rogÉrio cangussu dantas cachichi um confronto ... · justiça como equidade a partir de revisão...

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ROGÉRIO CANGUSSU DANTAS CACHICHI UM CONFRONTO CONTRATUALISTA: RAWLS E HABERMAS LONDRINA 2011

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ROGÉRIO CANGUSSU DANTAS CACHICHI

UM CONFRONTO CONTRATUALISTA: RAWLS E HABERMAS

LONDRINA 2011

ROGÉRIO CANGUSSU DANTAS CACHICHI

UM CONFRONTO CONTRATUALISTA: RAWLS E HABERMAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina. Orientador: Prof. Dr. Elve Miguel Cenci

LONDRINA 2011

ROGÉRIO CANGUSSU DANTAS CACHICHI

UM CONFRONTO CONTRATUALISTA: RAWLS E HABERMAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________ Prof. Dr. Elve Miguel Cenci

Universidade Estadual de Londrina

____________________________________ Prof. Dr. Charles Feldhaus

Universidade Estadual de Londrina

____________________________________ Prof. Dr. Joaquim José de Moraes Neto

Universidade Estadual de Londrina

Londrina, _____de ___________de _____.

A Zilda e Paula, sem as quais a vida não faria

sentido. A Henrique Castelo Perez.

AGRADECIMENTOS

À Universidade Estadual de Londrina (UEL). Aos Professores do

Departamento de Filosofia, especialmente ao orientador desta monografia o Doutor

Elve Miguel Cenci, aos demais componentes da banca Doutor Charles Feldhaus e

Doutor Joaquim José de Moraes Neto, àqueles responsáveis pelas disciplinas

diretamente vinculadas à monografia de conclusão do curso, Doutor Lourenço

Zancanaro, Doutor Marcos Alexandre Gomes Nalli e Doutor Volnei Edson dos

Santos e ao Juiz Federal Doutor Gilson Luiz Inácio, sem os quais não seria possível

este trabalho. Pelos subsídios, ao Doutor Carlos Alberto Albertuni, Doutor Clodomiro

Bannwart Júnior e ao Doutor Jonathan Hernandes Marcantonio. Pela leitura prévia,

ao Doutor Marcos Rodrigues da Silva. Pelo estímulo, à Doutora Renata Lígia

Tanganelli Piotto, ao Doutor Carlos Alberto Navarro Perez, ao Doutor Márcio Valério

Alves da Costa, ao Doutor Fernando Silva Gonçalves, ao Doutor Carlos Luciano

Manholi, à Doutora Maria Cristina Müller, ao Doutor Carlos Neves Júnior, ao Doutor

Elvis Aparecido Secco, ao Professor Cleverson Neves, ao Doutor Marco Antonio

Silva de Macedo Júnior, ao Doutor Sergio Salomão Cachichi, ao Doutor Sérgio

Gomes Nunes e ao Doutor Érico Maejima Pires de Oliveira.

A todos os colegas, sobretudo ao brilhante Lucas Antonio Saran e à

acadêmica Priscila de Andrade.

À Corregedoria da Justiça Federal da 4ª Região. À Juíza Federal

Doutora Vivian Josete Pantaleão Caminha. Aos funcionários da Biblioteca da Seção

Judiciária do Paraná. Aos servidores da 2ª Vara Federal da Subseção Judiciária de

Londrina.

Ah!, de que maneira os mortais censuram os

deuses! A dar-lhes ouvidos, de nós provêm todos

os males, quando afinal, por sua insensatez, e

contra vontade do destino, são eles os autores de

suas desgraças.(...)

Zeus (HOMERO. Odisséia. Trad. Antônio Pinto de

Carvalho. São Paulo: Nova Cultural, 2003, p.16)

CACHICHI, Rogério Cangussu Dantas. Um confronto contratualista: Rawls e Habermas . 2011. 101f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Filosofia) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2011.

RESUMO

Reconstrói os elementos fundamentais da argumentação acerca da justificação dos princípios da justiça como equidade. Boa parte do trabalho desenvolvido por John Rawls no campo da filosofia política contemporânea pode ser sintetizado na busca pela compreensão de como é possível existir e se manter no decorrer do tempo uma sociedade justa e estável de cidadãos livres e iguais, porém profundamente divididos por doutrinas religiosas, morais e filosóficas que, conquanto razoáveis, são incompatíveis entre si? Rawls dedicou grande parte de seu trabalho para dar uma (e não “a”; advirta-se desde logo a doutrina em foco vem ao lume como uma alternativa viável, não como a única possível) explicação plausível a essa inquietante indagação. O presente estudo objetiva reconstruir os elementos fundamentais da justiça como equidade a partir de revisão bibliográfica das principais obras de Rawls, a saber, Uma Teoria da Justiça e O Liberalismo Político. Além disso, objetiva reconstruir algumas críticas a tal concepção, com particular ênfase àquelas dirigidas contra o desenho da posição original, opostas por Jürgen Habermas no artigo Reconciliation Through the Public use of Reason: Remarks on John Rawls’s Political Liberalism, bem assim expor a resposta de Rawls à Habermas, igualmente publicada no artigo Political Liberalism: Reply to Habermas. Ambos os artigos foram publicados em 1995 em edição especial da revista The Journal of Philosophy. A posição original consiste no artifício de representação desenvolvido por Rawls para substituir a noção de contrato do contratualismo clássico e constitui um dos mais relevantes sustentáculos da teoria da justiça rawlsiana, por meio do qual dois princípios da justiça seriam imparcialmente estabelecidos. Cristaliza-se, com efeito, a famigerada justiça como equidade. Ao final, apresenta rol articulado de conclusões resgatando as principais teses do trabalho. Palavras-chave: Justiça. J. Rawls. J. Habermas. Posição original.

CACHICHI, Rogério Cangussu Dantas. A contractarian confrontation: Rawls and Habermas . 2011. 101f. Work of Completion of Course (Graduation in Philosophy) – University State of Londrina, Londrina, 2011.

ABSTRACT

Reconstructs the fundamental elements of argumentation on the justification of the principles of justice as equity. A great part of the work developed by John Rawls in the field of contemporary political philosophy could be synthesized in the search for comprehension on how it is possible to exist and sustain through time, a fair and stable society of free and equal citizens, though deeply divided by religious, moral and philosophical doctrines that, although reasonable, are incompatible with each other? Rawls dedicated much of his work to give a (and not "the"; caution be taken from now that the focused doctrine comes to light as a viable alternative, not as the only possible) plausible explanation to this disturbing issue. The present paper intend to reconstruct the fundamental elements of justice as fairness, beginning from bibliographic revision of Rawls main works, namely, A Theory of Justice and The Political Liberalism. Furthermore, it objects to reconstruct some critics to this conception, with particular emphasis on those driven against the design of the original position, opposed by Jürgen Habermas in the article Reconciliation Through the Public use of Reason: Remarks on John Rawls’s Political Liberalism, as well as expose Rawls' response to Habermas, equally published on the article Political Liberalism: Reply to Habermas. Both articles were published in 1995 in a special edition of The Journal of Philosophy magazine. The original position consists on the artifice of representation developed by Rawls to substitute the concept of contract on classical contract and constitutes one of the most relevant supports of Rawls' justice theory, through which two principles of justice would be impartially established. It crystallizes, indeed, the notorious justice as equity. At closure, it presents an articulated role of conclusions, rescuing the main thesis of the work.

Keywords: Justice. J. Rawls. J. Habermas. Original position.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Cf. – confira, confronte

IC – imperativo categórico

LP – O Liberalismo Político

p. - página

TJ – Uma Teoria da Justiça

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................10

1. DE UMA TEORIA DA JUSTIÇA AO LIBERALISMO POLÍTICO: AS IDÉIAS

FUNDAMENTAIS DA JUSTIÇA COMO EQUIDADE ................................................12

1.1. Utilitarismo clássico .................................................................................14

1.2. Intuicionismo ...........................................................................................17

1.3. Contratualismo rawlsiano ........................................................................19

2. A CRÍTICA DE HABERMAS...........................................................................36

2.1. Reconciliation ..........................................................................................36

2.2. Apanhado geral das críticas habermasianas...........................................39

2.3. A crítica sobre a concepção da posição original de Rawls......................41

2.3.1. O problema da full autonomy ...........................................................44

2.3.2. Direitos básicos e bens primários.....................................................47

2.3.3. O véu da ignorância .........................................................................53

3. A RESPOSTA DE RAWLS.............................................................................61

3.1. Observações propedêuticas....................................................................61

3.2. Rawls e Habermas: mesma família, distintas pretensões .......................61

3.3. Instrumentos de representação: a posição original como parte da teoria

da justiça de Rawls e a situação ideal de fala como parte da teoria da ação

comunicativa de Habermas ...................................................................................75

CONCLUSÕES .........................................................................................................87

Capítulo 1: conclusões...........................................................................................87

Capítulo 2: conclusões...........................................................................................91

Capítulo 3: conclusões...........................................................................................94

REFERÊNCIAS.....................................................................................................99

ANEXOS .................................................................................................................102

Anexo A - A distinção entre princípios e regras como espécies de normas na obra

teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy

Anexo B - Reconciliation Through the Public use of Reason: Remarks on John

Rawls’s Political Liberalism

Anexo C - Political Liberalism: Reply to Habermas

INTRODUÇÃO

Em 1971 publicou John Rawls A Theory of Justice, a partir da qual

“sua teoria passa a ser ponto de referência em qualquer discussão contemporânea

sobre ética ou filosofia política, influenciando também as ciências sociais” (WELTER,

2001, p.1).

Sua obra, como se verá a seguir, dialoga com a doutrina do

utilitarismo. Na visão rawlsiana, subordinação das liberdades ao bem estar

econômico, consectária do utilitarismo, não se sustenta perante as bases das

contemporâneas instituições democráticas. Tem-se com Rawls, pois, senão uma

resposta definitiva, ao menos uma alternativa, ao utilitarismo.

É bem verdade que tal empreita despertou críticas de inúmeros

estudiosos. Delas, um bom apanhado foi apresentado por Roberto Gargarella na

obra “As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política”.

Nessa obra, além de mencionar a crítica de Jürgen Habermas ponto nodal desta

monografia, consta claramente exposto o saldo de outras críticas como as lançadas

por liberais conservadores como Robert Nozick; liberais igualitários como Ronald

Dworkin e Amartya Sen; sem deslembrar das assertivas do movimento feminista

com ênfase a Catarine MacKinnon; dos marxistas analíticos do porte de filósofos

como Gerald Cohen; além dos comunitaristas dentre os quais Charles Taylor,

Michael Sandel, Michael Walzer e Alasdair MacIntyre; sem contar com as

contribuições teóricas e críticas do pensamento republicano. Ao oferecer resposta

tais variadas críticas, Rawls culminou por submeter sua teoria da justiça a uma

severa reformulação, que culminou nas obras O Liberalismo político e Justiça como

equidade: uma reformulação, publicadas respectivamente em 1993 e 2001.

Entrementes, o objetivo do trabalho será tão-somente o de

apresentar uma síntese de parte do debate inaugurado a partir das críticas que a

teoria da justiça de Rawls recebe de Jürgen Habermas. A crítica de Habermas

intitulada Reconciliation Through the Public use of Reason: Remarks on John

Rawls’s Political Liberalism e a resposta de Rawls, Political Liberalism: Reply to

Habermas, foram publicadas em edição especial da revista The Journal of

Philosophy, vol. 92, n.3 (Mar.1995). A bem da verdade e como se verá, esta

monografia trata sobretudo da crítica de Habermas acerca da posição original, um

11

dos sustentáculos da teoria da justiça rawlsiana. Dar os contornos da crítica

habermasiana e da resposta de Rawls constitui o principal problema ao qual o

trabalho visa dar uma resposta.

No capítulo 1, reconstroem-se as bases fundamentais presentes

tanto na teoria da justiça quanto no liberalismo político de John Rawls. No capítulo 2,

analisa-se a crítica de Habermas. Finalmente, no capítulo 3, perscruta-se a réplica

de Rawls. O trabalho chega a termo com algumas conclusões a respeito do debate.

1. DE UMA TEORIA DA JUSTIÇA AO LIBERALISMO

POLÍTICO: AS IDÉIAS FUNDAMENTAIS DA JUSTIÇA COMO

EQUIDADE

De início, desde logo afigura-se de bom aviso tomar por certo que

principiar pela cuidadosa reconstrução de alguns elementos de capital importância

para John Rawls quiçá não seja o único primeiro passo possível no intento de

transcorrer o percurso necessário a que nos propusemos, mas constitui providência

quando menos prudente. A aludida reconstrução não adentrará em pormenores, os

quais serão, na medida em que úteis, resgatados nos dois capítulos seguintes. É

que, ao nosso sentir, apenas com as bases fundamentais bem fincadas e sólidas,

poder-se-á, em terreno firme, volver toda a atenção ao detalhado exame da crítica

habermasiana em torno da posição original e suas conseqüências, bem como do

não menos atilado exame da réplica rawlsiana à crítica de Habermas. Ao cabo do

que, no momento derradeiro, estaremos aptos a lançar rol articulado e não exaustivo

de conclusões.

Para Rawls, quando injustas, devem ser abolidas as leis e as

instituições, independentemente de organização ou eficiência (RAWLS, 2008, p.4);

assim, segundo Gargarella, Rawls foca boa parte de seu trabalho na busca de uma

resposta para identificar quando uma instituição funciona de modo justo

(GARGARELLA, 2008, p.1). No Liberalismo Político, o principal foco de Rawls é a

compreensão da possibilidade de existir, no decorrer do tempo, uma sociedade de

cidadãos livres e iguais, ainda que divididos por doutrinas religiosas, morais e

filosóficas que, conquanto razoáveis, não são compatíveis entre si (RAWLS, 2000,

p.25). A grande questão a ser respondida pelo liberalismo político1 de Rawls, pois, é

a seguinte: “como é possível que doutrinas abrangentes2 profundamente opostas,

1 Entenda-se por liberalismo político a doutrina política cunhada por Rawls, cujo objetivo principal é conceber uma teoria da justiça em meio a uma pluralidade de doutrinas abrangentes, razoáveis e incompatíveis entre si. 2 Doutrinas religiosas como não-religiosas, morais, filosóficas, liberais, conservadoras, contanto que razoáveis, poderiam ser enquadradas neste conceito de “doutrinas abrangentes razoáveis”. Seria exemplo de doutrina abrangente não-razoável a doutrina do

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embora razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de

um regime constitucional?” (RAWLS, 2000, p. 25).

Afirma Rawls que a justiça está para as instituições sociais como a

verdade está para os sistemas de pensamento. Constitui “a virtude primeira das

instituições sociais” (RAWLS, 2008, p.4). Por consectário, teorias científicas devem

ser ajustar à verdade, da mesma forma que instituições à justiça3. Verdade e justiça

em Rawls são bens que se sustentam a si próprios e, portanto, “não aceitam

compromissos” (RAWLS, 2008, p.4).

Mas, quando uma instituição é justa? A essa pergunta outras

correntes teóricas apresentaram respostas diferenciadas. É o caso da utilitarista e

intuicionista, às quais Rawls procurou se opor em sua teoria da justiça.

Deveras, confessadamente John Rawls buscou com sua teoria da

justiça oferecer, após longos quase cem anos (desde John Stuart Mill – 1859-1863 a

19604) de hegemonia das teorias sistemáticas dos utilitaristas5, “uma explanação

sistemática alternativa da justiça que é superior, pelo menos é isso que argumento, à

tradição utilitarista predominante” (RAWLS, 2008, p.XLIV); “...uma teoria da justiça

que seja uma alternativa viável a essas doutrinas que há muito dominam nossa

tradição filosófica” (RAWLS, 2008, p.3).

Nesse sentido, afiança-nos Welter que o pensamento de Rawls

emerge no debate com o utilitarismo - teoria dominante na maior parte do período

moderno da filosofia moral. Rawls torna-se assim um dos principais opositores

contemporâneos ao utilitarismo (WELTER, 2001, p.2).

Entrementes, não apenas ao utilitarismo, senão também ao

intuicionismo a teoria da justiça como equidade pretende ser uma alternativa. Tanto

quanto o utilitarismo, o intuicionismo, na visão de Rawls, não contempla uma

Nazismo, incompatível que é com instituições democráticas. 3 Nas palavras de John Rawls: “Por mais elegante e econômica que seja, deve-se rejeitar ou retificar a teoria que não seja verdadeira; da mesma maneira que as leis e as instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformuladas ou abolidas se forem injustas” (RAWLS, 2008, p.4). 4 Apresentando a edição brasileira da obra de John Rawls adotada neste trabalho, o comentador Álvaro de Vita refere ao “eclipse da teoria política normativa” (RAWLS, 2008, p.XII) desses anos. 5 John Rawls cita nominalmente grandes utilitaristas como David Hume e Adam Smith, Jeremy Bentham e John Stuart Mill (RAWLS, 2008, p.XLIV).

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satisfatória resposta à questão da justiça6.

1.1. UTILITARISMO CLÁSSICO

Como é sabido, no utilitarismo o valor moral da ação é estabelecido

a partir da maximização proporcionada por ela em prol do bem-estar geral

(GARGARELLA, 2008, p.3). Cuida-se do assim chamado princípio da maior utilidade

geral. Rawls descreve o modelo clássico de Henry Sidgwick7, no qual:

A ideia principal é que a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando suas principais instituições estão organizadas de modo a alcançar o maior saldo líquido de satisfação, calculado com base na satisfação de todos os indivíduos que a ela pertencem. (RAWLS, 2008, p.27)

Como se pressente, a ênfase está no resultado da ação (concepção

teleológica e consequencialista), e não no escopo em razão do qual a ação foi

praticada (concepção deontológica). Gargarella acentuou:

Rawls, como muitos outros liberais, defenderá uma concepção não-consequencialista (‘deontológica’), isto é, uma concepção segundo a qual a correção moral de um ato depende das qualidades intrínsecas dessa ação – e não, como ocorre nas posturas ‘teleológicas’, de suas conseqüências, de sua capacidade para produzir certo estado de coisas previamente avaliado. (GARGARELLA, 2008, p.3)

Tomando estes dois elementos: a noção de bem e a de justo, pode-

se asseverar que o utilitarismo, como teoria teleológica que é, define o bem

independente do justo e o justo como aquilo que eleva o bem ao máximo. Fica clara

a natural primazia da noção de bem da teoria utilitarista. Nas palavras de Rawls:

Os dois conceitos principais da ética são os do justo e do bem; creio que deles provém o conceito de pessoa moralmente digna. A estrutura da teoria ética é, então, em grande parte definida pelo modo como define e interliga essas duas ideias elementares. Parece, então, que a maneira mais simples de interligá-las é adotada pelas teorias teleológicas: define-se o bem independentemente do justo e, então, define-se o justo como aquilo que eleva o bem ao máximo. (RAWLS, 2008, p. 29)

6 “...a teoria da justiça como equidade pretende ser uma alternativa à doutrina utilitarista e à do intuicionismo que, de acordo com ele, não resolvem satisfatoriamente a questão da justiça” (WELTER, 2001, p. 4). 7 Rawls anota: “Usarei a obra de Henry Sidgwick, The Methods of Ethics, 7ªed. (Londres, 1907), como síntese do desenvolvimento da teoria moral utilitarista” (RAWLS, 2008, p. 27).

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Com propriedade Gargarella, assumindo que teorias morais reúnem

uma teoria do bem (valor alcançado) e uma teoria do correto (ação correta),

distingue teorias consequencialistas como aquelas que apregoam a sobrepujança do

bem em relação ao correto; ao passo que as deontológicas, do correto sobre o

bem8. Teorias deontológicas não especificam o bem independente do justo,

tampouco este como o que maximiza o bem (cf. RAWLS, 2008, p. 36)9.

Conclui Rawls que “[a]s teorias teleológicas têm um profundo apelo

intuitivo porque parecem expressar a ideia de racionalidade” (RAWLS, 2008, p. 30).

A simplicidade do raciocínio deriva da vinculação pelo princípio da maximização de

um elemento (o justo) a outro previamente definido de forma independente (o bem):

A clareza e a simplicidade das teorias teleológicas clássicas provêm, em grande parte, do fato de que decompõem os nossos juízos morais em duas classes: ao passo que uma delas é caracterizada separadamente, a outra é, depois, vinculada à primeira por um princípio de maximização. (RAWLS, 2008, p. 30)

Para argumentar, expõe Rawls possível raciocínio em favor do

utilitarismo. Ora, se no âmbito individual somos livres para sopesar os resultados de

nossas ações a fim de que, não prejudicando ninguém, possamos delas colher o

melhor, por que a sociedade (âmbito coletivo) não poderia assim ser organizar?

Leiamo-lo:

Ora, por que não deveria a sociedade agir com base no mesmo princípio aplicado ao grupo e, portanto, acreditar que aquilo que é racional para um homem é justo para uma associação de homens? (RAWLS, 2008, p. 28)10

8 “Se assumirmos que toda teoria ética é composta de duas partes, uma teoria do bem – qual é ou quais são os bens valiosos – e uma teoria do que é correto – o que devemos fazer-, o ‘consequencialismo’ subordina a teoria do correto à teoria do bem: deve-se fazer aquilo que maximize o bem (no caso do utilitarismo, deve-se maximizar o bem-estar geral). O ‘deontologismo’, por outro lado, considera que o correto é independente do que é bom e, além disso, considera que o correto tem primazia sobre o que é bom” (GARGARELLA, 2008, p. 4). 9 Vale consignar o aviso de Rawls: “Repare-se que as teorias deontológicas são definidas como não-teleológicas, e não como teorias que caracterizam a correção moral das instituições e dos atos independentemente de suas conseqüências. Todas as doutrinas éticas dignas de atenção levam em conta as conseqüências ao julgar o que é certo. Aquela que não o fizesse seria simplesmente irracional, insana” (RAWLS, 2008, p. 36). Interessante que, embora o próprio Rawls considere que sua teoria da justiça é deontológica (RAWLS, 2008, p. 36), pois não interpreta o justo como o que maximiza o bem. 10 Tomar o individual para compreensão do coletivo não é novidade. Esse movimento indivíduo-sociedade já podeia ser antevisto em Platão (cf. livro II da República, 368d, 435b).

16

Isto é: por que não reproduzir em escala social o sacrifício presente

para alcançar o maior benefício possível no futuro? Vejamos. Se nos parece

razoável individualmente acatar sofrimentos no presente para nos beneficiar no

futuro, a mesma ideia não parece tão clara quando transportamos isso ao campo

coletivo. Não parece coadunar-se intuitivamente com o justo impor privações graves

à vida de certos indivíduos para assegurar vantagens a outros; tampouco a

imposição de sacrifícios à geração presente em nome de benefícios para as

seguintes (GARGARELLA, 2008, p. 7). Rawls diz:

Cada membro da sociedade é visto como possuidor de uma inviolabilidade fundamentada na justiça ou, como dizem alguns, no direito natural, à qual nem mesmo o bem-estar de todos os outros pode se sobrepor. (RAWLS, 2008, p. 34)

Parece claro que “[a] justiça nega que a perda da liberdade para

alguns se justifique com um bem maior partilhado por outros” (RAWLS, 2008, p. 34).

Uma das mais incisivas ao utilitarismo, consiste nesta doutrina visualizar a

sociedade tal como um corpo no qual o sacrifício de algumas partes é justificado

quando em prol das restantes (GARGARELLA, 2008, p.7).

E mais. O utilitarismo, outrossim, não é razoável quando se lida com

questões de “gostos caros” (luxuosos, excêntricos) ou “gostos ofensivos”

(discriminatórios, racistas), porquanto “[n]o utilitarismo, a satisfação de qualquer

desejo tem algum valor intrínseco que se deve levar em conta ao decidir o que é

justo” (RAWLS, 2008, p. 37). Destarte, como bem diz Gargarella, o princípio do

utilitarismo deveria dotar de mais bens aquelas pessoas cujos gostos fossem mais

caros, bem como incluir no cômputo das vantagens e encargos o desejo de pessoas

em prejudicar outras (GARGARELLA, 2008, p. 8).

Rawls acredita que a teoria utilitarista descarta desejos e inclinações

que, se incentivados ou permitidos em determinadas situações, trariam menor grau

efetivo de satisfação geral (RAWLS, 2008, p. 39). Desconsidera-se, assim, o valor

moral das preferências e desejos de cada um. Por consectário, vem a ser

compatível, verbi gratia, com a violação de direitos de minorias em favor do bem-

estar da maioria11 (GARGARELLA, 2008, p. 11). O utilitarismo não concede a devida

11 Cumpre registrar, entretanto, que a “tirania da maioria” foi objeto de preocupação também dos utilitaristas. Ao menos John Stuart Mill percebeu que “a luta pela liberdade desenrola-se então não somente contra a tirania dos governantes e dirigentes políticos, mas também e

17

relevância na diversidade entre pessoas, de modo que em princípio não existem

preferências individuais de uns mais importantes que a dos demais (GARGARELLA,

2008, p. 6).

À vista disso, percebe-se que o utilitarismo não constitui alternativa

tão atraente como parecia (cf. GARGARELLA, 2008, p. 11). Na verdade é instável,

visto que entremostra-se factível e aceitável no utilitarismo situações em que direitos

fundamentais de uma minoria sejam postos em xeque em nome do incremento da

utilidade (GARGARELLA, 2008, p. 13).

1.2. INTUICIONISMO

Em poucas palavras e a grosso modo, o intuicionismo admite uma

série de princípios de justiça sem que seja possível objetivamente estabelecer um

método para discernir qual deles deve ser aplicado em caso de conflito, cuja

ocorrência, à evidência, é freqüente. Rawls chamou a atenção para duas notas

distintivas do intuicionismo:

...primeiro, consistem em uma pluralidade de princípios fundamentais que podem entrar em conflito e oferercer diretrizes contrárias em certos casos; segundo, não contam com nenhum método explícito, nenhuma regra de prioridade, para comparar esses princípios entre si: temos de chegar ao equilíbrio por meio da intuição, por meio do que nos parece aproximar-se mais do que é justo. Ou, se houver normas de prioridade, estas são tidas como mais ou menos triviais e não oferencem grande ajuda para se chegar a um juízo. (RAWLS, 2008, p.41)

Conforme Gargarella, à luz da enorme variedade de princípios

consagrados pelo intuicionismo, a única saída seria a avaliação deles por meio da

intuição (GARGARELLA, 2008, p.2).

O intuicionismo socorre-se da intuição para determinar o exato

princípio, dentre tantos outros concorrentes, aplicável ao caso concreto porque o

conceito de bom seria uma noção simples ou, melhor, não analisável, tal como o

principalmente contra a tirania da maioria, a qual se mostra mais terrível do que a tirania dos governantes, pois não há leis que regulem seus atos” (LIMA, 2009, p.3). A respeito, cf. MILL, 2000. Não é expletivo anotar que, a exemplo da passagem citada, Mill realmente pode ser considerado um utilitarista liberal, um dos fundadores, aliás, do liberalismo democrático.

18

conceito de amarelo12. Com efeito, “se ‘bom’ é indefinível, então as ações

intrinsecamente boas não podem ser refutadas ou provadas, mas sim somente

apreendidas pela intuição” (ALBERTUNI, 1998, p.65)13.

Rawls, embora não veja “nada de intrinsecamente irracional nessa

doutrina intuicionista” (RAWLS, 2008, p.47)14, esclarece que o problema é que o

intuicionismo carece de critérios para organizar os vários princípios à luz de nossas

próprias intuições (GARGARELLA, 2008, p.3). De acordo com Rawls, teorias

intuicionistas não têm suporte em um método claro, uma regra de prioridade, para

comparação dos princípios fundamentais de justiça entre si; assim, para se chegar

ao equilíbrio, a intuição é empregada, considerando aquilo que mais possa se

aproximar com a ideia de justo15.

