rogerio ribeiro dissertação

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  • 7/25/2019 Rogerio Ribeiro Dissertao

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    ROGRIO MATHIAS RIBEIRO

    ESOTERISMO E OCULTISMO EM FERNANDO PESSOA:

    CAMINHOS DA CRTICA E DE POTICA

    Dissertao de MestradoUNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    Instituto de LetrasNiteri, agosto de 2009

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    ROGRIO MATHIAS RIBEIRO

    ESOTERISMO E OCULTISMO EM FERNANDO PESSOA:

    CAMINHOS DA CRTICA E DE POTICA

    Dissertao apresentada Coordenao de Ps-Graduao em Letras da Universidade FederalFluminense como requisito final para a obtenodo grau de Mestre em Letras (rea deConcentrao: Literatura Portuguesa e LiteraturasAfricanas em Lngua Portuguesa)

    Orientadora: Prof.aDr.aIda Maria Santos Ferreira Alves

    UFF / Instituto de LetrasNiteri, agosto de 2009

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    Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    R484 Ribeiro, Rogrio Mathias.Esoterismo e ocultismo em Fernando Pessoa: caminhos da crtica e

    de potica / Rogrio Mathias Ribeiro. 2009.95 f.Orientador: Ida Maria Santos Ferreira Alves.Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense,

    Instituto de Letras, 2009.Bibliografia: f. 83-87.

    1. Pessoa, Fernando, 1888-1935 - Crtica e interpretao. 2. PoesiaPortuguesa. 3. Ocultismo. 4. Esoterismo. I. Alves, Ida Maria SantosFerreira. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III.Ttulo.

    CDD 869.1009

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    ROGRIO MATHIAS RIBEIRO

    ESOTERISMO E OCULTISMO EM FERNANDO PESSOA:

    CAMINHOS DA CRTICA E DE POTICA

    Dissertao apresentada Coordenao de Ps-Graduao em Letras da Universidade FederalFluminense como requisito final para a obteno

    do grau de Mestre em Letras (rea deConcentrao: Literatura Portuguesa e LiteraturasAfricanas em Lngua Portuguesa)

    BANCA

    Prof.aDr.aIda Maria Santos Ferreira Alves OrientadoraUniversidade Federal Fluminense UFF

    Prof.a

    Dr.a

    . Regina Silva MichelliUniversidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ

    Prof. Dr. Jos Clcio Baslio QuesadoUniversidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ

    _________________________________________________________________Prof.aDr.aMaria Lcia Wiltshire de Oliveira Suplente

    Universidade Federal Fluminense UFF

    Prof. Dr. Srgio Nazar David SuplenteUniversidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ

    Niteri, Rio de JaneiroAgosto de 2009

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    Aos

    Meus pais, Francisco A.M . Ribeiro (in memoriam)

    e Lcia M.Ribeiro, pelo carinho, pela dedicao e

    pelo amor que me dispensaram em todos osmomentos da vida.

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    Agradeo ao Professor JosCarlos Barcellos (in memoriam),

    por toda a ajuda que me dispensou como professor,

    orientador e amigo; sua presena estmarcada neste

    trabalho e jamais seresquecida.

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    Agradeo Professora Ida Maria Santos Ferreira Alves,

    pelas sugestes, pelo estmulo e pelo apoio decisivo.

    Agradeo Professora Yvette Kace Centeno, pelo material

    fornecido, pela ateno dispensada, pelos esclarecimentos e

    pelo carinho.

    Agradeo Janice Fialho, minha mulher, pelo incent ivo eapoio.

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    A morte a curva da estrada

    Morrer s no ser visto

    Se escuto, eu te oio a passada

    Existir como eu existo.

    FERNANDO PESSOA

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    RESUMO

    Anlise crtica da produo potica esotrica de Fernando Pessoa ortnimo, apartir de seu interesse pelos temas esotricos e do ocultismo. Discusso da influnciadesses domnios no mbito de sua poesia, considerando uma "filosofia ocultista".Reviso das perspectivas crticas de diferentes pesquisadores do assunto, como AntnioTelmo, Antnio Quadros, Dalila Pereira da Costa e Yvette Kace Centeno. Investigaosobre as relaes de Fernando Pessoa com a Maonaria e outras ordens iniciticas.Demonstrao do papel e da relevncia das influncias teosficas e ocultistas na obra eno projeto potico pessoano. Compreenso da estreita relao entre poesia e alquimia nombito da potica de Fernando Pessoa. Leitura crtica da poesia esotrica do escritor

    baseada nos aspectos mencionados. Anlise do projeto potico pessoano enquantocaminho alqumico para obteno da mais alta poesia e a relao dele com os elementos

    iniciticos e esotricos. Misso da poesia.

    Palavras-chave: Fernando Pessoa; poesia portuguesa moderna; ocultismo; esoterismo,crtica de poesia; cultura portuguesa.

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    ABSTRACT

    This is a critical analysis of Fernando Pessoas esoteric poetical production,according to his orthonym, whose interests relies on the esoteric teachings and on the

    secrets of occultism. This essay is about the influence of these subjects in the scope ofhis poetry, which, somehow, is considered a kind of occultist philosophy". Once more,we are going to study different researchers critical perspectives about this theme, suchas Antnio Telmo, Antnio Quadros, Dalila Pereira da Costa and Yvette Kace Centeno,while trying to keep up with the inquiry on Fernando Pessoas involvement withMasonry and other orders alike. This essays target is to demonstrate the role and therelevance of the esoteric and occultists influences in the workmanship and the poetical

    project of Fernando Pessoa, as well as understanding the close relationship betweenpoetry and alchemy regarding his poetical legacy. Its also a critical reading of thiswriters esoteric poetry based on the mentioned aspects. In other words, this workconsists of an analysis of Pessoas poetical project as a alchemic way of producing themost sophisticated kind of poetry, as well as the effects of his relationship with all theseesoteric elements. Therefore, we are going to study the mission of the poetry.

    Keywords: Fernando Pessoa; modern Portuguese poetry; occultism; esotericism, poetrycriticism; Portuguese culture.

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    SUMRIO

    1. INTRODUO.....................................................................................12

    2. OCULTISMO, ESOTERISMO E TEOSOFIA.....................................20

    2.1. A iniciao do poeta.......................................................................20

    2.2. A participao na Maonaria..........................................................31

    3. CAMINHOS DA CRTICA...................................................................38

    3.1. Antonio Telmo................................................................................38

    3.2. Dalila Pereira da Costa....................................................................43

    3.3. Antnio Quadros.............................................................................48

    3.4. Yvette Kace Centeno.......................................................................53

    4. ESOTERISMO COMO TEORIA POTICA.........................................59

    4.1. Iniciao...........................................................................................59

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    4.2. Alquimia e poesia.............................................................................65

    4.3. Pessoa e a misso..............................................................................71

    5. CONCLUSO........................................................................................79

    6. BIBLIOGRAFIA....................................................................................83

    6.1. Fontes primrias..............................................................................83

    6.1.1. De Fernando Pessoa.......................................................83

    6.1.1. Fontes tericas crticas..............................................................83

    6.2.1. Sobre Fernando Pessoa..................................................83

    6.2.2. Sobre outros temas........................................................85

    7. ANEXO...................................................................................................88

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    1. INTRODUO

    Fernando Pessoa, poeta portugus, considerado por muitos como o principal

    escritor em lngua portuguesa do sculo XX, sendo referncia incontestvel para muitos

    outros escritores e estudiosos. Com vasta produo em poesia e prosa, sua escrita,

    apesar de tantos e variados estudos e pesquisas a respeito, ainda provoca discusses e

    reflexes. Alguns aspectos da obra pessoana j foram bastante explorados, como a

    questo da heteronmia, por exemplo, enquanto outros so menos discutidos

    relativamente, entre eles o tema do ocultismo.

    Entendemos que ainda h muito a se pesquisar a respeito da presena do

    ocultismo na obra pessoana, j que, como insiste Antnio Quadros, o fato de alguns

    pesquisadores de grande valor preferirem ignorar essas nuances da obra do poeta,

    prejudica o entendimento completo do cerne da obra.1 Portanto, seria de grande

    1QUADROS, Antnio.Fernando Pessoa Vida, personalidade e gnio.5 ed. Lisboa: Publicaes Dom

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    importncia que novos estudos fossem feitos levando-se em conta esses aspectos pouco

    explorados. Com a conscincia de que uma anlise definitiva, se que isso possvel,

    ainda se encontra longe do alcance de todos ns, pensamos ser fundamental que as

    pesquisas nesse sentido continuem com o objetivo de contribuir para o efetivo

    entendimento em diversos nveis da obra pessoana. Lamentavelmente, grandes

    pesquisadores se afastaram da face esotrica e ocultista presente na obra de Pessoa, por

    desconhecimento ou mesmo desconsiderao da importncia desse vis para um

    entendimento mais extenso da complexidade do seu projeto esttico. Por isso,

    entendemos ser de grande valia o desenvolvimento de estudos que procurem abordar

    com mais profundidade a temtica em questo.

    Assim, com este trabalho, objetivamos apresentar um panorama dos estudos

    acerca do ocultismo na obra de Fernando Pessoa e contribuir com alguma reflexo

    sobre a importncia disso para a compreenso da poesia pessoana. Teremos como

    referncia para este ofcio publicaes que discorrem sobre o envolvimento do poeta

    com as sociedades iniciticas, dados biogrficos, correspondncias, a prpria poesia de

    Fernando Pessoa e os trabalhos realizados por quatro pesquisadores que abordaram o

    tema em diferentes obras cada qual com suas convices. A saber: Antnio Telmo,

    em Histria secreta de Portugal; Antnio Quadros, em Fernando Pessoa Vida,

    personalidade e gnio; Dalila Pereira da Costa, em Esoterismo de Fernando Pessoa;e

    Yvette Kace Centeno,emFernando Pessoa: O amor, a morte, a iniciao.

    O ocultismo na obra de Fernando Pessoa tema polmico e, at pelas inmeras

    dificuldades que a obra pessoana por si s j impe, deve ser tratado com cautela.

    Procuraremos nos ater a algumas questes fundamentais, tais como: as influncias

    ocultistas em sua obra, a mediunidade, as ligaes de Pessoa com a Maonaria e as

    Quixote, 1984, 2000, p.193.

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    ordens iniciticas, a significao e a perspectiva do Quinto Imprio no universo

    pessoano, o papel dos smbolos e da despersonalizao, a via potica e o esprito da

    verdade, entre outras. Esperamos, assim, apresentar uma pesquisa que possa, mesmo de

    maneira inicial, demonstrar as estreitas relaes da vida e da obra potica de Fernando

    Pessoa com o ocultismo e, ao mesmo tempo, comentar as perspectivas de pesquisadores

    importantes deste assunto.

