rodrigues & oliveira - as conseqüências para a educação da dicotomia entre fatos e valores

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    Volume 6, Nmero 6, Ano 6, Maro 2013

    Revista Pesquisa em Foco: Educao e Filosofia

    ISSN 1983-3946

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    As conseqncias para a educao da dicotomia entre fatos e

    valores morais1

    Srgio Murilo Rodrigues

    PUC MinasDoutorando em Filosofia pela Universidad Complutense de Madrid

    Julierme Roque de Oliveira

    PUC Minasbacharel licenciado em Filosofia - Bolsista FIP-PUC/FAPEMIG

    RESUMO

    O artigo mostra as conseqncias da separao radical entre fatos e valores morais para a

    educao. O objetivo discutir o problema da verdade moral e defender a necessidade dadiscusso racional de questes morais na escola visando formao cidad do aluno. Atravsdas teorias filosficas de Habermas e Putnam, pretende-se mostrar o surgimento da dicotomiaentre fatos e valores e como essa dicotomia pode ser superada.

    Palavras-chave: dicotomia fatos/valores morais, verdade, Habermas, Putnam, educao.

    1Pesquisa financiada pela FAPEMIG e pelo Fundo de Incentivo Pesquisa (FIP) da PUC

    Minas

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    ABSTRACT

    The consequences for the education of the dichotomy between facts and moral values

    The article exposes the consequences of radical separation between facts and moral values ineducation. The aim is to discuss the problem of moral truth and defend the need for rationaldiscussion of moral issues in school to citizen formation of the student. Through philosophicaltheories of Habermas and Putnam, is intended to show the onset of the dichotomy between factsand values and how this dichotomy can be overcome.

    Key-words:dichotomy facts/moral values, truth, education, Habermas, Putnam

    Introduo

    Um dos maiores desafios que hoje a educao encontra no plano tico relaciona-se

    ao debate acerca dos valores. Vivemos num mundo cada vez mais globalizado e pluralista.

    Com efeito, uma das consequncias do acelerado fenmeno da globalizao nos ltimos

    tempos, acompanhado dos avanos tecnolgicos no plano informacional, foi ter

    possibilitado uma troca cada vez mais intensa entre as diversas vises de mundo. Isso

    significa que no temos mais uma uniformidade no plano moral quanto a um pretendido

    cdigo de valores. E, no entanto, reconhecemos os valores como marcos que nos servem de

    orientao para uma vida plena de sentido. Segundo Hessen,

    () evidente que a plena realizao do sentido da nossa existncia dependertambm, em ltima anlise, da concepo que tivermos acerca dos valores.Aquele que nega todos os valores, nada mais vendo neles do que iluso, no

    poder deixar de falhar na vida. Aquele que tiver uma errada concepo dosvalores no conseguir imprimir vida o seu verdadeiro e justo sentido(HESSEN, 2001, p.33).

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    Frente a essa falta de consenso quanto quilo que para ns significa levar uma vida

    boa e justa, que possibilidades nos restam no plano da educao moral? E como a escola e o

    professor podem tomar parte nesse desafio da formao da conscincia moral dos

    indivduos?

    No fundo, esta uma temtica que concerne ao problema da verdade moral.

    Seriam nossas proposies morais carente de garantia objetiva? Enunciados morais so

    suscetveis de verdade ou de falsidade? possvel conhecer e corrigir racional e

    objetivamente nossas interpretaes quanto quilo que seja uma vida boa e justa?

    Duas propostas ticas distintas tentam responder a essa indagao, sendo

    classificadas de ticas cognitivistase ticas no-cognitivistas:

    Sob esse ponto de vista, as ticas cognitivistas seriam aquelas que concebem ombito moral como um mbito a mais do conhecimento humano, cujos

    enunciados podem ser verdadeiros ou falsos. Em contrapartida, as ticas no-cognitivistas seriam as que negam que seja possvel falar de verdade ou defalsidade nesse terreno e, em conseqncia, as que concebem a moralidade comoalgo alheio ao conhecimento. (CORTINA; MARTNEZ, 2005, p. 106)

    Uma e outra proposta tero seus desdobramentos no que concerne ao problema dos

    valores. Quanto ao no-cognitivismoem tica, dentre as suas conseqncias est a de no

    reconhecer a tica como cincia e, por conseguinte, no permitir uma discusso racional

    acerca de valores e normas. Tal concepo desemboca num relativismo extremoquanto

    moralidade. A acepo do termo relativismo comportaria ainda outras distines. Mas para

    o nosso intento, admitimos o sentido forte para o termo relativismo, ou seja, a corrente que

    afirma que valores e normas no possuem uma objetividade, mas so relativos a cada

    sujeito ou restritos a uma determinada comunidade: os conceitos ticos so

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    fundamentalmente subjetivos e no podem ser universalizveis. Sendo assim, o tratamento

    racional dos valores fica evidentemente comprometido.

    Se esta a condio dos valores, que se lhes resta no plano da educao moral?

    Como buscar racionalmente a resoluo de conflitos oriundos das vises discrepantes de

    mundo ou de vida boa? Ora, se os valores so puramente subjetivos sem nenhum

    pressuposto cognitivo que viabilize sua discusso, ento s resta a cada qual recolher seu

    valor, retirar-se para seu prprio mundo e abandonar os conflitos ticos no gldio da vida.

    Ser essa uma alternativa apropriada para um mundo em que os conflitos ticos exigem um

    posicionamento crtico visando sua resoluo, sob a pena de virem a se tornar conflitossociais em maior escala? Putnam (2008, p. 14), chama a ateno para a gravidade do

    problema: em nossa poca, a questo de quais so as diferenas entre juzos fatuais e

    juzos de valor no um assunto da torre de marfim. Podem estar em jogo

    literalmentequestes de vida ou morte(HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 14).

    A outra proposta para a soluo do problema incorporada pelas ticas

    cognitivistas. Sob tal perspectiva, os valores possuem um contedo cognitivo e, assim, so

    passveis de uma discusso racional, que pode viabilizar sua universalizao a partir de umconsenso de todos os concernidos pela prpria discusso. a perspectiva da tica do

    discurso de Apel (1994) e de Habermas (1989), proposta sobre a qual nos deteremos no

    presente artigo.