No mesmo sentido, além da falta de critério para distinguir as

intuições corretas das incorretas (i) e da mesma ausência de critério para formulação

de uma hierarquia de intuições para o caso de conflito entre elas(ii), Albertuni ainda

consignou que o intuicionismo também tem sofrido críticas por parte daqueles que

não consideram irredutível termos como bom e justo(iii) – cf. ALBERTUNI, 1998,

p.69.

Entrementes, não deixou Rawls de incorporar em sua teoria da

justiça um lugar para nossas intuições (GARGARELLA, 2008, p.3). Por meio do

conceito de equilíbrio reflexivo trouxe à baila uma forma de confrontar se os

princípios da justiça apurados na posição original estão em conformidade com

nossas intuitivas convicções ponderadas de justiça (cf. RAWLS, 2008, p.23).

12 A ideia de ‘bom’ como termo indefinível advém da doutrina de George Edward Moore, cuja obra Principia Ethica assumiu-a a partir do atomismo lógico de Russell e de Wittgenstein (ALBERTUNI, 1998, p.64). Malgrado Rawls trate genericamente do intuicionismo a partir das teorias de Brian Barry, R.B.Brandt e Nicholas Rescher, não descurou do intuicionismo tradicional de G.E.Moore e W.D.Ross (RAWLS, 2008, p.41, nota 18). 13 Para um excelente apanhado do discurso moral a partir da perspectiva intuicionista, inclusive da teleológica de Moore e deontológica de Ross, leia-se o profícuo artigo de ALBERTUNI, 1998. 14 De fato, o intuicionismo não é incompatível com uma posição cognotivista, como é o caso do emotivismo. Com propriedade destaca Albertuni: “o intuicionismo é tido como uma posição cognotivista dentro da metaética, pois supõe que, ao proferirmos juízos morais, estamos expressando algum conhecimento” (ALBERTUNI, 1998, p.66). 15 Nas palavras de Rawls: “...não contam com nenhum método explícito, nenhuma regra de prioridade, para comparar esses princípios [refere-se aos princípios fundamentais da justiça] entre si: temos de chegar ao equilíbrio por meio da intuição, por meio do que nos parece aproximar-se mais do que é justo” (RAWLS, 2008, p.41).

19

1.3. CONTRATUALISMO RAWLSIANO

A ideia central de teorias contratualistas em geral é formada pelo

consenso entre aqueles que se lhe submetem. Normalmente, teorias desse jaez

tomam como aceitável propostas que seriam aprovadas por todos os sujeitos

potencialmente afetados por elas.

Gargarella, com clareza salutar, sustenta que o contratualismo pode

contribuir para trazer respostas às perguntas básicas de qualquer teoria moral (daí

sua importância): a) o que a moral exige dos sujeitos? e b) por que os sujeitos

devem obedecer às regras? A identificação do que a moral exige de nós e a razão

pela qual devemos obedecer certas regras são os dois pontos fundamentais do

contratualismo. O contratualismo impõe-nos respeito à moral e às regras que

reconhecemos, consensualmente, de cumprimento obrigatório. Com efeito, a

autoridade é tida como criatura dos próprios indivíduos, não necessitando de

justificações abstratas ou entidades não-humanas (GARGARELLA, 2008, p. 14).

Por seu turno, pode-se asseverar que Rawls é um contratualista,

não só porque arroga a si tal condição, mas também porque, com o escopo de

apresentar uma alternativa ao utilitarismo, procurou elevar ao grau máximo de

generalidade a teoria do contrato social (Locke, Rousseau, Kant16) no intuito de

“oferecer ao leitor uma compreensão mais clara das principais características

estruturais da concepção alternativa de justiça que está implícita na tradição

contratualista e indicar o caminho de uma elaboração mais pormenorizada.”

(RAWLS, 2008, p.XLIV)

Aqui calha dizer que a ideia de justiça como equidade em John

Rawls deriva de uma maneira específica de ver os postulados contratualistas

(GARGARELLA, 2008, p. 14). Segundo Rawls, “[n]a justiça como equidade, a

situação original de igualdade corresponde ao estado de natureza da teoria

tradicional do contrato social” (RAWLS, 2008, p.14).

A seguir, considerações sobre um pacote de elementos de capital

16 Hobbes foi excluído. Justifica Rawls em nota que “Apesar de toda sua grandeza, o Leviatã..., de Hobbes levanta alguns problemas especiais” (RAWLS, 2008, p.13, nota 4).

20

importância a Rawls, sobretudo o papel da justiça, estrutura básica da sociedade,

posição original, véu da ignorância, princípios da justiça, equilíbrio reflexivo. Antes,

porém, de prosseguirmos na exposição, ainda que ligeira, de tais, por assim dizer,

postulados rawlsianos, cumpre dizer que eles mantiveram-se íntegros mesmo após

as reformulações levadas a efeito por Rawls no liberalismo político. Houve sim uma

mudança da perspectiva abrangente de Uma teoria da justiça (1971) para restrita ao

âmbito político no Liberalismo político (1993). Gargarella esmiúça essa transição,

observando que ambos os trabalhos (TJ e LP) têm a primeira parte – que defende

uma concepção razoável (justa), capaz de se alinhar com as convicções de justiça

dos sujeitos - muito similar, quase inalterada; todavia na última parte Rawls procura

demonstrar que essa concepção é estável (racional) – ou seja, uma concepção que

os cidadãos defenderiam pois associada às concepções destes do que é

efetivamente bom alcançar -, residindo, nesta derradeira parte, as principais

divergências entre as obras supracitadas.

Na apresentação de O Liberalismo Político, Rawls anota que

procedeu às alterações na teoria da justiça com o fim de corrigir o que chamou de

“um grave problema interno” (RAWLS, 2000, p. 23), decorrente de “a descrição da

estabilidade, na Parte III de Teoria, não ser coerente com a visão em sua totalidade”

(RAWLS, 2000, p. 23). A eliminação de tal incoerência, segundo Rawls, é que teria

acarretado as diferenças entre os trabalhos (RAWLS, 2000, p. 23). Afora isso, não

há falar em alterações relevantes entre as obras cotejadas. O que se pretende

significar é que os elementos nodais supra-arrolados e abaixo explicitados não

sofreram alteração relevante de Uma teoria da justiça (1971) até o Liberalismo

Político (1993).

Esclarecido isso, diga-se que Rawls considera que o ajuste numa

situação inicial de igualdade constitui a fixação de princípios da justiça, os quais

“devem reger todos os acordos subsequentes” (RAWLS, 2008, p.14). “A ideia de

uma posição original é configurar um procedimento equitativo, de modo que

quaisquer princípios acordados nessa posição sejam justos” (RAWLS, 2008, p. 165).

Numa situação original puramente hipotética de igual liberdade, a

escolha que seres racionais fariam pra estabelecer o justo e o injusto define os

princípios da justiça (RAWLS, 2008, p.14). Seria como “um acordo que firmaríamos

sob certas condições ideais, e no qual é respeitado nosso caráter de seres livres e

21

iguais” (GARGARELLA, 2008, p. 14). A respeito, Freeman verberou que a ideia

central da tradição contratualista formada por Locke, Rosseau e Kant é a de que a

justiça é uma propriedade da constituição política e das leis quando estas poderiam

ter aceitação diante de pessoas livres e racionais que estejam em situação de

igualdade de direitos e de participação política. Nessa tradicional senda

contratualista, Rawls emprega a ideia de um acordo social abstrato para sustentar

seus princípios de justiça (FREEMAN, 2006, p.3)17

O contratualismo rawlsiano, pois, pode ser tido por idealizado em

contraposição às versões realistas como a hobbesiana. Nesse contexto de

concepção hipotética de contratualismo, a visão de Rawls admite contraposições

lastreadas na utilidade de tal formulação18. A respeito, o próprio Rawls verberou:

Aqui enfrentamos uma segunda dificuldade, mas que é só aparente. Explico: a partir do que dissemos, é claro que a posição original deve ser considerada um artifício de representação e, por conseguinte, todo acordo estabelecido pelas partes deve ser visto como hipotético e a-histórico. Mas, nesse caso, como acordos hipotéticos não criam obrigações, qual a importância da posição original? A resposta está implícita no que já foi dito: a importância é dada pelo papel das várias características da posição original enquanto artifício de representação. (RAWLS, 2000, p. 67)

Para Gargarella, o contrato em apreço contribui para dar forma à

ideia de que não há pessoa subordinada de forma inerente às demais; em outros

termos, Rawls vale-se do contrato hipotético para apregoar a liberdade e a igualdade

inerente a todos, o estado moral igualitário dos indivíduos (GARGARELLA, 2008, p.

18).

Suposto que a sociedade constitua um sistema organizado em forma

de cooperação no qual convivem convergências e conflitos de interesses, o papel da

justiça revela-se na administração de conflitos (cf. RAWLS, 2008, p.5). Conflitos

esses notadamente na área da isonomia (distinção entre pessoas) e da divisão

(reivindicação) das benesses produzidas em colaboração. Rawls, ao delimitar o

17 As traduções do inglês para o português são livres e de nossa responsabilidade. Com o escopo de facultar ao leitor conferir a fidedignidade de nossa tradução, invariavelmente transcreveremos em nota de rodapé o texto original: “This tradition's main idea is that the political constitution and the laws are just when they could be agreed to by free rational persons from a position of equal right and equal political jurisdiction. Rawls applies the idea of a hypothetical social agreement to argue for principles of justice.” 18 Adicionalmente, remetemos o leitor à crítica humeana ao contratualismo (cf.HUME, 1973).

22

objeto de sua investigação, não se furtou em dizer que “o conceito de justiça é

definido, então, pelo papel de seus princípios na atribuição de direitos e deveres e

na divisão apropriada das vantagens sociais. A concepção de justiça é uma

interpretação deste papel” (RAWLS, 2008, p.12).

Em síntese, o papel da justiça é (i)atribuir direitos e deveres

fundamentais e (ii)dividir os frutos da cooperação social (RAWLS, 2008, p.70).

De outro lado, anota Rawls, ainda, que o objeto de sua investigação

é duplamente limitado: o objetivo do contrato hipotético é estabelecer princípios da

justiça para a estrutura básica da sociedade[1]; que se aplicarão a sociedades bem

organizadas[2].

De feito, Rawls pretende denotar uma concepção de justiça não para

toda e qual estrutura básica (conglomerados sociais, associações privadas, grupos

sociais restritos, acordos contratuais...), mas da estrutura básica da sociedade.

Destaca Rawls:

Ficarei satisfeito se for possível formular uma concepção razoável de justiça para a estrutura básica da sociedade, concebida, por ora, como um sistema fechado, isolado das outras sociedades. (RAWLS, 2008, p.9)

Como se pressente, nem todas as instituições sociais corporificam a

estrutura básica da sociedade. Welter entende que instituições como clubes privados

e associações estão ao largo dessa estrutura básica; assim sendo, os princípios de

justiça não lhes seriam aplicados (WELTER, 2001, p. 18).

A estrutura básica da sociedade constitui o conjunto de principais

instituições desta sociedade como “a constituição política e os arranjos econômicos

e sociais mais importantes” (RAWLS, 2008, p.8)19. Os princípios desta justiça, com

efeito, “regem a escolha de uma constituição política e os elementos principais do

sistema econômico e social” (RAWLS, 2008, p.9). Freeman assevera que os

princípios de justiça são aplicados, em primeiro lugar, para trazer justiça para as

instituições integrantes da estrutura primordial da sociedade (FREEMAN, 2006,

19 “As instituições sociais que formam a estrutura básica são a constituição política; o sistema legal de processos, propriedade e contratos; o sistema de mercados e a regulação das relações econômicas; e a família” (a estrutura básica da sociedade: In: FREEMAN, 2007).

23

p.3)20, que abrange a estrutura política como a definição da constituição política e

dos procedimentos legais; a estrutura econômica como normas e destinadas a

regulamentar a produção econômica, o câmbio e os mercados; além da estrutura

familiar, responsável pela reprodução da sociedade (FREEMAN, 2006, p.3)21.

A segunda limitação é a presunção a partir da qual Rawls examina

os princípios da justiça. O autor parte de uma sociedade bem-ordenada, na qual

“todos ajam de forma justa e façam sua parte na sustentação das instituições justas”

(RAWLS, 2008, p.10)22. Gargarella, neste tópico, delineia uma sociedade bem

organizada como aquela em que as pessoas aceitam os mesmos princípios da

justiça e sabem que as demais pessoas também o fazem, bem como que as

instituições sociais básicas buscam a satisfação desses princípios e, em regra,

alcançam esse objetivo (GARGARELLA, 2008, p. 19).

A pergunta que Rawls pretende responder é “como seria uma

sociedade perfeitamente justa” (RAWLS, 2008, p.10). Esclarece Rawls, também, que

sua concepção de justiça é uma parte de um ideal social. Vale dizer: os princípios da

justiça constituem apenas uma parte, quiçá a mais importante, dos princípios da

estrutura básica da sociedade. Conceber todas as virtudes não é objetivo do filósofo,

para quem uma concepção exaustiva, definidora dos princípios de todas as virtudes

da estrutura básica e das medidas quando em situação de conflito, já não é mais

uma simples concepção de justiça, mas sim um ideal social (RAWLS, 2008, p.11).

Para contemplar todos os princípios de todas as virtudes morais seria mister a

formulação de uma teoria contratualista completa, ao que declaradamente não se

dispôs o autor na obra em análise (RAWLS, 2008, p.20). Em síntese, presumindo

20 No original, lê-se: “These principles apply in the first instance to decide the justice of the institutions that constitute the basic structure of society”. 21 No original: “The basic structure is the interconnected system of rules and practices that define the political constitution, legal procedures and the system of trials, the institution of property, the laws and conventions which regulate markets and economic production and exchange, and the institution of the family (which is primarily responsible for the reproduction of society and the care and education of its new members).” 22 “Sociedade bem-ordenada – um ideal formal de uma sociedade perfeitamente justa implícito no contratualismo de Rawls. É uma sociedade em que (a) todos os cidadãos concordam sobre a mesma concepção de justiça e isso é de conhecimento público; além do mais, (b) a sociedade põe em vigor essa concepção em suas leis e instituições; e (c) os cidadãos tem um senso de justiça e disposição para cumprir com esses termos. As partes na posição original buscam uma concepção de justiça que será estável sob as condições de uma sociedade bem-ordenada, portanto uma concepção que é geralmente aceitável a todas as pessoas razoáveis e racionais” (sociedade bem-ordenada: In: FREEMAN, 2007).

24

uma sociedade bem-ordenada e composta por indivíduos justos, o objeto de

investigação de Rawls está nos princípios da justiça da estrutura básica de uma

sociedade isolada. A despeito da delimitação, acredita o filósofo que o exame desse

caso especial colaborará na resolução de pontos outros não tratados (RAWLS,

2008, p.11).

Com esse intento, Rawls recorre ao argumento da posição original,

por meio da qual tais princípios da justiça seriam imparcialmente estabelecidos,

cristalizando-se a chamada justiça como equidade. A imparcialidade na escolha

decorreria de características dos responsáveis pela sua efetivação: “pessoas livres,

racionais e interessadas em si mesmas (não invejosas), colocadas em uma posição

de igualdade” (GARGARELLA, 2008, p. 20). Além disso, Rawls não deixou de anotar

o que se poderia chamar de restrições do justo na posição original, que visam

garantir sejam os princípios escolhidos na posição original gerais, universais,

completos e finais (RAWLS, 2008, p.159)23.

Destarte, a ideia central de John Rawls, inspirado nos autores

contratualistas tradicionais, é estabelecer princípios de uma virtude determinada que

é a justiça a partir de certa situação original puramente hipotética de igual liberdade,

situação esta que se poderia qualificar como equitativa. Noutras palavras, os

agentes responsáveis pela escolha dos princípios devem estar privados de

informações particulares como sua riqueza, inteligência, cor, raça etc., admitido o

conhecimento de certos dados gerais como as descobertas das ciências naturais e

sociais (GARGARELLA, 2008, p. 21).

Alerta Rawls, outrossim, que o problema da escolha é tão complexa

quanto a delimitação dos princípios. Por essa razão, Rawls sustenta que uma teoria

da justiça comporta dois segmentos principais: [a] apresentação de uma posição

original e um rol de princípios disponíveis para escolha, seguida de [b] um

argumento que embase quais dos princípios disponíveis seriam realmente

23 Gargarella sintetizou: “Os princípios que vão eleger devem cumprir certas condições formais básicas: ser gerais (não é válido, por exemplo, um princípio como ‘o que favoreça X e Z... deve ser seguido’); universais (ou seja, aplicáveis a todas as pessoas morais); completos (ou seja, capazes de orientar quaisquer pretensões que se apresentem); e finais (ao decidir, em caráter definitivo, os conflitos que se apresentem). Os sujeitos da posição original comprometem-se a respeitar os princípios, uma vez eleitos e saídos da posição original” (2008, p. 21).

25

escolhidos24.

A dificuldade, como expressa Rawls em O Liberalismo Político, está

na busca de um ponto de vista separado da estrutura básica, insuscetível de

influências das características e peculiaridades desta; encontrado esse ponto de

vista, dele é que poderia surgir e ser firmado um acordo igualitário entre pessoas

consideradas livres e iguais (RAWLS, 2000, p. 66).

Na construção dessa hipótese original, Rawls pretendeu alcançar

uma justiça procedimental pura (RAWLS, 2008, p. 165). Segundo Rawls, optar por

uma tal justiça procedimental pura significa abandonar qualquer “critério

independente para o resultado correto: em vez disso, existe um procedimento

correto ou justo que leva a um resultado também correto ou justo, seja qual for,

contanto que se tenha aplicado corretamente o procedimento” (RAWLS, 2008,

p.104). Adite-se em explicação as palavras de Freeman constantes no Glossário-

Rawls:

Justiça procedimental pura – a ideia que os resultados de certos procedimentos equitativos, quando plenamente cumpridos, são necessariamente justos. Um exemplo é a loteria equitativa. Não há critério independente para medir a equidade de seus resultados, independente de satisfazer o próprio procedimento. Compare com a justiça procedimental imperfeita, em que há um critério independente e o resultado do procedimento equitativo (por exemplo, processos do juro equitativos) que é provável ser justo na medida em que os procedimentos satisfazem ou se aproximam a esse critério independente. Rawls diz que um sistema econômico cujas regras satisfazem completamente a justiça como equidade exibe a justiça procedimental pura; uma vez que as regras do sistema são satisfeitas, os indivíduos têm o direito a qualquer o que seja que ele receba e as distribuições resultantes de renda e riqueza são justas. (justiça procedimental pura: In: FREEMAN, 2007)

Ademais, Rawls lança mão do véu da ignorância, a fim de que não

haja contaminação entre os responsáveis pela escolha dos princípios: considerando

que todos encontram-se em situações similares, e ninguém poderá propor princípios

que beneficiem somente sua própria causa, os princípios de justiça têm sua gênese

num acordo considerado justo (RAWLS, 2008, p.15). As pessoas, cuja escolha

refletirá a concepção de justiça, devem no momento da situação inicial ser dotadas

24 Segundo Rawls: “Pode-se dividir a teoria da justiça em duas partes principais: (1)uma interpretação da situação inicial e uma formulação dos diversos princípios disponíveis para escolha; e (2)um argumento que demonstre quais desses princípios seriam, de fato, adotados” (2008, p.65).

26

de razão e de desinteresse (cf. RAWLS, 2008, p.16). Razão para selecionar os

melhores meios para atingir os fins escolhidos e de desinteresse quanto ao interesse

dos outros (RAWLS, 2008, p.17). Como se verá adiante, justamente nesse ponto

incidem severas críticas de Habermas contra a posição original rawlsiana - a

propósito, cf. infra item 2.3.3.

Na definição da posição inicial deve-se excluir tudo o que possa ser

dado capaz de eivar a imparcialidade das partes na posição original (RAWLS, 2008,

p.22). Rawls toma como exemplo a situação de um homem que se sabe rico, ele

poderia tomar como razoável que impostos em prol do bem-estar social sejam tidos

por injustos; caso pobre fosse, esse mesmo homem poderia tomar como justa a

cobrança de tais impostos (RAWLS, 2008, p.22).

É como que um processo hipotético de purificação o que propõe

John Rawls. A posição original é apenas um artifício representativo, que, através da

descrição das partes responsáveis pelos interesses primordiais de um cidadão

considerado livre e igual, alcança, considerada uma situação de igualdade, um

acordo justo sujeito a condições que limitam aquilo que pode ser proposto como boa

razão. Na literalidade de Rawls:

...a posição original é apenas um artifício de representação: descreve as partes, cada qual responsável pelos interesses essenciais de um cidadão livre e igual, numa situação equitativa, alcançando um acordo sujeito a condições que limitam apropriadamente o que podem propor como boas razões. (RAWLS, 2000, p. 68)

Cuida-se, por assim dizer, de uma situação em que todos carecem

de dados contingenciais do mundo social (RAWLS, 2000, p. 66). “Exclui-se o

conhecimento dessas contingências que geram discórdia entre os homens e

permitem que se deixem levar pelos preconceitos” (RAWLS, 2008, p.23). Freeman

comenta que, de acordo com a doutrina majoritária do utilitarismo, o remédio para os

problemas de vantagens e parcialidade está na retirada da possibilidade de tomada

de decisões morais, com a imposição de um “véu fino de ignorância”: parte-se de

uma posição em que se tem o conhecimento dos desejos e interesses de todos e o

acesso irrestrito a informações históricas, e daí extirpa-se, simplesmente, o

conhecimento da identidade de cada um dentro da sociedade – desse modo, não

haveria o risco de tomada de vantagens ou favorecimentos conforme situações ou

27

concepções de bem particulares (FREEMAN, 2006, p.11)25.

O véu da ignorância constitui, pois, um método que visa restringir

argumentos (RAWLS, 2008, p.23). Destarte, os componentes da posição original

ignoram sua posição dentro da estrutura social, desprezando classes e status social

(RAWLS, 2008, p. 166); suas características naturais (inteligência, força,

características especiais de sua psicologia, aversão ao risco, tendência ao otimismo

ou ao pessimismo); desconhecem a concepção daquilo que é bom e os meandros

de um particular projeto racional de vida (RAWLS, 2008, p. 166); não conhecem nem

mesmo as características de sua própria sociedade, como o estágio atual de sua

economia ou de sua política, o nível de civilização e cultura alcançados. Ao tempo

que ignoram tudo isso, detêm essas pessoas o conhecimento de que a sociedade

estará submetida à situação de justiça que estabelecerem e todas as conseqüências

que decorram deste corolário (RAWLS, 2008, p. 167); bem como de fatos

considerados genéricos acerca da sociedade: entendimento de assuntos políticos,

econômicos, relacionados à estrutura social e inclusive as normas da psicologia

humana (RAWLS, 2008, p. 167). O ponto é que informações genéricas, gerais, não

particulares, estão à disposição dos participantes da posição original:

De fato, presume-se que as partes conhecem quaisquer fatos genéricos que afetem a escolha dos princípios de justiça. Não há limites impostos às informações genéricas, ou seja, sobre as leis e as teorias gerais, uma vez que as concepções da justiça devem adaptar-se às características dos sistemas de cooperação social que devem reger, e não há motivo para excluir esses fatos. (RAWLS, 2008, p. 167)

Cumpre destacar que, conforme Gargarella, a proposta do véu da

ignorância exala a nota de kantismo da teoria da justiça rawlsiana, uma vez fundada

que está na máxima de que os princípios de justiça não devem ater-se àquilo que é

contingente (GARGARELLA, 2008, p. 22), algo admitido expressamente pelo próprio

Rawls: “[a] ideia do véu da ignorância está implícita, creio, na ética de Kant”

(RAWLS, 2008, p. 171). Realmente, Kant na Fundamentação da Metafísica dos

25 No original: “According to many utilitarians, the appropriate solution to problems of partiality and people's taking advantage of their position in making moral decisions is to impose a ‘thin’ veil of ignorance: allow the parties to an original position full historical information, including knowledge of everyone's desires and interests, and simply deprive them of knowledge of their identity in society. People are then not in a position to take advantage of knowledge of their particular situations and conceptions of the good.”

28

Costumes (FMC) apregoava que o homem comum é capaz de agir moralmente, o

juízo moral está acessível a todos, a todos os homens é possível ter consciência do

juízo moral, mesmo sem ter consciência do princípio supremo formal que o embasa.

Escreveu Kant já no prefácio da FMC: “...a razão humana no campo moral, mesmo

no caso do mais vulgar entendimento, pode ser facilmente levada a um alto grau de

justeza e desenvolvimento” (KANT, 1988, p.18).

Retomando o fio do raciocínio, excluídos todos fatores contingentes,

Rawls para que seja factível aos participantes da posição original decidir que

concepções de justiça lhes proporcionam mais vantagens (cf. RAWLS, 2008, p.173),

faz-se mister que sejam motivados pela busca de bens primários sociais. Bens

primários constituem todos aqueles que de regra todo indivíduo racional almeja.

Acerca deles, prossegue Rawls: “Esses bens normalmente têm utilidade, sejam

quais forem os planos racionais de vida da pessoa” (RAWLS, 2008, p.75). Tais bens

podem ser de tipo social ou natural, conforme entremostra Rawls:

Para simplificar vamos supor que os principais bens primários à disposição da sociedade sejam direitos, liberdades e oportunidades, renda e riqueza. (...)Esses são os bens primários sociais. Outros bens primários, como a saúde e o vigor, a inteligência e a imaginação, são bens naturais; embora sua posse sofra influência da estrutura básica, não estão sob seu controle tão direto. (RAWLS, 2008, p.76)

Incidem os princípios da justiça exatamente sobre a distribuição dos

bens primários sociais, dos quais seriam exemplos: riqueza, oportunidades, rendas,

direitos (RAWLS, 2008, p.110)26. Por outro lado, são modelos de bens primários

naturais: talentos, saúde, inteligência.

Sendo assim, despidos de informações de cunho particular, munidos

daquelas de viés geral, agirão os participantes movidos no intuito básico de

26 Em complemento verbere-se o que Freeman registrou no Glossário-Rawls: “Bens sociais primários - (TJ, §15; CP, cap. 17) – os bens que os princípios da justiça são designados a distribuir e que servem como uma base de comparação e medida do nível de bem-estar dos indivíduos para propósitos da justiça. Eles incluem direitos e liberdades, poderes, oportunidades, e cargos de posição, renda e riqueza, e as bases do auto-respeito. Por ‘poderes’ Rawls quer dizer as habilidades institucionais e prerrogativas que atendem a cargos e posições na sociedade. Rawls afirma que esses são meios para todos os propósitos que são racionais para as pessoas que consideram-se como livres e iguais desejar, qualquer que seja sua concepção de bem. Em obra posterior ele afirma que eles são necessários para realizar os interesses fundamentais dos cidadãos exercendo seus poderes morais e perseguindo seus planos racionais de vida.” (bens sociais primários: In: FREEMAN, 2007).