    Para que seja possvel um avano na compreenso da obra pessoana, faz-se

    necessria uma leitura abrangente que leve em conta aspectos que, muitas vezes, so

    marginalizados por exceder as fronteiras da crtica literria mais conservadora e

    tradicional. A presena do ocultismo na produo pessoana patente, mas o poeta, uma

    vez "fingidor", no tem necessariamente comprometimento em fazer dele sua filosofia.

    Por outro prisma, o caminho alqumico do poeta e sua misso nacionalista-mstica

    parecem ter muita importncia para Fernando Pessoa.

    possvel que, levando-se em conta as nossas interpretaes e nosso

    entendimento, tenhamos condies de apresentar elementos que, de algum modo,

    esclaream at que ponto as relaes de Pessoa com o oculto so fundamentos que

    ocupam lugar de destaque em seu pensamento e sua obra, como elemento relevante

    dentro de um projeto literrio estabelecido. importante concluir se o oculto serve

    como um itinerrio para o divino, um "farol" para as dvidas metafsico-religiosas de

    Pessoa ou se o envolvimento estaria limitado a uma fonte de inspirao, uma

    justificativa esttica do poeta. Uma ou outra maneira de considerar o misticismo do

    poeta poder mudar sensivelmente a leitura e o entendimento do cerne da sua obra.

    Sendo assim, a pesquisa nesta direo se faz relevante e pode apresentar elementos e

    interpretaes que justificariam uma leitura ainda no explorada o suficiente.

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    O trabalho aqui apresentado objetiva a defesa de uma leitura da poesia pessoana

    tomando como relevante o caminho alqumico e as influncias ocultistas do poeta. Tal

    leitura pretende entender minimamente as dimenses esotricas, msticas e simblicas

    na poesia de Fernando Pessoa, procurando delimitar o quanto se pode considerar o lado

    mstico como prtica esttica ou como mera temtica extica, ou, por outro lado,

    interpretar o ocultismo como componente norteador de outros propsitos do poeta

    dentro de sua produo. O entendimento da posio do ocultismo em Fernando Pessoa,

    sem a tentativa de reduzi- lo interpretao diminutiva, ser assim desenvolvido, dentro

    da nossa proposta, considerando a importncia desta posio no mbito da biografia e

    da obra do poeta e buscando tanto a convergncia quanto o confronto com outros

    pressupostos tericos para, dessa maneira, progredir na compreenso plena da obra.

    Para definir nossa fundamentao terica acerca da obra de Fernando Pessoa,

    tivemos, de incio, de nos deparar inevitavelmente com uma vasta bibliografia

    disposio afinal, a quantidade de material terico-crtico sobre o poeta muito

    grande. Fernando Pessoa um poeta admirado, estudado e analisado em larga escala,

    sendo assim, optamos por um recorte bibliogrfico que pudesse sintetizar, frente ao

    universo pessoano, sua obra e que pudesse esclarecer ou mesmo levantar alguns pontos

    importantes em relao problemtica do papel do ocultismo em sua escrita. Para o

    desenvolvimento de um estudo criterioso, mas que, ao mesmo tempo, no corresse o

    risco de se perder no labirinto que a anlise da obra pessoana, escolhemos um

    caminho que passa do geral ao especfico, do todo para as partes. Nossa leitura partiu

    de uma abordagem geral da obra de Fernando Pessoa, da sua correspondncia e de

    estudos abrangentes em torno de seu material literrio indo, em seguida, pelo caminho

    daqueles que pesquisam sobre a influncia ocultista, passando por leituras que

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    esclarecem ou permitem de alguma forma um entendimento mais abalizado do papel

    das sociedades iniciticas, do esoterismo e do ocultismo na potica pessoana.

    Em princpio, decidimos nos concentrar nos poemas de Fernando Pessoa

    ortnimo, que teriam ligaes com temas ocultistas e iniciticos, e selecionamos alguns

    que sero analisados com mais profundidade em nosso trabalho.Mensagem, obra de

    grande importncia para essa questo, mereceria lugar de destaque, porm, por sua

    complexidade, requer tambm um estudo exclusivo, o que no ser possvel neste

    trabalho. Portanto, teremosMensagemcomo referncia, mas no como foco principal.

    Partimos da grande biografia de Joo Gaspar Simes, Vida e obra de Fernando

    Pessoa, por considerar, em que pese s muitas crticas que j recebeu, uma obra de

    referncia para o entendimento da personalidade e da formao do poeta, com riqueza

    de informaes e detalhes sobre muitos aspectos da vida e da produo de Pessoa,

    estando entre esses aspectos o ocultismo. A necessidade de compreender como foram

    os contatos e as primeiras relaes de Fernando Pessoa com o tema, e de como essas

    relaes desenvolveram-se ao longo da trajetria de Pessoa, foi fundamental para a

    escolha da biografia de Simes.

    Nossa pesquisa prosseguiu com Correspondncia com Fernando Pessoa, de

    Mrio de S-Carneiro,editadaporTeresa Sobral Cunha e com A poesia de Fernando

    Pessoa,de Adolfo Casais Monteiro. A primeira obra apresenta-se como valiosa fonte

    de informao, tendo em vista as relaes intelectuais e os grandes laos de amizade

    que uniam os dois poetas e mostra como Pessoa apresenta com entusiasmo a temtica

    ocultista a S-Carneiro. Na segunda obra, de Adolfo Casais Monteiro, tambm

    tomamos conhecimento da grande importncia que o ocultismo tem para Pessoa, que a

    partir da justifica sua utilizao como matria-prima potica. Outras leituras indicadas

    na bibliografia contriburam com um panorama mais geral sobre o tema e foram

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    utilizadas para que definssemos trajetos mais especficos sobre o papel do ocultismo

    munidos de um entendimento maior sobre o tema.

    Seguindo nosso plano de trabalho, foi de grande relevncia a leitura de outras

    obras conhecidas por abordarem com alguma profundidade a relao de Fernando

    Pessoa com o oculto. A saber: A Histria secreta de Portugal, de Antonio Telmo; O

    esoterismo de Fernando Pessoa, de Dalila Pereira da Costa;Fernando Pessoa Vida,

    personalidade e gniode Antnio Quadros;e Fernando Pessoa: O amor, a morte, a

    iniciaode Yvette Kace Centeno.

    Antnio Telmo, em sua Histria secreta de Portugal, aborda, entre outros

    assuntos, o conceito de Quinto Imprio, desde Antnio Vieira at sua manifestao na

    obra potica pessoana, a qual, para Telmo, guiada por conceitos manicos. Telmo

    faz uma leitura, ao que parece, plenamente convicta da presena manica na obra do

    poeta; isto desperta a necessidade da leitura de autores como Antnio Arnaut, Jorge

    Vernex e Jorge de Matos,que abordaram a estreita relao de Fernando Pessoa com a

    Maonaria.

    Uma obra fundamental para a nossa investigao, e que contribuiu como poucas

    para o desenvolvimento de nossa abordagem, foi o livro de Dalila Pereira da Costa, O

    esoterismo de FernandoPessoa. Dalila Pereira da Costa apresenta um ensaio extenso

    sobre o papel do esoterismo na obra pessoana, mostrando como esse esoterismo

    utilizado pelo autor em sua obra potica, como acontecem as adaptaes do que ecoa

    do mundo espiritual para a poesia. Segundo a autora, da experincia espiritual que

    nasce o saber e a intuio de Fernando Pessoa. Defende ainda que o nico

    conhecimento que realmente interessa ao autor portugus o incomum, vindo do

    interior, aquele que no pode ser compreendido apenas pela razo da, estaria a

    explicao do pensamento pessoano ser o pensamento potico e contemplativo, nico

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    que poderia dar conta de aspiraes como esta. O livro de Dalila est dividido em seis

    partes, que tratam do pensamento, do esoterismo, da procura do absoluto, da via potica

    e das aventuras espirituais do poeta e da ptria. Material crtico riqussimo, original, e

    escrito com uma naturalidade que impressiona, com argumentos bem fundamentados e

    convincentes, tornou-se para nossa leitura fonte referencial de grande importncia no

    que se refere ao ocultismo em Fernando Pessoa.

    Outra obra importante em nossa caminhada foi o livro Fernando Pessoa Vida,

    personalidade e gniode Antnio Quadros. Nesse livro, o autor procura retratar Pessoa

    levando em conta toda sua trajetria, genealogia e hereditariedade, passando por

    infncia, viagens, juventude, trabalhos literrios em vida, revistas e idade adulta at o

    falecimento do autor. Quadros tenciona reproduzir ainda o perfil intelectual,

    psicolgico e afetivo do poeta, apresentando um enfoque biogrfico. Apresenta tambm

    pontos muito relevantes acerca da obra de Pessoa, e que nos interessaram muito,

    questes como a mediunidade, o caminho alqumico, a relao do poeta com Deus e o

    captulo intitulado Esprito da verdade, em que sugere algumas reflexes.

    Temos ainda uma contribuio significativa para o entendimento da relao

    entre poesia e alquimia; trata-se do livro de Maria Lcia Dal Farra: A alquimia da

    linguagem. Apesar de discorrer sobre a poesia de Herberto Hlder, Dal Farra analisa a

    poesia de Fernando Pessoa como forma de exemplo e comparao, desenvolvendo

    reflexes que valorizam o estudo da poesia como processo alqumico. Em seguida, h

    uma reflexo sobre o processo alqumico da poesia, que acreditamos estar bastante

    relacionada ao feito por Pessoa. Dal Farra explica que a transmutao e a alquimia

    levam o homem de volta sua prpria natureza, pela converso de muitos elementos

    em um e um elemento em muitos. Considerando todos os elementos naturais como

    aqueles que fazem parte do ser e se confundem com ele, o processo alqumico seria

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    uma espcie de transmutao evolutiva; para a autora, na imanncia das substncias h

    reciprocidade entre as manifestaes da natureza e do homem. Como as energias vitais

    encontram-se no homem de modo desordenado, convm que, por meio de um processo

    alqumico, a ordem seja estabelecida: A finalidade justamente a reintegrao

    consciente dessa fora de vida, existente na natureza, no homem: a operao concluda

    indica a obteno do ouro, a superao da condio humana2.Isso se dar pelo

    autoconhecimento e pelo conhecimento do outro, pela compreenso simultnea do

    homem e do mundo, ou, quem sabe, pelo sentir tudo de todas as maneiras uma das

    obsesses de Pessoa.

    Em seguida, tivemos a oportunidade de conhecer um pouco da obra de autoras

    que foram traduzidas por Pessoa em Portugal e que so consideradas autoridades dentro

    da teosofia, como, por exemplo, Helena BlavatskyeAnnie Besant, alm de livros que

    nos apresentaram informaes sobre a presena e a influncia do ocultismo no fim do

    sculo XIX e no incio do sculo XX. Alm disso, autores como Brunello de Cusatis e,

    mais uma vez, Ivette Kace Centeno trouxeram luz novas e importantes reflexes

    sobre o papel do ocultismo na poesia de Pessoa.

