-me e terá a fortuna, será riquíssima, gozará de uma

opulência que contrastará com a miséria a que chegou.

SPF, SP1: quizer

SPF, SP1: d’isso; esquecel-a

SPF, SP1: d. Maria; vehemente

SPF, SP1: aquella

SPF, SP1: irreductibilidade

SPF, SP1: accendalhas; á fogueira

SPF, SP1: attenda-me

SPF, SP1: riquissima; gosará; opulencia

SPF, SP1: miseria

135 –Infame! Miserável! E é esse o amigo dedicado do meu

querido esposo! É esse o homem de bem que vive há tantos anos

armando emboscadas contra a honra do seu amigo da infância!

SPF, SP1: Miseravel

SPF, SP1: ha; annos

SPF, SP1: infancia

140

–Sabe que a paixão nos arrasta à loucura. A senhora há

de ser minha, por um dia que seja.

SPF, SP1: á loucura

SPF, SP1: ha

145

Dona Maria ergue-se em toda a sua estatura física e

moral. Era capaz de tudo pôr em prática na defesa de sua honra

imaculada. Os seus olhos brilharam de indignação, o seu belo

rosto transformava-se no semblante do anjo vingador, e parecia

que em seu punho flamejava a espada da justiça. Com império,

como uma rainha que manda, fremindo e resoluta, indicou a

porta a Abílio.

SPF, SP1: d. Maria

SPF, SP1: physica; pratica

SPF, SP1: immaculada

SPF, SP1: bello

SPF, SP1: flammejava

SPF, SP1: imperio

SPF, SP1: Abilio

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270

150

–Saia, senhor. Não continue um instante mais no lar

honesto que procura compuscar.

SPF, SP1: compurcar

155

–Não saio. – E, atrevidamente avançou para a pobre

esposa; mas quando ia tocá-la com a sua mão impura, sentiu nos

lombos uma tremenda e dolorosa cacetada que a voz de Pulquéria

acompanhava destas palavras:

SPF, SP1: tocal-a

SPF, SP1: Pulcheria; d’ estas

–Toma, sem vergonha!

Voltou-se rápido rugindo de ódio. SPF, SP1: rapido; odio

160

–Miserável! – E viu, por traz da negra velha os dois

meeiros armados de cacetes; silenciosos e prontos a executarem o

que lhe determinassem.

SPF, SP1: Miseravel

SPF, SP1: dous; promptos

–Retirem este homem daqui! – ordenou-lhes dona

Maria.

SPF, SP1: d’aqui: (!)

SPF, SP1: d. Maria

165

170

Os dois camaradas, cada qual por seu lado, seguraram

Abílio pelos braços e foram-no levando para o terreiro ao mesmo

tempo em que Pulquéria o empurrava pelas costas. Abílio não

resistiu. Montou na sua besta e sumiu-se nas sombras da noite.

Quando não mais ouviram o tropel da mula, entraram na sala

Pulquéria e os dois meeiros. Dona Maria, prostrada em sua

cadeira, achava-se lavada em pranto.

SPF, SP1: dous

SPF, SP1: Abilio; foram-n-o

SP1, SPF ao mesmo tempo que

(Emendou-se conforme regência.);

Pulcheria

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: Pulcheria; dous; D. Maria

175

A explicação desse desenlace é a seguinte: Pulquéria,

ouvindo conversação na sala, sempre atenta e desvelada por sua

filha de leite, veio espreitar e ouvir. Conhecendo Abílio, com

quem se antipatizava e cujas façanhas já conhecia, teve

desconfianças e, mais que depressa, foi chamar os dois meeiros,

que já estavam prevenidos por Serafim para acudir a senhora em

qualquer conjuntura desagradável. Os dois homens armaram-se

de cacetes como Pulquéria e vieram emboscar-se no escuro da

SPF, SP1: d’esse

SPF, SP1: Pulcheria; attenta

SPF, SP1: Abilio; antipathizava

SPF, SP1: ja

SPF, SP1: dous; ja

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: conjunctura; desagradavel;

dous

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271

180

noite no interior da casa com a negra, que se arvorou em

comandante da escolta e tudo determinou como o mestre-escola

instruiu-a, guardando absoluto mutismo. No momento preciso

entraram os três e deu-se o que viu o leitor.

SPF, SP1: Pulcheria

SPF, SP1: commandante

SPF, SP1: tres

VII

5

Retirando-se, Abílio levava em sua alma de

moço orgulhoso e fidalgo, um despeito que chegava

às proporções do furor que, em sua insânia, vota

um ódio irrefreável a tudo quanto esteja presente à

vista e às reminiscências. Sentia-se vulnerado em

seus brios de homem da melhor sociedade,

honrado e intangível em seus foros de endinheirado

e, por isso, insuspeito. Entretanto, fôra enxotado199

SP: Retirando-se da casa de d.

Maria, Abilio; SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: ás proporções;

insania; odio

SPF, SP1: irrefreavel; á vista; ás

reminiscencias

SPF, SP1: intangivel

SPF, SP1: edinheirado

SP1, SPF: Etretando (,); SP:

enxotado de um casebre a que

deu a honra da sua visita

199 O manuscrito apresenta estrutura narrativa diferente dos impressos: “Entretanto fora enxotado de um casebre a que deu a honra da sua visita, por gente pobre, miseravel, sem compostura nem educação, desconhecida e que nenhuma consideração merece, como si elle fosse um cão desprezivel da egualha de tal gente ordinaria! E porque? Pela simples razão de, como homem da sociedade, usar gentilezas com uma mulher orgulhosa, esposa de um tabaréo grosseiro e chapado a que preferiu por capricho e talvez... ou mais certo, por ser mais robusto... N’este ponto das suas cogitações o vil despeitado teve um sorriso satirico, que mais parecia a carranca de um demonio, lembrando-se do autor d’ “A Carne” seu antigo mestre no collegio paulista e cujas torpes e immundas palestras ouviu muitas vezes. As absurdas e immoraes theorias de Julio Ribeiro encontraram no seu espirito terreno fecundo para o seu cultivo e desenvolvimento. Para o infame discipulo a virtude feminil não passa de uma convenção; o casamento é egual ao concubinato; a mulher uma propriedade reconhecida pelas leis humanas, uma posse garantida pelo direito que o egoismo dos masculos dominadores do mundo [↑forjou]; um instrumento de goso ou de luxo que, para se conter dentro dos limites da tão preconizada quão contida virtude, é preciso que o seu proprietario ou posseiro afogue, satisfaça em seus desenfreados appetites, em seus caprichos e vaidades de desmioladas. O marido d’aquella mulher orgulhosa satisfazi-a em tudo isso? Estava certo que não. Si, porventura, ella mostrava-se irredutivel e supunha-se uma Lucrecia fanatica e idiota que preferisse a morte ao que suppunha deshonra, era porque Seraphim, o atrazado e pretencioso mestre-escola da roça, com a sua austeridade piegas de cérbero guardados d’aquell[es] thesouro de virtudes, impunha-lhe aquelle modo de proceder até que o seu legitimo dono – segundo o seu modo de pensar idiota – voltasse rico e capaz de satisfazer à virtuosa em seus desejos e caprichos. D’ahi... quem sabe? – continuava a pensar, de novo com o seu sorriso de

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272

10

15

da casa de uma mulher que o devia ter em melhor

conta, a quem levava a afirmação de grande afeto

que lhe votava e a quem em nada ofendera; pois

revelar-lhe a admiração que os seus dotes físicos

despertavam-lhe, oferecer-lhe os seus ofícios na

situação apertada em que estava, antes devia ser

motivo para o seu contentamento e gratidão.

SPF, SP1: affirmação; affecto

SPF, SP1: offendera

SPF, SP1: physicos; offerecer-

lhe

SPF, SP1: officios

20

25

Virtude! Suponha-se ela, em seu orgulho

desmarcado, um ente privilegiado? A tal virtude tão

preconizada não passa de uma convenção. Bem o

dizia seu mestre, o grande filósofo paulista Júlio

Ribeiro, com quem esteve em contato por três anos, e

cujas sábias lições ficaram gravadas na sua retentiva

como uma verdade incontestável. A mulher não passa

de um animal de estimação que se afeiçoa a quem

melhor lhe satisfaz os apetites. Falhe esse alimento,

como também o afago às suas vaidades pueris, o afeto

estiola-se, resseca como a planta descurada e não

umedecida, para renascer vivaz quando outro

SPF, SP1: Suppunha-se; ella

SPF, SP1: philosopho

SPF, SP1: contacto; tres; annos

SP1, SPF: sabias

SPF, SP1: incontestavel

SPF, SP1: affeicôa

SPF, SP1: appetites; Fa-lhe

SPF, SP1: tambem; ás suas;

affecto

SPF, SP1: resécca

SPF, SP1: humedecida

demonio despeitado – Há segredos insondaveis n’esses ninhos de virtudes que se conservam irredutiveis na apparencia. O que se passa n’aquele tabernaculo onde dizem que a// tão falada virtude teve assento? O velho guarda dos thesouros alheios tem filhos, marmanjos robustos... Aqui demorava em suas cogitações odiosas e satanicas fazendo um esgar de contentamento. E Abilio, no seu odio de energumeno, avançava as mais torpes e indignas <apreciações> [↑aproprições acerca] do caracter de d. Maria, carregando de uma ironia acerba as palavras que acima sublinhamos. Si aquella hypocrita– continuava elle comsigo– não estivesse prevenido por aquelle aza, cederia; mas o velho infame, mais uma vez quando fazer praça de honesto e tornar conhecida a sua intrasigencia hypocrita de terrivel e invencivel guardador da honra alheia, soube preparar o espirito da outra contra um possivel assalto d’aquelle a quem votava antipathia e má vontade.”

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30

desvelado cultor vem em seu auxílio. E se muitos por

ela se desvelam com igual carinho, sabe a hipócrita a

todos compensar o cuidado que lhe prestam.

SPF, SP1: auxilio; si

SPF, SP1: ella; egual; hypocrita

35

O sentimento da mulher em nada difere do

ondular das águas ao sabor dos ventos. Saiba-se soprá-

la, e as suas faculdades sentimentais avivar-se-ão

conforme a impulsão que se lhes der, para amortecer-

se quando lhe faltar a extrínseca influência.

SPF, SP1: differe

SPF, SP1: águas; sopral-a

SPF, SP1: sentimentaes

SPF, SP1: extrinseca; influencia

40

45

Por que aquela mulher, às suas primeiras

palavras, revoltou-se como zelosa da sua honra,

acastelada nos cediços200 direitos estabelecidos pela

convenção social, e que estava no papel de uma

Lucrécia?201 É porque Serafim, o austero e atrasado

mestre-escola da roça, constituído pelo proprietário

daquele tesouro de virtudes o seu guarda fiel, uma

espécie de cérbero ou dragão que o vigiava como se

conta nas lendas antigas, soprava e, como uma

vestal,202 mantinha acesa aquela virtude. E Abílio

carregava de uma ironia acerba e impregnada de um

terrível rancor os pensamentos que acima

sublinhamos. Se aquela mulher não estivesse

SPF, SP1: Porque; aquella; ás

suas

SPF, SP1: acastellada; sediços

SPF, SP1: Lucrecia;

Seraphim(,); atrazado

SPF, SP1: constituido;

proprietário

SPF, SP1: d’aquelle;

THESOURO DE VIRTUDES

SPF, SP1: especie

SPF, SP1: vestal; acceza

aquella; VIRTUDE; Abilio

SPF, SP1: terrivel

SPF, SP1: Si; aquella

200 Cediço: sabido de todos, muito velho. 201 Lucrécia: dama romana que se matou em 509 a.C., depois de ter sido ultrajada por um filho de Tarqüínio, o soberano. 202 Vestal: Sarsedotisa de Vesta, deusa do fogo dos romanos. Mulher muito honesta.

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prevenida por aquele asa-negra,203 pensava Abílio,

cederia: mas o velho infame, mais uma vez desejando

proporcionar a sua honestidade, a sua intransigência

de terrível guardador da honra alheia, preparava o

espírito da ingênua contra o possível assalto daquele a

quem – estava agora convencido – votava antipatia e

má vontade.

SPF, SP1: aquelle; aza negra;

Abilio

SPF, SP1: intransigencia

SPF, SP1: terrivel

SPF, SP1: espirito; INGENUA;

possivel; d’aquelle

SPF, SP1: antipathia

55

60

65

Absorvido por estes e outros pensamentos,

qual mais infame e calunioso, o miserável debuxava

em linhas gerais um plano terrível de vingança. O

ódio refervia em seu coração como líquido que,

hermeticamente fechado em caldeira, por fim

explodiria contra a primeira pessoa que se lhe

apresentasse em frente, ainda mesmo que, inocente,

não lhe desse motivo para a deflagração; que o

motivo, esse, já existia intenso naquela alma danada,

por cada momento que passava mais violento: a

vingança do desorientado que se conhece por ora

impotente, e procura um meio de desabafar-se.

Serafim, dona Maria e, até, os dois meeiros e

Pulquéria eram o seu alvo e, desde o fracasso,

poderiam contar com a espada de Dâmocles204

SP, SPF, SP1: miseravel

SP, SPF, SP1: geraes; terrivel

SP, SPF, SP1: odio; liquido

SP, SPF, SP1: porfim

SP, SPF, SP1: innocente

SP, SPF, SP1: désse; deflagação

SP, SPF, SP1: n’aquella;

damnada

SP, SPF, SP1: Seraphin; d.

Maria; dous

SP, SPF, SP1: Pulcheria

203 Asa-negra: pessoa que prejudica ou embaraça outra constantemente. 204 Dâmocles: cortesão de Dionísio (século IV a. C.) que invejava a felicidade dos tiranos. Para fazê-lo compreender quão frágil é a felicidade dos tiranos, durante um banquete, Dionísio ordenou que ficasse suspensa sobre a cabeça de Dâmocles uma pesada espada mantida por um fio de crina de cavalo.

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70

suspensa sobre a sua cabeça, ameaçadora e terrível, se

pudessem penetrar os escuros meandros daquela alma

negra que, como o crótalo205 hórrido, já armava o seu

bote traiçoeiro e mortífero.

SP, SPF, SP1: Dámocles

SP, SPF, SP1: terrivel; si

SP, SPF, SP1: podessem;

d’aquella

SP, SPF, SP1: horrido

SP, SPF, SP1: mortifero

75

80

Abílio chegou em casa, eram nove horas da

noite, nesse estado de exaltação. Dona Úrsula

esperava-o ansiosa, não tendo sabido aonde ele fora.

Enfim era mãe e, embora o leitor já a conheça como

uma má mulher, capaz de praticar as maiores

indignidades, idolatrava o filho que, único, absorvia

todo o seu afeto, todos os seus desvelos e cuidados

sem que restasse algum bom sentimento que ela

dispensasse sinceramente a outra pessoa qualquer. A

fera também ama a seus cachorrinhos, ameiga-os e

afronta a morte e os maiores perigos em sua defesa.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: n’esse; D. Ursula

SP, SPF, SP1: anciosa; elle

SP, SPF, SP1: Emfim

SP, SPF, SP1: unico

SP, SPF, SP1: afecto

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: tambem

SP, SPF, SP1: affronta

85

– Ah! meu filho! – foi a velha dizendo

risonha e carinhosa. – Por onde andou? Eu estava

tão aflita!

SP, SPF, SP1: filho(,)

SP, SPF, SP1: afflicta

–Que tem a senhora de saber? – respondeu

Abílio grosseiramente e de semblante carrancudo, –

Está de contíinuo a considerar-me criança de mama!

SP, SPF, SP1: Abilio;

carrancudo (,)

SP, SPF, SP1: mamma

–Não é isso, meu filho. Não jantou... saiu sem SP, SPF, SP1: sahiu

205 Crótalo: gênero de cobras muito venenosas que têm na cauda um guizo que chocalha quando elas rastejam ou batem com a cauda. No Brasil, a cobra mais comum dessa família é a cascavel.

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90 dizer aonde ia...

–Fui aonde bem quis! Não quis e não quero

jantar.

SP, SPF, SP1: quiz; quiz

95

–Mas não é preciso zangar-se por tão pouca

coisa – E, procurando amigá-lo risonha, acrescentou:

– Por que vem com quatro pedras na mão contra mim?

Em que te ofendi?

SP, SPF, SP1: cousa; amigal-o

SP, SPF, SP1: Porque

–Em muito com seus aborrecimentos e

importunações. As quatro pedras são poucas; eu devia

responder-lhe com oito. Que importa à senhora saber

de minha vida?!

SP, SPF, SP1: á senhora

100 –Sou mãe, e tenho interesse por ti.

–Qual interesse, qual nada! A senhora não é

mais do que uma curiosa importuna.

–Oh... – ainda disse a velha procurando sorrir.

– Está hoje nos azeites?

SP, SPF, SP1: O... ; sorrir(.)

105 –Que azeites!?

–Decerto andou por aí a sofrer alguma

contrariedade, não é?

SP, SPF, SP1: ahi; soffrer

–Quem lhe disse isso? – perguntou Abílio

alvoroçado.

SP, SPF, SP1: Abilio

110 –Estou vendo.

–Está botando verdes.

–Nunca ti vi assim! Agora, briga lá com os SP, SPF, SP1: la

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outros, e eu que pague as favas que o burro comeu.

115

–Eu sou burro!? – exclamou Abílio exaltando-

se. – Que favas comi?

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP: exaltando-se (.)

–Espera, meu filho. Isso é um ditado velho,

todo o mundo conhece.

SP, SPF, SP: velho (,)

120

–Não estou agora para ouvir chufas206. Vá-se

embora, senhora; deixe-me!

SP, SPF, SP1: Va-s’embora

–Eu não digo? – dizia a velha a sorrir – Está

com raiva de mim, meu filho? Fica com raiva antes de

alguma das tuas queridas. Eu não tenho culpa de te

abandonarem.

125 Abílio empalideceu. Sua mãe lhe deu no vinte;

até que adivinhava. Contudo fez semblante de quem

não ligou importância, e tomou a resolução de

recolher-se no gabinete.

SP, SPF, SP1: Abilio;

empallideceu

SP, SPF, SP1: Comtudo

SP, SPF, SP1: importancia

130

–Espera, Abílio – pediu dona Úrsula

procurando atalhá-lo. – Vem ao menos tomar uma

xícara de chá ou café.

SP, SPF, SP1: Abilio; d. Ursula

SP, SPF, SP1: atalhal-o (.)

SP, SPF, SP1: chicara

–Não quero! – e Abílio repeliu a velha. SP, SPF, SP1: Abilio; repelliu

–Isso tem jeito, meu filho? SP, SPF, SP1: geito

–O que não tem jeito é a sua teimosia. SP, SPF, SP1: geito

135 –Não é teimosia, Abílio. Pois é possível ficar

assim sem tomar alguma coisa. Deixa para lá a tua

ingrata e trata de beber ou comer alguma coisa.

SP, SPF, SP1: Abilio; possivel

SP, SPF, SP1: cousa; p’ra la

206 Chufas: dito trocista, caçoada.

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ingrata e trata de beber ou comer alguma coisa. SP, SPF, SP1: cousa

Abílio assustou-se de novo e assentou-se. Sua

mãe, curiosa como era, já tinha desconfianças!

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: ja

140 –Então quer, meu filho? – indagava a velha

suplicando. – Anda, diz. Vou fazer o chá.

SP, SPF, SP1: suplicando (.)

–Quero, para me ver livre da senhora.

–Oh! meu filho! – exclamou magoada a velha.

– Não faça assim com sua mãe.

SP, SPF, SP1: maguada; velha

(.)

145 –Vá fazer o chá.

150

155

160

Dona Úrsula, apesar do seu corpanzil, saiu

apressada. Lembrou-se em caminho que tinha frito uns

bolinhos e, enquanto preparava o chá ela mesma, –

concessão que só ao filho faria –, aqueceu de novo a

fritada de que se lembrou, solícita por agradar ao filho

e vencer o seu mau humor e, tudo preparado, foi ela

própria levar à sala. Em outras circunstâncias menos

aflitivas, dona Úrsula chamava os criados bradando

com império, porque não estava bem se ocupar com

serviços próprios deles; mas agora que eles dormiam,

estimava até dar a Abílio uma prova de quanto se

interessava por ele. Este, entanto só e a meditar,

lembrou-se do seu recente fracasso e do desacato que

sofreu porque, ao sentar-se no sofá, uma leve pontada

nas costas, no sítio da cacetada de Pulquéria,

SP, SPF, SP1: D. Ursula;

apezar; sahiu

SP, SPF, SP1: emquanto; ella;

mesma, (Emendou-se.)

SP, SPF, SP1: faria, - (-,)

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: propria; á sala;

circunstancias

SP, SPF, SP1: afflictivas; d.

Ursula

SP, SPF, SP1: imperio; occupar-

se;

SP, SPF, SP1: proprios; delles;

agora, (Emendou-se.); elles

dormiam; (,); Abilio

SP, SPF, SP1: elle; emtanto

SP, SPF, SP1: soffreu

SP, SPF, SP1: sitio; Pulcheria(,)

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reacendeu o seu rancor vago e doentio pronto a

extravasar-se em cólera violenta.

SP, SPF, SP1: reaccendeu;

prompto

SP, SPF, SP1: colera

165

170

Estava nesse estado quando dona Úrsula, toda

contente, risonha e serviçal, trouxe-lhe o chá e todo o

serviço necessário em uma antiga salva de prata. Bem

que ouvisse as passadas de sua mãe e o ruído da louça

quando colocada em uma banca, Abílio não se mexeu,

continuando cabisbaixo e o rosto apoiado sobre as

mãos. Lançando um olhar de esguelha sobre ele, a

pobre velha, tímida e receosa, preparou o serviço

procurando evitar ruídos incômodos ao filho para que

se não destemperasse de novo; depois aproximou-se

com a chávena207 e um prato com os bolos.

SP, SPF, SP1: n’esse; d. Ursula

SP, SPF, SP1: necessario

SP, SPF, SP1: ruido

SP, SPF, SP1: collocada; Abilio

SP, SPF, SP1: cabixbaixo

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: timida; receiosa

SP, SPF, SP1: ruidos;

incommodos

SP, SPF, SP1: approximou-se

SP, SPF, SP1: chavena

175

–Aqui está o chá, meu filho. – Abílio

conservou-se mudo e quieto. Dona Úrsula animou-se

a tocá-lo de leve com um dos cotovelos e chamou-o de

novo com voz meiga.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: D Ursula; tocal-o

–Irra! – bradou o filho sacudindo os ombros. –

Está hoje apostada em me infernar!

SP, SPF, SP1: ombros (.)

180 –O que é isso, meu filho!

–Não me deixa sossegado um momento! SP, SPF, SP1: socegado

–Tem paciência. Anda; toma o chá. SP, SPF, SP1: paciencia

E dona Úrsula, cada vez mais procurando

ameigar a voz, e como que suplicando, apresentava ao

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: supplicando

207 Chávena: xícara ou taça para chá, café e outras bebidas quentes.

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185

190

ameigar a voz, e como que suplicando, apresentava ao

filho a chávena e o prato de bolos cada qual em uma

das mãos. Abílio levantou o rosto enfarruscado,

recebeu com mau modo o chá e repeliu o prato com

tal violência, que este caiu no soalho espatifando-se

em mil cacos, e os bolinhos espalharam-se por todos

os lados no pavimento.

SP, SPF, SP1: chavena

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: mau; repelliu

SP, SPF, SP1: violencia; cahiu

Está! – exclamou desgostosa a velha

acocorando-se para catar os cacos e os bolos. Depois,

em voz mais baixa, como repreensiva disse: – Em que

deu a má-criação dele!

SP, SPF, SP1: reprehensiva

SP, SPF, SP1: macriação; d’elle

195

200

Abílio ouviu e retrucou asperamente.

Procurava um pretexto para se azoar e achou-o no chá

dizendo-o mal preparado e atirando a xícara

estouvadamente na banca, de modo que, derramando-

se o líquido, alastrou-se e escorreu nas costas da

velha.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: chicara

SP, SPF, SP1: liquido

–Isso é chá? – disse ele com furor. – A

senhora nem isso sabe fazer?

SP, SPF, SP1: elle; furror (.)

–Pois o que é, meu filho?

–É uma garapa desenxabida. Para os diabos! SP, SPF, SP1: P’ros

205 –Já se viu coisa assim? – exclamou dona

Úrsula tristemente. – Ah! filho!

SP, SPF, SP1: Ja; cousa; d.

Ursula tristemente (.)

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210

215

220

Abílio ergueu-se do sofá e, sem lançar os

olhos sobre a velha, sem despedir-se dela como

costumava ao recolher-se, dirigiu-se para o seu

gabinete contíguo à alcova. Dona Úrsula

acompanhou-o levando as mãos reluzentes de gordura

e alguns cacos da louça e bolo que apanhou. Mais uma

vez queria chamá-lo à razão detendo-o para ouvir o

que ele queria em lugar do chá, pronta a servi-lo de

novo, tal o seu empenho de abrandá-lo. Abílio,

entretanto, mais lesto208, chegou primeiro que sua mãe

diante da porta do seu tabernáculo, destrancou-o e,

quando sua mãe aproximou-se com as mãos ocupadas

procurando detê-lo, o mau filho deu-lhe um safanão e

desapareceu trancando a entrada à velha sem respeito

à idade e gratidão ao desvelo daquela que lhe deu o

ser.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: d’ella

SP, SPF, SP1: contíguo; á

alcova; D. Ursula

SP, SPF, SP1: chamal-o; á razão

SP, SPF, SP1: elle; logar

SP, SPF, SP1: prompta; servil-

o; abrandal-o; Abilio

SP, SPF, SP1: lésto

SP, SPF, SP1: deante;

tabernaculo; destrancou-o (,)

SP, SPF, SP1: approximou-se;

occupadas

SP, SPF, SP1: detel-o; máu

SP, SPF, SP1: desappareceu; á

velha

SP, SPF, SP1: á edade;

d’aquella

225

Dona Úrsula caiu sentada no soalho, e os

cacos e bolos espalharam-se-lhe ao redor. Com o

coração angustiado, sentindo-se ferida em sua

ternura de mãe e, ainda mais, sentido doer-lhe o

velho corpo em conseqüência da queda violenta e

perigosa sobre o assento, dona Úrsula pôs-se a

chorar silenciosamente. Era mãe de um único filho

que era o seu ídolo, por quem tudo daria para que

SP, SPF, SP1: D. Ursula cahiu

SP, SPF, SP1: consequencia

SP, SPF, SP1: d. Ursula poz-se

SP, SPF, SP1: unico; idolo (,)

208 Lesto: rápido.

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230

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que era o seu ídolo, por quem tudo daria para que

sempre o visse satisfeito, contente e alegre. Como

bem raras vezes, o seu coração achava-se

sensibilizado ao extremo; mas quando lhe sucedia

um desgosto tamanho causado por estranhos, tinha

o filho para consolá-la, para varrer tristezas do seu

coração, e se causado pelo próprio filho, este logo

voltava arrependido a tratá-la com mais amor e

carinho.

SP, SPF, SP1: succedia

SP, SPF, SP1: extranhos;

consolal-a

SP, SPF, SP1: si; proprio

SP, SPF, SP1: tratal-a

240

245

Dona Úrsula era má como sabemos; mas no

charco penitencial dos seus maus sentimentos, como

soe acontecer nos pantanais, nascera única uma planta

que, viçosa e atraente, florescia esplêndida e bem

alimentada. Era a planta do afeto por uma única

pessoa neste mundo sem que sobejasse amor sincero

dedicado a outrem. Agora se compreendia desprezada,

mesmo odiada pelo objeto único dos seus extremos;

por aquele filho que nunca a tratara com tal violência,

desprezo e mesmo ódio.

SP, SPF, SP1: D. Ursula

SP: Petilencial; SP, SPF, SP1:

máus

SP, SPF, SP1: pantanaes; unica

SP, SPF, SP1: attrahente;

florecia

SP, SPF, SP1: affecto; unica;

SP, SPF, SP1: n’este

SP, SPF, SP1: comprehendia-se

(Emendou-se ênclise para

próclise.); objecto; unico

SP, SPF, SP1: aquelle; violencia

SP, SPF, SP1: odio

250

Dona Úrsula, apesar das reiteradas

reclamações de seu marido, nunca deixou de satisfazer

os desejos, por mais desarrazoados que fossem,

daquele filho que era o seu encanto. Desde a infância

SP, SPF, SP1: D. Ursula; apezar

SP, SPF, SP1: d’aquelle;

infancia

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255

260

265

de Abílio, sua mãe perdia-o com as suas bajoujices209

e seu pai, que era um homem criterioso, logo que

Serafim deu-o por pronto em curso primário, levou-o

para São Paulo, não só para seguir o curso de

humanidades e entrar para a faculdade, como para

afastá-lo do lar, onde o bajoujo210 e adulação punham-

no a perder. Dona Úrsula, logo que viúva, não mais

consentiu o filho ausente e cortou-lhe a carreira.

Abílio voltou com sua índole aperfeiçoada naquele

meio culto; as suas tendências achavam-se mais

desenvolvidas, e os recursos de dissimulação

aumentados. Em casa era um tirano, e, como dona

Úrsula continuasse a mesma, tornou-se ridícula para o

filho, que entrou a dominá-la.

SP, SPF, SP1: Abilio; bajujices

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: Seraphim;

prompto

SP, SPF, SP1: primario; S.

Paulo

SP, SPF, SP1: afastal-o; bajojo;

punham-n-o;

SP, SPF, SP1: D. Ursula; viuva

SP, SPF, SP1: Abilio; indole;

n’aquelle

SP, SPF, SP1: tendencias

SP, SPF, SP1: augmentados;

tyranno; d. Ursula

SP, SPF, SP1: ridicula

SP, SPF, SP1: dominal-a

270

Dona Úrsula conservou-se assentada alguns

momentos; depois, desenganada de ser socorrida,

levantou-se com dificuldade. Sentia-se num

abandono aterrador, e desiludida do filho. Este

havia desaparecido e não dava sinal de si, o que

para a velha era mais que a morte. Sentindo-se

numa soledade que jamais experimentara, com o

coração torturado por uma dor moral intensíssima

SP, SPF, SP1: D. Ursula

SP, SPF, SP1: soccorrida

SP, SPF, SP1: difficuldade

SP, SPF, SP1: disilludida; Este,

(Emendou-se.)

SP, SPF, SP1: desapparecido;

signal

SP, SPF, SP1: n’uma

SP, SPF, SP1: intensissima; d.

Ursula

209 Bajoujice: bajulação, adulação. 210 Bajoujo: que ou quem lisonjeia ridiculamente.

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275

280

é que dona Úrsula, depois de esperar alguns

momentos o socorro daquele que devia vir em seu

auxílio, conseguiu com dificuldade, tendo todas as

articulações doloridas e ainda com as mãos

engorduradas, levantar-se lentamente, vacilando

para um e outro lado, e seguiu cambaleante para a

sua alcova segurando-se às paredes e móveis.

SP, SPF, SP1: soccorro;

d’aquelle

SP, SPF, SP1: auxilio;

difficuldade

SP, SPF, SP1: vacillando

SP, SPF, SP1: ás paredes;

moveis

VIII

5

Abílio, ainda de pé quando sua mãe caiu, bem

percebeu o desastre pelo baque e tinido dos cacos de

louças; mas levantando os ombros num gesto

expressivo que denunciava o seu descaso,

encaminhou-se para a sua secretária. “Quem manda

aquela velha ser teimosa!” – pensava ele – “Que vá

dormir e me deixe em paz.”

SP, SPF, SP1: Abilio; cahiu

SP, SPF, SP1: n’um

SP, SPF, SP1: secretaria

SP, SPF, SP1: aquella; elle

10

O mau filho entrava em outra fase do seu

caráter. Precisava de calma relativa para pensar na sua

nova situação e friamente delinear os seus planos de

vingança. Por um grande esforço conseguiu, como o

felino que, recolhidas as garras no seu natural estojo,

dormita espreitando paciente a presa que se ocultou

SP, SPF, SP1: máu; phase

SP, SPF, SP1: caracter

SP, SPF, SP1: occultou

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15

em lugar para ele inaccessível, conciliar o ódio com a

faculdade que lhe era peculiar de artimanhoso que, das

sombras, atira o golpe contra o inimigo a quem sorri.

Recolheu o mau sentimento e a faculdade meditativa,

cada qual no seu compartimento, ambos funcionando

ao mesmo tempo.

SP, SPF, SP1: logar; elle;

inaccessivel; odio

SP, SPF, SP1: máu

SP, SPF, SP1: funccionando

20

25

30

35

Esta simultaneidade de ação, resultante de sua

forte contenção do espírito, dava lugar a que o ódio,

reprimido e, como que constrangido a agir

metodicamente, subordinado à pressão de cogitar,

ganhasse em intensidade como vapor, ou os gazes,

preso em limitado espaço, e ameaçava explodir, sendo

preciso que Abílio, de momentos em momentos, se

levantasse do assento e passasse pelo gabinete para, –

permita-se-nos avançar esta comparação – abrir as

válvulas de escapamento e deixar que extravasasse o

excesso que lhe prejudicava e baralhava as idéias.

Então fazia gestos de ameaça, aqui esmurrava um

móvel, ali atirava um objeto qualquer que lhe

estivesse à mão, e chegava a monologar em voz surda,

cavernosa, a rilhar os dentes e traçar no semblante

esgares terríveis, ameaçadores ou irônicos. Depois lhe

voltava a calma relativa, assentava-se, meditava,

delineava planos de vingança e anotava-os em um

SP, SPF, SP1: acção

SP, SPF, SP1: espirito; odio

SP, SPF, SP1: methodicamente; á

pressão

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: permitta-se-nos

SP, SPF, SP1: valvulas;

extravassasse

SP, SPF, SP1: idéas

SP, SPF, SP1: movel; alli; objecto

SP, SPF, SP1: á mão

SP, SPF, SP1: terriveis; ironicos

SP, SPF, SP1: annotava-os

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delineava planos de vingança e anotava-os em um

canhanho211 que tinha guardado a sete chaves.

40

45

55

60

A rebusca que fazia no seu arsenal de

maldades, muito trabalhosa, ia pouco a pouco dando

vitória à faculdade de pensar e lugar a uma espécie de

simbiose entre as duas faculdades, uma tal ou qual

tranqüilidade aparente que, podemos dizer, era o

acordo entre os dois princípios até então heterogêneos.

A dor violenta dos seus lombos a qualquer movimento

mais rápido que Abílio fizesse era como que uma

reclamação que o ódio lhe fazia para não ser

esquecido nas suas cogitações. Lembrava-se ele então

do que sofrera na residência de dona Maria, e os seus

pensamentos ativeram-se mais à idéia de vingança,

particularizando cada uma das vítimas e vindo em

auxílio dos maus movimentos do coração. Avivados

assim os seus pensamentos, considerava Abílio

indispensável, para o seu inteiro proveito, realizar o

que desejava contra a esposa de João, não já pelo

desejo passional que alimentava a princípio; mas com

a idéia vil de vingar-se maculando a sua honra de um

modo irremediável que acendesse o furor do marido

ultrajado.

SP, SP1, SPF : victoria; á

faculdade; especie

SP, SPF, SP1: symbiose

SP, SPF, SP1: tranquillidade;

apparente

SP, SPF, SP1: accordo; dous;

principios; heterogeneos

SP, SPF, SP1: rapido; Abilio;

fizesse, (Emendou-se.)

SP, SPF, SP1: odio

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: soffrera; residencia;

d. Maria

SP, SPF, SP1: á idéa

SP, SPF, SP1: victimas

SP, SPF, SP1: auxilio

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: indispensavel;

realisar

SP, SPF, SP1: principio

SP, SPF, SP1: idéa

SP, SPF, SP1: irremediavel;

accendesse

211 Canhanho: caderneta para registro de lembranças. Variante de canhenho.

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65

70

Essa mulher era o eixo da questão,

compreendia ele, restando-lhe achar o meio de chegar

ao ignóbil fim almejado. Quanto a Serafim, o

cérbero212 que montava guarda àquela humaitá, na

impossibilidade de eliminá-lo para desimpedir o

caminho, contanto que fosse bem dirigida a

campanha, quando viesse a saber da queda que levaria

a mulher virtuosa que se achava sob o seu patrocínio,

nenhum jeito mais poderia dar à situação.

SP, SPF, SP1: comprehendia; elle

SP, SPF, SP1: ignobil; Seraphim

SP, SPF, SP1: áquella; humaytá;

SP, SPF, SP1: eliminal-o;

desempedir

SP, SPF, SP1: comtanto

SP, SPF, SP1: VIRTUOSA;

patrocinio

SP, SPF, SP1: gjeito; á situação

75

80

Era preciso, em primeiro lugar – sugeria-lhe o

ódio –, afastar os dois meeiros e entre os diversos

alvitres que eram lembrados, um somente mereceu-lhe

detida atenção: inventar um crime qualquer que fosse

atribuído aos pobres homens e os levasse a uma prisão

imediata. A Pulquéria, essa, não era defesa que lhe

oferecesse uma séria resistência, e facilmente seria,

mesmo in loco, inutilizada por qualquer maneira.

SP, SPF, SP1: logar, (Emendou-

se.); suggeria-lhe

SP, SPF, SP1: odio, - (-,); dous

SP, SPF, SP1: somente

SP, SPF, SP1: attenção

SP, SPF, SP1: attibuido; á uma

(Emendou-se retirando a crase.)

SP, SPF, SP1: immediata;

Pulcheria

SP, SPF, SP1: offerecesse; seria;

resistencia

SP, SPF, SP1:inutilisada; IN

LOCO

85

Desde 1890, com a vinda para o sertão, logo,

após a proclamação da república, de legiões de

soldados de polícia sob o comando de capitães, a

quem o governo provisório do Estado, por um decreto

despótico e antiliberal, deu poderes discricionários,

ficou estabelecido um tal poder das autoridades

administrativas, que os delegados e subdelegados da

SP, SPF, SP1: republica

SP, SPF, SP1: policia; commando

SP, SPF, SP1: provisorio; deccreto

SP, SPF, SP1: despotico; anti-

liberal; discrecionarios

212 Cérbero: cão mostruoso que guarda a porta do inferno.

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95

100

105

administrativas, que os delegados e subdelegados da

polícia passaram a intervir em tudo quanto é da

competência dos funcionários e magistrados cíveis e

judiciários. Essas funções extralegais, que muito

servem aos politiqueiros reles, com o andar dos

tempos foram consagradas pelo consuetudinarismo, de

sorte que qualquer sujeito que figure na melhor

sociedade e tenha maus bofes consegue por uma

simples denúncia, sem provas nem formalidades

legais, prender inocentes, levá-los aos tribunais depois

mediante testemunhos falsos, até sentenciá-los. As

autoridades policiais ainda vão além: arvoram-se em

árbitros nas questões cíveis, impõem avenças ruinosas

contra honestos trabalhadores rurais em favor de

miseráveis ociosos que são do peito dos tiranos. Isso

muito tem concorrido para o êxodo do nosso

proletário e, conseqüentemente, para a ruína da nossa

agricultura e empobrecimento do nosso meio.

SP, SPF, SP1: policia

SP, SPF, SP1: competencia;

funcionarios; cíveis

SP, SPF, SP1: judiciarios;

funcções; extra-legaes

SP, SPF, SP1: bofes, (Emendou-se.)

SP, SPF, SP1: denuncia

SP, SPF, SP1: innocentes; legaes;

leval-os; tribunaes

SP, SPF, SP1: sentencial-os

SP, SPF, SP1: policiaes; alem

SP, SPF, SP1: arbitros; civeis

SP, SPF, SP1: ruraes

SP, SPF, SP1: miseraveis;

tyrannos

SP, SPF, SP1: exodo

SP, SPF, SP1: proletario;

consequentemente; ruina

110

Ora, Abílio era considerado na cidade um

cavalheiro distinto; freqüentava a melhor sociedade,

que o acolhia como cidadão honesto e digno de

acatamento, tão maneiroso se apresentava e tão rico

era para enfileirar-se entre aqueles que dispõem da tão

falada posição pecuniária. No regime plutocrata que

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: distincto;

frequentava

SP, SPF, SP1: aquelles

SP, SPF, SP1: pecuniaria; regimen

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mentidamente se diz liberal e democrata, o que não

conseguiria um moço tão distinto? Tão consciente

estava ele disso, que tinha como certo conseguir o que

tivesse em vista contra os dois meeiros, mas

prontamente, de súbito, antes que Serafim e sua

protegida viessem a ter conhecimento da medida

tomada.

SP, SPF, SP1: distincto

SP, SPF, SP1: elle; d’isso

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: promptamente;

subito; Seraphim

120

A mulher orgulhosa seria rebaixada ao

enxurro213, seria arrastada à lama dos prostíbulos; a

sua tão falada virtude dobrar-se-ia ao peso do

vilipêndio.214 Em torno dessas idéias o miserável

ideou os meios secundários e subsidiários do grande

meio que o levaria ao fim colimado.

SP, SPF, SP1: á lama; prostibulos

SP, SPF, SP1: vilipendio

SP, SPF, SP1: d’essas; idéas;

miseravel; idéou

SP, SPF, SP1: secundarios;

subsidiarios

SP, SPF, SP1: collimado

125

130

Abílio esteve até a madrugada tramando essas

insídias215 e criminosos planos, lendo e relendo notas

que tomava, para corrigi-las de modo que, saindo a

lume os resultados do que projetava, o seu autor

pudesse escapar ileso sem que ao menos contra ele

fosse levantada a mais leve suspeita. Iria agir de

sorrate, sempre “atirando a pedra e escondendo a

mão”, como era de seus hábitos inveterados e

maquiavélicos.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: insidias

SP, SPF, SP1: corrigil-as; sahindo

SP, SPF, SP1: projectava; podesse

SP, SPF, SP1: illeso; elle

SP, SPF, SP1: mão (,); habitos

SP, SPF, SP1: machiavelicos

213 Enxurro: refugo social, ralé. 214 Vilipêndio: Desprezo. 215 Insídia: emboscada, cilada.

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140

145

150

Já eram nove horas da manhã quando ele saiu

de seu gabinete. Estava pálido, com os olhos pisados e

circulados de olheiras muito pronunciadas que

atestavam o seu mal passar durante a noite, insone ou

dormindo pouco ou mal. Era costume, quando ele saía

da alcova, encontrar sua mãe que, solícita e risonha,

trazia-lhe logo uma chávena de café; mas debalde

esperou por isso. As janelas, que dona Úrsula tinha o

hábito de abrir antes do seu aparecimento, achavam-se

cerradas, sendo preciso abri-las para arejar e iluminar

a sala. Nervoso e contrariado, sem considerar que sua

mãe poderia estar doente, nem avaliar que fosse de

graves conseqüências o que se dera na noite anterior,

entrou pela sala de jantar. Encontrou a mesma solidão,

as janelas fechadas e apenas aberta a porta que dava

para o exterior, seguramente pela cozinheira, que

sempre dormia no interior da casa. Repugnava-lhe

dirigir-se a criados; mas pensou que só a ama, que já

estava na cozinha, poderia dar-lhe informações sobre

dona Úrsula, e, chegando à porta da cozinha,

perguntou:

SP, SPF, SP1: Ja; elle; sahiu

SP, SPF, SP1: pallido

SP, SPF, SP1: attestavam; mau;

insomne

SP, SPF, SP1: costume (,); elle;

sahia

SP, SPF, SP1: solicita

SP, SPF, SP1: chavena

SP, SPF, SP1: janellas; d. Ursula

SP, SPF, SP1: habito;

apparecimento

SP, SPF, SP1: abril-as; illuminar

SP, SPF, SP1: consequencias

SP, SPF, SP1: janellas

SP, SPF, SP1: ja

SP, SPF, SP1: d. Ursula; á porta

155 –Então! Hoje me serve o café?

–Iaiá ainda está na cama. SP, SPF, SP1: Yiaiá

–É ela quem me prepara o café, demônio? – SP, SPF, SP1: ella; demonio

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berrou Abílio. SP, SPF, SP1: Abilio

–Inhor, não; mas é ela qui distrimina.216 SP, SPF, SP1: Inhor (,); ella

160

165

170

–Para os diabos que te carreguem. – E voltou

à sala ainda mais contrariado. Mas o que estaria

fazendo sua mãe? – pensou e foi espiar dona Úrsula,

pela fresta da fechadura. A velha ainda se achava no

leito sem se mover. Bateu de leve na porta e chamou

sem resultado e sem resposta. Pálido e trêmulo ainda

mais, tornou a espreitar, bateu, chamou em voz mais

alta e de novo colocou o olho na fresta e aplicou o

ouvido. Dona Úrsula mexeu-se, falou em voz fraca e

imperceptível e tentou assentar-se cambaleante, mas

caiu sobre os travesseiros.

SP, SPF, SP1: P’ra; á sala

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: Pallido; tremulo

SP, SPF, SP1: collocou; applicou

SP, SPF, SP1: D. Ursula

SP, SPF, SP1: imperceptivel

SP, SPF, SP1: cahiu

–Está doente, mãe? – perguntou Abílio com

voz trêmula.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: tremula

–Hum? – resmungou a velha.

–Doente?

175

180

–Já vou! Já vou – respondeu com voz débil

dona Úrsula. E, fazendo um esforço, desceu do leito,

mas escorregando, caiu em cheio no chão. Notou

Abílio que sua mãe estava vestida e, temendo que a

velha não pudesse erguer-se, pois fazia esforços para

isso sem o conseguir, lembrou-se que a alcova era

servida por outra porta mais fraca que abria para um

SP, SPF, SP1: Ja; Ja; debil

SP, SPF, SP1: d.Ursula

SP, SPF, SP1: cahiu

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: podesse

216 Qui distrimina: que determina.

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185

servida por outra porta mais fraca que abria para um

quarto desocupado. Procurou-a, abriu-a facilmente e,

ajudado por uma criada, repô-la no leito. Dona Úrsula,

há anos, sofria insuficiência mitral e estivera em

tratamento dando-se por curada. Será essa moléstia

que de novo a atacou? Pensou Abílio.

SP, SPF, SP1: desoccupado

SP, SPF, SP1: criada (,); repol-a;

D. Ursula(,)

SP, SPF, SP1: ha; annos; soffria;

insufficiencia; esteve

SP, SPF, SP1: molestia

SP, SPF, SP1: Abilio

–A senhora está sentindo alguma coisa, mãe?

– inquiriu Abílio, procurando ameigar a voz.

SP, SPF, SP1: cousa

SP, SPF, SP1: Abilio

–Sei lá? –E prorrompeu em desabalado pranto.

190

–O que é isso?! Está chorando?! Diga: sente

dores?

–Dores? O corpo todo...

–Decerto cometeu alguma das suas

costumadas imprudências.

SP, SPF, SP1: commetteu

SP, SPF, SP1: imprudencias

–Foi a queda.

195 –Qual queda? – perguntou Abílio fazendo-se

desentendido.

SP, SPF, SP1: Abilio

–Ontem de noite... – E pôs-se a chorar. SP, SPF, SP1: Hontem; poz-se

–Não é preciso chorar, mãe. A senhora caiu? SP, SPF, SP1: cahiu

Dona Úrsula afirmou com um gesto. SP, SPF, SP1: Ursula; affirmou

200 –Porque não me chamou?

–Não quis incomodar... SP, SPF, SP1: quiz; incommodar

–Essa é boa! É meu dever acudi-la. SP, SPF, SP1: acudil-a

–Pensei que tu ouviu.

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293

205

–Como eu havia de ouvir, se a senhora não me

chamou? Eu estava muito cansado e com a maldita

dor de cabeça, e fui logo dormindo...

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: cançado

–Foi quando tu fechou a porta. – E dona

Úrsula disparou a chorar de novo.

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: desparou

210

–Nada de chorar. Deixe-me ver se tem febre. –

E tomou o pulso de sua mãe. – Mas o que é isto? Está

com a mão besuntada.

SP, SPF, SP1: si

–É a gordura dos bolos. – E o pranto

recresceu.

–De bolos? Que bolos, mãe?

215

220

225

Dona Úrsula não respondeu, e continuava a

chorar mostrando-se tão sentida e desgostosa, que

Abílio, apesar de, a esforços, aparentar serenidade,

sentiu-se incomodado. Aquele pranto desabalado.

Aquele silêncio proposital de sua mãe, faziam-lhe mal

aos nervos. Embora dona Úrsula não declarasse

francamente a causa daquela grande dor moral que a

afligia, não lhe restava dúvida que aquilo e as

respostas que conseguira obter eram uma justa

exprobação à sua conduta da véspera. Sua mãe estava

decerto convencida de que ele ouvira o baque da sua

queda e tratara-a com a maior indiferença, com o

desprezo o mais mortificante. Na velha a dor moral

SP, SPF, SP1: D. Ursula

SP, SPF, SP1: Abilio; apezar

SP, SPF, SP1: incommodado;

Aquelle

SP, SPF, SP1: Aquelle; silencio

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: d’aquella

SP, SPF, SP1: affligia; duvida;

aquillo

SP, SPF, SP1: á sua conducta;

vespera

SP, SPF, SP1:elle

SP, SPF, SP1: indifferença

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230

sobrepujava de muito o sofrimento físico. Bastava que

Abílio se arrependesse, que fosse sensível diante de

dor tamanha, e pedisse perdão àquela que estremecia,

e a calma voltaria a dona Úrsula. Bem, o mancebo

compreendia isso, mas o orgulho, de mãos dadas com

o egoísmo, era-lhe um obstáculo a um gesto tão

generoso.

SP, SPF, SP1: soffrimento;

physico

SP, SPF, SP1: Abilio; sensivel;

deante

SP, SPF, SP1: áquella; extremecia

SP, SPF, SP1: d. Ursula; Bem (,)

SP, SPF, SP1: comprehendia

SP, SPF, SP1: egoismo; obstaculo

235

240

245

250

Confessar uma falta cometida, reconhecer-se

culpado... descer a pedir perdão!! Oh! Isso para Abílio

seria rebaixar-se, deslustrar-se, mostrar uma fraqueza

que o prejudicaria demasiado. O orgulhoso mancebo,

entretanto, não deixava de perceber que só assim

resgataria a falta cometida, e que a sua orgulhosa

deliberação poderia sacrificar a saúde e até a vida de

sua mãe; mas, acastelado no seu mal entendido

positivismo que supunha isentá-lo de

responsabilidades morais, afeito ao convencionalismo

que maior valia dá as exterioridades, dizia com os seus

botões: “Que fazer! Eu, moço, com um largo futuro

diante de mim, não hei de sacrificá-lo com pieguices

de devotos e supersticiosos. Ela tem talvez o seu

tempo completo e eu estou na florescência da vida. É

o seu estado uma fatalidade a que todos nós

chegaremos mais ou menos dolorosamente de acordo

SP, SPF, SP1: commetida

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: sò

SP, SPF, SP1: comettida

SP, SPF, SP1: saude

SP, SPF, SP1: acastellado

SP, SPF, SP1: suppunha; isental-o

SP, SPF, SP1: moraes; affeito

SP, SPF, SP1: deante; sacrifical-o

SP, SPF, SP1: Ella;

SP, SPF, SP1: florescencia

SP, SPF, SP1: accordo

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295

com o prévio preparo que fazemos.” SP, SPF, SP1: previo

255

–Vamos, mãe – disse ele por fim. – Aclare217

essa história de queda, bolos... que estou intrigado.

Para mim tudo isso é mistério.

SP, SPF, SP1: elle; porfim

SP, SPF, SP1: historia

SP, SPF, SP1: mysterio

–Que mistério! Isso não te interessa. O que

sucedeu, passou, acabou-se. – E a velha fez um gesto

com a mão esquerda como quem varre para o olvido o

que se deu, dando tudo por acabado.

SP, SPF, SP1: mysterio

SP, SPF, SP1: succedeu

260

265

270

Abílio tornou-se pálido e amedrontado.

Aquelas palavras continham uma ironia amarga, uma

como vaga sentença que o condenava como um

monstro, um filho ingrato e desnaturado; e o gesto

afigurou-se-lhe uma sinistra separação, como se a mão

esquerda, decerto utilizada casualmente por dona

Úrsula, cortasse os vínculos que ligavam intimamente

os corações de mãe e filho. Compreendeu que sua mãe

afinal penetrara, com uma clarividência

extraordinária, os mais ocultos refolhos de sua alma e

caíra numa completa desilusão a seu respeito; que o

seu entranhado amor maternal agonizava com a velha.

SP, SPF, SP1: Abilio; pallido

SP, SPF, SP1: Aquellas

SP, SPF, SP1: condemnava

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: vinculos

SP, SPF, SP1: Comprehendeu

SP, SPF, SP1: clarividencia

SP, SPF, SP1: extraordinaria;

occultos

SP, SPF, SP1: cahira; n’uma;

desillusão

O único amor de dona Úrsula era a sua

dedicação ao filho e, mesmo por causa dessa

unicidade, adquirira um vigor surpreendente.

Orgulhava-se de ter um filho que, à sua imagem e

SP, SPF, SP1: unico; d. Ursula

SP, SPF, SP1: d’essa

SP, SPF, SP1: adqueriu;

surprehendente

SP, SPF, SP1: á sua

217 Alacrar: lacrar. Neologismo variante de lacra; forma não dicionarizada.

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275

280

285

Orgulhava-se de ter um filho que, à sua imagem e

semelhança, chegara a ultrapassá-la em malícia e

dissimulação; mas jamais pensara que essa feitura se

voltasse contra quem a modelara nas suas entranhas e

depois a aparelhara para tomar os caminhos escusos e

tenebrosos que, segundo a sua compreensão, eram os

melhores a seguir-se para a conquista do bemestar e

da felicidade. Agora, revendo o seu passado, que

desfilava diante do seu conspecto como fita

cinemática, sentia-se arrependida das faltas que

cometera por amor do filho, entre as quais avultava o

envenenamento de dona Senhorinha.