29

obtenção de bens primários sociais. Ademais, a própria configuração da posição

original leva as partes ao encontro da regra maximin. A respeito do termo “maximin”

anota Álvaro de Vita:

Abreviação de maximum minimorum. Rawls emprega o termo, na seção 26 de Uma teoria da justiça, para designar a regra de decisão segundo a qual agentes racionais, sob condições de incerteza, optam pela alternativa cujo pior resultado possível é melhor do que os piores resultados das demais alternativas sob consideração. A regra ‘maximin de escolha racional’ é usada por Rawls para justificar por que agentes racionais deliberando por trás do ‘véu da ignorância’, na ‘posição original’, escolheriam os dois princípios de justiça. (RAWLS, 2008, p.XXIII).

A construção da posição original tal qual idealizada por Rawls

conduz seus participantes à regra de escolha do menor dos males (regra maximin).

Lembrando com o brilhante Marcantonio que “[q]uando um indivíduo se depara com

a necessidade de adoção de princípios, faz sua escolha reconhecendo que tal

escolha será a melhor para ele próprio, caso pertença a alguma casta da sociedade”

(MARCANTONIO, 2005). Segundo Welter, a estratégia maximin apregoa a

eliminação de riscos, qualquer seja o custo disso (WELTER, 2001, p.100). Deveras,

bem sublinhou Rawls: “A regra maximin determina que classifiquemos as alternativas

partindo dos piores resultados possíveis: devemos adotar a alternativa cujo pior resultado

seja superior aos piores resultados das outras” (RAWLS, 2008, p. 186). A regra é

destinada a situações marcadas por certas características especiais (RAWLS, 2008,

p. 187), isto é, as condições peculiares nas quais só se deve elejer uma de várias

alternativas, todas em princípio atraentes (GARGARELLA, 2008, p. 23).

Interessa consignar que a concepção de justiça como equidade

depende de uma situação inicial que seja equitativa. Com isso não se quer significar,

pois, que justiça é equidade, mas que seus princípios foram cunhados numa

situação de equidade (cf. RAWLS, 2008, p.15).

Cá chegados, cumpre advertir, como o fez Rawls, que os princípios

da justiça são aplicáveis às instituições sociais, instituições estas que formam, num

único esquema de cooperação, a estrutura básica da sociedade (RAWLS, 2008,

p.65): Não se pode confundir os princípios de justiça direcionados às instituições

com aqueles destinados aos indivíduos e seus atos em certas circunstâncias

(RAWLS, 2008, p.66).

Suposto que a estrutura básica institucional da sociedade contempla

30

“mais ou menos distintas” (RAWLS, 2008, p.74) duas partes: (i) definição de iguais

liberdades fundamentais; (ii) definição de desigualdades sociais e econômicas27,

Rawls destinou a cada uma delas um princípio: à primeira parte, o primeiro princípio;

à segunda, o segundo. Destaca Welter:

Na medida em que fazem parte de uma concepção política de justiça, os princípios de justiça têm a função de especificar os termos equitativos da cooperação social, ou seja, eles devem especificar os direitos e deveres básicos a serem designados pelas instituições políticas e sociais básicas, além de regular a distribuição de benefícios e encargos decorrentes da cooperação social. (WELTER, 2001, p.9)

Partindo de uma pré-compreensão dos princípios desta justiça como

equidade, eis a enunciação inicial, e portanto sujeita a aprimoramentos, dos

princípios para instituições da justiça rawlsiana:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas.

Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a)se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculados a cargos e posições acessíveis a todos. (RAWLS, 2008, p.73)

Oportuno anotar que a formulação dos princípios acima foi a

primeira da obra Uma teoria da justiça, que, no decorrer deste mesmo livro, sofreu

especificações até o ponto de chegar a uma formulação bem próxima da seguinte,

apresentada agora na obra O Liberalismo Político:

a.Todas as pessoas têm direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido.

b.As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer a dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade. (RAWLS, 2000, p. 47)

A diversidade de formulações, segundo Rawls (2000, p.47, nota 3),

27 Segundo Rawls: “...distinguimos entre os aspectos do sistema social que definem e garantem as iguais liberdades fundamentais e os aspectos que especificam e estabelecem as desigualdades sociais e econômicas.” (2008, p.74).

31

decorre da revisão na exposição das liberdades básicas na teoria da justiça como

resposta às críticas feitas por Herbert Lionel Adolphus Hart (H.L.A.Hart), que,

importantes embora, não serão objeto de estudo nesta monografia28. De qualquer

forma, deve ficar devidamente explicitado que assim como na teoria da justiça

também no liberalismo político tais princípios revelam uma concepção política liberal

de justiça, cujos elementos mantêm-se válidos em ambas as obras, pois no

particular, como destaca Rawls, “[n]ão me lembro de nenhuma revisão que implique

tal mudança [mudança na concepção igualitária da Teoria] e penso que essa

conjectura não tem fundamento” (RAWLS, 2000, p. 49, nota 6, esclareci entre

colchetes).

Por outro lado, digno de registro, entretanto, que os dois princípios

supramencionados conglobam três componentes estruturantes, a saber: o princípio

de liberdades iguais, o princípio de justa igualdade e oportunidades e o princípio de

diferença. A propósito dos princípios acima transcritos, Cortina e Martínez

registraram:

O primeiro princípio (princípio de liberdades iguais) deve ter prioridade sobre o segundo, e a primeira parte do segundo (princípio de justa igualdade de oportunidade) deve ter prioridade sobre a segunda parte dele (princípio da diferença), no sentido de que não seria moralmente correto suprimir nem reduzir as garantias expressas por (a) para fomentar (b), nem suprimir nem reduzir a primeira parte de (b) para fomentar sua segunda parte. Expressa-se essa norma de prioridade dizendo que os princípios estão colocados em uma ordem léxica. (CORTINA; MARTINEZ, 2005, p.91)

Há, pois, uma ordem serial entre eles. O primeiro sobrepõe-se ao

segundo, não só no sentido de que violações das iguais liberdades fundamentais,

protegidas pelo primeiro princípio, não podem ser justificadas, tampouco

compensadas, em prol de vantagens sociais ou econômicas (RAWLS, 2008, p.74),

mas também no sentido de que a distribuição de renda e riqueza, bem como cargos

de autoridade e responsabilidade devem observar obrigatoriamente a intersecção

entre liberdades fundamentais e igualdade de oportunidades (RAWLS, 2008, p.75).

Disso se conclui que não ser concebível vulnerar a liberdade em prol da igualdade

(ZVIRBLIS, 2009, p.39).

A par disso, limitações à igualdade de liberdades só são possíveis

28 O ponto, entretanto, pode ser melhor descortinado em RAWLS, 2000, pp.291, 331 e ss., a que remetemos o leitor interessado.

32

mediante conflito entre elas29. Força é convir, por consectário, que as liberdades não

são absolutas, “...porém, qualquer que seja a forma pela qual se ajustam em um

sistema único, esse sistema deve ser igual para todos” (RAWLS, 2008, p.75).

Mesmo que não seja possível especificá-las taxativamente, apresenta factível a

enunciação de um rol de liberdades fundamentais suficientemente compatível com a

concepção de justiça (RAWLS, 2008, p.75).

Com o escopo de esclarecer o teor e justificar os princípios, Rawls

parte de uma concepção de justiça mais geral, enunciada pelo autor da seguinte

forma:

Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais do auto-respeito – devem ser distribuídos de forma igual, a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores seja vantajosa para todos. (RAWLS, 2008, p.75)

A contrario sensu, implica injustiça a distribuição desigual de um ou

mais valores sociais sem produção de vantagem a todos. Daí a relevância da

afirmação de Rawls: “A injustiça se constitui, então, simplesmente de desigualdades

que não são vantajosas para todos” (RAWLS, 2008, p.75).

Embora vaga, como o próprio autor admite, essa assertiva conduz à

conclusão de que, tomada uma situação inicial de igualdade na distribuição dos

bens primários da sociedade30 (Rawls cita alguns como direitos, liberdades,

oportunidades, rendas, riquezas), é justa a alteração desse estado se houver ganho

a todos; injusta, em caso contrário (RAWLS, 2008, p.76). E mais: se a situação de

todos melhorar, então qualquer31 desigualdade será justa. A respeito, Rawls

estabelece a seguinte imagem:

Imaginemos, então, um hipotético arranjo inicial, no qual todos os bens primários sociais são igualitariamente distribuídos: todos têm direitos e deveres semelhantes, a renda e a riqueza são distribuídas com igualdade. Esse estado de coisas serve de ponto de referência

29 Para Rawls limitações nas liberdades não são justas se baseadas apenas em vantagens sociais e econômicas (RAWLS, 2008, p.74). 30 Além desses, poderíamos falar em bens primários da natureza (naturais) como o vigor, a inteligência, a imaginação, porém que, embora sofram a influência, não estão diretamente vinculados à estrutura básica da sociedade (RAWLS, 2008, p.76). 31 Cabe um esclarecimento acerca do termo “qualquer”. Embora para Rawls: “A concepção geral de justiça não impõe restrições quanto aos tipos de desigualdade permissíveis; ela só exige que a situação de todos melhore” (2008, p.76), o próprio autor admite limitações de permuta entre liberdades fundamentais e ganhos econômicos e sociais (RAWLS, 2008, p.76). Limitações que tais serão melhor elucidadas e esclarecidas posteriormente.

33

para avaliar melhorias. se certas desigualdades de riqueza e diferenças de autoridade deixariam todos em melhor situação do que nessa situação inicial hipotética, então estão de acordo com a concepção geral. (RAWLS, 2008, p.76)

Em síntese, pretende Rawls significar que, ao menos no plano

teórico como ele mesmo reconhece (2008, p.76), seria factível que alguns indivíduos

abrissem mão em alguma medida de bens primários sociais em favor de outros

desde que com reflexos positivos a todos.

Na sequência, Rawls pretende examinar os princípios segundo a

ordem serial por ele firmada, informando condições com base nas quais haveria o

peso absoluto do primeiro sobre o segundo, levando em conta, inclusive, a distinção

entre os próprios bens primários sociais: de um lado os da liberdade fundamentais;

de outro, aqueles decorrentes de benefícios econômicos e sociais. Distinção esta

que “indica uma divisão importante do sistema social” (RAWLS, 2008, p.77) a ser

melhor esclarecida no decorrer do raciocínio rawlsiano.

No exame direto dos dois princípios da justiça, Rawls destaca as

consequências da afirmação de que ambos aplicam-se a instituições. A primeira

delas é a previsão em normas públicas da estrutura básica dos direitos e das

liberdades fundamentais; é a partir dos direitos e deveres estelecidos pelas

instituições fundamentais que se pode asseverar se os indivíduos de uma dada

sociedade são livres ou não (RAWLS, 2008, p.77). Para Rawls, “[a] liberdade é um

padrão de convivência determinado por formas sociais” (2008, p.77).

O princípio de liberdades iguais, designado por Rawls como o

primeiro princípio, impõe que esse sistema de normas públicas da estrutura básica

preveja as liberdades mais amplas possíveis a todos. A liberdade total a todos não é

possível sem que uma liberdade interfira na outra, por isso a única restrição

permitida seria a liberdade do outro: “A única razão para restringir as liberdades

fundamentais e torná-las menos extensas é que, se isso não fosse feito, interfeririam

uma com as outras” (RAWLS, 2008, p.77).

Quanto ao segundo princípio, Rawls adverte que as desigualdades

são instituídas em prol de todos em benefício de representantes, não de indivíduos

determinados (RAWLS, 2008, p.78). Para Freeman, o princípio da diferença é

34

justamente a definição do chamado ideal de reciprocidade (2006, p.7)32. De qualquer

forma, é possível asserir que o segundo princípio, regulador das desigualdades

sociais, constitui elemento nodal na doutrina rawlsiana. Rawls alega que a

distribuição atual das vantagens sociais, baseada no mérito, é medida arbitrária do

ponto de vista moral, logo despida de equidade; o próprio critério definidor do que

seja mérito apresenta problemas, pois toma em consideração talentos naturais e

sociais não atribuíveis ao indivíduo aquinhoado33. Enfim, do polêmico segundo

princípio brotaram reações diversas perante a comunidade acadêmica, reações

estas, entretanto, que não serão tratadas aqui em vista do restrito objeto desta

monografia34.

Há, ainda, outra fase de justificação da posição inicial. Como bem

destacou Rawls, com o escopo de precaver mal-entendidos, cabe-nos distinguir três

pontos de vista, a saber: “o das partes na posição original, o dos cidadãos numa

sociedade bem-ordenada e, finalmente, o nosso - o seu e o meu, que estamos

formulando a ideia de justiça como equidade e examinando - a enquanto concepção

política de justiça” (RAWLS, 2000, p. 71). Delimitados os princípios, devemos

conferir se estes são compatíveis com nossas convicções ponderadas de justiça

(RAWLS, 2008, p.23). Em caso de discrepância entre os pontos de vista acima

mencionados, há a possibilidade de modificação das características da situação

primordial ou simplesmente de ajuste nos juízos vigentes (RAWLS, 2008, p.24).

Destarte, por meio de avanços e recuos, ajustamos ora a situação inicial ora a

nossos juízos ponderados; Rawls denominou esse processo de mútuo ajuste entre

situação inicial e juízos ponderados de “equilíbrio reflexivo”: “É equilíbrio porque

finalmente nossos princípios e juízos coincidem; e é reflexivo porque sabemos a

quais princípios nossos juízos se adaptam e conhecemos as premissas que lhes

deram origem” (RAWLS, 2008, p.25). Porém, como salienta Rawls, “[a] justiça como

eqüidade é terrivelmente mal-entendida quando as deliberações das partes, e os

motivos que lhes atribuímos, são confundidos com uma visão da psicologia moral,

tanto de pessoas reais quanto de cidadãos de uma sociedade bem-ordenada”

32 No original: “The role of Rawls's difference principle is to define this ideal of reciprocity.” 33 Há grande polêmica acerca do enquadramento de Rawls dentre os igualitarismo da sorte (lucky egalitarianism) do qual certamente Ronald Dworkin, Richard Arneson, Gerald Cohen, dentre outros defendem. A respeito, cf. GARGARELLA, 2008. 34 Cf. sobre o debate e as polêmicas, especialmente GARGARELLA, 2008.

35

(RAWLS, 2000, p. 71). Para Marcantonio:

...a posição original não se liberta de seu caráter hipotético, sendo mera representação do aceite da sociedade sobre determinados princípios. Desta forma, alguns dos princípios ‘escolhidos’ podem vir a sofrer alterações em função de mudanças nas relações sociais, por exemplo, ou ainda, mostrarem-se inadequados. No entanto, um princípio só é considerado inadequado ou carente de alterações, quando não consegue viabilizar a já mencionada igualdade eqüitativa, pondo em risco toda a estrutura de uma sociedade que visa justiça. Assim, admitindo tal possibilidade, John Rawls institui uma forma de re-adequar os princípios nomeados aos moldes da almejada igualdade eqüitativa, utilizando-se de escolhas e posições racionalmente aceitas socialmente. (MARCANTONIO, 2005)

Os esclarecimentos necessários para arrostar tais confusões são

melhor esmiuçados no capítulo 3 desta monografia, especialmente item 3.3.

Em conclusão, frise-se que a posição inicial encontra-se justificada

não só pela ausência de circunstâncias pessoais que possam macular os princípios

escolhidos, senão também pelo processo de depuração de equilíbrio reflexivo

realizado entre tais princípios escolhidos e nossos juízos ponderados.

À guisa de sumário final, deve ser dito que nesse capítulo primeiro

expusemos a importância e o papel da justiça segundo John Rawls, cuja doutrina

aflorou como possível alternativa ao utilitarismo. De raízes contratualistas, a justiça

como equidade colhe no recôndito da posição inicial seus princípios, os quais se

destinam à estrutura básica de sociedades bem-ordenadas. Nessa hipotética

situação original, a supressão de informações contingentes proporcionada pelo véu

da ignorância garante a imparcialidade dos participantes. Ademais, a própria

configuração da posição original impele-os à estratégia de escolher a alternativa cujo

pior resultado seja melhor em comparação com o das outras (regra maximin).

Destacou-se, ainda, no transcurso do capítulo a enunciação inicial e final de ambos

os princípios, bem como a imperiosa confrontação a que são submetidos por conta

do equilíbrio reflexivo.

Sucede que justamente toda essa estrutura engendrada por Rawls

foi objeto de vigorosas críticas por parte de Jürgen Habermas, as quais serão

apresentadas a seguir.

2. A CRÍTICA DE HABERMAS

No artigo “Reconciliação mediante o uso público da razão: alguns

comentários em torno do liberalismo político de Rawls”35, Jürgen Habermas anota

críticas ao modelo de liberalismo político de Rawls em comparação com seu modelo

deliberativo. A seguir, o debate será reconstruído em linhas gerais com

detalhamento exclusivamente em relação à crítica de Habermas contra a posição

original rawlsiana.

2.1. RECONCILIATION

Habermas abre o artigo Reconciliation... destacando que a teoria da

justiça de Rawls representou uma mudança de paradigma no campo da filosofia

prática, pois trouxe à luz da investigação filosófica, de maneira renovada, questões

morais, assunto esse há muito não objeto de debate (HABERMAS, 1995, p. 109)36.

De início Habermas já deixa antever a importância do trabalho de

John Rawls à filosofia prática, culminando por qualificar suas dissidências, como se

verá, como uma disputa de família. Com efeito, nessa primeira parte37 da crítica de

Habermas, desde logo revela seu reconhecimento pela teoria da justiça rawlsiana,

bem como desvela as grandes afinidades entre o seu e o trabalho de Rawls

(especialmente quanto as intenções e os resultados essenciais38). Isso, por um lado,

como se verá no próximo capítulo foi de certa forma contestado por Rawls, que se

esforça para expor as diversidades principais entre ele e Habermas (item I da

35 No original: Reconciliation Through the Public use of Reason: Remarks on John Rawls’s Political Liberalism. Na tradução dos textos contamos com o inestimável apoio da tradução espanhola de Gerard Vilar Roca, introduzida por Fernando Vallespín, “Debate sobre el liberalismo político”. 36 Lembrando que nossa tradução é livre, convém consignar o texto original. Eis as primeiras palavras de Habermas: “Jonh Rawls’s A Theory of Justice marks a pivotal turning point in the most recent history of practical philosophy, for he restored long-suppressed moral questions to the status of serious objects of philosophical investigation” (HABERMAS, 1995, p.109). 37 Esclareça-se que essa divisão é arbitrária e atende exclusivamente aos interesses desta monografia. 38 Cf. HABERMAS, 1995, p. 110.

37

réplica: Duas diferenças principais39); de outro norte, faz pressentir a profundidade

das críticas de Habermas, cujas perspectivas derivam de um mesmo tronco. De fato,

as observações habermasianas tocarão as bases da teoria de Rawls.

Pois bem. Segundo Habermas, Rawls revisita a teoria de Kant40 em

prol da justiça em sociedades bem-organizadas, mesmo sem assumir as bases

transcendentais kantianas41 de em caso de dúvida optar por aquilo que igualmente

beneficia a todas as pessoas42. Rawls, então, teria proposto uma leitura

intersubjetiva43 do conceito kantiano de autonomia44 em oposição ao utilitarismo e ao

ceticismo quanto aos valores. Intersubjetiva porque - diz Habermas a propósito da

teoria da justiça de Rawls – atuamos autonomamente quando cumprimos aquilo que

39 Eis o título do primeiro item da réplica: “Two Main Differences” (RAWLS, 1995, p.132). Veremos no próximo capítulo (3.A RESPOSTA DE RAWLS) que essas diferenças básicas consistem, grosso modo, nas diversas abrangências das doutrinas de Habermas e Rawls (cf. item 3.2), bem como nos distintos mecanismos de representação adotados por tais doutrinas (cf. item 3.3). 40 Como bem salienta Feldhaus: “Tanto Jürgen Habermas quanto John Rawls afirmam-se herdeiros do pensamento de Immanuel Kant, não obstante, as grandes diferenças entre suas posições normativas e a de Kant” (FELDHAUS, 2011, p.202). 41 Por bases transcendentais kantianas entenda-se, à evidência, o princípio supremo da moralidade válido em toda a sociedade e em qualquer tempo. Rawls, segundo Habermas, “renovou esse princípio, com vistas à justa convivência entre cidadãos de uma comunidade política” (HABERMAS, 2002, p.61). 42 No original: “Without espousing Kant's transcendental philosophical background assumptions, Rawls renewed this theoretical approach with particular reference to the issue of the organization of a just society” (HABERMAS, 1995, p.109). 43 Anote-se que Marcantonio procura demonstrar em brilhante monografia sobre o tema o viés subjetivo da releitura do imperativo categorico kantiano em Rawls; ao contrário de Habermas, cuja leitura do mesmo IC é, na visão de Marcantonio, genuinamente intersubjetiva (MARCANTONIO, 2005). 44 Vale remarcar que para Kant a dignidade do ser racional decorre justamente de seu agir autônomo, o agir segundo sua própria lei moral: “A autonomia é, pois, o princípio da dignidade da natureza humana, bem como de toda natureza racional” (KANT, FMC). Nesse aspecto somos senhores da lei moral a que nos submetemos. “Isso significa que a vontade deve querer a sua própria autonomiae que a sua liberdade reside em ser, portanto, uma lei para si mesma” (Autonomia: In: CAYGILL, 2000). Freeman, por sua vez, consignou no Glossário-Rawls: “Autonomia – (TJ, § 78) – ideia usada inicialmente na interpretação kantiana em Teoria; ela acarreta agir por princípios morais que a razão dá a si mesma via posição original, quando esses princípios são considerados como construídos a partir de e expressando as capacidades morais de ação que constituem nossa natureza como seres morais racionais livres e iguais. Em Liberalismo Político Rawls usa o termo ‘autonomia plena’ para significar agir de maneira razoável e racional a partir de princípios políticos de justiça os cidadãos deveriam dar a si mesmo quando adequadamente representados como pessoas livres e iguais (LP, 77). Desse modo os juízos e ações dos cidadãos (em relação à leis, políticas públicas, etc.) são determinados por razões públicas (ou ao menos compatíveis com), consistentes com seus estatuto e interesses como cidadãos livres e iguais.” (autonomia: In: FREEMAN, 2007).

38

estabelecemos de acordo com o uso público de nossa razão. Nas palavras de

Habermas:

Em oposição tanto ao utilitarismo quanto ao ceticismo quanto aos valores, propôs-se uma versão intersubjetivista de Kant do princípio da autonomia: agimos autonomamente quando obedecemos as leis que poderiam ser aceitas por todos os afetados, com base em um uso público de sua razão45.

A respeito disso, impende, de fato, retomarmos o que acima se disse

acerca da ideia geral do contratualismo. Realmente, conforme nos leciona

Gargarella, é terreno comum no contratualismo a justificação de princípios a partir do

consenso de todos os sujeitos potencialmente afetados por eles (GARGARELLA,

2008, p. 14).

Prosseguindo, Habermas acrescenta que Rawls, ao reformular sua

teoria da justiça (o que se dá na obra O Liberalismo Político – Cf.RAWLS, 2000), usa

esse conceito de autonomia moral (cumprimento de deveres consensualmente

estabelecidos pelos afetados) para explicar a autonomia política dos cidadãos de

uma sociedade democrática (HABERMAS, 1995, p.109). Rawls, depois de insurgir-

se contra os utilitaristas, agora procura atingir os contextualistas que criticam o

postulado da razão comum a todos os seres humanos (a reason common to all

humans46). Assume Habermas tamanha simpatia por tais posições que, segundo ele

mesmo, as dissidências expressas no Reconciliation... constituiriam uma familial

dispute (disputa familiar). Rawls e Habermas constituem ramos familiares de um

mesmo tronco. Habermas faz menção direta de tal “feudo familiar”, expressando seu

respeito e admiração ao projeto de Rawls; admite, também, ter intenções similares,

inclusive reputando como corretos os resultados essenciais a que chegou Rawls47.

Habermas destaca que suas críticas não guardam outro escopo senão o construtivo

(HABERMAS, 1995, p. 110).

45 No original: “In opposition to utilitarianism and value skepticism he proposed an intersubjectivist version of Kant's principle of autonomy: we act autonomously when we obey those laws which could be accepted by all concerned on the basis of a public use of their reason” (HABERMAS, 1995, p.109). 46 HABERMAS, 1995, p. 110. 47 No original: “Because I admire this project, share its intentions, and regard its essential results as correct, the dissent I express here will remain within the bounds of a familial dispute” (HABERMAS, 1995, p. 110).

39

2.2. APANHADO GERAL DAS CRÍTICAS HABERMASIANAS

Antes de aprofundar na análise de cada uma delas, Habermas faz

uma breve exposição em três etapas da teoria de Rawls, seguindo-se a exposição

das três críticas que se direcionarão não tanto contra o projeto rawlsiano em si, mas

contra alguns aspectos da sua execução48. Tais questionamentos não recairão

diretamente sobre as intuições normativas de Rawls, acertadas na opinião de

Habermas (HABERMAS, 1995, p. 110), senão sobre a fundamentação de tais

intuições, deficiente pelas concessões de Rawls fez em favor de seus opositores

filosóficos; segundo Habermas, tais concessões prejudicam, inclusive, o

entendimento claro do projeto rawlsiano (HABERMAS, 1995, p. 110)49.

Quanto à breve demonstração do projeto de Rawls, Habermas relata

que, para fundamentar princípios que garantam a colaboração equitativa de

indivíduos livres e iguais em uma sociedade moderna (HABERMAS, 1995, p. 110), o

primeiro passo de Rawls foi admitir que os representantes fictícios em posição

original seriam capazes de escolher de modo imparcial dois princípios: o princípio

liberal e o seu princípio subordinado:

Rawls explica por que as partes na chamada posição original concordariam com dois princípios: primeiro, o princípio liberal segundo o qual todos têm direito a um sistema de liberdades básicas iguais; e, segundo, em um princípio subordinado que estabelece a igualdade de acesso às funções públicas e estipula que desigualdades sociais são aceitáveis apenas quando eles também são a favor dos menos privilegiados. (HABERMAS, 1995, p. 110)50

Em sequência, Habermas afirma que Rawls pretende mostrar que

essa concepção ecoa numa sociedade pluralista que ela mesma promove; sendo

que o liberalismo político, não detendo pretensão de verdade, apresenta-se neutro

48 Habermas expõe: “...levantarei objeções direcionadas não tanto contra o projeto, como tal, mas contra certos aspectos de sua execução” (HABERMAS, 1995, p. 110). No original: “...I shall raise objections directed not so much against the project as such but against certain aspects of its execution.” 49 No original: “I fear that Rawls makes concessions to opposed philosophical positions which impair the cogency of his own project”. 50 No original: “Rawls explains why the parties in the socalled original position would agree on two principles: first, on the liberal principle according to which everyone is entitled to an equal system of basic liberties, and, second, on a subordinate principle that establishes equal access to public offices and stipulates that social inequalities are acceptable only when they are also to the advantage of the least privileged.”

40

em relação a visões conflitantes de mundo (HABERMAS, 1995, p. 110)51.

Por fim, Rawls extrai dos dois princípios da justiça, direitos e outros

princípios básicos do Estado constitucional (HABERMAS, 1995, p. 110)52.

Apresentadas em três etapas um esboço do projeto ralwsiano,

Habermas pontua suas objeções, situadas no plano imanente53. A primeira – objeto

específico dessa monografia - versa sobre a aptidão de a posição original realmente

assegurar a neutralidade dos princípios da justiça. De acordo com Habermas:

Primeiro, duvido que todos os aspectos da posição original são adequados para clarificar e garantir um juízo imparcial acerca dos princípios deontológicos da justiça (I). (HABERMAS, 1995, p. 110)54

A bem da verdade, como bem asseverou Araújo, a crítica em torno

da posição original versa sobre noção rawlsiana de sujeito moral que, na ótica

habermasiana, geraria máculas especialmente na definição de bens primários

(ARAÚJO, 1998, p.210).