    Um possvel conceito de valor seguindo essa linha tica pode ser exprimvel na

    linha do que pensa Goergen. Segundo ele, valores so () princpios consensuados,

    dignos de servirem de orientao para as decises e comportamentos ticos das pessoas

    que buscam uma vida digna, respeitosa e solidria numa sociedade justa e democrtica

    (GOERGEN, 2005, p. 989).

    Ora, justamente no que concerne ao lugar dos valores na tica do discurso que se

    levanta uma crtica interessante de Putnam contra a concepo da tica discursiva de

    Habermas. Segundo Putnam, o ponto de divergncia a profunda separao que

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    Habermas estabelece entre valores e normas(PUTNAM, 2008, p.15), uma dicotomia

    que, segundo Putnam, fatalmente autodestrutiva para as normas.

    O dissenso gira em torno da objetividade dos valores, tendo um pano de fundo

    pragmatista. Putnam atribui a Habermas um no-cognitivismo em relao aos valores.

    Habermas, em seu turno, afirma que Putnam incorre numa espcie de realismo redutivo

    concernente aos valores. Um e outro rejeitam o realismo metafsico para tratar da questo e

    chegam, em vrios pontos, a se tangenciar.

    Propomo-nos, no presente artigo, a percorrer o problema da verdade moral a partir

    da anlise da dicotomia fato/valor que Putnam faz e do seu debate com Habermas.

    2. A dicotomia fatos/valores e seu colapso

    Por que a distino entre fatos e valores pode ser problemtica? Exemplos, retirados

    do senso comum, podem clarificar esse questionamento. Quando valores esto emdiscusso, no raro at mesmo em debates realizados em sala de aula, freqentemente

    ouvimos afirmaes do tipo: isso algo pessoal (subjetivo); cadaum tem seu ponto de

    vista; gosto no se discute. O mais interessante que, embora queiram eximir-se de dar

    justificaes racionais para os valores, ou at mesmo de contest-los explicitamente, as

    pessoas pretendem que seus valores sejam verdadeiros. E por isso surgem os conflitos. No

    se trata de cada um aceitar oseuvalor, mas de querer imp-loao outro.

    Isso ilustra aquilo que Putnam afirma: a idia de que juzos de valor so

    subjetivos uma criao da filosofia que veio a ser gradualmente aceita por muitas

    pessoas como se fizesse parte do senso comum(PUTNAM, 2008, p. 13).No se nega aqui

    a distino necessria entre fatos e valores. O problema que Putnam ir investigar

    filosoficamente, em especial na obra O colapso da verdade (2008), a dicotomiaque se

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    estabelece entre eles, como se houvesse um abismo intransponvel entre fatos e valores, de

    tal modo que, somente os fatos podem ser objetivos e por isso, racionalmente passveis dediscusso.

    Putnam inicia sua investigao analisando outra dicotomia: juzos analticos/juzos

    sintticos. Como se sabe, Kant (1980, B 10-14) distingue entre juzos analticos e juzos

    sintticos. Ele entende que um juzo analtico quando: (1) sua negao acarreta

    contradio, portanto, so necessrios; (2) o sujeito contm o predicado, (3) explicativo

    ao invs de ampliativo (apenas explicita um conhecimento implcito). Os juzos sintticos

    so aqueles em que: (1) o predicado no est contido no sujeito (no so necessrios) e,portanto, (2) so ampliativos, ao invs de explicativos, fundados na experincia. A grande

    novidade kantiana diz respeito possibilidade de um terceiro tipo de juzos, os sintticos a

    priori, ou seja, o tipo de juzos em que (1) o predicado no est contido no sujeito

    (portanto, no so analticos), porm, so necessrios (portanto, a priori) e (2) so

    ampliativos, (portanto, sintticos), mas no esto fundados na experincia (portanto, no

    so a posteriori). Para Kant, as verdades matemticas so juzos sintticos a priori. Isso

    explicaria porque certos tipos de conhecimento independem da experincia.

    A anlise de Putnam, mediante a qual ele constata a dicotomia fato/valor, debate

    diretamente com os positivistas lgicos. Segundo ele, o Positivismo Lgico inflacionou a

    distino kantiana entre analtico e sinttico a fim de fazer toda a matemtica ser

    enquadrada como juzos analticos (e no sintticos a priori, como Kant, ou analtico

    ampliativo, como Frege) findando por estabelecer uma dicotomia entre analtico e sinttico,

    que levaria, por fim, dicotomia fato/valor, pois, ou um juzo provm da experincia,

    sendo um fato, ou analtico (a priori).

    No sculo XX, os positivistas oponentes de Kant tentaram expandir a noo doanaltico de modo a abarcar toda a matemtica (que eles, com efeito,afirmavam ser uma questo de nossas convenes lingsticas, enquanto opostasaos fatos). Assim, para os positivistas, ambas as distines, a distino entre fatos

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    e valores e a distino entre analtico e sinttico, contrastam fatos com algumaoutra coisa: a primeira contrasta fatos com valores e a segunda contrasta

    fatos com tautologias (ou verdades analticas).(PUTNAM, 2008, p.21)

    A tarefa a que se propunha o Positivismo Lgicoera unificar todas as cincias em

    um nico mtodo e conseqentemente em uma nica concepo de mundo. Para isso era

    necessrio valer-se

    () de um sistema de frmulas neutro, um simbolismo liberto das impurezas daslinguagens histricas; recusando-se distncias obscuras e profundezasinsondveis. Na cincia no h profundezas; a superfcie est em toda parte(). Tudo acessvel ao homem; e o homem a medida de todas as coisas. ().A concepo cientfica do mundo desconhece enigmas insolveis. Oesclarecimento dos problemas filosficos tradicionais conduz a que eles sejam

    parcialmente desmascarados como pseudoproblemas e parcialmentetransformados em problemas empricos, sendo assim submetidos ao juzo dascincias empricas. A tarefa do trabalho cientfico consiste neste esclarecimentode problemas e enunciados, no, porm, em propor enunciados filosficos

    prprios. O mtodo deste esclarecimento a anlise lgica () (BASTOS &

    CANDIOTTO, 2008, p. 49-50).