    Centeno, que fornece uma grande contribuio na compreenso do ocultismo

    em Fernando Pessoa, chega a afirmar categoricamente que Fernando Pessoa foi um

    filsofo hermtico consciente e assumido, um maom, e que a prtica de sua poesia,

    alm de literria, foi mstica. Segundo a autora, para Fernando Pessoa a vida no

    existe, o que existe a via e a transformao.3.

    2FARRA, Maria Lcia Dal.A alquimia da linguagem - leitura da cosmogonia potica de HerbertoHelder, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, Coleco Temas portugueses, 1986, p.145.

    3

    CENTENO, Yvette Kace. Fernando Pessoa: O amor, a morte, a iniciao . Lisboa: A Regra do Jogo,1985, p.10.

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    Neste trabalho, daremos uma ateno especial s pesquisas de Centeno. Atravs

    deste percurso de leituras, procuraremos demonstrar a efetiva influncia ocultista na

    vida e na formao de Pessoa, a maneira como essa influncia foi expressa em sua obra

    potica e de que modo temos o caminho alqumico percorrido por Pessoa em busca da

    verdade, utilizando-se de sua arte para atingir esse caminho.

    A transmutao, o desdobramento e uma srie de facetas pessoanas podem estar

    relacionados com sua busca alqumica, podem ser degraus que levam o poeta ao

    encontro de sua natureza, da compreenso da vida e da morte, do conhecimento de si e

    do outro. A poesia, atravs do ilegvel, do simblico, do simulado, da reflexo e de

    outros atributos, pode ser a via para a obteno do ouro.

    2. OCULTISMO, ESOTERISMO E TEOSOFIA

    2.1. A iniciao do poeta

    Emissrio de um rei desconhecido,Eu cumpro inf ormes e inst rues do almE as bruscas f rases que aos meus lbios vm

    Soam-me a um outro e anmalo sent ido...4

    Daremos incio a este segmento comentando as diferenas entre os termos que

    compem o ttulo do captulo, ou seja, procurando definir o que ocultismo, esoterismo

    e teosofia.

    4

    PESSOA, Fernando. Obra potica. Organizao, introduo e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio deJaneiro: Nova Aguillar, 1986, p.62.

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    O ocultismo o termo mais abrangente dos trs; trata-se do estudo ou da prtica

    de supostas artes divinatrias e de fenmenos que parecem no poder ser explicados

    pelas leis naturais. Enfim, ao ocultismo interessa tudo aquilo que est encoberto, que

    desconhecido; o estudo da astrologia, da quiromancia, da telepatia, da magia, das

    cincias ocultas, do que esotrico, est entre esses interesses. Nas cincias ocultas, em

    um sentido um pouco mais restrito, a palavra oculto refere-se a um "conhecimento

    no revelado" ou "conhecimento secreto", em oposio ao "conhecimento ortodoxo" ou

    que associado cincia convencional. Para as pessoas que seguem aprofundando seus

    estudos pessoais de filosofia ocultista, o conhecimento oculto algo comum e

    compreensvel em seus smbolos, significados e significantes. Tal conhecimento "no

    revelado" ou "oculto" pode ser assim designado, por estar em desuso ou permanecer

    nas razes das culturas antigas. Podemos observar que o ocultismo, mesmo entendido

    no aspecto mais abrangente da palavra, era objeto de estudo do poeta Fernando Pessoa

    a partir da prpria astrologia at as ordens secretas.

    O esoterismo refere-se tanto a uma doutrina que defende que a verdade, seja ela

    filosfica, religiosa ou cientfica (a qual deve ser reservada a um grupo restrito de

    iniciados posio defendida diversas vezes por Pessoa), quanto designa um grupo de

    doutrinas, prticas e ensinamentos de teor espiritual e religioso que mobilizariam

    energias desconhecidas da cincia convencional e iniciariam o indivduo no caminho da

    sabedoria, do autoconhecimento e da imortalidade. Vale lembrar tambm, por outro

    lado, que o termo esotricotrata do ensinamento dado ao pblico sem restries e que

    acessvel s pessoas comuns.

    A teosofia refere-se ao conjunto de prticas de doutrinas religiosas e filosficas

    que pretendem unir o homem s divindades mediante a evoluo progressiva do

    esprito at a iluminao. chamada tambm de teosofia a doutrina espiritualista da

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    mstica Helena Petrova Blavatsky, traduzida por Pessoa em Portugal Helena seguia os

    preceitos bsicos que colocamos sobre a palavra teosofia no sentido lato. Ocultismo,

    esoterismo e teosofia so termos que ganharam muito espao em fins do sculo XVIII e

    no incio de sculo XIX. Vamos a um breve histrico.

    No final do sculo XVIII, preparava-se na Europa Central uma rebelio contra o

    domnio do racionalismo. Enquanto os positivistas concluam a sua obra, destinada a

    certificar o triunfo da razo, formaram-se em sucesso rpida sociedades secretas de

    teosofia, lojas manicas e crculos de carter sectrio, vidos de conhecimentos

    sobrenaturais e combatentes dos protagonistas da razo.5

    No decorrer do sculo XIX, as correntes ocultistas passam a se formar e a

    avanar em seus estudos e em suas formas de organizao. Vrios nichos do ocultismo

    tornam-se objeto de interesse dos esotricos e foram por eles estudados, sistematizados

    e desenvolvidos, ganhando contornos de cincia espiritual. Conjuraes de espritos,

    curas milagrosas, experincias alqumicas e tentativas de comunicao com o mundo

    extrassensorial faziam parte das prticas. Enfastiados com as igrejas tradicionais,

    revoltaram-se contra a lucidez racional herdada do Sculo das Luzes, mortfera para a

    alma, e procuravam, por caminhos secretos, um novo acesso divindade, vindo do

    ocultismo, notadamente na corrente teosfica.6

    Na segunda metade do sculo XIX, ocorrem mais avanos no desenvolvimento

    dessas cincias, at o ocultismo ter sua parte terica sistematizada por Helena Petrova

    Blavatsky, no que ficou conhecido como Teosofia. Alm dela, tambm so importantes

    5LIND, Georg Rudolf.Estudos sobre Fernando Pessoa.Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda,1981, p. 258 e 259.

    6

    LIND, Georg Rudolf.Estudos sobre Fernando Pessoa.Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda,1981, p. 258 e 259.

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    na definio do ocultismo Eliphas Levi, S. L. MacGregor Mathers, William Wynn

    Westcott, Papus e Aleister Crowley, entre outros.

    Os poetas aproveitaram-se desse surto das cincias ocultas. O encontro com os

    tesofos e seus escritos abriram-lhe os olhos para as estreitas relaes entre poesia e

    magia.

    As tradies relacionadas com o ocultismo so mantidas por diversas

    sociedades, ordens ou fraternidades secretas e semissecretas, cuja admisso ocorre por

    meio de uma iniciao, que um ritual de aceitao. Esse ritual tem como fundamento

    uma suposta nova vida que o iniciado dever alcanar. Depois da iniciao, ele morre

    simbolicamente e renasce para a vida que passar a ter. Para que nossa exposio fique

    mais clara, vamos procurar desenvolver cronologicamente o caminho de Pessoa atravs

    do ocultismo.

    Durante a juventude, Pessoa participara ocasionalmente, na casa de uma tia, de

    sesses espritas; algum interesse pelo ocultismo manifesta-se j nessa poca e pode ser

    notado nos primeiros poemas ingleses, escritos sob o pseudnimo de Alexander Search.

    No ano de 1915, uma encomenda da Livraria Clssica de Lisboa o ps em contato com

    os escritos dos tesofos. Pessoa foi encarregado da traduo para a lngua portuguesa

    dos livros de Annie Besant (1847-1933), que ocupava a presidncia da Sociedade

    Teosfica. O encontro com a Teosofia teve um efeito explosivo no poeta, despertando

    ainda mais seu interesse pelo assunto. Alm disso, as experincias medinicas e

    paranormais acabam liberando energias psquicas de que ele at ento no tinha tomado

    conscincia.7

    Numa carta a Ana Lusa Nogueira de Freitas, a tia esprita, datada de 24 de

    junho de 1916, Pessoa descreve as capacidades recm-adquiridas:A por fins de maro,

    7

    SIMES, Joo Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa. Histria de uma gerao, 3 Ed., Lisboa:Livraria Bertrand, 1973, p. 60.

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    comecei a ser mdium. Imagine! Eu, que (como deve recordar-se) era um elemento

    atrasador das sesses semiespritas que fazamos, comecei, de repente, com a escrita

    automtica.8 Pessoa ainda relata pressentimentos, vises astrais e etreas; dizia ver o

    magnetismo emanar-se-lhe das mos quando na escurido. Durante as escritas

    automticas, era comum uma preferncia especial dos espritos por desenhos e

    smbolos da Cabala e da Maonaria. O poeta ainda revela tia que sentira nitidamente

    o despertar das foras mais altas da alma e isto com uma finalidade, conhecida apenas

    do Mestre Desconhecido que lhe impusera essa existncia superior. A carta tia

    Anica traz outras curiosas revelaes sobre essa faceta que o poeta passava a descobrir

    de maneira mais abrangente:

    (...) de vez em quando, s vezes obrigado, outras voluntariamente,escrevo, mas raras vezes so comunicaes compreensveis (...) estoudesenvolvendo qualidades no s de mdium escrevente, mas demdium vidente, comeo a adquirir o que os ocultistas chamam deviso astral, tambm chamada de viso etherica, tudo isto est muitoem princpio, mas no admite dvidas, tudo por enquanto muito

    imperfeito e em certos momentos s, mas esses momentos existem (...)h mais curiosidade do que susto, ainda que haja coisas que s vezesmetem um certo respeito, como quando vrias vezes olhando para oespelho a minha cara desaparece e surge a face de um homem debarba ou um outro qualquer, so quatro ao todo, assim me parece, jsei bastante das cincias ocultas para reconhecer que esto sendo emmim acordados os sentidos chamados superiores para um fim qualquer(...)9

    Segundo Pessoa, essa inclinao traria um sofrimento muito maior do que tinha

    at ali e um desgosto profundo acompanharia a aquisio dessas faculdades especiais.

    As experincias de mdium ocuparam Pessoa apenas temporariamente. Os resultados

    da autocomunicao com o mundo dos espritos, as psicografias, encontram-se em larga

    8SIMES, Joo Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa. Histria de uma gerao, 3 Ed., Lisboa:Livraria Bertrand, 1973, p. 60.

    9ApudQUADROS, 1984, p.201.

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    escala em seu esplio. A letra em que esto escritos bem diferente da escrita normal

    do poeta, sendo mais simplificada, com uma caligrafia rstica. Simples e, sem

    importncia na maioria dos casos, tambm o contedo dessas mensagens. Em muitas

    dessas psicografias, aparecem elementos da Ordem da Rosa Cruz, das artes astrolgicas

    e de estudos teosficos, coincidentemente objetos de estudo do poeta.