Além dessa primeira objeção, em relação à qual na sequência nos

debruçaremos como maior vagar e certa profundidade, há duas outras mais.

Habermas questiona, em segundo lugar, o conceito rawlsiano de overlapping

consensus (consenso sobreposto), elemento introduzido por Rawls para conferir

estabilidade à teoria da justiça (GARGARELLA, 2008, p.231). Sucede que para

Habermas:

...Rawls deveria fazer uma nítida separação entre questões de justificação e questões de aceitação, ele parece querer comprar a neutralidade de sua concepção de justiça ao custo de abandonar sua pretensão de validade cognitiva (II). (HABERMAS, 1995, p. 110)55

51 No original: “In a second step, Rawls shows that this conception of justice can expect to meet with agreement under those conditions of a pluralistic society which it itself promotes. Political liberalism, as a reasonable construction that does not raise a claim to truth, is neutral toward conflicting worldviews”. 52 No original: “In a third and final step, Rawls outlines the basic rights and principles of the constitutional state that can be derived from the two principles of justice.” 53 Adverte Habermas: “My critique is a constructive and immanent one” (HABERMAS, 1995, p. 110). 54 No original: “First, I doubt whether every aspect of the original position is designed to clarify and secure the standpoint of impartial judgment of deontological principles of justice (I).” 55 No original: “...Rawls should make a sharper separation between questions of justification and questions of acceptance; he seems to want to purchase the neutrality of his conception of justice at the cost of forsaking its cognitive validity claim (II).”

41

Por derradeiro, a título de terceira objeção, Habermas sustenta que

tais noções acima (aquelas assumidas por Rawls na posição original e no

overlapping consensus) conduzem inexoravelmente à formação de um Estado

constitucional que privilegia direitos fundamentais liberais em detrimento do princípio

democrático de legitimação, beneficia as liberdades dos modernos em detrimento

das liberdades dos antigos56:

Estas duas decisões resultam em uma construção teórica do Estado constitucional que concede primazia dos direitos fundamentais liberais sobre o princípio democrático de legitimação. Rawls, assim, não consegue atingir seu objetivo de trazer as liberdades dos modernos em harmonia com as liberdades dos antigos (III). (HABERMAS, 1995, p. 110)57

Conquanto também não seja objeto da presente monografia, não é

despiciendo anotar que, ao final do Reconciliation..., Habermas destaca a tese de

uma filosofia que opera de modo não construtivo, mas reconstrutivo58, tese esta que,

segundo ele, constitui uma auto-compreensão da filosofia política no âmbito

condições do pensamento pós-metafísico.

Sem mais delongas, pois, vejamos o ponto nuclear da monografia: a

crítica habermasiana acerca da posição original de Rawls.

2.3. A CRÍTICA SOBRE A CONCEPÇÃO DA POSIÇÃO ORIGINAL DE RAWLS

Antes de adentrar nova e diretamente no texto de Habermas,

convém destacar que Gargarella consignou que este filósofo não foi o único

56 Cabe-nos aqui consignar que grande parcela do esforço de Rawls concentrou-se na acomodação entre duas tradições que marcaram o pensamento democrático moderno, a saber: uma vertente que, sobretudo com lastro na doutrina de Locke, valoriza a liberdade dos modernos assim entendidas as liberdades individuais como liberdade de pensamento, de consciência e de propriedade (i); outra que, arrimada especialmente no pensamento de Rosseau, prestigia a liberdades dos antigos, como as liberdades políticas iguais e de participação na vida pública (ii). 57 No original: “These two theoretical decisions result in a construction of the constitutional state that accords liberal basic rights primacy over the democratic principle of legitimation. Rawls thereby fails to achieve his goal of bringing the liberties of the moderns into harmony with the liberties of the ancients (III).” 58 Esse modo reconstrutivo implica que “a filosofia se restrinja ao esclarecimento do processo democrático e do ponto de vista moral, à análise das condições para discursos e negociações racionais” (HABERMAS, 2002, p.89).

42

estudioso que lançou críticas à posição original de Rawls, especialmente críticas

relacionadas às pretensas virtudes da chamada posição original como ferramenta

dita epistêmica, apta a servir à compreensão e tratamento apropriado dos diversos

pontos de vista das demais pessoas (GARGARELLA, 2008, p.99).

Gargarella, então, menciona críticas da parte de Seyla Benhabib

sobre a excessiva restrição individual desse processo reflexivo em detrimento de

uma reflexão moral aberta e coletiva; e de outros críticos, como Susan Moller Okin,

para os quais parece ser negativa a resposta à pergunta, ao indagar se há

razoabilidade em crer que um individuo isolado, por meio de um procedimento auto-

reflexivo, possa representar os diversos pontos de vista encontrados nos demais

(GARGARELLA, 2008, p. 100). Na mesma senda, percorre a crítica de Habermas,

pois o projeto original estaria baseado em escolhas realizadas por “egoístas

racionais” (GARGARELLA, 2008, p. 100).

O ponto central dessa específica crítica habermasiana a Rawls, de

acordo com Gargarella, reside “[n]as concepções ‘monológicas’, que vinculam a

imparcialidade à reflexão individual, e as ‘dialógicas’, que vinculam a imparcialidade

à reflexão coletiva” (GARGARELLA, 2008, p. 100).

Fechado o parêntese, retomemos o exame do texto de Habermas,

para o qual na posição original, tal como é concebida por Rawls, representantes

racionais submetidos a certas restrições decidem questões práticas da justiça com

imparcialidade59. Autonomia plena mesmo fica para aqueles que já vivem sob os

auspícios das instituições próprias de sociedades bem-ordenadas60. Daí que, na

visão de Habermas:

Para a construção da posição original, Rawls divide esse conceito de autonomia política em dois elementos: as características moralmente neutras das partes que procuram vantagens racionais, por um lado, e as restrições situacionais de fundo moral sob o qual as partes escolhem os princípios de um sistema de equitativo de cooperação, por outro. (HABERMAS, 1995, p.111)61

59 No original: “Rawls conceives of the original position as a situation in which rationally choosing representatives of the citizens are subject to the specific constraints that guarantee an impartial judgment of practical questions” (HABERMAS, 1995, p.111). 60 No original: “The concept of full autonomy is reserved for the citizens who already live under the institutions of a well-ordered society” (HABERMAS, 1995, p.111). 61 No original: “For the construction of the original position, Rawls splits this concept of political autonomy into two elements: the morally neutral characteristics of parties who seek

43

A título de características das partes, além de livres e iguais, detêm

elas racionalidade e uma concepção de bem (primário) fornecida a cada uma delas;

no que tange às restrições situacionais, o véu da ignorância: “desconhecendo quais

posições ocuparão na sociedade, vêem-se constrangidos já por seu próprio

interesse a refletir sobre o que é igualmente bom para todos” (HABERMAS, 1995, p.

111)62.

Explica Habermas que da pretensão de Rawls consistente em

apresentar uma teoria da justiça como parte de uma teoria geral da escolha racional

decorre o enquadramento razoável da liberdade de escolha dos participantes da

posição original:

Essa construção de uma posição original que enquadra a liberdade de escolha de atores racionais em uma forma razoável é explicada pela intenção inicial de Rawls de representar a teoria da justiça como parte da teoria geral da escolha. (HABERMAS, 1995, p. 111)63

Esse enquadramento levado a efeito por Rawls visaria, conforme

acentua Habermas, limitar as opções das partes racionais na escolha de princípios

da justiça a alcançando a imparcialidade a partir de próprio auto-interesse

esclarecido:

Rawls em princípio partiu do pressuposto de que o leque de opções para a escolha racional das partes seria limitado de forma adequada, a fim de facilitar a derivação de princípios de justiça de seu auto-interesse esclarecido. (HABERMAS, 1995, p. 111)64

Sucede que, segundo Habermas, Rawls logo se viu forçado a

reconhecer que a razão de cidadãos autônomos pode não coincidir com escolhas

racionais decorrentes de preferências subjetivas65. Daí que, mesmo revisado o

their rational advantage, on the one hand, and the morally substantive situational constraints under which those parties choose principles for a system of fair cooperation, on the other.” 62 No original: “Because the latter do not know which positions they will occupy in the society that it is their task to order, they find themselves constrained already by their self-interest to reflect on what is equally good for all”. 63 No original: “This construction of an original position that frames the freedom of choice of rational actors in a reasonable fashion is explained by Rawls's initial intention of representing the theory of justice as part of the general theory of choice.” 64 No original: “Rawls originally proceeded on the assumption that the range of options open to rationally choosing parties only needed to be limited in an appropriate fashion in order to facilitate the derivation of principles of justice from their enlightened self-interest.” 65 No original: “But he soon realized that the reason of autonomous citizens cannot be reduced to rational choice conditioned by subjective preferences” (HABERMAS, 1995, p. 112).

44

objetivo da posição inicial, ainda assim Rawls manteve-se firme na assertiva de que

o sentido moral pode ser apurado dessa forma66, o que, para Habermas, constitui

equívoco pelos menos por três motivos, a saber: [a]As partes na posição original

podem compreender os interesses de ordem mais alta de cidadãos autônomos

apenas com base no egoísmo racional?67; [b]Direitos fundamentais podem ser

equiparados a bens primários?68; e por fim [c]O véu da ignorância seria apto o

bastante para garantir um julgamento imparcial?69

Aqui chegados, verifica-se que a crítica habermasiana quanto à

posição original está devidamente apurada. Doravante, analisar-se-ão uma-a-uma

as nodais indagações levantadas por Habermas.

2.3.1. O problema da full autonomy

A primeira das três questões debuxadas anteriormente versou sobre

a incapacidade de as partes na posição original compreender os interesses de

ordem mais alta de cidadãos autônomos apenas com base no egoísmo racional (os

participantes da posição original sequer interesses uns pelos outros possuem;

comportam-se como jogadores que aspiram a uma pontuação tão mais alta quanto

lhes seja possível70).

Por primeiro, Habermas sustenta que cidadãos plenamente

autônomos não estão representados por seres não dotados da mesma autonomia71.

Relevante (e muito) que é, essa assertiva desvela a ponderada noção de Habermas

de acordo com a qual, se cidadãos autônomos, na condição de pessoas morais,

66 No original: “Yet even after the revision of the initial goal that the original position was designed to achieve, he has held to the view that the meaning of the moral point of view can be operationalized in this way” (HABERMAS, 1995, p. 112). 67 No original: “Can the parties in the original position comprehend the highest-order interests of their clients solely on the basis of rational egoism?” (HABERMAS, 1995, p. 112). 68 No original: “Can basic rights be assimilated to primary goods?” (HABERMAS, 1995, p. 112). 69 No original: “Does the veil of ignorance guarantee the impartiality of judgment?” (HABERMAS, 1995, p. 112). 70 No original: “they take no interest in one another, conducting themselves like players who ‘strive for as high an absolute score as possible’” (HABERMAS, 1995, p. 113). 71 No original: “Rawls cannot consistently stand by the decision that ‘fully’ autonomous citizens are to be represented by parties who lack this autonomy” (HABERMAS, 1995, p. 112).

45

possuem senso de justiça(i) e estão aptos a desenvolver uma concepção peculiar de

bem(ii), assim como têm interesse em cultivar tais noções de modo racional(iii)72; o

mesmo não se pode dizer daqueles componentes da posição original, aos quais, em

substituição a tais propriedades inerentes a cidadãos autônomos, aplicam-se as

restrições circunstanciais do projeto rawlsiano73.

Ao tempo que isso se dá, às partes da posição original, despidas de

tais propriedades, impõe-se o ofício de descortinar, compreendendo, os mais altos

interesses (highest-order interests) dos cidadãos autônomos, interesses elevados

estes que derivam justamente daquelas propriedades indisponíveis aos participantes

da posição original. Esse paradoxo é exposto por Habermas desta forma:

Simultaneamente, no entanto, as partes da posição original devem ser capazes de compreender e ter devidamente em conta os ‘interesses de ordem superior’ dos cidadãos que resultam em grande parte dessas características. (HABERMAS, 1995, p. 112)74

Com efeito, o problema reside no fato de que as partes da posição

original levarão em conta possibilidades morais abertas aos cidadãos plenamente

autônomos, porém proscritas a eles próprios como, exemplifica Habermas, respeitar

o outro com base em princípios justos e não apenas no auto-interesse; agir com

lealdade; ter convicção acerca de mecanismos existentes e políticas por meio do uso

público de sua razão75. Noutros dizeres, exige-se das partes da posição original

entender e compreender implicações e conseqüências de algo que lhes é vedado: a

plena autonomia (HABERMAS, 1995, p. 112)76.

Para Habermas, ainda que se admita a coincidência de interesses

72 No original: “Citizens are assumed to be moral persons who possess a sense of justice and the capacity for their own conception of the good, as well as an interest in cultivating these dispositions in a rational manner” (HABERMAS, 1995, p. 112). 73 No original: “But in the case of the parties in the original position, these reasonable characteristics of moral persons are replaced by the constraints of a rational design” (HABERMAS, 1995, p. 112). 74 No original: “At the same time, however, the parties are supposed to be able to understand and take adequate account of the ‘highest-order interests’ of the citizens that follow from these very characteristics.” 75 No original: “For example, they must take account of the fact that autonomous citizens respect the interests of others on the basis of just principles and not only from self-interest, that they can be obligated to loyalty, that they want to be convinced of the legitimacy of existing arrangements and policies through the public use of their reason, and so forth.” (HABERMAS, 1995, p. 112). 76 No original: “Thus, the parties are supposed both to understand and to take seriously the implications and consequences of an autonomy that they themselves are denied.”

46

desconhecidos em detalhe, a perspectiva das partes da posição original, egoístas

racionais, não coincide com a de seus representados, cidadãos plenamente

autônomos no campo moral, pois na visão habermasiana as partes da posição

original seriam incapazes, dentro do círculo estabelecido pelo próprio “egoísmo

racional”, de vislumbrar em pé de igualdade em relação aos cidadãos que

representam a orientação justa para alcance daquilo que é igualmente bom a

todos77.

Noutras palavras, é claro, na visão de Habermas, que a similitude do

significado da justiça entre representantes e representados resta prejudicado diante

da perspectiva do egoísmo racional. Para Habermas, as partes da posição original,

na posição de representantes de cidadãos autônomos, têm de estar munidos de

competências cognitivas muito além daquelas a eles garantidas pela teoria da

escolha racional:

Mas se, apesar disso, as partes têm de compreender o significado dos princípios deontológicos da justiça que estão procurando e também ter em conta os interesses dos destinatários destes mesmos princípios (cidadãos autônomos), elas devem estar equipadas com competências cognitivas que se estendem para muito além das capacidades suficientes para a escolha racional de partes cegas para as questões da justiça. (HABERMAS, 1995, p. 113)78

Habermas consigna, como que sugerindo, a possibilidade de Rawls

rever essa configuração da posição original, ampliando o conhecimento das partes

na posição original, porém, como afirma Habermas, quanto maior se amplia tal

conhecimento para além do egoísmo racional tanto mais o projeto rawlsiano afasta-

se da meta de apresentar um método imparcial, apartado do egocentrismo humano,

77 A propósito, escreveu Habermas: “De qualquer forma, as partes da posição original são incapazes de alcançar, dentro dos limites estabelecidos pelo seu egoísmo racional, a perspectiva de reciprocidade com os cidadãos que representam quando estes se orientaram de forma justa em direção àquilo que é igualmente bom para todos: ‘na sua deliberações racionais as partes ... não reconhecem nenhum ponto de vista externo ao seu próprio ponto de vista como representantes racionais’(PL 73).” (HABERMAS, 1995, p. 112). No original: “At any rate, the parties are incapable of achieving, within the bounds set by their rational egoism, the reciprocal perspective taking that the citizens they represent must undertake when they orient themselves in a just manner to what is equally good for all: ‘in their rational deliberations the parties...recognize no standpoint external to their own point of view as rational representatives’ (PL 73).” 78 No original: “But if, despite this, the parties are to understand the meaning of the deontological principles they are seeking and to take sufficient account of their clients’ interests in justice, they must be equipped with cognitive competences that extend further than the capacities sufficient for rationally choosing actors who are blind to issues of justice.”

47

para estabelecer princípios da justiça. Vejamos as palavras de Habermas:

A minha única questão é saber se, em sendo estendido nesse sentido, o projeto descaracteriza-se, porquanto se torna muito distante daquele modelo original. Pois logo que as partes da posição original passam a avançar para fora dos limites de seu egoísmo racional e assumem, embora remotamente, uma semelhança maior com as pessoas morais, destrói-se a divisão do trabalho entre a racionalidade da escolha subjetiva e restrições objetivas; divisão esta justamente por meio da qual as partes auto-interessadas chegariam a decisões morais. (HABERMAS, 1995, p. 113)79

Em síntese, o ponto é que, quisesse reparar a posição original para

superar as críticas contra a insuficiência do egoísmo racional na escolha de

princípios que a sério atendam aos interesses de cidadãos plenamente autônomos,

Rawls provocaria, ipso facto, a descaracterização da mesma posição original, na

qual é a partir das restrições que os representantes racionais decidem questões

práticas da justiça com imparcialidade.

2.3.2. Direitos básicos e bens primários

O próximo motivo de questionamento do Habermas recai sobre a

indagação: “Direitos fundamentais podem ser equiparados a bens primários?” Na

visão crítica de Habermas, também constitui corolário da posição original a

generalização do conceito teleológico de bens básicos (primários). É que na

perspectiva dos participantes da posição original a resolução de “questões

normativas de qualquer espécie pode ser representada apenas em termos de

interesses ou valores que sejam satisfeitas por bens” (HABERMAS, 1995, p. 113)80.

Se bens constituem aquilo que almejamos porque nos é bom81, bens

primários, para Rawls, serão aqueles por meio dos quais cidadãos autônomos

79 No original: “My only question is whether, in being extended in this direction, the design loses its point by becoming too far removed from the original model. For as soon as the parties step outside the boundaries of their rational egoism and assume even a distant likeness to moral persons, the division of labor between the rationality of choice of subjects and appropriate objective constraints is destroyed, a division through which self-interested agents are nonetheless supposed to achieve morally sound decisions.” 80 No original: “...normative issues of whatever kind can be represented solely in terms of interests or values that are satisfied by goods”. 81 No original: “Goods are what we strive for-indeed, what is good for us” (HABERMAS, 1995, p. 114).

48

realizam seus projetos de vida82.

Na posição original, segundo Habermas, os participantes

consideram os direitos como uma classe de bens:

Embora as partes da posição original saibam que alguns desses bens primários assumem a forma de direitos para os cidadãos de uma sociedade bem-ordenada, na posição original podem descrever os direitos como uma categoria de ‘bens’, entre outros. (HABERMAS, 1995, p. 114)83

Consectário disso é que na posição original a questão dos princípios

da justiça resume-se num problema de divisão de bens primários84. As restrições na

posição original, segundo Habermas, determinam a consideração de certos direitos

básicos - como as liberdades básicas – na condição de bens primários85. Habermas

afirma que nesse ponto - ao aproximar o conceito de justiça a uma ética do bem,

própria do aristotelismo ou utilitarismo -, Rawls entra em contradição com sua ética

de direitos que parte do conceito de autonomia:

Admitindo isso, Rawls adota um conceito de justiça que é próprio de uma ética do bem, que é mais consistente com as abordagens utilitarista ou aristotélica do que com uma teoria dos direitos, tais como a sua própria, que procede a partir do conceito de autonomia. Precisamente porque Rawls adere a uma concepção de justiça em que a autonomia dos cidadãos é constituída por meio de direitos, o paradigma da distribuição gera dificuldades para ele. (HABERMAS, 1995, p. 114)86

Em resumo, tratar direitos como mercadorias, como admite Rawls

que as partes da posição original o façam, para Habermas, implica renunciar ao

sentido deontológico em prol de outro teleológico: “Direitos são ‘desfrutados’ quando

82 No original: “Correspondingly, Rawls introduces ‘primary goods’ as generalized means that people may need in order to realize their plans of life” (HABERMAS, 1995, p. 114). 83 No original: “Although the parties know that some of these primary goods assume the form of rights for citizens of a well-ordered society, in the original position they themselves can only describe rights as one category of ‘goods’ among others.” 84 No original: “For them, the issue of principles of justice can only arise in the guise of the question of the just distribution of primary goods” (HABERMAS, 1995, p. 114). 85 No original: “If I am correct, the conceptual constraints of the model of rational choice preclude Rawls from construing basic liberties from the outset as basic rights and compel him to interpret them as primary goods” (HABERMAS, 1995, p. 114). 86 No original: “Rawls thereby adopts a concept of justice that is proper to an ethics of the good, one that is more consistent with Aristotelian or utilitarian approaches than with a theory of rights, such as his own, that proceeds from the concept of autonomy. Precisely because Rawls adheres to a conception of justice on which the autonomy of citizens is constituted through rights, the paradigm of distribution generates difficulties for him.”

49

exercidos. Eles não podem ser equiparados a mercadorias de distribuição sem

perder o seu sentido deontológico.” (HABERMAS, 1995, p. 114)87. Direitos regulam

relações entre pessoas, não podem ser possuídos como coisas88.

Isso, para Habermas, leva Ralws “a assimilar o sentido deontológico

de normas obrigatórias para o sentido teleológico de valores preferenciais”89. Mas

que isso acarretaria na teoria de Rawls? Habermas apressa-se em demonstrar que

as confusões geradas limitam-lhe as opções no desenvolvimento de seu projeto90.

A primeira imprecisão observada por Habermas estabelece-se

justamente entre normas e valores. As primeiras determinam condutas obrigatórias

sem exceção e igualmente; os segundos apontam condutas preferíveis,

recomendáveis91. Valores expressam os bens desejáveis para determinados grupos

sociais92.

Normas realizam-se pelo cumprimento da conduta imposta por ela;

valores por atos tendentes a um fim. Para Habermas se é certo que normas são

veículo de promoção do cumprimento de expectativas gerais de comportamento; não

é menos escorreito que valores e bens podem ser realizados e/ou adquiridos através

de ações intencionais (HABERMAS, 1995, p. 114)93.

Da constatação acima fica evidente o viés teleológico dantes

apontado na concepção original. Prossegue Habermas, ainda, na relevante distinção

entre normas e valores, que segue em exame progressivamente cada vez mais

apurado. Alerta ele para o fato de que normas valem ou não valem; enquanto aos

valores, ao revés, não se aplica essa validade binária, visto que é possível a

87 No original: “Rights can be ‘enjoyed’ only by being exercised. They cannot be assimilated to distributive goods without forfeiting their deontological meaning.” 88 No original: “...rights in the first instance regulate relations between actors: they cannot be ‘possessed’ like things” (HABERMAS, 1995, p. 114). 89 No original: “This leads him to assimilate the deontological meaning of obligatory norms to the teleological meaning of preferred values” (HABERMAS, 1995, p. 114). 90 No original: “Rawls thereby blurs certain distinctions that I shall briefly mention in order to show how this limits his options in the further development of his project” (HABERMAS, 1995, p. 114). 91 No original: “Norms inform decisions as to what one ought to do, values inform decisions as to what conduct is most desirable” (HABERMAS, 1995, p. 114). 92 No original: “...values express the preferability of goods that are striven for by particular groups” (HABERMAS, 1995, p. 114). 93 No original: ‘Whereas norms are observed in the sense of a fulfillment of generalized behavioral expectations, values or goods can be realized or acquired only by purposive action.”

50

coexistência de valores mais ou menos atrativos uns dos outros. Com efeito, ao

passo que normas valem ou não valem, valores são mais ou menos atrativos,

ficando cá destacada a relação de preferência vigente entre eles. Convém ouvir a

voz de Habermas:

Além disso, as normas de levantar uma pretensão de validade binária em virtude da qual se diz ser válida ou inválida: deve a declarações, como às declarações assertivas, só podemos responder com ‘sim’ou ‘não’ - ou abster-se de julgamento. Valores, pelo contrário, estabelecem relações de preferência que significa que determinados bens são mais atrativos do que outros: por isso, podemos concordar com enunciados valorativos a uma maior ou menor grau. (HABERMAS, 1995, p. 114)94

Quer Habermas significar, sobremais, que há diversos graus de

satisfação dos valores95, algo não presente quando se tem em mente normas,

cumprimo-las ou não sem que se possa estabelecer graus de cumprimento: “A força

obrigatória das normas tem um sentido absoluto de um direito universal e

incondicional: o que devemos fazer é aquilo igualmente bom para todos (isto é, para

todos os destinatários)” (HABERMAS, 1995, p. 115)96. Por seu turno, a relação de

preferência entre os valores reflete uma avaliação à vista do que se estabeleceu em

determinadas culturas ou outras formas de vida adotada por grupos específicos;

expressa, pois, o que é igualmente bom ou o que pode ser considerado interesses

de ordem superior (highest-order interests) não para todos, mas sim para aquela

determinada cultura ou aquele grupo específico97.

94 No original: “Furthermore, norms raise a binary validity claim in virtue of which they are said to be either valid or invalid: to ought statements, as to assertoric statements, we can respond only with ‘yes’ or ‘no’- or refrain from judgment. Values, by contrast, fix relations of preference that signify that certain goods are more attractive than others: hence, we can assent to evaluative statements to a greater or lesser degree.” 95 Não se entremostra despropositado estabelecer um paralelo entre a concepção de normas e valores aqui trazida à baila por Habermas e a de regras e princípios constante na obra Teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy. Para um resumido estudo sobre a concepção alexyana de distinção entre regras e princípios como espécies de normas, cf. CACHICHI, 2009, Anexo A - A distinção entre princípios e regras como espécies de normas na obra teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy. 96 No original: “The obligatory force of norms has the absolute meaning of an unconditional and universal duty: what one ought to do is what is equally good for all (that is, for all addressees).” 97 No original: “The attractiveness of values reflects an evaluation and a transitive ordering of goods that has become established in particular cultures or has been adopted by particular groups: important evaluative decisions or higher-order preferences express what is good for us (or for me), all things considered” (HABERMAS, 1995, p. 115).

51

Por fim, destaca Habermas que normas não devem se contradizer

mutuamente perante os mesmos destinatários, devem formar um sistema coerente;

diversamente valores contrários convivem na mesma comunidade de acordo com a

maior ou menor preferência que lhes é atribuída intersubjetivamente pela cultura ou

grupo no qual estão inseridos98.