SP, SPF, SP1: ultrapassal-a;

malicia

SP, SPF, SP1: pensou

SP, SPF, SP1: apparelhara

SP, SPF, SP1: comprehensão

SP, SPF, SP1: deante

SP, SPF, SP1: cinematica

SP, SPF, SP1: commetteu; quaes

SP, SPF, SP1: d. Senhorinha

290

295

Então, superexcitada pela febre, sentia-se

aterrada a pensar no inferno com as suas chamas

inextinguíveis, nas torturas a que os pecadores são

eternamente submetidos, nos demônios, feios e

bestiais, a impeli-la para o braseiro crepitante onde os

réprobos contorciam-se a vociferar impropérios na

desesperança de salvação. Abílio, ao seu lado, pensava

e, de vez em quando, tentava debalde obter uma

palavra de sua mãe que, completamente absorvida

pelos seus pensamentos, parecia-lhe dormitar218 e

passar por terríveis pesadelos, tais os esgares e

trejeitos que a velha fazia. Era uma espécie de delírio,

SP, SPF, SP1: superexcitada

SP, SPF, SP1: chammas

SP, SPF, SP1: inextinguiveis;

peccadores

SP, SPF, SP1: submettidos;

demonios; bestiaes

SP, SPF, SP1: impellil-a; brazeiro

SP, SPF, SP1: reprobos;

improperios

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: terriveis

SP, SPF, SP1: taes; tregeitos;

i d li i 218 Dormitar: ficar meio adormecido; dormir levemente.

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297

300

trejeitos que a velha fazia. Era uma espécie de delírio,

segundo o modo de pensar de Abílio. Tomou-lhe o

pulso para avaliar a intensidade da febre, e dona

Úrsula, estremecendo, abriu os olhos que estavam

semicerrados e mirou-o como quem não o conhecesse

ou lhe fosse indiferente.

especie; delirio

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: indifferente

305

–Está sentido-se melhor, mãe? – perguntou

Abílio, dando à sua voz uma intenção de ternura e

carinho.

SP, SPF, SP1: Abilio (,); á sua

–Manda chamar o padre hoje mesmo –

respondeu dona Úrsula ainda atuada219 pela

introversão220 por que passava.

SP, SPF, SP1: d. Ursula; actuada

310 –Para que, mãe?

–Quero me confessar.

–Ora, mãe! Não pense nisso. O seu estado não

é grave.

SP, SPF, SP1: n’isso

–Manda! Manda! – insistiu a velha.

315 –Vou antes chamar o médico. SP, SPF, SP1: medico

–Pois que venham um e outro já.

–Ainda mais esta! – dizia Abílio consigo,

levantando-se do assento, apertando os dedos e dando

estalos, com eram-lhe habitual quando preocupado ou

impaciente.

SP, SPF, SP1: Abilio; comsigo(,)

SP, SPF, SP1: preoccupado

219 Atuada: sob influência de. 220 Introversão: exame íntimo da consciência

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320 –Nada de demoras – continuou dona Úrsula. SP, SPF, SP1: d. Ursula

325

330

335

Abílio saiu atarantado221 da alcova de sua

mãe, que ficou guardada por uma velha serviçal da

casa. Repugnava ao mancebo chamar o padre, não só

porque era avesso às causas da religião, como por

temer que sua mãe revelasse em confissão alguma

coisa que o comprometesse e o mostrasse tal qual era,

pelo menos na apreciação do padre. Quanto ao

médico, estaria presente ao exame e indagações,

tomando a dianteira quanto às informações que dona

Úrsula devia ministrar, de modo que não fosse

descoberta a causa mais recente do estado da velha

doente. Refletiu demoradamente andando abaixo e

acima e, afinal resolveu satisfazer o pedido de sua mãe

para que depois não dissessem que ela morrera à

mingua de tratamento e sem os socorros da religião,

que seriam de proveito à sua memória e, de alguma

forma, reflexamente, a ele. Saberia encaminhar o

espírito da velha, antes da confissão, de modo que não

houvesse perigo para a sua reputação.

SP, SPF, SP1: sahiu

SP, SPF, SP1: ás causas

SP, SPF, SP1: cousa;

compromettesse

SP, SPF, SP1: medico;

indagações(,)

SP, SPF, SP1: deanteira; ás

informações; d. Ursula

SP, SPF, SP1: Reflectiu

SP, SPF, SP1: ella; morreu; á

mingua

SP, SPF, SP1: á sua memoria

SP, SPF, SP1: para elle

SP, SPF, SP1: espirito

340

O médico chegou mais cedo, à tarde, e foi

acolhido com todas as atenções e agrados que Abílio

sabia dispensar aos hóspedes, com delicadeza fidalga

e cativante. Viu logo a doente, examinou-a

SP, SPF, SP1: medico; á tarde

SP, SPF, SP1: attenções; Abilio

SP, SPF, SP1: captivante

221 Atarantado: perturbado, atrapalhado.

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299

345

e cativante. Viu logo a doente, examinou-a

detidamente, fez demoradas indagações que Abílio em

grande parte respondeu e explicou ao seu talante.222

Voltando à sala de visitas, o clínico foi franco: o

estado da doente era desesperador e nada havia a

fazer.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: á sala

SP, SPF, SP1: clinico

350

–A senhora sua mãe é cardíaca, e sofreu um

terrível abalo moral, segundo suponho. A queda que,

como disse, ela deu, por si só, foi de más

conseqüências chegando a dar origem a uma

mielite223; mas não apressaria o desenlace que prevejo

para muito breve.

SP, SPF, SP1: cardiaca; soffreu

SP, SPF, SP1: terrivel; supponho

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: consequecias;

myelite

355

360

–Realmente, doutor – obtemperou Abílio

capciosamente, – minha querida mãe, não sei se por

causa da doença, tornou-se muito impaciente. Ontem

se exaltou discutindo com uma criada; esta respondeu

com desaforos e minha mãe entendeu de realizar ela

própria o que lhe determinara, embora lhe fosse quase

impossível. Na sua exaltação, quando descia um

degrau da escada, caiu sobre o assento.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: capciosamente(,); si

SP, SPF, SP1: Hontem

SP, SPF, SP1: exaltou-se

(Emendou-se ênclise para

próclise.); realisa; ella

SP, SPF, SP1: propria; quasi

SP, SPF, SP1: impossivel

SP, SPF, SP1: cahiu

–É isso: o abalo moral foi de maior influência

no caso. Não devemos contrariar os cardíacos,

especialmente quando de idade avançada.

SP, SPF, SP1: influencia

SP, SPF, SP1: cardiacos

SP, SPF, SP1: edade

222 Talante: vontade, desejo. 223 Mielite: inflamação da medula espinhal.

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300

365

–Mas, doutor, não haverá alguma esperança,

mesmo fraca? – perguntou Abílio mostrando-se

consternado e suplicante.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: supplicante

370

–Meu amigo, console-se; arme-se de coragem

e resignação. Posso estar enganado, não sou infalível;

é bom até consultar outro médico; mas...

SP, SPF, SP1: infallivel

SP, SPF, SP1: medico

–Ah, doutor! Não avalia quanto isso é

doloroso! – E conseguiu chorar.

–Paciência. Se quer, posso receitar qualquer

coisa para consolar a senhora.

SP, SPF, SP1: Paciencia; Si

SP, SPF, SP1: cousa; á senhora

(Emendou-se conforme regra de

regência.)

375 –É bom, doutor; é bom.

O médico receitou uma tisana224 que o próprio

Abílio poderia preparar. Nesse mesmo dia viajou.

SP, SPF, SP1: medico; proprio

SP, SPF, SP1: Abilio; N’esse

380

385

O padre chegou à tardinha, já tendo Abílio

preparado jeitosamente o espírito de sua mãe para que

a confissão dos seus pecados não lhe fosse prejudicial.

Depois de confessada e comungada, dona Úrsula

entrou em uma calma relativa, ainda mais porque o

sacerdote muito a animou quanto ao seu estado físico,

depois de garantir que o estado da sua alma nada

deixava a desejar. Disse-lhe que não há quem seja

isento de pecados veniais; que ela, como todo o

mundo, os tinha, mas a confissão e a comunhão a

SP, SPF, SP1: á tardinha; Abilio

SP, SPF, SP1: geitosamente;

espirito

SP, SPF, SP1: commungada; d.

Ursula

SP, SPF, SP1: physico

SP, SPF, SP1: ha

SP, SPF, SP1: peccados; venaes;

ella

SP, SPF, SP1: communhão

deixaram-n-a pura.

224 Tisana: cozimento de cevada.

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haviam deixado pura.

390

395

–A senhora é uma mulher feliz. Conheço-a:

foi esposa exemplar, é mãe carinhosa, um espírito

devoto dado às coisas santas; nunca fez mal a

alguém... que mais quer para quando morrer, que não

será agora, estou certo. Entrar no reino da Glória e

gozar o prêmio das suas virtudes?

SP, SPF, SP1: espirito

SP, SPF, SP1: ás cousas

SP, SPF, SP1: alguem

SP, SPF, SP1: Gloria; gosar

SP, SPF, SP1: premio

400

Vê-se por estas palavras que dona Úrsula

deixou no tinteiro o caso de dona Senhorinha, talvez

convencida de que a absolvição que recebeu

compreendia também os pecados não revelados. Além

disso, tendo recebido Nosso Senhor em espécie, este

acabara por torná-la limpa e pura como os bem

aventurados. A pobre velha, sobretudo, não sabia fazer

distinção entre culpas veniais e pecados mortais.

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: d. Senhorinha

SP, SPF, SP1: comprehendia

SP, SPF, SP1: tambem; Alem;

d’isso

SP, SPF, SP1: especie

SP, SPF, SP1: tornal-a;

bemaventurados

SP, SPF, SP1: veniaes; mortaes

405

410

Como era noite, não podia o padre viajar, o

que talvez fosse um pretexto, sendo a razão ou real

motivo considerar que o estado da doente inspirava-

lhe receio e requereria em breve a sua presença. Dona

Úrsula, além disso, mostrou desejo de ouvir uma

missa, com o que concordou o sacerdote, que tinha

trazido o sacristão e o que para a celebração fosse

indispensável. Abílio tomou logo todas as

providências para que fosse satisfeito o desejo de sua

SP, SPF, SP1: D. Ursula

SP, SPF, SP1: alem d’isso

SP, SPF, SP1: sachristão

SP, SPF, SP1: indispensavel;

Abilio

SP, SPF, SP1: providencias

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mãe.

415

420

425

430

435

Alta noite o estado de dona Úrsula agravou-se

de tal maneira que todo o pessoal da casa pôs-se em

polvorosa para acudir à doente com os paliativos que

ocorriam ao padre e a Abílio. Eram panos quentes no

ventre, garrafas com água quente nos pés, que

gelavam, tisanas e tudo quanto lembrado naquela

aflição. De madrugada a velha entrou no período da

agonia e foi ungida. Deixou de existir pela manhã,

sendo mais uma vez absolvida. Abílio, logo após o

desenlace daquele drama que antes o maçava do que

comovia, compreendeu que, achando-se presente um

sacerdote, testemunha muito valiosa pela sua posição

social, convinha-lhe dar uma demonstração

estardalhante de entranhado amor filial. Abraçou-se ao

cadáver de sua mãe e, num berreiro atroador,225 como

possesso, bradava por sua “mãe querida” pedindo a

Deus que o levasse também para o outro mundo. O

pobre padre viu-se apertado diante daquele espetáculo,

que o comovia deveras, e, com dificuldade, procurava

acalmar aquela dor que à sua boa fé e ingenuidade

parecia sincera e inconsolável. Com muito trabalho,

conseguiu afastar Abílio do leito mortuário, usando de

expressões brandas e carinhosas em nome de Jesus,

SP, SPF, SP1: d. Ursula;

aggravou-se

SP, SPF, SP1: Poz-se

SP, SPF, SP1: á doente;

palliativos

SP, SPF, SP1: occorriam; Abilio;

pannos

SP, SPF, SP1: n’aquella

SP, SPF, SP1: afflição; periodo

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: d’aquelle

SP, SPF, SP1: commovia

SP, SPF, SP1: comprehendeu

SP, SPF, SP1: cadaver; n’um

SP, SPF, SP1: tambem

SP, SPF, SP1: deante; d’aquelle;

espetaculo; commovia

SP, SPF, SP1: devéras;

difficuldade

SP, SPF, SP1: á sua; aquella

SP, SPF, SP1: inconsolavel;

trabalho (,)

SP, SPF, SP1: Abilio; mortuario

(,)

225 Atroador: estremecedor.

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303

440

445

450

455

expressões brandas e carinhosas em nome de Jesus,

que muito mais sofreu para nosso consolo como

exemplificação e promessa de compensações na

verdadeira vida. É bem certo que as exortações do

bondoso sacerdote não tinham no ânimo de Abílio o

efeito desejado por ele e entravam-lhe por um ouvido

e saíam por outro, como se diz vulgarmente; mas

serviram de pretexto ao exortado para entrar na calma

pela qual ansiava porque a sua espetaculosa exibição

já excedia do prazo. Momentos depois, o “amoroso”

filho de dona Úrsula conversava serenamente com o

padre, a quem ainda pediu que, não sendo possível à

sua “santa mãe” ouvir a missa que pediu, fosse ela

celebrada de corpo presente naquela mesma manhã. O

padre satisfê-lo no que lhe pediu e, edificado com a

bondade e amor filial do mancebo, cuja profunda

mágoa tanto o consternava, ofereceu os seus ofícios a

Abílio no tocante às exéquias226 da defunta, cujo

cadáver seria sepultado em Caetité. Abílio aceitou o

oferecimento e, pelo padre, escreveu a um seu

correspondente para preparar o que fosse necessário

ao funeral, que desejava tivesse a maior solenidade.

SP, SPF, SP1: soffreu

SP, SPF, SP1: exhortações

SP, SPF, SP1: animo; Abilio

SP, SPF, SP1: effeito; elle

SP, SPF, SP1: sahiam; outro (,)

SP, SPF, SP1: anciava;

espectaculosa; exhibição

SP, SPF, SP1: depois; (,)

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: possivel; á sua

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: n’aquella

SP, SPF, SP1: satisfel-o

SP, SPF, SP1: magua; offereceu;

officios

SP, SPF, SP1: Abilio; ás exequais

defuncta; cadaver

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: offerecimento

SP, SPF, SP1: necessario

O padre seguiu logo viagem, e só depois de

algumas horas seguiu o cadáver conduzido em uma

SP, SPF, SP1: cadaver

226 Exéquias: honras fúnebres, cerimoniais.

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304

460

algumas horas seguiu o cadáver conduzido em uma

rede, acompanhando Abílio os condutores. O enterro

de dona Úrsula foi solene, havendo convites e grandes

concorrências ao luzido saimento.

SP, SPF, SP1: Abilio; conductores

SP, SPF, SP1: d. Ursula; solemne

SP, SPF, SP1: concorrencia;

sahimento

IX

5

10

15

A morte de dona Úrsula só foi conhecida no

distrito da sua residência, tão inopinada227 se deu, pelo

alarido228 que faziam os condutores do seu cadáver

quando seguiam estrada a fora a caminho da cidade. É

costume entre os moradores do campo, quando

conduzem um cadáver para o povoado, ou para os

cemitérios que existem fora dele, e que constam

apenas de toscos recintos cercados, construídos à beira

das estradas, irem bradando por socorro e marchando

céleres,229 dois, que se revezam de minuto a minuto,

acompanhados de vizinhos que, ouvindo o brado

peculiar e bem conhecido, sentem-se na obrigação de

acompanharem pressurosos230 para prestarem o

caritativo auxílio solicitado. O grupo avoluma-se e

vence o caminho rapidamente. Quando isso se dá à

SP, SPF, SP1: d. Ursula; sò

SP, SPF, SP1: districto; residencia

SP, SPF, SP1: conductores;

cadaver

SP, SPF, SP1: cadaver

SP, SPF, SP1: cemiterios; d’elle

SP, SPF, SP1: construidos; á beira

SP, SPF, SP1: soccorro

SP, SPF, SP1: celeres; dous

SP, SPF, SP1: visinhos

SP, SPF, SP1: auxilio

SP, SPF, SP1: á noite

227 Inopinado: não esperado, imprevisto. 228 Alarido: choradeira, lamentação. 229 Céleres: diligente. 230 Pressuroso: zeloso.

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noite, tem seu tanto ou quanto de lúgubre, e assusta as

pessoas nervosas, especialmente mulheres e crianças.

SP, SPF, SP1: lugubre

SP, SPF, SP1: creanças

20

25

Serafim, ouvindo o bradado dos condutores de

dona Úrsula, deixou o trabalho e foi com os dois

filhos ajudar os condutores, ao menos por um trecho

da longa caminhada. Outro tanto aconteceu aos dois

meeiros de dona Maria. Só então souberam que se

tratava da mãe de Abílio, o que muita surpresa lhes

causou, pois ninguém sabia que essa senhora estivesse

doente.

SP, SPF, SP1: Seraphim;

conductores

SP, SPF, SP1: d. Ursula; dous

SP, SPF, SP1: conductores

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: d. Maria

SP, SPF, SP1: Abilio; surpreza

SP, SPF, SP1: ninguem

30

35

40

Dona Maria, além da surpresa que esse funesto

acontecimento lhe causou, não deixou de notar a

coincidência dele com o que se deu em sua residência

entre ela e o filho da morta. Há certas idéias que nos

penetram no cérebro e nele se fixam teimosamente

como verdades, embora queiramos varrê-las do nosso

pensamento, quando, aconselhados pelo bom senso,

consideramos que não devemos ter por verdade o que

não está evidentemente provado. Foi o que sucedeu a

dona Maria. Haveria ligação entre os dois fatos?

Abílio, de gênio impetuoso como era, chegando em

casa furioso pelo que sofreu, descarregaria sua cólera,

como de outras vezes, na pobre velha, ocasionando o

mal ou agravamento de sua enfermidade antiga?

SP, SPF, SP1: D. Maria; surpreza;

alem

SP, SPF, SP1: coincidencia; d’elle

SP, SPF, SP1: residencia; ella;

Ha; idéas

SP, SPF, SP1: n’elle; cerebro

SP, SPF, SP1: varrel-as

SP, SPF, SP1: succedeu; d. Maria

SP, SPF, SP1: dous; factos;

Abilio; genio

SP, SPF, SP1: soffreu

SP, SPF, SP1: colera

SP, SPF, SP1: occasionando

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306

45

Lastimava dona Maria que assim fosse e, ainda mais,

por ter sido de alguma sorte comparte na causa da

morte da velha. Isso a afligia, tão compassiva era.

Pulquéria veio ao encontro dessa idéia, mas sob outro

modo de considerá-la.

SP, SPF, SP1: d. Maria

SP, SPF, SP1: affligia

SP, SPF, SP1: Pulcheria; d’essa

SP, SPF, SP1: Idea; consideral-a.

–Tá231 vendo, iaiazinha? – dizia a velha ama.

Deus não drome. Aquele demonho foi acabano de

fazê o qui fêis e pagou logo.

SP, SPF, SP1: ‘Tá; yayazinha

SP: dorme; SPF, SP1: DROME;

Aquelle; SP: demonho; acabano,

SPF, SP1: DEMONHO;

ACABANO; SP: qui; fêis; SPF,

SP1: fazê; QUI FÊIS

50

–Ora, mãe velha! Não pense nisso. Dona

Úrsula não tem culpa no que o filho fez.

SP, SPF, SP1: n’isso; Ursula

–Ora! Tão bem é o fio cum a mãe.232 SP: fio cum’a; SPF, SP1: FIO

CUM’A

–Deixemos a pobre velha. Já morreu, vamos

pedir a Deus por ela.

SP, SPF, SP1: ella

55

–Quem?! Eu?! Pru233 mim... –E Pulquéria

levantou os ombros num gesto expressivo.

SP: pru; SPF, SP1: PRU;

Pulcheria

SP, SPF, SP1: n’um

–É mau isso. O bom cristão perdoa ao inimigo. SP, SPF, SP1: christão

–Nem tanto, minha iaiazinha! Sê bom assim...

o qui vancê tem sofrido, agora? Sê bom assim é

demais.

SP, SPF, SP1: yayazinha; SP: sê

SP: o qui vancê; SPF, SP1: SÊ; O

QUI VANCÊ; soffrido; SÊ

60

–Olhe, mãe velha; você é boa, eu sei, e é por

mim que diz assim; mas eu fico triste porque você está

me desagradando com isso.

231 Ta : está. 232 Fio cum a mãe: filho como a mãe. 233 Pru mim: por mim.

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307

–Me perdoa, minha iaiá; me perdoa... SP, SPF, SP1: yayá; SP: me;

SPF, SP1: ME

65

–Ah!... – disse dona Maria sorrindo. –

Conheceu, mãe velha, que a gente, quando erra,

precisa de perdão?

SP, SPF, SP1: d. Maria

–Oi, eu não entendo língua de branco. Eu não

quero é desagradá minha fia do coração; mas aquela

véia danada... tesconjuro!

SP, SPF, SP1: língua

SP: desagrada; fia; SPF, SP1:

DESAGRADÁ; FIA; SP, SPF,

SP1: aquella; damnada; SP: véia;

t’esconjuro; SPF, SP1: VÉIA;

T’ESCONJURO

–E você continua! SP, SPF, SP1: continúa

70

–Tá bom! Deixa isso pra lá. Não falo mais

naquela... não sei quê.

SP: tá; p’ra SPF, SP1: TÁ; P’RA;

SP, SPF, SP1: n’aquella

75

80

Como Pulquéria, de cuja palestra damos aqui

amostra do modo de pensar de muitos acerca de dona

Úrsula, a maioria dos humildes daquela redondeza não

fazia bom juízo a respeito dela. Ignorante, metida a

fidalga, pretensiosa e murmuradora, dona Úrsula

nunca encontrou pessoa digna, honesta e boa, a não

ser uma ou duas mulheres que por cálculo e adulação,

afinavam o seu diapasão pelo dela e, de vez em

quando, ali apareciam para “desenferrujarem a língua”

e fazerem jus a dádivas insignificantes, a vestidos já

usados e objetos já imprestáveis. Reunidas,

constituíam uma espécie de tribunal onde a pele do

próximo era atassalhada234 impiedosamente. Essas

raras amigas eram indispensáveis a dona Úrsula na sua

SP, SPF, SP1: Pulcheria

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: d’aqulla

SP, SPF, SP1: juizo; d’ella;

mettida

SP, SPF, SP1: pretenciosa d.

Ursula

SP, SPF, SP1: digna (,)

SP, SPF, SP1: calculo

SP, SPF, SP1: d’ella

SP, SPF, SP1: alli; appareciam;

lingua

SP, SPF, SP1: jús; dadivas; ja

SP, SPF, SP1: objectos; ja;

imprestáveis

SP, SPF, SP1: constituiam;

especie; pelle;

SP, SPF, SP1: próximo

SP, SPF, SP1: indispensaveis; d.

l 234 Atassalhar: fazer em pedaços, lacerar, dilacerar, despedaçar.

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308

85

90

95

raras amigas eram indispensáveis a dona Úrsula na sua

tristeza e isolamento desde que, extinta a escravidão,

foi em muito diminuindo o movimento que se dava

incessante na fazenda por ocasião das plantações,

colheitas e beneficiamento dos produtos da lavoura;

quando das vaquejadas se reuniam negros, agregados

e amigos por dias e dias e as escravas, em grande

número, cuidavam nos labores internos da casa. É

verdade que o marido de dona Úrsula não quis, como

outros fazendeiros o fizeram, retirar-se para a cidade,

convencido que de mais lhe convinha continuar na

profissão de agricultor, cujos trabalhos entrou a fazer

por meio de jornaleiros pagos e meeiros; mas estes

residiam fora.

Ursula

SP, SPF, SP1: extincta

SP, SPF, SP1: occasião

SP, SPF, SP1: productos

SP, SPF, SP1: quando, (Emendou-

se.); vaqueijadas; aggregados

SP, SPF, SP1: numero

SP, SPF, SP1: d. Ursula; quiz

100

Dos escravos só permaneceram com dona

Úrsula a velha Felicidade, que era sua colaça235 e a

afeiçoada, e duas filhas, as quais encarregavam-se da

cozinha, da lavanderia e de outros serviços como este.

SP, SPF, SP1: d. Ursula

SP, SPF, SP1: collaça

SP, SP1, SPF affeiçoada; quaes

SP, SPF, SP1: cosinha

105

Morta a dona Úrsula, mais triste e silenciosa

tornou-se a casa de Abílio; na soledade236, é que pôde

avaliar quanto sua mãe era útil apesar do seu gênio

balofo237 e indiscreto, que lhe desgostava, não vendo

nela o que aproveitasse aos seus planos de insídia. Por

SPF, SP1: d. Ursula

SPF, SP1: Abilio, (;)

SPF, SP1: util; apezar; genio

SPF, SP1: n’ella; insidia

235 Colaça: pessoa amamentada pela mesma mulher, embora filhas de mães diferentes. 236 Soledade: tristeza característica de quem se acha só ou abandonado. 237 Balofo: muito grande.

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110

115

nela o que aproveitasse aos seus planos de insídia. Por

mais que procurasse esquecer a velha, um momento

sequer podia relegá-la ao olvido. Recordava-se a todos

os momentos dos seus hábitos, das suas tolices e das

cenas que se deram nos últimos dias da sua vida,

reconhecendo-se o causador da sua morte inesperada.

Era uma obsessão martirizante que o desesperava, sem

que, no isolamento a que chegara, pudesse distrair-se.

Andava pelos matos em caçadas, e não trazia uma ave

ou outro qualquer animal, não dava um tiro, nem se

lembrava que levava uma arma. Ia à cidade, não

encontrava o alívio almejado. Procurava ler, não

conseguia fixar a atenção no livro.

SPF, SP1: siquer; relegal-a

SPF, SP1: habitos; scenas

SPF, SP1: ultimos

SPF, SP1: obcessão; martyrizante

SPF, SP1: podesse; destrair-se

SPF, SP1: mattos

SPF, SP1: á cidade

SPF, SP1: allivio

SPF, SP1: attenção

120

125

A displicência que o dominava adoecia-lhe o

corpo como a alma, que era o motor desse estado.

Entrou a pensar que lhe era indispensável admitir no

lar uma mulher, não como esposa legítima, mas que se

sujeitasse a um casamento de mão esquerda. Para isso,

entretanto, era mister que fizesse uma escolha

rigorosa; pois a desejava tal que em tudo o servisse e

auxiliasse, até nos seus planos maldosos.

SPF, SP1: displicencia

SPF, SP1: d’esse

SPF, SP1: indispensavel; admittir

SPF, SP1: legitima

SPF, SP1: desejava-a (Emendou-

se ênclise para próclise.)

130

Estava nisso quando o surpreendeu uma

distração, se bem que desagradável. Não tendo no

prazo legal requerido se fizesse o inventário dos bens

SPF, SP1: n’isso; surprehendeu

SPF, SP1: distracção; sibem;

desagradavel

SPF, SP1: praso; inventario

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135

140

do casal de sua mãe, foi intimado a comparecer em

Juízo em dia e hora assinados. Zangou-se deveras com

isso, que era uma desconsideração à sua importância

social de moço rico, membro da classe privilegiada

que dirige o rebanho popular; mas não encontrou

pretexto que o isentasse disso; era preciso obedecer.

Abrandou-se e entrou a organizar a lista dos bens e

fazer cálculos, não se esquecendo dos seus interesses e

de procurar reduzir quanto possível os gastos em tal

negócio.

SPF, SP1: Juizo; assignados;

devéras

SPF, SP1: á sua; importancia

SPF, SP1: d’isso

SPF, SP1: calculos

SPF, SP1: possivel

SP, SPF, SP1: negocio

X

5

Serafim andava triste e meditabundo desde

que dona Maria o informou do que se deu entre ela e

Abílio. Receava nova tentativa do audaz mancebo, e

por isso havia tomado sérias providências de

prevenção de acordo com a comadre. Sabendo que

Abílio, citado em Juízo, achava-se preocupado com o

inventário, nem por isso afrouxou a vigilância que

guardava.

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: d. Maria; ella

SP, SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: serias; providencias

SPF, SP1: accordo

SPF, SP1: Abilio; Juizo;

preoccupado

SPF, SP1: inventario; vigilancia

10

Passados dias depois da intimação feita a

Abílio, apareceu-lhe Pulquéria informando que

estavam trabalhando nos matos pertencentes a João, e

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: appareceu-lhe;

Pulcheria

SPF, SP1: mattos

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15

estavam trabalhando nos matos pertencentes a João, e

que sua iaiazinha lhe pedia que fosse à sua casa. Foi

verificar o que havia, já desconfiado que ali estava o

dedo do mancebo. Indagando dos trabalhadores,

certificou-se de que assim era. Nada pois com os

mandatários da turbação238 e, sem tardança, procurou

o mandante.

SPF, SP1: yayazinha; á sua

SPF, SP1: alli

SPF, SP1: mandatarios

20

25

30

Abílio, recebendo-o amável e respeitoso como

sempre, disse ao professor que aquelas terras haviam

sido inventariadas como pertencentes a dona Úrsula e

agora eram suas legitimamente por herança. Debalde o

professor procurou convencê-lo do seu engano,

alegando que as terras foram herdadas por dona Maria

e que tinham estremas239 definidas. Que, além disso,

eram encravadas em fazenda antiga que se estremava

como aquela que pertencia a Abílio, o que se provava

com documentos antigos, irrefutáveis. O mancebo

alegou ter comprado as posses de Roberto; mas

Serafim rebateu essa alegação, dizendo-lhe que o

meeiro não possuía terras; era um simples agregado.

SPF, SP1: Abilio; amavel

SPF, SP1: aquellas

SPF, SP1: d. Ursula

SPF, SP1: convencel-o; engano (,)

SPF, SP1: allegando; d. Maria

SPF, SP1: extremas; alem

SPF, SP1: extremava

SPF, SP1: aquella; Abilio

SPF, SP1: irrefutaveis

SP, SPF, SP1: allegou

SPF, SP1: Seraphim; allegação(,)

SPF, SP1: possuia; aggregado

Afinal Serafim, considerando quanto seria

dispendiosa uma ação de demarcação, que talvez

absorvesse, em custas e outras despesas, o valor da

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: acção

SPF, SP1: despezas

238 Turbação: pertubação. 239 Estrema: marco divisório de propriedades rústicas.

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gleba, concordou em comprar as pretensas posses de

Roberto e decidir o mais da contenda por meios de

árbitros, o que Abílio aceitou prometendo suspender a

roçagem240 até que os árbitros dessem o seu veredito.

SPF, SP1: arbitros; Abilio;

acceitou; promettendo

SPF, SP1: arbitros; veredicto

40

45

50

Escolhidos árbitros por ambos os interessados

entre pessoas qualificadas da cidade, no dia

consignado, compareceram no local, onde também se

reuniram testemunhas, pessoas velhas que conheciam

desde muitos anos as extremas, que foram fincadas

pelo velho Ambrósio quando dividiu a sua fazenda

entre os filhos, como o leitor estará lembrado.

Examinando tudo, verificaram algumas testemunhas

que um dos marcos, e logo um essencial, não mais

existia e, decerto, fora arrancado havia muito tempo.

Levantou-se larga discussão entre as testemunhas

apresentadas por Abílio e as outras sem que se

pudesse chegar a um acordo. Quanto ao exato lugar

onde havia o marco, diziam uns que era este, outros,

naturalmente industriados por Abílio, que era aquele.

SPF, SP1: arbitros

SPF, SP1: Cidade

SPF, SP1: tambem; consignado

(,); reuniram-se (Emendou-se

ênclise para próclise.)

SPF, SP1: annos

SPF, SP1: Ambrosio

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: podésse; accordo

SPF, SP1: exacto

SPF, SP1: Abilio; aquelle

55

Serafim apresentou os documentos, informou

por sua vez e não conseguiu que prevalecesse a

verdade.

SPF, SP1: Seraphim

Em resumo, com a aquiescência do professor, SPF, SP1: acquiescencia

240 Roçagem: processo de derrubada de árvores e/ou corte de vegetação para preparar o terreno para realizar plantio de capim ou para receber as sementes.

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60

ficou assentada uma nova limitação proposta pelos

árbitros e aceita por Abílio por sair à medida dos seus

desejos, pois a nova linha da extrema apanhava a

cerca do sítio de João em um trecho de cerca de vinte

metros.

SPF, SP1: arbitros; acceita;

Abilio; sahir; á medida

SPF, SP1: sitio

65

70

75

80

Questões como esta, que dariam em pleitos

ruinosos entre os nossos agricultores, pela melhor, são

resolvidas assim, quando, não o sendo prudentemente,

terminam em lutas e inimizades quase sempre.

Dizemos “pela melhor” porque casos de usurpação se

dão entre potentados e fracos lavradores. Quantos

pobrezinhos, honestos proletários do campo, não têm

sido espoliados das suas casas, culturas e servidões

por indivíduos ricaços e poderosos em favor dos seus

protegidos, ou em proveito dos próprios protetores! Se

procuram o Juízo, os testemunhos comprados ou

obtidos por ameaças, a habilidade sofística241 dos

chicanistas242 e outros meios reprováveis dão quase

sempre ganho de causa à injustiça e à iniqüidade.

Damos aqui esse caso como demonstração da causa da

decadência da nossa agricultura e do êxodo dos

baianos que a movimentavam tranqüila e

perseverantemente aqui há quarenta e tantos anos.

SPF, SP1: melhor (,)

SPF, SP1: luctas; quasi

SPF, SP1: proletarios

SPF, SP1: individuos

SPF, SP1: proprios; protectores;

Si; Juizo

SPF, SP1: sophistica

SP, SPF, SP1: reprovaveis; quasi

SPF, SP1: á injustiça; á iniquidade

SPF, SP1: decadencia; exodo

SPF, SP1: bahianos; tranquilla

SPF, SP1: ha; annos

241 Sofística: diz-se daquele que que é um hábil falcificador, adulterador. 242 Chicanista: diz-se daquele que pratica sutileza capciosa, em questões judiciais. Equivalente a trapaceiro.

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Poderíamos registrar aqui inúmeros casos como este,

mediante provas; mas não o fazemos por alongar este

capítulo.

SPF, SP1: Poderiamos; innumeros

SPF, SP1: capitulo

85

90

95

Abílio agia caprichosamente tendo em vista

um fim. Estabelecida e segura a convenção por meio

de árbitros, os trabalhadores reencetaram243 a roçagem

que faziam e que se limitava, por um lado, com o

tapume do sítio de João na parte que servia de extrema

e, por outro, com os matos. Terminada a roçagem,

feita a derribada e picada e retirada a madeira

aproveitável, foi feito o aceiro em torno do trabalho;

mas era tão estreito, que os meeiros de dona Maria

reclamaram. Abílio mandou alargá-lo, mas tão pouco

que não deixava de haver perigo, salvo sendo

escolhido para queimada um dia próprio.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: arbitros

SPF, SP1: limitava(,); lado (,)

SPF, SP1: sitio

SPF, SP1: mattos

SPF, SP1: aproveitavel

SPF, SP1: d. Maria

SPF, SP1: Abilio; alargal-o,

SPF, SP1: proprio

100

Em casos tais, depende da direção do vento e

outras circunstâncias a segurança dos matos e culturas

que estiverem próximas do incêndio e, mesmo

tomadas essas cautelas, ainda assim são avisados os

vizinhos e interessados, que se munem dos meios

indispensáveis à defesa e vão pessoalmente vigilar

pelos seus interesses ajudando na queimada.

SPF, SP1: taes; direcção

SPF, SP1: circumstancias; mattos

SPF, SP1: proximas; incendio

SPF, SP1: visinhos

SPF, SP1: indispensaveis; á defesa

SPF, SP1: QUEIMADA

Entretanto, quando menos se esperava, foi

posto fogo à roçada sem prévio aviso à gente de dona

SPF, SP1: á roçada; previo; á

d i 243 Reencetrar: recomeçar concentramente naquela atividade.

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105

110

posto fogo à roçada sem prévio aviso à gente de dona

Maria. Somente quem reside no campo e assistiu a

essa rude operação dos nossos lavradores, pode avaliar

o que seja uma queimada de roça. Na “Vida

Campestre”, nosso trabalho ainda infelizmente

inédito, já fizemos uma demorada descrição desses

incêndios.

gente; d. Maria

SPF, SP1: Sòmente

SPF, SP1: QUEIMADA

SPF, SP1: Campestre” (,)

SPF, SP1: inedito; discripção

d’esse

SP, SPF, SP1: incendios

115

120

Ao avistarem as chamas e a fumarada e

ouviram o crepitar e fragor do incêndio, os agregados

de dona Maria e muitos vizinhos, entre os quais

Serafim, que morava distante, acorreram ao local. A

“cama da roçada”, como o lavrador denomina o

aglomerado de ramas, gravetos e folhiço destinados à

queima, era alta, espessa e bem trabalhada, oferecendo

farto alimento ao fogo. As labaredas elevaram-se a

uma altura descomunal e inclinavam-se ora para um,

ora para outro lado conforme a direção do vento, que

estava “bandoleiro”,244 e lambiam tudo quanto lhes

estava próximo mesmo além dos aceiros.

SPF, SP1: chammas

SPF, SP1: incendio; aggregados

SPF, SP1: visinhos; quaes

SPF, SP1: Seraphim; accorreram

SPF, SP1: agglomerado

SPF, SP1: á queima

SPF, SP1: offerecendo

SPF, SP1: descommunal

SPF, SP1: direcção

SPF, SP1: “bandoleiro” (,)

SPF, SP1: proximo; alem

125

Apesar do ativo trabalho dos meeiros e dos

seus auxiliares, o incêndio propagou-se nos matos

vizinhos e ganhou os tapumes aproximando-se das

culturas dos agregados de dona Maria, sendo estas

crestadas em grande parte e muito prejudicadas. A

SPF, SP1: activo

SPF, SP1: incendio; mattos

SPF, SP1: visinhos;

approximando-se

SPF, SP1: aggregados; d. Maria

244 Bandoleiro: diz-se do vento que sopra para todas as direções.

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130

135

crestadas em grande parte e muito prejudicadas. A

água que conduziam com dificuldade e as ramas

verdes com que batiam os matos miúdos e macega

foram importantes, e somente foi vencido o fogo

porque o vento tomou direção oposta por uns

momentos, voltando-se para o lado já queimado. Do

tapume só escaparam as extremidades, sendo o mais

reduzido a cinza e carvão, e dos matos vizinhos

escaparam os troncos das árvores mais robustas com o

córtice carbonizado e a folhagem destruída.

SPF, SP1: água; difficuldade

SPF, SP1: meudos

SPF, SP1: direcção; opposta

SPF, SP1: mattos; visinhos

SPF, SP1: arvores

SPF, SP1: cortice; destruida

140

145

Abílio, ao ter notícias do desastre, exultou-se.

O miserável desde muito tempo não experimentava

jubilo tamanho; mas guardou-se de manifestar o seu

contentamento a quem quer que fosse, reservando-se

para se defender, lançando tudo à conta dos seus

trabalhadores. Chegou a visitar o local, onde já não se

achava o velho professor como esperava, para, à sua

visita, mostrar-se compungido e defender-se caso

procurasse culpá-lo. Tudo saiu à medida dos seus

desejos e cálculos, e ele procuraria fazer que a

responsabilidade recaísse sobre os ignorantes

trabalhadores, quando lhes viessem reclamações.

Estas não tardaram.

SPF, SP1: Abilio; noticias

SPF, SP1: miseravel

SPF, SP1: á conta; defender (,)

SPF, SP1: á sua

SPF, SP1: culpal-o; sahiu; á

medida

SPF, SP1: calculos; elle

SPF, SP1: rechaisse

SPF, SP1: trabalhadores (,)

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160

165

170

175

Serafim, indignado diante do que presenciou,

atribuiu logo que mais uma vez Abílio era o inspirador

maldoso do procedimento dos seus operários. Bem

conhecia o velho mestre-escola o gênio malicioso do

seu antigo discípulo e o ódio que votava a dona Maria,

máxime depois do incidente que esta lhe referira;

portanto, considerou não julgar temerariamente

lançando a culpa ao antigo rival de João. A mediada

da prudência estava cheia, e Serafim entendeu que

deveria agir com mais energia, uma vez que

argumentos e meios suasórios245 não conseguiriam

abalar aquela índole endemoninhada. Era urgente usar

com Abílio uma franqueza severa que o atemorizasse,

procurando entanto evitar escândalo que envolvesse o

nome e a reputação da honesta esposa de João. Talvez

Abílio não se demovesse dos seus maus propósitos,

supondo que fosse temido por sua tão proclamada

posição de moço fidalgo e endinheirado.

SPF, SP1: Seraphim; deante

SPF, SP1: attribuiu; Abilio

SPF, SP1: operarios

SPF, SP1: genio

SPF, SP1: discipulo; odio; d.

Maria

SPF, SP1: maxime; referiu

SPF, SP1: portanto

SPF, SP1: prudencia; Seraphim

SPF, SP1: suasorios

SPF, SP1: aquella; indole;

endemoinhada

SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: emtanto; escandalo

SPF, SP1: Abilio; propositos (,)

180

Nessa disposição de ânimo, o velho professor

apresentou-se logo em casa de seu negregado

discípulo, que o recebeu como sempre, mostrando-se

afável e respeitoso, talvez ainda a mais do que das

outras vezes, por notar a fisionomia carregada do

velho. Esta recepção, por exagerada nos modos e

SPF, SP1: N’essa; animo

SPF, SP1: discipulo

SPF, SP1: affavel

SPF, SP1: physionomia

245 Suasório: persuasivo.

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185

velho. Esta recepção, por exagerada nos modos e

meneios do mancebo, convenceu a Serafim de que as

suas desconfianças convertiam-se em certeza.

SPF, SP1: Seraphim

–Aqui estou, – foi logo dizendo o professor –

não como visitante; mas como reclamante por parte de

minha comadre Maria da Conceição.

190

–De que se trata, professor? – inquiriu Abílio

procurando guardar serenidade, mas empalidecendo.

SPF, SP1: inqueriu; Abilio

SPF, SP1: empallidecendo

–Então não sabe o que se deu?

–Não posso adivinhar.

195

–Não é preciso ser adivinho para saber o que

se deu quase às suas portas, previamente planeado e

combinado, e pela sua gente executado.

SPF, SP1: quasi; ás suas portas (,)

previamente

–É estranho o que me diz. Minha gente! Que

gente?!

SPF, SP1: extranho

–É muito inocente!... – exclamou Serafim com

acerba ironia. – Chega mesmo a ser ingênuo.

SPF, SP1: innocente; Seraphim

SPF, SP1:ironia (.); ingenuo

200

–Meu caro professor, está hoje enigmático. Já

não é aquele homem franco e decisivo que sempre

conheci.

SPF, SP1: enigmatico

SPF, SP1: aquelle

–Nem sempre fui franco como devera. Antes o

fosse, porque então talvez encolhesse as suas garras.

SPF, SP1: devêra

SP1: encolhesee (Erro óbvio.)

205

–Oh!! – exclamou Abílio. – Passa a insultar-

me?

SPF, SP1: Abilio

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–Não é insulto; é dar o seu ao seu dono.

–Estou em minha casa.

–Eu o sei bem.

210

–Porventura o ofendi em alguma coisa?

Algum dia deixei de respeitá-lo como pessoa que

sempre me mereceu estima?

SPF, SP1: offendi-o ( Emendou-se

ênclise para próclise.); cousa

SPF, SP1: respeital-o

–Na aparência, não. SPF, SP1: apparencia

–É demais! Ofendeu-me profundamente. SPF, SP1: Offendeu-me

215 –Exigiu que eu fosse franco.

–Entretanto, está com circunlóquios... SPF, SP1: Entretanto (,);

circumloquios

220

–Porque você já sabe do que se trata, e eu sei

que você já viu com os seus próprios olhos. Eu é que

devia exigir-lhe franqueza. Não a exigi porque sei que

não a conseguiria.

SPF, SP1: proprios

–Já disse ao professor que não adivinho. SPF, SP1: Ja

–E eu que lhe não é preciso adivinhar, porque

sabe ao que vim aqui e finge ignorar.

225

–O que lhe fiz eu, professor, para dizer-me

isso?

–Esquece-se, porventura, que eu, há poucos

momentos, lhe disse estar aqui em nome de minha

comadre?

SPF, SP1: ha

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230

–Ah! É isso? Não ofendi a essa senhora em

coisa alguma. Sei que ela é o seu ai-jesus246, e por isso

vem me acusar e ofender por esta maneira.

SPF, SP1: offendi

SPF, SP1: cousa; ella; aijesú

SPF, SP1: accusar; offender

–Ela não é o meu ai-jesus. Se tomo interesse

por sua causa, é porque João, quando viajou, muito

ma recomendou.

SPF, SP1: Ella; Si; aijesú

SPF, SP1: m’a; recommendou

235

–A mim também; pois João, como sabe é meu

amigo.

SPF, SP1: tambem

–É de muita força! – disse Serafim fitando

Abílio com ar de enojado. – E o que tem feito pela

pobre senhora? Diga.

SPF, SP1: Seraphim; Abilio

240

–Quando a procurei oferecendo os meus

serviços, repeliu-me com orgulho dizendo-me que de

nada precisava. Sei que ela, sim, tem propósitos contra

mim.

SPF, SP1: offerecendo

SPF, SP1: repelliu-me

SPF, SP1: ella; propositos

245

–Ela não tem propósito contra quem quer que

seja; é incapaz disso como sabe. É antes vítima das

suas pirraças.

SPF, SP1: Ella; proposito

SPF, SP1: d’isso; victima

–Pirraças! Tirou o dia para insultar-me sem

me apontar o motivo disso, sem conceder-me defesa.

Julga arbitrariamente, quando sempre o tive em conta

de um homem sério e criterioso.

SPF, SP1: d’isso

SPF, SP1: serio

250 –Hoje, por certo, já não sou esse homem sério SPF, SP1: ja; serio

246 Ai-jesus: queridinho predileto.

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e criterioso, não?

–Pois se não posso saber porque sou acusado! SPF, SP1: accusado

255

–Pois bem; vou dizer-lhe, embora saiba que é

chover no molhado. Já, na ocasião do convenio que

fizemos, concordei para evitar disputas em juízo.

Estou plenamente convencido de que o marco foi

arrancado e consumido proposital e

tendenciosamente...

SPF, SP1: Ja; occasião

SPF, SP1: desputas; Juizo

–Por quem?

260

–Quem sabe melhor do que o senhor? Quem

nisso tinha interesse?...

SPF, SP1: n’isso

Abílio calou-se e Serafim, depois de fitá-lo

seriamente, continuou.

SPF, SP1: Abilio; Seraphim; fital-

o

265

270

–O marco era bem conhecido e, quando o

senhor nasceu, já estava ali fincado no centro do

carrasco247. Quando eu cheguei nesta terra, já ele

existia e, quando eu e Carlos andávamos em caçada

pelos matos, muitas vezes descansamos ao seu pé, à

sombra de uma árvore frondosa que lá está ainda e

bem serve para indicar o lugar onde ele estava

fincado.

SPF, SP1: ja; alli

SPF, SP1: n’esta; ja; elle

SPF, SP1: andavamos

SPF, SP1: mattos; descançamos; á

sombra;

SP1, SPF arvore; la

SPF, SP1: elle

–Mas a escritura não menciona essa árvore.

Além disso, o professor não me lembrou isso nem

SPF, SP1: escriptura; arvore

SPF, SP1: Alem; d’isso

247 Carrasco: formação vegetal nordestina, mais rala, enfezada e áspera do que a caatinga.

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tampouco reclamou.

275

–Não era preciso, porque você a conhece

desde criança. Além disso, uma testemunha referiu-se

à árvore e foi contestado o seu testemunho por outras,

talvez ali dizendo o que lhe recomendavam.

SPF, SP1: creança; Alem; d’isso

SPF, SP1: á arvore

SPF, SP1: alli; recommendavam

Abílio calou-se de novo, e Serafim continuou. SPF, SP1: Abilio; Seraphim

280

–Quando combinamos nos novos limites, não

pude perceber que você levava o propósito de, além de

usurpar a terra e matos de João, preparar novas

perseguições a minha comadre.

SP1: conbinamos (Erro óbvio.)

SPF, SP1: proposito; alem

SPF, SP1: mattos

–Eu!? Oh! O senhor...

285

–Acabe. Quer dizer que me excedo ou que

estou mentindo? A sua consciência, para a qual apelo,

fará o julgamento.

SPF, SP1: consciencia; appello

–Tenho a consciência tranqüila. SPF, SP1: consciencia; tranquilla

–Diga antes que ela está dormente. SPF, SP1: ella

–Professor!...

290

295

–Deixemos, porém, isso; o que combinamos

está combinado. Agora é que atinei com o seu plano

insidioso. Ficou bem próximo dos matos e culturas de

minha comadre para mandar a sua gente incendiar

cercas, plantações e matos que lhe não pertencem.

Sabe agora do que se trata?

SPF, SP1: porem

SPF, SP1: proximo; mattos

SPF, SP1: mattos

–Professor, eu não sou culpado da SPF, SP1: imprudencia

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323

imprudência dos meus agregados, nem responsável

pelo que se deu.

SPF, SP1: aggregados;

responsavel

–Não é responsável! SPF, SP1: responsavel

300 –Os tais camaradas trabalhavam por sua

própria conta e puseram fogo na roça sem nada me

dizerem. Tenho eu culpa disso?

SPF, SP1: taes; propria

SPF, SP1: puzeram

SPF, SP1: d’isso

305

310

–Vim aqui apenas certificá-lo do seguinte: há

muito tempo sei do que tem feito e tenciona fazer,

fiado na sua posição de homem rico e fidalgo que tem

o proletariado como um rebanho de escravos. Por isso

supunha que o meu silêncio e prudência eram medo

do seu poderio. Não sou escravo nem me arreceio de

você, é o que desejo se convença. Quanto aos estragos

feitos nos matos e cercas de João, como não é você

responsável, não falemos mais nisso; ninguém mais

me ouvirá sobre o assunto. Tratarei de tudo remediar.

Fique com a sua consciência tranqüila! – rematou

Serafim ironicamente.

SPF, SP1: certifical-o; ha

SPF, SP1: suppunha; silencio;

prudencia

SPF, SP1: mattos

SPF, SP1: responsavel; n’isso;

ninguem

SP1, SPF assumpto

SPF, SP1: consciencia; tranquilla

SP1, SPF Seraphim

315

320

–Professor – disse Abílio contendo a custo,

receoso e hesitante, o ódio violento que fervia em sua

alma, – sempre muito o respeitei e estimei como é do

meu dever. Para mim o senhor é sagrado, pois devo-

lhe os alicerces que construi em minha alma para

sustentáculo da pequena instrução que adquiri e

SPF, SP1: Professor, (Emendou-

se.); Abilio

SPF, SP1: receioso; odio

SPF, SP1: sustentaculo; instrucção

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324

formação do meu caráter... SPF, SP1: carater

–Livra! – pensou Serafim resmoneando248. SPF, SP1: Seraphim

325

–Ninguém mais me merece do que o meu

velho mestre, depois de meus pais. Por tudo isso eu

perdôou sinceramente tudo quanto me disse agora, a

injusta apreciação que acaba de fazer da minha

conduta. Continuarei o mesmo...

SPF, SP1: Ninguem

SPF, SP1: paes

SPF, SP1: conducta

–Disto estou certo – resmoneou o velho

interrompendo Abílio.

SPF, SP1: D’isto

SPF, SP1: Abilio

330 –O que, professor?

–Nada; é cá outra coisa. Continue. SPF, SP1: cousa

–Mas o senhor disse ?

335

–Que estou certo de que continuará o mesmo,

como assevera – respondeu Serafim com toda a

seriedade.

SPF, SP1: Seraphim

–Mas o mesmo como pensa que sou.

–Certo que será como é segundo me assevera,

no que mostra merecer-me fé.

340

Abílio não achou o que responder, tomados

todos os caminhos por onde poderia escapar à

habilidade do velho mestre-escola.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: á habilidade

–Concluamos isso. Vim aqui na suposição de

que era responsável pelos prejuízos que sofreu aquela

que eu represento, e que remediaria a situação; mas

SPF, SP1: supposição

SPF, SP1: prejuizos; responsavel;

soffreu; aquella

248 Resmoneando: falando por entre os dentes e com mau humor. Equivale a resmungar.

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325

345

que eu represento, e que remediaria a situação; mas

como não é, retiro-me disposto a fazer o que me for

possível em favor de minha comadre ajudando-a a

reconstruir a cerca. Quanto aos matos incendiados, é

impossível repô-los no antigo estado; o remédio é

ficarem como estão. Desculpe-me, e adeus.

SPF, SP1: possivel

SPF, SP1: mattos

SPF, SP1: impossivel; repol-os;

remedio

350

–Não; professor. Não quero que me suponha

um testudo. Quero auxiliá-lo na reconstrução da cerca.

SPF, SP1: supponha

SPF, SP1: auxilial-o;

reconstrucção

355

–Também não sou testudo. Por minha

comadre, dispenso. Não é responsável, e seria uma

injustiça aceitar o que considero fazer apenas por me

contentar. Depois, seria isso feio, e as más línguas

diriam que minha comadre recebe favores ou esmolas

de estranhos.

SPF, SP1: Tambem

SPF, SP1: responsavel

SPF, SP1: acceitar

SPF, SP1: más; linguas

SPF, SP1: extranhos

–Oh! Professor! Não sabe que eu muito me

interesso por João?

–É mas continuo a dizer que não convém. SPF, SP1: convem

360

–Não é favor de estranho. Primeiro, não sou

estranho a João, meu antigo condiscípulo e amigo

dileto. Depois, pensando melhor, digo que, se não sou

responsável direto pelo que se deu, sou indiretamente,

e as suspeitas já levantadas contra mim serão levadas

às fronteiras da verdade marcando minha reputação.