    Ora, esta tarefa implicava a reformulao da linguagem cotidiana para delinear uma

    linguagem lgica dotada de significado, ou seja, verdadeira. Para isso, os positivistas

    lgicosincluram na categoria de enunciados significativos praticamente s os enunciados

    cientficos, ou que podiam ser formulados na linguagem da cincia, enquanto os outros

    enunciados (metafsica, tica, esttica) eram considerados como carentes de significado.

    esse o conceito de verdade de cujo colapso Putnam se faz arauto. Segundo ele, o

    colapso da concepo positivista dessa dicotomia veio com Quine (1980), em 1951, quando

    argumenta que os enunciados cientficos no podem ser nitidamente separados em

    convenes e fatos. (PUTNAM, 2008, p. 21). Quine criticou os positivistas primeiro

    por seu fracasso em apreciar que o elemento da conveno uma caracterstica das

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    hipteses cientficas em geral (e no somente de certas sentenas cientficas particulares) e,

    segundo, por seu fracasso em apreciar que uma caracterstica do evento passageiro, aoinvs da verdade, que , desse modo, instituda (QUINE apud. PUTNAM,2008, p.25),

    podendo ser, assim, confrontada com outras sentenas tericas. Alm disso, Quine afirma

    que no faz sentido algum em distinguir uma classe de verdades analticas das sintticas.

    Segundo Putnam (2008, p.26), pode-se aceitar o insightde Quine de que h sentenas que

    no podem ser classificadas como analticas ou sintticas, mas com a ressalva de aceitar

    que tambm h casos de sentenas que caem em um e outro lado e que, portanto, a

    distino necessria. A esse respeito Quine concedeu que Putnam estava correto.

    Faltava desde o incio a possibilidade de haver muitos tiposde enunciados queso no-analticos e a possibilidade de que identificar um enunciado como nosendo analtico no seja (ainda) identificar um tipo de enunciadofilosoficamente interessante. (PUTNAM, 2008, p.27)

    Aquilo que ospositivistas lgicosno apreciaram que os prprios critrios que nos

    guiam na escolha das hipteses (coerncia, simplicidade, preservao da doutrina passada e

    similares) e, por conseguinte, na formulao das teorias sob cujo prisma verificamos

    aquilo que se entende como uma descrio correta do mundo pressupem valores, os

    valores epistmicos. Para o positivismo lgico a concepo do factual que faz todo o

    trabalho filosfico. Mas o que para eles significa, afinal, um fato?

    a onde entra em cena a histria da dicotomia entre fatos e valores enunciada por

    aquela que ficou conhecida como afalcia naturalistade Hume (2000, 27, Livro II, ParteI, Seo I), a saber, de que no se pode inferir um deve a partir de um (PUTNAM,

    2008, p.28), ou seja, () se um juzo de descreve uma questo de fato, ento nenhum

    juzo deve pode ser derivado dela. (PUTNAM, 2008, p.29). Isso porque, conforme

    Putnam, a concepo do factual do Positivismo Lgico diretamente dependente de um

    esprito empirista estreito da natureza dos fatos, e no dos valores. Para Hume, com

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    efeito, um fato simplesmente aquilo do qual pode existir uma impresso sensvel e, que,

    por conseguinte, possui a propriedade de constituir uma idia figurvel, ou seja, de seassemelhar coisa que ela representa. Nesse sentido, conforme sua prpria concepo

    semntica, Hume estaria certo ao afirmar que simplesmente no existem questes de fato

    acerca do vcio ou da virtude, pois, do contrrio, a virtude ou o vcio deveriam possuir uma

    propriedade que fosse figurvel, como figurvel a propriedade de ser ma.

    E, assim como o colapso da credibilidade filosfica da noo kantiana de uma

    verdade sinttica a priori conduziu os positivistas lgicos a retornar a umaconcepo amplamente inflada da idia humeana, de que um juzo ou analtico() ou sinttico a posteriori (), e tambm a expandir o analtico (uma vez queno funcionou a tentativa empirista clssica de mostrar que a matemtica sinttica a posteriori), do mesmo modo, o colapso da credibilidade filosfica danoo kantiana de razo prtica pura (e, com ela, da variedade kantiana de umatica a priorifundada naquela noo) conduziu os positivistas lgicos a retornar auma verso amplamente inflada da idia de Hume de que os juzos ticos no soenunciados de fato, mas expresses de sentimentos ou imperativos encobertos.() para o positivista, esses imperativos no podem ser racionalmente

    justificados, mas simplesmente refletem, no fundo, o estado volitivo do falante.(PUTNAM, 2008, p.33. grifo nosso).

    A maior conseqncia da sustentao da dicotomia fato/valor para o campo da tica

    a elaborao de uma tese do Positivismo Lgico: () qual seja, a tese de que a tica

    no trata de questes de fato.(PUTNAM, 2008, p.35) Para Hume, tal tese no implica a

    excluso da tica do domnio da cincia e da filosofia, enquanto para Carnap e os

    positivistasem geral, esta a inteno.

    Hume foi capaz de combinar seu no-cognitivismo em tica com uma f naexistncia de uma coisa como a sabedoriatica porque partilhava a confortvelsuposio do sculo XVIII segundo a qual todas as pessoas inteligentes e beminformadas, que dominassem a arte de pensar imparcialmente sobre as aes e os

    problemas humanos, teriam os sentimentos apropriados de aprovao e

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    desaprovao nas mesmas circunstncias, a menos que existisse alguma coisaerrada com sua constituio pessoal. (PUTNAM, 2008, p.35-36)

    Por conseguinte, a discusso racional dos componentes do saber tico, como valores

    ou normas, fica comprometida se se sustenta a linguagem dotada de sentido conforme o

    modelo defendido peloPositivismo Lgico.