Em suma, pois, normas e valores diferenciam-se por diversos

aspectos relevantes: [1]normas valem ou não valem; valores são ou não mais

atraentes de acordo com as preferências de grupos de pessoas; [2]normas exigem o

cumprimento da conduta prescrita; valores admitem satisfação em diferentes graus;

[3]normas valem sem exceção para todos os seus destinatários; valores valem mais

ou menos conforme o grupo específico ou determinada cultura; [4]não se admitem

normas conflitantes com os mesmos destinatários; admitem-se valores conflitantes

nesses casos, cabendo à comunidade atribuir-lhes intersubjetivamente as devidas

relações de preferência. Habermas também vindicou uma síntese. Ei-la:

Em suma, as normas diferem dos valores, em primeiro lugar, por sua relação com um tipo diverso de ação: normas dirigem-se por regras; valores por fins; em segundo, pela sua pretensão de validez, binária (normas) ou gradual (valores); em terceiro, pelo comando absoluto (normas) ou relativo (valores); e, em quarto, pelos critérios de coerência que normas e valores devem satisfazer. (HABERMAS, 1995, p.115)99

Por outro lado, de acordo com Habermas, a prioridade léxica do

primeiro da igualdade sobre o segundo princípio decorre da tentativa de Rawls em

compensar o desnivelamento deontológico proporcionado pela questão dos bens

primários100. Sucede que, à vista da perspectiva do egoísmo racional (perspectiva da

1ª pessoa, do eu) não se sustenta para Habermas nenhuma prioridade absoluta das

98 No original: “Finally, different norms must not contradict each other when they claim validity for the same domain of addressees; they must stand in coherent relations to one another-in other words, they must constitute a system. Different values, by contrast, compete for priority; insofar as they meet with intersubjective recognition within a culture or group, they constitute shifting configurations fraught with tension” (HABERMAS, 1995, p. 115). 99 No original: “To sum up, norms differ from values, first, in their relation to rule-governed as opposed to purposive action; second, in a binary as opposed to a gradual coding of the respective validity claims; third, in their absolute as opposed to relative bindingness; and, last, in the criteria that systems of norms as opposed to systems of values must satisfy.” 100 No original: “Nevertheless, Rawls wishes to do justice to the deontological intuition that finds expression in these distinctions; hence, he must compensate for the leveling of the deontological dimension which he - as a consequence of the design of the original position - initially accepts with the concept of primary goods. So he accords the first principle priority over the second” (HABERMAS, 1995, p. 115).

52

iguais liberdades subjetivas de ação sobre bens primários equacionados pelo

segundo princípio101.

Para Habermas é curioso que Rawls, a fito de superar essa crítica,

tenha introduzido uma posterior qualificação aos bens primários para lhes assegurar

uma vinculação com as liberdades básicas, reconhecendo-os como direitos básicos.

Fê-lo da seguinte forma: Rawls reconheceu como bens primários apenas aqueles

por meio dos quais pessoas livres e iguais realizam seus projetos de vida102.

Ademais, Rawls culmina por distinguir bens primários que são constitutivas do

quadro institucional da sociedade bem-ordenada no sentido moral do restante dos

bens primários103. No entanto, ao fazê-lo, Rawls incide em contradição, porque, pela

ótica de Habermas, essa qualificação adicional traz à guisa de pressuposto uma

diferença ontológica entre bens e direitos não antevista na consideração prima facie

dos direitos como bens. Di-lo Habermas:

Esta determinação adicional, no entanto, tacitamente pressupõe uma distinção deontológica entre direitos e bens que contradiz a classificação prima facie dos direitos como bens. (HABERMAS, 1995, p. 116)104.

Afora isso, impede destacar, ainda, que apenas em relação ao

direitos, não quanto a bens, pode-se distinguir o plano da aquisição do plano do

exercício. Habermas exprime essa ideia verberando:

Apenas no caso de direitos podemos distinguir entre a competência legal e as oportunidades reais de escolher e de agir. Somente entre os direitos, por um lado, e as oportunidades fáticas de seu exercício, por outro lado, pode existir um espaço problemático do ponto de vista da justiça, ruptura de tal não pode existir entre a posse e o usufruto dos bens. (HABERMAS, 1995, p. 116)105

101 No original: “An absolute priority of equal liberties over the primary goods regulated by the second principle is, however, difficult to justify from the first person perspective in which we orient ourselves to our own interests or values” (HABERMAS, 1995, p. 115). 102 No original: “...he acknowledges as primary goods only those which are expedient for the life plans and the development of the moral faculties of citizens as free and equal persons” (HABERMAS, 1995, p. 115). 103 No original: “Rawls differentiates the primary goods that are constitutive of the institutional framework of the well-ordered society in the moral sense from the remainder of the primary goods by incorporating the guarantee of the ‘fair value’ of liberty into the first principie” (HABERMAS, 1995, p. 115). 104 No original: “This additional determination, however, tacitly presupposes a deontological distinction between rights and goods which contradicts the prima facie classification of rights as goods.” 105 No original: “Only in the case of rights can we distinguish between legal competence and

53

Até mesmo porque nem mesmo por fundamentos gramaticais faria

sentido falar a respeito de igualdade jurídica e igualdade fática em relação a bens,

mas apenas e tão-somente quanto aos direitos. Habermas baseia-se em

Wittgenstein:

A distinção entre a igualdade jurídica e de facto não tem aplicação a ‘bens’ por razões gramaticais, para colocá-lo em termos wittgensteinianos. (HABERMAS, 1995, p. 116)106

De qualquer forma, ainda que obtivesse cabal êxito Rawls na

superação posterior do problema gerado pela consideração de direitos como bens,

mesmo assim, remanesce questionável a posição original na qual se instalou o

problema pela a falta desse discrímen. Bem observou Habermas:

Mas se a noção de bens primários está sujeita à correção em uma segunda etapa, podemos perguntar se o primeiro passo - a concepção da posição original, que exige esta concepção - foi um sábia. (HABERMAS, 1995, p. 116)107

Delineadas dois dos três pontos esgrimidos por Habermas, resta-

nos, doravante, reconstruir o terceiro, que faremos a seguir.

2.3.3. O véu da ignorância

A partir dos itens anteriores, Habermas acredita que restaram bem

expostas as críticas especialmente no que tange à incapacidade das decisões

racionais dos participantes da posição inicial levar a sério os interesses de ordem

superior (highest-order interests) dos cidadãos autônomos, bem como as

dificuldades que a não discriminação entre direitos básicos e bens primários acarreta

em prejuízo do projeto rawlsiano. Prossegue então Habermas a indagar: “Por que os

participantes da posição original, privados da razão prática, ainda estão cobertos

the actual opportunities to choose and to act. Only between rights, on the one side, and actual chances to exercise rights, on the other, can there exist a chasm that is problematic from the perspective of justice; such a rupture cannot exist between the possession and enjoyment of goods.” 106 No original: “The distinction between legal and factual equality has no application to ‘goods’ for grammatical reasons, to put it in Wittgensteinian terms.” 107 No original: “But if the notion of primary goods is subject to correction in a second step, we may ask whether the first step - the design of the original position that necessitates this conception - was a wise one.”

54

pelo véu da ignorância?”108

De acordo com Habermas, o véu da ignorância faz parte de um

procedimento intersubjetivo de substituição do imperativo categórico (IC) kantiano:

A intuição de Rawls é clara: o papel do imperativo categórico é assumido por um procedimento aplicado intersubjetivamente formado por condições de participação, tais como a igualdade entre as partes, e características situacionais, tais como o véu da ignorância. (HABERMAS, 1995, p. 116, itálicos meus)109

Novamente para Habermas o ponto fraco da posição original reside

na sistemática falta de informação, o que poderia ser evitado se Rawls “mantivesse

a concepção procedimental da razão prática livre de conotação substantiva,

desenvolvendo-o em uma forma estritamente processual” (HABERMAS, 1995, p.

116).110

Explica Habermas que Kant superou o egocentrismo da “regra de

ouro” (não faças ao outro o que não queres seja feito a ti111) por meio do imperativo

categórico. A propósito, em nota de rodapé, Kant consignou acerca da terceira

formulação do imperativo categórico112, deixando claro seu pensamento de não a

108 No original: “why then are the parties deprived of practical reason in the first place and shrouded in an impenetrable veil of ignorance?” (HABERMAS, 1995, p. 116). 109 No original: “Rawls's guiding intuition is clear: the role of the categorical imperative is taken over by an intersubjectively applied procedure which is embodied in participation conditions, such as the equality of parties, and in situational features, such as the veil of ignorance.” 110 Destaco nesta nota o trecho mais completo do texto a fim de permitir ao leitor, certificando-se da fidedignidade de minha exegese, o contato com a ideia completa tal como redigida por Habermas, que diz: “Esta terceira questão [refere-se àquela sobre a utilidade do véu da ignorância: “why then are the parties deprived of practical reason in the first place and shrouded in an impenetrable veil of ignorance?”] revela a perspectiva de que eu também colocava as duas perguntas anteriores: acredito que Rawls pode evitar as dificuldades associadas com o desenho de uma posição original se operacionalizá-la do ponto de vista moral de uma forma diferente, ou seja, se mantivesse a concepção procedimental da razão prática livre de conotação substantiva, desenvolvendo-o em uma forma estritamente processual.” (HABERMAS, 1995, p. 116, itálicos meus, esclareci entre colchetes) No original: “This third question reveals the perspective from which I also posed the two previous questions: I believe that Rawls could avoid the difficulties associated with the design of an original position if he operationalized the moral point of view in a different way, namely, if he kept the procedural conception of practical reason free of substantive connotations by developing it in a strictly procedural manner.” 111 Em Mateus 7:12 consta: “A regra de ouro – Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas” (BÍBLIA, 1985, p.1850). 112 Eis a formulação: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca

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reduzir à regra de ouro:

Não vá pensar-se que aqui o trivial: quod tibi non vis fieri etc., possa servir de diretriz ou princípio. Pois este preceito, posto que com várias restrições, só pode derivar daquele; não pode ser uma lei universal, visto não conter o princípio dos deveres para consigo mesmo, nem o dos deveres de caridade para com os outros (porque muitos renunciariam de bom grado a que os outros lhes fizessem bem se isso os dispensasse de eles fazerem bem aos outros), nem mesmo finalmente o princípio dos deveres mútuos; porque o criminoso poderia por esta razão argumentar contra os juízes que o punem, etc. (KANT, 1988, p.71)

Para Habermas, se o teste de universalização da regra de ouro pode

ser realizado apenas da perspectiva de um único indivíduo, o teste do IC exige mais:

“que todos os possíveis afetados de uma máxima justa tenham de pretendê-la

universal” (HABERMAS, 1995, p. 117)113. Porém, destaca Habermas, a aplicação do

teste mais exigente do IC de forma monológica é inadequada, porque as

perspectivas individuais isoladas restam mantidas114.

Noutra obra, registrou Habermas: “Como Kant, Rawls operacionaliza

de tal maneira o ponto de vista da imparcialidade que cada indivíduo possa

empreender por si só a tentativa de justificar normas básicas” (HABERMAS, 2003,

p.87). O participante da posição original não colabora com argumentos ao discurso,

mas emite juízos como resultado da teoria da justiça como equidade:

...Rawls entende a parte material de sua própria investigação, por exemplo o desenvolvimento do princípio do benefício médio, não como uma contribuição de um participante da argumentação para a formação discursiva da vontade acerca das instituições básicas de uma sociedade capitalista avançada, mas justamente como resultado de uma ‘teoria da justiça’ para a qual ele tem uma competência a título de especialista. (HABERMAS, 2003, p.87)

Diante das condições hodiernas de pluralismo social e de visão do

mundo, entremostra-se inviável pensar em um auto-conhecimento tal que refletisse

simplesmente como meio” (KANT, 1988, p.69). Observo que algumas traduções em substituição ao termo “nunca”, usam a expressão “não apenas”. 113 No original: “Whereas this rule [the Golden Rule] calls for a universalization test from the viewpoint of a given individual, the categorical imperative requires that all those possibly affected be able to will a just maxim as a general rule.” (esclareci entre colchetes) 114 No original: “But as long as we apply this more exacting test in a monological fashion, it still remains individually isolated perspectives from which each of us considers privately what all could will. This is inadequate” (HABERMAS, 1995, p. 117).

56

de fato uma consciência transcendental (HABERMAS, 1995, p. 117)115. Defende

Habermas uma nova leitura do IC. Ei-lo reformulado:

‘Ao invés de prescrever a todos os demais como válida uma máxima que eu quero que seja uma lei universal, tenho que apresentar minha máxima a todos os demais para o exame discursivo de sua pretensão de universalidade. O peso desloca-se daquilo que cada (indivíduo) pode querer sem contradição com a lei universal para aquilo que todos querem de comum acordo reconhecer como norma universal’. (HABERMAS, 2003, p. 88)

Em contraposição, é ponto fundamental sublinhar que Rawls, ao

impor por meio de sistemáticas restrições de informação uma perspectiva comum às

partes na posição original, culmina, de acordo com a crítica de Habermas, por

neutralizar, desde a raiz, a multiplicidade de perspectivas de interpretação particular

(HABERMAS, 1995, p. 117)116.

Com efeito, da regra de ouro, Kant chegou a uma das formulações

do imperativo categórico por meio da ideia de generalização, imperativo esse que

“pede que todos os possivelmente envolvidas devam poder querer uma máxima

justa com lei geral” (HABERMAS, 2002, p.70). Agora, diante da gama de

concepções de mundo proporcionadas pelo pluralismo social contemporâneo, a

adaptação da ideia do princípio kantiano de maximização do campo monológico

para a seara dialógica faz-se imperiosa. Essa adaptação, inclusive, pode ser feita de

mais de uma forma. Habermas verberou: “Nas condições do moderno pluralismo

social e ideológico, ninguém mais poderá partir desse pressuposto117. Se quisermos

salvar a intuição do princípio kantiano de universalização, poderemos realgir a esse

fato do pluralismo de diferentes maneiras” (HABERMAS, 2002, p.71). Exemplos

disso são as próprias doutrinas de Rawls e de Habermas. De notar uma sequência

claramente observável: da regra de ouro ao imperativo categório com Kant, do

imperativo categórico à posição original com Rawls e à situação ideal de fala com

Habermas.

115 No original: “For only when the self-understanding of each individual reflects a transcendental consciousness, that is, a universally valid view of the world, would what from my point of view is equally good for all actually be in the equal interest of each individual. But this can no longer be assumed under conditions of social and ideological pluralism.” 116 No original: “Rawls imposes a common perspective on the parties in the original position through informational constraints and thereby neutralizes the multiplicity of particular interpretive perspectives from the outset.” 117 Habermas refere-se ao pressuposto kantiano da consciência transcendente, ou seja, de uma compreensão de mundo universalmente válida (HABERMAS, 2005, p.71).

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De fato, Rawls, por seu turno, ao limitar a informação das partes na

posição original, fixa-as “numa perspectiva comum e neutraliza assim de antemão,

mediante um artifício, a multiplicidade das perspectivas particulares de interpretação”

(HABERMAS, 2003, p. 71).

Habermas, em oposição, na ética discursiva objetiva realçar o

pluralismo (e não o neutralizar): “A ética do discurso, pelo contrário, vê o ponto de

vista moral consagrado numa prática (num procedimento) intersubjetiva(o) de

argumentação, que encarrega os envolvidos de um alargamento idealizante de suas

perspectivas de interpretação” (HABERMAS, 1995, p. 117)118.

Essa compreensão do ponto de vista moral pela ética discursiva

decorre da intuição de que a universalização dá-se em um processo de “assunção

do papel ideal” em conjunto119. A dinâmica é estabelecida assim: submetidos aos

pressupostos pragmáticos de um discurso racional inclusivo e sem coerção entre os

participantes livres e iguais, todos devem levar em consideração as perspectivas dos

outros. Com isso, projetados no entendimento de si e dos outros, chegam a uma

perspectiva ideal ampliada. Segundo Habermas:

Sob os pressupostos comunicacionais de um discurso não-coativo, preocupado em inserir e conduzido entre participantes livre e iguais, cada um é exortado a assumir a perspectiva – e com isso a autocompreensão e compreensão de mundo – de todos os outros; desse cruzamento de perspectivas em primeira pessoa do plural (‘nossa’) idealmente ampliada, a partir da qual todos podem testar em conjunto se querem fazer de uma norma discutível a base de sua práxis; isso precisa incluir uma crítica recíproca à adequação das interpretações da situação e das carências. (HABERMAS, 2002, p.71)120.

118 No original: “Discourse ethics, by contrast, views the moral point of view as embodied in an intersubjective practice of argumentation which enjoins those involved to an idealizing enlargement of their interpretive perspectives.” 119 No original: ” Discourse ethics rests on the intuition that the application of the principle of universalization, properly understood, calls for a joint process of ‘ideal role taking’” (HABERMAS, 1995, p. 117). 120 O fragmento transcrito foi extraída da tradução brasileira da obra A inclusão do outro : estudos de teoria política, de autoria de Habermas, na qual consta a íntegra da crítica deste filósofo a Rawls. No original, consta: “Under the pragmatic presuppositions of an inclusive and noncoercive rational discourse among free and equal participants, everyone is required to take the perspective of everyone else, and thus project herself into the understandings of self and world of all others; from this interlocking of perspectives there emerges an ideally extended we-perspective from which all can test in common whether they wish to make a controversial norm the basis of their shared practice; and this should include mutual criticism of the appropriateness of the languages in terms of which situations and needs are

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Passo a passo então interesses genuinamente generalizáveis

emergirão121.

Retomando a crítica à posição original, Habermas diz que nela as

coisas funcionam de modo diverso. As restrições impostas pelo véu da ignorância

impedem que as partes da posição original elejam princípios da justiça similares aos

que seriam escolhidos por cidadãos autônomos ainda que com divergentes

concepções de mundo e de si próprios122. Para Habermas, “com esta abstração

inicial Rawls aceita um duplo teste” (HABERMAS, 1995, p. 118)123: simultaneamente

ao teste da abrangência de todos os pontos de vista e interesses particulares que

possam comprometer um julgamento imparcial(i), o véu da ignorância deverá incidir

apenas sobre aquilo que claramente não constitui o bem comum aceito por cidadãos

livres e iguais(ii). O segundo teste(ii), ligado ao conteúdo normativo do véu, impõe de

antemão que conceitos normativos como o de cidadão politicamente autônomo,

cooperação equitativa, sociedade bem-ordenada estejam disponíveis e não se

sujeitem a revisões futuras. Isso implica conforme Habermas que “o próprio teórico

teria que arcar com o ônus de antecipar pelo menos parte das informações de que

ele já aliviou as partes na posição original!” (HABERMAS, 1995, p. 118)124. A

inclusão de tais conceitos normativos é criticada por Habermas, pois para este a

ética discursiva arrimada na teoria pragmática da argumentação e no uso público da

razão dispensaria o emprego de conceitos substantivos utilizados por Rawls na

construção da posição original. Nas palavras de Habermas:

Concebo um processo mais aberto de uma prática argumentativa que prossegue sob pressupostos exigentes do ‘uso público da razão’ e não exclua desde o início o pluralismo de convicções e visões de mundo. Este procedimento pode ser explicado sem recorrer aos conceitos substantivos que Rawls emprega na construção da posição

interpreted” (HABERMAS, 1995, p. 117). 121 No original: “In the course of successively undertaken abstractions, the core of generalizable interests can then emerge step by step” (HABERMAS, 1995, p. 117). 122 No original: “Things are different when the veil of ignorance constrains from the beginning the field of vision of parties in the original position to the basic principles on which presumptively free and equal citizens would agree, notwithstanding their divergent understandings of self and world” (HABERMAS, 1995, p. 118). 123 No original: “It is important to see that with this initial abstraction Rawls accepts a double burden of proof.” 124 No original: “...the theoretician himself would have to shoulder the burden of anticipating at least parts of the information of which he previously relieved the parties in the original position!”

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original. (HABERMAS, 1995, p. 118)125

Enfim, a superação de conflitos de ação deveria ser feita por meio

de argumentação moral não monológica: “...os problemas que devem ser resolvidos

em argumentações morais não podem ser superados monologicamente, mas

exigem um esforço de cooperação” (HABERMAS, 2003, p. 87). A propósito, como

destaca Feldhaus, “[p]or ética monológica, Habermas entende uma concepção ética

que exige dos seres humanos que raciocinem de modo individual e privado acerca

da conduta a seguir, sem uma participação ativa dos concernidos pela norma ou

regra moral controversa.” (FELDHAUS, 2011, p.202).

Há boa dose de coerência no pensamento habermasiano. Ora, se as

necessidades são reconhecidas a partir de valores culturais, então a resolução de

problemas ligados a elas não pode prescindir da tradição compartilhada

intersubjetivamente em que estão inseridas:

As necessidades são interpretadas à luz de valores culturais; e como estes são sempre parte integrante de uma tradição partilhada intersubjetivamente, a revisão dos valores que presidem à interpretação das necessidades não pode de modo algum ser um assunto do qual os indivíduos disponham monologicamente. (HABERMAS, 2003, p. 88)

Não basta, portanto, que os participantes da posição original, cada

um por si, dê assentimento à norma, para Habermas: “[o] que é preciso é, antes,

uma argumentação ‘real’, da qual participem cooperativamente os concernidos.”

(HABERMAS, 2003, p. 88). Trata-se, pois, de uma reflexão intersubjetiva.

No intuito de retomar as principais teses alinhavadas neste segundo

capítulo, vale dizer que no artigo Reconciliation... cujo teor foi parcialmente objeto de

nossas análises, depois de reconhecer a inestimável valia do trabalho de Rawls,

bem como de admitir que procedem ambos de por assim dizer tronco comum,

Habermas dispara críticas tanto ao projeto rawlsiano em si, mas contra alguns

aspectos da sua execução, especialmente no que tange à posição original, ao

overlapping consensus (consenso sobreposto), à precedência das liberdades dos

125 No original: “I have in mind the more open procedure of an argumentative practice that proceeds under the demanding presuppositions of the ‘public use of reason’ and does not bracket the pluralism of convictions and worldviews from the outset. This procedure can be explicated without having recourse to the substantive concepts that Rawls employs in the construction of the original position.”

60

modernos em prejuízo das liberdades dos antigos. Objeto específico desta

monografia, as críticas habermasianas contra a posição original de Rawls dirigem-se

contra a sistemática privação de informações a que estão submetidos seus

participantes, à exagerada amplitude dado ao conceito de bens primários e, por fim,

à concepção ‘monológica’ vigorante nessa situação hipotética inicial. Como se

denota, parece que Habermas demonstrou fragilidades na construção da posição

inicial em vários aspectos. Vejamos doravante o que Rawls tem a dizer a respeito

disso.

3. A RESPOSTA DE RAWLS

Vistas e analisadas as críticas de Habermas especialmente

direcionadas à posição original de Rawls, doravante segue a réplica deste filósofo a

tais objeções.

3.1. OBSERVAÇÕES PROPEDÊUTICAS

De saída, Rawls reconhece as críticas habermasianas como uma

oportunidade para melhor explicar seu liberalismo político, contrastando-o ademais

com a “poderosa doutrina filosófica de Habermas” (RAWLS, 1995, p.132)126. Mercê

das críticas, Rawls repensou conceitos, esclareceu formulações, identificou

obscuridades e inconsistências em seus pensamentos. Tudo isso forçou-o a precisar

ponderações, tornando suas principais assertivas mais lúcidas e exatas (RAWLS,

1995, p.132)127.

3.2. RAWLS E HABERMAS: MESMA FAMÍLIA, DISTINTAS PRETENSÕES

Na réplica às críticas contra a posição original na Parte I do

Reconciliation..., Rawls, diferentemente da postura que adota quanto às críticas

habermasiandas acerca do consenso sobreposto e da autonomia público e privada,

não responde pontual e diretamente as críticas contra sua posição original

(ARAÚJO, 1998, p.213). Rawls emprega a estratégia de demonstrar duas principais

diferenças entre as visões dele e de Habermas, as quais conduziriam, em boa parte,

a diferentes objetivos e motivações128.

126 No original: “...offers me an ideal context in which to explain the meaning of political liberalism and to contrast it with Habermas's own powerful philosophical doctrine.” 127 No original: “I must thank him also for forcing me to rethink things I have said. In doing this I have come to realize that my formulations have often been not only unclear and misleading, but also inaccurate to my own thoughts and inconsistent. I have benefited greatly by trying to face up to his objections and to express my view so that its main claims are made perspicuous and more exact.” 128 No original: “My reply to Habermas begins in part I by reviewing two main differences between his views and mine which in good part are the result of our diverse aims and

62

A primeira distinção consiste na pretensão abrangente da teoria de

Habermas, enquanto a de Rawls objetiva tão-somente a exposição de um modelo

político e nada além disso129; decorrente deste descompasso entre perspectivas

(ampla de Habermas e restrita à política de Rawls), virá a lume a segunda diferença

fundamental, alhures pormenorizada (cf. infra item 3.3), entre os mecanismos de

representação adotados por Rawls (posição original) e por Habermas (situação ideal

de fala)130.

No contexto da primeira diferença, a afirmação de Rawls é

peremptória: “Tenho o liberalismo político como uma doutrina que se enquadra na

categoria do político” (RAWLS, 1995, p.133)131. Disso, consequências seguem-se.

Uma delas: o âmbito de funcionamento do liberalismo é limitado à seara política,

sem que precise contar com nada fora de tal domínio132.

Com efeito, se, como anota Rawls, a filosofia política é normalmente

produto de abrangentes doutrinas religiosas, metafísicas ou morais, a filosofia

política entendida pelo liberalismo político é resultado de concepções políticas

independentes (freestanding) do direito e da justiça133. Toca Rawls na avoenga

questão entre o amplo e o restrito na filosofia política.

Se dentre as diversas concepções de direito e de justiça

independentes na filosofia política, algumas podem ser consideradas conservadoras,

outras liberais134; por definição o liberalismo político é liberal. Donde Rawls concebe

motivations” (RAWLS, 1995, p.132). 129 No original: “Of the two main differences between Habermas’s position and mine, the first is that his is comprehensive while mine is an account of the political and it is limited to that” (RAWLS, 1995, p.132). 130 No original: “The first difference is the more fundamental as it sets the stage for and frames the second. This concerns the differences between our devices of representation, as I call them: his is the ideal discourse situation as part of his theory of communicative action and mine is the original position. These have different aims and roles, as well as distinctive features serving different purposes.” (RAWLS, 1995, p.132). 131 No original: “I think of political liberalism as a doctrine that falls under the category of the political.” 132 No original: “It works entirely within that domain and does not rely on anything outside it” (RAWLS, 1995, p.133). 133 No original: “The more familiar view of political philosophy is that its concepts, principles and ideals, and other elements are presented as consequences of comprehensive doctrines, religious, metaphysical, and moral. By contrast, political philosophy, as understood in political liberalism, consists largely of different political conceptions of right and justice viewed as freestanding” (RAWLS, 1995, p.133). 134 Poderiam, inclusive, basear-se em concepções acerca do direito divino dos reis ou

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a justiça como equidade na condição de concepção política liberal para uma

democracia de tal modo que lhe seja possível acolher qualquer doutrina abrangente

razoável135.

O liberalismo político de Rawls abstém-se de elaborar críticas de

doutrinas abrangentes, desde que razoáveis. Por concepção razoável, Rawls

entende uma concepção que conglobe dois elementos: [1]e ao tempo que contempla

o desejo de indivíduos livres e iguais pela justa e equitativa cooperação social entre

eles, cooperação esta que se mantém vigente ainda que atuem contra seus próprios

interesses; [2]também aceita as consequências de tal desejo e respeita, tolerando,

outras concepções religiosas, morais e filosóficas que detenham esses mesmos dois

elementos (e portanto sejam igualmente razoáveis). Di-lo Rawls:

Quando atribuída a pessoas, os dois elementos básicos da concepção do razoável são, em primeiro lugar, uma vontade de propor termos justos da cooperação social que outros, como livres e iguais que são, também podem endossar; e agir nestes termos, supondo que os demais também o façam, mesmo quando contrário a um interesse próprio. E, segundo, o reconhecimento dos encargos decorrentes desta atitude (PL II: 2-3) e aceitar as suas consequências para a atitude (incluindo tolerância) em direção a outras doutrinas abrangentes. O liberalismo político se abstém de afirmações sobre o domínio de uma visão global, exceto conforme necessário quando essas opiniões ou não são razoáveis ou rejeitam todas as variantes dos fundamentos básicos de um regime democrático. (RAWLS, 1995, p.134)136

Daí que fica claro que na visão de Rawls o liberalismo político,

mesmo em concepções próprias de regimes ditatoriais, mas mesmo assim, por mais injustificáveis que sejam sob o aspecto histórico, religioso e filosófico, pertenceriam à filosofia política (RAWLS, 1995, p.133). 135 Nas palavras de Rawls: “Concebo a justiça como equidade na condição de concepção política liberal de justiça para um regime democrático, de modo que possa receber o apoio de qualquer doutrina abrangente razoável (ou concepções similares) existente em uma democracia que a regula.” (RAWLS, 1995, p.133). No original: “I think of justice as fairness as working out a liberal political conception of justice for a democratic regime, and one that might be endorsed, so it is hoped, by all reasonable comprehensive doctrines that exist in a democracy regulated by it, or some similar view.” 136 No original: “When attributed to persons, the two basic elements of the conception of the reasonable are, first, a willingness to propose fair terms of social cooperation that others as free and equal also might endorse, and to act on these terms, provided others do, even contrary to one's own interest; and, second, a recognition of the burdens of judgment (PL II: 2-3) and accepting their consequences for one's attitude (including toleration) toward other comprehensive doctrines. Political liberalism abstains from assertions about the domain of comprehensive views except as necessary when these views are unreasonable and reject all variations of the basic essentials of a democratic regime.”