SPF, SP1: extranho

SPF, SP1: extranho; condiscipulo;

dilecto

SPF, SP1: responsavel; directo;

indirectamente; ja

SPF, SP1: ás fronteiras

365 –Continuo a dizer, “não! não!” As mesmas

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línguas más a que alude dirão que o constrangi

injustamente, e os meus créditos seriam abalados. E

basta.

SPF, SP1: linguas; allude

SPF, SP1: creditos

370

E o velho mestre, sem dar tempo a Abílio de

retrucar os seus argumentos ou com eles concordar,

despediu-se mais uma vez ligeiramente e retirou-se

mais convencido da hipocrisia do seu antigo discípulo,

da sua habilidade em procurar iludir, da sua infame

conduta enfim.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: elles

SPF, SP1: hypocrisia; discipulo

SPF, SP1: illudir

SPF, SP1: em fim

375

380

Abílio, por sua vez, procurando acalmar o seu

despeito, meditou longamente sobre a confabulação

que tivera com Serafim, reconheceu que não poderia

vencer porque em seu poder havia provas

inconcussas249 do seu infame procedimento e, cobarde

como são todos os indivíduos que procuraram as

sombras e emboscadas para perseguirem aqueles a

quem odeiam, tomou uma resolução que desde logo

começou a pôr em prática.

SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: individuos

SPF, SP1: aquelles

SPF, SP1: pratica

385

No dia seguinte, quando Serafim se dispunha a

realizar o trabalho da reconstrução da cerca, já os

trabalhadores de Abílio, desde o romper do dia,

tinham cortado, nos matos deste, muita madeira e,

começado o serviço a que seu patrão se negara fazer

inteiramente por si. Inquiridos pelos meeiros de dona

SPF, SP1: Seraphim

SPF, SP1: realisar; reconstrucção;

ja: SP: trababalho (Erro óbvio.)

SP1, SPF Abilio

SPF, SP1: mattos; d’este

SPF, SP1: Inqueridos; d. Maria

249 Inconcusso: incontestável; irrefutável.

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327

390

inteiramente por si. Inquiridos pelos meeiros de dona

Maria, informaram eles que, desde o dia anterior,

tinha-lhes Abílio determinado que disso tratassem de

preferência a outro qualquer serviço.

SPF, SP1: elles

SP1, SPF Abilio

SPF, SP1: preferencia

XI

5

Já mais de dois anos se tinham escoado do

contato de João e Calisto com o coronel Paulino, e o

cafezal estava bem desenvolvido e seguro na maior

parte, pondo em evidência a competência, operosidade

e boa conduta dos empreiteiros. O coronel, tendo

visitado algumas vezes o serviço, achava-se

satisfeitíssimo.

SPF, SP1: Ja; dous; annos

SPF, SP1: contacto; Calixto

SPF, SP1: cafézal

SPF, SP1: evidencia; competencia

SPF, SP1: conducta

SPF, SP1: satisfeitissimo

10

15

Os empreiteiros tornam-se muito estimados

pelos jornaleiros que, em grande número, reuniram

para levarem a fim o contrato sem que inconveniente

nenhum os embaraçasse, e que eram tratados com

muita brandura e cordialidade pelos dois baianos. No

tempo decorrido, a faculdade de cultivarem cereais,

engordarem cevados e realizarem outros trabalhos

agrícolas para o seu próprio proveito, foram de muita

valia a João e Calisto, que, aproveitando os produtos

SPF, SP1: numero

SPF, SP1: contracto;

inconvenieste

SPF, SP1: dous; bahianos

SPF, SP1: cereaes

SPF, SP1: realisarem

SPF, SP1: agricolas; proprio

SPF, SP1: Calixto; productos

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20

para a subsistência própria e para certos arranjos que

conseguiram, vendendo o excesso das produções,

ofereciam-lhes a vantagem de irem poupando e

economizando o que lhes cabia do contrato em

pecúlio.

SPF, SP1: subsistencia; propria

SPF, SP1: producções

SPF, SP1: offereciam-lhes

SPF, SP1: contracto

SPF, SP1: peculio

25

30

35

Por esse tempo mais ou menos, o coronel teve

necessidade de um secretário que se encarregasse da

escrita dos seus negócios e da sua correspondência. O

que ele tinha não lhe satisfazia, não por desonesto,

mas porque havia dado lugar a equívocos, pois não

tinha bem competência para o caso e a sua caligrafia

era às vezes ilegível, aumentando o embaraço com a

sua má ortografia. Era certo que o coronel não estava

no caso de julgar o seu empregado no que concernia

ao modo de redigir o que escrevia; mas vieram-lhe

reclamações, ora verbais, ora escritas, mostrando-lhe a

conveniência de arranjar outro. Como, porém,

estimava o moço, que era de conduta exemplar e fora-

lhe recomendado por um amigo, sentia-se o fazendeiro

embaraçado, tanto mais que pensava ser-lhe difícil

encontrar um substituto com os requisitos essenciais

para o caso.

SPF, SP1: menos (,)

SPF, SP1: secretario

SPF, SP1: escripta; negocios;

correspondencia

SPF, SP1: elle

SPF, SP1: equivocos

SPF, SP1: competencia;

calligraphia

SPF, SP1: ás vezes; illegivel;

augmentando

SPF, SP1: orthographia

SPF, SP1: verbaes; escriptas

conveniencia

SPF, SP1: porem

SPF, SP1: conducta

SPF, SP1: recommendado

SPF, SP1: difficil

SPF, SP1: essenciaes

40

Afinal o próprio moço pediu dispensa do

cargo, e que o coronel o recomendasse ao seu amigo

SPF, SP1: proprio

SPF, SP1: recommendasse

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329

45

50

55

obter-lhe uma colocação que ele pudesse mais

facilmente desempenhar. O coronel prometeu

satisfazê-lo depois de regressar de Ribeirão Preto,

aonde ia tratar de certos negócios. Uma vez naquela

cidade, uma das suas preocupações foi procurar um

substituto recomendável e competente para o lugar do

seu secretário. Achou num jovem baiano inteligente,

instruído e honesto que lhe recomendaram, e depois

de sindicâncias, conseguiu encontrá-lo e contratá-lo.

Vindo para a fazenda, foi instalado no serviço sem que

por isso ficasse o substituído mal servido nem se

mostrasse de má vontade com o seu substituto, que era

um jovem insinuante, de educação regular e trato

cativante.

SPF, SP1: elle; podesse

SPF, SP1: prometteu

SPF, SP1: satisfazel-o

SPF, SP1: negocios; n’aquella

SPF, SP1: preoccupações

SPF, SP1: recommendavel

SPF, SP1: secretario; n’um; joven;

bahiano; intelligente;

SPF, SP1: instruido

SPF, SP1: syndicancias;

encontral-o; contractal-o

SPF, SP1: installado

SPF, SP1: substituido

SPF, SP1: joven

SPF, SP1: captivante

60

O coronel obteve para o desempregado o lugar

de administrador de uma fazenda, para a qual teria de

seguir um mês depois. Nesse ínterim os dois rapazes

afeiçoaram-se e tomaram uma sincera amizade entre

si.

SPF, SP1: N’esse; interim; dous

SPF, SP1: affeiçoaram-se

65

Melquíades, por sua vez, sentiu-se inclinado

para o novo secretário, com quem tinha que se

entender constantemente. A novidade propagou-se

logo aos colonos, que logo desejaram conhecer o

senhor. Aristides, especialmente os baianos, que

SPF, SP1: Melchiades

SPF, SP1: secretario

SPF, SP1: bahianos

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330

70

75

tinham curiosidade de saber de onde era, porque

talvez fosse conhecido seu na Bahia; mas o secretário

raras vezes se punha em contato com os jornaleiros.

Entretanto, Aristides, que, nas casas onde tinha

servido, procurava sempre se tornar agradável a todas

as classes desde as mais humildes, estava aflito por

conhecer aquela gente e escolher no meio um círculo

de amizades que fossem dignas de apreço pelo caráter,

não queria que o tomasse por um pretensioso que, por

orgulho, se afastasse dos humildes.

SPF, SP1: secretario

SPF, SP1: põe; contacto

SPF, SP1: Enquanto (,)

SPF, SP1: tornar-se (Emendou

ênclise para próclise.); agradavel

SPF, SP1: afflicto; aquella

SPF, SP1: circulo

SPF, SP1: caracter

SPF, SP1: pretencioso

Assim conseguira sempre deixar boa nota por

onde passara e residira, adquirindo prática da vida,

tomando conhecimento dos altos e baixos da

sociedade e aprendendo a viver com todos geralmente.

SPF, SP1: conseguiu

SPF, SP1: passou; residiu; pratica

80

85

Vê-se que Aristides era criterioso, porque,

procedendo assim, estudando os caracteres diversos

com que lidava, sabia dar a cada um o trato que

convinha, impunha-se ao respeito e estima e teria

sempre, como era o seu critério, quem proclamasse as

suas preciosas qualidades e o defendesse de intrigas e

calúnias que, porventura, como infelizmente se dá, por

inveja ou má apreciação, se levantassem e fomentando

os mal-intencionados.

SPF, SP1: criterio

SPF, SP1: calumnias

SP1: invejaou (Erro óbvio.)

Já, pelo seu porte, discreto modo de tratar e

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90

95

100

semblante, impunha-se Aristides; mas a desconfiança,

que é a característica das classes humildes e

ignorantes relativamente àquelas que pelo modo de

tratar-se, trajar e ares superiores, consideram

enfatuadas, bem sabia o jovem que dificilmente se

submete sinceramente à guia e direção destas. A

familiaridade demasiada entre umas e outra é

inconveniente, e a severidade excessiva fere o amor

próprio do humilde. É preciso, pois, que quem se

propunha a tornar-se respeitado e, ao mesmo tempo,

querido das massas ignorantes e humildes, concilie o

ar autoritário com o carinho e bondade sem excesso.

SP, SPF, SP1: è; caracteristica

SP, SPF, SP1: áquellas

SP, SPF, SP1: joven;

difficilmente; submette

SP, SPF, SP1: á guia; direcção;

d’estas

SP, SPF, SP1: proprio

SP, SPF, SP1: autoritario

105

110

No domingo seguinte à sua posse no cargo,

posto em ordem ao seu jeito o serviço que lhe

competia, Aristides, depois do almoço, empreendeu

um passeio pela colônia para conhecê-la e a alguns

dos jornaleiros de quem já tinha notícia. A primeira

casa que avistou, pela sua colocação, foi a do velho

Marcos, pai de Giudita, que já vira de longe algumas

vezes e de quem tinha boas informações. O velho

achava-se assentado em um mocho à frente da

casinhola fumando pachorrentamente um cachimbo de

comprida chupeta. Avistando o moço, o velho

desbarretou-se numa respeitosa mesura erguendo-se

SP, SPF, SP1: á sua

SP, SPF, SP1: geito

SP, SPF, SP1: emprehendeu

SP, SPF, SP1: collonia; conhecel-

a

SP, SPF, SP1: noticia

SP, SPF, SP1: collocação pae

SP, SPF, SP1: Giuditta; ja

SP, SPF, SP1: a frente (Emendou-

se acrescentado crase.)

SP, SPF, SP1: n’uma

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do assento.

115 –É o senhor Marco? – perguntou Aristides.

–Le son servo, curunè. SP: le son servo, curunè; SPF,

SP1: LE SON SERVO, CURUNÈ

–Não sou coronel, desculpe-me. Sou um

simples empregado do senhor coronel.

–Signor Aristide. SP: signor aristide; SPF, SP1:

SIGNOR ARISTIDE.

120 –Um criado ao seu serviço.

125

Na acanhada saleta Giudita amassava farinha

em um alguidar250 e sua mãe folhava-a e preparava os

macheroni, mostrando-se ambas amestradas nesse

serviço. Genarino, assentado a um canto, não tirava os

olhos da linda mocinha, a quem sorria a furto, quando

lhe era possível, sendo correspondido pela ragazza

quando a velha se distraía da sua vigilância de Argos.

SP, SPF, SP1: Giuditta

SP: macheroni SPF, SP1:

MACHERONI

SP: ragazza; SPF, SP1: possivel;

RAGAZZA; SPF, SP1: distrahia;

vigilancia

130

Marco chamou a mulher e a filha, que vieram

acompanhadas por Genarino, e fez em regra a

apresentação do jovem secretário, dizendo depois,

aparte à mulher, que se tratava de um giovine elegante

digno de respeito e muita consideração.

SP, SPF, SP1: joven; secretario

SP, SPF, SP1: á mulher; SP:

giovine elegante; SPF, SP1:

GIOVINE ELEGANTE

–Sua esposa e filhos, não? – inquiriu Aristides.

135 –Figlia, solamente la ragazza. SP: figlia, solamente la ragazza;

SPF, SP1: FIGLIA,

SOLAMENTE LA RAGAZZA

–Linda come une fiore! – observou Aristides SP: linda come une fiore; SPF,

SP1: LINDA COME UNE FIORE

250 Alguidar: vaso de barro ou de metal, baixo, em forma de tronco de cone invertido, e com diversos usos domésticos.

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333

com bondade.

140

Genarino franziu os sobrolhos, o que não

passou desapercebido ao jovem secretário. Este que

compreendeu haver um idílio entre os jovens

napolitanos, procurou reparar logo a imprudência que

cometeu:

SP, SPF, SP1: joven; secretario

SP, SPF, SP1: comprehendeu;

idyllio

SP, SPF, SP1: imprudencia

SP, SPF, SP1: commetteu

–É, por certo, noiva do senhor Genarino, não?

145

150

Marco, apenas por um gesto, informou que por

ora não. Os amantes sorriram, mas a velha Maria

Giuseppa, por sua vez, com cara de poucos amigos,

empurrou Giuditta para o alguidar repreendendo-a em

sua língua e chamando-a ao cumprimento do seu

dever e são cuidado no serviço que estava fazendo.

SP, SPF, SP1: reprehendendo-a

SP, SPF, SP1: lingua

155

160

Cá fora, enquanto as mulheres trabalhavam,

assentou-se Aristides em um mocho e os dois italianos

acomodaram-se como melhor puderam, encetando

uma larga conversação, o secretário em bom

português e os dois estrangeiros estropiando a nossa

língua ou misturando-a com palavras e frases da sua.

Afinal achavam-se os colonos encantados com o

jovem Aristides, que conseguiu captar a confiança dos

outros.

SP, SPF, SP1: emquanto

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: accommodaram se;

poderam

SP, SPF, SP1: secretario

SP, SPF, SP1: portuguez; dous;

extrangeiros

SPF, SP1: língua; mixturando-a;

phrases

SP, SPF, SP1: joven

Marco informou que eram, ele, Gennarino e os

seus, naturais dos arredores de Nápoles, mas que seu

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: naturaes; Napoles;

pae

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165

170

175

pai era Benevento e serviu no exército quando da

campanha da unificação, alistando-se sob o comando

de Garibaldi, embora súbdito de Pio IX, o que lhe

valeu ser perseguido pelos pontificais e considerado

herege. Terminada a guerra, o velho casou-se com

uma siciliana vindo residir em Castellamare, onde

Marco foi criado, educado e casou-se por fim com

Maria. Teve outros filhos, mas sendo família muito

pobre, emigraram com um tio para a América,

restando-lhe a Giudita, a mais moça. Lutando com

dificuldades em sua terra, Marco, com os seus,

incorporou-se a uma leva de emigrantes e veio ter em

São Paulo.

SP, SPF, SP1: exercito

SP, SPF, SP1: commando

SP, SPF, SP1: subdito

SP, SPF, SP1: pontificaes

SP, SPF, SP1: porfim

SP, SPF, SP1: familia

SP, SPF, SP1: America

SP, SPF, SP1: Luctando

SP, SPF, SP1: difficuldades

SP, SPF, SP1: encorporou-se

SP, SPF, SP1: S. Paulo

180

185

Aristides informou que era baiano sertanejo.

Tendo falecido sua mãe, muito criança ainda, foi

tomado a si por uma tia casada que pouco depois veio

para São Paulo trazendo-o consigo. Recebeu uma

regular instrução que muito lhe serviu, pois conseguiu

empregar-se como escriturário. Seu pai também, já

viúvo duas vezes, tendo casado a filha que tinha

consigo, emigrou para São Paulo, procurando

restabelecer a modesta fortuna que possuía e,

infelizmente, não conseguiu o que desejava.

SP, SPF, SP1: bahiano

SP, SPF, SP1: fallecido; creança;

ainda (,)

SP, SPF, SP1: S. Paulo; comsigo

SP, SPF, SP1: instrucção

SP, SPF, SP1: escripturario pae

tambem

SP, SPF, SP1: viuvo

SP, SPF, SP1: comsigo; S. Paulo

(,)

Na longa palestra que entretinham, Maria e

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190

195

Genarino referiram-se a João Lopes, um baiano

honesto e laborioso que entretinha amistosas relações

com a família de Marco. Aristides mostrou-se muito

interessado em conhecer esse João Lopes, cujo nome

vira no contrato que ele e o Calisto fizeram com o

coronel Paulino. Esse nome despertou-lhe grande

interesse por coincidir com o de pessoa que estava

ligada à sua família, e o jovem desejou conhecer

pessoalmente o empreiteiro.

SP, SPF, SP1: bahiano

SP, SPF, SP1: familia

SP, SPF, SP1: contracto; elle;

Calixto

SP, SPF, SP1: á sua; família;

joven

Marco disse ser-lhe fácil vê-lo, porque todos

os domingos João e o companheiro vinham à sua casa.

SP, SPF, SP1: facil; vel-o

SP, SPF, SP1: á sua

200

205

210

Aristides continuou o seu passeio com a idéia

de voltar à casa de Marco logo que João aí estivesse.

Os galopes estavam quase todos desertos, ouvindo-se

aqui e ali um som de sanfona ou uma conversação

pouco animada, e nas casinhas algumas famílias nelas

alojadas tinham ausentes os chefes, ficado somente as

mulheres e crianças. O jovem secretário aproximou-se

de algumas dessas habitações provisórias sob algum

pretexto, mas não sentiu atração ali, mesmo que o

olhavam com alguma indiferença, sem um sinal de

agrado e hospitalidade. Andavam os trabalhadores em

passeios e caçadas, em sua maior parte, aproveitando a

folga domingueira.

SP, SPF, SP1: idea

SPF, SP1: á casa; ahi

SP, SPF, SP1: quasi

SP, SPF, SP1: alli; samphona

SP, SPF, SP1: familias; n’ellas

SP, SPF, SP1: chefes (,)

SP, SPF, SP1: creanças; joven;

secretario; approximou-se;

d’essas; provisorias

SP, SPF, SP1: attracção; alli

SP, SPF, SP1: indifferença; signal

SP, SPF, SP1: caçadas (,.)

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336

Voltando à casa de Marco, logo depois aí

chegaram João e Calisto. Marco fez a apresentação e,

trocados os comprimentos do estilo, acomodaram-se

todos na saleta já desocupada.

SP, SPF, SP1: á casa; ahi

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: estylo,

accommodaram-se

SP, SPF, SP1: ja; desoccupada.

215

220

225

João, ao ver Aristides, sentiu-se

impressionadíssimo. A fisionomia do jovem secretário

recordava-lhe pessoa muito querida para que não se

sentisse abalado até o mais profundo de sua alma.

Quem seria esse moço; qual a sua origem e

naturalidade? À sua mente vieram essas interrogações,

que o marido de dona Maria não explicou logo por

palavras porque teve acanhamento; mas, ansioso por

inteirar-se do que lhe passava pela idéia, achou meio

de, circunlóquios jeitosamente encaminhados, saber

que Aristides era baiano da mesma região sertaneja

que ele.

SP, SPF, SP1:

impressionadissimo; physionomia;

joven; secretario

SP, SPF, SP1: naturallidade; Á

sua

SP, SPF, SP1: d. Maria

SP, SPF, SP1: ancioso

SP, SPF, SP1: idéa;

circumloquios; geitosaménte

SP, SPF, SP1: bahiano

SP, SPF, SP1: elle

230

Por sua vez Aristides, que já alguma coisa

sabia, desejava abrir-se francamente com o outro; mas

havia motivos que lhe impunham a necessidade de

uma confabulação reservada entre os dois. Quais

seriam esses motivos o leitor saberá; porém para

melhor explicá-los é preciso que em outro capítulo

recuemos a nossa narração por alguns meses.

SP, SPF, SP1: ja; cousa

SP, SPF, SP1: dous; Quaes

SP, SPF, SP1: porem

SP, SPF, SP1: explical-os;

capitulo

Afinal o secretário não se pôde ter e disse a SP, SPF, SP1: secretario

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337

235 João:

–Tenho grande necessidade de conversar com

o amigo em sua casa a sós. Acha-lo-ei à tarde?

SP, SPF, SP1: Achal-o-ei; á tarde

240

–Espera-lo-ei com prazer, até podemos

fornecer-lhe uma cavalgadura, porque daqui lá é um

bom estirão.251

SP, SPF, SP1: Esperal-o-ei

–É tão distante assim?

–Mais de dois quilômetros. SP, SPF, SP1: dous; kilometros

–Ora! É um passeio que muito me deleitará, e

desejo fazê-lo a pé.

SP, SPF, SP1: fazel-o

245

Assim, ficou assentada a visita de Aristides,

ficando João em brasas por saber em que consistia

uma revelação rodeada de tanto mistério.

SP, SPF, SP1: brazas

SP, SPF, SP1: mysterio

250

Ainda por algum tempo conversaram todos em

comum sobre diversos assuntos depois se separaram.

SP, SPF, SP1: commum;

assumptos

XII

5

Abílio, depois que o vimos a última vez,

tomou novos propósitos de maldade e, pertinaz na sua

idéia de perseguir dona Maria e o velho professor,

eclipsou-se. Encerrado a maior parte do tempo,

trabalhava com afã no seu gabinete, como um antigo

SP, SPF, SP1: Abilio; ultima

SP, SPF, SP1: propositos

SP, SPF, SP1: idéa; d. Maria

SP, SPF, SP1: afan

251 Estirão: boa distãncia.

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338

10

alquimista, escrevendo, corrigindo, meditando, sempre

orientado pela sua idéia fixa: – enodoar a reputação da

esposa do seu antigo condiscípulo, e ao mesmo tempo

desacreditar o velho Serafim, que ele sabia ser um

homem honrado. Para chegar aos fins que tinha em

mira, já sabemos que o infame dispunha da sua

perícia, como falsário, em disfarçar a sua caligrafia e

imitar a alheia.

SP, SPF, SP1: alchimista

SP, SPF, SP1: idéa; ennodoar

SP, SPF, SP1: condiscipulo

SP, SPF, SP1: Seraphim; elle

SP, SPF, SP1: pericia; falsario

SP, SPF, SP1: calligraphia

15

20

Esse tredo252 recurso supunha-o Abílio muito

seguro, não só porque a sua habilidade conseguira

aperfeiçoá-lo mediante demorados e repetidos

exercícios, como por ter-se em conta de um homem

considerado e conhecido na alta sociedade por

honesto, probo253 e incapaz de cometer infâmias tais.

Considerava que, se Serafim ou outro qualquer se

abalançasse a denunciá-lo em público, seria tido como

um infame caluniador e, levado aos tribunais, com

certeza nada poderia provar e perderia a partida.

SP, SPF, SP1: suppunha-o; Abilio

SP, SPF, SP1: aperfeiçoal-o

SP, SPF, SP1: exercicios

SP, SPF, SP1: commetter;

infamias; taes; si; Seraphim

SP, SPF, SP1: denuncial-o;

publico

SP, SPF, SP1: calumniador;

SP, SPF, SP1: tribunaes

25

Depois de tudo preparado como planeara,

viajara a São Paulo, onde contava ainda mais obter

contra as suas vítimas. Lá conhecia indivíduos capazes

de auxiliá-lo, mediante paga, na sua obra nefanda, ou

conseguiria alcançar o seu objetivo por meios que já ia

SP, SPF, SP1: S. Paulo

SP, SPF, SP1: victimas; La;

individuos

SP, SPF, SP1: auxilial-o

SP, SPF, SP1: objectivo; ja

252 Tredo: falso. 253 Probo: de cárater íntegro, reto, justo.

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339

30 delineando contando com as eventualidades que, como

já sabemos, sabia aproveitar.

35

40

45

O nosso herói conhecia o paradeiro do senhor

Oliveira, tendo conseguido, por abuso de confiança,

interceptar as cartas que aquele dirigia a sua filha e a

João, as quais arquivava quando lhe convinha ou

destruía. De sorte que dona Maria não tinha notícia de

seu pai. Lá uma outra vez recebia uma, falsificada por

Abílio, que aproveitava o invólucro e dava

informações que desorientassem os destinatários. Uma

vez João em São Paulo, a sua prática era mais ou

menos a mesma em relação às cartas destinadas a

Maria e Serafim, salvo quando traziam pecúlio. Neste

caso achava meio de abri-las para verificar o texto e

modificar aquelas notícias que pudessem prejudicar os

seus planos; feito o que, relacrava-as com habilidade e

entregava ou remetia aos destinatários se nada visse

que o prejudicava.

SP, SPF, SP1: heróe

SP1: canfiança (Erro óbvio.)

SP, SPF, SP1: aquelle

SP, SPF, SP1: quaes; archivava

SP, SPF, SP1: distruia; d. Maria;

noticia

SP, SPF, SP1: pae; La

SP, SPF, SP1: Abilio; envolucro

SP, SPF, SP1: destinatarios

SP, SPF, SP1: S. Paulo; pratica

SP, SPF, SP1: ás cartas; Seraphim

SP, SPF, SP1: peculio; N’este

SP, SPF, SP1: abril-as; aquellas

SP, SPF, SP1: noticias; podessem

SP, SPF, SP1: remettia

SP, SPF, SP1: destinatarios; si

50

Vamos, pois, encontrar Abílio em Ribeirão

Preto, importante cidade das mais modernas do Estado

de São Paulo, na qual não o conheciam, pois era a

primeira vez que a visitava. Ao demais, sabia que

Oliveira residia em lugar muito distante dali. Sempre

precauto com quem quer que fosse, andando como

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1:S. Paulo

SP, SPF, SP1: d’alli

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340

55

60

65

atarefado quando em público, guardando absoluta

reserva, constantemente de pé atrás e examinando a

furto a quem visse, quando lhe parecia pessoa

conhecida sua. Procurava, ou lugares solitários onde

tivesse certeza de garantia do seu incógnito, ou então

onde houvesse multidão aglomerada no meio da qual

pudesse confundir-se e examinar sem ser examinado.

Nos trajos, no corte dos cabelos, na conservação da

barba, no tratamudear que, de antemão, se exercitou,

desfigurou-se por completo, de modo que, mesmo a

pessoa mais sua conhecida, se enganaria ao vê-lo.

Depois de muito procurar um alojamento que

conviesse aos seus planos, encontrou de ordem muito

inferior onde apenas se achavam dois pobres

estrangeiros que mal pronunciavam uma ou outra

palavra da nossa língua.

SP, SPF, SP1: publico

SP, SPF, SP1: atraz

SP, SPF, SP1: solitarios

SP, SPF, SP1: incognito

SP, SPF, SP1: agglomerada

SP, SPF, SP1: podesse

SP, SPF, SP1: ante-mão

SP, SPF, SP1: vel-o

SP, SPF, SP1: dous; extrangeiros

SP, SPF, SP1: lingua

70

75

Entretanto, sabendo, pelas cartas que

interceptara, residir nas imediações de Ribeirão Preto,

um irmão de Maria, procurava vê-lo sem fazer

imprudentes indagações nem denunciar o seu desejo.

Uma feita encontrou Aristides e ficou

impressionadíssimo com a sua fisionomia, pois no

rosto do mancebo encontrou traços muito

pronunciados de sua irmã. Desde então jurou aos seus

SP, SPF, SP1: immediações

SP, SPF, SP1: vel-o

SP, SPF, SP1:

impressionadissimo; physionomia

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341

80

deuses infernais não o perder de vista, seguindo-o sem

descanso por toda a parte, como um policial astuto, a

fim de ouvi-lo e colher alguma informação que lhe

escapasse em conversação com outros.

SP, SPF, SP1: infernaes

SP, SPF, SP1: descanço; afim

SP, SPF, SP1: ouvil-o

85

90

95

Andando assim como a sombra de Aristides,

que não sabia ser objeto de tão tenaz vigilância, viu

que o mancebo entrou em uma casa de pasto ordinária

mas decente e logo em seguida ali entrou e pediu

almoço vendo que o seu perseguido também o pediu.

Estavam alguns rapazes da casa e conhecidos do irmão

de dona Maria, assentados em torno de uma grande

mesa na qual se fazia o serviço. Abílio apenas saudou

os circunstantes com uma mímica e tomou assento.

Conservando-se taciturno e cabisbaixo, parecia

preocupar-se apenas com o repasto, mas tendo os

ouvidos apurados, porque os outros entretinham uma

conversação alegre e amistosa da qual tomava parte.

Contudo, temendo que o tomassem por algum

indivíduo suspeito, já desejava que o abordassem,

quando um dos circunstantes falou-lhe:

SP, SPF, SP1: objecto; vigilancia

SP1: mancedo (Erro óbvio.);

ordinaria

SP, SPF, SP1: alli

SP, SPF, SP1: d. Maria

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: circumstantes;

mimica

SP, SPF, SP1: preoccupar-se

SP, SPF, SP1: Comtudo

SP, SPF, SP1: individuo

SP, SPF, SP1: circumstantes

–O amigo é novo na terra?

100

–Sou mi...mineiro do...do...do Norte –

respondeu o meliante gaguejando e fazendo esgares,

com tal habilidade que causaria hilaridade, não fosse o

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receio dos rapazes de desagradá-lo. SP, SPF, SP1: desagradal-o

–Mas reside aqui? – perguntou outro.

105

110

115

–Na... nã... não. Estou... tou...de pass...

ss...sagem.

Deixaram-no em paz e continuaram a

conversar entre si. Abílio, em silêncio, como

indiferente à palestra, ia colhendo informações que

muito lhe eram precisas. Pelo que ouviu, ficou ciente

de que o jovem era o mesmo Aristides Oliveira que ele

procurava; que se achava desempregado, mas esperava

empregar-se já, por aqueles dias como secretário do

coronel Paulino, fazendeiro, graças à indicação e

recomendação de um seu amigo da elite de Ribeirão

Preto. Entre os circunstantes havia alguns baianos e

paulistas. Abílio, a esta colheita, exultou; pois sabia

que João se achava na fazenda do coronel Paulino, e o

encontro dos dois era inevitável.

SP, SPF, SP1: Abilio; silencio

SP, SPF, SP1: indifferente; á

palestra

SP, SPF, SP1: sciente

SP, SPF, SP1: joven; elle

SP, SPF, SP1: ja

SP, SPF, SP1: aquelles; secretario

SP, SPF, SP1: á indicação

SP, SPF, SP1: recommendação

SP, SPF, SP1: circumstantes;

bahianos

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: dous; inevitavel

120

No dia seguinte, Abílio arrumou as malas e no

primeiro trem viajou, procurando afastar-se o mais que

lhe fosse possível da zona de Jabuticabal e Bebedouro,

onde sabia residir Oliveira, com quem não desejava

encontrar, temendo ser reconhecido. Por precaução,

entretanto, desde muitos meses, conservava a barba

intonsa e muito crescida, deixava a cabeleira sem

SP, SPF, SP1: Seguinte (,), Abilio

SP, SPF, SP1:viajou (,)

SP, SPF, SP1: possivel

SP, SPF, SP1: cabelleira

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343

125

corte, estopetada e sem trato, pelo menos aparente, e

trajava-se sem apuro como qualquer simples caipira.

Em tudo procurava disfarçar a sua legítima

personalidade.

SP, SPF, SP1: apparente

SP: caipira; SPF, SP1: CAIPIRA

SP, SPF, SP1: legitima

130

135

Em diversas estações por onde passava,

rumando para o Sul mais ou menos, deixava o

maldoso patife, onde houvesse serviço postal, cartas

destinadas a Oliveira e pessoas outras do seu

conhecimento. Afinal parou em uma estação

secundária de ferrovia nas proximidades de Faxina,

onde conhecia um terrível maroto da sua espécie com

quem já de outras vezes, entretiveram relações para

fins ilícitos.

SP, SPF, SP1: secundaria

SP, SPF, SP1: terrivel

SP, SPF, SP1: especie; ja

SP, SPF, SP1: illicitos

140

Felizmente para as suas infames maquinações,

encontrou Abílio outro, que o recebeu de braços

abertos depois que ele se fez reconhecer

cautelosamente sob nome de Rufino, por que o outro

já o conhecia. O outro meliante não o reconheceu logo

por causa das barbas crescidas e cabelos emaranhados;

logo que Abílio se deu a conhecer, mostrou-se alegre e

comunicativo.

SP, SPF, SP1: machinações

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: Rufino (,)

SP, SPF, SP1: ja

SP, SPF, SP1: cabellos;

emmaranhados,(;)

SP, SPF, SP1: Abilio; conhecer (,)

SP, SPF, SP1: communicativo

145

–Então? – foi logo inquirindo risonho. –

Temos algum negocinho?

SP, SPF, SP1: inquerindo

–Há. Terá duzentos mil réis para ir já a

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344

Ribeirão Preto. Dar-lhe-ei as instruções. SP, SPF, SP1: instrucções

–E as passagens?

–Por minha conta todas as despesas. Quer? SP, SPF, SP1: despezas

150 –Tenho outro negocinho, que me rende mais,

para de hoje a quinze dias, e receio perdê-lo.

SP, SPF, SP1: perdel-o

–Há tempo para tratar dos dois. SP, SPF, SP1: Ha; dous

–Conforme. O outro me rende trezentos mil

réis, como disse...

155 –Livre de despesas? SP, SPF, SP1: despezas

–Não tenho que viajar; o negócio é por aqui

mesmo.

SP, SPF, SP1: negocio

–Em todo o caso o meu é mais vantajoso.

160

–Ainda não sei do que se trata. Essas

vantagens que me oferece por fora do caso... É preciso

que a gente saiba dos perigos que corre no

desempenho do serviço.

SP, SPF, SP1: offerece

–É muito simples. Trata-se de um certo

Aristides Oliveira.

165

–Conheço muito um tipo desse nome. É um

baianito moço, metido a fidalgo e bonitote254. É para

despachá-lo? Teria eu muito gosto nisso, porque o tal

sujeito me causa certa antipatia.

SP, SPF, SP1: typo; d’esse

SP, SPF, SP1: bahianito; mettido

SP, SPF, SP1: despachal-o; n’isso

SP, SPF, SP1: antipathia

–Nada de despachá-lo. Está em Ribeirão Preto,

e por estes dias é bem fácil que viaje. Você irá à

SP, SPF, SP1: despachal-o

SP, SPF, SP1: facil; á Cidade

254 Bonitote: um tanto bonito ou formoso.

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170 e por estes dias é bem fácil que viaje. Você irá à

Cidade. É lá muito conhecido?

–Quem? O tal?

–Não. Você.

175

–Sou e não sou. Sou, porque tenho lá dois

companheiros do oficio, rapazes de confiança. Não

sou, porque lá não sabem de onde sou, o que faço e

como me chamo, etc.

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: officio

–Está a calhar; mas há ainda uma circunstância

que muito importa ao bom êxito do nosso negócio.

SP, SPF, SP1: ha; circumstancia

SP, SPF, SP1: exito; negocio

180 –Qual é?

–Você conhece o Aristides bem; ele conhece

bem você?

SP, SPF, SP1: elle

185

–Isto é que não. A minha arte exige que

conheçamos muito aos outros, mas sejamos

desconhecidos.

–Até aqui vamos bem. Decida agora se quer. SP, SPF, SP1: si

–Depende de você. Chegue ao menos mais uns

cinqüenta mil réis.

SP, SPF, SP1: cincoenta

190

–Com os duzentos e as despesas creio que já

fica bem pago.

SP, SPF, SP1: despezas; ja

–Qual! É preciso que eu me apresente na

Cidade com certa decência e mude de trajo à volta e

meia, conforme as circunstâncias e necessidade do

SP, SPF, SP1: descencia; á volta

SP, SPF, SP1: meia (,);

circumstancias

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346

195

trabalho. É preciso também às vezes oferecer um

almoçozinho, uma pinga ou outro agrado...

SP, SPF, SP1: tambem; ás vezes;

offerecer

–Está bem. Dou-lhe os duzentos e cinqüenta,

contanto que siga no primeiro trem.

SP, SPF, SP1: cincoenta

SP, SPF, SP1: comtanto

200

–Essa condição já me é imposta pelo desejo de

bem desempenhar a incumbência. Contratado o

negócio, é só receber os cobres como de costume e

abalar.

SP, SPF, SP1: incumbencia;

Contractado

SP, SPF, SP1: negocio

–Como de costume sempre dei os cobres pela

metade.

205

–Isso já está entendido, além de mais alguma

coisa para despesas porque, como sabe, não se arranja

nada fiado nas estradas e nos pousos. –Diga-me agora

o que tenho de fazer do moço bonito.

SP, SPF, SP1: alem

SP, SPF, SP1: cousa; despezas

–É simples.

210

215

E os dois tratantes entraram a conversar sobre

o que deveria o mandatário realizar. Abílio expôs-lhe

que Aristides tinha uma irmã casada no estado da

Bahia, que o marido lá a deixou na miséria, vindo

afinal a perder-se com o filho de um vizinho. Que o

marido estava em São Paulo trabalhando na fazenda

do coronel Paulino, e ignorava o que por lá pela Bahia

se dava. Que a pobre decaída chegara a ter um

filhinho, que foi sacrificado no momento de vir à luz.

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: mandatario;

realisar; Abilio; expoz-lhe

SP, SPF, SP1: la; miseria

SP, SPF, SP1: visinho

SP, SPF, SP1: S. Paulo

SP, SPF, SP1: la

SP, SPF, SP1: decahida

SP, SPF, SP1: á luz

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347

220

Deu os nomes dos personagens desse enredo calunioso

e recomendou ao seu assecla fazer tudo isso chegar ao

conhecimento de Aristides; mas de modo que este não

soubesse que lhe davam a informação diretamente.

SP, SPF, SP1: d’esse; calumnioso

SP, SPF, SP1: recommendou

SP, SPF, SP1: directamente

225

–Sei muito como isso se faz – disse o meliante

contratado – Arma-se uma conversação com outros na

presença do tal...

SP, SPF, SP1: contractado

–É isso; mas é preciso muita habilidade.

230

–Estou prático nisso. Já embarquei duas com

estas; mas posso garantir que se corre muito risco,

porque às vezes o que ouve a história quer

explicações, provas que se não pode dar de momento,

insulta de arma em punho; é preciso que se o repila...

É o diabo mesmo! É o diabo!

SP, SPF, SP1: pratico; n’isso; Ja

SP, SPF, SP1: ás vezes; historia

SP, SPF, SP1: repilla

–Qual!... O Aristides é manso.

235

–Sei eu lá?! Boi manso, cornada certa. Você já

brigou com ele?

SP, SPF, SP1: elle

–Não; mas já tive ocasião de vê-lo insultado na

cara, e não perdeu a paciência.

SP, SPF, SP1: occasião; vel-o

SP, SPF, SP1: paciencia

–Sempre é bom que eu leve o meu revólver. SP, SPF, SP1: revolver

–Como quiser; mas deve recear a polícia. SP, SPF, SP1: quizer; policia

240

–Dessa não tenho eu medo. Meto-a num

chinelo. Pois o famoso tenente Galinha não me pôde

vencer, quanto mais esses idiotas. Discuti com o

SP, SPF, SP1: D’essa; Metto-a;

n’um

SP, SPF, SP1: Gallinha

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348

245

tenente de tal maneira que se tornou meu amigo.

Polícia de São Paulo, o mais é a fama. – E, por aí a

fora, auto-elogiava-se, fanforronando, o miserável.

SP, SPF, SP1: Policia; S. Paulo;

ahi

SP, SPF, SP1: auto-elogiava-se;

miseravel

250

255

260

Realizado o pacto indecente dos dois

miseráveis, o instrumento vil de Abílio pôs-se logo a

preparar viagem do outro que, por segurança, a

pretexto de camaradagem e de repetir-lhe

recomendações, acompanhava-o fiscalizando

rigorosamente. Depois, examinando o seu canhenho

para verificar se não faltava alguma nota essencial, o

que fez de combinação com Abílio, o meliante dispôs-

se a viajar, estando tudo pronto e aproximando-se a

hora da partida do trem. Neste ponto Abílio entregou-

lhe o dinheiro do contrato e mais um agrado para

cigarros como disse procurando ainda mais captar a

confiança do seu assecla a quem abraçou

carinhosamente, dando-lhe nas costas palmadinhas

amistosas e fazendo-lhe promessas de mais agrados

realizada a empreitada, caso o negócio saísse ao seu

contento.

SP, SPF, SP1: Realisado; dous;

miseraveis

SP, SPF, SP1: Abilio; poz-se

SP, SPF, SP1: recommendações

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: Abílio; dispoz-se

SP, SPF, SP1: prompto;

approximando-se

SP, SPF, SP1: N’este; Abílio

SP, SPF, SP1: contracto

SP, SPF, SP1: palmadinhas

SP, SPF, SP1: realisada; sahisse;

negocio

265

–Que seja feliz, meu caro Felipe. Conte

comigo em toda e qualquer circunstância. Tenho

amigos de grande valor tanto aqui como na Bahia e em

Minas.

SP, SPF, SP1: Felippe

SP, SPF, SP1: commigo;

circumstancia

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349

–Eu sei, seu Rufino, e sou muito agradecido.

Farei o que puder por ser-lhe útil e desempenhar a

contento a sua comissão.

SP, SPF, SP1: util

SP, SPF, SP1: commissão

–Estou certo disso meu amigo.

270

E nesse teor procuravam os dois tratantes,

começando por ocultar os seus verdadeiros nomes,

enganar um ao outro.

SP, SPF, SP1: n’esse; dous

SP, SPF, SP1: occultar

XIII

5

10

Poucos dias depois do que narramos no

capítulo anterior, andava Felipe pelas ruas de Ribeirão

Preto ostentando o porte de homem da boa sociedade,

bem trajado, de flor escarlate na lapela e gingando

com certos ares de importância. Farejava como

perdigueiro em procura de Aristides e de outro

qualquer negócio que pudesse surgir de repente, do

qual pudesse tirar proveito. Dizia entre si: “Enquanto

se descansa, carrega-se pedra. Um pão e um pedaço,

pão e meio.”

SP, SPF, SP1: capitulo

SP, SPF, SP1: Felippe

SP, SPF, SP1: lapella

SP, SPF, SP1: importancia

SP, SPF, SP1: negocio; podesse

SP, SPF, SP1: podésse; Emquanto

SP, SPF, SP1: descança

Quando o gajo asseverou a Abílio conhecer a

vítima das suas maranhas,255 não foi exato na sua

informação. É certo que já o tinha visto e realmente

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: victima; exacto

SP, SPF, SP1: ja

255 Maranha: pacto, teia.

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350

15

20

informação. É certo que já o tinha visto e realmente

sabia o seu nome; mas, como logo percebeu que era

pobre e não poderia oferecer as vantagens que outros,

tanto mais que desconfiou que se tratava de um rapaz

inteligente que se não deixaria levar tão facilmente e

cair nos seus enliços, não ligou grande importância à

caça tão desprezível, onde encontraria preás que lhe

ofereceriam muito maiores lucros. Por isso não

guardara com interesse os seus traços fisionômicos

mais expressivos.

SP: não lhe poderia; SP, SPF, SP1:

offerecer

SP, SPF, SP1: intelligente

SP, SPF, SP1: cahir; imprtancia; a

caça

SP, SPF, SP1: desprezivel; preas

SP, SPF, SP1: offereceriam

SP, SPF, SP1: physionomicos

25

30

Em todo o caso não deixaria de cumprir

exatamente as cláusulas do seu contrato com o suposto

Rufino; que nisso vai a honestidade dos patifes.

Assim, procurou a pensão indicada por Abílio, à hora

da segunda refeição. A sala estava cheia de fregueses,

em maior número do que quando Abílio lá estivera. O

maroto saudou com ar sorridente e modos de

cavalheiro a todos os presentes, alguns dos quais já o

conheciam.

SP, SPF, SP1: exactamente;

clausulas; contracto; supposto

SP, SPF, SP1: n’isso; vae

SP, SPF, SP1: Abilio; á hora

SP, SPF, SP1: freguezes

SP, SPF, SP1: numero; Abilio

SP, SPF, SP1: quaes; ja

35

–É o coronel Norberto – informou um dos

circunstantes ao vizinho, ao ver tão galante e distinto

figurão.

SP, SPF, SP1: circumstantes;

visinho; distincto

–De onde?

–Sei eu lá?

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351

40

45

Os fregueses, notando que o recém chegado

desejava tomar assento, apertaram-se entre si, cada

qual querendo ter a honra de ficar vizinho de um

cavalheiro tão distinto e galante que, afinal, teve

dificuldade em fazer a escolha, para não desagradar

com uma preferência que parecia proposital. O

pretenso coronel, de pé, braços cruzados, sorrindo

bondosamente a um e a outro, parecia hesitar.

SP, SPF, SP1: freguezes; recen

chegado

SP, SPF, SP1: visinho

SP, SPF, SP1: distincto

SP, SPF, SP1: difficuldade

SP, SPF, SP1: preferencia

–Meus bons amigos, em que ficamos? – disse

sorrindo com amabilidade. – Não quero incomodá-los

nem dar preferência a este ou àquele lugar. O melhor é

que eu aguarde outra ocasião.

SP, SPF, SP1: incommodal-os

SP, SPF, SP1: prefeerencia; áquelle

SP, SPF, SP1: occasião

50 –Não, coronel, – disse aquele que informara ao

vizinho, – escolha o lugar à sua vontade, que nenhum

de nós se zangará.

SP, SPF, SP1: aquelle

SP, SPF, SP1: visinho(,); á sua

–Apoiado! – bradaram diversos.

55

–Não, meus amigos. Eu desejo satisfazer a

todos; não tenho preferência como disse.

SP, SPF, SP1: preferencia

–Há mais de um lugar vago – disse um dos

circunstantes indicando-os.

SP, SPF, SP1: Ha

SP, SPF, SP1: circumstantes

60

–Mas... – continuou o pretenso coronel a sorrir

– pareceria que eu estabeleço deferências que podem

desagradar...

SP, SPF, SP1: deferencias

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–Coronel – aventou um magrizela,256 cara de

fuinha, – escolha à sua vontade, que todos nós nos

sentiremos honrados. Não acham, meus senhores?

Creio que ninguém se zangará por isso.

SP, SPF, SP1: -Coronel, (Emendou-

se.)

SP, SPF, SP1: fuinha (,); á sua; nòs

SP, SPF, SP1: ninguem

65

–Decerto – observou um rapaz sério que

parecia já enojado com aquela comédia.

SP, SPF, SP1: serio

SP, SPF, SP1: aquella; comedia.

–Que escolha à sua vontade – aprovaram

alguns enquanto outros nada diziam.

SP, SPF, SP1: á sua; approvaram

SP, SPF, SP1: emquanto

70

–Então... com licença, meus amigos – decidiu

o presumido Felipe assentando-se ao lado do cara de

fuinha que, a um sinal, só perceptível ao malandro, foi

por este reconhecido como um dos seus velhos

colegas de malandrice.

SP, SPF, SP1: Felippe

SP, SPF, SP1: signal; perceptivel

SP, SPF, SP1: colleges

75

80

Restabelecida a ordem, ou, melhor diríamos,

caído o pano, terminada a força, Felipe foi servido, e

aqueles que se haviam interrompido para dar atenção

ao farsante continuaram a refeição. Recomeçou a

alegre palestra dos moços que, quando a jantar nos

hotéis, sentem-se em plena liberdade e isentos das

formalidades da etiqueta.

SP, SPF, SP1: diriamos

SP, SPF, SP1: cahido; panno(,);

Felippe

SP, SPF, SP1: aquelles; attenção

SP, SPF, SP1: farçante, (,)

SP, SPF, SP1: hoteis

–Então, coronel – perguntou o cara de fuinha

ao recém chegado, – tem feito algum negócio?

SP, SPF, SP1:coronel, (Emendou-

se.)

SP, SPF, SP1: recem chegado(,);

negocio

–Oh! Conhece-me? – inquiriu o pretenso

coronel, simulando não conhecer o outro.

SP, SPF, SP1: inqueriu

SP, SPF, SP1:coronel (,)

256 Magrizela: variante de magricela.

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coronel, simulando não conhecer o outro.

85

–Não se lembra que esteve comigo em Franca?

Até comprei-lhe alguns objetos.

SP, SPF, SP1: commigo

SP, SPF, SP1: objectos

–Lembro-me agora. O amigo tem bem

conhecimento! Cheguei aqui hoje.

–Traz bom sortimento?

90

–Trago restos. Vendi quase tudo e volto a

buscar novo sortimento nos sertões de Minas e Bahia.

SP, SPF, SP1: quasi

–Aquilo é uma mina, heim? SP, SPF, SP1: Aquillo

–O sertão baiano, bem entendido. Por ser

nortista muito pobre, faz-se alguma coisa.

SP, SPF, SP1: bahiano

SP, SPF, SP1: cousa

95 –Por ser pobre?...

–Sim. O amigo bem sabe que aquele povo,

especialmente do sertão meridional do seu Estado...

SP, SPF, SP1: aquelle

–E o coronel – dizia o cara de fuinha com

certo sarcasmo – também não é baiano?

SP, SPF, SP1: tambem; bahiano

100 –Livra! Sou alagoano, da capital.

105

–Bem sabe, porque é de lá, quais são as

indústrias daquele povo: rendas feitas em almofadas,

trabalhos de ferro e latão, calçados ordinários, o que

tudo vende por preços ridículos. E todos esses

artefatos são muito apreciados pelos biribas,257 que os

compram a peso de ouro, pode-se dizer.

SP, SPF, SP1: la; quaes

SP, SPF, SP1: d’aquelle

SP, SPF, SP1: ordinarios

SP, SPF, SP1: ridículos

SP, SPF, SP1: artefactos

SP, SPF, SP1:ouro (,)

257 Biriba: natural de São Paulo.

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–E que tal vai minha terra? SP, SPF, SP1: vae

110

–Venho dos municípios de Caeteté, Rio de

Contas, Condeúba, Bom Jesus, Monte Alto e outros.

Aquilo vai numa pasmaceira que causa lástima.

SP, SPF, SP1: municipios

SP, SPF, SP1: Candeuba

SP, SPF, SP1: Aquillo; vae n’uma;

lastina

115

120

O falso coronel mentia a todo o pano. Notando

que o moço sério a que nos referimos acima, e que se

achava quase em frente dele, prestava atenção com

grande interesse às informações que ele dava ao cara

de fuinha, examinava-o a furto, daí vindo-lhe à idéia

que poderia ser o Aristides Oliveira. Na fisionomia do

mancebo ia achando alguns traços de que se recordava

per fas et per nefas,258 entendeu o meliante de entrar

em jogo conforme contratara com Abílio, e continuou

a conversar com o seu parceiro, encaminhado-se ao

seu fim indigno.

SP, SPF, SP1: panno

SP, SPF, SP1: serio

SP, SPF, SP1: quasi; d’elle(,);

attenção

SP, SPF, SP1: as informações

(Emendou-se acrescentando crase.);

elle; d’ahi; á idéa

SP, SPF, SP1: phisionomia

SP: per fas et per nefas; SPF, SP1:

PER FAS ET PER NEFAS

SP, SPF, SP1: contractara; Abilio

SP, SPF, SP1: parceiro(,)

125

–Os sertanejos baianos chegam ao último grau

de decadência. A gente válida foge para aqui

desprezando suas lavouras e o que não pode vender,

para emigrar. Os maridos abandonam as mulheres;

estas, caindo na miséria, entregam-se à prostituição...

SP, SPF, SP1: bahianos; ultimo

SP, SPF, SP1: decadencia

SP, SPF, SP1: cahindo; miseria; á

prostituição

–Estão no seu direito – disse o cara de fuinha

sorrindo.

SP1: sorrindo- (Restaurou-se a

pontuação substituindo travessão

por ponto.)

–Não duvido.

258 Per fas et per nefas: per fas et nefas.

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130

–Eu mesmo, enfarado259 de uma que me

arrumaram nas costas, deixei-a lá com a ninhada.

Decerto tomou o rumo das outras, e tratou da vida.

Não faltam mulheres por toda a parte.

135

E o miserável cara de fuinha ria-se

desfaçadamente como se o que praticara fosse a coisa

a mais simples e lícita do mundo.

SP, SPF, SP1: miseravel

SP, SPF, SP1: si; praticou; cousa

SP, SPF, SP1: licita

–Agora mesmo – continuou o outro – deixei

em voga em Caetité um caso interessante.

SP, SPF, SP1: Caeteté

–Mais uma bateu asa e voou, não? SP, SPF, SP1: aza

140

145

–Não voou; apenas passou a outro dono. O

caso é o seguinte: –Um sujeito rico, um tal Oliveira –

e o miserável espiava de esguelha o jovem –, ficando

pobre, casou a filha com um tal João Lopes, que era

filho único e possuía alguma coisa e veio para São

Paulo. João Lopes, endividando-se, abandonou a

mulher com dois filhinhos na miséria e também

emigrou para São Paulo, deixando a mulher entregue a

um velho Serafim, que tem dois filhos rapazes. O

velho maganão260, que é compadre da casa, passados

tempos, sabe o que fez?

SP, SPF, SP1: Oliveira, (Emendou-

se.)

SP, SPF, SP1: miseravel; joven,- (-,)

SP, SPF, SP1: unico; possuia;

cousa; S. Paulo

SP, SPF, SP1: miseria; tambem

SP, SPF, SP1: S. Paulo (,)

SP, SPF, SP1: Seraphim;

SP, SPF, SP1: tempos (,)

150 –Tomou conta da comadre mais intimamente.