    Contudo, se a concepo de fatual do positivismo lgico depende diretamente de

    um esprito empirista estreito, foi essa mesma dependncia que a levou ao colapso. Pois,

    nos dias de Hume, ainda era razovel manter que no existem predicados cientificamente

    indispensveis que se referem a entidades no-observveis com os sentidos humanos

    (PUTNAM, 2008, p.37). Com efeito, a noo humeana de um fato simplesmente

    aquilo do qual pode existir uma impresso sensvel(PUTNAM, 2008, p.38). Na poca

    em que o Crculo de Viena foi formado, porm, j se sabia de experimentos que

    demonstravam a existncia de bactrias e tomos mesmo sem se poder observar

    diretamente pelos sentidos. A idia de que um fato simplesmente uma impresso

    sensvel tornava-se muito difcil de defender (PUTNAM, 2008, p.39). Com isso, o

    Positivismo Lgico passou a procurar uma demarcao mais satisfatria do que seria um

    fato. Carnap liberaliza ligeiramente o conceito de fato enquanto impresso sensvel para

    assumir o fato como aquilo que pode ser redutvela termos de observao e enuncivel

    na linguagem da cincia. Assim, termos abstratos como eltron ou carga podem ser

    empiricamente significativos na medida em que o sistema como um todo permite

    predizer nossas experincias com maior sucesso do que poderamos sem ele. (PUTNAM,

    2008, p.41). No critrio positivista lgico revisado do significado cognitivo, o sistema

    de enunciados cientficos como um todo que tem contedo fatual. Mas e quanto aos

    enunciados individuais?(PUTNAM, 2008, p.40)

    Para Putnam, a crtica de Quine concernente aos termos tericos tambm colapsa o

    prprio critriopositivista lgicorevisado do significado cognitivo. Pois a partir dela

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    () todo o argumento da dicotomia fato/valor estava em runas e, assim, atonde o empirismo lgico poderia afirmar, a cincia precisa pressupor valorestanto quanto experincias e convenes. De fato, uma vez que paramos de pensarem valor como sinnimo de tica, fica muito claro que a cincia pressupe,sim, valoresela pressupe valores epistmicos. (PUTNAM, 2008, p.49-50)

    Contudo, cabe ainda uma importante distino a ser feita: os valores epistmicosso

    diferentes dos valores ticos. De incio, o fato de a cincia pressupor valores epistmicos

    no implicaria ainda reivindicar uma objetividade para os valores ticos. Valores

    epistmicos seriam aqueles que nos guiam na descrio correta de mundo. Contudo,

    Putnam assinala que h um erro em identificar descrio correta de mundo com

    objetividade. Do contrrio, os valores ticos estariam conectados com critrios idnticos

    aos dos valores epistmicos, e assim seriam objetivossob qualquer condio.

    A idia baseia-se na suposio de que objetividade significa correspondncia com

    os objetos. Porm, no apenas as verdades normativas, mas tambm as verdades

    matemticas e lgicasso exemplos de objetividade sem objetos. Assim, mister parar de

    igualar objetividade com descrio. Dizer que os valores epistmicos so aqueles que nos

    guiam em nossa descrio correta de mundo significa que no podemos escolher uma teoria

    como sendo a mais adequada para uma descrio desse gnero, sem pressupor padres de

    uma crena emprica justificada, e que, portanto, herdamos de registros e testemunhos

    nos quais temos uma boa razo para confiar segundo esses mesmos critrios da reta

    razo (PUTNAM, 2008, p. 52). Significa que no podemos escolher uma teoria como

    sendo a mais adequada para uma descrio desse gnero, sem pressupor padres de umacrena emprica justificada, e que, portanto, herdamos de registros e testemunhos nos

    quais temos uma boa razo para confiar segundo esses mesmos critrios da reta razo

    (PUTNAM, 2008, p. 52). S podemos ver os valores mais adequados para uma teoria

    atravs das lentes destes mesmos valores.

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    Por outro lado, a imbricao fato/valor no se limita s espcies de fatos

    reconhecidas pelos positivistas lgicos nem aos valores epistmicos. (PUTNAM, 2008,p.53). Ela se estende aos valores ticos. E, para Putnam, h uma categoria de conceitos que

    desafiam qualquer dicotomia entre fatos e valores. So os conceitos ticos espessos, que

    podem ser ora usados para um propsito normativo e outras vezes como um termo

    descritivo. Por exemplo, pode-se usar a palavra cruel nesse sentido, para reprovar uma

    atitude cruel normativamente, ou simplesmente para descrever a crueldade de um tirano

    num dado evento histrico.

    Os defensores da dicotomia fato/valor oscilam entre posies no-cognitivistas erelativistas no que concerne aos conceitos ticos espessos. Quanto ao no-cognitivismo,

    costumam apelar para dois argumentos: (1) os conceitos ticos espessos so meros

    conceitos fatuais, e no conceitos ticos ou normativos; (2) os conceitos ticos espessos so

    fatorveis em um componente descritivo (relativo aos fatos) e um componente atitudinal

    (referente s atitudes). Para Hare (1996), por exemplo, segundo o requisito motivacional do

    seuprescritivismo, os conceitos ticos espessos no podem ser vistos como conceitos ticos

    simplesmente porque, para s-lo, necessrio que qualquer um que o empregue

    honestamente se veja motivado a aceit-lo (ou desaprov-lo), enquanto os conceitos ticos

    espessos implicam ambigidade de juzos. Assim, a palavra rude, embora tomada em

    geral como um conceito normativo, no pode ser assim considerada porque, conforme o

    exemplo que ele mesmo d, destituda do requisito motivacional, podendo ser prestada

    para juzos ambivalentes e dspares. Ela seria meramente descritiva. Os proponentes da

    imbricao defendem que no por causa de um requisito motivacional que algum se

    inclina a aprovar um juzo de valor, mas por compartilhar, em algum momento, o ponto de

    vista tico relevante que o conceito tico espesso traz consigo, o que requer uma habilidade

    contnua de identificao com aquele ponto de vista.

    A outra base sob a qual se tem refutado a imbricao fato/valor nos conceitos ticos

    espessos o fisicalismo, cujo maior expoente Bernard Williams (2005). O fisicalismo

    defende que a concepo absoluta de mundo descrita por meio de uma fsica

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    adequada. Disso se segue no uma dicotomia fato/valor, mas uma dicotomia entre o que

    absolutamente o caso e a perspectiva, sendo a primeira independente da perspectiva dequalquer observador e a segunda, no. Assim, Williams no nega que os juzos ticos

    possam ser verdadeiros ou falsos; apenas nega que possam s-lo independente de qualquer

    perspectiva. A conseqncia no um no-cognitivismo, mas um relativismo.

    Se o no-cognitivismo fracassa, como pudemos apreciar pela imbricao fato/valor,

    () o relativismo, derivado do cientificismo contemporneo, ameaa pr muito mais do

    que os juzos ticos no saco das verdades que so vlidas somente a partir de uma ou outra

    perspectiva local(PUTNAM, 2008, p.65).