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inserido exclusivamente no campo político, não interfere em doutrinas abrangentes

razoáveis, porque, na categoria do político, deixa a filosofia tal como está (RAWLS,

1995, p.134)137. Esse liberalismo pretende deixar intocado quaisquer doutrinas

religiosas, metafísicas e morais (RAWLS, 1995, p.134)138. A filosofia política de

Rawls segue à margem de todas as doutrinas abrangentes, apresentando-se em

seus próprios termos como autônoma139. É interessante consignar em abono à

defesa de Rawls que consta já na introdução de O Liberalismo Político que este,

longe de rejeitar o pluralismo, vai além de o tolerar, na verdade o pressupõe:

O liberalismo político pressupõe que, para propósitos políticos, uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis, e, ainda assim, incompatíveis, seja o resultado normal do exercício da razão humana dentro da estrutura das instituições livres de um regime democrático constitucional. (RAWLS, 2000, p. 24)

Com efeito, logo de início, na obra O Liberalismo Político Rawls

deixa bem claro que da questão fundamental sobre a concepção de justiça é mais

apta a especificar em termos equitativos de cooperação social entre cidadãos

considerados livres e iguais (RAWLS, 2000, p. 45), segue-se esta segunda

indagação não menos importante acerca da concepção de tolerância compreendida

em termos gerais que deve estar presente numa sociedade democrática “marcada

pela diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais conflitantes e

irreconciliaáveis” (RAWLS, 2000, p. 45).

Ora, se assim é, ou seja, se a ideia central do liberalismo político é

efetivamente apartar-se em prol de sua independência de doutrinas abrangentes,

então não se pode defendê-lo, criticá-lo ou rechaçá-lo com base em tais doutrinas, a

não ser que tais doutrinas não tenham razoabilidade em termos políticos (RAWLS,

1995, p.134)140.

Exclusivamente dentro dos quadrantes do político, com concepções

de direito e de justiça independentes de doutrinas abrangentes religiosas, morais e

137 No original: “The central idea is that political liberalism moves within the category of the political and leaves philosophy as it is.” 138 No original: “It leaves untouched all kinds of doctrines, religious, metaphysical, and moral, with their long traditions of development and interpretation.’ 139 No original: “Political philosophy proceeds apart from all such doctrines, and presents itself in its own terms as freestanding” (RAWLS, 1995, p.134). 140 No original: “Hence, it cannot argue its case by invoking any comprehensive doctrines, or by criticizing or rejecting them, so long of course as those doctrines are reasonable, politically speaking (PL II: 3).”

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filosóficas, o liberalismo político segundo Rawls assume três características, por

meio das quais acaba por consubstanciar-se numa concepção política liberal de

justiça para um regime democrático. Ei-las:

A primeira característica é que o liberalismo rawlsiano destina-se à

estrutura básica da sociedade, democrática supondo uma justiça como equidade; a

composição desta estrutura abrange além das principais instituições políticas,

econômicas e sociais, também o sistema unificado de cooperação no qual elas se

interrelacionam. Confiram-se as palavras de Rawls:

(a) Aplica-se, em primeira instância, à estrutura básica da sociedade (assumido em caso de justiça como equidade de ser uma sociedade democrática). Esta estrutura é composta pelas principais instituições políticas, econômicas, sociais, e como elas se encaixam como um sistema unificado de cooperação social. (RAWLS, 1995, p.134)141

Depois, a título de segunda característica, Rawls refere à formulação

independente de qualquer doutrina abrangente de viés religioso, moral ou filosófico.

Embora possa se relacionar com elas, delas não depende, muito menos as

pressupõe. Descreve Rawls:

(b) Pode ser formulado independentemente de qualquer doutrina abrangente de caráter religioso, filosófico ou moral. Enquanto supomos que pode ser derivado, ou apoiado por, ou relacionado a uma ou mais doutrinas abrangentes (na verdade esperamos que ele possa relacionar-se com várias doutrinas), ele [o liberalismo político de Rawls] não depende, tampouco pressupõe, nenhuma delas. (RAWLS, 1995, p.134, esclareci entre colchetes)142

Por outro lado, a terceira característica versa acerca da pertença à

categoria do político das ideias fundamentais do liberalismo. Com efeito, ideias de

sociedade como um sistema equitativo de cooperação social; de cidadãos razoáveis,

racionais, livre e iguais; fundamentais ao liberalismo político referem-se ao

estritamente político e efetivamente percutem numa sociedade democrática. Calha

trazer mais uma vez à colação como Rawls expressou essa terceira noção:

141 No original: “(a)It applies in the first instance to the basic structure of society (assumed in the case of justice as fairness to be a democratic society). This structure consists of the main political, economic, and social institutions, and how they fit together as one unified system of social cooperation.” 142 No original: “(b) It can be formulated independently of any particular comprehensive doctrine, religious, philosophical, or moral. While we suppose that it may be derived from, or supported by, or otherwise related to one or more comprehensive doctrines (indeed, we hope it can be thus related to many such doctrines), it is not presented as depending upon, or as presupposing, any such view.”

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(c) suas ideias fundamentais - tais ideias do liberalismo político, como as de sociedade política como um sistema justo de cooperação social, de cidadãos como razoáveis e racionais e livres e iguais - todas pertencem à categoria dos políticos e são familiares à cultura política pública de uma sociedade democrática e às suas tradições de interpretação da Constituição e das leis básicas, bem como de seus principais documentos históricos e amplamente conhecidos escritos políticos. (RAWLS, 1995, p.135)143

Esboçadas as características do liberalismo idealizado por Rawls,

que destacam a mais não poder, especialmente a segunda delas, tanto sua

aplicação limitada à seara política quanto sua independência em relação a doutrinas

abrangentes religiosas, morais ou filosóficas, Rawls passa a explicar que a

pretensão de Habermas consiste em propor, diferentemente das pretensões de

Rawls em seu liberalismo político, uma doutrina abrangente, contendo elementos

para muito além da filosofia política: “a posição de Habermas, por outro lado, é uma

doutrina abrangente e cobre muitas coisas para além da filosofia política” (RAWLS,

1995, p.135)144.

Como alinhavou Rawls, a teoria da ação comunicativa de Habermas

tem amplo escopo: o de “dar uma explicação geral do significado, da referência, da

verdade ou validez tanto da razão teórica como das diversas formas de razão

prática” (RAWLS, 1995, p.135)145. É ponto cediço que a ideia principal da filosofia de

Habermas é repensar a ideia de razão teórica e prática, a partir do quê há de cunhar

uma teoria social para a sociedade democrática. Igualmente procurando combater o

utilitarismo que rege a maior parte das ações correntes na sociedade globalizada de

consumo, a teoria do agir comunicativo tem como escopo principal conceber um

modelo de ação que tenha como foco o próprio entendimento. De início, pode-se

perceber que tal pretensão por si só já é suficiente para apartar, ao menos pelos

objetivos e pelo âmbito de atuação, os projetos de Ralws e Habermas.

143 No original: “(c) Its fundamental ideas - such ideas in political liberalism as those of political society as a fair system of social cooperation, of citizens as reasonable and rational, and free and equal - all belong to the category of the political and are familiar from the public political culture of a democratic society and its traditions of interpretation of the constitution and basic laws, as well as of its leading historical documents and widely known political writings.” 144 No original: “Habermas's position, on the other hand, is a comprehensive doctrine and covers many things far beyond political philosophy.” 145 No original: “Indeed, the aim of his theory of communicative action is to give a general account of meaning, reference, and truth or validity both for theoretical reason and for the several forms of practical reason.”

67

Ademais, Habermas põe em choque sua doutrina com outras

igualmente abrangentes, purifica o argumento moral do naturalismo e do

emotivismo146, critica concepções metafísicas e religiosas147. A propósito desta,

Habermas rejeitou-as desde logo sem muita detença, o que não se afigurou

imprescindível ao projeto habermasiano diante das análises filosóficas dos

pressupostos do discurso racional e da ação comunicativa. Di-lo Rawls:

Habermas não leva muito tempo para argumentar contra elas [concepções metafísicas e religiosas] em detalhe, ao contrário, ele as deixa de lado ou, ocasionalmente, rejeita-as como imprestáveis e despidas de mérito independente em vista de sua análise filosófica dos pressupostos do discurso racional e ação comunicativa. (RAWLS, 1995, p.135)148

Na sequência, a fim de validar suas considerações acerca do projeto

habermasiano, Rawls cita duas passagens do Faktizität und Geltung (Facticidade e

Validade). A primeira é retirada do prefácio da obra de Habermas:

A teoria do discurso constitui uma tentativa de reconstrução desta autocompreensão [de uma consciência moral universalista e das instituições liberais do Estado democrático] de uma maneira que permita seu significado normativo intrínseco e sua lógica para resistir tanto à redução científica quanto às assimilações estéticas... Depois de um século que, mais do que qualquer outro, ensinou-nos o horror do irracional existente, foram destruídos os últimos restos de alguma relação de confiança essencialista na razão. No entanto, a modernidade, agora ciente de suas contingências, depende ainda mais de uma razão processual, isto é, uma razão que coloca a si mesma em julgamento. A crítica da razão é a sua própria obra: essa dupla acepção kantiana é devida à visão radicalmente antiplatônica que não é uma realidade nem mais nem menos profunda à que se poderia recorrer - nós que nos encontramos já situados em nossas formas de vida linguisticamente estruturadas (FG 11). (RAWLS, 1995, p.135)149

146 No original: “It rejects naturalism and emotivism in moral argument and aims to give a full defense of both theoretical and practical reason” (RAWLS, 1995, p.135). 147 No original: “Moreover, he often criticizes religious and metaphysical views” (RAWLS, 1995, p.135). 148 No original: “Habermas does not take much time to argue against them in detail; rather, he lays them aside, or occasionally dismisses them, as unusable and without credible independent merit in view of his philosophical analysis of the presuppositions of rational discourse and communicative action.” 149 No original: “Discourse theory attempts to reconstruct this self-understanding [that of a universalistic moral consciousness and the liberal institutions of the democratic state] in a way that empowers its intrinsic normative meaning and logic to resist both scientific reductions and aesthetic assimilations...After a century that more than any other has taught us the horror of existing unreason, the last remains of an essentialist trust in reason are

68

A propósito desta passagem do prefácio, Rawls extrai distinções

entre o projeto de Habermas e o liberalismo político. Principia, entretanto,

asseverando que também o liberalismo seria capaz de dizer algo paralelo com o

trecho acima citado, porém algumas diferenças deveriam ser destacadas. Na

linguagem de Rawls:

Agora, bem entendido como não dependente de doutrinas religiosas ou metafísicas, o liberalismo político poderia dizer algo paralelo a esta passagem sobre a justiça política, mas haveria uma diferença fundamental. (RAWLS, 1995, p.136)150

De fato, para ser coerente com suas características fundamentais

alhures destacadas - sobretudo a de manter-se independente de concepções

abrangentes de cunho religioso, moral e filosófico, bem como de se abster de criticá-

las, a não ser quando irrazoáveis (pluralismo razoável, distinto do pluralismo

simples, cf. RAWLS, 2000) -, o liberalismo rawlsiano deve deixar os cidadãos

autônomos livres para aderir a qualquer concepção abrangente razoável sem

prejuízo dos princípios do mesmo liberalismo político:

A fim de nos apresentar uma concepção política autônoma e não indo além disso, deixa-se totalmente em aberto aos cidadãos e às associações da sociedade civil formular suas próprias maneiras de ir além desta concepção exclusiva e eminentemente política, ou, melhor ainda, deixa-se-lhes aberto fazer essa concepção política congruente com a abrangente doutrina de que são adeptos. (RAWLS, 1995, p.136)151

Até porque, nunca é demais rememorar a cediça noção de que o

liberalismo político não se presta a questionar essas doutrinas, tampouco negá-las,

quando politicamente razoáveis (RAWLS, 1995, p.136)152.

destroyed. Yet modernity, now aware of its contingencies, depends all the more on a procedural reason, that is, on a reason that puts itself on trial. The critique of reason is its own work: this Kantian double meaning is due to the radically anti-Platonic insight that there is neither a higher nor a deeper reality to which we could appeal - we who find ourselves already situated in our linguistically structured forms of life (FG 11).” 150 No original: “Now, read as not appealing to religious or metaphysical doctrines, political liberalism could say something parallel to this passage regarding political justice, but there would be a fundamental difference.” 151 No original: “For in presenting a freestanding political conception and not going beyond that, it is left entirely open to citizens and associations in civil society to formulate their own ways of going beyond, or of going deeper, so as to make that political conception congruent with their comprehensive doctrines.” 152 No original: “Political liberalism never denies or questions these doctrines in any way, so long as they are politically reasonable.”

69

Diversamente, para Habermas tomar uma posição diferente sobre

esta questão básica faz parte de sua visão abrangente153. Trata-se de postura

inexorável em seu projeto: “Habermas parece sustentar que todas as doutrinas mais

elevadas ou profundas carecem, de per si, de qualquer força lógica” (RAWLS, 1995,

p.136)154. E, como consta do prefácio de seu Facticidade e Validade:

Ele [Habermas] rejeita o que chama de uma ideia essencialista platônica da razão e afirma que essa ideia deve ser substituída por uma razão procedimental que se submeta a julgamento, cujo juiz de sua crítica é ela própria.” (RAWLS, 1995, p.136, esclareci entre colchetes)155

De outra parte, analisando outra passagem da obra

supramencionada, cujo trecho do capítulo V é objeto da resposta de Raws, este

aponta que Habermas, ao explicar o funcionamento da situação ideal de fala,

sublinha que o princípio do discurso exige o julgamento de normas e valores a partir

da perspectiva da primeira pessoa do plural (nós):

Em outro trecho do capítulo 5 do Between Facts and Norms, após uma explicação de como a situação continua discurso ideal, ele [Habermas] salienta que o princípio do discurso exige que as normas e valores devem ser julgados a partir do ponto de vista da primeira pessoa do plural. (RAWLS, 1995, p.136)156

A passagem referida por Rawls157 traduzirá a pretensão

153 No original: “That Habermas himself takes a different stand on this basic point is part of his comprehensive view” (RAWLS, 1995, p.136). 154 No original: “He would appear to say that all higher or deeper doctrines lack any logical force on their own.” 155 No original: “He rejects what he calls an essentialist Platonic idea of reason and asserts that such an idea must be replaced by a procedural reason that puts itself on trial and is the judge of its own critique.” 156 No original: “In another passage in chapter 5 of Between Facts and Norms, after an explanation of how the ideal discourse situation proceeds, he stresses that the principle of discourse requires that norms and values must be judged from the point of view of the first-person plural.” 157 Ei-la na integralidade: “A prática da argumentação recomenda-se para tal idealizado e universal papel em comum. Como forma reflexiva da ação comunicativa, distingue-se sócio-ontologicamente, por assim dizer, por uma reversibilidade completa das perspectivas dos participantes, o que desencadeia a intersubjetividade de nível superior de deliberação coletiva [do coletivo deliberante]. Desta forma, universal concreto Hegel [Sittlichkeit] é sublimada em uma estrutura comunicativa purificada de todos os elementos substanciais (FG 280)” (RAWLS, 1995, p.136). No original: “The practice of argumentation recommends itself for such a jointly practiced, universalized role taking. As the reflexive form of communicative action, it distinguishes itself socio-ontologically, one might say, by a complete reversibility of participant perspectives, which unleashes the higher-level intersubjectivity of the deliberating collective. In this way, Hegel's concrete universal [Sittlichkeit] is sublimated

70

habermasiana de – por intermédio dos pressupostos procedimentais do discurso

ideal, límpidos de elementos substanciais, presentes em sua teoria da ação

comunicativa - sublimar outras doutrinas abrangentes, dentre as quais por exemplo a

concepção hegeliana do universal concreto (Sittlichkeit): o “...universal concreto de

Hegel [Sittlichkeit] é sublimado numa estrutura comunicativa purificada de todos os

elementos substanciais”158, diz Habermas no fragmento destacado por Rawls, cujos

dizeres são os seguintes:

Assim, segundo Habermas, os elementos substanciais da concepção hegeliana do Sittlichkeit, uma doutrina aparentemente metafísica da vida ética (um dentre muitos exemplos possíveis), são - tanto quanto válidos - totalmente sublimados pela (entendo-o expressável ou articulado pela) teoria da ação comunicativa com seus pressupostos processuais de discurso ideal. (RAWLS, 1995, p.136)159

A transcrição acima deixa clara a intenção de Rawls de interpretar a

teoria da ação comunicativa como aglutinadora da concepção Sittlichkeit cunhada

por Hegel. Rawls sublinhou, ao descrever a filosofia moral de Hegel, ser a partir do

conceito Sittlichkeit que agregamos conhecimento moral (RAWLS, 2005, p.382).

Sittlichkeit (do tronco Sitte, que significa convenção) poderia ser

traduzida como vida ética, inclusive com significado diverso de Moralität (moralidade;

do latim mos, costume). Vejamos o que escreveu Hegel a respeito da distinção:

Moralität e Sittlichkeit, termos habitualmente empregados no mesmo sentido, são por nós tomados com significados essencialmente diferentes. Aliás, também a representação corrente costuma distingui-los. A linguagem kantiana prefere utilizar a palavra Moralität, o que explica por que os princípios práticos desta filosofia limitam-se completamente àquele conceito e tornam até impossível o ponto de vista da moralidade objetiva que anulam e procuram fazer desaparecer. Mas mesmo que, pela sua etimologia, estas palavras sejam equivalentes isso não obsta a empregá-las como diferentes, uma vez que necessariamente o serão ao designarem conceitos diferentes. (HEGEL, 2003, p.36)

Inclusive – diga-se tudo! – numa nota de rodapé ao §9 do Livro I da

into a communicative structure purified of all substantial elements (FG 280).” 158 No original: “...Hegel's concrete universal [Sittlichkeit] is sublimated into a communicative structure purified of all substantial elements (FG 280)” (RAWLS, 1995, p.136). 159 No original: “Thus, according to Habermas, the substantial elements of Hegel’s view of Sittlichkeit, an apparently metaphysical doctrine of ethical life (one among many possible examples), are - so far as they are valid - fully sublimated into (I interpret him to mean expressible, or articulated, by) the theory of communicative action with its procedural presuppositions of ideal discourse.”

71

Aurora de Nietzsche, o tradutor Rubens Rodrigues Torres Filho consignou sobre

esses termos:

Eticidade ou moralidade, duas palavras que perderam a referência ao significado original de costume, que têm por base (ethos em grego, mos em latim). O texto alemão, ao dizer Sittlichkeit der Sitte, o evoca muito mais diretamente – é que a língua não perdeu totalmente a memória dessa ligação, tanto que Ética se diz Sittenlehre (doutrina dos costumes) e já Kant reservava a fundamentação da moral para uma ‘metafísica dos costumes’. (TORRES FILHO, 1974, p.167, nota 2).

Tudo indica, pois, que, sob a ótica hegeliana, Moralität constitui a

moralidade subjetiva; ao passo que Sittlichkeit, a objetiva. Tanto é verdade que

Hegel, em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas, registrou que “a eticidade é a

realização do espírito objetivo” (HEGEL, 1944, p.350).

Uma sintética descrição do que na visão de Rawls Hegel quis

significar com o conceito de Sittlichkeit (vida ética) poderia ser a seguinte: “É um

sistema de instituições políticas e sociais que expressam e tornam real no mundo o

conceito de liberdade” (RAWLS, 2005, p. 401). Rawls, linhas a frente, retoma a ideia

hegeliana de Sittlichkeit como descritora de “várias formas de vida política e social”

(RAWLS, 2005, p.402).

Daí a razão pela qual a doutrina de Habermas - na exegese

rawlsiana – assumiria uma lógica em sentido amplo hegeliano: leva a cabo uma

análise filosófica dos pressupostos do discurso da razão (quer da razão teórica, quer

da prática) incluindo todos os elementos alegadamente substanciais das doutrinas

religiosas e metafísicas160. Segundo Rawls, a lógica de Habermas “é metafísica no

seguinte sentido: apresenta um relato do que existe” (RAWLS, 1995, p.137)161.

Rawls não deixa de fornecer, em vista da assertiva anterior, uma explicação do que

entende por metafísica, diz ele em esclarecedora nota, que merece reprodução dada

sua utilidade no percurso de compreensão do pensamento rawlsiano:

Tenho a metafísica como sendo, pelo menos, uma exposição geral do que existe, inclusive afirmações fundamentais, totalmente gerais -

160 No original: “Habermas's own doctrine, I believe, is one of logic in the broad Hegelian sense: a philosophical analysis of the presuppositions of rational discourse (of theoretical and practical reason) which includes within itself all the allegedly substantial elements of religious and metaphysical doctrines” (RAWLS, 1995, p.136). 161 No original: “His logic is metaphysical in the following sense: it presents an account of what there is.”

72

por exemplo, as declarações ‘a cada evento, uma causa’ e ‘no espaço e no tempo ocorrem os eventos’ – além do que pode ser com elas relacionado. Nessa ótica, W.V.Quine também é um metafísico. Para negar certas doutrinas metafísicas afirma-se outra [não menos metafísica]. (RAWLS, 1995, p.137, nota de rodapé n.8, esclareci entre colchetes)162

Da alegação de que a estrutura comunicativa - a que rende ensejo a

ação comunicativa - está purificada de todos os elementos substanciais, depreende-

se a formulação de Habermas segundo a qual o fundamento com o qual tal estrutura

lastreará juízos morais detém natureza meramente procedimental de um sistema de

direitos. Longo que seja, o trecho a seguir é elucidativo, donde a pertinência da

transcrição. Diz Rawls:

Quanto ao que ‘substância’ e ‘substancial’ quer significar, eu diria, conjecturando, que Habermas propõe algo como o seguinte: muitas vezes as pessoas pensam que seu modo básico de fazer as coisas - sua ação comunicativa com seus pressupostos do discurso ideal, ou sua concepção da sociedade como um sistema justo de cooperação entre cidadãos livres e iguais - precisa de uma base para além de si discernido por uma razão platônica que capta as essências, ou então algo enraizado em substâncias metafísicas. Pelo pensamento buscamos firme fundamento em algo anterior ou mais profundo como uma doutrina religiosa ou metafísica. Esperamos que isso nos dê também os fundamentos para a motivação moral. Sem estes fundamentos, tudo pode nos parecer a vacilar e passamos por uma espécie de vertigem, uma sensação de estar perdido, sem lugar para ficar. Mas Habermas sustenta que ‘Na vertigem da liberdade, não há mais qualquer ponto fixo à margem do processo democrático em si - um procedimento cujo sentido já está resumido no sistema de direitos’ (FG 229). (RAWLS, 1995, p. 137)163

162 No original: “I think of metaphysics as being at least a general account of what there is, including fundamental, fully general statements - for example, the statements 'every event has a cause' and 'all events occur in space and time', or can be related thereto. So viewed, W.V.Quine also is a metaphysician. To deny certain metaphysical doctrines is to assert another such doctrine.” 163 No original: “As to what 'substance' and 'substantial' mean, I would conjecture that Habermas intends something like the following: people often think that their basic way of doing things-their communicative action with its presuppositions of ideal discourse, or their conception of society as a fair system of cooperation between citizens as free and equal-needs a foundation beyond itself discerned by a Platonic reason that grasps the essences, or else is rooted in metaphysical substances. In thought we reach behind, or deeper, to a religious or metaphysical doctrine for a firm foundation. This reality is also expected to provide moral motivation. Without these foundations, everything may seem to us to waver and we experience a kind of vertigo, a feeling of being lost without a place to stand. But Habermas holds that ‘In the vertigo of this freedom there is no longer any fixed point outside the democratic procedure itself - a procedure whose meaning is already summed up in the system of rights’ (FG 229).”

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À vista disso Habermas julga suas concepções mais livres de

fundamentos substanciais (metafísicos: religiosos, morais e filosóficos) do que as de

Rawls. Ou seja, Habermas sustenta que a ação comunicativa é mais modesta em

relação à doutrina de Rawls na medida em que, na condição de meramente

procedimental, a doutrina habermasiana remete questões substanciais à deliberação

de participantes livres e racionais, reais e vivos, num processo livre e real, ao

contrário do que acontece entre os participantes artificiais da posição original.

Escreveu Rawls:

Ele [Habermas] vê a sua visão como mais modesta do que a minha, pois é supostamente uma doutrina processual, que deixa questões de fundo para serem decididas pelo resultado de debates livres real praticada por e racionais, reais e ao vivo participantes livres, ao contrário das criaturas artificiais da posição original. (RAWLS, 1995, p.137, esclareci entre colchetes)164

Na visão de Rawls, Habermas defende que a filosofia moral deveria

limitar-se a três assuntos: [1]esclarecer o ponto de vista moral; [2]determinar o

procedimento de legitimação democrática; e, por fim, [3]analisar as condições de

discursos racionais e negociação:

Ele [Habermas] propõe, diz ele, limitarmos a filosofia moral ao esclarecimento do ponto de vista moral, ao procedimento de legitimação democrática, e à análise das condições de discursos racionais e negociação. (RAWLS, 1995, p.137, esclareci entre colchetes)165

No entanto, Rawls sustenta que não é bem só isso que Habermas

faz. A bem da verdade, ele assume forçosamente algo muito mais amplo, com

ambiciosas metas. A concepção de Habermas, de acordo com Rawls, não prescinde

de conceitos fundamentais substanciais, questões essas para além daqueloutras

objeto de deliberação pelos reais participantes (cf. Rawls, 1995, p. 138).

Mas Habermas incidiria em equívoco não só ao tomar por indene de

elementos substanciais sua teoria da ação comunicativa, senão também por

considerar que o liberalismo de Rawls fracassou inclusive ao apresentar uma

164 No original: “He sees his view as more modest than mine, since it is purportedly a procedural doctrine that leaves questions of substance to be decided by the outcome of actual free discussions engaged in by free and rational, real and live participants, as opposed to the artificial creatures of the original position.” 165 No original: “He proposes, he says, to limit moral philosophy to the clarification of the moral point of view and to the procedure of democratic legitimation, and to the analysis of the conditions of rational discourses and negotiation.”