    A partir da, podemos comear a separar as supostas psicografias do restante da

    sua produo potica. Pessoa recebeu, portanto, do mundo dos espritos somente

    comunicaes que ele j sabia de antemo, como veremos mais frente com mais

    clareza. O caminho das psicografias acaba terminando num autoengano, porque os

    avisos do alm apenas podiam repetir reflexos do pensamento consciente do autor e,

    desse modo, essa tentativa de comunicao com os mundos superiores na obra (e,

    principalmente, na sua teoria potica) se mostra como sendo de difcil comprovao.

    Podemos considerar tambm que, na carta a Adolfo Casais Monteiro, de que trataremos

    um pouco mais frente, Pessoa coloca essas manifestaes espritas como fazendo

    parte de um dos caminhos para o oculto; todavia, seria o caminho mais perigoso e

    imperfeito.

    Muitos leitores de Pessoa ainda insistem que boa parte de sua obra foi composta

    por psicografias, por ditados dos espritos e afins, e a questo dos heternimos e das

    mltiplas personalidades seriam frutos de contatos de Fernando Pessoa com entes

    espirituais e viriam do alm. Antnio Quadros chega a afirmar: Ao contrrio do que

    assegurou nos primeiros tempos a crtica, a poesia de Fernando Pessoa deriva muito

    menos de uma vida intelectual, erudita, cerebral, do que de uma vida espiritual

    alimentada por inslitas e perturbantes experincias msticas como vimos, mas tambm

    medinicas, de relao com os mundos metanaturais ou sobrenaturais.10

    10QUADROS, Antnio. Fernando Pessoa Vida, personalidade e gnio. 5 ed. Lisboa: PublicaesDom Quixote, 1984, 2000, p.200.

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    No podemos concordar com esse tipo de leitura. Apesar de Pessoa, em sua

    obra artstica, dizer-se emissrio de um rei desconhecido que escuta vozes e instrues

    do alm, de fato h, no seu esplio, um texto analtico que altamente revelador no

    sentido de esclarecer este assunto, trazido luz posteriormente e presente no livro

    Fernando Pessoa: O amor, a morte, a iniciao, de Yvette Kace Centeno.

    Fernando Pessoa escreveu, ainda, um texto chamado Contribuio para o

    estudo da actividade subconsciente do esprito. Essa contribuio to importante e

    reveladora que somos obrigados a transcrever dela inmeras partes, por vrios motivos.

    Primeiro, para explicar por que minimizaremos a questo da mediunidade (como

    comunicao com os espritos) na nossa pesquisa sobre o ocultismo na obra de Pessoa;

    em seguida, para divulgar um texto no muito conhecido do esplio que pode refutar

    muitas suposies do papel do espiritismo e dos fenmenos paranormais na construo

    do projeto potico pessoano. Vamos a alguns trechos importantes:

    (Esp. 54 B 23)1 Como se induziu a mediumnidade.A)

    Base hysterica ou hysterica-neurasthenica (averiguar eanalysar as caractersticas psychicas dessas nevroses,determinar em que se relacionam com os phenomenos typicos dachamada mediumnidade em parte aqui, em parte em outraseco deste estudo).B)

    Auto-suggesto progressiva pelo estabelecimento deuma (pelo menos relativa, mas efficazmente activa ) crena narealidade esprita desses phenomenos pela leitura de obras deoccultismo e de theosofia.C)

    Elementos de suggesto, colhidos em conversas,

    prolongamento dos anteriores, e sommando-se comD)

    Elementos de suggesto hypnotica ou similihypnotica (amediumnidade comeou a seguir uma leve hypnose).E)

    O estado de depresso produzido por (1) desgostos eperturbaes vrias, (2) a prpria perturbao mental causadapelo apparecimento dos phenomenos mediumnicos, ( ...)F) Os estmulos mentaes curiosidade quanto ao futuro,ancia de conhecer, etc normalmente humanos, primeiramentesuscitados por estudos astrolgicos, e depois pela prpriapresena dos factos descriptos.11

    11ApudCENTENO, 1985, p. 111 e112.

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    Podemos notar que as hipteses que Fernando Pessoa levanta a respeito da

    induo mediunidade no dizem respeito a contatos com entes desencarnados. Pelo

    contrrio: o poeta busca listar uma srie de explicaes cientficas que, separadas ou

    reunidas, contribuiriam para a induo da mediunidade e para uma espcie de transe.

    Vale ressaltar a palavra mediunidade colocada entre aspas, o que permite o

    entendimento de que, para Pessoa, a mediunidade, na verdade, seria um estado psquico

    alterado, um entendimento diferente do que a palavra tem no ambiente religioso. A

    depresso, a curiosidade pelas cincias ocultas, as perturbaes mentais e a hipnose

    esto dentre os fatores que Pessoa considera como aqueles que podem contribuir para

    um estado alterado de conscincia.

    (Esp. 54 B 23) 2.Progresso da mediumnidade ( Marcha da doena ?)A)

    Declarao amorpha da escripta automtica,imperfeita e desconnexa (a seguir, como se disse, a uma leve hypnose,e relacionada com ella por o primeiro nome escripto etc ).

    B) Apparecimento de phenomenos de ligeira viso comaumento de fixao retiniana de imagens e uma presumida capacidadede ver a chamada aura etherica.

    C)

    Apparecimento da escripta automticadesenvolvidamente e depois com uma pretensa communicao dediversos espritos, sem respostas a perguntas, etc. (...).12

    Nesse trecho, Pessoa utiliza-se da expresso marcha da doena ao se referir ao

    progresso da mediunidade, volta a mencionar a hipnose, cita uma presumida

    capacidade de enxergar a aura etrea e, por fim, admite que na pretensa comunicao

    no h respostas s perguntas, ou seja, essa experincia comunica apenas o que j se

    sabia de antemo e desprovida de interao.

    (Esp. 54 B 23) 4 Analyse das chamadas communicaesmediumnicas:

    12Apud CENTENO, 1985, p.112.

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    A) Os romances do subconsciente: as communicaes no passamem geral de um produto inferior e estril de (1) actividadeimaginadora e baixa do subconsciente funccionando, como quandodurante o somno, liberto do controle do consciente? (2) a actividade dosubconsciente no que resduo de elementos do consciente, trabalhandocomo que em imitao deste, (3) a actividade memoriada do

    subconsciente reproduzindo elementos gravados que o consciente noattinge. (...) verifica-se que so factos gravados na memriasubconsciente, que o consciente esqueceu que lera ou presenciara; (3)verifica-se que representam previses tiradas por um espcie deracioccinio mais rpido e mais gil que o do consciente. (...)(observando-se sempre que esses phenomenos a serem verdadeiros so em geral, se no sempre, dados em pessoas no s doentes o quepouco importaria, pois teriamos que averiguar o que a doena masabsolutamente inferiores, mental e moralmente).13

    Podemos observar nesse outro fragmento que, alm de Pessoa estar certo de que

    as manifestaes provm do subconsciente do mdium por diversas possibilidades de

    manifestao, considera que os fenmenos so dados em pessoas absolutamente

    inferiores mental e moralmente (no acreditamos que o prprio Fernando Pessoa se

    inclusse neste grupo). A mediunidade poderia ser considerada, assim, como patologia,

    ou mesmo como uma manifestao do subconsciente. Em seguida, iremos transcrever a

    parte final, onde encontraremos as concluses de Fernando Pessoas acerca da questo

    da mediunidade:

    (Esp. 54 B 23) 5. Concluses.A)

    A mediumnidade resulta de um desequilbrio mental, anlogoao produzido pelo alcoolismo, sendo muitas vezes o estado prodomicoda loucura declarada.

    B)

    O subconsciente tem faculdades de ordem differente doconsciente, mais afinadas em certos pontos, mas absolutamenteinferiores, e que, quando apllicadas nestes casos, se desviam do seufim original, que a conservao do organismo.C)

    Nada, at hoje, prova a presena de espritos communicantes,sendo para isso se provar preciso demonstrar primeiro que nasfaculdades, ainda mal estudadas, do subconsciente no cabe a deelaborar todos os phenomenos a que se chamam mediumnidade.D)

    A mediumnidade um estado mrbido participante d`aquellesque produzem de um lado a loucura, do outro o crime. O crime e aloucura, o suicdio so os aboutissements inevitveis daautointoxicao mediumninca. Quando no se chega a tanto, chega-se

    13ApudCENTENO, 1985, p.113.

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    loucura moral, perverso sexual, e a incapacidade para a vidasocial pela absoluta desagregao dos instictos sociais, sem umacorrespondente compensao social, como no gnio e no talento, ondea amoralidade freqente, mas onde o serem gnio e talentocompenso a falha.E) Anlogos ao do espiritismo contemporneo temos no passado

    as epidemias danantes da edade mdia e os outros phenomenosestudados por Richer nos appendices do seu livro sobre a GrandeHysteria.F)

    O espiritismo tende, sem compensao alguma, a atacar oesprito scientfico: nem a arte, nem a moral, nem a prpria religioganham com isso. A arte no se faz pelo subconsciente em liberdade,mas pelo subconsciente dominado. A moral no se faz pela perda dainhibio e a anulao da vontade, que so as primeiras necessidadesda moral. A religio no pode assentar no desenvolvimento doegosmo, nem na quebra dos laos sociaes.G) O espiritismo deveria ser prohibido por lei, pela mesma razoque as publicaes obscenas e os espetculos tendentes a suscitar noscrebros fracos o vicio e o crime. (?)H)

    Para bem da cicvilizaao grega, que a nossa, emboradisfarada, devemos renunciar a esses elementos ndios, persas, e deoutras raas de civilizao inferior que pelo cultivo constante dasfaculdades inferiores, tendem a destruir, no individuo a supremacia darazo, na espcie o instinto gregrio, na civilizao actual a sua basede sciencia e arte que herdamos da nossa me commum, a Grcia.I)

    Quando muito, os phenomenos do occultismo e do espiritismodeviam ser, como na antiguidade, pertena de uma seita e nolanadora pela sociedade dentro como se fosse pra toda gente.J) A fora creadora do universo deu-nos, atravez dos sentidos

    (talvez limitados ) que nos concedeu, a realidade exterior como typo deRealidade, e o nosso esprito apenas como perceptor dessa realidade.Sahir de aqui violar as leis fundamentais da Natureza e de Deus. Oque Deus fez occulto (se Deus faz alguma coisa occulta ) para seconservar oculto. Se no, elle te-lo-hia feito claro.K)

    O actual movimento occultista resulta (a) da desagregao dochristianismo, que lucta, a todo transe, para se conservar sob todas asformas que lhe appaream, (b) da nossa civilizao internacional quetornou possvel aos elementos emanentes de civilizaes como as dandia e da China de chegarem at ns, (c) da incapacidade de umagerao neurasthemisada pela rapidez excessiva do progressomoderno, industrial, cultural e scientfico, em se adaptar de prompto

    ao typo dementalidade que necessrio que corresponda as idiasfontes desse progresso.14

    Diante das concluses de Fernando Pessoa, no restam dvidas de que no se

    pode considerar que a obra pessoana seja advinda de manifestaes de espritos. Isso se

    pode concluir, pois o mesmo no admite sequer a existncia desses fenmenos, quanto

    14Apud CENTENO, 1985, p. 115 e 116.