–Nada. Deu-a ao filho mais velho, que andava

259 Enfarado: aborrecido. 260 Maganão: indivíduo de baixa extração.

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de água no bico, a comadre Maria da Conceição. O

resultado disso foi um netinho para Serafim.

SP, SPF, SP1: agua

SP, SPF, SP1: d’isso; nettinho;

Seraphim

–Esse netinho intruso foi uma dos diabos. SP, SPF, SP1: nettinho

155

–Qual!! Reuniram-se e deram fim a esse

documento vivo do escandaloso caso tornando-o

morto. Eu poderia referir centenários de casos deste;

mas preferi-o porque é interessantíssimo.

SP, SPF, SP1: centenares; d’este

SP, SPF, SP1: interessantissimo

160

165

O perverso, referindo esse caso calunioso de

pura invenção de Abílio, espiava o resultado que

produziria no jovem. Este, pálido, trêmulo e suarento,

não continuou a refeição. Suspenso, indeciso, não

sabendo que resolução tomar, continuou com os

talheres na mão, involuntariamente denunciando-se o

próprio irmão da vítima daquela insidiosa calúnia. O

falso coronel exultou, o cara de fuinha ria-se

descaradamente fazendo comentários do caso em

termos tais que fariam corar um frade de pedra.

SP, SPF, SP1: calumnioso

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: joven; pallido;

tremulo

SP, SPF, SP1: tomasse (Emendou-se

concordando tempo verbal.)

SP, SPF, SP1: proprio; victima

d’aquella; calumnia

SP, SPF, SP1: commentarios

SP, SPF, SP1: taes

170

175

O desejo de Aristides era esganar os dois

biltres; mas lembrou-se a tempo que isso seria pior.

Depois, quem sabia se isso era uma verdade? Maria da

Conceição, como estava informado, era uma senhora

virtuosa, e o velho Serafim um homem honesto digno

de acatamento. Quem sabe, porém, se as dificuldades

da vida, em um meio pobre como aquele, não levara a

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: peor

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: Seraphim

SP, SPF, SP1: porem; si;

difficuldades

SP, SPF, SP1: aquelle

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357

180

pobre senhora à perdição? Não conhecia João Lopes

pessoalmente; mas Oliveira tinha-o em conta de probo

e laborioso, como diversas vezes disseram-lhe,

queixando-se apenas de não obter resposta de uma

carta sequer das que lhe escrevera, revelando-se por

fim a deixar de escrever-lhe e à sua filha.

SP, SPF, SP1: á perdição

SP, SPF, SP1: siquer; porfim

SP, SPF, SP1: á sua

185

190

Entretanto Serafim, sendo tal como informara-

lhe seu pai, devia ser zeloso pela família que fora

confiada à sua guarda e proteção. Dispondo de

recursos, como Oliveira dizia, se consentira que dona

Maria, caída em penúria com os filhinhos, se visse

obrigada a dar um passo errado, era responsável e

tanto mais indigno quanto deixar que seu filho fosse o

causador de tamanha e tão vergonhosa desgraça. E

João Lopes, o homem de bem, segundo dizia Oliveira,

onde parava? Por que não acudia sua mulher e seus

filhinhos na triste conjuntura a que chegaram? Por que

não escrevia ao seu sogro quando se achava na Bahia?

Por que, vindo para o Estado de São Paulo, procurou?

SP, SPF, SP1: Seraphim

SP, SPF, SP1: pae; familia; foi

SP, SPF, SP1: á sua; protecção

SP, SPF, SP1: consentiu; d. Maria

SP, SPF, SP1: cahida; penúria; viu-

se

SP, SPF, SP1: responsavel

SP, SPF, SP1: Porque

SP, SPF, SP1: conjunctura; Porque

SP, SPF, SP1: Porque; S. Paulo

195

Todos estes pensamentos revoluteavam no

cérebro do pobre moço, que não achava uma

explicação para os tristes acontecimentos que aquele

tipo noticiava. Era preciso, era indispensável

conversar com aquele homem em reserva para que

SP, SPF, SP1: aquelle

SP, SPF, SP1: typo; indispensavel

SP, SPF, SP1: aquelle

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358

200

205

esclarecesse menudamente o caso, como dele foi

informado e porque o tomou como paradigma ali o

referindo de preferência ao tipo ordinário com quem

conversava de igual para igual, sendo, entanto, um

homem de boa aparência e trato, quando o outro, pela

cara, pelo rir, pelas indecências que proferiu,

denunciava-se um sujeito da pior espécie.

SP, SPF, SP1: delle

SP, SPF, SP1: alli; referindo-o

(Emendou-se ênclise para próclise.)

SP, SPF, SP1: preferencia; typo;

ordinario

SP, SPF, SP1: egual; egual; emtanto

SP, SPF, SP1: apparencia

SP, SPF, SP1: indecencias

SP, SPF, SP1: especie

210

Neste ponto Aristides teve a seguinte idéia: –

Será que o narrador das desgraças alheias o conhecia e

propositalmente dera aquela notícia em sua presença?

Seria possível, mas, para que assim fosse, era preciso

que soubesse da ligação que existia entre ele, Oliveira

e Maria da Conceição, e que conhecesse toda a família

e os antecedentes.

SP, SPF, SP1: N’este; idéa

SP, SPF, SP1: aquella; noticia

SP, SPF, SP1: possivel

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: familia

215

220

O falso coronel Norberto, notando o ar

abstrato de Aristides, sentia-se contente pelo feliz

resultado da insidiosa insinuação que lançara a esmo e

conseguira alcançar o fim almejado logo no começo

da sua diligência. Estavam ganhos os seus duzentos

mil réis; a semente da intriga foi lançada em bom

terreno e monção, e germinaria por certo. O infame

notava que, além de Aristides e do cara de fuinha,

alguns outros dos circunstantes que estavam mais

próximos prestavam atenção com malicioso interesse

SP, SPF, SP1: abstracto

SP, SPF, SP1: pello

SP, SPF, SP1: diligencia

SP, SPF, SP1: alem

SP, SPF, SP1: circumstantes;

proximos

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225

ao conto, alguns sorrindo, outros lhe dirigindo gestos

de agrado, destes sujeitos que farejam escândalos com

prazer. Por isso o narrador procurou dar mais vulto ao

episódio inventado, exagerando o caso em reiterados

comentários ou palavras maliciosas que o

condimentassem tratando-o agradável e atraente.

SP, SPF, SP1: d’estes; escandalos

SP, SPF, SP1: episodio

SP, SPF, SP1: commentarios

SP, SPF, SP1: agradavel; attrahente

230

Aristides, entretanto, ficou taciturno, à espera

de poder conversar a sós com o noticiador do

escândalo que lhe feria profundamente o coração e

conturbava o espírito.

SP, SPF, SP1: emtretanto(,)

taciturno (,); á espera

SP, SPF, SP1: escandalo

SP, SPF, SP1: espirito

235

240

245

Afinal os fregueses foram retirando-se um a

um. Quando o falso Norberto erguia-se para fazer o

mesmo, o jovem levantou-se. O pseudocoronel

demorou-se palestrando com o cara de fuinha em voz

baixa. Sobre o que confabulavam os dois? Ainda

tratavam de comentar e explicar o fato narrado?

Aristides prestava atenção e, como na sala estivesse

restabelecido o silêncio, pôde, por uma ou outra

palavra que o cara de fuinha proferira em voz

esganiçada, perceber que os dois já eram conhecidos e

faziam qualquer combinação. O mancebo foi postar-se

na porta da saída do edifício onde aguardou o falso

coronel. Quando este apareceu alguns minutos depois,

Aristides, resoluto, aproximou-se.

SP, SPF, SP1: freguezes

SP, SPF, SP1: joven; pseudo

coronel

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: facto

SP, SPF, SP1: attenção

SP, SPF, SP1: silencio

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: sahida; edificio

SP, SPF, SP1: appareceu

SP, SPF, SP1: approximou-se

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360

–Cavalheiro – disse-lhe, – tenho necessidade

de conversar com o senhor onde e quando lhe for

possível dar-me essa honra.

SP, SPF, SP1: Cavalheiro, - disse-

lhe(,) - tenho

SP, SPF, SP1: possivel

250

–A honra será toda minha – respondeu o

birbante261 com um sorriso amável, apesar de sentir-se

um pouco receoso.

SP, SPF, SP1: amavel; apezar

255

–Obrigado. Como ouvi vossa senhoria referir

um fato dado no sertão baiano, meu querido berço,

desejo ouvi-lo sobre ele mais circunstanciadamente.

SP, SPF, SP1: facto; bahiano

SP, SPF, SP1: ouvil-o; elle;

circumstanciadamente

–Mas ... se vossa senhoria veio de lá, deve

saber a respeito tanto como eu.

SP, SPF, SP1: si; la

260

–Vim de lá em criança. É verdade que, quando

vim, já tinha a consciência um pouco desenvolvida.

Recordo-me com saudade da terra querida onde nasci.

SP, SPF, SP1: la; creança

SP, SPF, SP1: consiciencia

265

–Eu também sou nortista. Nasci em Alagoas, a

terra gloriosa que deu à Pátria os heróicos Fonsecas e

Floriano. Deste último sou parente próximo e, até,

conheci-o pessoalmente e dele recebi muitos

obséquios.

SP, SPF, SP1: tambem; Alagôas

SP, SPF, SP1: á Pátria; heroicos

SP, SPF, SP1: D’este; ultimo;

proximo

SP, SPF, SP1: d’elle

SP, SPF, SP1: obsequios

–Eu, pelo contrário, sou filho de pais modestos

e obscuros que não passaram de agricultores.

SP, SPF, SP1: contrario; paes

–São as contradições deste mundo. Nem todos

têm a sorte que eu tive.

SP, SPF, SP1: contradicções; d’este

261 Birbante: patife, tratante.

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361

270

275

280

O maroto, além das outras qualidades, era um

reles gabolas que mentia com a maior desfaçatez.

Receando que Aristides abordasse o escabroso assunto

da sua narração ao cara de fuinha, pois bem sabia com

quem tratava, ia fazendo obstrução – como se diz e

usa nos parlamentos – elogiando-se e à sua “gloriosa

terra”. O cara de fuinha, considerado sem interesse

para si a longa palestra, foi se escafedendo, com o que

muito se alegrou Aristides, que não desejava falar

sobre o caso em presença de testemunha tão antipática

e sórdida.

SP, SPF, SP1: alem

SP, SPF, SP1: assumpto

SP, SPF, SP1: obstrucção

SP, SPF, SP1: á sua

SP, SPF, SP1: antiphatica

SP, SPF, SP1: sordida

Aproveitando uma ligeira folga, procurou o

mancebo encaminhar a conversa ao fim que tinha em

vista.

285

–Vossa senhoria, desculpe-me. Disse que

desejo falar-lhe... não se recorda?

SP, SPF, SP1: senhoria (,)

–Sobre o que? – indagou o falso coronel

fazendo-se esquecido.

–Sobre o fato que há pouco relatava. SP, SPF, SP1: facto; ha

290

–O fato deu-se como já referi e o senhor

ouviu.

SP, SPF, SP1: facto; ja

–Não se trata disso. Desejo saber quem o

inteirou desse escândalo.

SP, SPF, SP1: d’isso

SP, SPF, SP1: d’esse; escandalo

–Não posso me lembrar. Demais, que interessa

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362

295

isso a vossa senhoria? Se é por amor de sua terra, bem

sabe que em toda terra dão-se fatos como o que relatei.

Salvo se....

SP, SPF, SP1: Si

SP, SPF, SP1: factos

SP, SPF, SP1: si

– Salvo se o que? SP, SPF, SP1: si

–Se se trata de parentes ou amigos de vossa

senhoria.

SP, SPF, SP1: Si

300 –Pois bem, declaro-lhe francamente que me

interesso pelas pessoas que figuram no episódio que

relatou.

SP, SPF, SP1: episodio

305

–Perdeu o seu tempo, meu caro senhor. Se são

amigos, digo-lhe, como mais experimentado, que

amigos modernamente nada valem. Quando parentes

andam sem cotação alguma...

SP, SPF, SP1: Si

–Entretanto, ainda a pouco vossa senhoria

gabava-se de parente do marechal.

SP, SPF, SP1: Entretanto (,); ha

(Erro óbvio.)

310

–Ah!... Mas o Floriano era um homem

eminente cujo parentesco muito me honra, e o

cavalheiro disse-me que é de origem muito modesta.

–A modéstia é uma virtude, senhor! SP, SPF, SP1: modestia

–Virtude! O senhor! Ainda é muito ingênuo! SP, SPF, SP1: ingenuo

315

–Desculpe-me; mas conceda-me dizer-lhe que

me admira um homem da sociedade culta, como se

proclama, externar conceitos dessa ordem. Se a

modéstia dos meus ascendentes é por vossa senhoria

SP, SPF, SP1: d’essa; Si

SP, SPF, SP1: modestia

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363

320

considerada sem valia, aplicada como deseja essa

apreciação à sociedade em geral... ainda uma vez peço

desculpa – então vossa senhoria... – E Aristides

hesitou.

SP, SPF, SP1: applicada

SP, SPF, SP1: á sociedade

–Acabe, senhor.

–Então vossa senhoria... não é virtuoso.

325

–Homem essa! Ah! Ah! Ah! – exclamou o

biltre rindo-se a bandeiras despregadas. – Sou

virtuoso; mas sigo a virtude moderna. Não dou para

frade pregador.

SP, SPF, SP1: Hom’essa

–Nem eu tampouco, senhor! – exclamou

Aristides com azedume.

330

335

–Chegou a minha vez de pedir a vossa

senhoria que me desculpe a brincadeira. É que muito

me simpatizei com o meu jovem interlocutor e, com

os bons que considero, meto-me a brincalhão. Sei que

a virtude, a verdadeira virtude ainda existe; mas

soterrada sob a espessa camada dos interesses e

ambições pessoais.

SP, SPF, SP1: sympathizei; joven;

interlocultor

SP, SPF, SP1: metto-me

SP, SPF, SP1: pessoaes

–Mas respira, tem vida e surgirá por fim. SP, SPF, SP1: porfim

–Tenho minhas dúvidas a respeito; sou um

pouco cético.

SP, SPF, SP1: duvidas

SP, SPF, SP1: sceptico

–Seja como for, as pessoas que figuram no

episódio narrado por vossa senhoria são da minha

SP, SPF, SP1: episodio

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364

340

estima, e, por isso desejo saber se o fato narrado é uma

verdade.

SP, SPF, SP1: si; facto

–Sou incapaz de mentir: O senhor ofendeu-me. SP, SPF, SP1: offendeu-me

–Em que? Vossa senhoria é testemunha

ocular?

345 –Não; mas ouvi de pessoas acima de qualquer

suspeita.

–O caso é tão grave que exige uma

sindicância. Vossa senhoria terá a bondade de

mencionar o nome dessas pessoas.

SP, SPF, SP1: syndicancia

SP, SPF, SP1: dessas

350 –Para que? Quererá ir a Bahia por amor disso?

–Se tanto for preciso, lá irei. SP, SPF, SP1: Si

–Mostra um interesse fora do comum por um

caso tão banal.

SP, SPF, SP1: commum

–Banal?! – exclamou Aristides quase irritado. SP, SPF, SP1: quasi

355 –Banal, sim; porque nos seus sertões isso é

comum.

SP, SPF, SP1: commum: (.)

360

–Entre infames e desclassificados. Entretanto,

como já disse, trata-se de pessoas dignas de todo o

respeito que talvez mereçam mais conceito, embora

modestas, do que os informantes que diz vossa

senhoria. Desejo saber o nome destas.

SP, SPF, SP1: d’estas

–Não posso me lembrar assim do pé para a

mão.

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365

365

–Isso muito me admira. Sabe vossa senhoria

que são os informantes dignos de fé e, portanto,

pessoas classificadas entre os da alta camada social, e

não se lembra dos seus nomes!

370

375

–É fácil de compreender o que lhe parece

incompreensível, meu jovem senhor. Pelo fato de

serem os informantes pessoas de destaque como

concluiu, não se segue que retenhamos na memória os

seus nomes. Ouvi-as em uma reunião seleta para a

qual fui convidado sem que eu, entretanto, me

interessasse pelo assunto, nem sobre ele fizesse

indagação. Interessou-me somente o caso no geral,

isto é, no que diz respeito à decadência daquele meio

social. Entre essas pessoas eu só conhecia uma, minha

amiga, que concorreu para o meu convite.

SP, SPF, SP1: facil; comprehender

SP, SPF, SP1: incomprehensivel;

joven; facto

SP, SPF, SP1: memoria

SP, SPF, SP1: selecta

SP, SPF, SP1: assumpto; elle

SP, SPF, SP1: á decadencia;

d’aquelle

–E esse quem é?

380 –O capitão Rufino. Conhece-o?

–Conheço muitas pessoas de Caetité pelo

nome; mas esse capitão Rufino é-me estranho.

SP, SPF, SP1: extranho

385

–Por minha vez admiro-me; pois o capitão é

um moço da mais alta sociedade de Caetité. Muito

rico, filho único de uma viúva rica, tem vindo muitas

vezes a São Paulo. Esteve mesmo estudando na capital

deste Estado.

SP, SPF, SP1: unico; viuva

SP, SPF, SP1: S. Paulo

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366

–Não se lembra de outro? Fazendo um esforço

de memória, pode ser que se lembre.

SP, SPF, SP1: memoria

390

–Desejo ser-lhe agradável; mas, por mais que

me esforce... – dizia naturalmente o maroto como

quem procurasse recordar-se. – Ah! sim! – concluiu. –

Lembro-me do coronel Ambrósio, do major Febrônio.

SP, SPF, SP1: agradavel

SP, SPF, SP1: Ambrosio; Febronio

395

400

Estes o falso coronel inventou de momento

para iludir. Desenganado de obter mais informações,

Aristides agradeceu ao falso coronel as que conseguiu

e despediu-se; mas o biltre, ainda mostrando-se gentil,

quis saber qual o grau de parentesco existente entre o

jovem e a senhora contra quem caía a imputação da

falta noticiada. Essa curiosidade muito desgostou a

Aristides.

SP, SPF, SP1: illudir

SP, SPF, SP1: quiz

SP, SPF, SP1: joven; cahia

–É parenta próxima, – informou o moço, –

basta que lho diga; mas não a conheço senão por

informações que me merecem fé.

SP, SPF, SP1: proxima

SP, SPF, SP1: lh’o; sinão

405

E retirou-se para não ser abordado pelo

maroto, que, embora lhe parecesse pessoa importante,

desconfiou que era leviano e poderia repetir o episódio

aumentando com o que conhecesse sobre o

parentesco.

SP, SPF, SP1: episodio

SP, SPF, SP1: augmenttando

410

O miserável instrumento de Abílio ainda

permaneceu ali alguns minutos a fazer cálculos sobre

SP, SPF, SP1: miseravel; Abilio

SP, SPF, SP1: alli; calculos

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367

415

os resultados que colheu ou colheria na sua

confabulação com Aristides, pondo em ordem tudo e

preenchendo alguns claros de maneira que o mandante

lhe desse mais alguma gorjeta.

SP, SPF, SP1: gorgeta

XIV

5

10

Aristides retirou-se levando o coração muito

angustiado. Embora fosse um moço inteligente e

atiçado, faltavam-lhe a necessária prática e

experiência para conhecer que o falso coronel era um

biltre miserável e caluniador. Honesto como era,

julgava os demais por si, e apenas admitia que o

coronel fosse um pouco leviano e frívolo sem más

intenções. Se era certo o que aquele homem ouvira de

outrem e referira em segunda mão, a honra de sua

família havia derruído262 com a queda da esposa de

João, sua irmã, considerada como um modelo de

virtudes.

SP, SPF, SP1: intelligente

SP, SPF, SP1: necessaria;

pratica

SP, SPF, SP1: experiencia

SP, SPF, SP1: miseravel;

calumniador

SP, SPF, SP1: admittia

SP, SPF, SP1: frivolo

SP, SPF, SP1: Si; aquelle

SP, SPF, SP1: familia; derruido

15

Lembrou-se de seu pai, que se referia sempre

àquela filha querida que constituía a sua glória, com

orgulho, mas um orgulho santo e nobre que lhe enchia

o coração de contentamento em sua velhice e

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: áquella;

constituia; gloria

262 Derruído: desmoronado.

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20

o coração de contentamento em sua velhice e

decadência. O que seria de Oliveira quando soubesse

desse triste desmontar de sua honra, dessa vergonha

inominável que caia sobre o seu nome, golpe

tremendo desfechado por aquela a quem tanto amava?

Quem sabe, porém, se Oliveira já não sabia desse

triste acontecimento? Era preciso, sondá-lo e, em caso

de estar ciente da ignomínia263 que a sua querida

atirava-lhe às cãs,264 procurar consolá-lo e levantar-lhe

o ânimo.

SP, SPF, SP1: decadencia

SP, SPF, SP1: d’esse; d’essa

SP, SPF, SP1: inominavel;

cahia

SP, SPF, SP1: aquella; porem;

si; d’esse

SP, SPF, SP1: sondal-o

SP, SPF, SP1: sciente;

ignominia

SP, SPF, SP1: ás cãs; consolal-

o; animo

25

Havia tempo bastante para a sua ida e volta

antes de vencido o prazo a realização do seu contrato

com o coronel Paulino; e Aristides embarcou logo no

dia seguinte em direção a Bebedouro.

SP, SPF, SP1: realisação;

contracto

SP, SPF, SP1: direcção

30

35

Fazia cerca de três meses que Aristides

estivera com seu pai, que encontrou relativamente

alegre e satisfeito na sua modesta vivenda campestre.

Agora o encontrou pálido, desfeito e com um ar triste

que debalde procurava ocultar sob um sorriso forçado

e manifestações de fingido. Não quis o mancebo

abordar logo, mesmo indiretamente, o assunto que o

levara ali, não só por ter receio de passar por delator

da vergonhosa condição a que sua irmã caíra, como

SP, SPF, SP1: tres

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: encontrou-o

(Emendou-se ênclise para

próclise.); pallido; occultar

SP, SPF, SP1: quiz

SP, SPF, SP1: indirectamente;

assumpto

SP, SPF, SP1: alli

SP, SPF, SP1: cahira

263 Ignomínia: grande desonra. 264 Cãs: cabelos brancos.

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369

40

por esperar que seu pai o informasse. Oliveira,

entretanto, durante o dia, limitava-se a tratar com seu

filho sobre assuntos de lavoura e economia, isso

mesmo em poucas palavras, percebendo Aristides que

ele, o pouco que conversava espontaneamente, levava

em vista desviar o filho de qualquer indagação.

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: assumptos

SP, SPF, SP1: elle

expontaneamente

45

Afinal, à tardinha, quando davam um passeio

pela chácara, Aristides abalançou-se a falar sobre

Maria.

SP, SPF, SP1: á tardinha

SP, SPF, SP1: chacara

–Meu pai tem tido notícias da Bahia?–

perguntou.

SP, SPF, SP1: pae; noticias

50

Oliveira como que sobressaltou-se a essa

interrogação, procurou conter-se e, mirando seu filho

com certa indecisão, perguntou-lhe:

–Por que me perguntas isso? Sabes de alguma

novidade por lá?

SP, SPF, SP1: Porque

55

–Tenho lido algumas gazetas da Capital e vejo

que a política...

SP, SPF, SP1: politica

–E dos sertões?

–A seca do ano passado... SP, SPF, SP1: secca; anno

60

–Dessa já tive informação por alguns

imigrantes que casualmente encontrei. Fica certo, meu

filho, que a tão falada seca dos nossos sertões baianos

não é a causa do atraso do nosso querido Estado. A

SP, SPF, SP1: D’essa;

immigrantes

SP, SPF, SP1: secca; bahianos

SP, SPF, SP1: atrazo

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65

verdadeira causa da decadência da Bahia são os

políticos ambiciosos e o desleixo do governo, que não

dota os nossos ricos e vastos sertões de boas estradas,

que não fomenta as indústrias, que não trata de

aproveitar as enormes riquezas que lá estão à espera

de quem as explore.

SP, SPF, SP1: decadencia

SP, SPF, SP1: poiticos

SP, SPF, SP1: industrias

SP, SPF, SP1: á espera

–E de Maria nada sabe? – arriscou Aristides.

70

–Sei, meu filho, – respondeu Oliveira

procurando por um grande esforço ocultar a emoção

de que se possuiu. – E tu também sabes, percebo.

SP, SPF, SP1: occultar

SP, SPF, SP1: tambem

Ambos ficaram silenciosos por alguns

momentos andando por entre as árvores sem coragem

de fitarem-se. Depois Aristides rompeu o silêncio.

SP, SPF, SP1: arvores

SP, SPF, SP1: silencio

75

–Mas pai conhece em Caetité o capitão

Rufino, o coronel Ambrósio e o major Febrônio?

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: Ambrosio

–Não. Devem ser pessoas que lá chegaram

depois da minha saída. Por que desejas saber desses

homens?

SP, SPF, SP1: sahida; Porque

80 –É cá por certas razões...

–Que me queres ocultar, não? SP, SPF, SP1: occultar

–Há coisas, meu pai, que realmente nos

tornam indecisos e pesa-nos referir, tão dolorosas e

irremediáveis são.

SP, SPF, SP1: Ha; cousas; pae

SP, SPF, SP1: irremediaveis

85 –Já sei do que se trata, e bem avalias como me SP, SPF, SP1: Ja

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acho. À primeira vista parece-me um pesadelo terrível

o que veio ao meu conhecimento. Será possível, meu

filho, que se desse isso?

SP, SPF, SP1: A’ primeira;

terrivel

SP, SPF, SP1: possivel

–Como soube, meu pai? SP, SPF, SP1: pae

90

95

100

Ambos, pai e filho, estavam certos do que

cada um deles pensava. Evitavam pronunciar o nome

daquela que, para ele foi sempre o símbolo da virtude,

da honra e da dignidade, e que agora era o cadáver

putrefato de tudo isso. Ainda se achavam indecisos

diante da figura subjetiva de Maria, que lhes parecia

sorrir com o seu ar de bondade e candura protestando

contra a imputação que caía sobre o seu caráter.

Oliveira não respondeu ao filho. Tirando da algibeira

um papel dobrado entregou-o a Aristides, que,

abrindo-o, leu pausadamente entremeando a leitura de

passageiros momentos de meditação.

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: delles

SP, SPF, SP1: daquella; elle;

symbolo

SP1: eadaver (Erro óbvio.)

SP, SPF, SP1: putrefacto

SP, SPF, SP1: deante

SP, SPF, SP1: subjectiva

SP, SPF, SP1: cahia; caracter

SP, SPF, SP1: intermeando

SP, SPF, SP1: medittação

105

Era uma carta concebida nestes termos: “Meu

bom e velho amigo. Sinto uma grande hesitação ao

escrever esta, que comecei há três dias, irresoluto de

remetê-la ao seu destino, tão grave é o que nela refiro.

Sou e serei sempre seu dedicado amigo e, entre o

receio de perpetuar-lhe a tranqüilidade de espírito e o

dever de lamentar a terrível desgraça que caiu sobre a

sua felicidade, escolhi a franqueza e lealdade. Dona

SP, SPF, SP1: n’estes

SP, SPF, SP1: ha; tres

SP, SPF, SP1: remettel-a; nella

SP, SPF, SP1: tranquallidade;

espirito

SP, SPF, SP1: terrivel; chaiu

SP, SPF, SP1: D. Maria

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110

115

120

Maria, sua filha dileta, abandonada pelo marido, do

qual nem notícia tem, caiu em tal estado de indigência

e miséria que... (perdoe-me, amigo) poupe-me referir-

lhe as dolorosas conseqüências disso. Um filho do

velho Serafim, abusando da confiança que o marido

ausente depositava no seu velho mestre, meteu-se

dentro... O velho, sabendo do caso, a princípio

procurou negar o fato quando caiu no conhecimento

da opinião pública. Não o conseguindo, quis atribuí-lo

a um homem conceituado e digno de toda a

consideração, mas foi pior. Houve atrito entre os dois,

o escândalo foi vergonhoso.”

SP, SPF, SP1: dilecta

SP, SPF, SP1: noticia; cahiu;

indigencia

SP, SPF, SP1: miseria; perdôe-

me

SP, SPF, SP1: consequencias;

d’isso

SP, SPF, SP1: Seraphim (,)

SP, SPF, SP1: metteu-se

SP, SPF, SP1: principio

SP, SPF, SP1: facto; cahiu

SP, SPF, SP1: publica; quiz;

attribuirl-o

SP, SPF, SP1: peor; attrito

SP, SPF, SP1: escandalo

125

“Quando soube disso, apesar de residir longe,

procurei sindicar o fato com reserva e remediá-lo

como velho amigo da família, nada conseguindo

senão verificar a triste realidade. Tenha paciência,

meu amigo, e desculpe-me inteirá-lo disto ferindo-lhe

o bondoso coração de pai, que sei quanto ama a sua

filha dileta. Aceite um apertado abraço do seu velho e

sincero amigo S.”

SP, SPF, SP1: d’isso; apezar

SP, SPF, SP1: syndicar; facto;

remedial-o

SP, SPF, SP1: familia

SP, SPF, SP1: sinão; paciencia

SP, SPF, SP1: inteiral-o; d’isto

SP, SPF, SP1: pae

130

A carta não estava assinada senão por uma

letra inicial. Aristides dobrou-a e entregou a seu pai.

SP, SPF, SP1: sinão; lettra

SP, SPF, SP1: pae

–A carta – informou Oliveira – não me veio da

Bahia. No envelope trazia o carimbo do correio de

SP, SPF, SP1: -A carta, (-)

SP, SPF, SP1: enveloppe

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135

Curvelo, o que me faz crer que aquele que a escreveu

não está na Bahia.

SP, SPF, SP1: Curvello;

aquelle

–E vosmecê a quem atribui? SP, SPF, SP1: attribue

–Não pude descobrir quem é esse amigo.

–Amigo anônimo. Meu pai conhece a

caligrafia desse amigo?

SP, SPF, SP1: anonymo; pae;

calligraphia

SP, SPF, SP1: d’esse

140 –Por ela não posso saber quem seja. SP, SPF, SP1: ella

145

–Há uma ciência, da qual já li alguma coisa,

pela qual se conhece o caráter do indivíduo pelo tipo

da sua letra. Também, além desta, há outra, a

grafognomia, pela qual se conhece, como pretendem,

quem é o autor da escrita. Muita vez, examinando a

carta, poder-se-á, mesmo sem o auxílio dessas

pretendidas ciências, chegar a algum resultado.

SP, SPF, SP1: sciencia; cousa

SP, SPF, SP1: caracter;

individuo; typo

SP, SPF, SP1: lettra; Tambem;

alem; d’esta

SP, SPF, SP1: graphognomia

SP, SPF, SP1: escripta

SP, SPF, SP1: auxilio; d’essas

SP, SPF, SP1: sciencias

–Pois bem: examina a carta demoradamente e

poderás talvez conseguir alguma coisa.

SP, SPF, SP1: cousa

150

155

Chegando em casa, Aristides de novo leu a

carta e pôs-se a examiná-la cuidadosamente, embora

seu pai julgasse isso dispensável como lhe parecia,

porque talvez não tivesse fé no resultado. O mancebo,

entretanto, depois de demorado exame, concluiu que a

letra era disfarçada; que quem escreveu procurou

ocultar a sua verdadeira caligrafia, pois que em muitos

passos da escrita, talvez por causa da pressa,

SP, SPF, SP1: poz-se;

examinal-a

SP, SPF, SP1: pae; dispensavel

SP, SPF, SP1: lettra

SP, SPF, SP1: occultar;

calligraphia

SP, SPF, SP1: escripta

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160

escapavam letras que muito diferiam do geral adotado.

Oliveira, porém, de boa fé, desculpou o amigo que lhe

escrevera. Não fez isso por mal; apenas não quis

denunciar-se temendo ser tomado por algum

intrigante.

SP, SPF, SP1: lettras;

differiam; adoptado

SP, SPF, SP1: porem

SP, SPF, SP1: quiz

165

–Não, meu pa,;– observou-lhe Aristides.– Se é

um verdadeiro amigo, devia ter confiança em vosmecê

e ser-lhe inteiramente franco.

SP, SPF, SP1: pae;(,); Si

–Seja como for, o que devemos fazer agora?

170

–Se me fosse possível, eu iria ao sertão baiano

tirar isso a limpo. O velho professor Serafim é um

homem de bem como vosmecê mesmo mais de uma

vez tem me afirmado, e é incapaz de praticar uma

ação tanto indigna quão infame.

SP, SPF, SP1: Si; possivel;

bahiano

SP, SPF, SP1: Seraphim

SP, SPF, SP1: affirmado

SP, SPF, SP1: acção

175

–De acordo; mas certamente os filhos, que não

sabemos quem são, não haviam de consultar ao velho

sobre o que fizeram. Serafim por sua vez, realizada a

infâmia, não há de vir em público condenar o filho e

desacreditá-lo.

SP, SPF, SP1: accordo;

SP, SPF, SP1: Seraphim

SP, SPF, SP1: infamia; publico;

condemnar

SP, SPF, SP1: desacredital-o

–A casa dos pais é a escola dos filhos como

diz o vulgo. Os exemplos de honestidade e boa

conduta dos pais é a melhor escola.

SP, SPF, SP1: paes

SP, SPF, SP1: conducta; Paes

180

–É o que te parece, meu filho. Quantos filhos

perversos e degenerados não tenho eu visto, oriundos

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185

de famílias honestas e conceituadas! Entre irmãos que

procedem corretamente, continuando as tradições de

uma família honrada e os exemplos de pais

honestíssimos, eu conheço um sujeito que é a

vergonha da sua família. É um ente desprezível, abjeto

e repelido por todos quantos o conhecem.

SP, SPF, SP1: familias

SP, SPF, SP1: correctamente

SP, SPF, SP1: familia; paes

SP, SPF, SP1: honestissimos

SP, SPF, SP1: familia;

desprezivel; abjecto

–Exceções, pai. SP, SPF, SP1: Excepções; pae

–Como se explica isso?

190

195

–É que, quando um espírito torna-se

emperrado no mal, permite Deus que se encarne no

seio de uma família boa e honrada para se treinar no

bem e ao mesmo tempo provar até que ponto vai a

paciência e ânimo caridoso da boa família escolhida.

A lenda bíblica de Job põe bem às claras os desígnios

da Providência em casos tais.

SP, SPF, SP1: espirito

SP, SPF, SP1: permitte

SP, SPF, SP1: familia

SP, SPF, SP1: vae

SP, SPF, SP1: paciencia;

animo; familia

SP, SPF, SP1: biblica; ás

claras; designios

SP, SPF, SP1: Providencia; taes

200

–Isso é assunto que eu considero invenção dos

modernos. São idealismos que eu não compreendo

nem trato de estudar. Vejamos antes o que devemos

fazer.

SP, SPF, SP1: assumpto

SP, SPF, SP1: comprehendo

–Se eu pudesse, iria in loco verificar o que há

de verdade no caso de Maria, pois ainda não me

convenci por completo.

SP, SPF, SP1: Si; podesse; SP:

in loco; SPF, SP1: IN LOCO

205

–Escrevamos a um amigo ou conhecido de

confiança.

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–Ninguém, a não ser o Serafim, me convém;

porém este é suspeito.

SP, SPF, SP1: Ninguem;

Seraphim; convem

SP, SPF, SP1: porem

–Sendo, como é, um homem de bem, não

deixará de responder alguma coisa.

SP, SPF, SP1: cousa

210

–Emfim, faz o que melhor entenderes, mas

tendo grande precaução para evitar escândalos.

SP, SPF, SP1: escandalos

215

220

Assim assentado, nesse mesmo dia Aristides

esboçou uma carta ao professor, estudou, emendou-a,

corrigiu-a e, antes de copiá-la, submeteu-a à

apreciação de seu pai que, depois de algumas

sugestões e correções, deu-lha. Copiada e assinada

pelo pai, Aristides encarregou-se de mandar ao seu

destino segura pelo registro postal. Dias depois o

mancebo encontrou-se em Ribeirão Preto com o

coronel Paulino e, fechado o seu contrato, seguiu para

a fazenda. Antes disso procurou saber do coronel

Norberto e do cara de fuinha; mas ninguém pode

informar-lhe sobre os dois tipos, que haviam

desaparecido.

SP, SPF, SP1: n’esse

SP, SPF, SP1: copial-a; á

apreciação

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: suggestões; deu-

lh’a; assignada

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: contracto

SP, SPF, SP1: d’isso

SP, SPF, SP1: ninguem; poude

SP, SPF, SP1: dous; typos

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XV

5

10

15

Conforme havia combinado, Aristides foi de

tarde ao rancho de João. Era um passeio agradável para

quem, como o jovem secretário, possui o dom de

analisar as belezas naturais desde as filigranas sutis da

relva pontilhada de flores mínimas que matizam o seu

verde tapete com uma diversidade incontável de cores

brilhantes e variadas, até a gigantesca e variada

vegetação das pomposas florestas que se estendem

como um “belo sermão” pelo nosso país; atestando a

majestade do Criador; desde o arroio cristalino que se

estende como fio de prata polida e cintilante, até o

caudal possante que espelha o conjunto do painel,

chamalotando-o e movimentando-o ao sopro leve da

brisa, desde o inseto de élitros265 dourados, até as aves

altivolantes de plumagem cambiante.

SP, SPF, SP1: agradavel

SP, SPF, SP1: joven; secretario;

possue

SP, SPF, SP1: analysar; bellezas;

naturaes; subtis

SP, SPF, SP1: minimas

SP, SPF, SP1: incontavel

SP, SPF, SP1: paiz; attestando

SP, SPF, SP1: magestade;

Creador; crystallino

SP, SPF, SP1: scintillante

SP, SPF, SP1: briza; insecto;

elytros

20

Aristides ia, pois, alma de poeta, embevecido,

caminhando pausadamente pela estrada, esquecido das

misérias desta vida, como que remontando a Deus, que

via na sua exponência só por espíritos como o seu

perceptíveis, da bondade, do carinho, do desvelo que o

Criador dispensa a todas as suas criaturas nesta vida

semeada de dores, desilusões e amarguras, para

suavizá-la e dar-nos a conhecer quantas e maiores

SP, SPF, SP1: miserias

SP, SPF, SP1: exponencia;

espiritos

SP, SPF, SP1: perceptiveis

SP, SPF, SP1: Creador; creaturas;

n’esta

SP, SPF, SP1: desillusões

SP, SPF, SP1: suavizal-a; dae-

265 Élitro: asa anterior dos coeóoteros, sem nervuras e de consistência córnea.

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378

25

30

suavizá-la e dar-nos a conhecer quantas e maiores

delícias nos são reservadas na outra que, no pensar do

mancebo, é a vida normal e verdadeira. Aristides era

cristão convicto; mas cristão espírita que, por outra

manifestações da bondade do Pai Celestial, sentia-se

consolado e convencido da Verdade que se havia por

vezes demonstrado por meio de provas flagrantes e

incontestáveis.

nos

SP, SPF, SP1: delicias

SP, SPF, SP1: christão; espirita

SP, SPF, SP1: Pae

SP, SPF, SP1: incontestaveis

35

40

45

Entrou, por fim, o jovem secretário no campo

das culturas. O novo cafezal estendia-se a perder de

vista listrando de verde as inclinações do solo, em

linhas de uma retidão impecável, vigoroso e são, e

demonstrando o cuidado e competência dos seus

empreiteiros. Conhecido bem do assunto, pelo que via,

avaliava que raros empreiteiros tenham realizado o que

João e Calisto haviam conseguido. Concluiu por aí que

o seu cunhado e o seu companheiro eram homens

laboriosos, inteligentes e caprichosos. Em geral os

cafeeiros ostentavam-se luxuriantes, quais em ponto de

darem a primeira florescência, que já ia abrolhando em

viçosos botões. A replanta das poucas mudas que não

pegaram distinguia-se pelo porte menor, mas também

se desenvolvia soberba e promissora.

SP, SPF, SP1: porfim; joven;

secretario

SP, SPF, SP1: rectidão;

impecavel

SP, SPF, SP1: competencia

SP, SPF, SP1: assumpto; via (,)

SP, SPF, SP1: realizavam

SP, SPF, SP1: Calixto; ahi

SP, SPF, SP1: intelligentes

SP, SPF, SP1: quaes

SP, SPF, SP1: florescencia

SP, SPF, SP1: tambem

SP, SPF, SP1: desenvolvia-se

(Emendou-se ênclise para

próclise.)

Nas proximidades do arranchamento dos

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379

50

55

empreiteiros ainda teve Aristides que se admirar das

plantações de cereais e outras culturas anuais, algumas

já em colheita, da propriedade de João e Calisto; da

ordem, do asseio, do bom trato; das acomodações da

criação miúda e mesmo da casinhola onde os dois

contratantes se acomodavam e que, embora de ligeira

construção de tabique, era cômoda, higiênica e bem

cuidada. Tudo isso impressionou agradavelmente a

Aristides, que foi logo fazendo uma idéia lisonjeira de

seu cunhado e de Calisto.

SP, SPF, SP1: cereaes; annuaes

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: accomodações

SP, SPF, SP1: meuda; dous

SP, SPF, SP1: contractantes;

accomodavam

SP, SPF, SP1: construcção;

commoda; hygienica

SP, SPF, SP1: idéa; lisongeira

SP, SPF, SP1: Calixto

60

João estava só, porque o seu companheiro e

amigo havia saído discretamente, por compreender que

os dois iam conversar reservadamente. Acomodado na

saleta, Aristides não quis desperdiçar o tempo e

abordou logo o assunto que ali o levava.

SP, SPF, SP1: sahido;

comprehender

SP, SPF, SP1:dous;

Acommodado

SP, SPF, SP1: quiz; disperdiçar

SP, SPF, SP1: assumpto; alli

65

–Senhor Lopes,– disse, – vi casualmente, nos

registros a meu cargo, o seu nome e, como existe um

homem desse nome, que se acha intimamente ligado à

minha família, desconfiei logo que esse homem é o

senhor.

SP, SPF, SP1: Sr Lopes (,); disse

(,)

SP, SPF, SP1: d’esse; á minha

SP, SPF, SP1: familia

70

–Por minha vez, – disse João, – já desconfiei

dessa ligação, notando na sua fisionomia traços muito

pronunciados de pessoa que muito me é querida.

SP, SPF, SP1: vez(,); João (,)

SP, SPF, SP1: d’essa;

physionomia

–Sua esposa, não?

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380

–Justamente. O senhor é o fiel retrato de Maria.

–Pois saiba que eu sou irmão de Maria. Sou

filho de Oliveira.

75

Por mais prevenido que os dois estivessem para

esse desenlace, não se puderam conter, e estreitaram-se

em fraternal e afetuoso amplexo aqueles dois corações

bem formados.

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: poderam

SP, SPF, SP1: affectuoso;

aquelles; dous

80

85

90

João mostrou-se tão jubiloso e comovido, tão

sincero era o movimento da sua alma, que Aristides

compreendeu ignorava a imputação que caia sobre a

honra de sua esposa. No jubilo expansivo e emoção de

seu cunhado viu que este era um homem de caráter são

e um esposo terno e bom. Como, pois, ferir o

melindroso assunto sem anuviar essa alegria, sem

envenenar essa ternura conjugal? Entretanto, era

preciso, era indispensável abrir os olhos de João, quer

se tratasse de uma verdade cruel; quer de uma calúnia,

em ambos os casos nodoantes da honra de uma esposa;

porque, pensava Aristides, mesmo mentirosa, uma

grave imputação como a que se dava, era uma pecha

que os maldosos, sempre em maioria, procurariam

reavivar quando o bom senso e a justiça tratassem de

destruí-la.

SP, SPF, SP1: commovido

SP, SPF, SP1: comprehendeu;

cahia

SP, SPF, SP1: caracter

SP, SPF, SP1: assumpto;

annuviar

SP, SPF, SP1: indispensavel

SP, SPF, SP1: calumnia

SP, SPF, SP1: tratasse

(Emendou-se.); destruil-a

95 –Tem tido recentes notícias de Maria? – SP, SPF, SP1: noticias

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381

perguntou Aristides.

100

–Recentes, não. Há mais de dois meses não

recebo cartas da Bahia. Pelas do professor, e mesmo de

Maria, que apenas são respostas as que lhes dirijo

remetendo dinheiro, estou convencido de que as que

lhes mando sem essas remessas pecuniárias não

chegam ao seu destino.

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: ás (Emendou-se.)

SP, SPF, SP1: remettendo

SP, SPF, SP1: pecuniarias

–É singular isso, meu João. Meu pai também se

queixa de nunca ter recebido cartas suas e de Maria.

SP, SPF, SP1: pae; tambem;

queixa-se (Emendou-se ênclise

para próclise.)

105

–Como poderia eu escrever ao senhor Oliveira

se, desde que para aqui veio, nunca nos escreveu um

bilhete sequer? Não sei onde ele pára.

SP, SPF, SP1: si; siquer; elle

110

–Oh!! isso mais singulariza o caso – exclamou

Aristides. – Garanto-lhe que meu pai, desde que aqui

chegou, tem-lhe escrito e a Maria. Não tendo recebido

respostas de uma só de suas cartas, desenganou-se

afinal e cessou de escrever-lhes supondo que, decerto,

vocês tinham algum capricho ou propósito nisso.

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: escripto

SP, SPF, SP1: suppondo

SP, SPF, SP1: proposito; n’isso

115

–Não podíamos, como deve compreender,

tomar propositalmente essa resolução, porque, tanto eu

como Maria, não temos queixa alguma de pessoa que

muito nos merece como seu pai.

SP, SPF, SP1: podiamos;

comprehender

SP, SPF, SP1: pae

–João, aqui há tratantada de quem quer que

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120 seja.

–Com que interesse? Como sempre recebo

cartas em resposta às que vão com dinheiro? Sei se

trata de um tratante, pode-se dizer que é um tratante

honesto, permita-me essa idéia antinômica e absurda.

SP, SPF, SP1: ás; Si

SP, SPF, SP1: permitta-me; idéa;

antinomica

125

–É que outro é o interesse de quem intercepta a

correspondência.

SP, SPF, SP1: correspondencia

–Qual esse interesse?

–Cortar as relações entre meu pai e vocês, entre

vocês e seus amigos.

SP, SPF, SP1: pae

130

135

–Se fosse assim, não receberíamos a resposta

das cartas com valor porque elas, embora não tenham o

fim de noticiar especialmente outras coisas, ao menos

provam que estou vivo, que vou ganhando, e que

trabalho para o bem dos que me são caros. Que

interesse é esse outro? Para que e por quê?

SP, SPF, SP1: Si; receberiamos

SP, SPF, SP1: ellas

SP, SPF, SP1: porque

–Sei eu lá, João? O caso é digno de estudo.

Diga-me: o professor Serafim é digno da sua inteira

confiança?

SP, SPF, SP1: Seraphim

140

–Isso não se discute. Ali está a probidade a

mais acentuada, a amizade sincera e leal até a

dedicação...

SP, SPF, SP1: Alli;

SP, SPF, SP1: accentuada

–E dos filhos o que diz?

–São meninos de uma conduta exemplar. SP, SPF, SP1: conducta

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383

145

Conheço-os desde crianças. Além da sua boa índole

sempre manifesta, os exemplos dos pais e a educação

carinhosa que receberam acabaram de formá-los

homens de conduta exemplar.

SP, SPF, SP1: creanças; Alem;

indole

SP, SPF, SP1: paes

SP, SPF, SP1: formal-os

SP, SPF, SP1: conducta

–Meu pai ou você não tem algum inimigo

acirrado em fazer-lhe mal?

SP, SPF, SP1: pae

150

155

–Que me conste, não. Seu pai é o gênio brando

e, até, um pouco bonacheirão, desculpe que lhe

conhecemos. Por minha parte, sempre vivi retraído nos

meus trabalhos rurais, nunca ofendi a quem que fosse a

ponto de açular ódios encarniçados contra mim.

“Louvor em boca própria é vitupério”; mas não tenho a

pretensão de me louvar; apenas me justifico. Tenho

defeitos como quase todo o mundo, é certo; mas

procuro conter-me e emendar-me.

SP, SPF, SP1: pae; genio

SP, SPF, SP1: bonacheirão (,)

SP, SPF, SP1: retrahido

SP, SPF, SP1: ruraes; ao ponto

de (Emendou-se.)

SP, SPF, SP1: odios

SP, SPF, SP1: bocca; propria;

vituperio

SP, SPF, SP1: quasi

160

165

Aristides pôs-se a refletir por alguns

momentos. Serão – pensava – inimizades contraídas

em outra existência? Que interesse poderia levar

alguém a criar uma situação tão intrincada e misteriosa

contra João e sua esposa? Vingança? Inveja? A

vingança parte de quem recebeu uma ofensa grave e a

inveja não podia ser provocada por João e seu pai, tão

invejáveis não são as suas circunstâncias e fortuna

pecuniária, únicos motivos que dão lugar comumente a

SP, SPF, SP1: pôz-se; reflectir

SP, SPF, SP1: existencia

SP, SPF, SP1: alguem; crear;

mysteriosa

SP, SPF, SP1: offensa

SP, SPF, SP1: pae; invejaveis

SP, SPF, SP1: circumstancias

SP, SPF, SP1: pecuniaria, unicos;

commumente

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384

170

essa ruim paixão. A não ser uma antipatia congênita.

Depois Aristides lembrou-se que outra paixão – o

ciúme – poderia ser o móvel da perseguição.

SP, SPF, SP1: antipathia;

congenita

SP, SPF, SP1: ciume; movel

–Maria casou-se com você por sua vontade? –

perguntou.

–Desde crianças nos afeiçoamos, e nunca uma

nuvem de desgosto empanou o nosso afeto.

SP, SPF, SP1: creanças;

affeiçoamos

SP, SPF, SP1: empannou; affecto

175

–Não houve algum outro pretendente

malogrado na sua pretensão?

SP, SPF, SP1: mallogrado

180

–Se houve, decerto não chegou a solicitar a sua

mão. E, se houvesse e Maria o preferisse, eu, bem a

meu pesar, renunciaria à minha mais ardente aspiração,

que eu considerei sempre a minha felicidade. Fui feliz,

Aristides, porque Maria excedeu em virtudes, em

carinho, em bondade, a tudo quanto já eu esperava.

Mas... aonde quer você chegar?

SP, SPF, SP1: Si

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: pezar; á minha

SP, SPF, SP1: Aristides (,)

185

–João, coragem! Tenho cousas gravíssimas a

revelar-lhe e é preciso que você as conheça, embora

me seja doloroso referir-lhas. Tenha calma... quer

parecer-me que se trata de calúnias.

SP, SPF, SP1: cousas;

gravissimas

SP, SPF, SP1: referir-lh’as

SP, SPF, SP1: calumnias

190

João, pálido e trêmulo, como que adivinhando

uma desgraça, emudeceu com o olhar fito em seu

cunhado, como que procurando devassar o que ainda

lhe restava dizer.

SP, SPF, SP1: pallido; tremulo;

advinhando

SP, SPF, SP1: emmudeceu

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385

195

–Vou ser-lhe franco, meu querido irmão.

Alguém assoalha torpezas contra a reputação de minha

irmã e sua esposa – continuou Aristides – Ouvi em

Ribeirão Preto, casualmente, de um tipo, que parece da

boa sociedade, que em Caetité é corrente que Maria se

perdeu.

SP, SPF, SP1: Alguem

SP, SPF, SP1: typo

200

–Ah! – exclamou João indignado, vindo-lhe a

reação, e com os olhos marejados. – E você não

esbofeteou o miserável!

SP, SPF, SP1: miseravel

205

–Seria pior. O escândalo dava-se em uma casa

de pasto onde se acharam muitas pessoas estranhas, e

o informante dirigia-se a outro. Aguardei-o à saída e

interpelei-o, sem denunciar-me irmão da vítima. No

dia seguinte fui a meu pai sondá-lo e saber o que havia.

Já ele estava ciente por uma carta que um anônimo lhe

dirigiu de Minas.

SP, SPF, SP1: peor; escandalo

SP, SPF, SP1: extranhas

SP, SPF, SP1: á sahida

SP, SPF, SP1: victima

SP, SPF, SP1: pae; sondal-o

SP, SPF, SP1: elle; sciente;

anonymo

210

E João ouviu de Aristides uma relação

circunstanciada dos fatos procurando conter-se; mas

sentindo-se profundamente ferido em sua honra e

vulnerado no seu sensível e amorável coração.

Desorientado, não podia firmar-se em um juízo

razoável, e o seu espírito atribulado agitava-se entre a

possibilidade da perda de um ente a quem tanto amava

e o ser possível uma perseguição que não tinha razão

SP, SPF, SP1: circumstanciada;

factos

SP, SPF, SP1: sensivel; amoravel

SP, SPF, SP1: juizo

SP, SPF, SP1: razoavel; espirito;

attribulado; agittava-se

SP, SPF, SP1: possivel

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215

e o ser possível uma perseguição que não tinha razão

de ser. Por fim, acalmando-se, firmou-se na idéia de

que se tratava de um aleive266 criado e propalado

simplesmente pelo ódio que os maus tributam à

virtude.

SP, SPF, SP1: Porfim; idéa

SP, SPF, SP1: creado

SP, SPF, SP1: odio; á virtude

220

–Ah! – exclamou – Quem será o miserável

caluniador!

SP, SPF, SP1: miseravel

SP, SPF, SP1: calumniador

–Quem sabe, meu João?

225

–Embora convencido de que se trata de uma

calúnia, nem por isso posso ficar tranqüilo. É-me

preciso ir já à Bahia.

SP, SPF, SP1: calumnia;

tranquillo

SP, SPF, SP1: á Bahia.

230

–Essa idéia tive eu; mas, tendo de vir para esta

fazenda, contrato fechado, era-me impossível fazer

essa longa viagem. Tomei outro alvitre: sugerir a meu

pai a idéia de escrever ao velho professor, e a carta foi

remetida logo. Aguardemos, portanto a resposta. Você

conhece o capitão Rufino e outros residentes em

Caetité, dos quais disse o informante que eu ouvi,

como lhe disse, ter colhido a notícia do escândalo?