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concepção política, não abrangente. A propósito, cito Rawls:

Ele [Habermas] acredita, porém, que falho ao fazê-lo. Minha concepção de justiça política não seria realmente independente, como eu gostaria que fosse, porque quer eu goste ou não, ele acha que a concepção da pessoa no liberalismo político vai além da filosofia política. (RAWLS, 1995, p. 138)166

A isso Rawls redargúi alegando que em seu liberalismo político a

concepção filosófica da pessoa passa sim a ter uma concepção política dos

cidadãos como livres e iguais167. Nesse eito, Habermas, ainda, critica justamente tal

justificativa asseverando que o construtivismo político exige o trato de questões

filosóficas da racionalidade e da verdade168, porém Rawls intenta superar a última

censura lembrando que a missão do construtivismo político é “conectar o conteúdo

dos princípios políticos de justiça com a concepção do cidadão como sendo razoável

e racional” (RAWLS, 1995, p. 138)169.

Rawls salienta, ainda, que sua concepção de cidadão razoável e

racional não se baseia na razão platônica ou kantiana que justifique a crítica de

Habermas pelo emprego de elementos a priori e metafísicos. A crítica de Habermas

foi assim delineada por Rawls:

E ele [Habermas] também pode pensar que meu ponto de vista, juntamente com o Immanuel Kant, expressa uma concepção de uma razão a priori e metafísica, ao estabelecer a justiça como princípios de lealdade e ideais assim concebidos. (RAWLS, 1995, p. 138)170

Para Rawls, ainda que se baseasse numa razão platônica ou

kantiana, não o faria de modo diferente do que Habermas faz:

Este argumento [refere-se ao do construtivismo político] não se baseia em uma razão platônica e kantiana, ou se assim for, fá-lo da

166 No original: “He believes, though, that I fail in doing this. My conception of political justice is not really freestanding, as I would like it to be, because whether I like it or not, he thinks that the conception of the person in political liberalism goes beyond political philosophy.” 167 No original: “The philosophical conception of the person is replaced in political liberalism by the political conception of citizens as free and equal” (RAWLS, 1995, p. 138). 168 No original: “Moreover, he claims that political constructivism involves the philosophical questions of rationality and truth” (RAWLS, 1995, p. 138). 169 No original: “As for political constructivism, its task is to connect the content of the political principles of justice with the conception of citizens as being reasonable and rational.” 170 No original: “And he may also think that, along with Immanuel Kant, I express a conception of a priori and metaphysical reason laying down in justice as fairness principles and ideals so conceived.”

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mesma forma que Habermas faz. (RAWLS, 1995, p. 138)171

Até porque – verbera Rawls – nenhuma visão sensata poderia

eventualmente funcionar sem o razoável e o racional172. Sua visão emprega a visão

platônica e kantiana da razão tanto quanto a mais simples lógica e matemática: “[s]e

meu argumento envolve concepções platônicas e kantianas da razão também o faz

o mais singelo elemento de lógica e matemática” (RAWLS, 1995, p. 138)173.

3.3. INSTRUMENTOS DE REPRESENTAÇÃO: A POSIÇÃO ORIGINAL COMO

PARTE DA TEORIA DA JUSTIÇA DE RAWLS E A SITUAÇÃO IDEAL DE FALA

COMO PARTE DA TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA DE HABERMAS

Retomando a estrutura do presente capítulo e, consequentemente,

da réplica de Rawls, convém remarcar que tal resposta fulcra-se em dois pontos

principais. Por outra, diga-se que Rawls orienta seu raciocínio em duas etapas, a

primeira delas busca extremar objetivos e motivos entre a doutrina de Habermas e a

sua – esta restrita ao âmbito político, aquela abrangente -, distinção esta que, por

sua vez, traz a reboque a segunda, objeto deste tópico: Habermas e Ralws

empregam diferentes dispositivos de representação: o primeiro, a situação ideal de

fala; o segundo, a posição original. Como já acentuado por Rawls (cf. supra item 3.2,

nota de rodapé n.130), os mecanismos de representação de Rawls e de Habermas

possuem diferentes objetivos e funções, bem como características distintivas que

atendem a propósitos diversos.

Rawls efetivamente pretende sustentar que a posição original, ao

contrário da situação ideal de fala, foi cunhada para atender às necessidades do

liberalismo político, mais restrito em relação à doutrina abrangente de Habermas. As

diferenças entre esses dois mecanismos de representação – a posição original e a

situação ideal de fala – reside no papel que desempenham em cada uma das

171 No original: “This argument does not rely on a Platonic and Kantian reason, or if so, it does so in the same way Habermas does.” 172 No original: “No sensible view can possibly get by without the reasonable and rational as I use them.” 173 No original: “If this argument involves Plato's and Kant's view of reason, so does the simplest bit of logic and mathematics.”

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igualmente distintas doutrinas:

Como eu disse, o palco para a segunda diferença entre a posição de Habermas e a minha é preparada pela primeira. Isto porque as diferenças entre os dois dispositivos analíticos de representação – a situação ideal de fala e a posição original – refletem suas diferentes alocações, uma numa doutrina abrangente e a outra limitada ao político. (RAWLS, 1995, p.138)174

Afigurou-se importante a Rawls consignar que, enquanto a posição

original constitui um instrumento de análise para formulação de uma conjectura; a

situação ideal de fala tem por escopo fornecer um mandamento de verdade ou

validade. Vejamos, doravante, como Rawls desenvolve esse ponto de vista.

Destaca Rawls, por primeiro, que a posição original constitui

dispositivo para formulação de conjecturas, porque a afirmação de que os princípios

apurados segundo esse procedimento seriam os princípios de justiça política

dotados de maior razoabilidade em favor de uma democracia constitucional, em que

cidadãos são tidos como iguais, razoáveis e racionais, não constitui mais que uma

mera suposição inicial, uma genuína conjectura. Não se trata de tomar essa

assertiva como uma verdade, mas como uma verossímil possibilidade. Essa

verossimilhança advém do próprio procedimento em si. Como já exaustivamente

demonstrado, os princípios forjados nesse procedimento são produto de um

mecanismo representativo, onde partes racionais (assumindo o papel de

mandatários dos cidadãos, um para cada cidadão), estão condições razoáveis e

limitadas, de forma absoluta, por essas mesmas condições (RAWLS, 1995,

p.139)175.

Com efeito, justamente porque tais princípios foram cunhados dentro

de tais limitações parece aceitável que, quando não por definitivos, ao menos

provisoriamente deveríamos tê-los como satisfatórios como fundamento de

instituições basilares de uma sociedade democrática. Ao menos em princípio, o

resultado decorrente do sistema de representação da posição original parece ser

174 No original: “As I have said, the stage for the second difference between Habermas's position and mine is prepared for by the first. This is because the differences between the two analytical devices of representation-the ideal discourse situation and the original position - reflect their different locations, one in a comprehensive doctrine, the other limited to the political.” 175 No original: “...these principles are given by a device of representation in which rational parties (as trustees of citizens, one for each citizen) are situated in reasonable conditions and constrained by these conditions absolutely.”

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idôneo para concluir, ainda que em grau provisório, que “cidadãos livres e iguais

chegaram a um acordo por si mesmos sobre esses princípios políticos sob

condições que os representam igualmente como razoáveis e racionais” (RAWLS,

1995, p.139)176.

De qualquer forma, como destaca Rawls, “[q]ue os princípios tais

como acordados são realmente os mais razoáveis é uma conjectura, uma vez que

pode, naturalmente, ser incorreta” (RAWLS, 1995, p.139)177, porém a provisoriedade

que envolve os princípios não se impõe como um problema; ao contrário, faz-se

salutar que assim seja. Os princípios apurados submetem-se a outro crivo, melhor

dizendo, a vários outros crivos de diferentes níveis de generalidade. Rawls sustenta

que os princípios devem ser verificados no confronto com nossos julgamentos nos

mais diversos níveis de generalidade (RAWLS, 1995, p.139)178.

Depois, não podemos descurar quanto à compatibilidade dos

princípios inferidos com as instituições democráticas; quanto à aplicação deles na

vida prática, examinando a coerência dos resultados e das consequências obtidos

com nossas convicções de justiça:

Devemos também examinar como esses princípios podem ser aplicados às instituições democráticas e quais resultados provocariam; e, por consectário, verificar na prática como eles se encaixam, a partir de uma devida reflexão, em nossos juízos ponderados. (RAWLS, 1995, p.139)179

Cumpre-nos sempre admitir a possibilidade de rever tais juízos em

qualquer direção180. Trata-se do equilíbrio reflexivo já mencionado alhures (cf. supra

item 1.3, parte final). Em Rawls, destaca Marcantonio:

O grande atributo viabilizado com a instituição do equilíbrio refletido foi, a nosso ver, a possibilidade de re-estruturação de princípios

176 No original: “Thus, free and equal citizens are envisaged as themselves reaching agreement about these political principles under conditions that represent those citizens as both reasonable and rational.” 177 No original: “That the principles so agreed to are indeed the most reasonable ones is a conjecture, since it may of course be incorrect.” 178 No original: “We must check it against the fixed points of our considered judgments at different levels of generality.” 179 No original: “We also must examine how well these principles can be applied to democratic institutions and what their results would be, and hence ascertain how well they fit in practice with our considered judgments on due reflection.” 180 No original: “In the either direction, we may be led to revise our judgments” (RAWLS, 1995, p.139).

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escolhidos na posição original que, embora não o façam, deveriam afiançar a igualdade eqüitativa num momento posterior à escolha racional (hipotética) de tais princípios, sem que fosse necessário apelar-se a outras medidas e atitudes que não as oriundas da ratio, mantendo-se a razoabilidade e a adequação teórica. (MARCANTONIO, 2005)

Diversamente, como já averbado, a situação ideal de fala de

Habermas objetiva coisa diversa; pretende apurar desde logo juízos verdadeiros e

válidos da razão prática e teórica: “a teoria da ação comunicativa de Habermas

baseia-se no dispositivo analítico da situação ideal de fala, instrumento esse que dá

conta da verdade e da validade de juízos quer da razão teórica como da prática”

(RAWLS, 1995, p.139)181, nas palavras de Rawls. Como se vê, não há espaço para

posterior exame crítico amplo dos resultados auferidos pelo mecanismo

habermasiano da situação ideal de fala182.

Deve ficar claramente exposto que, na interpretação de Rawls,

Habermas pretende desalojar qualquer dúvida que possa pairar sobre juízos

provenientes da ação comunicativa, as proposições extraídas da discussão livre e

racional seriam mandamentos de verdade e validade oriundos das melhores razões

e motivos. Sublinha Rawls:

Ele [Habermas] tenta expor completamente os pressupostos da discussão livre e racional, guiada pelos mais fortes motivos, de tal forma que, se todas as condições necessárias fossem efetivamente realizadas e totalmente honradas por todos os participantes ativos, seu consenso racional serviria como um mandamento de verdade ou validade. (RAWLS, 1995, p.139)183

Servir como mandamento de verdade ou validade significa que as

proposições declarativas são verdadeiras e os juízos normativos válidos expedidos a

partir da ação comunicativa seriam aqueles enunciados e aceitos por todos os

participantes da situação ideal de fala, na exata medida em que foram observadas

181 No original: “Habermas's theory of communicative action yields the analytical device of the ideal discourse situation, which offers an account of the truth and validity of judgments of both theoretical and practical reason.” 182 Muito embora deva ser reconhecido que inexiste cabal definitividade quanto aos resultados da situação ideal de fala, uma vez que nada impede a revisão de tais resultados a qualquer tempo. 183 No original: “It tries to lay out completely the presuppositions of rational and free discussion as guided by the strongest reasons such that, if all requisite conditions were actually realized and fully honored by all active participants, their rational consensus would serve as a warrant for truth or validity.”

79

todas as circunstâncias que garantiriam à tal situação ideal de fala o status de

perfeição:

Por outra, a alegação de que uma declaração de qualquer tipo é verdadeiro, ou um julgamento normativo válido, é a alegação de que poderia ser aceito pelos participantes de uma situação de discurso na medida em que todas as condições exigidas pelo ideal foram respeitadas. (RAWLS, 1995, p.139)184

Volta Rawls a aproximar a doutrina de Habermas da lógica

hegeliana, ainda que em sentido amplo, porquanto não deixa essa abrangente

doutrina de fazer “uma análise filosófica dos pressupostos do discurso racional, que

inclui em si todos os elementos substanciais aparentes da metafísica e doutrinas

religiosas” (RAWLS, 1995, p.139)185.

A propósito de tudo isso, Rawls indaga a respeito da perspectiva de

quem os dispositivos representativos seu e Habermas devem ser discutidos(i), bem

como em qual cenário tal debate se dará(ii)186. As respostas dadas por Rawls são as

seguintes: a perspectiva utilizada para avaliar tais mecanismos de representação é a

dos cidadãos autônomos(i); o cenário adequado para a discussão é a cultura da

sociedade civil, chamada por Habermas de esfera pública(ii). Interessa expor os

termos utilizados por Rawls: “todas as discussões são travadas a partir do ponto de

vista dos cidadãos na cultura da sociedade civil, o que Habermas denominou de

esfera pública” (RAWLS, 1995, p.139)187.

Afigura-se-nos importante aqui abrir um parêntese para comentar

que Rawls distingue a expressão habermasiana esfera pública do que se deve

entender por razão pública junto ao liberalismo político (cf. Rawls, 1995, p.140, nota

13). Razão pública é o juízo (raciocínio, discurso, proposição) emanado dos poderes

legislativo, executivo e judiciário, dos líderes de partidos, dos candidatos a cargos

184 No original: “Alternatively, to claim that a statement of whatever kind is true, or a normative judgment valid, is to claim that it could be accepted by participants in a discourse situation to the extent that all the required conditions expressed by the ideal obtained.” 185 No original: “As I have remarked, his doctrine is one of logic in the broad Hegelian sense: a philosophical analysis of the presuppositions of rational discourse which includes within itself all the apparent substantial elements of religious and metaphysical doctrines.” 186 No original: “From what point of view are the two devices of representation to be discussed? And from what point of view does the debate between them take place?” (RAWLS, 1995, p.139). 187 No original: “...all discussions are from the point of view of citizens in the culture of civil society, which Habermas calls the public sphere.”

80

eletivos e, também, dos eleitores no momento do voto em questões básicas

constitucionais e de justiça188. Por esfera pública, na linguagem rawlsiana

poderíamos considera a noção de cultura de fundo (background culture), segundo o

próprio Rawls admite: “quanto à esfera pública de Habermas, tenho que ela constitui

em grande medida o que chamei no liberalismo político (LP) de cultura de fundo, à

qual não se aplica a razão pública com seu dever de civilidade” (RAWLS, 1995,

p.140, nota 13)189.

Fechado o parêntese, prosseguimos sublinhando que para Rawls é

no cenário do espaço público (Habermas) ou na cultura de fundo (Rawls) que os

cidadãos discutirão se e como a justiça como equidade será formulada, da mesma

forma que discutirão se as exigências da situação ideal dada lhes parece

convincente. É no espaço público (public sphere) ou na cultura de fundo

(background culture) que aspectos quer da posição original quer da situação ideal de

fala devem ser discutidos:

É aí que nós, como cidadãos, discutiremos acerca da formulação da justiça como equidade, e se este ou aquele aspecto dela nos parece aceitável, por exemplo, se os detalhes da constituição do conjunto de posição original estão devidamente definidos e se os princípios selecionados estão a aptos a serem aceitos. Da mesma forma, são consideradas as alegações da situação ideal de fala e da sua concepção procedimental das instituições democráticas. (RAWLS, 1995, p.140)190

Dessarte, pois, nesse espaço público encontram-se uma gama

variada de doutrinas abrangentes que são ensinadas, explicadas e confrontadas

uma como as outras a todo o momento indefinidamente:

Tenha em mente que essa cultura de fundo contém toda a sorte de doutrinas abrangentes: são ensinadas, explicadas, confrontadas uma com a outra, argumentando-se acerca delas de modo indefinido, sem

188 No original: “Public reason in PL is the reasoning of legislators, executives (presidents, for example), and judges (especially those of a supreme court, if there is one). It includes also the reasoning of candidates in political elections and of party leaders and others who work in their campaigns, as well as the reasoning of citizens when they vote on constitutional essentials and matters of basic justice” (RAWLS, 1995, p.140, nota 13). 189 No original: “As for Habermas’s public sphere, since it is munch the same as what I called in PL (14) the background culture, public reason with its duty of civility does not apply.” 190 No original: “It is there that we as citizens discuss how justice as fairness is to be formulated, and whether this or that aspect of it seems acceptable-for example, whether the details of the set up of the original position are properly laid out. and whether the principles selected are to be endorsed. In the same way, the claims of the ideal of discourse and of its procedural conception of democratic institutions are considered.”

81

fim, enquanto a sociedade tiver vitalidade e espírito. É a cultura do social, não do politicamente público. É a vida cotidiana, com suas muitas associações: universidades e igrejas, cultos e sociedades científicas; em que as intermináveis discussões políticas de ideias e doutrinas são comuns em todos os lugares. (RAWLS, 1995, p.140)191

Nesse espaço público encontram-se as perspectivas de todos os

cidadãos – “o ponto de vista da sociedade civil inclui todos os cidadãos” (RAWLS,

1995, p.140)192 – daí que, antes de ser um diálogo, a situação ideal de fala de

Habermas constitui um omnílogo193, termo que Rawls empresta de Christine

Korsgaard (cf. Rawls, 1995, p.140, nota 14). Sob o aspecto da posição original,

Habermas, como já destacado (cf. supra item 2.3.3), acusa a posição inicial de ser

monológica, não dialógica, pelo fato de “que todas as partes, com efeito, têm as

mesmas razões e, por consequência, elegem os mesmos princípios” (RAWLS, 1995,

p.140, nota 14)194; assim, segundo Habermas, em verdade, a definição dos

princípios é feita pelo teórico, não pelos cidadãos. Rawls repudia tal afirmação,

aduzindo:

A resposta que dou a essa objeção (‘Notes’, p.66 e ss.) é a de que você e eu - e assim todos os cidadãos ao longo do tempo, um por um e em associações, aqui e ali - que julgamos o mérito da posição original como um dispositivo de representação e dos princípios que ela produz. Eu nego que a posição original é monológica de uma forma que coloca em dúvida a sua solidez como um divisor de representação. (RAWLS, 1995, p.140, nota 14)195

Assim, Rawls sustenta que em sua doutrina, em oposição ao que

Habermas referiu, a visão do filósofo ou do teórico vale tanto quanto a do cidadão

191 No original: “Keep in mind that this background culture contains comprehensive doctrines of all kinds: these are taught, explained, debated one against another, and argued about, indefinitely without end, as long as society has vitality and spirit. It is the culture of the social, not of the publicly political. It is the culture of daily life, with its many associations: its universities and churches, learned and scientific societies; and endless political discussions of ideas and doctrines are commonplace everywhere.” 192 No original: “The point of view of civil society includes all citizens.” 193 No original: “Like Habermas's ideal discourse situation, it is a dialogue, indeed, an omnilogue” (RAWLS, 1995, p.140). 194 No original: “Habermas sometimes says that the original position is monological and not dialogical; that is because all the parties have, en effect, the same reasons and so they select the same principles”. Cf. também, sobre esse ponto no debate entre Habermas e Rawls, os comentários de GARGARELLA, 2008, p. 101. 195 No original: “The reply I make to his objection (‘Notes’, pp.66ff) is that it is you and I – and so all citizens over time, one by one and in associations here and there – who judge the merits of the original position as a device of representation and the principles it yields. I deny that the original position is monological in a way that puts in doubt its soundness as a device of representation.”

82

normal: “Não há peritos: um filósofo não tem mais autoridade do que outros

cidadãos”, proclama Rawls (1995, p.140)196. Todos, filósofos ou não, alegam

embasamento de suas convicções na autoridade da razão humana presente na

sociedade197.

Leis de proteção à liberdade de expressão, de imperiosa presença

em regimes democráticos, devem garantir que, dispondo-se a tanto, qualquer

cidadão no cenário do espaço público pode trazer ao debate inclusive os postulados

da teoria da justiça de Rawls, independente de suas ponderações mostrarem-se

razoáveis ou não:

Na medida em que outros cidadãos concedam-no audiência, o que está escrito pode se tornar parte do debate público em curso, incluindo Uma Teoria da Justiça juntamente com o demais, até que finalmente desaparece. Os debates entre os cidadãos podem, mas não necessitam, ser razoáveis e deliberativos e são protegidos, pelo menos em um regime democrático decente, por uma lei efetiva da liberdade de expressão. (RAWLS, 1995, p. 141)198

Parece desejável que ocorra a possibilidade aventada por Rawls no

sentido de o debate chegar a um alto patamar de abertura e imparcialidade, com

preocupação de manter-se nos limites daquilo que pode ser aceito razoavelmente

por todos, tendendo ao consenso:

O argumento pode ocasionalmente chegar a um patamar bastante elevado de abertura e imparcialidade, bem como mostrar uma preocupação com a verdade ou com a razoabilidade, quando a discussão se refere à política. (RAWLS, 1995, p. 141)199

Rawls relaciona o nível do debate com as qualidades pessoais dos

participantes, dos quais quanto maior a virtude e a inteligência, tanto maior o nível

196 No original: “There are no experts: a philosopher has no more authority than other citizens.” Embora Rawls admita que “aqueles que estudam filosofia política às vezes podem saber mais sobre algumas coisas, mas isso aplica-se a qualquer outra pessoa” (RAWLS, 1995, p.141). No original: “Those who study political philosophy may sometimes know more about some things, but so may any one else.” 197 No original: “Everyone appeals equally to the authority of human reason present in society” (RAWLS, 1995, p.141). 198 No original: “So far as other citizens pay attention to it, what is written may become part of the ongoing public discussion, A Theory of Justice along with the rest, until it eventually disappears. Citizens’ debates may, but need not, be reasonable and deliberative and they are protected, at least in a decent democratic regime, by an effective law of free speech.” 199 No original: “Argument may occasionally reach a fairly high level of openness and impartiality, as well as show a concern for truth, or when the discussion concerns the political, for reasonableness.”

83

do debate: “[q]uão alto nível chega depende, obviamente, das virtudes e inteligência

dos participantes” (RAWLS, 1995, p. 141)200.

Dentro dessa normativa argumentação, que cuida de valores e

ideais, vê-se a perspectiva do liberalismo político é restrita à seara política, o que

não é o caso da situação ideal de fala, que não se submete à limitação201.

De qualquer forma, o objetivo do liberalismo político, longe de impor,

é o de apresentar aos cidadãos no espaço público, dentre outros, um modelo de

justiça como equidade que aspira a fornecer explicações e fundamentos de um

sistema justo de cooperação entre cidadãos livres e iguais numa sociedade bem-

ordenada; e, por consectário, constituir uma viável alternativa (ao utilitarismo) de

política completa e razoável concepção de justiça para a estrutura básica de uma

democracia constitucional. Diz Rawls:

Ao se dirigir a cidadãos na sociedade civil, como qualquer doutrina democrática deve fazê-lo, a justiça como equidade enuncia várias concepções políticas fundamentais - aqueles da sociedade como um sistema justo de cooperação, de cidadãos livres e iguais, e de uma sociedade bem-ordenada - e então, espera combiná-las em uma política completa e concepção razoável de justiça para a estrutura básica de uma democracia constitucional. Esse é o seu principal objetivo: ser apresentada e compreendida pelo público na sociedade civil para que seus cidadãos possam tomá-la em consideração (RAWLS, 1995, p. 141)202

Rawls refere-se ao equilíbrio reflexivo pleno como critério geral do

razoável; critério esse que na doutrina de Habermas é desempenhado pela

aceitação racional da situação ideal de fala com todas as condições exigidas por ela:

O critério geral do razoável é o equilíbrio reflexivo geral e amplo, enquanto temos visto que na visão de Habermas o teste da verdade moral ou à validade é aceitação totalmente racional da situação de discurso ideal, com todas as condições exigidas satisfeitas. (RAWLS,

200 No original: “How high a level it reaches depends, obviously, on the virtues and intelligence of the participants.” 201 No original: “The argument is normative and concerned with ideals and values, though in political liberalism it is limited to the political, while in discourse ethics it is not” (RAWLS, 1995, p. 141). 202 No original: “By addressing this audience of citizens in civil society, as any democratic doctrine must, justice as fairness spells out various fundamental political conceptions-those of society as a fair system of cooperation, of citizens as free and equal, and of a well - ordered society - and then hopes to combine them into a reasonable and complete political conception of justice for the basic structure of a constitutional democracy. That is its primary aim: to be presented to and understood by the audience in civil society for its citizens to consider.”

84

1995, p. 141)203

Pleno será o equilíbrio reflexivo amplo e geral. Amplo será o

equilíbrio reflexivo daquele cidadão tanto mais quanto ele compreender as diferentes

concepções de justiça e a força de cada um dos argumentos que as constituem, isto

é, o equilíbrio reflexivo amplo contempla as várias concepções políticas de justiça

presentes em nossa tradição, sopesando-lhes o peso dos argumentos que as

sustentam. Contrário de amplo é o restrito, equilíbrio reflexivo em que tomamos em

conta apenas nossos próprios juízos (RAWLS, 1995, p.141, nota 16)204. Quando

amplo, o equilíbrio reflexivo compreende ampla reflexão e, possivelmente, as

mudanças de opinião precedentes (RAWLS, 1995, p.141, nota 16)205. Verberou

Rawls:

Amplo equilíbrio reflexivo (no caso de um cidadão) é o equilíbrio reflexivo alcançado quando o cidadão tem cuidadosamente considerados concepções alternativas de justiça e a força dos argumentos diferentes para eles. Mais especificamente, o cidadão tem considerado as principais concepções de justiça política encontrada na nossa tradição filosófica (incluindo visão crítica do conceito de justiça em si) e pesou a força dos diferentes razões filosóficas e outras para eles. (RAWLS, 1995, p.141, nota 16)206

Para explicar um equilíbrio reflexivo geral, retoma Rawls a ideia de

que numa sociedade bem-ordenada vige uma concepção pública de justiça. Será,

pois, geral nesta sociedade bem-ordenada o equilíbrio reflexivo amplo alcançado por

cada um dos cidadãos, os quais, de acordo com Rawls, comungarão de idêntica

concepção pública de justiça política:

203 No original: “The overall criterion of the reasonable is general and wide reflective equilibrium; whereas we have seen that in Habermas’s view the test of moral truth or validity is fully rational acceptance in the ideal discourse situation, with all requisite conditions satisfied.” 204 Escreveu Rawls: “Amplo, e não restrito, o equilíbrio reflexivo (no qual tomamos nota de apenas nossos próprios juízos), é claramente o conceito filosófico importante “(RAWLS, 1995, p.141, nota 16). No original: “Wide and not narrow reflective equilibrium (in which we take note of only our own judgments), is plainly the important philosophical concept”. 205 No original: “The reflective equilibrium is wide, given the wide-ranging reflection and possibly many changes of view that have preceded it.” 206 No original: “I add here two remarks about wide and general reflective equilibrium. Wide reflective equilibrium (in the case of one citizen) is the reflective equilibrium reached when that citizen has carefully considered alternative conceptions of justice and the force of various arguments for them. More specifically, the citizen has considered the leading conceptions of political justice found in our philosophical tradition (including views critical of the concept of justice itself) and has weighed the force of the different philosophical and other reasons for them.”