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    mais o recebimento de uma obra artstica ditada por entes espirituais. Poucos

    materialistas seriam to speros e incisivos em uma anlise sobre mediunidade e

    espiritismo como foi Pessoa em seu estudo. Dessa forma, o que se levanta sobre a

    questo religiosa (esprita) na potica pessoana no apresenta fundamentos. Sendo

    assim, aqueles que consideram muitos dos poemas de Fernando Pessoa (sem a sua

    concordncia) como manifestaes de espritos podem atribuir qualquer poema de

    qualquer escritor a uma igual manifestao espiritual. Aqueles que consideram a

    potica pessoana manifestao espiritual de seres desencarnados podem fazer o mesmo

    com a potica de Joo Cabral de Mello Neto, por exemplo, ou de qualquer outro, pois,

    como vimos, Pessoa (assim como Joo Cabral provavelmente) no admite isso.

    Como essa leitura (esprita) o reflexo de uma crena religiosa sem nenhuma

    comprovao cientfica (uma questo de f), no convm compactuarmos com

    hipteses que tentem embasar uma leitura que aproxime a obra de Fernando Pessoa da

    mediunidade. Esse fragmento do esplio de Fernando Pessoa merece destaque, pois

    muitos leitores buscam, ultimamente com muita frequncia, apresentar uma relao

    estreita da obra de Fernando Pessoa com a doutrina esprita, utilizando-se de versos de

    seus poemas fora de contexto, ou mesmo de uma interpretao equivocada de

    elementos simblicos presentes na poesia de Fernando Pessoa. Em uma poca em que

    diversos entendimentos errneos atrasam, prejudicam e encobrem o estudo do

    ocultismo na obra de Fernando Pessoa, nossa obrigao difundir fragmentos como

    esse, do esplio de Pessoa, que no se sabe por que tm uma divulgao to tmida.

    Acreditamos que os avanos que podem ser obtidos no estudo do ocultismo dentro da

    obra pessoana devem se dar por outros caminhos, sendo o da mediunidade um dos

    caminhos que atrasam e embaam a verdadeira influncia ocultista.

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    O contato com a teosofia, por outro lado, aparece com muito maior relevncia

    dentro da nossa leitura. Uma carta dirigida a Mrio de S-Carneiro, datada de

    06/12/1915, testemunha o profundo abalo que o estudo das doutrinas teosficas

    provocou no poeta:

    O carcter extraordinariamente vasto desta religio-filosofia; a noode fora, de domnio, de conhecimento superior extra-humano queressumam as obras teosficas perturbaram-me muito. Cousa idnticame acontecera h muito tempo com a leitura de um livro ingls sobreOs Ritos e os Mistrios dos Rosa-Cruz.A possibilidade de que ali,na Teosofia, esteja a verdade real, me hante.15

    O estudo das teses teosficas aparece paralelamente com a elaborao duma

    doutrina potica neoclssica e, por isso, misturam-se ideias das duas reas em odes de

    Ricardo Reis. A carta de Pessoa a Carneiro se d em uma poca prxima da que foi

    remetida Tia Anica, mas a diferena reside no fato de que o poeta, ao invs de

    desqualificar o assunto posteriormente, como na questo do espiritismo, confirma esse

    interesse e vai alm, j no fim da vida, na carta a Adolfo Casais Monteiro, que ser

    objeto de anlise mais adiante. Acreditamos que o projeto potico de Pessoa est em

    contato com a Teosofia e inspirado em seus estudos sobre o assunto, assim como sua

    participao (ou leitura a respeito), em ordens iniciticas. Em seguida, apresentaremos

    resultados da nossa pesquisa dos laos que ligavam Pessoa s sociedades secretas, em

    especial Maonaria.

    2.2 A participao na Maonaria

    15

    S-CARNEIRO, Mrio de. Correspondncia com Fernando Pessoa. So Paulo: Companhia dasLetras, 2004, p. 330.

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    Contra todas as frmulas do mal,Cont ra tudo que torna o homem precrio.Se s maon,Sou mais que maon sou t emplrio.Esqueo-te santoDeslembro teu indefinido encanto.Meu irmo, dou-te o abrao fraternal.16

    Uma das questes mais discutidas pelos pesquisadores do papel do ocultismo na

    obra pessoana se Fernando Pessoa foi, ou no, um maom. Essa resposta poderia

    ajudar no entendimento de um dos principais mistrios: o ocultismo foi apenas uma

    fonte de inspirao para o poeta ou foi a base de seu projeto potico? Uma confirmao

    da participao de Fernando Pessoa na Maonaria poderia sugerir que os estudos do

    poeta (que atravessaram sua vida) sobre as ordens iniciticas e cincias ocultas eram

    mais do que simples matria bruta para sua poesia. No temos dvidas do enorme

    interesse do poeta pelos assuntos ocultos. Sua vida e sua obra mostram-nos um enorme

    conhecimento sobre as ordens, a simbologia manica e as religies antigas. Assim

    como a maioria dos pesquisadores do papel do ocultismo na poesia de Fernando

    Pessoa, acreditamos que o escritor foi um iniciado tanto como poeta quanto em sua vida

    pessoal.

    Alguns estudiosos argumentam que h razes para se duvidar da efetiva

    participao do poeta na Maonaria. Uma das razes seria o fato de no haver registro

    da passagem de Fernando Pessoa pelo Grande Oriente Lusitano, nica obedincia

    portuguesa de sua poca; seria um bom argumento se a loja no tivesse sido assaltada e

    vandalizada em 1929 e 1935 e em decorrncia disso tivesse a maioria dos documentos

    sido destruda.17 As depredaes e ataques no provam a participao de Pessoa no

    Grande Oriente Lusitano, mas tampouco convm acreditar que a nica maneira de

    Fernando Pessoa passar por uma iniciao em ordem secreta ou em ritos secretos seria

    16

    Apud MATOS, 1997, p. 138.17ARNAUT, Antonio.FernandoPessoa e a Maonaria . Lisboa: Grmio Lusitano, 2005, p.6.

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    atravs da loja em questo; h tambm a hiptese da participao de Pessoa em outra

    ordem inicitica que no a Maonaria.

    Antes de completar esse raciocnio, seria relevante abordar o teor do famoso

    artigo de Pessoa em defesa da Maonaria, principal argumento usado por aqueles que

    no creem na filiao manica do poeta.

    Este trecho abaixo do artigo que Fernando Pessoa publicou no Dirio de

    Lisboa, no4.388 de 4 de fevereiro de 1935, contra o projeto de lei, do deputado Jos

    Cabral, proibindo o funcionamento das associaes secretas, sejam quais fossem os

    seus fins e sua organizao:

    Comeo por uma referncia pessoal, que cuido, por necessria, nodever evitar. No sou maon, nem perteno a qualquer outra Ordemsemelhante ou diferente. No sou, porm, antimaon, pois o que sei doassunto me leva a ter uma idia absolutamente favorvel da OrdemManica. A estas duas circunstncias, que em certo modo mehabilitam a poder ser imparcial na matria, acresce a de que, porvirtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parteoculta da Maonaria parte que nada tem de poltico ou social , fui

    necessariamente levado a estudar tambm esse assunto assunto bel,mas muito difcil, sobretudo para quem o estuda de fora. Tendo eu,porm, certa preparao, cuja natureza me no proponho indicar (...)18

    No poderamos esperar que Pessoa se declarasse maom em um artigo de

    primeira pgina de jornal enquanto tramitava (foi posteriormente aprovado) um projeto

    que estabelecia vrias e fortes sanes a todos quantos pertencessem a associaes

    secretas; definitivamente, no seria uma atitude muito inteligente. Alm disso, no

    permitido a um maom declarar a sua condio a ningum, muito menos queles que

    no faam parte da fraternidade. No livro coordenado por Teresa Rita Lopes, Pessoa

    indito, temos um escrito de Pessoa que auxilia na compreenso da questo:

    18Apud ARNAUT, 2005, p.21 e 22.

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    Por isso eu disse, legitimamente, que no pertencia a Ordem nenhuma.No podia legitimamente dizer que no tinha nenhuma iniciao.Antes, para quem pudesse entender, insinuei que a tinha, quando faleide uma preparao especial, cuja natureza no me proponho indicar.Esta frase escapou, e ainda mais o seu sentido possvel, aos iledoresantimaonicos. S posso pois dizer que perteno Ordem Templria

    de Portugal. Posso dizer, e digo, que sou Templrio portuguez. Digo-odevidamente autorizado. E dito, fica dito. (). .19

    Sendo assim, Pessoa admite que foi iniciado, e no fica por a, vai alm:

    declara-se templrio portugus, ou seja, mais que maom. Ao que parece, o poeta foi

    iniciado, aprendeu sobre as ordens secretas e tinha conhecimentos que lhe permitiam

    estudos aprofundados sobre as mesmas.

    Antnio Arnaut, em seu Fernando Pessoa e a Maonaria, levanta diversas

    hipteses sobre a iniciao de Fernando Pessoa, inclusive a de Fernando Pessoa ter se

    transmutado em um iniciado, ou ter se autoiniciado. Jorge de Matos, em O pensamento

    manico de Fernando Pessoa, tambm no guarda dvidas da iniciao do poeta, mas

    de igual forma levanta hipteses sobre como esta teria se dado talvez, atravs do

    mago ingls Aleister Crowley. Na verdade, difcil, depois de tanto tempo, saber ao

    certo como se deu a iniciao de Pessoa, principalmente em se tratando de ordens

    secretas. Temos de definitivo o profundo conhecimento do poeta sobre o assunto, o

    qual, segundo muitos pesquisadores e maons, s poderia ser adquirido por meio de

    uma participao efetiva em uma ordem ocultista, com a presena de um mestre que lhe

    auxiliasse a compreender a intrincada simbologia. Pessoa, no artigo do jornal, continua

    a discorrer sobre a Maonaria:

    A Maonaria compe-se de trs elementos: o elemento inicitico, peloqual secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei

    19

    ApudLOPES, 1993,p. 334.

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    humano isto , o que resulta de ela ser composta por diversasespcies de homens, de diferentes graus de inteligncia e cultura, e oque resulta de ela existir em muitos pases, sujeita, portanto adiversascircunstncias de meio e de momento histrico, perante as quais, depas para pas e de poca para poca reage, quanto atitude social,diferentemente.

    Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espritomanico, a Ordem a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro,a Maonaria como alis qualquer instituio humana, secreta ou no apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de Maonsindividuais, e conforme circunstncias de meio e momento histrico, deque ela no tem culpa.