    Reformulemos agora o problema apontado no incio dessa seo. Por que, afinal, as

    pessoas querem relativizar os valores? Ou, conforme Putnam, Por que somos tentados

    pela dicotomia fato/valor?. Dois so os motivos fundamentais. O primeiro, de algum

    modo, j foi dito no incio: porque mais fcil eximir-se da discusso tica, dizendo

    simplesmente sobre um juzo tico que esse um juzo de valor, portanto uma questo

    subjetiva, do que dar-lhe um tratamento racional. Em geral, quando valores ou normas

    esto em discusso ou conflito, no se tratam apenas de conceitos meramente abstratos queesto em jogo, mas de norteadores com os quais orientamos o sentido de nossas vidas.

    Aceitar entrar numa discusso a seu respeito significa estar disposto a sustent-lo

    racionalmente, ou mesmo a revis-lo frente a outras concepes, ou ainda aceitar que

    determinados conflitos so racionalmente insolveis. Contudo, dizer que uma disputa

    tica no racionalmente insolvel no implica comprometer-se a resolver todas as

    nossas discordncias ticas, mas nos comprometemos com a possibilidade da discusso.

    Com efeito, a pior coisa acerca da dicotomia fato/valor que, na prtica ela funcionacomo algo que encerra a discusso e no apenas isso, mas algo que encerra o

    pensamento(PUTNAM, 2008, p. 65).

    nesse sentido que Putnam tambm rebate o outro motivo pelo qual se poderia

    apelar para um relativismo moral.

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    Outro apelo mais respeitvel para aqueles que temem que a alternativa aorelativismo cultural seja o imperialismo cultural. Mas no incompatvelreconhecer que nossos juzos ticos reivindicam validade objetiva e que eles soformados em uma cultura particular e em uma situao problemtica particular. Eisso verdade tanto para as questes cientficas quanto para as questes ticas. Asoluo no abandonar a prpria possibilidade de discusso racional nem buscarum ponto arquimediano, uma concepo absoluta, fora de todos os contextos esituaes problemticas, mascomo Dewey ensinou por toda a sua longa vida investigar, discutir e tentar coisas cooperativa, democrtica e, acima de tudo,

    falibilisticamente. (PUTNAM, 2008, p.66)

    3. A dicotomia valores/normas

    Aps analisar a dicotomia entre fatos e valores, a crtica de Putnam se volta para a

    dicotomia entre valores e normas, que ele alega estar presente na proposta da tica do

    discurso de Apel e Habermas. A crtica de Putnam no ficou sem resposta da parte de

    Habermas. Com efeito, o problema da objetividade dos valorese do cognitivismoem tica

    algo que tange os dois filsofos de modo particular. O debate entre os dois permeado

    por um problema tico de fundo: a universalizao dos valores face a um pluralismo na

    tica. O questionamento de Habermas ilustra bem essa preocupao:

    A ns, os pluralistas modernos, se nos apresenta, antes de tudo, a questo decomo se podem regular os conflitos e as relaes normativas entre grupos sociaiscom ideais antagnicosideais de florescimento humano , tanto mais quanto

    partimos da premissa de que qualquer genealogia racional dos valores estvinculada a nossa prpria perspectiva de uma comunidade cooperativa

    preocupada por seu bem-estar. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 103)

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    A tica do discurso constitui uma possvel resposta a esta problemtica, adotando

    um carter procedimental para a resoluo de conflitos ticos. Exploraremos, a seguir, ospontos do debate que consideramos mais importante, bem como as concluses obtidas que

    possam servir de apoio para o trabalho dos educadores no mbito da formao moral. Um

    modo de sumarizar nossa abordagem pode ser sistematizado da seguinte forma: 1) a tica

    do discurso e sua importncia para a formao moral; 2) a questo da objetividade dos

    valores e do cognitivismo em tica; 3) o pluralismo em tica e o problema da

    universalizao dos valores; 4) perspectivas do debate para a educao moral. Cada uma

    dessas sees ser analisada de acordo com o modo em que aparecem no debate.

    3.1 A tica do discurso e sua importncia para formao moral

    O debate gira em torno da proposta da tica do discurso, de Apel e Habermas, mais

    especificamente no que diz respeito formulao habermasiana dessa tica. A tica do

    discursopossui um carter cognitivista, ou seja, entende os contedos da moral como ummbito a mais do conhecimento humano e, assim, defende que seria possvel atribuir o

    predicado verdadeiro ou falso no caso de Habermas, correto e incorreto para as

    proposies morais. Alm do mais, tambm uma tica procedimental, que procura

    oferecer um procedimento de modo a possibilitar a universalizao do fenmeno moral, em

    busca de um consenso.

    Continuadores do pensamento kantiano, os procedimentalistas afirmam que atarefa tica no outra que a dimenso universalizvel do fenmeno moral,dimenso que coincide com as normas acerca do que justo, e no do que bom.(CORTINA; MARTNEZ, 2005, p. 88).

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    E ainda, apresenta um carter dialgicocomo premissa base para a fundamentao

    das proposies morais. por esses, dentre outros motivos que a tica do discursose revelacomo uma das propostas atuais mais relevantes para a resoluo de conflitos ticos num

    mundo cada vez mais pluralista no que concerne aos valores e s normas.

    A tica do discurso busca dar tica um fundamento racional atravs da idia deque a reflexo sobre os pressupostos da comunicao interpessoal permiteidentificar os princpios morais realmente irrenunciveis que devem ser a base detoda convivncia humana: o reconhecimento do outro, a no coao da

    comunicao e a disposio para a soluo de problemas e a fundamentao dasnormas atravs do discurso livre e igual. Desse modo, pode-se fundamentar umatica secular, no metafsica, que apropriada a uma situao de pensamento, naqual somente pessoas ainda muito ingnuas podero recorrer a instituiesambguas de valores ou ancoragem diferente. (REESE-SCHFER, 2010, p.64)

    Inicialmente, Putnam assume-se como grande entusiasta da proposta da tica do

    discurso de Apel e Habermas, chegando a defend-la em alguns pontos, na medida em que

    a compreende como uma proposta procedimental para a resoluo de conflitos ticos:

    Um modo de entender a tica discursiva habermasiana pensar nelaprecisamente como esse caminho do meio, um caminho no qual a filosofiapode ser participante valiosa e distintiva em nossas discusses ticas, sempretender a autoridade de uma corte suprema de apelao. () Em vez deempreender a tarefa de produzir um sistema tico final , um conjunto final deregras de conduta, o que Habermas nos oferece uma regra de como conduzirnossos inevitveis desacordos sobre as regras de primeira-ordem que devem

    governar nossa conduta. A esse respeito, precisamos descrever Jrgen Habermascomo um filsofo moral kantiano minimalista (HABERMAS & PUTNAM,2008, p. 155).