SP, SPF, SP1: idéa

SP, SPF, SP1: contracto;

impossivel

SP, SPF, SP1: suggerir; pae

SP, SPF, SP1: idéa

SP, SPF, SP1: remettida

SP, SPF, SP1: quaes

SP, SPF, SP1: noticia; escandalo

235

–Não. Nunca ouvi se pronunciarem tais nomes,

e posso assegurar-lhe que são pessoas inventadas pelo

caluniador.

SP, SPF, SP1: taes; pronunciar-se

SP, SPF, SP1: calumniador

–É certo. Por isso e por outras circunstâncias

que notei, cheguei à conclusão de que tudo não passa

SP, SPF, SP1: circumnstancias

SP, SPF, SP1: á conclusão

266 Aleive: calúnia, injúria.

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387

que notei, cheguei à conclusão de que tudo não passa

de uma inventiva.

240

–Em todo caso, o nome de Maria anda pela

boca de miseráveis que, por não terem honra nem

escrúpulos, não prezam a honra alheia. Vou à Bahia.

SP, SPF, SP1: bocca

SP, SPF, SP1: miseraveis;

escrupulos

SP, SPF, SP1: á Bahia

–Aguarde a resposta do professor.

–O professor foi inteirado do fato? SP, SPF, SP1: facto

245

250

255

–Não, João. A carta foi escrita por mim

cuidadosamente e assinada por meu pai. Nela procurei

saber o que há por lá sem precisar fato algum. Pedi ao

velho explicar a razão de não escreverem para cá,

saber se há alguma perseguição contra Maria e se

existe algum mal intencionado que deseje fazer-lhe

mal. Em resumo, fi-la de modo tal, que o professor,

que é um homem criterioso e prático da vida,

desconfiará que é indispensável responder logo e

francamente, pois perceberá que alguma razão

interessante a nós assim o exige.

SP, SPF, SP1: escripta

SP, SPF, SP1: assignada; pae;

N’ella

SP, SPF, SP1: facto

SP, SPF, SP1: si; si

SP, SPF, SP1: fil-a

SP, SPF, SP1: pratico

SP, SPF, SP1: indispensavel

260

–Mas, ainda assim, é-me preciso ir tratando de

concluir os meus negócios e preparar minha viagem de

retorno à minha terra. Quando eu não tenha concluído

por cá os meus interesses e negócio com o coronel

quando vier a resposta, tenho você para, em meu lugar,

concluí-los ajudando o Calisto, que é meu amigo e um

SP, SPF, SP1: negocios

SP, SPF, SP1: á minha;

concluido

SP, SPF, SP1: negocio

SP, SPF, SP1: concluil-os;

Calixto

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homem honesto e digno.

–Com muito gosto aceitarei a incumbência,

João. Farei por você o melhor que puder.

SP, SPF, SP1: acceitarei;

incumbencia

SP, SPF, SP1: pudér

265

–Obrigado, Aristides. Sei que os meus

negócios ficarão bem amparados.

SP, SPF, SP1: negocios

XVI

5

10

Abílio, entretanto, não descansava. Na faina

de apossar-se de Maria, não já somente levado pela

paixão que, a princípio, o dominava, impregnada de

desejos concupiscentes, embora parecesse um amor

razoável; mas também pelo espírito de vingança a que

dera motivo a atitude varonil da virtuosa senhora

expulsando-o da sua residência como bem e

justamente devia proceder, – andava abaixo e acima

pelas fazendas, casais, povoados e outras situações,

onde não fosse conhecido, em procura de um

instrumento que lhe servisse a contento aos fins

desonestos que tinha em vista.

SP, SPF, SP1: Abilio; descançava

SP, SPF, SP1: principio;

dominava (,)

SP, SPF, SP1: concupicentes

SP, SPF, SP1: razoavel; tambem;

espirito

SP, SPF, SP1: attitude

SP, SPF, SP1: residencia

SP, SPF, SP1: casaes

SP, SPF, SP1: deshonestos

15

Nessa reprovável diligência apresentava-se

como negociante ambulante que fazia compras aqui

para vender acolá. Afinal encontrou o que desejava:

SP, SPF, SP1: N’essa; reprovavel;

deligencia

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389

20

um sujeito que, para outro qualquer que fosse alguma

coisa honesto, seria um indesejável. Foi por ele notado

de passagem, fez-se encontradiço com o meliante

porque notou os seus modos desconfiados, estudou-o

de perto e tomou-o ao seu serviço como camarada. Era

um sujeito de semblante agradável, modos humildes,

risonho; em suma, tão atraente e simpático que

angariaria a outro menos perspicaz do que Abílio.

SP, SPF, SP1: cousa; indesejavel;

elle

SP, SPF, SP1: agradavel

SP, SPF, SP1: summa; attrahente;

simpatico

SP, SPF, SP1: Abilio

25

30

35

Tão bondoso, até bonacheirão, mostrou-se

Abílio ao sujeito e tendo como verdades as suas

queixas e lamúrias e logo generosamente,

dispensando-lhe favores e dádivas pecuniárias, que

ganhou a sua confiança. Tomás, como ele se deu a

conhecer por um nome falso, mostrou-se agradecido, e

fez juras de uma dedicação que tocava as raias do

exagero e davam a conhecer e denunciavam a Abílio o

submetido que elas continham e o gênio inventivo

desse precioso achado, que era astucioso e servido por

uma inteligência regular cultivada na prática de

perversidades e atos reprováveis aprendidos

certamente na grei267 dos vagabundos e mandriões.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: dadivas;

pecuniarias

SP, SPF, SP1: Thomaz; elle

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: ellas; genio

SP, SPF, SP1: d’esse

SP, SPF, SP1: intelligencia

SP, SPF, SP1: pratica; actos;

reprovaveis

Abílio, notando que o seu camarada era

tagarela e fanfarrão, embora guardasse a compostura

de patrão e se mostrasse reservado, prestava atenção

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: attenção

267 Grei: congregação.

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390

40

45

50

de patrão e se mostrasse reservado, prestava atenção

com ar bonachão à prosa de Tomás, a quem dava trela

por meio de um sorriso aprobativo que o camarada

tinha por ingenuidade do patrão. Supondo ser-lhe

agradável, Tomás pouco a pouco foi ganhando certa

familiaridade e mostrando-se tal qual era: gabolas, de

uma dedicação servil, capaz das ações as mais

ignóbeis e refalsado; predicados estes que muito

agradavam a Abílio; mas, para que fosse conseguido o

préstimo do camarada, era preciso saber levá-lo, e o

astucioso mancebo sabia como se haver para alcançar

o que desejava.

SP, SPF, SP1: á prosa; Thomaz ;

tréla

SP, SPF, SP1: approbativo

SP, SPF, SP1: Suppondo

SP, SPF, SP1: agradavel; Thomaz

SP, SPF, SP1: acções; ignobeis;

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: prestimo; leval-o

55

Um mês depois de ter tomado Tomás ao seu

serviço, já sabia Abílio com quem contava e começou

a entrar em ação. Principiou por informar a Tomás,

aproveitando uma ocasião em que este o gabava com

ênfase, que não era tanto assim, pois tinha um inimigo

figadal.

SP, SPF, SP1: mes; Thomaz

SP, SPF, SP1: Abílio

SP, SPF, SP1: acção; Thomaz

SP, SPF, SP1: occasião; gabava-o

(Emendou-se ênclise para

próclise.); emphasi

60

–O que, patrão!? – exclamou Tomás – Um

homem de bem como vossamecê?... Um homem bom

que não ofende a ninguém; antes serve a todo mundo,

como eu vejo?... Mas quem é esse miserável? Me diga

vossamecê? Que eu tou já no pé dele.

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: offende; ninguem

SP: miseravel? Me diga

vossamicê? ‘tou; SPF, SP1:

MISERAVEL; ME DIGA

VOSSAMICÊ? ‘TOU

SP, SPF, SP1: d’elle.

–Para que, Tomás? Deixe lá esse pobre. SP, SPF, SP1: Thomaz

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65

–Qual! vossamecê há de dizê, que eu quero

conhecê a cara dele.

SP: Vossamicê há de dizê;

conhecê; SPF, SP1:

VOSSAMICÊ; DIZÊ CONHECÊ;

SP, SPF, SP1: d’elle.

–Conhecer a cara dele? Que lhe interessa isso?

Se ele souber que você é gente minha, andará de tal

jeito que você lhe ficará querendo bem.

SP, SPF, SP1: d’elle

SP, SPF, SP1: Si elle

SP, SPF, SP1: geito

70

–E eu sou tolo para dizer que sou gente de

vossamecê? Eu até – vossamecê me perdoe – sou

capaz da falar mal do meu patrão pra o sujeito não

desconfiá.

SP, SPF, SP1: p’ra; SP:

vossamicê, SPF, SP1: p’ra;

VOSSAMICÊ;

SPF, SP1: perdoe; fallar; P’RA;

DESCONFIÁ

–Está perdoado desde já, Tomás – garantiu

Abílio com um sorriso bondoso e significativo.

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: Abilio

75

–O diabo é que eu não sei adonde o sujeito

mora e como é o seu nome.

SP: adonde; SPF, SP1: ADONDE

–O nome é João Lopes. É empreiteiro na

fazenda de um tal coronel Paulino, lá para as matas de

Mojiguaçú.

SP, SPF, SP1: mattas

SP, SPF, SP1: Mogy Guassú

80

–Sei muito adonde é essa fazenda, que eu já

passei pru lá faz dois anos. Não quis me empregá lá

pruquê lá pra Ribeirão Preto. Até me alembrá dessa

empreitada.

SP: adonde, SPF, SP1: ADONDE

SP, SPF, SP1: dous; SP;annos,

SPF, SP1: ANNOS; quiz; SP:

empregá; pruquê; pr’a; alembrá,

SPF, SP1: EMPREGÁ; PRUQUÊ

p’ra; ALEMBRA; d’essa

85

–Pois é lá que o João Lopes, de sociedade com

um tal Calisto, pegou uma empreitada de plantação de

café que já está para ser entregue ao fazendeiro.

SP, SPF, SP1: Calixto

–Dinheirão, hem, patrão? Esses empreito é SP: empreito; ganhá, SPF, SP1:

EMPREITO; GANHÁ

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para se ganhá muito, não é?

90

–Com certeza. Os dois empreiteiros vão

amochar268 um bom cobre.

SP: amochar, SPF, SP1:

AMOCHAR

–Uns conto de réis, não, patrão? SP: conto, SPF, SP1: CONTO

–Que dúvida? SP, SPF, SP1: duvida

–E vão logo se arretirando269 pra Bahia, não? SP: arretirando, SPF, SP1:

ARRETIRANDO; p’ra

–Logo que receberem o dinheiro.

95

–E isso será já? – indagou Tomás com uma

curiosidade que denunciava os seus intentos

reservados.

SP, SPF, SP1: Thomaz

–Isso agora é que eu sei.

–Mas eu há de sabê. SP: ha de sabê, SPF, SP1: HA DE

SABÊ.

100 –Como, Tomás? Para que? SP, SPF, SP1: Thomaz

–Eu, com sua licença, vou trabalhá de jorná

na fazenda do tá coroné.

SP: trabalhá de jorná; tá coroné,

SPF, SP1: TRABALHÁ DE

JORNÁ; TÁ CORONÉ.

–Não é bom, Tomás; isso é uma imprudência.

Depois... o que vai você fazer ao João?

SP, SPF, SP1: Thomaz;

imprudencia

SP, SPF, SP1: vae

105

–Nada; apena puxá as oreia do safado quando

eu achá jeito.

SP: apena puxá as oreia; achá,

SPF, SP1: APENA PUXÁ as

OREIA; ACHÁ; geito

–Se ele não o ofendeu! SP, SPF, SP1: Si; elle; offendeu

–Mas ofendeu o patrão, e um camarada cumo

eu é pra isso.

SP, SPF, SP1: offendeu; SP:

cumo; p’ra, SPF, SP1: CUMO;

P’RA

110 –Não se anda puxando as orelhas dos outros

268 Amochar: guardar ou entesourar avarentamente. 269 Arretirando: retirando, ou seja, indo para a Bahia.

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com essa facilidade, Tomás. SP, SPF, SP1: Thomaz

–Eu sei como essas coisa é feita. SP: coisa é feita, SPF, SP1:

COISA É FEITA

–E se o outro for valente? SP, SPF, SP1: si

115

–Aí é qui é bom. Indas qui ele seje valente

cuma um queixada270, nós empana.

SP: Ahi; qui; indas qui; elle; seje;

cuma, SPF, SP1: Ahi; QUI;

INDAS QUI; elle; SEJE; CUMA

–Não, Tomás; não vá, que nisso você vai

envolver o meu nome e me complicar.

SP, SPF, SP1: Thomaz; n’isso;

vae

–Eu tou muito acostumado, patrão. Não tenho

medo, já lhe disse.

SP: tou, SPF, SP1: ’TOU

120

–Não convém, Tomás, porque nessa inimizade

também está envolvido o nome de uma mocinha

italiana, que é noiva de seu patrício. Você sabe que

italiano não é para graças.

SP, SPF, SP1: convem; Thomaz;

n’essa

SP, SPF, SP1: patricio

125

–Quá! Eu já tive às vorta com um desses

gringo. Era um valentão, andei os puxavante com ele

e... – vossamecê me perdôe – mandei ele de presente

pros inferno.

SP: Quá; tive; ás vorta; d’esses;

gringo, SPF, SP1: QUÁ; TIVE; ás

VORTA; d’esses; GRINGO

SP, SPF, SP1: os puxavante;

co’elle; VOSSAMISSÊ; perdôe;

elle; PR’OS INFERNO

–Você fez isso, Tomás? E a cadeia? E o

processo?

SP, SPF, SP1: Thomaz

130 –Cadeia e purcesso foi feito p’ros home. SP: purcesso foi feito p’ros home,

SPF, SP1: PURCESSO FOI

FEITO P’ROS HOME.

–Não foi preso?

–Mudei de terra e... – terminou Tomás

hesitando com uma reticência.

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: reticencia

270 Queixada: mamífero da família dos taiaçuídeos de coloração negro-pardacenta, pelagem das costas muito longa. Difere do caititu por ter os lábios brancos. Quando acuado, bate forte o queixo e é valentíssimo.

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hesitando com uma reticência.

–E de nome, não?

135 –Já que vossamecê adivinhou... eu já tinha o

nome mudado.

SP: vossamicê, SPF, SP1:

VOSSAMICÊ; advinhou

–Por causa de outra imprudência? SP, SPF, SP1: imprudencia

–Sim, patrão. Eu confesso porque sei que

vossamecê guarda segredo.

SP: vossamicê , SPF, SP1:

VOSSAMICÊ

140

–Não tenha receio de mim. Eu lhe quero bem,

Tomás; estou muito satisfeito com você e nada tenho

que dizer do seu procedimento a meu respeito.

Acredita?

SP, SPF, SP1: Thomaz

145

–Se acredito! Eu nunca tive um patrão que

entrasse no meu coração cuma vossamecê.

SP, SPF, SP1: Si

SP: cuma vossamicê, SPF, SP1:

CUMA VOSSAMICÊ

–E qual é o seu nome verdadeiro?

–Esta! Isso me pode cumpricá. SP: cumpricá, SPF, SP1:

CUMPRICÁ

–Já vê que você não tem confiança no seu

patrão – observou Abílio, fingindo-se desgostoso.

SP, SPF, SP1: Abilio (,)

150 –Não se azangue, patrão, que eu fico triste. SP: azangue, SPF, SP1:

AZANGUE

155

–Não é por curiosidade, Tomás; é para seu

bem. Muita vez descobrem o seu verdadeiro nome e

querem prendê-lo. Não é bom que eu, como

testemunha, me apresente em sua defesa? Você sabe

que eu tenho valia e amigos para quem o meu dito é

sempre uma verdade.

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: prendel-o

SP, SPF, SP1: valla

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–Lá isso é verdade, patrão. Eu lhe digo: eu

chamava Gi – afirmou Tomás, dando-se outro nome

falso dos muitos que, decerto, já tinha usado.

SP, SPF, SP1: GI; Thomaz (,)

160

–Além do nome que você tomou por último,

não se deu por outros?

SP, SPF, SP1: Alem; ultimo

165

–Home, às vêis a gente percura outro nos

apêrto da puliça. Eu por izemplo, já chamei Migué,

outras vêis Rafaé, mas porém faz muito tempo qui eu

sou Tomás.

SP: home; vêis; percura; apêrto;

puliça; izemplo; Migué; vêis

raphaé; qui;Thomaz; SPF, SP1:

HOME; VÊIS; percura; APÊRTO;

PULIÇA; izemplo; MIGUÉ; VÊIS

RAPHAÉ; QUI;Thomaz.

–E se você for para a fazenda do coronel

Paulino, ainda mudará o nome? – inqueriu Abílio,

dando indiretamente o consentimento pedido pelo seu

camarada.

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: Abilio (,)

SP, SPF, SP1: indirectamente

180

–Vossamecê acha bom? Eu quando passei lá,

não dei nome nenhum.

SP: vossamicê; quando, SPF, SP1:

VOSSAMICÊ; QUANDO

–Então, pode dar o nome de Tomás. SP, SPF, SP1: Thomaz

185

–E cum essa cunversa o patrão se esqueceu de

me dizê pruquê o tale João ficou cum raiva de

vossamecê.

SP: cum; cunversa dizê pruquê;

tale; cum; vossamicê, SPF, SP1:

CUM;CUNVERSA DIZÊ

PRUQUÊ O TALE; CUM;

VOSSAMICÊ

200

–Foi por uma coisa simples, Tomás. João era

meu amigo e é casado na Bahia. Meteu-se a namorar

uma italianazinha filha de um tal Marco, que trabalha

com a família na fazenda do coronel. Ora, a moça é

noiva de um patrício que também está trabalhando na

SP, SPF, SP1: cousa; Thomaz

SP, SPF, SP1: Metteu-se

SP, SPF, SP1: familia

SP, SPF, SP1: patricio; tambem

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fazenda. Eu, como amigo, vendo o perigo que João

Lopes corria, meti-me a dar-lhe conselhos reprovando,

o seu procedimento. Foi isto bastante para que ele

rompesse a nossa amizade.

SP, SPF, SP1: metti-me;

reprovando (,)

SP, SPF, SP1: elle

205 –Ah! bandaio! Pois eu vou vê esse negoço. SP: bandaio; vê; negoço, SPF,

SP1: BANDAIO; VÊ; NEGOÇO

–Nada de imprudência, Tomás. Acho bom que

você não se meta com isso.

SP, SPF, SP1: imprudencia(,)

Thomaz

SP, SPF, SP1: metta

–Ora, patrão! Tenha fiúza271 no seu camarada. SP, SPF, SP1: fiuza

–Tenho muita; mas você é moço, é afobado...

210 –Não tenha receio, que eu não faço

estrupiço.272

SP: estrupiço, SPF, SP1:

ESTRUPIÇO

215

Por aí assim ainda os dois miseráveis

conversaram muito; Abílio insinuando esquerda e

astuciosamente ao camarada o seu modo de agir na

fazenda, este continuando a protestar que nada faria

que pudesse comprometer a si e ao patrão.

SP, SPF, SP1: ahi; dous;

miseraveis

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: podesse;

comprometter

XVII

Dias depois do que narramos no capítulo

anterior, Tomás, bem instruído por Abílio que,

inoculando no seu espírito, como vimos, idéias que

SP, SPF, SP1: capitulo

SP, SPF, SP1: Thomaz; instruido;

Abilio

SP, SPF, SP1: espirito; idéas

271 Fiúza: confiança. 272 Estrupiço: estrupício, asneira, dano, prejuízo.

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5

10

reforçassem as suas propensões para o mal, entanto

parecia encaminhá-lo à prudência e boa conduta; –

apresentou-se a João e Calisto pedindo-lhe colocação

a jornal. Mostrando-se humilde, de aparência

insinuante e agradável, soube iludir aos dois

empreiteiros que, ouvindo as suas lamúrias e queixas

contra o patrão que deixava, condoeram-se dele e

admitiram-no no serviço.

SP, SPF, SP1: emtanto

SP, SPF, SP1: encaminhal-o; á

prudencia; conducta

SP, SPF, SP1: Calixto; collocação

SP, SPF, SP1: apparencia

SP, SPF, SP1: agradavel; illudir;

dous

SP, SPF, SP1: lamurias

SP, SPF, SP1: d’elle; admitiram-

n-o

15

Uma vez servido no que havia pedido, Tomás

tornou-se comunicativo e pôs-se logo a gabar os

novos patrões, comparando-os com o anterior, a quem

depreciava para mais relevo dar aos dois empreiteiros.

Nesse empenho, abriu, sem avaliar a importância dela,

uma falha em sua astúcia. “Quem muito fala, muito

erra”, diz o vulgo.

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: communicativo;

pôz-se

SP, SPF, SP1: patrões (,)

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: N’esse; importancia

d’ella

SP, SPF, SP1: astucia

20

Tomás, sem calcular que ia fazer um mal a

Abílio, antes supondo que encetava o seu programa

menosprezando-o para evitar desconfianças como

planejara, chegou a pronunciar o seu nome suposto.

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: Abilio; suppondo;

programma

SP, SPF, SP1: supposto

25

–Arre! Tou livre daquele peste do capitão

Rufino – disse por fim.

SP, SPF, SP1: ‘Tou; d’aquelle

–Como?! – perguntou João com interesse,

lembrando-se que Aristides lhe falara em um capitão

Rufino envolvido, como uma das mais salientes

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30

figuras, na triste notícia que lhe chegava de sua

esposa.

SP, SPF, SP1: noticia

35

–Esse capitão Rufino, patrão, era o meu

patrão. Era um home ruim, não me pagava dereito e,

lendes disso, só vivia abaixo e acima. Eu já não podia

agüenta. Larguei ele pra non morrê esbilinguido de

non dormi e non comê.

SP: home; dereito; lendes; d’isso;

aguentá; larguei elle p’ra non

morrê esbilinguido de non dormi e

non comê., SPF, SP1: HOME;

DEREITO; LENDES; d’isso;

aguentá; LARGUEI ELLE P’RA

NON MORRÊ ESBILINGUIDO

DE NON DORMI E NON

COMÊ.

–Onde mora este capitão Rufino? – indagou

João – É algum fazendeiro?

–Quá fazendeiro, patrão? Pois se o home non

esquenta lugá!

SP: quá; home non esquenta lugá,

SPF, SP1: QUÁ; HOME NON

ESQUENTA LUGÁ!

40

45

João foi atalhado por Calisto nas suas

indagações. Como mais prático, considerou

inconveniente dar trela a gente da ordem de Tomás. A

sua boa fé era tal como a do seu companheiro; por isso

interrompeu-o, fazendo-lhe um sinal significativo que

o outro compreendeu.

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: pratico

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: interrompeu-o (,);

signal

SP, SPF, SP1: comprehendeu

50

–Está bem, seu Tomás – disse Calisto. – Já é

de tarde, temos que largar o serviço, e é preciso que

você se acomode na colônia, que aqui os cômodos dão

somente para nós.

Informou ao novo jornaleiro de tudo quanto

era preciso para alojar-se. Tomás esperou os outros

trabalhadores, e com eles tomou o caminho da

SP, SPF, SP1: Thomaz; Calixto

SP, SPF, SP1: accomode; colonia;

commodos

SP, SPF, SP1: sómente

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: elles

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trabalhadores, e com eles tomou o caminho da

colônia, sempre conversando e indagando

maliciosamente para orientar-se no modo de bem

servir a Abílio.

SP, SPF, SP1: colonia

SP, SPF, SP1: Abilio

55

60

65

Ao chegarem os trabalhadores nos

alojamentos da colônia, já Tomás sabia qual era a

residência onde se aboletava Genaro e muitas coisas

mais que lhe serviriam no desenvolvimento do seu

plano maldoso. Tomás procurou o galpão vizinho da

residência de Marco e, no serão escolheu a lareira

preferida por Genaro. Um novo trabalhador é logo

cercado de indagações, por isso muitos dos jornaleiros

vieram formar círculo com os costumados na lareira

onde Tomás se achava, na maior ansiedade de ouvir o

vindiço.

SP, SPF, SP1: colonia; Thomaz

SP, SPF, SP1: Gennaro; cousas

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: visinho; residencia

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: circulo

SP, SPF, SP1: Thomaz; anciedade

70

Tomás, podemos dizer, foi o conferencista

daquela sessão com ares de solene, e auditório pendia

dos seus lábios, ouvindo as mentiras que borbotavam

a flux da sua boca. Andara por Cecas e Mecas,

conhecia personagens de alta categoria, trabalhara em

um sem número de fazendas, visitara a Capital do

Estado e as principais cidades; enfim, segundo o que

asseverava, era um homem extraordinário, desses que

como dizia o vulgo, “caem do céu por descuido.” Os

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: d’aquella; solemne;

auditorio

SP, SPF, SP1: labios (,)

SP, SPF, SP1: bocca

SP, SPF, SP1: numero

SP, SPF, SP1: principaes; emfim

SP, SPF, SP1: extraordinario;

d’esses

SP, SPF, SP1: cahem

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400

75

ouvintes, silenciosos, embasbocados, viam em Tomás

um homem precioso, um companheiro simpático que

muito os divertiria ao serão. Até o jovem napolitano

sentiu-se atraído pelos modos e semblante de Tomás,

tanto mais que este a ele se dirigia de preferência.

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: sympathico

SP, SPF, SP1: divertirião; joven

SP, SPF, SP1: attrahido, Thomaz

SP, SPF, SP1: elle, preferencia

80

85

–Desculpe-me, Sr. João – disse Calisto logo

que Tomás se retirou. – Eu interrompi a sua

conversação com aquele camarada, porque é um

gabolas desses que querem tomar a mão quando se

lhes dá o pé. O Senhor, que estava entretido, talvez

não notasse o que eu notei.

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: aquelle

SP, SPF, SP1: d’esses

SP, SPF, SP1: Sr.

–A minha conversação com ele tinha um fim:

desde que conversei com Aristides procuro saber

quem é e onde pára um tal capitão Rufino por ele

referido, e só agora ouvi outra referência ao seu nome.

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: referencia

90 –É seu conhecido?

95

–Não. Alguém, em presença do meu cunhado,

que lhe é desconhecido, referira a outro notícias de

minha família, que ouvira de pessoas diversas em

Caetité, e, entre elas, falou no tal Rufino como o

principal informante dessas notícias. Como em Caetité

nunca ouvi falar-se em tal sujeito, nem o conheço,

pareceu-me a princípio que era um personagem

fantástico, inventado pelo informante. Agora, porém,

SP, SPF, SP1: Alguem

SP, SPF, SP1: noticias

SP, SPF, SP1: familia

SP, SPF, SP1: ellas

SP, SPF, SP1: d’essas; noticias

SP, SPF, SP1: principio

SP, SPF, SP1: phantastico (,);

porem

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401

100

convenci-me da existência do capitão Rufino, e ardo

por encontrá-lo.

SP, SPF, SP1: existencia

SP, SPF, SP1: encontral-o.

–Ainda uma vez peço-lhe desculpas. Eu nada

sabia desse seu interesse, senão até o ajudaria; mas,

em todo o caso, procurarei remediar a minha falta

fazendo a inquirição que você desejava fazer.

SP, SPF, SP1: d’esse; sinão

SP, SPF, SP1: inquerição

105

–Muito agradeço, meu amigo, esse serviço que

me vai prestar. Aristides, que tem o mesmo empenho

que eu, será sabedor do que nos disse o Tomás, e

estou certo que me ajudará nisso também.

SP, SPF, SP1: vae

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: n’isso; tambem

110

115

Nesse mesmo dia João procurou Aristides e

comunicou-lhe que achara o rastro do capitão Rufino

pelo novo jornaleiro admitido no seu trabalho.

Convencidos de que se não tratava de um personagem

imaginário, João e o seu cunhado, que foi inteirado da

promessa de Calisto, discutiram os meios de que

deviam lançar mão para conseguirem revelações de

Tomás, porém de modo que o camarada não

desconfiasse do interesse que os levava a fazer as

indagações.

SP, SPF, SP1: N’esse

SP, SPF, SP1: communicou-lhe

SP, SPF, SP1: admittido

SP, SPF, SP1: imaginario

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: Thomaz; porem

120

A providência, porém, reservava a João e

Aristides uma surpresa agradabilíssima que muito os

alegrou: o capitão Rufino foi descoberto e

desmascarado na Cidade do Ribeirão Preto,

SP, SPF, SP1: Providencia; porem

SP, SPF, SP1: surpreza;

agradabilissima; alegrou-os

(Emendou ênclise para próclise.)

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125

casualmente, e o fato deu brado e foi noticiado pelos

jornais para vergonha de Abílio, que teve o seu

Waterloo, como o leitor verá.

SP, SPF, SP1: facto

SP, SPF, SP1: jornaes; Abilio

130

135

Tomás conseguiu conquistar, mediante os seus

artifícios e refinada hipocrisia, a confiança e estima

dos seus ingênuos companheiros de trabalho, homens

ignorantes que não tratavam, nem o poderiam

conseguir, carente da necessária perspicácia e mesmo

de interesse, de estudar a fundo o caráter do vindiço.

Preocupavam-se apenas com a diversão da noite,

ouvindo os sermões do tagarela e, com as suas

histórias e anedotas, deleitando-se no descanso.

Assentado sempre ao lado de Genaro, dirigia-se-lhe

especialmente mostrando-se risonho e amável, e

dispensando toda a sorte de agrados. Consegui por fim

o seu intento, ganhando a confiança do jovem italiano,

que foi fascinado pela serpente diabólica.

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: artifícios

hypoceresia

SP, SPF, SP1: ingenuos

SP, SPF, SP1: necessaria;

perspicacia

SP, SPF, SP1: caracter

SP, SPF, SP1: Preoccupavam-se

SP, SPF, SP1: historias;

anecdotas; descanço

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: amavel

SP, SPF, SP1: porfim

SP, SPF, SP1: joven

SP, SPF, SP1: diabolica

140

145

O manhoso instrumento de Abílio, captando a

inteira confiança do mancebo, tornou-se-lhe uma

espécie de mentor; dava-lhe conselhos sobre o modo

de viver naquela terra onde os costumes e hábitos

eram inteiramente diferentes dos da sua. Então

rasgava sedas à raça italiana elogiando a sua

capacidade no trabalho, a sua conduta exemplar, a sua

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: especie

SP, SPF, SP1: n’aquella; habitos

SP, SPF, SP1: differentes

SP, SPF, SP1: á raça

SP, SPF, SP1: conducta

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honestidade e toda uma porção de bons predicados

que muito se avantajavam dos nossos.

150

–Oia, seu Jinuaro – dizia – eu conheço munto

seus patriço. Um italiano é gente qui não se cumpara

c’os brasilêro. É ouro sem liga.

SP: o’ia, seu jinuaro; munto;

patriço; ataliano; qui; cumapra;

c’os brasilêro, SPF, SP1: O’IA,

SEU JINUARO; MUNTO;

PATRIÇO; ATALIANO; QUI;

CUMAPRA; c’os BRASILÊRO

155

160

165

Passava a ilustrar o que informava com fatos

seus conhecidos, como dizia, que punham em relevo

as altas qualidades dos italianos e deprimiam o caráter

dos nossos patrícios. Genaro, encantado com as

balelas do meliante, tornou-se seu amigo dedicado e ia

aceitando tudo quanto ouvia sem examinar, tão cego

se achava, deslumbrado pelas mistificações e lisonjas

de Tomás. A confiança que o pobre moço entrou a

depositar no seu amigo de fresca data chegou a ponto

de não dispensar Genaro a sua companhia nos

passeios e caçadas que faziam os trabalhadores nos

dias de folga. Então, andando os dois pelas estradas,

culturas e florestas, o napolitano, familiarizado com o

amigo, tornava-se comunicativo e não tinha reservas

no seu conversar. O camarada dava-lhe trela e punha-

se a ouvir, apenas aparentando quando era preciso

emitir um conselho ou dar resposta a uma pergunta do

outro.

SP, SPF, SP1: illustrar; factos

SP, SPF, SP1: caracter

SP, SPF, SP1: patricios; Gennaro

SP, SPF, SP1: acceitando

SP, SPF, SP1: mystificações

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: ao ponto

(Emendou-se.)

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: communicativo

SP, SPF, SP1: emittir

170 Esperava Tomás que o napolitano falasse nos SP, SPF, SP1: Thomaz; fallasse

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175

180

seus amores, já preparado para envenená-los; mas

nesse assunto Genaro guardava reserva. Muito

estimava e respeitava o velho Marco, com quem viera

da terra e que conhecia como honesto e zeloso pela

honra da sua família, e muito temia o gênio áspero da

velha, que se destemperava à coisa a mais simples, -

para conversar com um estranho, por maior confiança

que nele depositasse, a respeito de Giudita. Marco

muito se agastaria se soubesse que o nome de sua filha

era motivo de comentários entre os trabalhadores.

Isso, além de tudo, prejudicaria a pretensão dos jovens

namorados, certamente se casariam quando Genaro

dispuzesse de algumas economias.

SP, SPF, SP1: envenenal-os

SP, SPF, SP1: n’esse; assumpto;

Gennaro

SP, SPF, SP1: familia; genio;

aspero

SP, SPF, SP1: á cousa

SP, SPF, SP1: extranho

SP, SPF, SP1: nelle; Giuditta

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: comentarios

SP, SPF, SP1: alem; pretenção

SP, SPF, SP1: Gennaro

185

190

Em um dos seus passeios de domingo, no qual

Tomás levava a sua arma de caça, antiga, de um cano

trochado273 de aço e escovada por cápsula, o

camarada, já bem estudado o meio de encetar o enredo

que planeara de acordo com Abílio e por ele

insinuado, aproveitou-se de se acharem a sós para

lançar a semente ao terreno que vinha preparando.

Desta vez Genaro limitava-se a ouvir e Tomás

comentava os hábitos dos outros trabalhadores,

notando defeitos de glutoneria, de preguiça e outros,

mas dos compatriotas, que dos estrangeiros nada tinha

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: trochado; capsula

SP, SPF, SP1: accordo; Abilio;

elle

SP, SPF, SP1: D’esta; Gennaro;

Thomaz

SP, SPF, SP1: commentava;

habitos

SP, SPF, SP1: glotoneria

273 Trochado: diz-se do cano de espingarda feito de uma fita de aço espiralada.

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195

mas dos compatriotas, que dos estrangeiros nada tinha

que notar de mal: eram sempre honestos, temperantes,

diligentes e dignos de estima. Marco, por exemplo,

dizia na sua linguagem arrevesada, era um homem às

direitas, de pouca conversa, sério e trabalhador, e

tinha uma mulher que era uma fera no trabalho; mas...

SP, SPF, SP1: deligentes

SP, SPF, SP1: as direitas

(Emendou-se acrescentando

crase.); serio

SP: fera, SPF, SP1: FÉRA

200

205

210

Tomás estacou nessa reticência e, sorrindo de

um modo dúbio, aproveitou-se da circunstância de

avistar um mutum pousado no galho de uma árvore

para disfarçar o seu propósito deixando Genaro à

espera da solução daquele “mas” que o camarada

pronunciara “mais” quando, atirada a bonita caça,

pudesse Tomás continuar a conversação. Entretanto, o

tiro explodiu, o mutum274 caiu e foi apanhado e o

camarada, depois de carregar a arma de novo, dispôs-

se a seguir caminho pelo seio da floresta. É bem certo

que o astucioso camarada percebeu a ansiedade do

jovem napolitano, claramente manifesta no seu

semblante triste e pálido, o que examinou logo

olhando o companheiro de esguelha; mas

propositalmente fez-se esquecido.

SP, SPF, SP1: Thomaz; n’essa

reticeencia

SP, SPF, SP1: dubio;

circumstancia

SP, SPF, SP1: arvore

SP, SPF, SP1: proposito; Gennaro;

á espera

SP, SPF, SP1: daquelle

SP, SPF, SP1: podésse; Thomaz;

Entretanto (,)

SP, SPF, SP1: cahiu

SP, SPF, SP1: dispoz-se

SP, SPF, SP1: anciedade; joven

SP, SPF, SP1: pallido

215

Aquele “mas” soava aos ouvidos de Genaro

como um dobre de finados, importuno, infernal que o

SP, SPF, SP1: Aquelle; Gennaro

274 Mutum: nome que se dá a diversas aves galináceas, família dos cracídeos, que habitam as matas do Brasil, geralmente em pequenos grupos.

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220

225

amargurava. Temia que aquela reticência de Tomás,

que não sabia proposital e insidiosa, contivesse

alguma argüição contra a sua Giudita, ou, antes, ao

seu entranhado amor por ela. Para ele a família de

Marco era como um sacrário no qual guardava o seu

ídolo resplendente na sua beleza, nas suas virtudes,

no seu todo somático de uma formosura encantadora

e no perfume trescalante de uma alma pura e bem

formada; tudo transparecendo em um sorriso que para

ele era uma aurora de venturas.

SP, SPF, SP1: aquella; reticencia;

Thomaz

SP, SPF, SP1: Giuditta

SP, SPF, SP1: ella; elle; familia

SP, SPF, SP1: sacrario

SP, SPF, SP1: idolo; belleza

SP, SPF, SP1: sommatico

SP, SPF, SP1: elle

230

235

240

Tomás havia se referido com seus gabos ao

velho Marco e à sua esposa esbarrando naquele “mas”

que decerto ia ter à única pessoa restante daquela

família, justamente sua querida Giudita, por quem o

jovem ragazzo daria a sua vida se tanto fosse preciso à

sua felicidade. Por fim, quando já haviam caminhado

alguns passos pela floresta, Genaro não se pôde conter

e lembrou ao camarada que não havia terminado o que

ia dizendo havia pouco sobre a família de Marco.

Tomás fez-se esquecido. Não se lembrava do que

dissera. A caçada do mutum distraiu-o. Genaro

avivou-lhe a memória referindo-lhe palavra por

palavra o que ele dissera até o “mas”. Era uma bobage

– disse Tomás, que lhe não convinha dizer. Estava

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: á sua; n’aquelle

SP, SPF, SP1: á unica; daquella

SP, SPF, SP1: familia; Giuditta

SP, SPF, SP1: joven; RAGAZZO;

si; á sua

SP, SPF, SP1: Porfim

SP, SPF, SP1: Gennaro; pôde-se

(Emenou-se ênclise para

próclise.)

SP, SPF, SP1: familia; Thomaz

SP, SPF, SP1: distrahiu-o.

Gennaro

SP, SPF, SP1: memoria

SP, SPF, SP1: elle; BOBAGE

SP, SPF, SP1: Thomaz

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arrependido de ter começado aquilo, porque se tratava

de melindres de família.

SP, SPF, SP1: aquillo

SP, SPF, SP1: familia

245

250

Genaro ainda mais se alvoroçou. Não lhe

restava mais dúvida de que se tratava da sua querida,

segundo já pensava. Apressou-se, embargou o andar

do companheiro e, com ar de súplica, pediu-lhe com

instância que explicasse quais eram esses melindres.

Disse-lhe que se tratava de compatriotas seus, quase

parentes, a quem tinha direito de exigir que o outro lhe

dissesse francamente o que havia. Muita vez tratava-se

de uma calúnia, e ele Genaro estava pronto, fosse em

que terreno fosse, a defender tão honrada gente.

SP, SPF, SP1: Gennaro;

alvoraçou-se (Emendou-se ênclise

para próclise); duvida

SP, SPF, SP1: supplica

SP, SPF, SP1: instancia; quaes

SP, SPF, SP1: quasi

SP, SPF, SP1: calumnia; elle;

Gennaro; prompto

255

–Eu não sou home de calunas, Jinuaro –

reclamou Tomás enfadando-se, – nem arreceio seus

arranco.

SP: home; calumnas, Jinuaro;

Thomaz; arreceio, SPF, SP1:

HOME de CALUMNAS,

JINUARO; Thomaz enfadando-

se(,); ARRECEIO

–Não digo você. Pode ter ouvido de outra

pessoa...

–Eu vi cum estes óio qui a terra tem de cumê. SP: cum estes óio qui; cumê, SPF,

SP1: CUM ESTES ÓIO QUI;

CUMÊ

–Viu o que?

260 –Ocê guarda segredo? SP: Ocê, SPF, SP1: OCÊ

–Guardo – respondeu Genaro depois de

alguma hesitação.

SP, SPF, SP1: Gennaro

–É a mocinha. Eu vi ela namorando. SP: ella, SPF, SP1: ELLA

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–Giudita?! SP, SPF, SP1: Giuditta

265 –Sim.

–Com quem?

–Com patrão qui vai todo domingo passeá na

casa de seu Marco.

SP: qui; vae; passeá, SPF, SP1:

QUI; vae; PASSEÁ

–Qual deles? SP, SPF, SP1: d’elles

270

–Vou dizê, mais ocê me prometeu guardá

segredo. É o meu patrão, aquele home gordo, branco e

rosado.

SP: dizê, mais ocê; guardá, home,

SPF, SP1: DIZÊ, MAIS OCÊ;

prometteu; GUARDÁ, aquelle;

HOME

–Senhor Joan Lope?

–Tá e quá. SP: Tá; Quá, SPF, SP1: TÁ;

QUÁ.

275

–É... –Genaro ia dizer “é mentira” mas

conteve-se. Estava escarlate de indignação.

SP, SPF, SP1: Gennaro

–É o que? – perguntou Tomás com ar

ameaçador.

SP, SPF, SP1: Thomaz

–É impossível. SP, SPF, SP1: imposivel

280

–Impussive é Deus pecá! Jinuaro, ocê é

menino pra mim. ´Tá cego. Abre os óio, qui moça é

pórva qui ´ta junto de fogo! despois qui tem ocê

co’isso? Se dissesse qui a moça era sua irmã, inda vá.

SP: Impussive; Deus peccá!

Jinuaro; p’ra; ´tá; abre os óio qui;

pórva qui ´ta; despois qui; ocê

co’isso; dissesse qui; irmã, inda

vá., SPF, SP1: IMPUSSIVE;

DEUS PECCÁ! JINUARO;

P’RA; ´TÁ; ABRE OS ÓIO QUI;

PÓRVA QUI ´TA; DESPOIS

QUI; OCÊ co’isso; DISSESSE

QUI; IRMÃ, INDA VÁ.

285

Tomás jogava verdes como diz o vulgo; mas

Genaro, por forma alguma, revelaria a sua inclinação

amorosa. Alegou que se tratava de uma sua

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: Allegou

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290

295

compatriota cujos pais muito lhe mereciam. Tomás

mostrou-se bondoso e conselheiro. Que toda moça

namora – disse, – isso em nada prejudica a sua

reputação. Elas namoram por inocência, e mesmo para

irem escolhendo quem lhes agrade, até acertarem. Os

culpados são os homens, que namoram por malícia. O

João, por exemplo, obrava muito mal em estar fazendo

isso. Era um homem casado, e está-se vendo que

queria era perder a pobre mocinha.

SP, SPF, SP1: Paes; Thomaz

SP, SPF, SP1: namora, - (,-)

SP, SPF, SP1: Ellas; innocencia

SP, SPF, SP1: malicia

300

Nesses termos continuou o miserável a açular

o ciúme do jovem napolitano e a soprar no seu ânimo

um ódio entranhado contra João, o que conseguia para

desempenho do seu compromisso firmado com Abílio.

Nesse dia foi todo o trabalho de Tomás incitar o

ciúme e o rancor de Genaro, que o ouvia tristemente e

taciturno acreditando nas calúnias e infames mentiras

do seu falso amigo.

SP, SPF, SP1: N’esses; miseravel

SP, SPF, SP1: ciume; joven;

animo

SP, SPF, SP1: odio

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: N’esse; Thomaz

SP, SPF, SP1: ciume; Gennaro

SP, SPF, SP1: calumnias

305

310

No dia seguinte, convencido de que Genaro

estava preparado como era seu desejo; pois chegou a

manifestar por palavras amargas e impregnadas o

desejo de uma vingança na altura da ofensa que

supunha ter recebido de João, Tomás tomou a

deliberação de abandonar o serviço que fazia na

empreitada e procurar o seu infame patrão a dar conta

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP: o seu

SP, SPF, SP1: offensa

SP, SPF, SP1: suppunha; Thomaz

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315

320

do êxito que conseguiu. Sabia ele que encontraria

naquela data mais ou menos, aquele de quem recebera

a abjeta incumbência. Antes, porém, recomendou

muito a Genaro que não envolvesse o seu nome nesse

negócio, pois João Lopes era seu patrão e podia fazer-

lhe mal. Apresentando-se no terceiro dia a João e

Calisto, Tomás disse-lhes, com a cara a mais

compungida que pôde arranjar, que havia recebido

recado de um irmão que estava à morte e chamava-o

com pressa. Recebeu as sua jornas e viajou.

SP, SPF, SP1: exito; elle

SP, SPF, SP1: naquella; aquelle

SP, SPF, SP1: abjecta;

incumbencia; porem

recommendou; Gennaro; n’esse

SP, SPF, SP1: negocio

SP, SPF, SP1: Calixto; Thomaz;

disse-lhes (,)

SP, SPF, SP1: á morte

XVIII

5

10

15

Decorrido um mês mais ou menos da

entrevista de Aristides com seu pai, recebeu este a

resposta da carta dirigida a Serafim. O velho

professor não esteve mais por meias medidas e

escreveu, em laudas e laudas, um relatório

circunstanciando de tudo quanto Abílio tinha feito

contra Maria e o seu esposo ausente. Começou

lembrando a Oliveira a carta falsa em nome da noiva

de João e seguiu noticiando as outras falsificações

que o perverso fez depois das letras passadas por

João. Não se esqueceu de relatar as perseguições

SP, SPF, SP1: mes

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1:

Seraphim

SP, SPF, SP1:

relatorio; circumstanciando

SP, SPF, SP1: Abilio

SPF, SP1: outras

falcificação (emendou-se.);

SP, SPF, SP1: lettras

SP, SPF, SP1:

pratica; hypocrita

SP, SPF, SP1:

riciculisou

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35

40

postas em prática pelo hipócrita mancebo já

procurando seduzir a esposa de João inclusive o

desfecho que o ridicularizou e encheu de rancor, no

qual figuraram a negra velha e os dois meeiros, já

incendiando cercas e culturas, arrancando um marco

e apropriando-se, mediante uma avença, de trecho de

terra que não era seu. Historiou o caso do Roberto,

propositalmente recomendado por ele com um fim

maldoso, como ficou demonstrado afinal com o seu

despropósito e retirada para a casa de Abílio, onde

achou acolhimento bondoso e de onde tentou contra a

vida dele professor. Nada ficou por narrar do que já

se acha inteirado o leitor nos capítulos anteriores.

Franco e leal, deu a razão de não ter há mais tempo

desvendado as patifarias de Abílio. É que não

supunha que ele fosse capaz de chegar a tanto, e

esperava regenerá-lo, pois ia francamente reclamar e

era acolhido com benevolência e respeito achando

sempre um meio de justificar-se ou lançar a culpa a

outro. Os últimos atos de Abílio a contar da frustrada

tentativa de sedução degeneraram o professor, como

informava, de pôr o seu antigo discípulo no bom

caminho. Por isso tomou medidas rigorosas no

sentido de garantir o lar de João e o alvitre de tudo

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1:

recommendado; elle

SP, SPF, SP1:

desproposito; Abilio

SP, SPF, SP1: d’elle

SP, SPF, SP1:

capitulos

SP, SPF, SP1: ha

SP, SPF, SP1:

Abilio; suppunha

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1:

regeneral-o,

SP, SPF, SP1:

benevolencia

SP, SPF, SP1:

ultimos; actos; Abilio

SP, SPF, SP1:

seducção

SP, SPF, SP1:

discipulo

SP, SPF, SP1: d’essa

SP, SPF, SP1:

delberação,

SP, SPF, SP1:

desapparecido

SP, SPF, SP1: la; S.

Paulo

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revelar aos interessados, vindo a carta de Oliveira ao

encontro dessa sua deliberação, fazendo-lhe crer que

o negregado mancebo, que havia desaparecido e

soube-se ter ido para o Estado de São Paulo, por lá

estaria fazendo das suas.

45

50

55

60

65

Terminada a leitura da extensa missiva do

professor, Oliveira conservou-se por horas como

assombrado diante de tanta perversidade do infame a

quem ele fizera questão de dar à sua filha, a criatura a

quem mais amava neste mundo, como esposo.

Chegara a agastar-se com ela por que o repudiou e

pela primeira vez, ferira seu coração sensível e

amorável fazendo-a sofrer e derramar tantas

lágrimas. Martirizara-a, fora um déspota, procurando

constrangê-la a aceitar um companheiro perpétuo que

ela repelia com que instintivamente. Consentira no

seu casamento com o preferido, mas muito a

contragosto, por não magoá-la mais. Entretanto,

dando o seu assenso, considerou-a desarrazoada,275

ficou despeitado e ainda feriu-a enxotando Pulquéria,

a mãe velha, como a um cão, atribuindo-lhe o enredo

quando a pobre preta era a dedicação incondicional,

era a mãe toda ternura e extremos que Maria

conheceu. Maria salvara-se felizmente, mas ele

SP, SPF, SP1: deante

SP, SPF, SP1: elle;

ásua

SP, SPF, SP1:

creatura; n’este

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1:

sensivel

SP, SPF, SP1:

amoravel; sofffer; lagrimas

SP, SP1, SPF

Martyrisara-a(,) foi; despota;

constrangil-a; acceitar; ella;

repellia; instinctivamente.

SP, SPF, SP1:

magoal-a

SP, SPF, SP1:

Pulcheria

SP, SPF, SP1:

attribuindo-lhe

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1:

Virginia; comsigo; Virginia

275 Desarrazoada: não razoável, injusta.

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conheceu. Maria salvara-se felizmente, mas ele

abandonou a sua terra e deixou-a privada dos seus

carinhos, ainda por despeito, trazendo Virgínia

consigo, Virgínia a prostituta intrigante e vil que

conseguiu dominá-lo para afinal desprezá-lo em São

Paulo fugindo com um sujeito de sua estofa. Foi bem

castigado; mas o remorso, como a carcoma, corroía-

lhe o coração, agora ainda mais, quando descobria as

péssimas qualidades daquele que seria hoje uma

vergonha para a sua querida Maria; que faria a sua

infelicidade. Oh! como seria triste à sua filha querida

ver-se ligada perpetuamente a um falsário, hipócrita e

infame! A esposa de João preferira para si o modesto

lavrador, que não dispunha da invejável fortuna do

filho único de dona Úrsula, e o seu lar foi abençoado

por Deus; pois ali, naquele resumido paraíso, reinava

a tranqüilidade, a paz, a harmonia e a virtude.

SP, SPF, SP1:

dominal-o; desprezal-o

SP, SPF, SP1: S.

Paulo

SP, SPF, SP1:

pessimas, d’aquelle

SP, SPF, SP1: á sua

SP, SPF, SP1:

falsario;

SP, SPF, SP1:

hypocrita

SP, SPF, SP1:

invejavel

SP, SPF, SP1: unico;

d. Ursula,

SP, SPF, SP1: alli;

n’aquelle

SP, SPF, SP1:

paraiso, tranquillidade

75

80

Depois desses tristes pensamentos que tanto

o afligiam, Oliveira fez um esforço e, como se

acordasse de um sonho mau, caiu na realidade do

presente. Lembrou-se então que lhe era preciso

avistar com Aristides, não só porque não convinha

enviar-lhe a carta, que poderia cair nas mãos do

falsário e inimigo – e o pobre homem via agora

SP, SPF, SP1:

d’esses

SP, SPF, SP1:

afligiam,

SP, SPF, SP1: máu;

cahiu

SP, SPF, SP1: cahir;

falsario

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414

85

falsário e inimigo – e o pobre homem via agora

emboscadas por toda a parte – como por ser-lhe

necessário combinar o que deviam fazer. Era-lhe

indispensável ir à fazenda do Coronel Paulino. Não

lhe convindo apresentar-se ao fazendeiro como um

forreca276 que fosse envergonhar a seu filho, Oliveira

desencavou do fundo do baú, os seus mais finos e

vistosos indumentos277 e preparou-se para seguir no

dia imediato.

SP, SPF, SP1:

necessario

SP, SPF, SP1:

indispensavel; á fazenda

SP, SPF, SP1: bahú

SP, SPF, SP1:

immediato

90

95

100

O sítio de Oliveira era muito próximo de

uma estação intermédia da estação de ferro de

Bebedouro a Jabuticabal a encontrar-se com a que, de

Araraquara, segue rumo de Pitangueiras. Informado

por Aristides do itinerário que este seguia vindo ao

seu sítio, Oliveira, antes da alcançar o

entroncamento, apeou do trem e tomou rumo da

fazenda do coronel Paulino. Levava uma mala de

mão e ia bem trajado, mas apresentou-se a pé diante

da morada do coronel. Estava Paulino no seu

varandim278 à tarde, conforme o seu hábito já nosso

conhecido, quando se lhe apresentou o nosso

viajante.

SP, SPF, SP1: sitio;

proximo

SP, SPF, SP1:

intermedia

SP, SPF, SP1:

ittinerario; sitio

SP, SPF, SP1: á

tarde

SP, SPF, SP1: habito

276 Forreca: João-ninguém. 277 Indumento: roupa. 278 Varandim: varanda estreita.

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415

105

110

O coronel estranharia o modo de viajar de

Oliveira, se muitos outros viajantes, e mesmo ele,

não já tivessem feito o trajeto entre a sua morada e a

linha férrea, na distância de cerca de dois

quilômetros, nas condições em que o fazia este

visitante, cujo aspecto, modos e trajar fizeram-lhe

crer que se tratava de um cavalheiro distinto.