    Neste terceiro ponto de vista, toda a Maonaria gira, porm, em tornode uma s idia a "tolerncia"; isto , o no impor a algum dogmanenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a Maonaria no

    tem uma doutrina. Tudo quanto se chama "doutrina manica" soopinies individuais de Maons, quer sobre a Ordem em si mesma,quer sobre as suas relaes com o mundo profano. Sodivertidssimas: vo desde o pantesmo naturalista de Oswald Wirthat ao misticismo cristo de Arthur Edward Waite, ambos tentandoconverter em doutrina o esprito da Ordem. As suas afirmaes,porm, so simplesmente suas; a Maonaria nada tem com elas. Ora oprimeiro erro dos Antimaons consiste em tentar definir o espritomanico em geral pelas afirmaes de Maons particulares,escolhidas ordinariamente com grande m f.20

    Nesse trecho, Pessoa faz uma sntese dos principais elementos da Maonaria,

    em Portugal e no exterior, demonstra conhecimento de como funcionavam naquela

    poca as diversas estruturas das ordens manicas e chega mesmo a enumerar os

    principais autores antimaons.

    O segundo erro dos Antimaons consiste em no querer ver que a

    Maonaria, unida espiritualmente, est materialmente dividida, comoj expliquei. A sua ao social varia de pas para pas, de momentohistrico para momento histrico, em funo das circunstncias domeio e da poca, que afetam a Maonaria como afetam toda a gente. Asua ao social varia, dentro do mesmo pas, de Obedincia paraObedincia, onde houver mais que uma, em virtude de divergnciasdoutrinrias as que provocaram a formao dessas Obedinciasdistintas, pois, a haver entre elas acordo em tudo, estariam unidas.Segue daqui que nenhum ato poltico ocasional de nenhumaObedincia pode ser levado conta da Maonaria em geral, ou at

    20ApudARNAUT, 2005, p. 29 e30.

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    dessa Obedincia particular, pois pode provir, como em geral provm,de circunstncias polticas de momento, que a Maonaria no criou. 21

    Em seguida, Fernando Pessoa discorre sobre as diferentes correntes de

    pensamento que existem dentro da Maonaria, chamadas obedincias distintas.

    importante lembrar que outras ordens secretas como a Ordem da Rosa Cruz e a Ordem

    Templria podem estar includas de algum modo dentre essas obedincias distintas; isso

    abre espao para cogitarmos que a aproximao maior de Pessoa seria com uma

    obedincia distinta e no exatamente com a parte mais difundida da Maonaria,

    hiptese que no deve ser descartada.

    Resulta de tudo isto que todas as campanhas antimanicas baseadas nesta dupla confuso do particular com o geral e doocasional com o permanente esto absolutamente erradas, e quenada at hoje se provou em desabono da Maonaria. Por esse critrio o de avaliar uma instituio pelos seus atos ocasionais porventurainfelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais quehaveria neste mundo seno abominao? Quer o Sr. Jos Cabral que

    se avaliem os papas por Rodrigo Brgia, assassino e incestuoso? Querque se considere a Igreja de Roma perfeitamente definida em seuntimo esprito pelas torturas dos Inquisidores (provenientes de um usoprofano do tempo) ou pelos massacres dos albigenses e dospiemonteses? E contudo com muito mais razo se o poderia fazer, poisessas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dospapas, obrigando assim, espiritualmente, a Igreja inteira. Sejamos, aomenos, justos. Se debitamos Maonaria em geral todos aqueles casosparticulares, ponhamos-lhe a crdito, em contrapartida, os benefciosque dela temos recebido em iguais condies. Beijem-lhe os jesutas asmos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na Prssia, nosculo dezoito quando expulsos de toda a parte, os repudiava o

    prprio Papa pelo Maom Frederico II. Agradeamos-lhe a vitriade Waterloo, pois que Wellinton e Blucher eram ambos Maons.Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio aassentar a futura vitria dos Aliados a "Entente Cordiale", obra doMaom Eduardo VII. Nem esqueamos,finalmente, que devemos Maonaria a maior obra da literatura moderna o "Fausto" doMaom Goethe. Acabei de vez. Deixe o Sr. Jos Cabral a Maonariaaos Maons e aos que, embora o no sejam, viram, ainda que noutroTemplo, a mesma Luz. Deixe a Antimaonaria queles Antimaons queso os legtimos descendentes intelectuais do clebre pregador que

    21ApudARNAUT, 2005, p. 30.

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    descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja deJerusalm.22

    O trecho que finaliza a defesa da Maonaria tambm passvel de alguns

    comentrios importantes. Fernando Pessoa critica a Igreja tradicional e enumera feitos

    virtuosos dos integrantes da Maonaria, dentre eles a maior obra da literatura moderna

    escrita por Goethe. Ora, tambm sobre Goethe, o Maom Goethe, to admirado

    pelo poeta, um ensaio do prprio Pessoa que trata de poesia e alquimia e que ser

    comentado posteriormente nesse trabalho. tambm digna de meno a solicitao que

    Pessoa faz ao deputado para que deixe a Maonaria aos maons e aos que embora no

    o sejam, viram, ainda que em noutro Templo a mesma Luz.. Ver a Luz a

    expresso manica que significa ser iniciado, ser recebido na Ordem, ou seja, Pessoa

    pede que a Maonaria seja deixada aos maons e aos iniciados por ordens similares, por

    ordens iniciticas que permitem aos seus adeptos a viso da Luz, entre esses pode estar

    o prprio Pessoa que se dizia Templrio portuguez.A Maonaria aos maons e aos

    que viram a Luz; a Antimaonaria aos descendentes de Herodes e Pilatos. Em que

    grupo estaria Pessoa seno no primeiro?

    Acreditamos, pois, que se levando em conta os slidos conhecimentos que

    Fernando Pessoa tinha dos propsitos das ordens iniciticas, da simbologia manica e

    esotrica, dos rituais das ordens secretas, da estrutura e do funcionamento dessas

    ordens, assim como seu profundo domnio de tantas questes relacionadas ao tema, o

    poeta foi um iniciado, ainda que autoiniciado, na Maonaria ou em alguma ordem

    22Apud ARNAUT, 2005, p. 30.

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    secreta similar. Yvette Kace Centeno nos diz que: A maonaria , para Fernando

    Pessoa, uma vida mais do que uma sociedade ou uma ordem.23

    Se o poeta participou ativamente dos rituais, das reunies, e foi um membro

    oficializado, no h documento que possa comprovar, porm, a quantidade de livros

    sobre o assunto presentes na biblioteca de Pessoa e a quantidade de escritos seus a

    respeito das ordens iniciticas colocam o poeta como um estudioso profundo do tema e,

    como o prprio poeta revela, um templrio portugus iniciado.

    3. CAMINHOS DA CRTICA

    3.1. Antnio Telmo e aH istr ia secreta de Portugal:

    O Portugal feito Universo,Que rene, sob amplos cus,

    23CENTENO, Yvette Kace. O pensamento esotrico de Fernando Pessoa. Lisboa: Publicaes CulturaisEngrenagem, 1990, p.25.

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    O corpo annimo e dispersoDe Osris, Deus. 24

    Antnio Telmo, em sua Histria secreta de Portugal, aborda, entre outros

    assuntos, o conceito de Quinto Imprio, desde Antnio Vieira at sua manifestao na

    obra potica pessoana, para Telmo, guiada por conceitos manicos.

    O conceito de Quinto Imprio, surgido ainda na Idade Mdia, tido por Telmo

    como uma outra maneira de ver a comunicao entre o Oriente e o Ocidente, que os

    templrios j pretendiam assegurar. Como sabemos, a interpretao de Antnio Vieira

    de Quinto Imprio foi motivada por profecias bblicas:

    Os cincos imprios sucessivos, entendendo neles o assrio, o persa, ogrego, o romano e, por fim, o imprio portugus (...) em quatro fases ouciclos distintos assume entre os gregos uma expresso dada pelasucesso simblica dos quatro metais: oiro, prata, bronze e ferro. EmDaniel, que fala da mistura do ferro com o barro nos ps da esttua,significado na forma de uma pedra que derruba a esttua. (...) O Quintosignificar a reintegrao de tudo que se manifestou durante os quatroperodos num ponto que os transcende e lhes central.25.

    Um dos pontos mais interessantes que retiramos da anlise do estudioso sobre o

    surgimento do conceito de Quinto Imprio e que, ao que nos parece, pode ser uma viso

    que acaba convergindo com a viso pessoana um comentrio feito respeito de

    Antnio Vieira: Ele vive em pleno ciclo sacerdotal. Ele mesmo um sacerdote. Isso

    explica que visione, tal como Bandarra, uma monarquia universal sob a gide da

    Igreja (...)26. Ora, no prprio poema intitulado Quinto Imprio, Pessoa fecha com essa

    ltima estrofe: Aquele inteiro Portugal/ Que, universal perante a Luz, / Reza, ante a

    24PESSOA, Fernando. Obra potica. Organizao, introduo e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio deJaneiro: Nova Aguillar, 1986, p.34.

    25TELMO, Antnio.Histria secreta de Portugal. Lisboa: Editorial Vega, 1977, p. 104.

    26TELMO, Antnio.Histria secreta de Portugal. Lisboa: Editorial Vega, 1977, p.104.

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    Cruz universal, / Ao Deus Jesus27. Parece-nos que o Quinto Imprio de Pessoa o

    mesmo de Vieira, guardadas as devidas propores. A expresso Uma monarquia

    universal sob a gide da Igrejapode ser interpretada de diferentes formas, assim como

    a Cruz universale oDeus Jesusem Pessoa. Se, para Antnio Vieira, a Igreja pode ser a

    institucional, a cruz universal de Pessoa pode se referir a uma outra Igreja, esta

    espiritual, sem fronteiras; a semelhana entre ambos se refere ao papel de Portugal.

    Antes de prosseguir, cabe ainda outra citao de Pessoa acerca do assunto:

    Todo Imprio que no baseado no Imprio Espiritual uma Morteem p. Um cadver mandado. S pode realizar ultimamente o ImprioEspiritual a nao que for pequena, e em quem, portanto, nenhumatentativa de absoro territorial pode nascer, com o crescimento doideal nacional e desviar do seu destino espiritual o originalimperialismo psquico.28

    Nesse sentido, o Imprio (monarquia universal) sob a gide, no de uma

    determinada Igreja no sentido denotativo, mas de um ideal espiritual, acaba por fazer

    sentido, assim como a cruz universal e Deus fazem parte do simbolismo de Pessoa.

    Essa base espiritual ainda assim serve como ponto transcendente aos outros Imprios,

    pois, como foi mencionado, o prprio Pessoa acreditava que no havia Imprio vivo

    que no o baseado no espiritual.

    Ainda no livro de Antnio Telmo, significativo abordarmos a chamada

    reciclagem da maonaria que teria sido feita por Fernando Pessoa, segundo o autor.