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    Ademais, pelo carter de incluso dos sujeitos capazes de fala e ao num dilogo

    em busca de um consenso, a tica do discurso se manifesta como uma ferramenta preciosapara a formao moral de carter reflexivo, especialmente no mbito escolar. A necessidade

    de uma tica no-dogmtica, por um lado, que ao mesmo tempo no renuncie a

    possibilidade de discutir e oferecer concluses consensuadas assimilveis internamente

    pelos sujeitos, por outro, torna essa proposta particularmente atraente para as discusses

    ticas no mbito escolar, na qual os educadores em especial os professores de Filosofia

    inevitavelmente tero de tomar parte.

    3.2 A questo da objetividade dos valores e do cognitivismo em tica.

    O ponto de desacordo entre Putnam e Habermas refere-se justamente ao modo como

    cada um deles entende a objetividade dos valores. Putnam contesta uma profunda

    separao que Habermas estabelece entre valores e normas(PUTNAM, 2008, p.15).

    Habermas, por sua vez, faz notar que, o sentido pelo qual Putnam defende a objetividadedos valores

    () parece falar contra a concepo de que o conhecimento tico unicamentegoza de uma validez que especfica de uma cultura e de que a capacidade deorientao de tal conhecimento se desvirtua fora das formas de vida e tradiescorrespondentes. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 94)

    Pois, certamente, os valores encontram reconhecimento intersubjetivo na

    comunidade para cuja forma de vida tais valores resultam constitutivos(HABERMAS &

    PUTNAM, 2008, p. 94).

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    Essa posio de Habermas nos permite entrever um dos pontos centrais em torno do

    qual gira o debate. Putnam acusa Habermas de um sociologismo em relao aos valores,ou seja, uma espcie de contextualismo. Segundo essa concepo, os valores possuem um

    conceito de verdade restrito ao contexto scio-cultural no qual foram gerados. Quando

    ultrapassam as fronteiras do mundo social no qual foram gerados, surgem dois problemas:

    1) h de se estabelecer um outro tipo de objetividade que possibilite sua universalizao; e

    2) Porm, a conseqncia disso, para Putnam, o no reconhecimento da objetividade dos

    valores, o que inviabiliza sua discusso racional. Comecemos a partir deste segundo ponto.

    Por norma Habermas entende um enunciado de obrigao universalmentevlido. Enquanto o tratamento das normas kantiano, no sentido de que o

    poder obrigatrio das normas que Habermas passou a vida defendendo, as normasda tica discursiva, seu poder obrigatrio baseado no poder obrigatrio do

    prprio pensamento e da comunicao racional, os valores, em contraste, sotratados naturalisticamente. Eles so vistos como produtos sociais contingentes,que variam conforme variam os diferentes mundos da vida. () A norma daao comunicativa habermasiana requer de ns que defendamosnossos valorescom os meios da ao comunicativa (). Somente os valores que podem

    sobreviver a essa defesa so legtimos. Mas, entre os valores que so legtimos,no pode haver melhor e pior em qualquer sentido que transcenda o mundoda vida de um grupo particular. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p.150-151,grifo nosso).

    Assim, Putnam conclui que Habermas incorre no mesmo no-cognitivismo em

    relao aos valores que os positivistas lgicos. Pois, segundo a concepo de Habermas, os

    valores no podem ser verdadeiros ou falsos. Podem ser corretos ou incorretos na

    medida em que so formulados em normas. precisamente a que reside, para Putnam, adicotomia norma/valor.

    Putnam defende que: a) todos os juzos de valor, na prtica, so vistos como

    verdadeiros ou falsos e assim devem ser vistos(HABERMAS & PUTNAM, 2008, p.152);

    b) a dicotomia norma/valor pressupe um ceticismo acerca do realismo de valor que,

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    para Putnam, deriva de algo no kantismo que leva os filsofos nessa direo

    (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p.152); c) o ceticismo acerca do realismo de valor,mesmo se restrito a valores que no so normas, , fatalmente, auto-destrutivo

    (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 152).

    A dicotomia norma/valor provm, para Putnam, de uma espcie de naturalismo

    redutivo, presente em algumas concepes ticas de base kantiana, com relao aos

    valores. O naturalismo redutivo afirma, em suma, que ns no queremos coisas porque

    percebemos que elas so boas: antes, nossas atraes iniciais por elas so impulsos

    psicolgicos naturais. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 156).

    O que Korsgaard chama de os objetos de nossas inclinaes no so aindavalores, de acordo com sua exposio, nem esses impulsos psicolgicosiniciaisso ainda valoraes. Nsfazemos deles valores e valoraes adotando amxima que nos leva a valoriz-los ou no, a agir de acordo com eles ou no.(HABERMAS & PUTNAM, 2008, p.156, grifo nosso).

    Assim, o ser humano quem confere valor s coisas e, portanto, ele deve valorizar a

    humanidade como fim em si mesmo.

    Para Putnam, h nessa perspectiva dois problemas: 1) nossas prprias mximas e

    as prprias leis que impomos a ns mesmos, universalizando-as, contm termos

    valorativos, em particular, as chamadas palavras ticas espessas() (HABERMAS &

    PUTNAM, 2008, p. 156-157). Portanto, sem nossa diversidade humana de valores, no

    h vocabulrio para estabelecer as normas(HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 159). 2)essa concepo fornece uma imagem da mente como se ela fosse dividida em faculdades

    discretas, uma imagem na qual a percepo fornece fatos neutros e os valores vem da

    vontade.(HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 157).