85

Lembre-se que uma sociedade bem-ordenada é uma sociedade efetivamente regulada por uma concepção política pública de justiça. Pensemos que cada cidadão em uma tal sociedade tenha alcançado um equilíbrio reflexivo amplo. Uma vez que os cidadãos reconhecem que afirmam a mesma concepção pública de justiça política, o equilíbrio reflexivo também é geral: a mesma concepção é afirmada em julgamentos considerados todos. (RAWLS, 1995, p.141, nota 16)207

À vista disso, é com base num equilíbrio reflexivo amplo e geral

presente numa sociedade bem-ordenada que possibilita Rawls afirmar que, nesse

caso, haverá consenso, intersubjetivamente formado, quanto à concepção de justiça

política a ponto de “cada cidadão tem em conta o raciocínio e os argumentos de

qualquer outro cidadão”, por mais incrível que pareça. Vejamos a passagem:

Assim, os cidadãos têm conseguido geral e ampla, ou aquilo que podemos chamar de pleno (completo) equilíbrio reflexivo. Em tal sociedade, não só existe um ponto de vista público a partir do qual todos os cidadãos possam conhecer os seus direitos de justiça política, mas também desse ponto de vista é mutuamente reconhecido como afirmado por todos eles em pleno equilíbrio reflexivo. Este equilíbrio é totalmente intersubjetivo, ou seja, cada cidadão tem em conta o raciocínio e os argumentos de qualquer outro cidadão. (RAWLS, 1995, p.141, nota 16)208

Por derradeiro, assume Rawls a aproximação do equilíbrio reflexivo

com a situação ideal de fala é obtida quando vislumbramos que após o equilíbrio

reflexivo pleno percebemos que nossos ideais, princípios e juízos nos afiguram mais

razoáveis e melhor fundamentados do que antes:

O equilíbrio reflexivo se assemelha à prova de Habermas neste aspecto: é um ponto no infinito, não podemos alcançá-lo, embora possamos chegar mais perto dele no sentido de que, através da nossa discussão, ideais, princípios e juízos parecem-nos mais razoáveis e melhor fundamentados do que eram antes. (RAWLS,

207 No original: “Recall that a well-ordered society is a society effectively regulated by a public political conception of justice. Think of each citizen in such a society as having achieved wide reflective equilibrium. Since citizens recognize that they affirm the same public conception of political justice, reflexive equilibrium is also general: the same conception is affirmed in everyone's considered judgments.” 208 No original: “Thus, citizens have achieved general and wide, or what we may refer to as full, reflective equilibrium. In such a society, not only is there a public point of view from which all citizens can adjudicate their claims of political justice, but also this point of view is mutually recognized as affirmed by them all in full reflective equilibrium. This equilibrium is fully intersubjective: that is, each citizen has taken into account the reasoning and arguments of every other citizen.”

86

1995, p. 142)209

Ao cabo desse último capítulo, uma boa sinopse do que nele foi

aventado começaria por relembrar que em réplica, Rawls destaca duas linhas

principais de diferenciação entre sua doutrina e a de Habermas. A primeira

demonstra a diversidade de abrangência: ampla da doutrina habermasiana e restrita

à categoria do político em Rawls. Corolário disso é que não se admitiriam censuras a

esta última doutrina com base em algo que lhe é independente, vale dizer, em

doutrinas filosóficas, morais e religiosas em relação às quais o liberalismo político

cuidou de não se imiscuir; ao contrário, em homenagem ao baluarte democrático da

tolerância, a justiça como equidade foi forjada para, na esfera pública, conviver com

as mais variadas doutrinas metafísicas possíveis, desde que razoáveis. O mesmo

não se pode dizer da doutrina de Habermas, cujo teor compete com outras doutrinas

igualmente abrangentes. A par disso, a outra linha de diferenciação exposta por

Rawls diz respeito aos mecanismos de representação: sua posição inicial e a

situação ideal de fala de Habermas. Rawls sustentou, quanto a isso, que a posição

inicial é suficiente para atender aos reclamos de justificação do liberalismo político,

restrito que é à seara política. Ademais, o equilíbrio reflexivo garantiria o insucesso

da crítica de Habermas de que, a bem da verdade, a definição dos princípios é

estabelecida monologicamente pelo teórico, a uma porque o argumento do filósofo

vale tanto quanto a do cidadão comum; a duas porque, a partir do equilíbrio reflexivo

amplo e geral (pleno), estabelece-se um consenso intersubjetivo quanto à

concepção de justiça. Passemos, sem mais delongas, às conclusões finais desta

monografia.

209 No original: ‘Reflective equilibrium resembles his test in this respect: it is a point at infinity we can never reach, though we may get closer to it in the sense that through discussion our ideals, principles, and judgments seem more reasonable to us and we regard them as better founded than they were before.”

CONCLUSÕES

Do quanto restou escrito, cabe-nos, antes de pôr cobro à tarefa a

que nos propusemos, apresentar em forma de enxuto rol este elenco de principais

conclusões, ainda que provisórias dada a pretensão de continuidade dessa

pesquisa:

CAPÍTULO 1: CONCLUSÕES

1.1. por quase 40 anos Rawls dedicou-se a compreender como

seria possível existir, no decorrer do tempo, uma sociedade de cidadãos livres e

iguais, ainda que divididos por razoáveis doutrinas religiosas, morais e filosóficas,

porém incompatíveis entre si;

1.2. ao longo desses anos, Rawls desenvolveu uma teoria da

justiça, cuja importância para as instituições sociais é tamanha que se compara à

verdade para os sistemas de pensamento;

1.3. o modelo de justiça como equidade de Rawls aspira a

fornecer explicações e fundamentos de um sistema justo de cooperação entre

cidadãos livres e iguais numa sociedade bem-ordenada (1.19);

1.4. o papel da justiça reside na administração de conflitos

notadamente na área da isonomia (distinção entre pessoas) e da divisão tanto das

benesses produzidas em colaboração (reivindicação) quanto dos encargos sociais

necessárias para a produção de tais benesses (atribuição), donde a ênfase no

caráter distributivo da justiça rawlsiana (justiça distributiva);

1.5. a doutrina de Rawls apresenta-se no espaço público aos

cidadãos em geral como uma (e não ‘a’) doutrina política completa e razoável

concepção de justiça para a estrutura básica de uma democracia constitucional

alternativa principalmente ao utilitarismo, cuja hegemonia já perdurava há quase um

século quando veio a lume a Teoria da Justiça (1971);

1.6. O utilitarismo constitui teoria teleológica, não deontológica, na

qual o princípio da maior utilidade geral assegura que o valor moral da ação é

estabelecido a partir da maximização proporcionada por ela em prol do bem-estar

88

geral;

1.7. o utilitarismo visualiza a sociedade tal como um corpo no qual

o sacrifício de algumas partes é justificado quando em prol das restantes;

1.8. por conta disso (1.7), o utilitarismo dá por justa a imposição

de graves privações a certos indivíduos para assegurar um bem maior partilhado por

outros;

1.9. essa constatação (1.8) não se coaduna com o senso comum

de justiça;

1.10. o intuicionismo admite uma gama de princípios de justiça sem

que seja possível objetivamente estabelecer um método para discernir qual deles

deve ser aplicado em caso de conflito;

1.11. diante da multiplicidade de princípios da justiça aceitáveis

(1.10), o intuicionismo lança mão da intuição para determinar o exato princípio,

dentre tantos outros concorrentes, aplicável ao caso concreto;

1.12. para Rawls o problema é que o intuicionismo carece de

critérios para organizar os vários princípios à luz de nossas próprias intuições;

1.13. a despeito disso (1.12) Rawls não desprezou o valor da

intuição em sua doutrina, incorporando-a ao conceito de equilíbrio reflexivo;

1.14. a justiça como equidade possui fundo contratualista, já que se

baseia na crença de que os agentes morais podem buscar seu próprio bem em

consonância com regras estabecidas na posição original de Rawls;

1.15. a posição original é comparável, mutatis mutandis, ao assim

chamado ‘estado de natureza’ da teoria tradicional do contrato social;

1.16. o objetivo do contrato hipotético é estabelecer princípios da

justiça para a estrutura básica de uma sociedade bem-ordenada;

1.17. por estrutura básica da sociedade entenda-se o conjunto das

principais instituições desta sociedade, a saber, aquelas instituições que lhe formam

a estrutura política, definem por um lado as liberdades fundamentais iguais e, de

outro, as desigualdades sociais e econômicas;

1.18. a composição desta estrutura (1.17) abrange além das

principais instituições políticas, econômicas e sociais, também o sistema unificado

de cooperação no qual elas se interrelacionam;

89

1.19. por sociedade bem-ordenada (1.3) entenda-se aquela na qual

indivíduos e instituições aceitam e defendem os mesmos princípios da justiça e

sabem (ou ao menos legitimamente esperam) que os demais integrantes dessa

sociedade também o fazem;

1.20. a posição original constitui um artifício para representação de

uma suposta situação hipotética e original de igualdade entre indivíduos livres e

imparciais na qual os princípios da justiça seriam cunhados;

1.21. essa situação (1.20) pode ser qualificada como equitativa

(justa);

1.22. ao dizer “justiça como equidade”, Rawls não pretende

sustentar que justiça é equidade, mas que seus princípios foram cunhados numa

situação de equidade;

1.23. os participantes livres e iguais da posição ideal procederão

com razão e desinteresse (imparcialidade);

1.24. para garantir isso (1.23), Rawls submete-os ao famigerado

véu da ignorância;

1.25. referido véu gera uma supressão sistemática de informações

contingenciais;

1.26. são exemplos de tais informações: a posição do participante

dentro da estrutura social, suas características naturais etc.

1.27. são mantidas, entretanto, informações genéricas como de que

sua sociedade é bem-ordenada, por exemplo;

1.28. livres e iguais, racionais e dotodas de uma concepção de bem

(primário), os representantes fictícios em posição original, mercê do véu da

ignorância, desconhecem as posições ocuparão na sociedade da qual os princípios

da justiça eles estabelecerão;

1.29. o véu da ignorância constitui, pois, um método que visa

restringir argumentos, lastreado na máxima de que os princípios de justiça não

devem ater-se àquilo que é contingente;

1.30. disso (1.28) infere-se o kantismo da noção do véu;

1.31. à míngua de informações contingenciais (véu da ignorância),

os participantes da posição original movem-se no intuito de obtenção de bens

90

primários sociais;

1.32. por bens primários sociais entendam-se aqueles fornecidos

pelas instituições básicas e indispensáveis para satisfazer qualquer plano de vida;

1.33. nesse intuito (1.31), os mesmos participantes são impelidos a

adotar a regra maximum minimorum (maximin);

1.34. segundo a regra maximin, em condições de incerteza, a

melhor opção é aquela que produz o melhor dentre os piores resultados das demais

alternativas possíveis;

1.35. nesse proscênio teórico (posição original, véu da ignorância,

busca por bens primários sociais, regra maximin), para Rawls os participantes da

posição original escolheriam dois princípios de justiça;

1.36. o primeiro, princípio de liberdades iguais, destina-se a

regulamentar a parte da estrutura básica institucional da sociedade responsável pela

definição de iguais liberdades fundamentais. Cuida-se do princípio de liberdades

iguais;

1.37. de acordo com esse princípio (1.36), a estrutura básica da

sociedade deve prever as liberdades mais amplas possíveis a todos;

1.38. o segundo princípio é informador da parte definidora das

desigualdades sociais e econômicas;

1.39. o segundo princípio reza que as desigualdades são instituídas

em prol de todos em benefício de representantes, não de indivíduos determinados.

Subdivide-se em dois subprincípios: princípio de justa igualdade de oportunidade (1ª

parte) e princípio da diferença (2ª parte);

1.40. Rawls, na condição de liberal, não deixou de conceber os

princípios em ordem léxica;

1.41. essa ordem léxica ou serial determina que o primeiro

sobrepõe-se ao segundo, bem como a primeira parte do segundo tem primazia serial

em relação à segunda parte;

1.42. uma outra etapa da justificação da justiça como equidade

sucede a partir do que Rawls chamou de argumento do equilíbrio reflexivo;

1.43. o equilíbrio reflexivo exige que os princípios decorrentes da

posição original sejam submetidos ao crivo de nossas convicções ponderadas de

91

justiça ao final do qual seriam ou não efetivamente escolhidos;

1.44. os princípios da justiça como equidade, pois, são definidos e

justificados a partir da posição original e do equilíbrio reflexivo.

CAPÍTULO 2: CONCLUSÕES

2.1. dadas as grandes afinidades entre seus trabalhos, a disputa

entre Rawls e Habermas por eles mesmos considerada ‘uma disputa de família’;

2.2. segundo Habermas, a teoria da justiça de Rawls representou

uma mudança de paradigma no campo da filosofia prática, reavivando questões

morais de há muito não objeto de debate;

2.3. as críticas de Habermas não se dirigem tanto ao projeto

rawlsiano em si do qual as intuições normativas estão de acordo com o pensamento

habermasiano, mas sim contra alguns aspectos da sua execução, notadamente

quanto à fundamentação de tais intuições, fragilizada pelas concessões de Rawls

aos críticos;

2.4. Rawls propõe uma leitura intersubjetiva da autonomia

kantiana em oposição ao utilitarismo e ao ceticismo quanto aos valores;

2.5. essa leitura (2.4) consiste na interpretação de que agimos

autonomamente quando fazemos aquilo que estabelecemos de acordo com o uso

público de nossa razão;

2.6. tal conceito de autonomia moral explica em Rawls a

autonomia política dos cidadãos de uma sociedade democrática;

2.7. além de questionar o conceito rawlsiano de overlapping

consensus (consenso sobreposto) e o privilegiar das liberdades dos modernos em

detrimento das liberdades dos antigos, Habermas direciona três grupos de

ponderações na censura à concepção da posição original de Rawls: o primeiro

grupo reside na consectária incapacidade dos participantes da posição inicial na

compreensão dos mais altos interesses (highest-order interests) de cidadãos

autônomos que representam (2.8 a 2.14); o segundo grupo destaca as dificuldades

geradas pela noção de direitos como bens (2.16 a 2.23); a terceira classe de críticas

investe contra a concepção ‘monológica’ que introduz pressupostos substantivos na

92

posição inicial (2.24 a 2.30);

2.8. as restrições provocadas pelo véu da ignorância visariam

limitar as opções das partes racionais na escolha de princípios da justiça a

alcançando a imparcialidade a partir de próprio auto-interesse esclarecido;

2.9. as partes na posição original, ao se comportarem como

jogadores que aspiram a uma pontuação tão mais alta quanto lhes seja possível,

são incapazes de a sério compreender os interesses de ordem mais alta de

cidadãos autônomos apenas com base no egoísmo racional

2.10. se os mais altos interesses (highest-order interests) dos

cidadãos autônomos derivam justamente daquelas propriedades indisponíveis aos

participantes da posição original, então se constitui paradoxal a ideia de que estes

participantes descortinem tais interesses dos quais são detentores os cidadãos

autônomos;

2.11. Habermas critica o fato de que as partes da posição original

levarão em conta possibilidades morais abertas aos cidadãos plenamente

autônomos, porém proscritas a eles próprios

2.12. em vista disso (2.11), cidadãos plenamente autônomos não

podem estar bem representados por seres não dotados da mesma autonomia;

2.13. na visão habermasiana as partes da posição original seriam

incapazes, dentro do círculo estabelecido pelo próprio “egoísmo racional”, de

vislumbrar em pé de igualdade em relação aos cidadãos que representam a

orientação justa para alcance daquilo que é igualmente bom a todos;

2.14. ainda que Rawls quisesse rever essa configuração da posição

original, quanto mais ampliasse o conhecimento das partes na posição original tanto

mais o projeto rawlsiano afastar-se-ia da meta de apresentar um método imparcial,

apartado do egocentrismo humano, para estabelecer princípios da justiça;

2.15. eventual ajuste (2.14), descaracterizaria posição original, na

qual é a partir das restrições que os representantes racionais decidem questões

práticas da justiça com imparcialidade;

2.16. direitos fundamentais não podem ser equiparados a bens

primários;

2.17. na posição original, segundo Habermas, os participantes

93

consideram os direitos como uma classe de bens;

2.18. consectário disso (2.17) é que na posição original a questão

dos princípios da justiça resume-se a um problema de divisão de bens primários;

2.19. ao aproximar o conceito de justiça a uma ética do bem,

própria do aristotelismo ou utilitarismo -, Rawls renuncia ao sentido deontológico em

prol de outro teleológico.

2.20. direitos não podem ser equiparados a mercadorias de

distribuição sem perder o seu sentido deontológico, afirmou Habermas;

2.21. a prioridade léxica do princípio da igualdade sobre o segundo

princípio decorre da tentativa de Rawls em compensar o desnivelamento

deontológico proporcionado pela questão dos bens primários;

2.22. no entanto, à vista da perspectiva do egoísmo racional

(perspectiva da 1ª pessoa, do eu) não se sustenta para Habermas nenhuma

prioridade absoluta das iguais liberdades subjetivas de ação sobre bens primários

equacionados pelo segundo princípio;

2.23. apenas em relação ao direitos, não quanto a bens, pode-se

distinguir o plano da aquisição do plano do exercício;

2.24. de acordo com Habermas, o véu da ignorância faz parte de

um procedimento intersubjetivo de substituição do imperativo categórico kantiano;

2.25. o véu da ignorância não é apto o bastante para garantir um

julgamento imparcial;

2.26. o participante da posição original não colabora com

argumentos ao discurso, mas tão-somente emite juízos;

2.27. diante das condições hodiernas de pluralismo social e de

visão do mundo, entremostra-se inviável pensar em um auto-conhecimento tal que

refletisse de fato uma consciência transcendental;

2.28. Rawls ao limitar a informação das partes na posição original,

fixa-as numa perspectiva comum e neutraliza assim de antemão, mediante um

artifício, a multiplicidade das perspectivas particulares de interpretação; ao passo

que na ética discursiva de Habermas realça-se (e não se neutraliza) o pluralismo;

2.29. as restrições impostas pelo véu da ignorância impedem que

as partes da posição original elejam princípios da justiça similares aos que seriam

94

escolhidos por cidadãos autônomos com divergentes concepções de mundo e de si

próprios;

2.30. a configuração da posição original culmina por impor

elementos substantivos que o próprio teórico determina monologicamente, ao passo

que a superação de conflitos de ação deveria ser feita por meio de argumentação

moral não monológica.

CAPÍTULO 3: CONCLUSÕES

3.1. Rawls destaca duas basilares diferenças entre as visões dele

e de Habermas: a primeira quanto à abrangência da pretensão das doutrinas

rawlsiana e habermasiana (3.2 a 3.20); a segunda refere-se à diversidade de

instrumentos representativos de ambas doutrinas (3.21 a 3.45);

3.2. no que tange à abrangência, enquanto a teoria de Habermas

é abrangente, a de Rawls está restrita à categoria do político;

3.3. daí que (3.2) o âmbito de funcionamento do liberalismo é

limitado à seara política, sem que precise contar com nada fora de tal domínio;

3.4. Habemas pretende repensar a ideia de razão teórica e

prática, a partir do quê há de cunhar uma ampla teoria social para a sociedade

democrática, o que por si só já diferencia, ao menos pelos objetivos e pelo âmbito de

atuação, os projetos de Ralws e Habermas;

3.5. na réplica a Habermas, Rawls remarca que sua doutrina

destina-se à estrutura básica da sociedade democrática (bem-organizada). Sobre a

noção de estrutura básica e de sociedade bem-organizada (1.3 e 1.17 a 1.19);

3.6. Rawls concebe sua doutrina como compatível com outras por

mais variadas que sejam de viés religioso, metafísico ou moral, desde que

razoáveis;

3.7. qualquer doutrina abrangente filosófica, moral ou religiosa

razoável opera ou pode operar em concurso com a justiça como equidade;

3.8. o liberalismo político de Rawls abstém-se de elaborar críticas

de doutrinas abrangentes, desde que razoáveis;

3.9. por concepção razoável (3.8), entenda-se tolerante, isto é,

95

que admita diferentes concepções religiosas, morais e filosóficas;

3.10. disso (3.9) se infere que, diferentemente da doutrina

habermasiana, à justiça como equidade não se pode opor quaisquer doutrinas

religiosas, metafísicas e morais; muito menos defendê-la ou criticá-la com base em

tais doutrinas, contanto que, frise-se, detenham razoabilidade em termos políticos;

3.11. essas ilações (3.6 a 3.10) não obstam que a doutrina de

Rawls relacione-se com qualquer doutrina abrangente de viés religioso, moral ou

filosófico, mas delas não depende, muito menos as pressupõe;

3.12. em oposição a isso, a teoria da ação comunicativa de

Habermas tem amplo escopo, cuida-se de doutrina abrangente que conflita com

outras igualmente abrangentes (metafísicas, morais e religiosas);

3.13. o problema é que Habermas toma o que é restrito como

abrangente, para o fim de criticar a doutrina política de Rawls;

3.14. o liberalismo rawlsiano deixa os cidadãos autônomos livres

para aderir a qualquer concepção abrangente razoável;

3.15. se assim é (3.14), então a doutrina de Rawls, antes de ejeitar,

pressupõe o pluralismo;

3.16. Rawls a partir de um trecho da obra Facticidade e Validade de

Habermas interpreta a teoria da ação comunicativa como aglutinadora da concepção

Sittlichkeit (vida ética) cunhada por Hegel;

3.17. por Sittlichkeit (vida ética) entenda-se um sistema de

instituições políticas e sociais que expressam e tornam real no mundo o conceito de

liberdade (cuida-se do lado objetivo da moralidade);

3.18. por conta disso (3.17 e 3.18), Rawls considera a doutrina de

Habermas lógica em sentido amplo hegeliano;

3.19. com efeito, ao contrário do que apregoou Habermas em sua

crítica, é a visão habermasiana que imprescinde de conceitos fundamentais

substanciais;

3.20. na doutrina de Rawls a concepção filosófica da pessoa passa

sim a ter uma concepção política dos cidadãos como livres e iguais, razoáveis e

racionais sem que tal concepção baseie-se na razão platônica ou kantiana que

justifique a crítica de Habermas pelo emprego de elementos a priori e metafísicos;

96

3.21. a diversidade de instrumentos representativos de ambas

doutrinas é corolário do descompasso entre as perspectivas ampla de Habermas e

restrita à política de Rawls (3.2 a 3.20);

3.22. a posição original e a situação ideal de fala são os

mecanismos de representação adotados respectivamente por Rawls e Habermas;

3.23. as diferenças entre esses dois mecanismos de representação

reside no papel que desempenham em cada uma das igualmente distintas doutrinas;

3.24. a perspectiva utilizada para avaliar tais mecanismos de

representação deve ser a dos cidadãos autônomos;

3.25. o cenário adequado para a discussão é a cultura da

sociedade civil, chamada por Habermas de esfera pública (cultura de fundo para

Rawls);

3.26. Rawls distingue a expressão habermasiana esfera pública da

razão pública junto ao liberalismo político: esfera pública reflete a concepção de

cultura de fundo (background culture); ao passo que razão pública é o juízo político

emandado de instituições e indivíduos;

3.27. é na esfera pública (ou cultura de fundo) que a multiplicidade

de doutrinas abrangentes convivem, é lá que se reúnem os pontos de vista de todos

os cidadãos e, enfim, da sociedade civil;

3.28. a posição original, ao contrário da situação ideal de fala, foi

cunhada para atender às necessidades do liberalismo político, mais restrito em

relação à doutrina abrangente de Habermas;

3.29. para Rawls, enquanto a posição original constitui um

instrumento de análise para formulação de uma conjectura; a situação ideal de fala

tem por escopo fornecer um mandamento de verdade ou validade;

3.30. por definição, da posição inicial extrai-se que cidadãos livres e

iguais chegaram a um acordo por si mesmos sobre esses princípios políticos sob

condições que os representam igualmente como razoáveis e racionais;

3.31. se assim é (3.30), os princípios na posição original, porque

cunhados dentro de certas limitações, devem ser tidos como aceitáveis, se não

definitivamente, ao menos como uma verossímil conjectura;

3.32. longe dessa provisoriedade (3.31) representar um problema,

97

ela entremostra-se positiva na medida em que abre margem a testar os princípios

noutra instância;

3.33. nessa instância (3.32), confrontar-se-ão os princípios obtidos

com nossas convicções ponderadas de justiça (equilíbrio reflexivo), tudo com o

escopo de ser verificar se eles efetivamente aplicam-se às instituições democráticas

(estruturas básicas da sociedade bem-ordenada – 1.17 a 1.19);

3.34. diversamente, os juízos resultantes da a situação ideal de fala

de Habermas não se submetem a outra instância de corroboração;

3.35. para Rawls, a situação ideal de fala já produz juízos são

válidos desde logo e independente de outras considerações;

3.36. porque a esfera pública congloba todo o tipo de doutrinas

abrangentes, bem como as opiniões mais diversas dos cidadãos autônomos (3.27),

então a justificação dos princípios da justiça como equidade não se dá de modo

monológico;

3.37. para repudiar a alegação de Habermas no sentido de que a

definição dos princípios é feita pelo teórico, não pelos cidadãos, Rawls sustenta que

em sua doutrina a visão do filósofo ou do teórico vale tanto quanto a do cidadão

normal: “não há peritos”;

3.38. qualquer sociedade bem-ordenada deve garantir que o

cidadão comum no cenário do espaço público traga ao debate inclusive os

postulados da teoria da justiça de Rawls;

3.39. a possibilidade de revisão dos juízos em qualquer direção é

consagrada pelo equilíbrio reflexivo pleno como critério geral do razoável;

3.40. esse critério (3.39) pode ser traduzido para doutrina de

Habermas como a aceitação racional da situação ideal de fala com todas as

condições exigidas por ela;

3.41. Pleno será o equilíbrio reflexivo amplo e geral.

3.42. será tanto mais amplo o equilíbrio reflexivo quanto mais forem

os cidadãos capazes de compreender as diferentes concepções de justiça e a força

de cada um dos argumentos que as constituem. Ao revés, será restrito na proporção

do grau de incompreesão dos cidadãos quanto aos pontos de vista extermos a ele

(consideram-se apenas seus próprios juízos);

98

3.43. será tanto mais geral o equilíbrio reflexivo numa sociedade

bem-ordenada quanto maior for o número de cidadãos que alcançaram o equilíbrio

reflexivo amplo;

3.44. o resultado do equilíbrio reflexivo amplo e geral numa

sociedade bem-ordenada é o consenso intersubjetivamente formado quanto à

concepção de justiça política;

3.45. o equilíbrio reflexivo amplo e geral é o elemento da doutrina

de Rawls que mais se aproxima da situação ideal de fala de Habermas.

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ANEXOS

103

ANEXO A - A DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS COMO ESPÉCIES DE NORMAS NA

OBRA TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE ROBERT ALEXY210

210 CACHICHI, Rogério Cangussu Dantas. A distinção entre princípios e regras como espécies de normas na obra teoria dos direitos fund amentais de Robert Alexy . In: Revista do Direito Público, Londrina, Volume 4, n.2. Maio a Agosto de 2009. Disponível em <http://www2.uel.br/revistas/direitopub/pdfs/VOLUME_4/num_2/A%20DISTINCAO%20ENTRE%20PRINCIPIOS%20E%20REGRAS%20COMO%20ESPECIES%20DE%20NORMAS%20NA%20OBRA%20TEORIA%20DOS%20DIREITOS%20FUNDAMENTAIS%20DE%20ROBERT%20ALEXY.pdf>. Acesso em 23 abr.2011.

104

ANEXO B - RECONCILIATION THROUGH THE PUBLIC USE OF REASON: REMARKS ON

JOHN RAWLS’S POLITICAL LIBERALISM

105

ANEXO C - POLITICAL LIBERALISM: REPLY TO HABERMAS