Convidou-o a subir dispensou-lhe a delicadeza de vir

ao seu encontro descendo muitos degraus da escada.

Depois da troca dos comprimentos, Oliveira pediu

desculpar-lhe o fazendeiro ver-se constrangido a

apresentar-se por si mesmo, e ofereceu-lhe um

cartão-porcelana com o seu nome.

SP, SPF, SP1:

extranharia

SP, SPF, SP1: si;

elle

SP, SPF, SP1:

trajecto

SP, SPF, SP1: ferrea;

distancia; dous; SP1:

kijomentros; SPF: kilometros

SP, SPF, SP1:

offereceu-lhe

115

–Oh! É o pai de meu secretário! – exclamou

Paulino. – Muito folgo em conhecê-lo. Seja bem

vindo. Esta casa é sua.

SP, SPF, SP1: pae;

secretario

SP, SPF, SP1:

conhecel-o

–Oh! Coronel! É muita bondade. Sou-lhe

muito grato.

–Decerto veio em procura do seu filho.

120

–Não só, coronel. Em primeiro lugar

desejava conhecer a vossa senhoria, de quem meu

filho tem feito ótimas referências. É certo muito me

agradaria encontrar o meu Aristides...

SP, SPF, SP1:

optimas; referencias

–Diga nosso, meu amigo. O seu Aristides é

SP, SPF, SP1:

l b i id l

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416

125 uma pérola. Peço-lhe o obséquio de considerá-lo meu

também, – observou Paulino sorrindo. – Infelizmente

o nosso Aristides viajou.

perola; obsequio; consideral-o

SP, SPF, SP1:

tambem

Assim conversando, o coronel sobraçou o

hóspede familiarmente e foi conduzindo-o para a sala

das visitas.

SP, SPF, SP1:

hospede

130

–Pediu-me uma licença de dois a três dias –

continuou Paulino – para ir a Ribeirão Preto. Deve

chegar amanhã. O senhor espera-lo-á em nossa casa;

dá-me muito prazer.

SP, SPF, SP1: dous;

tres

SP, SPF, SP1:

esperal-o-a

135

–É muito generoso, coronel. Não sei como

lhe agradecer tanta gentileza e apreciação que faz de

meu filho.

SP, SPF, SP1:

agradecer-lhe (Emendou-se

ênclise para próclise.)

140

–Quanto à apreciação que faço do nosso

Aristides, nada mais é que justiça; não tem que me

agradecer. Quanto à minha generosidade, creia que

entra nela alguma coisa de egoísmo.

SP, SPF, SP1: a

apreciação

SP, SPF, SP1: á

minha

SP, SPF, SP1: n’ella:

cousa; egoismo

A esse tempo instalavam-se na cômoda e

luxuosa sala.

SP, SPF, SP1:

installavam-se; commoda

145

–Egoísmo, coronel?! – indagou Oliveira

ganhando familiaridade. – São inconciliáveis uma

com o outro.

SP, SPF, SP1: -

Egoismo,

SP, SPF, SP1:

inconciliaveis

–Nem sempre, meu caro amigo. Eu me

explico. Dou o cavaco por uma prosa; sou um

SP, SPF, SP1:

d d

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417

150

tagarela quando encontro pessoas que condescendam

com esse meu vício, e sei que o senhor Oliveira é

paciente, não só por informações de Aristides, como

pelo que vou descobrindo nos seus modos. Quando

pilho um visitante como o senhor, não mais desejo

soltá-lo. Vai, portanto, sofrer caceteação.

condecendam

SP, SPF, SP1: vicio

SP, SPF, SP1: soltal-

o; Vae

SP, SPF, SP1:

soffrer

155

–Pelo contrário, coronel. Vou descobrindo

que me deleitarei com a sua conversação.

SP, SPF, SP1:

contrario

160

–Veremos – contestou o coronel sorrindo. –

O senhor precisa de descanso, porque vem de viagem

um pouco longa, e eu já estou a amassá-lo apesar de

conhecer isso. Tratemos, antes da maior maçada279

que lhe preparo, do que convém à sua comodidade e

descanso.

SP, SPF, SP1:

descanço,

SP, SPF, SP1:

amassal-o; apezar

SP, SPF, SP1:

convem; commodidade; á sua

SP, SPF, SP1:

descanço

165

170

Oliveira teve um trato fidalgo ao qual nada

faltou das coisas as mais insignificantes. Depois do

banho, o jantar, sendo o pai de Aristides apresentado

à família do coronel ao penetrar a sala destinada a

esse fim. Após a refeição, o hospedeiro convidou o

hóspede a dar um ligeiro passeio pelo vasto terreiro

“para se fazer o quilo”280 como disse o coronel e,

quando o edifício foi rapidamente iluminado a luz

elétrica em todos os seus compartimentos, voltaram

SP, SPF, SP1:

cousas

SP, SPF, SP1: banho

,;pae

SP, SPF, SP1: a

familia

SP, SPF, SP1: chylo;

SP, SPF, SP1:

edificio; illuminado; eletrica

SP, SPF, SP1:

prosa(,)

279 Maçada: amolação. 280 Fazer o quilo: fazer a digestão.

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418

ao salão “para a prosa”, como informou Paulino.

175

180

185

190

O coronel Paulino era tão pachorrento como

bondoso. Tinha muita leitura, especialmente sobre

assuntos agrícolas e econômicos e, como a princípio

dissera, dava o cavaco por uma boa prosa, fazendo os

gastos dela de um modo agradável e atraente.

Oliveira não se mostrou alheio aos assuntos tratados

convencendo ao seu hospedeiro que não tinha diante

de si um ignorante tabaréu. No correr da conversação

Oliveira foi informado de que Aristides leu em uma

das gazetas de Ribeirão Preto que um certo Rufino,

inculcando-se de homem de bem, não passava de um

patife disfarçado. Essa descoberta foi um escândalo

que deu brado, a polícia agiu e a opinião alvoroçou-

se porque o tal capitão freqüentava a alta sociedade e

era considerado tal como se inculcava. O secretário

mostrou-se interessado pelo caso dizendo que

desejava conhecer o escandaloso fato, pois tinha

notícia do sujeito e desejava conhecê-lo por ter com

ele contas a ajustar.

SP, SPF, SP1:

assumptos; agricolas;

economicos; principio

SP, SPF, SP1: d’ella;

agradavel; attrahente

SP, SPF, SP1:

assumptos

SP, SPF, SP1: deante

SP, SPF, SP1:

tabaréo

SP, SPF, SP1:

escandalo

SP, SPF, SP1:

policia

SP, SPF, SP1:

frequentava

SP, SPF, SP1:

secretario

SP, SPF, SP1: facto;

noticia

SP, SPF, SP1:

conhecel-o; elle

195

O leitor bem avalia qual a surpresa que essa

notícia causa a Oliveira. Capitão Rufino! Era

justamente a quem ele e Aristides procuravam

descobrir por ser quem figurava em primeiro lugar no

SP, SPF, SP1:

surpreza

SP, SPF, SP1:

noticia

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: logar

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419

200

205

boato que corria a respeito da esposa de João.

Pensando assim, Oliveira não deu ao coronel a menor

demonstração do interesse que ligava ao fato, porque

lhe seria preciso revelar a vergonha que envolvia o

nome de sua filha e os créditos de sua família. Ao

mesmo tempo sentiu-se desopresso dos cuidados que

afligiam desde que recebeu a carta anônima, porque,

sendo o capitão Rufino um patife que movia a polícia

contra si, é claro que seria capaz de armar uma

calúnia contra Maria.

SP, SPF, SP1:

ínteresse; facto

SP, SPF, SP1:

creditos; familia

SP, SPF, SP1:

desoppresso; affligiam; anoyma

SP, SPF, SP1:

policia

SP, SPF, SP1:

calunia

210

215

220

Quem seria, entretanto, esse capitão Rufino?

Disfarçando-se, como informava a notícia, é claro

que não dava seu próprio nome. Que interesse teria

ele em conspurcar o nome da esposa honesta e digna?

O professor Serafim, que era homem de bem, deixava

claro na sua carta que era Abílio o maior perseguidor

de Maria e João, e que ele havia desaparecido

constatando-lhe ter viajado para São Paulo. Seria ele

o fingido capitão Rufino? Esses pensamentos

passaram rapidamente pelo espírito de Oliveira que,

na sua abstração, ouvia, mais sem lhe prestar atenção,

o que ia mais dizendo o coronel sobre outros

assuntos. Resolveu por fim o pobre pai esperar que

Aristides tudo esclarecesse, pois a sua viagem tinha

SP, SPF, SP1:

noticia

SP, SPF, SP1:

proprio; elle

SP, SPF, SP1:

Seraphim

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: elle;

desapparecido

SP, SPF, SP1: S.

Paulo; elle

SP, SPF, SP1:

espirito

SP, SPF, SP1:

abstracção; attenção;

SP, SPF, SP1:

assumptos

SP, SPF, SP1:

porfim; pae

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420

esse empenho.

225

Aristides não chegou nesse dia, mas no outro

logo cedo. O coronel Paulino, que, como dissera,

havia já prosado muito com Oliveira, achou

conveniente deixá-lo só com Aristides. Decerto

tinham de tratar de negócios seus particulares,

pensou: portanto, discretamente pretextou

necessidade de sair por alguns instantes e retirou-se.

SP, SPF, SP1: n’esse

SP, SPF, SP1: ja

SP, SPF, SP1:

deixal-o; negocios

SP, SPF, SP1: sahir

230

–Fiquem a vontade, meus amigos – disse o

coronel. – Não quero privá-los de confabularem

livremente. Vou ali, dar-me-ão licença, e não me

demorarei. Aristides, leva teu pai para o pavilhão; lá

estarão mais a cômodo.

SP, SPF, SP1:

prival-os:

SP, SPF, SP1: alli

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1:

commodo

235

O pavilhão a que se referia o coronel, ficava

em um dos ângulos da vasta residência. Ali se achava

Aristides comodamente alojado em diversos

compartimentos onde se achavam instalados o

dormitório, o arquivo, uma regular biblioteca e a

quadra onde Aristides trabalhava.

SP, SPF, SP1:

angulos; residencia; Alli

SP, SPF, SP1:

commodamente

SP, SPF, SP1:

installados

SP, SPF, SP1:

dormitorio; archivo; bibliotheca

240

Uma vez lá, Oliveira começou por dar ao

filho a ler a resposta de Serafim, a qual veio trazer

pessoalmente temendo se desencaminhasse. Aristides

inteirado de tudo quanto relatava o professor, tornou-

se rapidamente de júbilo.

SP, SPF, SP1: la

SP, SPF, SP1:

Seraphim

SP, SPF, SP1: jubilo

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421

245

250

–Está desvendado o mistério, meu pai. O

miserável falsificador, o infame caluniador, o

incansável perseguidor de Maria; enfim o capitão

Rufino, é o mesmo Abílio.

E passou a referir o que deu em Ribeirão

Preto como, por nossa conta, descreveremos, para

conhecimento do leitor, no capítulo seguinte, não se

esquecendo de informar que João Lopes se achava na

fazenda do coronel Paulino, com quem havia

contratado uma empreitada de parceria com outro

baiano, homem honesto e experiente.

SP, SPF, SP1:

mysterio; pae.

SP, SPF, SP1:

miseravel; calumniador;

incançavel; emfim

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1:

capitulo

SP, SPF, SP1:

contractado

SP, SPF, SP1:

bahiano

XIX

0

Já havia muitos meses que a polícia procurava

pôr a mão em três ou quatro burlões que apareciam ora

nesta, ora naquela cidade paulista ou mineira

praticando atos que, a princípio, causaram

desconfiança, depois uma tal ou qual certeza de que se

tratava de elementos sociais perigosíssimos. Um deles

dava-se como camarada ou jornaleiro e, como tal, não

tinha necessidade de disfarçar-se em homem da alta

sociedade; os outros, porém, afetavam modos e atos de

SP, SPF, SP1: Ja;

policia

SP, SPF, SP1: tres

SP, SPF, SP1:

apparecia

SP, SPF, SP1: n’esta;

n’aquella

SP, SPF, SP1: actos ;

principio

SP, SPF, SP1: sociaes;

perigosissimos; d’elles

SP, SPF, SP1: porem;

affectavam; actos

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sociedade; os outros, porém, afetavam modos e atos de

gente de alto bordo281; menos um que, se descia à

condição de humilde trabalhador a jornal, não se

propunha à alta posição social: fingia-se profissional

de condição humilde, mas decente.

SP, SPF, SP1: que (,);

si; á condição

SP, SPF, SP1: á alta

5

0

5

0

Notaram as autoridades policiais que havia

uma certa ligação entre esses sujeitos, nunca, porém

encontrados todos juntos em grupo, mas aqui se

juntavam dois, ali também um par, já outros, acolá no

mesmo jeito, sempre havendo troca e mudança,

parecendo haver uma prévia combinação que os

isentassem da desconfiança de quem os pudesse

perseguir. Em Uberaba o camarada cometeu um crime

de vulto, tentando de emboscada contra a vida de um

viajante para roubar e deixando a vítima ferida

gravemente. Verificado o crime depois de sindicâncias,

descoberto o autor, não foi capturado porque fugiu.

Das sindicâncias policiais evidenciou-se que o

criminoso estivera a confabular diversas vezes com o

tipo que acima demos como disfarçado em

profissional, não sendo, porém, apurado que essa

confabulação fosse ligada ao crime, mas que o

profissional suposto era um “indesejável” como hoje se

SP, SPF, SP1:

policiaes

SP, SPF, SP1: porem

SP, SPF, SP1:

juntavam-se

SP, SPF, SP1: dous;

alli; tambem

SP, SPF, SP1: geito, ;

mudança(,)

SP, SPF, SP1: previa

SP, SPF, SP1:

insentasse; podésse; commetteu

SP, SPF, SP1: victima

SP, SPF, SP1:

syndicancias,

SP, SPF, SP1:

syndicancias; policiaes; typo

SP, SPF, SP1: porem,

SP, SPF, SP1:

supposto; “indesejavel”

281 Alto bordo: de alta categoria.

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423

diz.

5

0

Mais tarde esse indesejável foi visto várias

vezes em amistosa confabulação com um certo coronel

metido a ricaço, que se aproveitava na sociedade bem

aparelhado, com indumentos finíssimos e jóias de

valor. Isto levantou desconfianças em Ribeirão Preto,

onde se deram os repetidos encontros dos dois, que

segredavam, para se calarem ou mudar de conversa à

aproximação de pessoas estranhas. Chegou-se a

descobrir que o coronel era um mistificador e, talvez,

um desses larápios que preparam contos de vigário.

SP, SPF, SP1:

indesejavel; varias

SP, SPF, SP1: mettido

SP, SPF, SP1:

apparelhado; finissimos; joias

SP, SPF, SP1:

desconfiaças

SP, SPF, SP1: dous,

SP, SPF, SP1: á

approximação

SP, SPF, SP1:

extranhas

SP, SPF, SP1:

mystificador

SP, SPF, SP1: d’esses;

larapios; Vigario

5

0

5

Já a polícia, prevenida de diversos pontos,

informada dos sinais desses sujeitos, havia

estabelecido com as maiores precauções uma teia, que

ramificava por muitas cidades e povoados mineiros e

paulistas, a fim de empolgar esses miseráveis

exploradores que, de um dia para outro, desapareciam

do cenário onde operavam, às vezes deixando atrás de

si um rastro da sua passagem; quando apareceu o

capitão Rufino, um negociante ambulante de grosso

trato, homem tratável e delicado de maneiras, que foi

logo captando a confiança e amizade das pessoas de

consideração e de destaque no meio social.

SP, SPF, SP1: ja;

policia

SP, SPF, SP1: signaes;

d’esses

SP, SPF, SP1: afim de;

miseraveis

SP, SPF, SP1:

desappareciam;

SP, SPF, SP1: cenario;

ás vezes; atraz

SP, SPF, SP1:

appareceu

SP, SPF, SP1: tratavel

A princípio o capitão Rufino não causou SP, SPF, SP1: a

principio

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424

0

desconfiança nos meios que freqüentava, tão lisos

eram os negócios que realizava, e tão delicado era o

seu trato, denunciando ser pessoa de fina educação e

estirpe nobre; mas alguém da polícia viu-o algumas

vezes conversando familiarmente com o camarada, que

já se suspeitava ser o criminoso de Uberaba, restando

virem informações complementares que foram pedidas

para o teatro do crime.

SP, SPF, SP1:

frequentava

SP, SPF, SP1:

negocios; realisava

SP, SPF, SP1: alguem;

policia

SP, SPF, SP1: ja

SP, SPF, SP1: theatro

5

0

O leitor talvez já desconfiasse quem eram

esses burlões; mas, em todo o caso, informamos que o

coronel era o Norberto que em Ribeirão Preto, a

serviço de Abílio, lançara o boato da queda de dona

Maria no charco da prostituição, ferindo tão

profundamente o coração de Aristides; o profissional

suposto era aquele sujeito a quem ele se dirigia e que

apresentamos como “o cara de fuinha”282, o camarada

criminoso era o Tomás, tomado por Abílio para o seu

serviço, e o capitão Rufino já sabemos quem é.

SP, SPF, SP1: ja

SP, SPF, SP1: Abilio;

d. Maria

SP, SPF, SP1:

supposto; aquelle

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1:

Thomaz; Abilio

5

0

Abílio, sem que o soubesse, achava-se vigiado

pelo Argos policial, mas confiado na sua posição, não

supunha que o tomassem por reles e miserável

mandrião283. Pois se negociava francamente julgando

com regulares capitais; freqüentava a melhor

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1:

suppunha; réles; miseravel; si

SP, SPF, SP1:

capitaes; si; frequentava; si

SP, SPF, SP1: n’um;

d 282 Cara de fuinha: diz-se daquele que tem a cara muito pequena. 283 Mandrião: indolente.

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425

5

sociedade, se era amigo de autoridades e conservava-se

num aprumo que o elevava acima de quem pudesse

duvidar de seu caráter; se era impossível descobrirem

as suas falcatruas que apenas tinham como ponto de

mira João Lopes, um obscuro tabaréu e sua mulher,

que se achava no sertão baiano; como poderiam

considerá-lo um sujeito de baixa extração? Não

avaliava que, como diz o vulgo, “Deus consente, mas

não para sempre”.

podésse

SP, SPF, SP1:

caracter; si; impossivel

SP, SPF, SP1: tabaréo

SP, SPF, SP1:

bahiano; consideral-o; extracção

SP: “Deus consente,

mas não para sempre”. SPF, SP1:

“DEUS CONSENTE, MAS NÃO

PARA SEMPRE”.

0

5

00

05

Achava-se nesse engano, despreocupado,

quando um dia, almoçando em uma pensão de Ribeirão

Preto, notou que tinha diante de si um homem mais ou

menos da sua idade, que o mirava com certo interesse e

curiosidade. Parecia-lhe tê-lo visto algures em tempo

remoto; mas, por mais que procurasse recordar-se

quem era, não conseguia. Aquele olhar incomodava-o

como se despedisse iterativamente flechas aceradas

que vinham ter ao seu íntimo, certeiras,

propositalmente lançadas para mortificá-lo. Sentindo-

se fascinado, como hipnotizado, não podia mover-se

ou fugir como já desejava. De vez em quando Abílio

lançava um olhar de esguelha sobre o seu mudo

cabrião que, sempre a fitá-lo, notava o seu embaraço e

sorria levemente, o que mais o contrariava. Aquilo

SP, SPF, SP1: n’esse;

despreoccupado

SP, SPF, SP1: deante

SP, SPF, SP1: edade,

SP, SPF, SP1: tel-o

SP, SPF, SP1: Aquelle

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: intimo

SP, SPF, SP1:

mortifical-o

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: cabrion;

fital-o

SP, SPF, SP1: Aquillo

SP, SPF, SP1: intimo

SP, SPF, SP1: ulceras

SP, SPF, SP1: da

acções; más; quasi

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426

parecia devassar-lhe o íntimo, ferir profundamente as

úlceras da sua alma ruim e perversa recordando-lhe a

enfiada das ações más que se estendia por quase toda a

sua vida.

Depois de algum tempo, quando estavam

terminar a refeição, o desconhecido dirigiu-lhe a

palavra.

10 –Não não me conhece, Abílio? SP, SPF, SP1: Abilio

–Eu?! – gaguejou o interlocutado. – Vejo-o

pela primeira vez.

15

–Tens a memória fraca! –Se convivemos em

comum por tanto tempo e, ainda, depois, estivemos

juntos! Não te lembras?

SP, SPF, SP1:

memoria; Si

–Eu me chamo Abílio. O cavalheiro está

enganado.

SP, SPF, SP1: Abilio

20

–Inda mais esta! – retrucou o desconhecido

meneando a cabeça num gesto significativo. –Decerto

foste crismado depois que nos vimos a última vez.

–O gracejo é de muito mau gosto, senhor.

25

–Nem por isso. Não é a primeira vez que

lanças mão do anonimato para a realização das tuas

falcatruas. Eu te conheço como as palmas das minhas

mãos.

–O senhor insulta-me! Eu não sou homem de

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427

falcatruas.

–A quem o dizes!

30

Um comensal que estava ao lado de Abílio

prestava atenção ao diálogo com visível interesse.

SP, SPF, SP1:

attenção; dialogo; visivel

35

–O cavalheiro está de certo enganado –disse

este com ar malicioso. –Está tratando com o capitão

Rufino, que é um cidadão conceituado e digno de

respeito.

40

–Qual capitão Rufino, qual nada –disse o

primeiro interlocutor. –Este é Abílio sem lhe tirar nem

pôr. Deixou crescer as barbas, não trata da sua bela

cabeleira, mudou de trajos e de nome; mas não pôde

ocultar um sinal que só eu aqui conheço, nem

contrafazer o modo de falar e os antigos cacoetes.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: bella;

cabelleira

SP, SPF, SP1:

occultar; signal

–O senhor está zombando comigo, e eu não

me presto ao ridículo.

SP, SPF, SP1:

commigo,

SP, SPF, SP1: ridiculo

45

–Como está fino! Serás sempre o moço

orgulhoso daqueles bons tempos quando éramos

condiscípulos no colégio. Não te lembras do teu colega

Felício? Tens então a memória embotada?

SP, SPF, SP1:

da’quelles; eramos

SP, SPF, SP1:

condiscipulos; collegio

SP, SPF, SP1: collega;

memoria

50

–Não estou para aturá-lo! –exclamou Abílio

aparentando agastamento para ocultar a agitação em

que se achava.

SP, SPF, SP1: atural-o;

Abilio

SP, SPF, SP1:

apparentando; occutar

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–Pois eu estou, Abílio. Sempre fomos bons

companheiros de estroinices. É verdade que dispunhas

de recursos que raros podiam idear.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: idéar.

55

60

Os circunstantes, ávidos por escândalos como

sempre sucede, foram aglomerando-se em torno dos

dois. O que estava ao lado de Abílio, parecendo mais

interessado pela discussão, prestava atenção ao diálogo

sem mover-se do lugar. O interpelado sentia-se mal

colocado e, se não procurava retirar-se, era por temer

denunciar-se. Pálido, nervoso e suarento, só por um

esforço enorme afetava indiferença. O primeiro

interlocutor continuava a fitá-lo com ar escarninho que

lhe dava superioridade sobre o pretenso capitão

Rufino.

SP, SPF, SP1: avidos;

escandalos

SP, SPF, SP1: dous;

Abilio

SP, SPF, SP1:

attenção; dialogo

SP, SPF, SP1:

interpellado

SP, SPF, SP1:

collocado

SP, SPF, SP1: Pallido

SP, SPF, SP1:

affectava indifferença

SP, SPF, SP1: fital-o

65

–Então não se recorda também o meu Abílio

daquela sua empreitada no Braz? Nela não te valeu a

astúcia, meu velho. O pai não esteve pelos autos, e tu

ficaste marcado na testa com uma cicatriz que nunca se

desfará nem poderás ocultar.

SP, SPF, SP1:

tambem; Abilio

SP, SPF, SP1:

d’aquella; N’ella

SP, SPF, SP1: astucia;

pae

SP, SPF, SP1: occutar.

70

–Coisas de rapaz, não é, senhor Abílio? –

perguntou o vizinho do lado.

SP, SPF, SP1: cousas;

Abilio?

SP, SPF, SP1: visinho

–O senhor também quer meter-se à bulha

comigo? Eu estou acima dessas aleivosias, ouviu? –

vociferou Abílio.

SP, SPF, SP1:

tambem; metter-se

SP, SPF, SP1:

commigo; d’essas

SP, SPF, SP1: Abilio.

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75

80

–Será sempre o mesmo o Abiliozinho! –disse

o primeiro interlocutor em ar de zombaria. –Estou

vendo nos seus gestos, no seu modo de falar... em tudo

em suma, o meu antigo colega. Quanto mais ele se

mexe, mas se compromete. Para que esse disfarce?

Será para outra empresa como aquela?

SP, SPF, SP1: summa;

collega; elle.

SP, SPF, SP1: meche;

compromette

SP, SPF, SP1:

empreza; aquella

–Defenda-se, senhor Abílio –aconselhou o

vizinho do lado.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: visinho

–Defender-me de que?

85

–O senhor ali, que o conhece desde os bancos

escolares, dir-lhe-á de que.

SP, SPF, SP1: alli

–Senhores, há aqui um equívoco daquele

senhor que eu nunca vi nem conheço – disse Abílio,

procurando sorrir e mudar de tática. –Eu lhe perdôo a

insistência.

SP, SPF, SP1: ha;

equivoco; da’quelle

SP, SPF, SP1:

Abilio(,)

SP, SPF, SP1: táctica

SP, SPF, SP1:

insistencia.

90

–Que me perdoas, disso estou certo, porque te

convém, Abílio.

SP, SPF, SP1: d’isso

SP, SPF, SP1:

convem; Abilio

–Obriga-me a retirar-me daqui. SP, SPF, SP1: d’aqui.

–Ainda mais isso te conviria, se não fosse uma

autodenúncia.

SP, SPF, SP1: si;

auto-denuncia.

95

–Vou ensinar-lhe um meio de defesa, senhor

Abílio –disse o do seu lado.

SP, SPF, SP1: Abilio

–Agradeço. Não tenho precisão do seu auxílio. SP, SPF, SP1: auxilio

–Olhe que entendo um pouco de rabulice!...

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–Ofereça os seus serviços a quem lhos pedir. SP, SPF, SP1:

Offereça; lh’os

00

–Em todo o caso, para que eu não fique de

mentiroso, vá este axioma jurídico: testis unus, testis

nullus.284

SP, SPF, SP1:

juridico; SP: testis unus, testis

nullus, SPF, SP1: TESTIS

UNUS, TESTIS NULLUS.

05

–Peço licença ao cavalheiro – disse o primeiro

interlocutor – que eu cá entendo de jurisprudência e

algo capisco do latim. Testemunhas, da verdade do que

afirmo, posso com alguma demora conseguir.

SP, SPF, SP1:

jurisprudencia; SP: capisco, SPF,

SP1: CAPISCO

–Os senhores estão apostados em importunar-

me. – E Abílio fez movimento para levantar-se da

mesa.

SP, SPF, SP1: Abilio

10

–Já agora –disse seriamente o vizinho do lado

de Abílio – o senhor não pode sair daqui sem

justificar-se. – E, pondo a mão no ombro de Abílio, fê-

lo assentar-se.

SP, SPF, SP1: visinho

SP, SPF, SP1: Abilio;

d’aqui

SP, SPF, SP1: Abilio;

fel-o

–Como quem o senhor me quer tolher a

liberdade? – perguntou Abílio caindo sobre o assento.

SP, SPF, SP1: Abilio;

cahindo

15

–Como... cidadão, se quiser – respondeu o

outro. –Depois, apresentarei as minhas credenciais.

SP, SPF, SP1: si;

quizer

SP, SPF, SP1:

credenciaes

20

Abílio empalideceu e no seu semblante

transpareceu um ligeiro indício de terror. Os

circunstantes, notando isso, cercavam de perto os que

SP, SPF, SP1: Abilio;

empallideceu

SP, SPF, SP1: indicio

SP, SPF, SP1:

circumstantes

284 Testis unus, testis nulus: uma testemunha, nenhuma testemunha. A prova testemunhal exige o depoimento de, no mínimo, duas pessoas.

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25

30

35

dialogavam e, como sucede quase sempre em ocasiões

como esta, farejando um escândalo, atiravam

dictérios285 ao denunciado, aconselhavam-lhe que seria

melhor confessar a sua duplicidade de nomes, muitos

chegavam a incentivá-lo chamando-o de “encapotado”,

– de “cavalheiro de indústria” – de “escroque”286 e a

vítima do tumulto era tocada com as mãos, impelida

para um e outro lado, e em tal estado que, como

fascinado, a nada se opunha e animava aquela gente a

exaltar-se e dar lugar a um rumor que excedia o

ordinário. Os impropérios, as gargalhadas dos que o

apontavam como um cobarde, um réu confesso,

pegado a jeito, o tripudiar dos circunstantes

aumentaram as proporções daquilo de atraírem quem

passava pela rua e que, com maliciosa curiosidade,

penetrava a sala e vinha dar vulto maior ao escândalo.

O dono da casa veio assustado, e procurava debalde

conter aquela gente.

SP, SPF, SP1:

succede; quasi; occasiões

SP, SPF, SP1:

escandalo; dicterios

SP, SPF, SP1:

incentival-o

SP, SPF, SP1:

industria; escroc

SP, SPF, SP1:

victima; impellida

SP, SPF, SP1:

oppunha

SP, SPF, SP1: aquella

SP, SPF, SP1:

ordinario; improperios

SP, SPF, SP1:

augmentaram

SP, SPF, SP1:

d’aquillo; attrahirem

SP, SPF, SP1:

escandalo

SP, SPF, SP1: aquella

–Uma vergonha! – exclamava o pobre homem

arrependendo-se. –Nunca se deu disso em minha casa!

SP, SPF, SP1: d’isso

40

De repente o salão foi invadido pela polícia,

conduzida por uma autoridade qualquer e comandada

um oficial. O silêncio restabeleceu-se, alguns

SP, SPF, SP1: policia

SP, SPF, SP1:

commandada

SP, SP1, SPF official;

silencio

285 Dictério: troça, zombaria. 286 Escroque: indivíduo que se apodera de bens alheios por manobras fraudulentas.

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45

conseguiram escafeder-se, mas ainda a polícia

conseguiu impedir a fuga de grande número. O sujeito

que estava ao lado de Abílio, erguendo-se do assento,

fez um sinal só percebido pela autoridade policial, que

o reconheceu como um dos seus espias disfarçados.

Todos foram logo intimados a seguirem para o edifício

das audiências, e saíram escoltados.

SP, SPF, SP1: policia

SP, SPF, SP1: numero

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: signal

SP, SPF, SP1: edificio;

audiencias; sahiram

50

55

60

Inquiridas as testemunhas e ouvido Abílio,

nada foi apurado que concretizasse um crime dos

previstos pelo código, mesmo porque Felício, talvez

arrependido de ter dado lugar a tamanho escândalo

contra o seu antigo colega, e compadecido da situação

a que arrastou, muito concorreu para a sua defesa.

Asseverou que tudo aquilo não passou de uma

brincadeira das costumadas do tempo do seu

coleguismo. Que o escândalo se deu por causa da

incompreensão dos demais presentes, que entenderam

de fazer uma assuada a que não se pode pôr termo.

Que, quanto à duplicidade de nomes e disfarces, era

hábito de todos eles colegiais quando empreendiam

qualquer conquista ou rapaziada, perdoável sempre em

estudantes vadios, como era notório.

SP, SPF, SP1: Abilio,

SP, SPF, SP1: codigo;

Felicio

SP, SPF, SP1:

escandalo; collega,

SP, SPF, SP1: aquillo

SP, SPF, SP1:

colleguismo; escandalo;

incoprehensão

SP, SPF, SP1: a

duplicidade(Emendou-se.)

SP, SPF, SP1: habito;

elles; collegiaes; emprehendiam

SP, SPF, SP1:

perdoável

SP, SPF, SP1: notorio

65

A autoridade, embatucada, depois de muito

indagar e estudar o caso, tomou a resolução de deixar

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70

livre o acusado; mas não satisfeita com o resultado,

recomendou em particular à polícia que tivesse Abílio

sobre uma redobrada vigilância. Este, entretanto,

apesar do relevante serviço que lhe prestou o antigo

condiscípulo, ferido no seu orgulho e maldoso como

sempre foi, guardou profundo rancor contra o seu

defensor e salvador e jurava consigo vingar-se.

SP, SPF, SP1:

recommendou; á policia; Abilio

SP, SPF, SP1:

vigilancia; apezar

SP, SPF, SP1:

condiscipulo

SP, SPF, SP1: comsigo

XX

5

10

Genaro, desde a sua última conversa com Tomás a

propósito de Giudita, tornou-se triste e sorumbático.287

A influência ancestral do Lazerone e do Corso, dos

quais ele descendia, despertou no ânimo do jovem

napolitano idéias de vingança. Taciturno, com o

semblante mudado, não era mais aquele rapaz alegre

que atraia a atenção e simpatia dos jornaleiros que com

ele se achavam aboletados no galpão. Não mais se

ouviu sua voz de tenor cantar as belezas da sua bela

Nápoles, nem Giudita aparecia, por não ouvi-lo entoar

as belas canções que a atraíam, por ter também, como

Marco e os mais, notado a tristeza e ar sombrio o seu

amado.

SP, SPF, SP1: Gennaro; ultima;

Thomaz

SP, SPF, SP1: proposito; Giuditta;

sorumbarico

SP, SPF, SP1: influencia; SP:

lazerone, SPF, SP1: LAZERONE;

SP, SPF, SP1: quaes; elle; SP:

corso, SPF, SP1: CORSO; SP,

SPF, SP1: animo; joven; idéas

SP, SPF, SP1: aquelle

SP, SPF, SP1: attrahia; attenção;

sympathia

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: bellezas; bella

SP, SPF, SP1: Napoles;giuditta;

apparecia; ouvil-o

SP, SPF, SP1: bellas; attrahiam;

tambem

287 Sorumbático: sombrio.

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15

20

A pobre moça – coitada! – a princípio, depois

da transformação por que passara Genaro, nada notava

de anormal, como sucede aos adolescentes em sua

despreocupação e falta de experiência e perspicácia,

mas uma vez, dirigindo um dos seus gracejos288 ao

ragazzo, este fitou-a com mau modo, proferiu um seco,

“me deixa!” e voltou-lhe as costas.

SP, SPF, SP1: principio

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: succede;

adolecentes

SP, SPF, SP1: despreoccupação;

experiencia; perspicacia

SP: ragazzo, SPF, SP1:

RAGAZZO

SP, SPF, SP1: secco

25

30

35

O que havia?! – pensou Giudita. Naquela mudança

de caráter e naquele brusco e grosseiro retraimento do

seu amado alguma coisa de grave devia existir.

Entretanto, por mais que procurasse a jovem amorosa

em a sua consciência, não encontrava nenhuma falta,

um deslize que importasse em ofensa a Genaro tal que

correspondesse em gravidades ao modo por que ele a

repelira. Examinou-se ao espelho minuciosamente,

porque talvez seu físico tivesse sofrido alguma

alteração; mas nada encontrou. Os seus olhos eram os

mesmos, com aquele brilho, com aquelas pestanas

alongadas e regulares na colocação e arqueamento dos

pêlos guardados por uns supercílios, em arco um pouco

abatido, negros, sedosos e bem traçados, – que lhe

lembrava a sua lendária e venerada patrícia Santa

Lúcia; as suas lindas orelhas, de lóbulos polpudos289 e

SP, SPF, SP1: Giudita; N’aquella

SP, SPF, SP1: caracter; n’aquelle;

retrahimento

SP, SPF, SP1: cousa

SP, SPF, SP1: joven

SP, SPF, SP1: consciencia

SP, SPF, SP1: deslise; offença;

Gennaro

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: repelliu;

minunciosamente

SP, SPF, SP1: physico; soffrido

SP, SPF, SP1: aquelle; aquellas

SP, SPF, SP1: collocação

SP, SPF, SP1: supercilios,

SP, SPF, SP1: lendaria; patricia;

Lucia

SP, SPF, SP1: lombulos;

nennugeados

288 Gracejo: ditos espirituosos. 289 Polpudo: que tem abundância de carne.

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40

45

50

penugeados como damascos sazonados, nada haviam

perdido da forma e morbidezza; os seus dentinhos

alvos, sãos, regulares e bem tratados, enfileravam-se

com a mesma impecável regularidade nas gengivas de

coral, o geral da cútis do seu rosto conservava a mesma

tonalidade e aveludado, a mesma delicadeza, tão

atraente como dantes; os seus lábios, traçando uma

boca proporcionada dispostos ao sorriso cativante que

convida ao beijo, conservavam o mesmo acarminado

púnico, o mesmo viço da polpa da romã;os seus

cabelos, negros com reflexos doirados, continuavam

ondulantes a escorrer pelos seus ombros com a mesma

graça, formando no seu conjunto um dos seus mais

invejáveis ornatos. O que lhe faltava, pois, para que o

seu querido Genarino a repelisse daquele modo?!

SP: morbizezza; SPF, SP1:

MORBIZEZZA

SP, SPF, SP1: alvos (,)

SP, SPF, SP1: impeccavel

SP, SPF, SP1: cutes

SP, SPF, SP1: avelludado

SP, SPF, SP1: attrahente; d’antes;

labios

SP, SPF, SP1: bocca

SP, SPF, SP1: captivante

SP, SPF, SP1: puniceo

SP, SPF, SP1: cabellos

SP, SPF, SP1: conjuncto

SP, SPF, SP1: invejaveis

SP, SPF, SP1: gennarino;

arrepellisse; d’aquelle

55

No seu triste matutar, foi a jovem napolitana

assaltada290 por uma suspeita. Seria possível que o seu

querido a desprezasse por outra: que alguma brasileira

de tez cor de jambo, de lábios polposos e vermelhos,

de olhar ardente como os fogos tropicais, fascinasse

seu Genarino?

SP, SPF, SP1: joven

SP, SPF, SP1: possivel

SP, SPF, SP1: côr; labios

SP, SPF, SP1: tropicaes

SP, SPF, SP1: Gennarino?

60

Esse pensamento tornou-se insistente no espírito da

jovem como uma obcecação, e levou-a as fronteiras da

SP, SPF, SP1: espirito

SP, SPF, SP1: joven;

290 Assaltada: investida de súbito.

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certeza, depois de passar pelas dúvidas e ansiedades as

mais peníveis, conduzindo-a ao ciúme, essa forma

egoística e rancorosa do amor que se quer exclusivo.

SP, SPF, SP1: duvidas

SP, SPF, SP1: peniveis; ciume

SP, SPF, SP1: egoistica; SP: (Não

há divisão de parágrafo.)

65

70

75

80

O seu coração, até ali isento desse mau e corrosivo

sentimento que insidiosamente se insinua no outro belo

e fagueiro que faz a felicidade e a alegria dos

adolescentes, era-lhe mais pungente, na sua

incipiência, e maiores preocupações e sustos e anseios

lhe trazia, do que a qualquer outro já afeito às

peripécias que mais comumente advém aos

enamorados. Até então a tranqüilidade e a segurança

que ela experimentava aguardando uma solução

inevitável que dependia somente do assentimento de

seu pai que, estava certa, não o negaria, era o vogar em

plácido mar sem escolhos avistando horizontes

féericos onde se acastelavam nuvens de púrpura e

oiro291. Agora a cerração, a caligem292 que se

desdobrava como um véu, ocultando ameaçadora todo

aquile risonho futuro; era o soçobrar293 iminente no

mar das dúvidas e anseios que, irritando-se,

encapelando-se, ameaçava estragar toda a sua

felicidade.

SP, SPF, SP1: alli, d’esse; máu

SP, SPF, SP1: insinua; bello

SP, SPF, SP1: pugente

SP, SPF, SP1: incipiencia;

preoccupações

SP, SPF, SP1: affeito; ás

peripecias

SP, SPF, SP1: commumente

SP, SPF, SP1: tranquilidade

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: inevitavel

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: placido; horisontes

SP, SPF, SP1: acastellavam;

purpura

SP, SPF, SP1: véo, occultando;

aquelle

SP, SPF, SP1: sossobrar;

imminente; duvidas; anceios

SP, SPF, SP1: encapellando-se

291 Oiro: variante de ouro. 292 Caligem: escuridão, trevas. 293 Soçobrar: afundar, naufragar.

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85

90

95

100

Pobre Giudita! O seu pensar angustiado causava-

lhe durante a noite demoradas insônias e, quando

conseguia adormecer, vinham-lhe pesadelos aflitivos

ou, então, sonhos consoladores nos quais se desenhava

a sua anterior visão subjetiva que era o seu enlevo e

alegria, para, ao despertar, cair na triste realidade das

suas dúvidas e suspeitas. Então o seu sentir provocava-

lhe o pranto ardente e amargo da desesperança. Ah!

Genarino era seu, sem partilha com quem quer que

fosse; era uma posse sobre a qual ela tinha direito

inconteste e sagrado. Por que vinham roubá-lo? Dera-

lhe o seu coração em permuta leal, em mútuo consenso

que foi jurado desde a infância dos dois. O seu afeto

recíproco era congênito com razão dos dois, radicara

em seus corações e os aunara.294 Ferir um era ferir ao

outro. Essa que lhe roubava o seu querido, era incapaz

de amá-lo como ela, porque vulnerava dolorosamente

aquele a quem, certamente, jurava um amor

escoimado295 de egoísmo e maldade. Instilava naquele

coração a torva296 letalidade que insidiosa, pouco a

pouco, iria produzindo os seus terríveis efeitos: a morte

de dois corações. Apagava a pira297 vestálica298 que,

SP, SPF, SP1: Giuditta!

SP, SPF, SP1: insomnias

SP, SPF, SP1: afflictivos

SP, SPF, SP1: quaes

SP, SPF, SP1: subjectiva

SP, SPF, SP1: cahir

SP, SPF, SP1: duvidas

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: roubal-o?

SP, SPF, SP1: mutuo

SP, SPF, SP1: infancia

SP, SPF, SP1: dous; affecto;

congenito

SP, SPF, SP1: : dous; aúnara

SP, SPF, SP1: amal-o; ella

SP, SPF, SP1: aquelle

SP, SPF, SP1: egoismo; n’aquelle

SP, SPF, SP1: lethalidade

SP, SPF, SP1: terriveis; effeitos

SP, SPF, SP1: dous; pyra; vestalica

294 Aunara: tornara brando. 295 Escoimado: livre. 296 Torva: pertubação, confusão. 297 Pira: fogueira.

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105

ardente, vivificava um amor santo e puro e que era

entretida com desvelo, para manter um amor tenebroso

que gelaria dois corações que não podiam viver

separados.

SP, SPF, SP1: dous

Assim traduzimos o pensar e sentir da pobre

donzela.

SP, SPF, SP1: donzella

110

115

120

Marco, que já notara a tristeza e retraimento de

Genaro e, procurando saber-lhe a causa, não conseguiu

senão respostas evasivas, veio, por fim, a notar que sua

filha muito perdia das suas cores sadias e também ia

caindo em funda melancolia. Isso levou-o a pensar que

a causa eram os amores de Giudita e que alguma coisa

ou fato desagradável se tinha dado entre os dois

jovens. Um simples arrufo?299 Um rompimento

definitivo? Em todo o caso era preciso que ele, como

pai que amava ao extremo aquela filha que lhe restava;

que tanto estimava Genaro desde a sua primeira

infância, tomasse uma providência qualquer.

SP, SPF, SP1: ja; retrhaimento

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: sinão; porfim

SP, SPF, SP1: tambem; cahindo

SP, SPF, SP1: Giuditta; cousa

SP, SPF, SP1: facto desagradavel;

dous

SP, SPF, SP1: elle;

SP, SPF, SP1: pae; aquella

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: infancia;

providencia

Nesse pressuposto, Marco conversou com a mulher

a respeito. A velha azougada300 e grosseira, não

possuía a delicadeza de sentimentos do marido; pouco

se lhe dava que a filha estivesse arrufada ou que

Genaro andasse a matutar. Regateirices da Giudita,

SP, SPF, SP1: N’esse;

pressupposto

SP, SPF, SP1: azogada

SP, SPF, SP1: possuia

SP, SPF, SP1: Genaro; Giuditta

298 Vestálica: pura, virginal. 299 Arrufo: ressentimento passageiro entre pessoas que se querem bem. 300 Azougada: colérica.

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439

125

Genaro andasse a matutar. Regateirices da Giudita,

aquela namoradeira preguiçosa que, decerto, queria se

casar para fugir ao trabalho doméstico que ainda tinha

obrigação de fazer até os 25 anos.

SP, SPF, SP1: aquella

SP, SPF, SP1: domestico

SP, SPF, SP1: annos.

130

135

Marco bem conhecia a sua cara metade e procurava

sempre evitar discussões com ela que, continuando-as,

viria a destemperar-se.301 Não deixou, porém, de fazer-

lhe objeções com prudência, pedindo-lhe que não

falasse alto. Estavam a sós, e não convinha que a

menina ouvisse o que conversavam a seu respeito.

Giudita estava doente – dizia ele – e cabia-lhes zelar

pela sua saúde. A velha Maria retorquiu que a doença

da jovem era simples manha para mais depressa

apanhar o seu rosignuolo, que só vivia a cantar à noite

para atrair a namoradeira svergognata.

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: porem; objecções;

prudencia,

SP, SPF, SP1: fallasse

SP, SPF, SP1: Giuditta; elle

SP, SPF, SP1: saude.

SP, SPF, SP1: joven

SP: rosignuolo SP, SPF, SP1:

RESIGNUOLO; á noite; attrahir;

SP: svergognata, SPF, SP1:

SVERGOGNATA.

140

145

Marco suspendeu o diálogo por inconveniente e,

com calma, foi balancear os seus fundos de reserva

para ver se podia cortar o nó górdio302 da questão

casando a filha, quer a velha concordasse ou não com

isso, porque ele também, quando tomava um propósito,

não cedia às exigências da mulher que, por fim, vinha

a concordar quando percebia que Marco tinha tomado

a peito realizar uma idéia com resolução. Entretanto, se

SP, SPF, SP1: dialogo;

inconviniente

SP, SPF, SP1: gordio

SP, SPF, SP1: elle; tambem;

proposito,

SP, SPF, SP1: ás exigencias;

porfim

SP, SPF, SP1: realisar; idéa; si

301 Destemperar-se: exceder-se em palavras ou ações. 302 Cortar o nó górdio: resolver de maneira rápida, prática e violentamente a questão.

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visse que podia fazer as despesas das núpcias, era

preciso que conversasse seriamente com Genaro.

SP, SPF, SP1: despezas; nupicias;

Gennaro

150

155

160

Resultou do seu balanço a convicção de que, com

algum sacrifício, poderia fazer o que desejava, e logo

no dia seguinte, procurou Genaro. Este ao ouvir a

proposta que o velho lhe fazia de casar-se com Giudita,

com ar sombrio e semblante carregado, respondeu-lhe

com um simples e bem soante “no”. A princípio Marco

supôs que aquela negativa era devida a escrúpulo por

falta de meios do jovem. Nesse caso objetou-lhe que

não receasse; que ele, Marco, tudo remediaria. Dariam

os seus parcos recursos para um enxoval que, embora

modesto, bastaria ao novo casal. Depois tudo se

arranjaria a contento.

SP, SPF, SP1: sacrificio

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: Giuditta

SP: no, SPF, SP1: NO; principio

SP, SPF, SP1: suppoz; aquella

SP, SPF, SP1: escrupulo; joven;

N’esse

SP, SPF, SP1: objectou-lhe;

receiasse; elle (,)

165

Outro simples “no” foi a resposta de Genaro.

“Perchê?” indagou o velho com voz triste que

denunciava a sua surpresa e desgosto. Os dois

amavam-se desde crianças, Giudita estava “malata per

amore” já havia atingido a idade conveniente, já podia

governar uma casa, já tinha prática dos serviços

domésticos.

SP: no, SPF, SP1: NO; SP, SPF,

SP1: Gennaro.

SP: Perchê, SPF, SP1: PERCHÊ

SP, SPF, SP1: surpreza; dous

SP, SPF, SP1: creanças; Giuditta;

SP: malata per amore, SPF, SP1:

MALATA PER AMORE; SP,

SPF, SP1: attingido

SP: ja tinha; pratica

SP, SPF, SP1: domesticos.

170

Genaro, com olhos úmidos e com voz trêmula

impregnada de uma dor ou despeito profundo, disse

resoluto que ela se casasse com o outro. Com o outro!

SP, SPF, SP1: Gennaro; humidos;

tremula

SP, SPF, SP1: impreginada

SP, SPF, SP1: ella

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441

175

pensou Marco como se recebesse uma punhalada no

coração. Outro! Quem era esse outro? perguntou. Ela

que o dissesse, respondeu Genaro mal podendo conter

as lágrimas.

SP, SPF, SP1: Ella

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: lagrimas

“É preciso conversar com Giudita” – pensou Marco

surpreso e angustiado com essa novidade. E

aproveitando uma oportunidade, a sós com a filha

interpelou-a com voz carinhosa.

SP, SPF, SP1: Giuditta

SP, SPF, SP1: Surprezo

SP, SPF, SP1: opportunidade

SP, SPF, SP1: interpelou-a

180

–Minha filha, – dizia o pobre velho com lágrimas

na voz – como é isso? Não amas mais ao nosso

Genarino? Preferes outro?

SP, SPF, SP1: lagrimas

SP, SPF, SP1: Gennarino

–Eu, pai?! – respondeu a moça surpreendida. SP, SPF, SP1: pae; surprehendida.

–Eu soube por ele próprio. SP, SPF, SP1: elle; proprio.

185 –Oh! Genarino diz isso! SP, SPF, SP1: Gennarino

E a pobre moça, abalada, quase a chorar,

demonstrava no seu semblante e nos seus modos o

amor entranhado que votava ao seu querido, e quanto

lhe era doloroso o que lhe dizia o seu pai.

SP, SPF, SP1: quasi

SP, SPF, SP1: pae.

190

–Genarino negou-se a casar contigo, minha filha.

Disse-me que havia outro preferido, e que tu me

dissesses quem era.

SP, SPF, SP1: Gennarino;

comtigo,

195

Giudita, não mais podendo conter-se, a essas

palavras de Marco, escondeu o rosto no amplo seio do

velho pai desfeita em pranto desabalado. Amava muito

SP, SPF, SP1: Giuditta

SP, SPF, SP1: pae

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442

200

aquele bom velho em que depositava toda a sua

confiança, sendo correspondida por ele que procurava

adivinhar os pensamentos para em tudo satisfazê-la,

mesmo nos seus mínimos caprichos. Por isso, somente

ele poderia dar remédio à sua triste situação. Marco,

comovido ao extremo, procurou consolá-la. Se ela não

dava preferência a outro, decerto havia nisso um mal

entendido, mesmo alguma intriga, e breve tudo

passaria.

SP, SPF, SP1: aquelle

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: satisfazel-a;

minimos

SP, SPF, SP1: elle; remedio á sua

SP, SPF, SP1: commovido;

consolal-a.

SP, SPF, SP1: Si; ella;

preferencia; n’isso

205

210

Que notara havia dias a sua tristeza e

esmaecimento e, atribuindo isso a receio de não se

casar com Genarino, procurou-o disposto a realizar o

casamento. Que o rapaz acolheu-o de mau modo

dando-lhe a entender que Giudita preferia outro.

Inquirido qual esse outro, respondeu-lhe que ela o

dissesse.

SP, SPF, SP1: attribuindo

SP, SPF, SP1: Gennarino; realisar

SP, SPF, SP1: máu

SP, SPF, SP1: Giuditta

SP, SPF, SP1: inquerido; ella

220

215

Não só pelas palavras de Giudita, mas também

pelas lágrimas em torrente que brotaram dos seus olhos

ao ouvir tão estranha novidade, convenceu-se o velho

napolitano de que sua filha não dava preferência a

outro que não fosse o seu querido Genarino; que o

amor laborava no coração da bela bambina com a

mesma intensidade e ardor que ele já conhecia desde

muito tempo tendo por objeto o mesmo a que se votara

SP, SPF, SP1: Giuditta; tambem

SP, SPF, SP1: lagrimas

SP, SPF, SP1: extranha

SP, SPF, SP1: preferencia

SP, SPF, SP1: Gennarino

SP, SPF, SP1: bella; SP: bambina,

SPF, SP1: BAMBINA

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: objecto

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220 desde a infância. SP, SPF, SP1: infancia

225

230

235

240

Com o coração lacerado e o pensamento a debater-

se diante daquele caso misterioso, o bom velho de

novo abordou Genaro. Amava-o como a um filho,

sabia-o generoso e bom; mas a sua maior preocupação

era salvar a filha que estremecia e que receava adoecer

gravemente, tão apaixonada se achava e ferida no

coração. Genaro, o teimoso, conservava-se no mesmo

propósito, tão habilmente conseguira Tomás ganhar-

lhe a confiança e envenenar o seu coração de jovem

inexperiente e zeloso. Na sua cegueira, muito natural

na maior parte dos moços namorados, entrou a

lembrar-se das visitas de João à casa de Marco e a

analisar as particularidades mais insignificantes. Desse

exame preconcebido resultou parecer a Genaro

confirmado o que lhe dissera o infame e insidioso

instrumento de Abílio. Em gestos sem importância, em

palavras inocentes que a familiaridade e confiança

autorizavam e nada tinham de maldosas, Genarino viu

mais que provada a veracidade do que lhe informara o

miserável caluniador; mas tendo tomado de não revelar

o nome do novo preferido de Giudita, julgava

desonroso fazer uma revelação que prejudicava o

delator.

SP: adebater-se (Erro óbvio.)