    Partindo do princpio de que as doutrinas filosficas dominantes nos sculos XIX e XX

    tm influncia direta na interpretao dos ritos e dogmas manicos, cada qual sua

    poca, o autor coloca os antigos ritos manicos como incompatveis ao pleno estado

    27PESSOA, Fernando. Obra potica.Organizao, introduo e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio deJaneiro: Ed. Nova Aguillar, 1986, p.34.

    28

    PESSOA, Fernando. Obra potica.Organizao, introduo e notas de Cleonice Berardinelli, Rio deJaneiro: Ed. Nova Aguillar, 1986. (falta pgina)

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    positivo, sendo esses ritos, pouco a pouco, deixados de lado e seguindo-se adaptaes

    que os transformaram em reunies culturais, filosficas e polticas. Desta forma, Telmo

    v Pessoa como algum que regressar origem da Maonaria, resgatando valores e

    conceitos abandonados pelos seus contemporneos.

    Comentando a falta de espao que a origem tradicionalista da ordem sofre a

    partir do sculo XIX, Telmo faz a seguinte colocao:

    A sociedade culta, positivista ou cartesianista, no lhes concedia odireito de serem vates. Positivistas e cartesianistas pareciam ter

    decidido que proibido pensar na idia de Deus, porque de Deus outudo j se sabe ou nada se sabe e pode saber-se. A cincia devia seredificada sem essas idias, apesar de estarmos num mundo onde apresena do mistrio impe que nada se possa realmente saber forados termos desse mistrio. Assim, os mais lcidos e imprudentes nodesistiam de procurar a palavra perdida da Sabedoria.29.

    No temos dvidas de que Pessoa pertencia ao grupo dos lcidos imprudentes;

    uma das caractersticas marcantes do escritor foi mesmo a da busca incessante por

    respostas. Procurar, estudar e refletir sobre as mais diversas possibilidades, filosofias e

    religies foram algumas das atividades que o poeta exerceu com grande regularidade ao

    longo de sua vida. , no entanto, questionvel o tamanho dessa influncia positivista

    em uma ordem como a Maonaria, que, mesmo no estando livre das tendncias da sua

    poca, conhecida pelo extremo tradicionalismo e apenas conhecida profundamente

    por seus membros mais experimentados. Observamos isso levando em considerao as

    palavras do prprio autor, que diz levar em conta as instrues dos rituais

    semidivulgados nos ltimos dois sculos30 e uma citao de Borges Grainha,

    prefaciador da Histria da Franco-Maonaria em Portugal, presente no prprio livro

    29TELMO, Antnio.Histria secreta de Portugal.Lisboa: Editorial Vega, 1977, p.114.

    30TELMO, Antnio.Histria secreta de Portugal. Lisboa: Editorial Vega, 1977, p. 114.

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    de Antnio Telmo: A Maonaria ser talvez o que passe desse ciclo para o seguinte,

    assegurando a transio atravs dos elementos incorruptveis que contm. 31

    Ainda sobre a questo da presena manica na obra de Pessoa, Telmo faz uma

    leitura, ao que parece, plenamente convicta dessa presena: Fernando Pessoa foi nosso

    primeiro poeta manico e toda sua obra potica pode e deve ser interpretada como a

    expresso da viagem inicitica da alma de um adepto que no se limita a cumprir os

    ritos e estudar o dogma, mas desse cumprimento e desse estudo tira todas as

    conseqncias nos vrios planos de vivncia do ser.32

    Acreditamos que essa afirmao do estudioso, em que pese sua interpretao

    fundamentar-se em argumentos coerentes , no mnimo, ousada, uma vez que Pessoa

    jamais assumiu publicamente sua participao em qualquer ordem inicitica; e no h

    provas de que o escritor cumpria qualquer tipo de rito e, mais que isso, possui uma

    produo de tamanha complexidade que seria arriscada qualquer afirmao mais

    restritiva no tocante ao entendimento pleno desta. Sendo assim, colocar toda sua obra

    potica sob apenas uma interpretao correr o risco de cometer um erro

    crasso.Mensagemcompleta a reflexo sobre a questo da Maonaria no olhar de Telmo,

    obra em que o prprio Pessoa admite a presena de conceitos liberais, como em seu

    Explicao de um livro:

    E a este leitor (atento einstrudo) seria fcil perceber que um livro toabundantemente embebido em simbolismo templrio e rosacruciano.(...) seria fcil concluir que tendo as ordens templrias, conceitossociais idnticos, no que positivos e no que negativos aos daMaonaria; e girando o rosacrucianismo, no que social, em torno deidias de fraternidade e de paz, o autor de um livro assim seria

    31TELMO, Antnio.Histria secreta de Portugal. Lisboa: Editorial Vega, 1977, p. 121.

    32TELMO, Antnio.Histria secreta de Portugal. Lisboa: Editorial Vega, 1977, p. 116.

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    forosamente um liberal por derivao, quando no o fosse j porndole.33

    Mensagem tambm foi objeto de reflexo de Antnio Telmo e nesse livro que

    o estudioso enxerga um dos maiores exemplos do que ele chama de reciclagem da

    maonaria, expresso j comentada acima:

    Pela Mensagem, Fernando Pessoa rectifica, luz de princpiosmaonicos recuperados, a histria de Portugal. Das trs partes que aconstituem, a do meio tem como legenda epigrfica a frase latinaPossessio Maris, verso de Possessio Orbis, palavra de passe do graude Mestre. (...) A palavra Possessio Orbis, do grau de Mestre, conduziunossa interpretao num sentido que pode muito bem coincidir com opensamento do poeta iniciado.34

    No pretendemos aqui, de forma alguma, desqualificar o estudo e a

    interpretao do autor de Histria secreta de Portugal, mas cremos que a maneira

    afirmativa com que o autor trata certas questes seja um pouco precipitada e carente de

    uma anlise mais elaborada. O prprio Pessoa deixa brechas para livre interpretao em

    seus textos em prosa, como exemplificamos em fragmento acima, sobre os conceitos

    manicos e liberais. Preferimos o Antnio Telmo do pode muito bem ao do pode e

    deve ser.

    A aproximao do Quinto Imprio de Vieira ao de Pessoa, involuntria ou no,

    bastante interessante; e o surgimento e a manuteno deste Imprio na esferaespiritual ponto pacfico.Optamos por ignorar a interpretao de Quinto Imprio feita

    33PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Organizao, introduo e notas de Cleonice Berardinelli, Rio deJaneiro: Ed. Nova Aguillar, 1986, p. 13.

    34TELMO, Antnio.Histria secreta de Portugal. Lisboa: Editorial Vega, 1977, p. 118.

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    por Telmo em um ponto do livro35, no qual o autor discorre sobre uma possvel

    inverso de polos do globo terrestre, eixos predominantes e grandes transformaes e

    ciclos, interpretao que, inclusive, foge de um Quinto Imprio espiritual que era a

    proposta de Pessoa, por entender que nessa interpretao h, e at se justifica, uma

    grande carga emocional e comoo potencializada pelos acontecimentos de 25 de abril

    de 1974.

    3.2.

    Dalila Pereira da Costa e O Esoterismo de Fernando Pessoa:

    Tudo o que vemos outra coisa,A marvasta, a maransiosa o eco de out ra marque estOnde real o mundo que h36

    Dalila Pereira da Costa apresenta, em seu livro, um ensaio extenso sobre o papel

    do esoterismo na obra pessoana, mostrando como ele utilizado pelo autor em sua obra

    potica, como acontecem as adaptaes do que ecoa do mundo espiritual para a

    poesia. Segundo a autora, da experincia espiritual que nasce o saber e a intuio de

    Fernando Pessoa, acreditando ainda que o nico conhecimento que realmente interessa

    ao autor portugus o incomum, vindo do interior, no perceptvel apenas pela razo;

    da, estaria a explicao do pensamento pessoano ser o pensamento potico e

    contemplativo, nico que poderia dar conta de aspiraes como esta.

    A realidade de Pessoa, segundo Dalila sugere, o reflexo de outra realidade,

    essa sim, real, e a habilidade de Pessoa em ser captador, transmutador e transmissor do

    35TELMO, Antnio.Histria secreta de Portugal. Lisboa: Editorial Vega, 1977, p. 121.

    36

    PESSOA, Fernando. Obra potica. Organizao, introduo e notas de Maria Aliete Galhoz,Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1986, p.621.

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    verdadeiro saber 37seria, de fato, uma de suas maiores qualidades. Um poeta alm da

    razo e dos sentidos, um leitor da realidade interior que est escondida, encoberta pela

    realidade exterior; que possui um estado de conscincia capaz de perceber essa

    realidade e traduzi-la. Esse o Fernando Pessoa de Dalila.

    O livro de Dalila est dividido em seis partes, que tratam de pensamento,

    esoterismo, procura do absoluto, via potica , aventuras espirituais do poeta e da ptria.

    No caberia no mbito deste trabalho uma anlise minuciosa de todo livro de Dalila,

    que merece um olhar atento e meticuloso. Desejamos apenas apresentar e comentar

    alguns pontos que consideramos mais relevantes no que se refere ao tema da nossa

    pesquisa a prioridade diz respeito ao esoterismo e aos desdobramentos deste na obra

    do poeta.

    Na parte reservada ao esoterismo, a autora comenta a viso pessoana da

    realidade e do mundo, sendo o mundo visvel invlucro do invisvel, uma dupla

    percepo da realidade; ao real aparente, sempre corresponde um outro, transcendente.

    Uma perspectiva assim no poderia ser exteriorizada com facilidade sem contar com o

    auxilio de alguns mecanismos; na verdade, esse tipo de exteriorizao bem complexa.

    A partir dessa questo, aparecem os meios para se apresentar essa realidade oculta. Os

    smbolos, a despersonalizao e a via potica so os principais caminhos utilizados pelo

    poeta para traduzir a realidade transcendente. Pessoa, que tanto tempo trabalhou como

    tradutor, reescrevendo em nosso idioma portugus textos de outros escritores, tem, na

    verdade, seu maior desafio de traduo vindo dele prprio: traduzir atravs da poesia

    sua percepo subjetiva da realidade escondida.

    Os smbolos, usados com tanta frequncia na obra pessoana, so alguns dos

    atalhos para a traduo que o poeta precisa fazer. O conceito de simbolismo descrito

    37COSTA, Dalila Pereira. O esoterismo de Fernando Pessoa.Porto: Lelo & Irmo Editores, 1978, p.7.

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    por Goethe como revelao do impenetrvel38parece prximo do simbolismo utilizado

    por Pessoa. Sendo o smbolo um representante de algo, sem ser esse algo, que meio

    poderia ser to adequado para o uso do poeta, tendo em vista a essncia do que Pessoa

    pretendia mostrar? A utilizao dos smbolos, quando bem empregada, caso de Pessoa,

    riqussima, abrindo novas interpretaes e conseguindo mostrar o que ocorre alm da

    aparncia.