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    No de estranhar, de acordo com sua proposta de imbricao entre fato e valor,

    que Putnam proponha o predicado verdadeiro como sendo aplicvel s proposiesmorais. Vimos, anteriormente, como Putnam demonstra que os termos tericos da cincia

    tambm pressupem valores epistmicos e que, portanto, como bem o lembra Habermas

    se a prpria investigao se deixa guiar por orientaes de valor sem que por issose ponha em perigo a pretenso de objetividade de seus enunciados, por que entodeveriam considerar-se como menos objetivos os juzos de valor em outrosmbitos? ()Esta formulao j revela a estratgia argumentativa com a qual

    Putnam transfere para a tica o realismo que tem sua origem na teoria doconhecimento. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 91)

    Isso porque, se os conceitos ticos espessos so, ao mesmo tempo, descritivos e

    valorativos, e se o predicado verdadeiro atribudo ao carter descritivo de uma

    proposio, ento as proposies ticas tambm so passveis de serem verdadeiras.

    Destarte, o que Putnam defende que, se nossas formulaes de mximas e leis

    pressupe o uso de termos valorativos, s reconhecendo as demandas que nos requerem os

    distintos valores que somos capazes de dotar de contedo uma tica de base kantiana,

    como o a tica do discurso. Para ele, se as nossas mximas contm conceitos ticos

    espessos, qualquer posio que restrinja o alcance desses conceitos ao interior de um

    mundo social local, inviabiliza o projeto de tornar universalmente inteligvel as normas. O

    relativismo de qualquer tipo com relao aos valores, no pode deixar intactas as

    normas. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 161). H, pois, uma imbricao entre

    normas e valores.

    Habermas, por seu turno, afirma que Putnam quer assegurar aos enunciados de

    valor o sentido de validez realista prprio dos enunciados empricos verdadeiros

    (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p.100-101). Para ele, o argumento central de Putnam :

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    Se os enunciados empricos dos quais no duvidamos que possam resultarverdadeiros esto j entretecidos indissoluvelmente com compromisso de valor,

    ento () igualmente absurdo pr em dvida que possam ser verdadeiros oufalsos os enunciados valorativos que expressam explicitamente tais valores.(HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 80).

    Tal posio suporia uma continuidade entre os juzos de valor e os juzos empricos.

    Entretanto, para Habermas, h uma distino a ser salvaguardada a: os juzos de valor

    possuem uma pretenso de validade distinta dos juzos empricos.

    As normas universalizveis merecem reconhecimento porque esto no interessecomum de todos ou porque so igualmente boas para todos e para cada um. Avalidez das normas se mede pelas relaes antecipadas de reconhecimentorecproco no reino dos fins inclusivo. As normas no se conformam a o mundoobjetivo como o fazem os fatos, isto , no se ajustam s restries s quaisestamos submetidos em nosso trato com a realidade que nos desengana, um tratoque est guiado pela resoluo de problemas. (HABERMAS & PUTNAM, 2008,

    p. 92).

    Habermas sustenta que os enunciados de valor no recebem o predicado de

    verdadeiro como os enunciados empricos, mas de correo ou adequao: so

    corretos os enunciados de valores que merecem reconhecimento universal. Verdadeiro

    algo prprio do conhecimento emprico. Isso porque eles se referem a contedos distintos.

    Enquanto osjuzos empricosse referem a um mundo objetivona perspectiva de umsujeito

    observador, os juzos de valorse referem ao mundo da vidana perspectiva de um sujeito

    participantecapaz de fala e de ao.

    A rplica de Putnam se refere precisamente questo que Habermas alega ser o

    ponto central do argumento putnamiano, isto , que os enunciados empricos e os

    enunciados ticos possuem o mesmo tipo de validez, cujo predicado que se lhes atribui

    verdadeiro. Ao rebater a crtica habermasiana, Putnam afirma que Habermas se equivoca

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    na interpretao que faz dele, ao cham-lo de realista em toda regra. Significa isto que

    ele supe que eu penso que a verdade poderia ser transcendente ao reconhecimento natica como na cincia emprica?(PUTNAM, 2008, p. 111). Segundo essa interpretao,

    Putnam pressuporia que os enunciados empricos e os enunciados ticos corretos teriam um

    mesmo tipo de validez, cujo predicado que se lhe atribui verdadeiro. Mas Putnam

    rebate essa interpretao, afirmando que

    os enunciados empricos corretos no formam uma classe homognea. No

    correspondem realidade em um e no mesmo sentido. () Em consequncia,rechao a idia de que todos os enunciados genuinamente verdadeiros funcionamde um e do mesmo modo. (PUTNAM, 2008, p.111).

    Alm disso, enfatiza sua discordncia no uso que Habermas faz do predicado

    verdadeiro:

    no estou de acordo com Habermas em que verdadeiro seja uma noo davalidez no sentido que ele entende, a saber, como um termo para o tipo de validezque peculiar dos enunciados empricos (concebidos, no sentido em queHabermas parece faz-lo, como uma classe natural metafisicamente distintiva).(PUTNAM, 2008, p. 113)

    Putnam usa um conceito de verdade prximo a Wittgenstein, segundo o qual,

    verdadeiro o predicado de oraes que so usadas de determinadas maneiras, ou seja,

    nem meramente sintticos, nem completamente independente dos objetos sintticos dentro

    de uma comunidade de linguagem. Alm do mais, o uso que ele faz desse predicado supe

    uma linha das teorias da verdade da filosofia analtica segundo a qual quando o predicado

    verdadeiro atribudo a um enunciado que vem de maneira explcita, ento o uso da

    expresso verdadeiro desnecessrio . Assim, verdadeiro no pode ser o nome de um

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    tipo de validez. Se fosse, dificilmente poderia ser desnecessrio. (cf. PUTNAM, 2008, p.

    114). Putnam no concorda com Habermas em que a noo de verdade seja aplicvel deuma maneira para as normas, de outra para os enunciados empricos, e de outra para os

    enunciados matemticos.

    Finalmente, Putnam diz no crer que haja um modo de validez comum a todos os

    enunciados cientficos (PUTNAM, 2008, p. 114). E rebatendo ironicamente a acusao

    que Habermas lhe faz ignorar a distino entre uma moral universalista da justia e uma

    tica particularista do plano de vida (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 97) afirma ser

    perfeitamente consciente da diferena entre dever e ser (como tambm sou consciente

    de que os limites entre eles so confusos em muitos contextos)(PUTNAM, 2008, p. 114).