SP, SPF, SP1: deante d’aquelle;

mysterioso

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: preoccupação;

extremecia

SP, SPF, SP1: receiava

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: proposito; Thomaz

SP, SPF, SP1: joven

SP, SPF, SP1: á casa; analysar

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: Abilio; importancia,

SP, SPF, SP1: innocents

SP, SPF, SP1: Gennarino

SP, SPF, SP1: miseravel

calumniador;

SP, SPF, SP1: Giuditta;

deshonroso

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444

245

250

255

Abordando-o de novo, Marco fez-lhe ver que

Giudita amava-o com o mesmo ardor de antes; que

estava sofrendo muito com a sua repulsa e

desconfiança do seu caráter. Que corria o risco de

adoecer gravemente, tal o pesar que a dominava e a

paixão a que a arrastara a crueldade com que foi

repelida. Genaro, que ainda amava também

entranhadamente à menina – e não fora isso não se

sentiria tão tomado de zelos – chegou a comover-se;

mas, com pertinência, recalcou no seu coração o

movimento de simpatia e compaixão que nele

despontava para continuar nas suas idéias e suspeitas.

SP, SPF, SP1: Giuditta

SP, SPF, SP1: soffrendo

SP, SPF, SP1: caracter

SP, SPF, SP1: pezar

SP, SPF, SP1: repellida.

SP, SPF, SP1: Gennaro; tambem

SP, SPF, SP1: á menina

SP, SPF, SP1: commover-se

SP1: pertinacia, (Erro óbvio); SP1:

perinencia,

SP, SPF, SP1: sympathia; n’elle

SP, SPF, SP1: idéas

260

Genaro firmou-se nisto sem dar a razão por que: –

Não queria casar-se. Marco que se esforçava por

conter-se, pois aquela teimosia estava quase a

impacientá-lo, perguntou-lhe com seriedade, aflição e

dor profunda – que transparecia no trêmulo da sua voz

e nos gestos, – se Giudita não era mais uma menina

digna, pura e virtuosa.

SP, SPF, SP1: n’isso; Gennaro

SP, SPF, SP1: aquella; quasi

SP, SPF, SP1: impaciental-o,

afflicção

SP1: trrnsparecia (Erro óbvio.);

tremulo

SP, SPF, SP1: si; Giuditta

265

Àquela interrogação ex abrupto, para ele uma

grave exprobração, tão severamente foi feita,

acompanhada de sentimentos de profunda tristeza e

amargura que transpareciam no semblante do velho

italiano, Genaro sentiu-se abalado até o íntimo. Estava

SP, SPF, SP1: Áquella; elle ; SP:

ex abupto, SPF, SP1: EX

ABUPTO

SP, SPF, SP1: Gennaro; intimo

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445

270

275

em jogo a reputação da sua querida Giudita e de uma

família honesta que venerava desde criança, e a quem

devia gratidão e afeto. Da sua resposta dependia um

rompimento de más conseqüências ou, então, a volta

da antiga tranqüilidade e confiança anteriores. Preferiu

este último alvitre; mas para chegar a bom resultado,

era preciso tudo revelar, tendo ele entretanto dado a

sua palavra a Tomás de guardar reserva.

SP, SPF, SP1: Giuditta; familia

SP, SPF, SP1: creanca,

SP, SPF, SP1: afecto

SP, SPF, SP1: consequencias

SP, SPF, SP1: tranquillidade

SP, SPF, SP1: ultimo

SP, SPF, SP1: elle; Thomaz

Enquanto Genaro assim pensava, Marco, com o

semblante fechado, nele fitava um olhar como nunca

lhe vira, e aguardava silencioso uma resposta qualquer

a que ele não podia se esquivar.

SP, SPF, SP1: Emquanto; Gennaro

SP, SPF, SP1: n’elle

SP, SPF, SP1: elle

280

-Ah! Per la madona di pied di grotta! – disse

Genaro por fim com voz trêmula e toda comoção –

Nunca duvidei da pureza e virtude de Giudita.

SP: Ah! per la madona di pied di

grotta!, SPF, SP1: AH! PER LA

MADONA DI PIED DI

GROTTA!; SP, SPF, SP1:

Gennaro porfim; tremula;

commoção; SP, SPF, SP1: Giuditta

–Então? – perguntou Marco mais animado.

285

O rapaz, trêmulo e titubeante, respondeu que mais

tarde tudo explicaria; que o seu velho protetor e amigo

não se assustasse, pois nada havia no caso que

deslustrasse a honra e crédito de sua família. Marco

não insistiu e retirou-se meditabundo303 procurando

decifrar tão esquisito enigma que já o ia aborrecendo.

SP, SPF, SP1: tremolo

SP, SPF, SP1: protctor

SP, SPF, SP1: credito; familia.

SP, SPF, SP1: exquisito

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446

XXI

5

10

São decorridos muitos dias depois do último

colóquio entre Marco e Genaro. Este continua retirado

da sua amada, não mais canta ao serão e anda triste. A

mocinha não é mais aquela criaturinha alegre e

risonha porque não via o seu Genarino; como que lhe

faltava uma parte do seu todo espiritual; que a sua

personalidade está incompleta. Marco está

macambúzio, ora animado pelo que lhe disse o pupilo,

ora aborrecido só a meditar fumando o seu cachimbo à

volta e meia, a esperar indefinidamente a solução que

o mancebo prometeu para mais tarde.

SP, SPF, SP1: ultimo

SP, SPF, SP1: colloquio;

Gennaro

SP, SPF, SP1: aquella;

creaturinha

SP, SPF, SP1: Gennarino

SP, SPF, SP1: macambuzio;

pupillo

SP, SPF, SP1: á volta

SP, SPF, SP1: prometteu

15

20

O jovem napolitano tinha tão enraizada em seu

ânimo a calúnia que Tomás inventara e soubera

insinuar em seu espírito que, mesmo procurando

justificar Giudita, ainda tinha ciúmes; pois paixões

como a dele são de um exclusivismo exagerado.

Giudita era inocente e, como todas as da sua idade,

inexperiente e incauta. Tão hábil foi João Lopes que

conseguiu tornar-se simpático à pobre moça, o que por

forma alguma é admissível por quem, como o jovem

italiano, ama em extremos. Giudita decerto namorava

SP, SPF, SP1: joven

SP, SPF, SP1: animo; calumnia;

Thomaz

SP, SPF, SP1: espirito

SP, SPF, SP1: Giuditta; ciumes;

d’elle

SP, SPF, SP1: Giuditta;

innocente; edade (,)

SP, SPF, SP1: habil

SP, SPF, SP1: sympathico; á

pobre

SP, SPF, SP1: admissivel; joven

SP, SPF, SP1: Giuditta

303 Meditabundo: meditando profundamente, pensativo.

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447

25

30

italiano, ama em extremos. Giudita decerto namorava

por diversão; mas o culpado era o miserável sedutor

que conseguiu fasciná-la. Toda a culpa, portanto, da

moça recaia em João, contra quem se voltou todo o

rancor do moço apaixonado e ardente. Sob qualquer

pretexto, Genaro não saía do galpão aos domingos, e

dali espreitava João quando vinha, como lhe era

habitual, em companhia de Calisto, palestrar com o

velho Marco. As mais das vezes Aristides também ali

aparecia, e, como era quem lia, era muito apreciado

pelos demais, pois trazia sempre notícias que muito

interessavam aos circunstantes e tornava a palestra

muito agradável.

SP, SPF, SP1: miseravel;

seductor

SP, SPF, SP1: fascinal-a

SP, SPF, SP1: rechaia

SP, SPF, SP1: Gennaro; sahia

SP, SPF, SP1: d’alli

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: tambem; alli

SP, SPF, SP1: apparecia

SP, SPF, SP1: noticias

SP, SPF, SP1: circumstantes

SP, SPF, SP1: agradavel

35

40

45

Duas semanas depois do que descrevemos no

capítulo anterior, quando se achavam os habituais

visitantes de Marcos reunidos em frente da casinha do

velho italiano, Aristides também ali chegou, dizendo a

João que trazia notícias sensacionais que muito

interessavam ao seu cunhado, as quais recebera de

Ribeirão Preto por carta de um seu amigo e gazetas

que ele lhe remeteu. Genaro, que espreitava do seu

esconderijo e tudo ouvia, interessou-se como os

outros, por simples curiosidade, pelo que Aristides ia

noticiar, procurando não perder uma palavra do que o

SP, SPF, SP1: capitulo; habituaes

SP, SPF, SP1: tambem; alli

SP, SPF, SP1: noticias;

sensacionaes

SP, SPF, SP1: quaes

SP, SPF, SP1: elle; remetteu;

Gennaro

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secretário dissesse. SP, SPF, SP1: secretario

50

55

60

–A polícia de Ribeirão, – disse Aristides, –

que andava na pista de Abílio e Tomás, e chegou a

descobrir que os dois mais de uma vez confabularam

em secreto, descobriu afinal uma quadrilha de

gatunos, chefiada por um tal coronel Norberto de

quem já te falei, e que operava neste Estado de Minas.

Norberto é um fino larápio304 que já foi identificado

na Bahia, em Recife e até no Rio e tem o seu

verdadeiro nome registrado nos arquivos policiais

dessas cidades. A matula de velhacos lança mão de

todos os meios, cada um dos sócios agindo

separadamente conforme a sua índole, para obter

dinheiro. O Tomás, por exemplo, cujo verdadeiro

nome é Gil, cometeu em Uberaba o crime de roubo

com tentativa de assassinato, da qual felizmente

escapou a vítima apesar de receber ferimentos graves.

SP, SPF, SP1: policia

SP, SPF, SP1: Abilio; Thomaz

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: fallei; n’este

SP, SPF, SP1: larapio

SP, SPF, SP1: archivos; policiaes

SP, SPF, SP1: d’essas

SP, SPF, SP1: socios

SP, SPF, SP1: indole

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: commetteu

SP, SPF, SP1: victima; apezar

65

Aristides continuou a referir o caso

impressionante em termos que resumimos. Faziam

parte da súcia, ao que ora se sabe, Tomás e o sujeito

que já apresentamos ao leitor como o “cara de fuinha”,

todos sob o comando do falso coronel, que é o mais

hábil e soube captar confiança e simpatia nos lugares

onde ainda não era conhecido, tais o seu desplante, os

SP, SPF, SP1: sucia; Thomaz

SP, SPF, SP1: commando; habil

SP, SPF, SP1: sympathia

SP, SPF, SP1: taes

304 Larápio: trapaceiro, ladrão.

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70

onde ainda não era conhecido, tais o seu desplante, os

seus modos fidalgos, o seu trajo apurado e luxuoso e a

sua conversação atraente, que denuncia alguma

cultura e trato de fina educação social.

SP, SPF, SP1: attrahente

75

80

85

Ora, sendo Abílio – o falso capitão Rufino–

encontrado algumas vezes em contato com essa gente,

não podia deixar de ser suspeito. A polícia, que já

podia capturar Tomás, adiou a sua prisão na esperança

de colher toda a quadrilha; mas, como isso demorava,

resolveu lançar mão do camarada, que saindo do

serviço de empreitada, foi procurar o patrão.

Entretanto, quando a polícia lançou mão dele, achava-

se somente em companhia de Norberto e o outro que

também foram presos, escapando Abílio, que estava

ausente e, quando soube da prisão, desapareceu da

cidade sem que se soubesse o rumo que tomou. O

outro não teve tempo de escapulir, porque o coronel

suposto indicou o lugar onde ele achava-se, antes que

pudesse ocultar-se.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: contacto

SP, SPF, SP1: policia

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: sahindo

SP, SPF, SP1: policia; d’elle

SP, SPF, SP1: sómente

SP, SPF, SP1: tambem; Abilio

SP, SPF, SP1: desappareceu

SP, SPF, SP1: supposto; elle

SP, SPF, SP1: podesse; occultar-

se.

90

Tomás, vendo-se perdido, fez revelações que

comprometeram Abílio. Norberto conservou o seu

aprumo de descarado já muito prático em empreitadas

dessa ordem, chegando a dizer que Abílio o havia

logrado no ajuste de contas, que era um sujeito mau

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: comprometteram;

Abilio

SP, SPF, SP1: pratico

SP, SPF, SP1: d’essa; Abilio

SP, SPF, SP1: máu

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450

95

pagador, por isso não queria mais negócios com ele.

Terminou dizendo que estava regenerando, mas Abílio

conseguiu iludi-lo com histórias falsas que ele repetiu

em público sem má intenção e que deram em

resultado as más conseqüências que ocorriam agora.

SP, SPF, SP1: negocios; elle

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: illudil-o; historias;

elle

SP, SPF, SP1: publico

SP, SPF, SP1: consequencias;

occorriam

100

–Se o falso Tomás deixou aqui o seu rastro –

acrescentou Aristides – é o que ainda ignoramos.

SP, SPF, SP1: Si; Thomaz

SP, SPF, SP1: accrescentou

105

110

115

Todas as notícias que Aristides referiu foram

ouvidas por Genaro do recanto onde estava oculto.

Elas causaram-lhe terror e vergonha. Convencia-se

agora de que Tomás o iludira com hipocrisia

rematada, que esteve na fazenda do coronel a serviço

de Abílio com o fim de perseguir a João Lopes e que

armou aquela intriga odiosa querendo utilizar-se dele

para cometer um crime. Compreendeu logo que o

patife, talvez em conversas no galpão, teria descoberto

os seus amores por Giudita, e prevaleceu-se dessa

circunstância para armar o seu embuste. Em que

perigo se meteu! Quanto era vergonhoso a um moço

como ele ter-se ombreado com um tipo canalha como

aquele, a quem dispensou amizade e confiança

fraternais! Afeiçoado pelo miserável, seria capaz de

cometer um assassinato, tal o ódio que ele infiltrou em

seu coração contra o Lopes, a quem estimava antes

SP, SPF, SP1: noticias

SP, SPF, SP1: Gennaro; occulto

SP, SPF, SP1: Ellas

SP, SPF, SP1: Thomaz; illudira;

hypocresia

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: aquella; d’elle

SP, SPF, SP1: commetter;

Comprehendeu

SP, SPF, SP1: Giuditta; d’essa

SP, SPF, SP1: circumstancia

SP, SPF, SP1: metteu

SP, SPF, SP1: elle; typo; aquelle

SP, SPF, SP1: fraternaes;

miseravel

SP, SPF, SP1: commetter; odio;

elle

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120

disso pelos seus modos bondosos e pacíficos. Disso

resultaria a sua desgraça, a ruína da família de Marco,

a impossibilidade de um casamento que era a sua mais

doce aspiração, e a sua ligação a uma família que era

credora da sua estima e respeito.

SP, SPF, SP1: d’isso; pellos;

pacificos. D’isso

SP, SPF, SP1:desgraça (,); ruina;

familia

SP, SPF, SP1: familia

125

130

Estes pensamentos martirizavam o pobre

Genaro que, arrependido, com a consciência

remordida, convencia-se da necessidade de uma

urgente reparação. Entretanto, ferira tão fundo o

coração do velho Marco e magoara tanto o da sua

amada, que duvidava conseguir que se restabelecesse

a antiga amizade que reinava entre ele e o seu velho

protetor, e que fosse possível o seu casamento com

Giudita, cuja mão ele recusara de tão mau modo.

SP, SPF, SP1: martyrizavam;

Gennaro

SP, SPF, SP1: consciencia

SP, SPF, SP1: maguara

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: protector; possivel

SP, SPF, SP1: Giuditta; elle

135

140

Fosse, porém, como fosse, por maior que fosse

a vergonha e humilhação que ele sofreria com isso, era

indispensável uma franca confissão do que se passara

entre ele e Tomás. Os seus nobres sentimentos assim o

exigiam, e só esse sacrifício enorme do seu orgulho

compensaria o seu procedimento irrefletido que tanto

magoou Marco e Giudita. Nessa disposição de ânimo,

logo que viu Marco sozinho, assentado no rebato da

porta a meditar, a ele se dirigiu resolutamente.

SP, SPF, SP1: porem

SP, SPF, SP1: elle; soffreria

SP, SPF, SP1: indispensavel;

confição

SP, SPF, SP1: elle; Thomaz

SP, SPF, SP1: sacrificio

SP, SPF, SP1: irreflectido

SP, SPF, SP1: maguou; Giuditta;

N’essa; animo

SP, SPF, SP1: elle

Quando Genaro chegou diante da porta, SP, SPF, SP1: Gennaro; deante

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145

150

curvou-se, beijou respeitosamente a mão do velho e

conservou-se de pé, cabisbaixo e com o rosto

afogueado de vergonha. O bom velho, surpreso, vendo

naquela estranha atitude algo de novidade, nada disse

ou indagou, à espera de dizer ao rapaz o que

significava aquilo. Genaro conservava-se hesitante,

sem saber por onde começasse. No rosto de Marco de

que, entanto, adivinhava naquilo uma íntima ligação

com os fatos ultimamente dados.

SP, SPF, SP1: surprezo

SP, SPF, SP1: n’aquella;

extranha; attitude

SP, SPF, SP1: á espera

SP, SPF, SP1: aquillo; Gennaro

]SP, SPF, SP1: emtanto;

n’aquillo; intima

SP, SPF, SP1: factos

155

160

Passados alguns momentos, Genaro, com voz

trêmula que denunciava o estado da sua alma, disse

que vinha pedir perdão a seu pai adotivo por tê-lo

maltratado, quando era ele digno do seu respeito,

estima e gratidão. Agora, sim, é que não podia casar e

possuir uma noiva muito gentil, tão graciosa, tão pura.

A sua voz tinha tonalidades ternas e plangentes que

comoviam o coração bondoso e paternal do velho que,

estatelado, com os olhos fitos no rapaz, de quem se

compadecia, percorria o passado rapidamente em

pensamentos.

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: tremula

SP, SPF, SP1: pae; adoptivo; tel-

o

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: plagentes

SP, SPF, SP1: commoviam

165

Genaro fora sua cria e ele muito o amava.

Estava, portanto, ansioso por saber inteiramente o que

houvera, o que tanto fazia sofrer o seu pupilo, o que se

passava na sua alma. Mortos os pais daquele

SP, SPF, SP1: Gennaro; foi; elle

SP, SPF, SP1: ancioso

SP, SPF, SP1: houver; soffrer;

pupillo

SP, SPF, SP1: paes; d’aquelle

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adolescente, quando ele ainda muito criança, Marco

tomora-o à sua conta, porque uma sua irmã que com

ele ficara, havia casado com um sujeito que lhe impôs

abandonar o irmãozinho.

SP, SPF, SP1: elle;

SP, SPF, SP1: tomou-o á sua

SP, SPF, SP1: elle; ficou; casou-

se logo; impoz

170

175

180

Quando veio a razão ao menino, a quem

encontrou como pai, mas pai carinhoso ao extremo,

foi Marco. O bom e caridoso napolitano era pescador

e, todas às vezes que aparelhava a sua tartana,305 quer

para a pesca, quer para alguma viagem ou passeio de

algum turista, lá estava o orfãozinho, que era

inseparável do seu pai adotivo, esperto, inteligente, a

examinar tudo com interesse e, às vezes, ajudar Marco

naquilo que lhe fosse possível. O pai adotivo de

Genaro, encantado com a viveza do seu pupilo, dizia

que “o menino era aproveitável e poderia vir a ser um

ótimo marítimo.”

SP, SPF, SP1: pae, mas pae

SP, SPF, SP1: as vezes;

apparelhava

SP: turista, SPF, SP1: TURISTA;

la;orphãozinho; inseparavel;

SP, SPF, SP1: pae; adoptivo;

intelligente

SP, SPF, SP1: ás vezes

SP, SPF, SP1: n’aquillo;

possivel; pae; adoptivo

SP, SPF, SP1: Gennaro; pupillo

SP, SPF, SP1: aproveitavel

SP, SPF, SP1: optimo maritimo

185

Marco sabia ler, e nas horas vagas, dava lições

a Genaro, que mostrou uma grande vocação para isso

e vontade insopitável de conhecer os vinte e dois

caracteres do alfabeto italiano e as combinações que

com eles se faz ao infinito. Meses depois Marco,

como era o seu desejo, matriculou o menino em uma

escola regular. Cifrou-se a instrução de Genaro no

SP, SPF, SP1: vagas

(Acrescentou-se vírgula.); licções

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: insopitavel; dous

SP, SPF, SP1: alphabeto

SP, SPF, SP1: elles

SP, SPF, SP1: instrucção;

Gennaro

305 Tartana: pequena embarcação mediterrânea, que possuía um só mastro, vela latina e gurupés, usada para transporte ou pesca.

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190

curso elementar, porque o seu protetor não dispunha

de recursos bastantes para levá-lo a escolas de outros

cursos mais adiantados.

SP, SPF, SP1: protector

SP, SPF, SP1: leval-o

SP, SPF, SP1: adeantados

195

200

Genaro tinha uma voz admirável pelo timbre e

extensão; mas não freqüentou escolas regulares de

música. Como era apaixonado por esta bela arte,

aprendeu de oitiva e era um cantor primoroso que

chegava a improvisar. Vê-se por tudo isso porque

Marco era tão afeiçoado ao seu pupilo que, para

coroar tantos predicados intelectuais, era de uma

conduta exemplar, respeitoso, econômico e de gênio

dócil.

SP, SPF, SP1: Gennaro;

admirável

SP, SPF, SP1: frequentou

SP, SPF, SP1: musica

SP, SPF, SP1: outiva

SP, SPF, SP1: affeiçoado; pupillo

SP, SPF, SP1: intellectuaes

SP, SPF, SP1: conducta;

economico; genio

SP, SPF, SP1: docil

205

Tudo isso passou rapidamente pelo

pensamento de Marco, e intensificou a ternura que o

bom velho votava ao seu querido pupilo. A humildade

com que este lhe falou, o modo por que se apresentava

despertaram no coração de Marco os sentimentos que

sempre manteve acerca de Genaro, do mesmo passo

que varreu do seu espírito os desgostos e amarguras

que lhe causaram os últimos acontecimentos.

SP, SPF, SP1: pupillo

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: espirito

SP, SPF, SP1: ultimos

210

Em que Genarino se desmerecera a ponto de

tomar aquela resolução? pensava o velho. É verdade

que se sentiu magoado, não pela recusa da mão de

Giudita, mas pelo modo brusco e insólito que ele usou

SP, SPF, SP1: Gennarino; ao

ponto de (Emendou-se.)

SP, SPF, SP1: aquella

SP, SPF, SP1: maguado; Giuditta

SP, SPF, SP1: insólito; elle;

attribuindo

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215

220

atribuindo à bambina namoricos com outro.

Refletindo calmamente, considerou ele que o ciúme é

tanto mais violento quanto mais ardente a paixão. Era

e é, ao seu ver, naturalíssima essa manifestação do

amor por uma simples desconfiança, por uma

insignificância. Embora se tivesse aborrecido com

aquele triste incidente, a sua experiência avaliava que

esses zelos exagerados eram passageiros. Os que não

ciúmam não amam; apenas namoram por diversão.

Além disso, Genarino reconheceu a virtude e pureza

da sua amada.

SP: á bambina, SPF, SP1: á

BAMBINA; Reflectindo

SP, SPF, SP1: elle; ciume

SP, SPF, SP1: naturalissima

SP, SPF, SP1: insignificancia

SP, SPF, SP1: aquelle;

experiencia

SP, SPF, SP1: Alem; d’isso;

Gennarino

225

Por alguns momentos conservaram-se ambos

em silêncio, Genaro cabisbaixo a suar de vergonha, e

Marco com uma interrogação debuxada no semblante.

SP, SPF, SP1: silencio; Gennaro

–Vamos, Genarino – disse Marco afinal com

voz meiga e paterna,l – sossegue. O que há?

SP, SPF, SP1: Gennarino

SP, SPF, SP1: socegue

230

235

Animado pelo modo bondoso do velho a

interrogá-lo, Genaro fez um esforço e, com voz

sumida e plangente que pouco a pouco se elevava e

acalmava, referiu francamente o que se deu entre ele e

Tomás; como o miserável conseguira iludi-lo,

mostrando-se seu amigo delicado e dando-lhe

conselhos criteriosos, tais que só o seu velho pai

adotivo poderia dar lhe. Um dia, passados tempos, o

SP, SPF, SP1: interrogal-o;

Gennaro

SP, SPF, SP1: elle; Thomaz

SP, SPF, SP1: miseravel; illudil-

o (,)

SP, SPF, SP1: taes

SP, SPF, SP1: pae; adoptivo

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240

miserável, que entanto, não sabia da sua inclinação e

do seu interesse por Giudita, em conversação

denunciara João Lopes como namorado da sua eleita.

Cego pela paixão, entrou a espreitá-los e chegou a ver

o que não havia. Agora, porém, achava-se convencido

da infâmia de Tomás, e que ele, querendo fazer mal a

João, procurou utilizar nisso a sua ingenuidade,

fazendo-o seu instrumento para o mal.

SP, SPF, SP1: miseravel; que (,);

emtanto; Giuditta

SP, SPF, SP1: Cégo; espreital-os

SP, SPF, SP1: porem

SP, SPF, SP1: infamia; Thomaz;

elle

SP, SPF, SP1: n’isso ;

ingenuidade (,)

245

250

Marco, tendo-o ouvido calmo e silencioso,

sentiu-se comovido à fraqueza do pobre rapaz, que

mais uma vez se revelava honesto e leal e se

engrandecia aos seus olhos, tornando-se ainda mais

digno, se possível, da sua querida Giudita, de quem

estava certo que faria a felicidade. Observou a Genaro

que o seu maior erro foi não ser franco de princípio e

confiar-se num sujeito desconhecido, um camarada

servil e ignorante.

SP, SPF, SP1: commovido; á

fraqueza

SP, SPF, SP1: si; possivel;

Giuditta

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: principio

SP, SPF, SP1: n’um

255

260

Genaro justificou-se dizendo que se

comprometera com Tomás, sob palavra de honra, de

não revelar o que ouviu, porque o camarada estava ao

serviço de João Lopes e temia fosse por ele

perseguido. Marco, em tom paternal, retrucou-lhe que

isso era mais uma prova da hipocrisia de Tomás e da

intriga que armava; que não continuasse a baratear a

SP, SPF, SP1: Gennaro

SP, SPF, SP1: compromettera;

Thomaz

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: hypocrisia;

Thomaz

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265

sua palavra de honra como fez, principalmente

escravizando-a a um indivíduo que não conhecesse

bem de longa data como lealdoso e honesto. A honra,

disse, é um precioso tesouro que devemos guardar

com desvelo a sete chaves para que não se polua ao

contato de gente ignorante e mal educada, que não

compreende o seu valor.

SP, SPF, SP1: individuo

SP, SPF, SP1: thesouro

SP, SPF, SP1: pollua

SP, SPF, SP1: contacto

SP, SPF, SP1: comprehende

270

Tomando estes conselhos da experiência do

velho Marco como uma espécie de exprobação,

Genaro, curvando a fronte, viu confirmada a sua idéia

de ser indigno da bondosa Giudita e, sob esse seu

modo de pensar, externou-se franca e tristemente.

SP, SPF, SP1: experiencia

SP, SPF, SP1: especie

SP, SPF, SP1: Gennaro; idea

SP, SPF, SP1: Giuditta

275

Um “No, figlio mio!” acompanhado de um

sorriso carinhoso de Marco foi a resposta peremptória

que Genaro recebeu. Ele agora se elevava no seu

conceito. “Eu também, disse o velho, fui rapaz

inexperiente e cometi faltas como a de que se argüia o

seu querido pupilo.” E começou a referir a traços

largos a sua vida de moço e como aprendeu a viver.

SP: “No, figlio mio!”, SPF, SP1:

“NO, FIGLIO MIO!”

SP, SPF, SP1: peremptoria

SP, SPF, SP1: Gennaro; Elle;

elevava-se (Emendou ênclise

para próclise.) tambem

SP, SPF, SP1: commetti; arguia

SP, SPF, SP1: pupillo

280

Quando Marco foi entrando na posse da razão,

encontrou a Itália num período de agitação,

dificuldades e tribulações que lhe serviu de escola

proveitosa. A opinião pública vibrava num entusiasmo

fora do comum desejando com ardor e ansiedade o

SP, SPF, SP1: Italia; n’um;

periodo

SP, SPF, SP1: difficuldades

SP, SPF, SP1: publica; n’um

SP, SPF, SP1: enthusiasmo;

commum; anciedade

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458

285

290

complemento da unificação do reino. Já a Lombardia

tinha sido conquistada antes que tudo e o reino de

Nápoles era o centro da ação de Vitor Emanuel; mas

Roma ainda estava por vir à posse dos unificadores

porque o Papa era garantido por Napoleão III.

SP, SPF, SP1: Ja

SP, SPF, SP1: Napoles; acção

SP, SPF, SP1: á posse

295

300

A guerra franco-prussiana em 1870 obrigou o

imperador a retirar o apoio que dava a Pio IX e Vitor

Emanuel, aproveitando essa circunstância, atacou a

capital da Itália e deu-se a jornada feliz da Porta Pia.

Marco tinha então 12 anos e, contaminado pelo

entusiasmo geral, quis acompanhar a expedição, no

que foi impedido por seu pai. Não arrefeceu porém o

seu ardor bélico de moço e, chegada à idade própria,

entrou para o exército a prestar o serviço militar

conforme a lei exigia; mas envergou a farda com

muito prazer. Muita coisa restava fazer-se e o novo

soldado via diante de si um futuro todo glória e

felicidade.

SP, SPF, SP1: circumstancia

SP, SPF, SP1: Italia

SP, SPF, SP1: annos

SP, SPF, SP1: enthusiasmo; quiz

SP, SPF, SP1: pae; porem

SP, SPF, SP1: bellico; á idade;

propria

SP, SPF, SP1: exercito

SP, SPF, SP1: cousa; deante

SP, SPF, SP1: gloria

305

A desilusão veio logo, tão apertado é o serviço

das casernas, ainda mais em circunstâncias como as

que se davam na Itália, que tratava de remodelar-se e

garantir-se contra investidas estrangeiras que era fácil

sobrevirem. Os sofrimentos por que passou, a

severidade injusta e ingrata dos seus superiores, a falta

SP, SPF, SP1: desillusão

SP, SPF, SP1: circumstancias

SP, SPF, SP1: Italia

SP, SPF, SP1: facil

SP, SPF, SP1: soffrimentos

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310

315

de lealdade de muitos de seus companheiros, as

intrigas, a inveja e as más paixões que notou na maior

parte dos seus camaradas; tudo isso muito serviu a

Marco de lição proveitosíssima e fortaleceu-lhe o

ânimo para arrastar as dificuldades da vida e viver em

paz envolvido na sociedade, que entrou a conhecer

como perversa, injusta e desviada em geral das boas

normas.

SP, SPF, SP1: licção

proveitosissima

SP, SPF, SP1: animo;

difficuldades

320

À medida que Marco falava, animava-se

Genaro e sentiu como que um bálsamo infiltrar-se no

seu ânimo varrendo todas as idéias tristes que o

martirizavam. Através de todo aquele sermão, o jovem

percebia a graciosa eleita do seu coração a animá-lo, a

reconhecê-lo o seu preferido, único digno de unir-se

ao seu destino, único capaz de fazer a sua felicidade.

SP, SPF, SP1: A’medida

SP, SPF, SP1: Gennaro; balsamo

SP, SPF, SP1: animo

SP, SPF, SP1: idéas;

martyrizavam; Atravéz; aquelle;

joven;

SP, SPF, SP1: animal-o

SP, SPF, SP1: reconhecel-o;

unico

SP, SPF, SP1: unico

325

Marco terminou abraçando o seu pupilo e

confirmando a confiança e estima que este lhe

merecia. Genaro chorou enternecido e possuído de

uma gratidão que resgatava a falta que cometera e que

tanto o preocupava.

SP, SPF, SP1: pupillo

SP, SPF, SP1: Gennaro; possuido

SP, SPF, SP1: commettera

SP, SPF, SP1: preoccupava

XXII

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460

“O diabo ajuda aos seus” diz o vulgo na sua

concisa apreciação filosófica das coisas desta vida

precária, onde fervem os ódios e as vinganças.

SP, SPF, SP1: philosophica;

cousas; d’esta

SP, SPF, SP1: precaria; odios

5

10

15

Abílio, mesmo fugindo covardemente com

receio da polícia, não deixou de alimentar no seu

coração as idéias de rancor e vingança que lhe

conhecemos. Sempre o mesmo perverso, ajuntou

àqueles que se achavam condenados pelos seus juízos

tortuosos, o pobre Felisberto, o seu antigo colega que

o desmascarou. É bem certo que escapara devido à

generosidade do rapaz; porém a gratidão não podia

medrar naquela alma daninha encharcada de ruins

paixões. Felisberto devia pagar com a morte o que ele

considerava sua audácia e desrespeito à posição de um

cavalheiro que lhe era superior em qualidade e

fortuna.

SP, SPF, SP1: Abilio;

cobardemente

SP, SPF, SP1: policia

SP, SPF, SP1: idéas

SP, SPF, SP1: áquelles;

condemnados; juizos

SP, SPF, SP1: collega

SP, SPF, SP1: á generosidade

SP, SPF, SP1: porem

SP, SPF, SP1: n’aquella

damninha

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: audacia; á posição

20

25

O orgulho mau – a embófia – era a nota

dominante no conjunto de sentimentos maus que

enchiam até o extravasamento a sua alma de

energúmeno. Escapulindo, ao princípio desorientado,

sem rumo certo, conseguiu Abílio chegar a um

lugarejo insignificante, onde se achou em segurança.

Achava-se nas fronteiras do Triângulo Mineiro, como

veio a saber por meio de cautelosas indagações. Nesse

SP, SPF, SP1: embofia

SP, SPF, SP1: conjuncto; máus

SP, SPF, SP1: energumeno;

principio

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: logarejo

SP, SPF, SP1: Triangulo

SP, SPF, SP1: N’esse

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30

35

homizio podia tranqüilamente consertar os seus planos

diabólicos, e foi o que ele procurou fazer. O seu

desejo era raspar-se para a Bahia, onde estaria bem

seguro como cria; mas deixaria atrás sem solução

tantas coisas que o seu espírito engendrara, e a que se

via preso. Era preciso pelo menos ferir o seu antigo

rival e vingar-se do seu antigo condiscípulo de

colégio. Para isso faltava-lhe um instrumento e, se não

o encontrasse tal como desejava prontamente, por isso

não retardaria a sua volta à Bahia.

SP, SPF, SP1: tranquillamente

SP, SPF, SP1: diabólicos; elle

SP, SPF, SP1: deixava; atraz

SP, SPF, SP1: cousas; espirito

engendrou

SP, SPF, SP1: condiscipulo

SP, SPF, SP1: collegio; si

SP, SPF, SP1: promptamente

SP, SPF, SP1: á Bahia

40

Um velho vendeiro, homem honesto e pacato,

acolheu-o como pensionista. Abílio achou ótimo o

pouso, porque a casa era situada à beira da estrada, o

modesto negócio do velho era muito procurado pelos

viajantes e, por seu interesse, o bom velho construíra

uma rancharia ao pé da casa para albergue dos

pedestres que dele se quisessem utilizar. Entre tantos

viajantes, de toda a espécie e conduta teria Abílio

onde escolher.

SP, SPF, SP1: Abilio; optimo

SP, SPF, SP1: á beira

SP, SPF, SP1: negocio

SP, SPF, SP1: construira

SP1: alvergue (Erro óbvio.)

SP, SPF, SP1: d’elle; quizessem;

viandantes

SP, SPF, SP1: especie; conducta;

Abilio

45

Abílio, que se dava como negociante

ambulante, conduzia uma pequena mala de mão,

dizendo ao velho dono da casa que o resto das suas

mercadorias ficara na última estação da via férrea; que

naquela mala conduzia algumas jóias e quinquilharias

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: ultima

SP, SPF, SP1: n’aquella; joias

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50

55

60

65

que esperava vender para não perder tempo.

Pretextando necessidade de descanso e achar-se um

pouco adoentado, demorar-se-ia ali alguns dias. A

verdade é que ele viera ter ali desorientado, apenas

podendo conduzir aquela mala, na qual levava duas

mudas de roupa, algum dinheiro e objetos miúdos. As

duas malas realmente haviam sido despachadas para a

estação a que se referia, e o seu dinheiro de vulto foi

depositado em um banco dos mais acreditados. Abílio

viajou por estrada de ferro que, abandonava aqui e ali

em estações intermediárias quando encontrava outra

qualidade de veículos. Desviando-se assim para um e

outro lado, às vezes viajando a pé, o seu fim era

desorientar quem porventura viesse em sua

perseguição; mas foi feliz porque ninguém em

Ribeirão Preto preocupou-se com ele.

SP, SPF, SP1: descanço

SP, SPF, SP1: alli

SP, SPF, SP1: elle; alli

SP, SPF, SP1: aquella

SP, SPF, SP1: objectos; meudos

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: alli

SP, SPF, SP1: intermediarias

SP, SPF, SP1: vehiculos

SP, SPF, SP1: ás vezes

SP, SPF, SP1: ninguem

SP, SPF, SP1: preoccupou-se;

elle

70

Assim chegou aonde o encontramos por

último. Durante o dia percorria o arraialete oferecendo

e vendendo objetos miúdos, jóias de pequeno valor,

etc. Ao descansar, ficava horas e horas na venda

conversando com os transeuntes ordinários e fazendo

jeitosamente indagações ou então procurava aqueles

que se aboletavam na rancharia. Quando, porventura,

passavam viajantes que lhe parecessem de classe mais

SP, SPF, SP1: ultimo

SP, SPF, SP1: offerecendo

SP, SPF, SP1: objectos; meudos;

joias

SP, SPF, SP1: ordinarios

SP, SPF, SP1: geitosamente;

aquelles

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75

passavam viajantes que lhe parecessem de classe mais

elevada, Abílio ocultava-se na sua alcova, de onde

ouvia-os conversar com o locandeiro,306 só

aparecendo quando certo de que não havia perigo de

ser reconhecido.

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: apparecendo

80

85

90

95

“O diabo ajuda aos seus” dissemos ao

começar este capítulo. Expliquemos. Já fazia uma

semana mais ou menos que Abílio se achava naquele

pouso, quando foi surpreendido pelo aparecimento do

seu antigo assecla –o Gil ou Tomás – que, ao

reconhecê-lo, parou defronte da locanda. O antigo

patrão de Gil, olho aqui, olho ali, vendo que ambos

estavam a sós, manifestou francamente, se bem que

com a sua costumada discrição, o contentamento que

experimentava. Veio-lhe logo à idéia aproveitar o caso

para que o meliante lhe fosse agradecido. Disse-lhe

que esperava vê-lo porque dera providências a fim de

que o seu camarada conseguisse a livrança.307 Gil,

mostrando-se reconhecido ao patrão, passou a referir

na sua linguagem rude e estropiada que a Justiça de

Uberaba achou que a sua prisão foi ilegal tendo sido

feita sem ser pedida por precatória. Um advogado

tratou disso e conseguiu pô-lo em liberdade apenas

SP, SPF, SP1: capitulo

SP, SPF, SP1: Abilio; n’aquelle

SP, SPF, SP1: surprehendido;

apparecimento

SP, SPF, SP1: Thomaz

SP, SPF, SP1: reconhecel-o

SP, SPF, SP1: alli

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: discreção

SP, SPF, SP1: á idéa

SP, SPF, SP1: vel-o;

providencias; afim

SP, SPF, SP1: illegal

SP, SPF, SP1: precatoria; d’isso;

pol-o

306 Locandeiro: proprietário de locanda, ou seja, casa de pasto ordinária. 307 Livrança: livramento.

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por caridade. Tencionava voltar para Ribeirão, mas,

contente por encontrar o seu patrão estava ali às suas

ordens “para a vida e para a morte”.

SP, SPF, SP1: alli; ás suas

100

105

Abílio aconselhou-lhe que se arranchasse ali,

indicando o albergue, deu-lhe uns cobres e disse-lhe

que tinha muito que conversar com ele. O que é certo

é que, desse dia por diante, quando os dois o podiam a

sós, entravam a conversar longamente em ar

misterioso, como dois amigos, cada qual desejando

tirar proveito do outro. Por fim, tudo combinado entre

os dois, Abílio separou-se de Gil fornecendo-lhe certa

quantia e viajou para o Norte e o camarada voltou para

Ribeirão levando certamente recomendações e

promessas de encherem-lhe o olho.

SP, SPF, SP1: Abilio; alli

SP, SPF, SP1: alvergue

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: d’esse; deante;

dous

SP, SPF, SP1: mysterioso; dous

SP, SPF, SP1: Porfim

SP, SPF, SP1: dous; Abilio

SP, SPF, SP1: recommendações

110

115

O resultado das confabulações entre Gil e

Abílio, as quais por certo não eram honestas e lícitas,

foi o seguinte: –Quando uma noite Felisberto, – o

antigo colega que descobriu o incógnito de Abílio –

seguia para a sua residência alta noite por uma viela

escusa, foi assaltado por dois embuçados que o

espancaram barbaramente, deixando-o prostrado e

sem sentidos, e desapareceram rapidamente. Debalde

a polícia, que o encontrou neste estado, procurou

descobrir os assaltantes. Felisberto, voltando a si, nada

SP, SPF, SP1: Abilio, as quaes;

licitas (,)

SP, SPF, SP1: collega; incognito;

Abilio

SP, SPF, SP1: residencia viella

excusa

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: barbaramente (,)

SP, SPF, SP1: desappareceram;

policia

SP, SPF, SP1: n’este

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465

120

informou que adiantasse, e o crime nefando ficou

impune.

SP, SPF, SP1: adeantasse

XXIII

5

Enquanto se davam os fatos que relatamos nos

dois últimos capítulos, João e Calisto, ao aproximar-se

à entrega da empreitada, tratavam de dispor dos

produtos agrícolas que lhes pertenciam pelo contrato e

preparavam-se para realizar os seus negócios com o

coronel Paulino.

SP, SPF, SP1: Emquanto; factos;

dous

SP, SPF, SP1: ultimos; capitulos;

Calixto; approximar-se

SP, SPF, SP1: á entrega

SP, SPF, SP1: productos;

agricolas; contracto

SP, SPF, SP1: realisar; negocios

10

15

Gil, terminada a empresa contra Felisberto, voltou

de Ribeirão para as imediações da fazenda do coronel

conforme combinara com o patrão, e, às ocultas,

procurou descobrir quando os empreiteiros, tudo

concluído, tencionavam voltar para a Bahia. Sem que

o vissem, temendo ser reconhecido por já ter

trabalhado na empreitada, à noite o miserável

aproximava-se da residência dos empreiteiros, ouvia o

que conversavam e combinavam, via-os fazerem as

suas arrumações, mais ou menos percebia quanto iam

SP, SPF, SP1: empreza

SP, SPF, SP1: immediações

SP, SPF, SP1: ás occultas

SP, SPF, SP1: concluido (,)

SP, SPF, SP1: ja

SP, SPF, SP1: á noite; miseravel

SP, SPF, SP1: approximava-se;

residencia

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apurando dos seus negócios e inteirava-se do tempo

mais ou menos empregado para a viagem.

SP, SPF, SP1: negocios

20

Afinal, tudo concluído, tiveram João e Calisto que

entregar o trabalho realizado.

SP, SPF, SP1: concluido; Calixto

SP, SPF, SP1: realisado

25

30

35

40

O coronel Paulino pessoalmente, acompanhado de

Aristides e Melquíades, foi examinar tudo, contar os

cafezeiros e verificar se em tudo tinham sido

observadas as cláusulas estipuladas no contrato. Em

tudo quanto examinou e verificou ficou cabalmente

demonstrado o escrúpulo e honestidade dos dois

contratantes que chegaram a aumentar quinhentas

plantas sobre o número contratado, para o caso de

sobrevir qualquer contratempo. Desta demasia não

queriam compensação pecuniária dizendo que se

achariam de sobejo indenizados se o coronel estivesse

satisfeito. O coronel, apesar de discreto como são os

ricos e poderosos quando tratam com pessoas que

consideram somenos,308 sorriu bondosamente e

elogiou o trabalho dos dois baianos na impecabilidade

com que traçaram as fileiras e guardaram a distância

exigida pela técnica agrícola entre as plantas. Chegou

mesmo a oferecer os seus ofícios a João e Calisto e

propor-lhes um novo contrato para formação de outro

cafezal, o que deixaram eles de aceitar por ansiarem

SP, SPF, SP1: Melchiades

SP, SPF, SP1: cafeseiros; si

SP, SPF, SP1: clausulas

contracto

SP, SPF, SP1: escrupulo; dous

SP, SPF, SP1: contractantes;

augmentar

SP, SPF, SP1: numero;

contractado

SP, SPF, SP1: D’esta

SP, SPF, SP1: pecuniaria

SP, SPF, SP1: indemnizados; si

SP, SPF, SP1: apezar

SP, SPF, SP1: dous; bahianos;

impeccabilidade

SP, SPF, SP1: distancia

SP, SPF, SP1: techina; agricola

SP, SPF, SP1: offerecer; officios;

Calixto

SP, SPF, SP1: contracto; cafesal

SP, SPF, SP1: elles; acceitar

308 Somenos: infeior, de menor valor que outro.

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cafezal, o que deixaram eles de aceitar por ansiarem

por chegar em sua terra e no seio amorável das suas

famílias.

SP, SPF, SP1: ancearem;

amorável

SP, SPF, SP1: familias

45

–Os senhores são homens de bem – disse o

coronel. –É pena que não realizem na sua terra o que

aqui vamos fazendo. Dou-lhes, entretanto, razão. Os

senhores são exceção na sua terra sertaneja que,

segundo estou informado, é riquíssima.

SP, SPF, SP1: realisem

SP, SPF, SP1: excepção

SP, SPF, SP1: riquissima

50

–Não somos exceções, senhor coronel – retrucou

João. – Os nossos sertanejos são laboriosos e

procuram arrancar da terra os tesouros que ela guarda.

SP, SPF, SP1: excepções

SP, SPF, SP1: thesouros; ella

–E por que a abandonam para procurarem fortuna

entre nós?

SP, SPF, SP1: porque; nós. (?)

55

–É que os homens que dirigem a Bahia não nos

auxiliam nem fomentam o trabalho como o governo

de São Paulo; porque o nosso sertão é muito vasto e

não dispõe dos meios de transporte que aqui vejo.

SP, SPF, SP1: S. Paulo

60

–Ora governos! Meu amigo, a iniciativa do povo é

que faz o progresso. Viram o nosso crescente

progresso que, daqui a poucos anos, será estupendo.

Convença-se de que ele é devido em primeiro lugar à

nossa iniciativa. Quando os governantes vêm boa

vontade e deliberação no povo trabalhador é que vem

auxiliá-lo no seu labor, e por seu próprio interesse. O

SP, SPF, SP1: aigo (,)

SP, SPF, SP1: d’aqui; annos(,)

SP, SPF, SP1: elle; á nossa

SP, SPF, SP1: auxilial-o; proprio

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65

próprio Deus ajuda a quem trabalha, e quer que a

iniciativa parta dos homens. Nada esperem dos

poderes públicos; deliberem-se a dotar a sua terra do

progresso que ela bem merece, sejam livres, e os

governos ver-se-ão forçados a vir em seu auxílio.

SP, SPF, SP1: proprio

SP, SPF, SP1: publicos

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: auxilio

70

Assim conversando chegaram em casa. As contas

foram ajustadas e os pagamentos feitos, recebendo

João e Calisto vultuosas quantias, que pediram ao

coronel as passassem para a Bahia à sua entrega visto

como a viagem que tinham de fazer era extensa e

cheia de riscos para quem levasse dinheiro.

SP, SPF, SP1: feitos (,)

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: á sua

75

80

Livres os dois amigos do seu compromisso de

modo satisfatório, e de posse de alguns contos de réis

que para eles era fortuna invejável, não se

preocupavam com as despesas da viagem, porque o

produto da venda de cereais e mais objetos dava com

muita sobra para chegarem em sua terra. Restava-lhes

irem ao sítio de Oliveira e, de regresso, empreenderem

a sua grande viagem de retorno aos sertões baianos.

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: satisfactorio; reis

SP, SPF, SP1: elles; invejavel

SP, SPF, SP1: preoccupavam;

despezas

SP, SPF, SP1: producto; cereaes;

objectos

SP, SPF, SP1: sitio;

emprehenderem

SP, SPF, SP1: bahianos

85

Havia contentamento geral entre os amigos de

João e Calisto pelo bom resultado que haviam colhido

e pela conduta exemplar que ali haviam mantido.

Aristides exultava por ficar-lhe demonstrado que João

era um homem de bem que honrava a sua família, e

SP, SPF, SP1: Calixto; colheram

SP, SPF, SP1: conducta; alli ;

mantiveram

SP, SPF, SP1: familia; n’esse

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90

95

nesse sentido escreveu uma longa carta a seu pai, na

qual apresentava Calisto, fazendo as mais lisonjeiras

referências a seu respeito. Melquíades veio apresentar

os seus parabéns aos dois amigos, a quem ofereceu os

seus préstimos, informando que o coronel Paulino

estava satisfeitíssimo. Marco, Genaro, Giudita e, até, a

velha Maria já sentiam saudades antecipadas quando

se lembravam da retirada dos dois baianos. Como

prova de confiança, os dois amigos, tendo de ir a

Bebedouro, confiaram a Marco, até que voltassem,

todos os objetos e, até, algum dinheiro que lhes era

dispensável nessa pequena viagem.

SP, SPF, SP1: pae

SP, SPF, SP1: Calixto (,)

SP, SPF, SP1: referencias;

Melchiades

SP, SPF, SP1: parabens; dous;

offereceu

SP, SPF, SP1: prestimos

SP, SPF, SP1: satisfeitissimo;

Gennaro; Giuditta

SP, SPF, SP1: dous; bahianos

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: objectos

SP, SPF, SP1: dispensavel;

n’essa

200

205

Oliveira acolheu o genro e o seu amigo com a

maior cordialidade. João propôs-lhe ir para a Bahia.

Conheceria seus netinhos e daria com isso muito

prazer a sua filha. Oliveira não se pôs de fora; mas só

iria depois que dispusesse do seu sítio. Estava em

idade avançada e muito só, necessitando viver

tranqüilo no meio dos seus. Quando lhe fosse

possível, avisaria previamente.

SP, SPF, SP1: ao seu (Emendou-

se.)

SP, SPF, SP1: propoz-lhe

SP, SPF, SP1: nettinhos

SP, SPF, SP1: poz

SP, SPF, SP1: sitio

SP, SPF, SP1: edade

SP, SPF, SP1: tranquillo

SP, SPF, SP1: possivel

210

Gil ignorava todas as particularidades que damos

acima, mas do seu esconderijo pôde colher alguma

cousa e ficar ciente que os dois amigos estavam em

véspera de viagem. Por isso preparava-se para segui-

SP, SPF, SP1: sciente; dous

SP, SPF, SP1: vespera; seguil- os

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470

los levando consigo más intenções. SP, SPF, SP1: comsigo

215

220

225

João e Calisto foram a Bebedouro, onde fizeram

algumas compras, não se esquecendo de objetos que

deixariam com os amigos como lembrança e sinal de

gratidão. Voltando à fazenda do coronel dias depois,

os dois amigos inseparáveis fizeram a entrega dos

presentes àqueles a quem os destinavam. Ao velho

Marco tocou um belo cachimbo de espuma em estojo,

Genaro uma sanfona, objeto que o rapaz desejava há

muito tempo possuir, a Giudita um vestido em corte,

próprio para noivado, a Aristides uma escrivaninha de

prata cinzelada com os seus pertences, à velha Maria

um vestido em corte, próprio da sua idade, e a

Melquíades um resguardo de casimira para o tempo de

inverno.

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: objectos

SP, SPF, SP1: signal

SP, SPF, SP1: á fazenda

SP, SPF, SP1: dous; inseparaveis

SP, SPF, SP1: áquelles

SP, SPF, SP1: bello

SP, SPF, SP1: Gennaro;

samphona; objecto

SP, SPF, SP1: Giuditta; córte

SP, SPF, SP1: proprio;

escrevaninha

SP, SPF, SP1: á velha

SP, SPF, SP1: côrte; proprio;

edade

SP, SPF, SP1: Melchiades;

casemira

230

235

Todos esses brindados não sabiam como

agradecer a João e Calisto essa prova de amizade; mas

ninguém manifestou a sua satisfação tão ruidosa e

alacremente como Genarino que, qual criança,

examinava o instrumento tecla por tecla, sorria,

piruetava, andava abaixo e acima e concluiu

executando um pequeno trecho musical, se bem que

não como emérito sanfonista; mas revelando grande

vocação. A velha Maria veio cá fora agradecer o

SP, SPF, SP1: Calixto; ninguem

SP, SPF, SP1: Gennarino;

creança

SP, SPF, SP1: si

SP, SPF, SP1: emerito;

samphonista

SP, SPF, SP1: fóra

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471

240

245

presente acompanhando as suas palavras do primeiro

sorriso que os dois amigos viram relampear no seu

semblante. Marco, este, como entendido, abriu o

estojo, examinou o cachimbo e avaliou o seu presente

como um dos mais valiosos, mas consigo,

discretamente, lastimava que o cachimbo não

estivesse bem quilotado. Giudita desfazia-se em

sorrisos de gratidão e contentamento, mostrando a

Maria a fazenda, o bem tecido, a maciez da seda e a

delicadeza dos lavores. O seu contentamento ainda era

maior porque lhe veio despertar a idéia de seu

almejado casamento.

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: comsigo

SP: quilotado, SPF, SP1:

QUILOTADO; Giuditta

SP, SPF, SP1: idéa

XXIV

5

Poucos dias depois João e Calisto estavam de

viagem. Entre os colonos da fazenda havia dois baianos

sertanejos que desejavam regressar aos seus sertões em

companhia dos dois amigos, mesmo por temerem os

perigos a que se arriscam os viajantes. Melquíades

recomendou-os como homens honestos que trabalhavam

ali havia mais de um ano sem nota que os desabonasse.