    Dalila Pereira, com toda propriedade, comenta ainda a importncia do smbolo e

    sua utilizao na obra de Pessoa em detrimento da alegoria:

    A verdade que visava, no poderia ser procurada nem expressada demaneira totalmente racional. Ele pretende um conhecimento queestava para alm do domnio e do poder de prospeco da razo. Opoeta no pensa com conceitos, mas com esse especial rgo deconhecimento, a imaginao.(...) A imaginao que capaz deultrapassar o dado sensvel, transmutando-o em smbolo. Ao contrrioda alegoria, que no tem qualquer capacidade ou funo cognitiva,que um artifcio, simples criao da razo, das camadas superficiaisdo eu, que somente pode sobrepor-se a esta realidade, mas que noabre uma outra, que no um instrumento de conquista de outrosplanos de conhecimento. A alegoria nunca se encontra na sua poesia.39

    Reforando o que foi apresentado at aqui, tanto as proposies de Dalila

    quanto as nossas impresses, que esto em concordncia com a autora, vale recorrer ao

    prprio poeta que, em um fragmento de sua obra em prosa, chamado Goethe, a

    respeito do processo alqumico, coloca em outro ponto deste mesmo fragmento: O

    homem de gnio um intuitivo que se serve da inteligncia para exprimir das suas

    intuies. A obra de gnio seja um poema ou uma batalha a transmutao em

    termos de inteligncia de uma operao superintelectual.40. A inteligncia, o talento

    como poeta, desta maneira, podem ser entendidos, na nossa viso, como instrumentos

    38Apud Dalila, 1978, p.35.39COSTA, Dalila Pereira. O esoterismo de Fernando Pessoa. Porto: Lelo & Irmo Editores, 1978, p. 38.

    40

    PESSOA, Fernando. Obra em prosa . Organizao, introduo e notas de Cleonice Berardinelli, Rio deJaneiro: Nova Aguillar, 1986, p. 269.

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    da intuio. A obra de Pessoa poderia ser essa transmutao, utilizando esses

    instrumentos, para revelar o que transcende o intelectual. Sendo assim, acreditamos que

    a abordagem dada pela estudiosa sobre a importncia e a justificao dos smbolos na

    obra de Pessoa mostra-se pertinente e plenamente plausvel.

    Outra questo levantada por Dalila, e que consideramos altamente relevante, a

    do eu-potico. A ensasta chama a ateno para o fato de o poeta, por diversas vezes,

    apresentar-se como um representante de outro, uma sombra de um vulto

    desconhecido ou emissrio de um rei desconhecido, como o prprio poeta descreve.

    Parte da poesia pessoana se passa em um espao supranatural, aonde s a

    imaginao teria acesso, teria meios de buscar a realidade deste espao e traz-la at

    ns. Pessoa o poeta que possui o passaporte para o mundo da alma, do invisvel, do

    que no perceptvel pelas vias usuais. A despersonalizao seria o reflexo da

    influncia deste espao no poeta, sendo Pessoa um mensageiro, algum que tem o dom

    de captar esse mundo, sem fazer efetivamente parte dele, tomando outros eus

    emprestados, ou afirmando literalmente que aquele no ele, outro. Em algumas

    passagens, o poeta chega a lamentar o fardo que exercer esse papel. Dalila ressalta,

    ainda, a convergncia da razo e da imaginao do poeta e enfatiza:

    Na sua obra, so as criaes imaginrias, aquelas que nos daro oconhecimento mais profundo do seu esprito. As opinies totalmente

    conscientes e intelectualizadas na sua obra em prosa, nunca estaroem contradio com as criaes da imaginao: mas estas sero seuaprofundamento, porque atingidas a um nvel de realidadeinfinitamente mais rico, inesgotvel. A entrar-se- numa camada derealidade que ao prprio poeta teria, como ser consciente atravs deum formulao racional do seu pensamento. Uma realidade que aquina poesia ser transmitida a partir de smbolos e imagens, mitos eapercepes visionrias nessa linguagem que revela e esconde osaber que em si contm e transmite.41

    41COSTA, Dalila Pereira. O esoterismo de Fernando Pessoa.Porto: Lelo & Irmo Editores, 1978, pp. 42

    e 43.

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    48

    Esse mesmo tema foi abordado no nosso trabalho, quando tratamos da carta

    Adolfo Casais Monteiro. Levando-se em considerao, tanto a carta quanto outros

    escritos de Pessoa, que teriam o elemento racional e particular predominando, podemos

    acreditar que Pessoa se valia realmente do artifcio da despersonalizao e do

    desdobramento do eu para um distanciamento que, de certa forma, poderia proteg- lo

    e para uma representao mais adequada dessa realidade impalpvel a que ele tinha

    acesso.

    A via potica , no entender da autora, o meio ideal para que Pessoa pudesseexternar sua outra realidade. Somente a poesia permitiria uma liberdade suficiente para

    que o poeta tratasse de todas as questes, utilizando-se de recursos como smbolos e da

    prpria despersonalizao, da maneira mais prxima sua realidade oculta; portanto, a

    utilizao dessa via mais que justificvel.

    O livro de Dalila traz consigo uma srie de interpretaes interessantes no

    tocante ao emprego dos smbolos e muito bem fundamentado, auxiliando bastante

    queles que esto interessados em conhecer mais sobre o esoterismo de Pessoa.

    Consideramos essa obra como referncia no que se refere ao aspecto do ocultismo em

    Fernando Pessoa (aspecto fundamental na obra do poeta na nossa opinio) e

    acreditamos que muitas das questes e proposies levantadas por Dalila Pereira da

    Costa merecem ser investigadas por aqueles que julgam que o ocultismo na obra

    pessoana no foi suficientemente revelado.

    3.3. Antnio Quadros e Fernando Pessoa Vida, personalidade e gnio

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    Sent ir t udo de todas as maneiras,Viver tudo de todos os lados,Ser a mesma coisa de todos os modos possveis ao mesmotempo,Reali zar em si toda a humanidade de todos os momentos

    Num s momento difuso, profuso, completo e longnquo.42

    O terceiro livro a ser comentado nesse trabalho o de Antnio Quadros. Em seu

    Fernando Pessoa Vida, personalidade e gnio, o autor desenvolve, com um enfoque

    biogrfico, uma grande anlise sobre a produo do poeta Fernando Pessoa desde os

    primeiros escritos, passando pela sua participao no Modernismo portugus, sua

    produo heternima at os aspectos ocultistas. Seguindo o poeta desde a infncia at a

    morte, analisa seu perfil cultural, afetivo, psicolgico e religioso.

    Muitas dessas questes apresentadas por Quadros j foram estudadas e

    debatidas por estudiosos que concentram seu foco em outros aspectos do universo

    pessoano. No livro, muito bem dividido, as referncias desses outros aspectos com o

    ocultismo de Pessoa tm contato tnue; sendo assim, vamos nos concentrar aqui nos

    captulos 7 e 8 e no apndice do livro que, em algumas dezenas de pginas, se

    concentra apenas no motivo do nosso trabalho, apndice que tem como ttulo:

    Heteronmia e Alquimia ou do Esprito da Terra ao Esprito da Verdade.

    Nos captulos finais do seu livro, Antnio Quadros reflete sobre a relao do

    homem com Deus, ressaltando o quanto nosso poeta buscou entender essa relao aolongo de sua vida. Sobre a relao humana com o divino, a seguinte passagem merece

    destaque: A relao do homem com essa realidade imensa, inesgotvel, misteriosa,

    indizvel e altssima a que se chama Deus sempre individual, intransmissvel e

    42

    PESSOA, Fernando. Obra potica . Organizao, introduo e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio deJaneiro: Nova Aguillar, 1986, p.278.

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    secreta.43. Talvez esse carter pessoal e intransfervel da relao de cada um com o

    divino seja o motivo das dificuldades dos estudos pessoanos acerca da espiritualidade.

    Essas dificuldades so por vrias vezes citadas pelo autor:

    Raros foram os crticos que puderam ou ousaram percorrer ao seulado caminhos que largamente excedem os horizontes da historiografiaou da crtica literrias, pois nem a todos dado, em poca deideologia racionalstica e cienticifista, querer, poder, saber, escutar edecifrar uma linguagem fundamentalmente simblica como a sua.(...)Numerosas leituras foram sem dvida feitas do que considermos ocerne de sua obra, por crticos dos mais inteligentes e empenhados.Mas no possvel captar o supra-racionalismo de Fernando Pessoa,baixando-o, reduzindo-o interpretao diminutiva dos racionalismosvigentes, como o positivista, o materialista, o cientificista, o

    sociolgico.44

    Quadros lamenta que grandes pesquisadores tenham se afastado da

    espiritualidade presente na obra de Pessoa, por desconhecimento ou por estarem

    munidos unicamente com as armas da erudio e da cultura, insuficientes para um

    entendimento completo da obra do grande poeta.

    A questo da mediunidade se faz presente no livro, ponto que ocupa um papel

    importante para muitos no universo pessoano. Antnio Quadros destaca a

    impressionante carta Tia Anica, j citada neste trabalho, e depoimentos do irmo do

    escritor afirmando que frequentemente Pessoa enxergava imagens de pessoas nos

    espelhos, imagens as quais o prprio poeta qualificava como reais e no alucinaes,

    pois se davam em momentos de calma, lucidez e normalidade. Consideramos o teor da

    carta Tia Anica, reproduzida praticamente na ntegra no livro, intrigante, mas

    dificilmente ser possvel aceitar o fenmeno medinico como hiptese de uma

    produo potica e j justificamos isso neste trabalho. Talvez sua influncia na obra

    43QUADROS, Antnio.Fernando Pessoa Vida, personalidade e gnio.Lisboa: Publicaes DomQuixote, 1984, 5 ed. 2000, p. 191.

    44

    QUADROS, Antnio.Fernando Pessoa Vida, personalidade e gnio . Lisboa: Publicaes DomQuixote, 1984, 5 ed. 2000, p. 193.

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    seja no papel de despertar a curiosidade do poeta, uma vez que Pessoa admite por

    diversas vezes na referida carta suas qualidades de mdium escrevente e mdium

    videntee faz referncias a smbolos maons, cabalsticos e rosacrucianos que apareciam

    em sua escrita automtica, sem que pudesse entend-los (carta datada de 25/06/1916).

    Provavelmente, foram esses smbolos um combustvel para Pessoa pesquisar depois,

    com mais profundidade, as ordens iniciticas.

    Outras questes de destaque no livro de Quadros so o caminho alqumico e

    pontos como a heteronmia e o esprito da verdade, tpicos desenvolvidos com

    brilhantismo. O pesquisador faz uma anlise astrolgica, psicolgica e da personalidade

    dos heternimos curiosa e muito bem fundamentada. Vale colocar aqui alguns

    fragmentos importantes:

    Alberto Caeiro o poeta da terra, da realidade absoluta da terra (...)com o entendimento imediato, comum e ingnuo, o poeta do fixo, doptreo, sem imaginao outra que a exterioridade, vendo apenas com

    os sentidos(...). lvaro de Campos, o poeta mercurial e lunar, o poe