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: dous; bahianos

SP, SPF, SP1: dois

SP, SPF, SP1: Melchiades

SP, SPF, SP1: recommendou-os

SP, SPF, SP1: alli; anno

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10

15

Munidos todos de armas curtas, e bem

aprecatados309 contra qualquer perigo, João e o seu amigo,

depois de despedirem-se do coronel, que ainda uma vez

teve elogios ao seu modo de proceder e afirmou-lhes que

se precisassem do seu auxílio, estava às suas ordens;

depois de estarem largos momentos com Aristides, que

escreveu a Maria e ao velho professor; depois de também

afirmarem a Marco e à sua família a simpatia que lhes

votavam e a saudade que deles levavam: alcearam os

sacos e partiram em companhia dos dois outros que se

lhes agregaram.

SP, SPF, SP1: affirmou-lhes

SP, SPF, SP1: auxilio; ás suas

SP, SPF, SP1: tambem

SP, SPF, SP1: affirmarem; á sua

familia; sympathia

SP, SPF, SP1: d’elles

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: aggregaram

20

25

30

Gil, já ciente do dia da partida dos dois amigos,

seguiu o mesmo caminho, que eles deviam tomar, dois

dias antes. Que as suas intenções eram más não resta

dúvida: mas vendo que iam mais dois companheiros,

calculou que era arriscadíssimo o que tentava levar a

efeito. Era um contra quatro; mas esperava que, em tão

longa viagem, haveria oportunidade, quando, por qualquer

circunstância ou necessidade, separassem-se do grupo

aqueles que ele visasse ou quisesse evitar. Nessa idéia,

pôs-se a pensar nos meios de separá-los quando,

porventura, não tomasse essa deliberação. Não lhe

convinha reunir consigo companheiros da sua laia porque

assim mais complicada ficaria a realização do seu intento

SP, SPF, SP1: sciente; dous

SP, SPF, SP1: elles; dous

SP, SPF, SP1: duvida; dous

SP, SPF, SP1: arriscadissimo

SP, SPF, SP1: effeito

SP, SPF, SP1: opportunidade

SP, SPF, SP1: circunstancia

SP, SPF, SP1: aquelles; elle;

quizesse; N’essa; idéa

SP, SPF, SP1: poz-se; separal-os

SP, SPF, SP1: comsigo

SP, SPF, SP1: realisação

309 Aprecatado: calçado.

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assim mais complicada ficaria a realização do seu intento

e, demais, teria ele que contar com concorrentes ao

resultado da obra que projetava.

SP, SPF, SP1: elle; concurrentes

SP, SPF, SP1: projectava

35

40

Os nossos viajantes seguiram rumo de Mococa,

quase já nas fronteiras de Minas, ponto obrigado como

sabia Gil; por isso esse foi esperá-los aqui, não deixando

de tomar muitas precauções a fim de não ser reconhecido.

Durante o dia, ao menor tropel que ouvisse, ocultava-se

nos matos marginais, e à noite, amoitado, observava com

olhos de Lince toda a gente que passasse pela estrada.

SP, SPF, SP1: Mocóca

SP, SPF, SP1: quasi

SP, SPF, SP1: esperal-os

SP, SPF, SP1: afim de

SP, SPF, SP1: occultava-se

SP, SPF, SP1: mattos; marginaes; á

noite

SP, SPF, SP1: Lynce

45

50

No segundo ou terceiro dia de viagem Calisto

notou um rasto de alpercatas que seguia o mesmo rumo

que ele e os companheiros, e calculou que seria um

sampauleiro que voltava para o Norte. “Este sujeito,

pensou ele, não sabe de nós, senão se teria juntado ao

nosso grupo.” Esperava alcançá-lo; mas foi baldado.310

Daí por diante o amigo de João que, como soldado que

foi, adquirira ou aguçara o seu espírito de observação era

reconhecimentos que fizera, foi notando o mesmo rasto e

a mesma direção que tomava.

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: elle; sinão

SP, SPF, SP1: alcançal-o; D’ahi

SP, SPF, SP1: deante; qur(,)

SP, SPF, SP1: adquerira, espirito

Depois de passarem Mococa, as pegadas que ele

notava e que perdeu de vista, reapareceram sempre na

mesma direção, o que lhe confirmou a idéia primitiva de

tratar-se de um migrante que retornava à sua terra. Uma

SP, SPF, SP1: Mocóca; pégadas;

elle

SP, SPF, SP1: direcção; idéa

SP, SPF, SP1: á sua

310 Baldado: frustado, inúltil.

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55

60

tratar-se de um migrante que retornava à sua terra. Uma

tarde, porém, notou que, em certa altura da estrada, as

pegadas de alpercatas, as mesmas que já bem conhecia,

desviavam-se da estrada real e embrenhavam-se nos

matos marginais. Isso lhe deu que pensar, e ainda mais o

intranqüilizou, porque no dia seguinte a mesma pista

reapareceu seguindo o mesmo norte. A nenhum dos

companheiros Calisto revelou o que observava e a

desconfiança que ia tomando vulto no seu espírito.

SP, SPF, SP1: porem; que (,)

SP, SPF, SP1: pégadas

SP, SPF, SP1: mattos

SP, SPF, SP1: marginaes

SP, SPF, SP1: intranquilillisou

SP, SPF, SP1: reappareceu

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: espirito

65

70

75

Apreensivo, e observando com mais interesse a

pista do misterioso viajante que seguia adiante de seu

grupo, Calisto sem nada revelar aos companheiros dos

seus receios, dormia pensando no caso e fazendo, mesmo

em sonhos, conjecturas que o acordavam alvoroçado.

Tinha sempre a sua arma aperrada311 e à mão para o que

se desse e viesse. O cuidadoso exame que ia fazendo do

rasto de alpercatas que, ora sumia no interior dos matos

por um lado, ora por outro, convencia o velho soldado da

má intenção do viajante, porque este procurava sempre os

lugares mais solitários para ocultar-se, onde os matos

eram mais espessos e ofereciam mais vantagens para uma

emboscada. Tratava-se de um maquino,312 não havia

dúvida, e era preciso avisar aos companheiros a fim de

SP, SPF, SP1: Apprehensivo

SP, SPF, SP1: mysterioso; adeante

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: accordavam

SP, SPF, SP1: á mão

SP, SPF, SP1: désse; viésse

SP, SPF, SP1: mattos

SP, SPF, SP1: solitarios; occultar-

se; mattos

SP, SPF, SP1: paes

SP, SPF, SP1: duvida

SP, SPF, SP1: afim de

311 Aperrada: engatilhada. 312 Maquino: conspiração, trama.

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que todos, unidos, tomassem serias precauções.

80

85

João, entretanto, homem de boa fé que era,

achou exagerados os receios de Calisto. Se se tratava de

um miserável salteador, porque ainda não tinha procurado

realizar o seu intento em muitas passagens da estrada que

ofereciam vantagens a quem se dispusesse a isso? Em

todo o caso procuraram viajar sempre com a claridade do

dia e pernoitar em povoações onde não corressem tanto

riscos como dormindo ao relento.

SP, SPF, SP1: Calixto; Si

SP, SPF, SP1: miseravel

SP, SPF, SP1: realisar

SP, SPF, SP1: offereciam

90

95

100

Viajando assim, Calisto sempre de sobreaviso e

os demais seguindo o seu conselho, por conhecê-lo o mais

prático do grupo, muitos dias de viagem tinham vencido

os nossos viajantes e achavam-se próximos da Cidade do

Tremedal, quase nas fronteiras da Bahia. A ansiedade de

chegarem em sua terra era geral, e mais intensa em João,

que já antegostava o grande regozijo que teria abraçando

os seus mais depressa do que os outros, pois seria o

primeiro a chegar na sua morada. Isso de alguma sorte

varreu mais ou menos do seu espírito de todas as tristes

idéias e receios que Calisto incutira no grupo. O amigo de

João, porém, não deixava de observar o rastro do viajante

de alpercatas, chegando a certificar-se de que as suas

intenções eram más, e que se nada tinha feito segundo o

seu desejo, era por ser covarde e ter receio de perder a

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: conhecel-o

SP, SPF, SP1: pratico

SP, SPF, SP1: proximos

SP, SPF, SP1: quasi; anciedade

SP, SPF, SP1: regosijo

SP, SPF, SP1: espirito

SP, SPF, SP1: idéas; Calixto

SP, SPF, SP1: porem

SP, SPF, SP1: alpercatas (,)

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476

partida.

105

Uma tarde, quando se achavam os nossos

migrantes há cerca de duas léguas de Tremedal, embora

encontrassem um pouso seguro, tomaram a resolução de

viajar, mesmo à noite, para pernoitar na cidade. Estavam

na estação chuvosa, e desde de alguns dias, chovia a

intervalos sem embaraçar a marcha que vinham fazendo.

SP, SPF, SP1: leguas

SP, SPF, SP1: com á noite

(Emendou-se.)

110

115

120

Qual o espírito, por mais rude e ignorante que

seja, que, ao aproximar-se da terra onde nasceu, onde se

acham os seus parentes e amigos, e que tão doces

recordações o acalentam, não sente um prazer indefinido

antevendo o contentamento da família e dos amigos ao

vê-lo depois de uma ausência prolongada!? O seu espírito

não admite pensamento algum alheio a essa preocupação

suave e deliciosa; só ela plena-lhe a alma, absorve-a,

domina-a. É o que se dava com os nossos viajantes mais

ou menos intensamente, e em João com uma

preponderância, com uma força dominadora que o levava

a sonhar acordado e desejar que possuísse asas para

chegar célere junto à sua querida Maria e aos seus

filhinhos.

SP, SPF, SP1: espirito

SP, SPF, SP1: familia

SP, SPF, SP1: vel-o; ausencia;

espirito

SP, SPF, SP1: admitte;

preoccupação

SP, SPF, SP1: ella

SP, SPF, SP1: preponderancia

SP, SPF, SP1: accordado; possuisse

SP, SPF, SP1: á sua

125

A noite veio mais escura e carregada, porque

nuvens grossas e acasteladas iam tomando o céu. Depois

os relâmpagos repetiam-se e uma borrasca estava

SP, SPF, SP1: acastelladas; céo

SP, SPF, SP1: relampagos

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477

130

135

os relâmpagos repetiam-se e uma borrasca estava

iminente, razão para que os viajantes estugassem313 o

passo, ansiosos por alcançar a cidade. João, este, por isso

e, mais, pela ardente vontade de chegar mais depressa na

sua querida Bahia, ia na vanguarda marchando com mais

pressa do que os companheiros. Ao clarão repetido dos

relâmpagos é que percebiam o trilho deviam seguir, tal

era a escuridão. Já algumas gotas caíam prenunciando

uma chuva torrencial e como que a incitá-los a andar mais

apresados.

SP, SPF, SP1: imminente

SP, SPF, SP1: anciosos

SP, SPF, SP1: relampagos

SP, SPF, SP1: gottas; cahiam

SP, SPF, SP1: incital-os

140

145

De repente Calisto viu brilhar nas trevas um

clarão seguindo-se logo o estampido de um tiro. O amigo

de João não hesitou e, já com a arma aperrada em punho,

seguiu presto rumo do clarão, exclamando em voz baixa:

“Eu não disse?” Os dois outros, a sua deliberação,

seguiram-no. Estavam distantes poucos passos, quando

um relâmpago iluminou o local. De trás de uma moita

saiu um homem empunhando uma faca ou punhal em

direção de outro que se achava prostrado. Rápido como

pensamento, Calisto desfechou um tiro no assaltante, que

deu um grito e caiu.

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: seguiram-n-o

SP, SPF, SP1: relampago;

illuminou; traz; sahiu

SP, SPF, SP1: direcção

SP, SPF, SP1: Rapido

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: cahiu

A cena foi mais rápida que o tempo que levamos

a descrevê-la. A noite era escura como pez, o céu velado

por uma nuvem negra que tomava todo horizonte. Como

SP, SPF, SP1: scena; rapida

SP, SPF, SP1: descrevel-a; céo

313 Estugar: apressar; aligeirar o passo.

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478

150

por uma nuvem negra que tomava todo horizonte. Como

examinar os feridos e tomar uma providência? Os

relâmpagos a miúde rasgavam as trevas, mas a sua luz era

tão fugaz e de tal contraste com as sombras, que antes,

obumbrava314 a visão dos nossos viajantes, que ouviam

suspiros e gemidos de ambos os feridos.

SP, SPF, SP1: providencia

SP, SPF, SP1: relampagos; meude

155

160

Calisto lembrou-se de seu isqueiro, que era

aceso à gasolina. Era uma luz mortiça e pouco duradoura,

mas em todo o caso serviria. Felizmente as gotas de chuva

não mais caíam e o grosso da borrasca tomou outro rumo,

apenas vendo-se os relâmpagos, seguidos com demora de

trovões surdos ao longe. Um dos companheiros de Calisto

lembrou-se que trazia um rolo, – um pavio de cordão

grosseiro embebido em cera da terra – e, abrindo o saco,

achou-o felizmente. O rolo foi aceso com a chama do

isqueiro.

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: acceso; á gazolina.

SP, SPF, SP1: gottas

SP, SPF, SP1: cahiam

SP, SPF, SP1: relampagos

SP, SPF, SP1: Calixto

SP: rolo, SPF, SP1: RÔLO

SP: rolo, SPF, SP1: RÔLO;

chamma

165

170

A cena que se desdobrava diante dos olhos de

Calisto e seus companheiros era triste e desoladora. João,

prostrado sobre o saco ainda atado ao seu corpo, tinha o

braço varado por uma bala que entrara entre o músculo e

o osso do úmero esquerdo, e o outro, – o salteador– ainda

com o punhal na mão crispada, achava-se gravemente

ferido no ventre. A luz fumegante e escassa do rolo

SP, SPF, SP1: scena; deante

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: sacco

SP, SPF, SP1: musculo

SP, SPF, SP1: húmero

SP: rolo, SPF, SP1: RÔLO

314 Obumbrar: cegar, turvar, tornar escuro.

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estampava ao quadro o mais triste aspecto.

175

180

Mesmo assim, Calisto, resoluto, à frente dos

dois companheiros, tentou tomar uma providência

qualquer em favor dos dois feridos, especialmente de seu

amigo. Conseguiu preparar com musgos verdes e

folhagens cobertos por um cobertor de lã, um leito no qual

foi acomodado João depois de desembaraçado do saco e

mais objetos que se achavam atados ao seu corpo. Depois,

por caridade, apesar da repugnância dos dois

companheiros, conseguiu Calisto acomodar Gil em uma

cama de folhas.

SP, SPF, SP1: Calixto; á frente

SP, SPF, SP1: dous; providencia

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: musculos

SP, SPF, SP1: accomodado; sacco

SP, SPF, SP1: repugnancia; dois

SP, SPF, SP1: Calixto; accomodar

185

190

Neste momento, lembrou-se um dos dois que

trazia um frasco com bálsamo ou “óleo de copaíba” que

sempre conduzia consigo desde que conseguiu pronta cura

de um ferimento de ferro cortante quando trabalhava em

São Paulo. Essa lembrança muito agradou Calisto que,

depois de muito trabalho em abrir o saco e remexê-lo

conseguiu, ajudado por seu dono, obter o bálsamo. Não

havia água para um banho das feridas, mas Calisto

conseguiu umedecê-las e refrescá-las com o orvalho que

ia colhendo aqui e ali no folhedo dos matos.

SP, SPF, SP1: N’este; momento (,)

SP, SPF, SP1: balsamo; oleo;

copahiba

SP, SPF, SP1: comsigo; prompta

SP, SPF, SP1: S. Paulo; Calixto

SP, SPF, SP1: sacco; remechel-o

SP, SPF, SP1: balsamo

SP, SPF, SP1: agua; Calixto

SP, SPF, SP1: humidecel-as

refrescal-as

SP, SPF, SP1: alli; mattos

Já despontava o dilúculo315 da manhã e os

nossos viajantes achavam-se nesta faina, quando ouviram

um tropel de animais e, em seguida viram dou cavaleiros

SP, SPF, SP1: animaes; cavalleiros

315 Dilúculo: crepúsculo matutino.

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480

195

200

um tropel de animais e, em seguida viram dou cavaleiros

que vinham em sua direção. Eram dois viajantes que

vinham de Montes Claros, como depois informaram.

Vendo o grupo e dois homens prostrados, procuraram

saber o que havia; se porventura houvera luta entre os

figurantes daquela cena de sangue. Calisto informou o que

havia e o embaraço em que se achavam desde a noite

anterior sem um meio de procurar recursos na Cidade,

para onde queiram e não podiam conduzir os doentes.

SP, SPF, SP1: direcção; dous

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: lucta

SP, SPF, SP1: d’aquella; scena;

Calixto

205

210

Os dois viajantes, que eram homens de trato,

dispunham de animais à destra, e ofereceram-nos a

Calisto para transporte de João e Gil. Apeando-se,

examinaram os ferimentos, fizeram indagações de João, o

único dos feridos que se mostrava mais calmo e asseverou

que podia montar, contanto que os companheiros o

ajudassem e que viajassem muito devagar. Gil torcia-se

sofrendo dores horríveis, mas era claro que só poderia

locomover-se conduzido em padiola.316

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: animaes; á dextra;

offereceram-n-os

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: unico

SP, SPF, SP1: soffrendo; horriveis

215

Enfim, duas horas depois, João montou, ajudado

pelos companheiros, os dois cavaleiros seguiram adiante a

fim de darem providências e os dois sampauleiros ficaram

guardando Gil a pedido de Calisto, que acompanhou o

amigo.

SP, SPF, SP1: Emfim

SP, SPF, SP1: dous; cavalleiros

SP, SPF, SP1: adeante; afim;

providencias; dous

SP, SPF, SP1: Calixto

316 Padiola: espécie de cama de lona, portátil e desmontável, usada para transportar doentes e feridos.

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481

220

225

Na cidade do Tremedal, já prevenido o

Delegado de Polícia e tomadas providências pelos dois

viajantes que haviam seguido adiante, João teve um

alojamento cômodo e decente e Gil, denunciado pelos

outros como maquino e causador de um caso tão triste, foi

entregue à autoridade por ser o mais criminoso e não

dispor de meios para pagar uma pensão ou alugar uma

casa. O Delegado deu-lhe pouso e tratou logo das

providências precisas para o seu tratamento e para realizar

as diligências que lhe competiam.

SP, SPF, SP1: ja

SP, SPF, SP1: Policia;

providencias; dous

SP, SPF, SP1: adeante

SP, SPF, SP1: commodo

SP, SPF, SP1: á autoridade

SP, SPF, SP1: providencias;

realisar

SP, SPF, SP1: deligencias

230

235

240

Calisto, que não abandonava o amigo, procurou

médico para ele e todo o conforto indispensável ao seu

tratamento e comodidades, despendendo o que fosse

necessário para isso. Procedeu-se a corpo de delito e em

seguida foram ouvidos, em inquérito, não só os dois

feridos como os seus companheiros, resultando de tudo

isto que Calisto atirara em Gil em defesa própria. Embora

a justificativa seja um caso jurídico de qual só pode tomar

conhecimento o plenário, o Delegado, como sói317

acontecer nas povoações sertanejas, tomou-o em

consideração para dar liberdade a Calisto, para isso

decidir sendo insistido pela melhor sociedade de

Tremedal, que se manifestou simpática à causa do amigo

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: medico; elle;

indispensavel

SP, SPF, SP1: commodidades;

dispendendo

SP, SPF, SP1: necessario; delicto

SP, SPF, SP1: inquerito; dous

SP, SPF, SP1: Calixto; propria

SP, SPF, SP1: juridico

SP, SPF, SP1: plenário; sóe

SP, SPF, SP1: Calixto

SP, SPF, SP1: sympathica; á causa

317 Soer: ser comum, ter por costume ou hábito.

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de João, que de outro modo não devia nem podia proceder

em tão apertada conjectura.

245

João, segundo o parecer do médico, não poderia

viajar senão depois de cicatrizada a ferida e cessada a

febre inflamatória por completo. Como, porém, os dois

Sampauleiros que se haviam agregado ao grupo

estivessem aflitos por seguir viagem, Calisto pediu-lhes

que passassem em casa de dona Maria para dar-lhe notícia

do marido, sendo eles instruídos do caminho que deviam

tomar, etc.

SP, SPF, SP1: medico

SP, SPF, SP1: sinão

SP, SPF, SP1: inflammatoria; dous;

porem

SP, SPF, SP1: SAMPAULEIROS;

aggregado

SP, SPF, SP1: afflictos; Calixto

SP, SPF, SP1: d. Maria; noticia

SP, SPF, SP1: elles; instruidos

250

255

260

Só dois dias depois, quando Calisto se achava

mais desembaraçado, pôde ver Gil, vindo então a

descobrir que o miserável era o mesmo Tomás que

estivera trabalhando na empreitada e que, segundo se

descobria, era um vil instrumento de Abílio contra João

Lopes. Cientificada a autoridade dos maus precedentes de

Gil e dos seus crimes, por telegramas dirigidos a Uberaba

e Ribeirão Preto, noticiou o seu paradeiro, recebendo

depois alguns dias ordem de detê-lo por já ter cometido o

crime de espancamento de que demos notícia. Entretanto

o criminoso refece,318 apesar de tratado e medicado,

faleceu em conseqüência de seu ferimento. Antes, porém,

confessou a sua responsabilidade nos dois últimos crimes

e que agira por conta de Abílio, de quem era mandatário.

SP, SPF, SP1: dous; Calixto

SP, SPF, SP1: desembaraçado (,)

SP, SPF, SP1: miseravel; Thomaz

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: Scientificada

SP, SPF, SP1: telegrammas

SP, SPF, SP1: detel-o; commetido

SP, SPF, SP1: noticia

SP, SPF, SP1: apezar; falleceu

SP, SPF, SP1: consequencia; porem

SP, SPF, SP1: dous; ultimos

318 Refece: de maus sentimentos.

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e que agira por conta de Abílio, de quem era mandatário. SP, SPF, SP1: Abilio; mandatario

265

270

275

Abílio, reconhecido como um celerado da pior

espécie, escapando furtivamente à vigilância da polícia de

Ribeirão, voltou aos seus penates319 sem abandonar os

seus propósitos de vingança, antes mais odiento por ver

falhos todos os seus planos infames. Chegando na sua

residência, o seu primeiro cuidado foi construir roças e

tapumes nas vizinhanças de João a fim de assegurar as

posses que adquirira indevidamente, não se esquecendo

de ampliá-las em alguns metros. Dona Maria, sabendo

disso tomou o propósito de nada reclamar ou dizer, o que

Serafim achou justo e conveniente. João não demoraria

em chegar, como havia noticiado por carta, e era bom que

visse até que ponto levava a sua audácia e maus instintos

o seu antigo condiscípulo e refalsado amigo.

SP, SPF, SP1: Abilio; scelerado;

peor

SP, SPF, SP1: especie; á vigilancia;

policia

SP, SPF, SP1: propositos

SP, SPF, SP1: residencia

SP, SPF, SP1: visinhanças; afim

SP, SPF, SP1: amplial-as; D. Maria

SP, SPF, SP1: d’isso; proposito

SP, SPF, SP1: Seraphim

SP, SPF, SP1: audacia; instinctos

SP, SPF, SP1: condiscipulo

Para finalizar

5

Lembra-se o leitor que, ao encetarmos esta

despretensiosa narrativa, quando quem a escreve e seu

amigo M.... achávamo-nos hospedados em casa do

professor Serafim, ao acordarmos alta madrugada,

ouvimos conversação na saleta e conhecemos a voz da

velha Pulquéria, que lamentava algo de triste e funesto.

SP, SPF, SP1: despretenciosa

SP, SPF, SP1: achavamo-nos

SP, SPF, SP1: Seraphim;

accordarmos

SP, SPF, SP1: Pulcheria

319 Penates: casa paterna, lar.

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10

velha Pulquéria, que lamentava algo de triste e funesto.

Isso incomodou-nos o espírito, a ele acudindo a idéia de

ter sucedido algum desastre em casa de dona Maria da

Conceição. Então, ao terminarmos o capítulo daquele

tomo, escrevemos: “o leitor sabê-lo-á”.

SP, SPF, SP1: incommodou-nos;

espirito; elle; idéa

SP, SPF, SP1: succedido; d. Maria

SP, SPF, SP1: capitulo; d’aquelle

SP, SPF, SP1: sabel-o-a

15

20

25

Chegou ao tempo de ser satisfeita a sua

curiosidade, e pedimos desculpar-nos tanta demora. Como

estava próximo o alvorecer, erguemo-nos do leito e

procuramos saber o que havia sucedido. Pulquéria

informava que dois sampauleiros, já tarde da noite,

procuraram a casa de dona Maria para dar-lhe a notícia de

seu marido que ficara em Tremedal com Calisto. Os dois

mensageiros do amigo de João – pois eram os dois que

vieram adiante como o leitor viu – referiram da sua

linguagem franca e grosseira o triste episódio que

narramos no capítulo precedente. Sem tomarem as

precauções que exige a prudência, alvoroçaram a pobre

esposa e Pulquéria dando notícia do ferimento de João e

do seu estado, tal que o impossibilitara de viajar.

SP, SPF, SP1: proximo

SP, SPF, SP1: succedido;

Pulcheria

SP, SPF, SP1: dous;

SAMPAULEIROS (,)

SP, SPF, SP1: d. Maria; noticia

SP, SPF, SP1: Calixto; dous

SP, SPF, SP1: dous

SP, SPF, SP1: adeante

SP, SPF, SP1: episodio

SP, SPF, SP1: capitulo

SP, SPF, SP1: prudencia;

alvoraçaram

SP, SPF, SP1: Pulcheria; noticia

30

Serafim, sem poder avaliar o caso devidamente,

atribuiu logo a manejos de Abílio contra o pobre João, o

que depois nos revelou, e desejando ver sua comadre, e

melhor indagar, pediu-nos licença para ir à residência dela

e que aguardássemos a sua volta, dizendo-nos que

SP, SPF, SP1: Seraphim (,);

attribuiu; Abilio

SP, SPF, SP1: á residencia; d’ella;

aguardassemos

SP, SPF, SP1: estavamos;

i i

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estávamos em nossa casa e não tivéssemos cerimônias. tivessemos; ceremonias

35

40

Ansiosos por também termos uma notícia bem

fundada do que se dera, aceitamos o alvitre do velho

mestre-escola, que seguiu logo a pé. A senhora do senhor

Serafim e seus filhos esmeraram no trato que nos

dispensaram, com uma delicadeza cativante, de modo que

a ausência do mestre-escola passou para nós quase

desapercebida, embora voltasse ele já sol alto. Vinha com

semblante risonho, o que nos animou. João estava fora de

risco, e com poucos dias estaria com os seus, segundo

pôde ele colher da notícia dos dois viajantes. Em todo

caso no dia seguinte iria ao seu encontro.

SP, SPF, SP1: Anciosos; tambem;

noticia

SP, SPF, SP1: acceitamos

SP, SPF, SP1: Sr. Seraphim

SP, SPF, SP1: captivante

SP, SPF, SP1: ausencia; quasi

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: elle; noticia; dous

______

45

Passado um mês mais ou menos, encontramos o

velho Serafim em Caetité. Acolheu-nos alegre, o que

demonstrou na habitual risada que, a trechos, pontuava a

sua conversação. Havia ido ao encontro de João Lopes,

que felizmente chegou na sua residência livre de perigo e

com ferimento quase cicatrizado. Calisto, de uma rara

dedicação, só o deixou quando certo sua cura completa.

SP, SPF, SP1: Seraphim; Caetite

SP, SPF, SP1: residencia

SP, SPF, SP1: quasi; Calixto

50

Abílio – quem o diria? – talvez ignorando que o

seu antigo condiscípulo estava inteirado das suas

patifarias, teve o descoco320 de visitá-lo, mostrando-se o

SP, SPF, SP1: Abilio

SP, SPF, SP1: condisciplo

SP, SPF, SP1: patifarias (,);

descoco; visital-o

320 Descoco: atrevimento, descaramento.

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486

55

60

mesmo blandicioso321 refinado hipócrita de todos os

tempos. João, embora a relutância que experimentava não

quis manifestar a repugnância que lhe causava o refalsado

e infame urdidor de tantas e tão vis intrigas e perseguições

àqueles que nunca ofenderam. Respeitou o hóspede

indesejável, mas mostrando-se sério e frio no acolhimento

que lhe fez. Pulquéria é que, não podendo tolerar tamanha

desfaçatez, manifestou, lá pelo interior da casa o seu

desagrado em impropérios e esconjuros que dona Maria

dificilmente conteve.

SP, SPF, SP1: bladicioso; hypocrita

SP, SPF, SP1: reluctancia;

esperimentava

SP, SPF, SP1: repugnancia

SP, SPF, SP1: entrigas

SP, SPF, SP1: áquelles;

offenderam; hospede

SP, SPF, SP1: indesejavel; serio

SP, SPF, SP1: Pulcheria; podemos

SP, SPF, SP1: desfasatez; la

SP, SPF, SP1: improperios; d.

Maria

SP, SPF, SP1: difficilmente

65

70

Dias depois, tomando João conhecimentos de

visu322 dos prejuízos que lhe deu Abílio nas suas

propriedades, escreveu ao usurpador reclamando

indignado e enérgico pronta restituição, demonstrado, à

luz de antigos documentos que aquele bem conhecia, o

incontestável direito que lhe assista. Com rude franqueza

dizia-lhe esperar que Abílio não o obrigasse a ir a Juízo,

onde sairiam à luz provas outras existiam quanto às

perseguições exercidas por ele na sua ausência.

SP: de visu, SPF, SP1: DE VISU

SP, SPF, SP1: prejuizos; Abilio

SP, SPF, SP1: energico; prompta; á

luz

SP, SPF, SP1: aquelle

SP, SPF, SP1: incontestavel

SP, SPF, SP1: Abilio; Juizo

SP, SPF, SP1: sahiriam; á luz; ás

perseguições

SP, SPF, SP1: elle; ausencia

75

Coincidiu essa missiva, com diferença de

poucos dias, com uma carta que um amigo e freguês de

Abílio escreveu-lhe comunicando-lhe de São Paulo que

ele se achava processado em Ribeirão Preto pelo crime de

SP, SPF, SP1: differença

SP, SPF, SP1: freguez

SP, SPF, SP1: Abilio;

communicando-lhe; S. Paulo

SP, SPF, SP1: elle

321 Blandicioso: afetuoso. 322 De visu: por ter visto.

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487

80

espancamentos que cometeu em Felício, o qual, como

outros fatos diversos, achava suficientemente provado.

Recomendava-lhe que se acautelasse, pois, achando-se ele

pronunciado, ia ser expedida precatória exigindo a sua

prisão.

SP, SPF, SP1: cometteu; Felicio

SP, SPF, SP1: factos;

sufficientemente

SP, SPF, SP1: Recommendava-lhe;

elle

SP, SPF, SP1: precatoria

85

90

Abílio, aterrado, como que sentiu em torno de si

o estrondo de um descalabro. Conheceu que lhe restava

apenas fugir para um esconderijo longínquo onde

ninguém o pudesse descobrir. Para isso, porém, era

preciso que dispusesse quanto antes dos seus bens.

Lembrou-se de um amigo de Caetité, ao qual dispensara

favores, e que lhe merecia alguma confiança, escreveu-lhe

pedindo-lhe o obséquio de chegar até as sua residência a

negócio importante. Esse amigo foi solícito e recebeu

mandato em regra para dispor de tudo quanto pertencia ao

nosso herói, mesmo bens imóveis.

SP, SPF, SP1: Abilio; si

SP, SPF, SP1: longinquo

SP, SPF, SP1: ninguem; podésse;

porem

SP, SPF, SP1: despuzesse

SP, SPF, SP1: Caetite

SP, SPF, SP1: obsequio; residencia

SP, SPF, SP1: negocio; solicito

SP, SPF, SP1: heróe; immoveis

95

100

Simultaneamente dirigiu-se a João dizendo-lhe

que não obrara de má fé entrando pelas suas terras; que o

fizera por má interpretação de uma nota que possuía. Que

se convencia do direito do seu velho camarada e amigo

com quem não desejava atritos, e por isso restituía-lhe as

propriedades e, até, indenizaria os danos que, porventura,

tivesse causado ao seu amigo da infância, com quem

desejava manter as antigas relações de amizade. E tudo

SP, SPF, SP1: possuia

SP, SPF, SP1: attritos; restituia-lhes

SP, SPF, SP1: damnos

SP, SPF, SP1: infancia

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foi efetivado nessas condições, chegando Abílio a repor o

marco no seu primitivo lugar, dizendo não ter sido

arrancado por ele nem gente sua. João dispensou as

indenizações por danos.

SP, SPF, SP1: effectivado; n’essas;

Abilio; repôr

SP, SPF, SP1: lugar (,)

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: damnos

105

110

115

Reduzido a dinheiro tudo quanto possuía,

gratificado o seu procurador pelo seu serviço prestado,

Abílio desapareceu de uma noite para um dia sem

despedir-se de quem quer fosse, e desapareceu sem que

alguém soubesse que rumo tomou, terminando assim por

cá a sua carreira de crimes e perversidades, e deixando

tranqüilos aqueles a quem perseguia tão

encarniçadamente. Soubemos depois que o nosso maldoso

herói partira para o extremo Norte do país, constando que

por lá conseguiu aumentar a fortuna e ocupar posição de

destaque; mas ignoramos qual o lugar da sua residência.

Escarmentado,323 é possível que por lá soubesse melhor

aproveitar os seus dotes de astúcia e hipocrisia,

convencido, mas não arrependido, de que lhe convinha

sopear324 o orgulho e gênio apaixonado.

SP, SPF, SP1: possuia

SP, SPF, SP1: Abilio; desappareceu

SP, SPF, SP1: desappareceu

SP, SPF, SP1: alguem

SP, SPF, SP1: tranquillos; aquelles

SP, SPF, SP1: heróe; paiz (,)

SP, SPF, SP1: augmentar; occupar

SP, SPF, SP1: residencia

SP, SPF, SP1: possivel

SP, SPF, SP1: astucia; hypocrisia

SP, SPF, SP1: genio

_____

120

João ampliou as suas propriedades territoriais,

aumentou a sua casa, tornando-a mais cômoda e

confortável, e conseguiu que Oliveira voltasse aos sertões

SP, SPF, SP1: territoriaes

SP, SPF, SP1: casa (,); augmentou;

commoda

SP, SPF, SP1: confortavel

323 Escarmentado: sabedor por experiência custosa; escaldado. 324 Sopear: conter.

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125

baianos onde, residindo com o genro, vive uma velhice

tranqüila, desvelado com carinho por dona Maria e pelos

netinhos, que crescem em número, sendo o encanto de

todos. Serafim continua o mesmo amigo leal da família de

João, trabalhador e honesto, mesmo já bem velho, mas um

velho forte e bem disposto.

SP, SPF, SP1: bahianos

SP, SPF, SP1: tranquilla; d. Maria

SP, SPF, SP1: nettinhos; numero(,)

SP, SPF, SP1: Seraphim; familia

130

135

140

Aristides, continuando em São Paulo, conseguiu

boas colocações e tem vindo à Bahia visitar os seus, mas

não disposto a residir por cá, estando já afeito aos

costumes de São Paulo. Numa dessas visitas encontramo-

lo em Caetité. É um moço simpático, inteligente, de

esmerada educação, que empolga em uma palestra

criteriosa e elevada, como tivemos ocasião de verificar

palestrando com ele. A curiosidade levou-nos a pedir-lhe

notícias de Marco e sua família. Genarino casou-se com

Giudita, realizando assim o seu doirado sonho. Ambos

laboriosos e honestos, parece a Aristides que vão juntando

o seu pé de meia, acalentando outro sonho: voltarem à

terra poética e risonha da qual têm muita saudade.

SP, SPF, SP1: S. Paulo

SP, SPF, SP1: collocações; á Bahia

SP, SPF, SP1: affeito

SP, SPF, SP1: S. Paulo; N’uma;

encontramol-o

SP, SPF, SP1: Caitite; sympathico;

intelligente

SP, SPF, SP1: occasião

SP, SPF, SP1: elle

SP, SPF, SP1: noticias; familia;

Gennarino

SP, SPF, SP1: Giuditta(,);

realisando

SP, SPF, SP1: á terra

SP, SPF, SP1: poetica

145

E Pulquéria? Não nos esquecemos informar que

a velha continua dedicada à sua querida iaiázinha e à

prole do casal, que a festejam e atormentam sem fazê-la

perder a paciência. Pois não são os seus queridos netinhos

brancos?

SP, SPF, SP1: Pulcheria

SP, SPF, SP1: continùa; á sua;

yayazinha; á prole

SP, SPF, SP1: fazel-a

SP, SPF, SP1: paciencia

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490

150

155

Sempre que encontramos o velho mestre-escola

em Caetité, pois que se tornou nosso amigo, e dos mais

leais, é um alegrão. Depois de insistirmos muito,

conseguimos que o velho se hospedasse na nossa casa.

Muita coisa nos informou, entrecortando a conversação

com a sua risada final, quando assim era permitido. Por

nossa vez, a seu convite, fomos à sua casa, onde o bom

Serafim e a família nos acolheram com o maior carinho, e

de lá retiramo-nos saudosos.

SP, SPF, SP1: tornou-se (Emendou-

se ênclise para próclise.)

SP, SPF, SP1: leaes

SP, SPF, SP1: cousa

SP, SPF, SP1: permittido

SP, SPF, SP1: á sua

SP, SPF, SP1: Seraphim; familia

160

Calisto raramente não vem à feira de Caetité,

onde quase sempre se encontra com João Lopes em cuja

casa tem ido várias vezes, sendo acolhido como um dos

amigos diletos que se tornou da família. Com ele também

conversamos largamente sobre os fatos que relatamos

nesta parte de nosso trabalho que damos por concluído.

SP, SPF, SP1: Calixto; á feira;

Caetite

SP, SPF, SP1: quasi

SP, SPF, SP1: varias

SP, SPF, SP1: dilectos; familia;

elle; tambem; SP1 couversamos

(Erro óbvio.); SP, SPF, SP1: factos

SP, SPF, SP1: n’esta; concluido

FIM

Terminei este segundo livro do “Sampauleiro”

no dia 8 de Dezembro de 1929, quando os cristãos

manifestam-se com grande veneração à Puríssima

Virgem-Mãe a quem pedimos proteger-nos e amparar-

nos.

SP, SPF, SP1: á Purissima

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acredita-se ter podido trazer, com a edição crítica do segundo volume do romance

O Sampauleiro, uma contribuição mínima, porém relevante, para o projeto de resgate da

memória cultural de Caetité que, através da reunião e edição da obra do escritor baiano João

Antônio dos Santos Gumes, garantirá a sua permanência para as gerações futuras bem como

disponibilizará ao leitor especialista material confiável sobre o qual debruçará, realizando

investigações sob diferentes olhares.

Acredita-se também que ao tentar tornar transparente a produção literária de

Gumes, destacando a importância desta produção, contribui-se para o preenchimento de uma

lacuna da historiografia literária baiana.

Ao propor a edição crítica do romance O Sampauleiro chegou-se às seguintes

constatações sobre a obra do escritor baiano:

a) Alguns manuscritos da obra literária de Gumes como, por exemplo, o drama

Abolição e parte do segundo volume do romance O Sampauleiro são textos que revelam o seu

processo de elaboração, um texto inacabado, com marcas que atestam a sua gênese,

cristalização do processo de construção do discurso narrativo. Observa-se uma preocupação

do autor com a boa distribuição dos elementos no sintagma, na tentativa de ampliá-lo, de

reduzi-lo na busca pela depuração do seu texto. Essas marcas são correções estilísticas

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funcionais: substituições, supressão, acrescentamentos, e espaciais na entrelinha superior ou

em sobreposição. Estes textos se prestam a uma futura leitura crítico-genética.

b) O romance Os Analphabetos apresenta, até o presente momento, apenas a versão

impressa de 1928, recomendando-se preparar uma edição fac-similar ou em reprodução

eletrônica.

c) Após a microfilmagem da coleção do jornal A Penna, pertencente ao Arquivo

Municipal de Caetité, a reunião e transcrição das crônicas serão concluídas, incluindo as 99

crônicas325, recolhidas e transcritas do mesmo jornal, correspondentes ao período de 19 de

dezembro de 1911 a 01 de setembro de 1916. Essas crônicas deverão ser objeto de uma leitura

seguindo os critérios adotados por Maria Helena Santana na edição de alguns textos de Eça de

Queirós publicados na Revista de Portugal, os Textos de Imprensa VI. 326

d) Os romances Vida Campestre e Pelo Sertão, publicados em folhetim no jornal A

Penna deverão ser transcritos e editados criticamente.

e) Somente após a edição de toda a obra do escritor deverá ser realizado o estudo do seu vocabulário.

325 Cf. a relação dos títulos das crônicas já transcritas na página 49. 326 Cf. Eça de QUEIRÓS. Textos de Imprensa VI (da Revista de Portugal). Edição de Maria Helena Santana. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1995.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 OBRAS DO AUTOR 1.1 LIVROS GUMES, João. Os analphabetos. Bahia: Escola Typographica Salesiana, 1929. 216p. GUMES, João. O sampauleiro. Caetité: A Penna, 1929. 2v. GUMES, João. Pelo sertão. Caetité: A Penna, 11 jul. 1913 – 27 mar. 1914. GUMES, João. Vida Campestre. Caetité: A Penna, 6 set. 1917. 1.2 MANUSCRITOS GUMES, João. Mourama. Caetité, [s.d]. GUMES, João. Seraphina. Caetité, [s.d]. GUMES, João. Prólogo. Caetité, [s.d]. GUMES, João. Abolição. Caetité, [s.d]. 1.2 CRÔNICAS

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GUMES, João. Açudes. A Penna, Caeteté, n. 9, p.1, 26 abr. 1912. GUMES, João. [Não vimos, por estas linhas, assignalar grandes conquistas...]. A Penna, Caeteté, n. 73, p.1, 19 dez. 1914. GUMES, João. 14 de abril. A Penna, Caeteté, n. 82, p.1, 22 abr. 1915. GUMES, João. 15 de novembro. A Penna, Caeteté, n 98, p. 1, 18 nov. 1915. GUMES, João. 19 de dezembro. A Penna, Caeteté, n. 25, p.1, 19 dez. 1912. GUMES, João. 24 de fevereiro. A Penna, Caeteté, n. 4, p. 1, 9 fev. 1912. GUMES, João. 24 de fevereiro. A Penna, Caetité, p. 1, 28 fev. 1912. GUMES, João. A baixa do café. A Penna, Caeteté, n. 41, p. 1, 01 ago. 1913. GUMES, João. A baixa do café: opiniões sobre as causas d’ella. A Penna, Caeteté, n. 41, p. 1, 1 ago. 1913. GUMES, João. A canna de assucar. A Penna, Caeteté, n. 20, p. 1, 8 out. 1912. GUMES, João. A catastrophe. A Penna, Caeteté, n.58, p. 1, 27 mar. 1911. GUMES, João. A eleição. A Penna, Caeteté, n. 56, p. 1, 27 fev. 1914. GUMES, João. A emissão do papel. A Penna, Caeteté, n 68, p.1, 3 set. 1914. GUMES, João. A epidemia. A Penna, Caeteté, n. 89, p. 1,15 jul. 1915. GUMES, João. A ferro-via. A Penna, Caeteté, n. 11, p. 1, 24 maio 1912. GUMES, João. A lavoura. A Penna, Caeteté, n. 30, p.1, 28 fev. 1913. GUMES, João. A lavoura: causas do seu atrazo. A Penna, Caeteté, n. 29, p.1, 19 fev. 1913. GUMES, João. A lavoura: há probabilidade de um futuro prospero entre nós? A Penna, Caeteté, n. 31, p. 1,14 mar. 1913. GUMES, João. A lavoura: seu estado actual. A Penna, Caeteté, n. 28, p.131 jan. 1913. GUMES, João. A proposito de K. Martello. A Penna, Caeteté, n. 23, p. 1, 15 nov. 1912. GUMES, João. A secca: este alto sertão da Bahia tambem e norte e acha-se. A Penna, Caeteté, n. 87, p.1, 17 jun. 1915. GUMES, João. A victoria do civilismo. A Penna, Caeteté, n. 38, p.1, 20 jun. 1913.

Page 495: ROMANCE DE JOÃO GUMES - Ufba Reis.pdf · Fig. 6: Folha de rosto do primeiro volume do romance O Sampauleiro. 41 Fig. 7: ... SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929. SPF O

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GUMES, João. Açudes. A Penna, Caeteté, 20 set. 1912, n.19, p. 1. GUMES, João. Açudes. A Penna, Caetité, 29 mar. 1912. p.1. GUMES, João. Açudes: trabalhos da commissão de obras contra as seccas. A Penna, Caeteté, n. 40, p.1, 18 jul. 1913. GUMES, João. Ainda a epidemia. A Penna, Caeteté, n. 92, p.1, 26 ago. 1915. GUMES, João. Ainda o correio. A Penna, Caeteté, n.78, p.12, 5 fev. 1915. GUMES, João. Ainda o exodo. A Penna. Caeteté, p. 1, 26 jan. 1912. GUMES, João. Ainda o Exodo. A Penna, Caeteté, n. 3, p. 1, 26 jan. 1912. GUMES, João. As engenhocas. A Penna, Caeteté, n. 27, p.1, 17 jan. 1913. GUMES, João. As engenhocas. A Penna, Caeteté, n. 27, p.1, 17 jan. 1913. GUMES, João. As estradas: são ellas o elemento do qual depende em primeiro lugar o nosso progresso. A Penna, Caeteté, n. 63, p.1, 25 jun. 1914. GUMES, João. As festas ao 2 de julho. A Penna, Caeteté, n. 64, p.1-2, 9 jun. 1914. GUMES, João. As searas. A Penna, Caeteté, n. 105, p. 1, 24 fev.1916. GUMES, João. Associado pela secca. A Penna, Caeteté, n. 88, p.1, 1 jul. 1915. GUMES, João. Cemitérios: ruinas e abandono. A Penna, Caeteté, n. 65, p.1, 23 jul. 1914. GUMES, João. Clama: ne cesses. A Penna, Caeteté, n. 55, p. 1, 13 fev. 1914. GUMES, João. Conciliação. A Penna, Caeteté, n. 73, p.1, 19 dez. 1914. GUMES, João. Conciliação. A Penna, Caeteté, n. 76, p. 1, 28 jan. 1915. GUMES, João. Contra as seccas. A Penna, Caeteté, n. 54, p.1, 30 jan. 1914. GUMES, João. Choveu. A Penna, Caeteté, n. 97, p. 1, 4 nov. 1915. GUMES, João. Despovoamento do sertão. A Penna, Caeteté, n. 33, p.1, 11 abr. 1913. GUMES, João. Despovoamento do sertão: o povo emigra á falta de trabalho. A Penna, Caeteté, n. 33, p.1, 11 abr. 1913. GUMES, João. Do presente ao futuro. A Penna, Caeteté, n. 114, p. 1, 29 jun. 1916.

Page 496: ROMANCE DE JOÃO GUMES - Ufba Reis.pdf · Fig. 6: Folha de rosto do primeiro volume do romance O Sampauleiro. 41 Fig. 7: ... SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929. SPF O

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GUMES, João. Dous de Julho. A Penna, Caeteté, n. 39, p.1, 4 jul. 1913. GUMES, João. Educação. A Penna, Caetité, p. 1, 9 fev. 1912. GUMES, João. Em abandono. A Penna, Caeteté, n. 116, p. 1, 20 jul. 1916. GUMES, João. Emigração: o alpha. Correspondecia de bebedouro n’elle publicada. A Penna, Caeteté, n. 36, p.1, 23 maio 1913. GUMES, João. Emigração: recrudesce o mal. Caeteté, n. 34, p.1, 25 abr. 1913. GUMES, João. Engenhocas: o orçamento deve ser melhor estudado no art. 30 da tabella n.2. A Penna, Caeteté, n. 42, p.1, 15 ago. 1913. GUMES, João. Epidemia? A Penna, Caeteté, n. 90, p. 1, 29 jul. 1915. GUMES, João. Exodo. A Penna, Caeteté, n. 86, p.1, 3 jun. 1915. GUMES, João. Exodo. A Penna, Caeteté, n. 2, p.1, 9 jan. 1912. GUMES, João. Exploração. A Penna, Caeteté, n. 79, p.1, 11 mar. 1915. GUMES, João. Exprobrações. A Penna, Caeteté, n. 106, p. 1, 10 mar. 1916. GUMES, João. Hookworm: verme do amarellão. A Penna, Caeteté, n. 36, p. 4, 23 maio 1913. GUMES, João. Imprevidencia. A Penna, Caeteté, n. 71, p.1, 12 nov. 1914. GUMES, João. Instituto de Butantan. A Penna, Caeteté, n. 31, p. 1, 14 mar. 1913. GUMES, João. Invasão. A Penna, Caeteté, n. 52, p.1, 2 jan. 1914. GUMES, João. Max Leuret. A Penna, Caeteté, n. 8, p.1-2, 12 abr. 1912. GUMES, João. Meios de transporte. A Penna, Caeteté, n. 59, p.1, 10 abr. 1914. GUMES, João. Mendicancia. A Penna, Caeteté, 2 dez. 1915, n. 99, p. 1. GUMES, João. Micro-chronica. A Penna. Caeteté, p. 2-3, 26 jan. 1912. GUMES, João. Monte Alto: riqueza do municipio. Optima situação da villa. A Penna, Caeteté, n. 44, p.1, 12 set. 1913. GUMES, João. Monte Alto: riqueza do municipio. Optima situação da villa. [Continuação] A Penna, Caeteté, n. 45, p.1, 26 set. 1913. GUMES, João. Nossa situação. A Penna, Caeteté, n. 35, p.1, 9 mar. 1913.

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GUMES, João. O açude da cachoeirinha. A Penna, Caeteté, n. 109, p. 1, 20 abr. 1916. GUMES, João. O anno que vae-se. A Penna, Caeteté, n. 75, p. 1, 31 dez. 1914. GUMES, João. O Caetiteense.Caetité, 25 set. 1896. GUMES, João. O Cobre. A Penna, Caeteté, n. 10, p.1, 10 maio 1912. GUMES, João. O correio. A Penna, Caeteté, n. 77, p.1, 11 fev. 1915. GUMES, João. O correio. A Penna, Caeteté, n. 80, p. 1, 25 mar. 1915. GUMES, João. O emigrante: como se creou o typo entre nós. A Penna, Caeteté, n. 37, p.1, 6 jun. 1913. GUMES, João. O fogo: como meio de amanho da terra. A Penna, Caeteté, n 72, p.1, 26 nov. 1914. GUMES, João. O mercado. A Penna, Caeteté, n 108, p. 1, 6 abr. 1916. GUMES, João. Os mercados publicos. A Penna, Caeteté, n. 117, p. 1, 4 ago. 1916. GUMES, João. Os nossos males. A Penna, Caeteté, n. 104, p.1, 12 fev. 1916. GUMES, João. Os nossos productos. A Penna, Caeteté, n. 112, p. 1, 1 jul. 1916. GUMES, João. Paiz ignoto [continuação]. A Penna, Caeteté, n .22, p. 1, 1 nov. 1912. GUMES, João. Paiz ignoto. A Penna, Caeteté, n. 21, p.1, 18 out. 1912. GUMES, João. Pelo commercio: um problema a resolver. A Penna, Caeteté, n. 66, p.1, 6 ago. 1914. GUMES, João. Pelles: uma riqueza. A Penna, Caeteté, n. 42, p. 1, 29 ago. 1913. GUMES, João. Programma. A Penna, Caeteté, n. 1, p.1-2,19 dez. 1911. GUMES, João. Rainha do sertão? A Penna, Caeteté, n. 96, p. 1, 21 out. 1915. GUMES, João. Rememorando. A Penna, Caeteté, n. 51, p.1, 19 dez. 1913. GUMES, João. Renovação. A Penna, Caeteté, n. 26, p. 1, 3 jan. 1913. GUMES, João. Repatriamento. A Penna, Caeteté, n. 50, p.1, 5 dez. 1913. GUMES, João. Retorno. A Penna, Caeteté, n. 46, p.1, 10 out. 1913. GUMES, João. Riacho de S. Anna versus Caeteté. A Penna, Caeteté, n. 111, p. 2, 18 maio 1916.

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GUMES, João. Rio Branco. A Penna, Caeteté, p.1, 28 fev. 1912. GUMES, João. Rio Branco. A Penna, Caetité, p.1-2, 15 mar. 1912. GUMES, João. Situação angustiosa: falta-nos tudo. Achamo-nos assediados. Habeas corpus. A Penna, Caeteté, n. 62, p.1, 25 jun. 1914. GUMES, João. Teatro. A Penna, Caeteté, n. 12, p. 1, 7 jun. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 13, p. 1, 21 jun. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 17, p.1, 23 ago. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 18, p. 1, 6 set. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 15, p.1, 19 jul. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 16, p.1, 2 ago. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 14, p. 1, 5 jul. 1912. GUMES, João. Tivemos correio!! A Penna, Caeteté, n. 81, p. 1, 8 abr. 1915. GUMES, João. Triste. A Penna, Caeteté, n. 110, p. 1, 4 maio 1916. GUMES, João. Um quatriennio. A Penna, Caeteté, n. 100, p. 1, 19 dez. 1915. GUMES, João. Unamo-nos. A Penna, Caeteté, n. 119, p. 1, 1 set. 1916.

2 SOBRE O AUTOR E SUA OBRA CALMON, Pedro. História da literatura bahiana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. p.218. COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de (Dir.). Enciclopédia de literatura brasileira. 2 ed., ver., amp., atual., il. São Paulo: Global; Fundação Nacional; Academia Brasileira de Letras, 2001. v.1. ESTRELA, Ely Souza. Os Sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas FFCH/USP; Fapesp; Educ, 2003. 256 p. MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da literatura brasileira: prosa de ficção, de 1870 a 1920. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio/Brasília/INL, 1973. p. 184.

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