    O dissenso permanece, portanto, patente no que concerne ao sentido pelo qual

    ambos os filsofos encaram a objetividade dos valores, o que est diretamente vinculado

    teoria da verdade da qual cada um deles adepto. Tambm isso no de se estranhar, posto

    que um trao das ticas cognitivistas uma continuidade entre teoria do conhecimento e

    tica. Apesar do dissenso, permanece, entre ambos, a declarao de que os valores so

    passveis de alguma objetividade. Para Putnam, essa objetividade se reveste de umcognitivismo forte com relao aos valores; para Habermas, um cognitivismo forte em

    relao s normas, porm dbil em relao aos valores. Estes precisam passar pela

    formulao de normas universalizveis para adquirirem um cognitivismo forte.

    3.3 O pluralismo em tica e a questo da universalizao dos valores.

    Uma questo que permeia todo o debate relativa ao pluralismo de vises de mundo

    no plano da tica. Dado que vivemos num mundo com distintas e at antagnicas

    concepes valorativas, como buscar racionalmente a resoluo de conflitos oriundos das

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    vises discrepantes de mundo ou de vida boa? Para Habermas, esta uma tarefa que exige

    de ns um posicionamento:

    A ns, os pluralistas modernos, se nos apresenta, antes de tudo, a questo decomo se podem regular os conflitos e as relaes normativas entre grupos sociaiscom ideais antagnicosideais de florescimento humano , tanto mais quanto

    partimos da premissa de que qualquer genealogia racional dos valores estvinculada a nossa prpria perspectiva de uma comunidade cooperativa

    preocupada por seu bem-estar. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 103)

    Com efeito, as pessoas que no esto unidas por nenhuma prtica ou forma de

    vida comum se encontram como estranhas umas para as outras (HABERMAS &

    PUTNAM, 2008, p. 103).

    Como vimos, Habermas defende que: 1) os valores encontram reconhecimento

    intersubjetivo na comunidade para cuja forma de vida resultam tais valores, e 2) o

    conhecimento tico unicamente goza de uma validez que especfica de uma cultura e de

    que a capacidade de orientao de tal conhecimento se desvirtua fora das formas de vida e

    tradies correspondentes. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 94)

    No fundo, a posio de Habermas parece se preocupar com o problema da

    universalizaodos valores: como estes so tratados como produtos sociais contingentes,

    que variam conforme os mundos de vida, no possvel, para Habermas, atribuir o

    predicado verdadeiro ou falso para os valores, mas apenas para as normas que resultem da

    discusso racional dos mesmos valores, que receberiam, ainda assim, o predicado

    corretas ou adequadas e no verdadeiras. Assim, s os valores que so expressos nas

    normas que, por sua vez, possuem ou no validade, poderiam possuir validade, mas por

    causa da validade da norma.

    O que acontece, porm, quando os valores rompem os limites scio-culturais em

    que surgiram e se confrontam com valores distintos, ou mesmo antagnicos, oriundos de

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    contextos distintos, e que reivindicam tanta pretenso de validez quanto? Suponha-se um

    conceito ticocastidade, por exemploque usado por um dado mundo social, mas nopor outro. O que fazer se no houver uma extenso do conceito que seja independente do

    mundo social em que ele foi gerado?

    Uma possvel soluo, segundo Putnam, seria discutir a questo. Isso pressuporia

    que a questo em pauta cognitivamente significativa. E se no houver uma soluo

    correta? A resposta minimalista, para Putnam, afirma simplesmente como nos

    comportaramos face ausncia de um consenso: continuar a conversao indefinidamente.

    J a resposta de Apel e Habermas seria provavelmente a seguinte, conforme Putnam: a) seh uma resposta correta, a discusso deve convergir para ela; b) se no h resposta correta,

    no se chegar a um consenso; ento, o conceito em pauta deve ser descartado.

    Essa resposta baseia-se na teoria consensual da verdadede Peirce, a qual tem como

    premissa bsica que seja()metafsicamente impossvel que existam quaisquer verdades

    que no sejam verificveis pelos seres humanos. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p.

    165). Putnam, porm, argumenta que, tanto para o senso comum como para a cincia de

    hoje, a resposta a essa questo que, enquanto matria de fato emprico contingente, h

    muitas verdades alm do poder de alcance da nossa espcie(HABERMAS & PUTNAM,

    2008, p. 166); portanto, h uma espcie de realismo que preciso levar em considerao.

    Putnam conclui, ento, que Apel e Peirce tem uma concepo errada da verdade.

    Ora, se a tica do discurso procura se embasar na teoria consensual da verdade de

    Peirce, como os pressupostos desta tica poderiam ser fundamentados de acordo com a

    mesma teoria? Em resposta, Apel afirma que tais normas possuem justificao

    transcendental, ou seja, () so pressupostas pela racionalidade, () pelos

    procedimentos que definem o que procurar a verdade. (HABERMAS & PUTNAM,

    2008, p. 168). Mas, se a verdade produto de um consenso ideal nos limites da discusso

    indefinidamente continuada, ento o argumento transcendental ter de ser igualmente

    restrito. H um contra-senso em sustentar a definio de verdade de Peirce, por um lado, e

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    sustentar que as normas da tica discursiva possuem justificao transcendental, por outro.

    Seria necessrio justificar os pressupostos da tica do discurso a partir de outro vis.

    Deriva ainda da teoria do consenso da verdade outro problema para a tica do

    discurso: no h razo para acreditar que o resultado de uma discusso ideal e

    suficientemente prolongada sobre uma questo tica seria inevitavelmente correto

    (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 168). A discusso pode simplesmente no convergir

    para consenso algum simplesmente pela ausncia de termos valorativos, os conceitos ticos

    espessos, para descrever apropriadamente a situao concreta de fala. Esse o principal

    argumento de Putnam. aqui que ele acredita ter encontrado uma ambigidadefundamental na posio de Habermas. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 172). Por um

    lado, Habermas parece querer construir uma situao ideal de fala, na qual possvel

    chegar a uma verdade consensual, mas, por outro lado, serve-se de requisitos que no do

    conta de descrever corretamente a situao concreta da fala, pois tais requisitos iro

    requerer empregar o vocabulrio tico espesso apropriado, o qual pressupe valores. Diante

    disso, a proposta de Putnam a seguinte

    Se Habermas, como estou tentando persuadi-lo a fazer, restringir as alegaes datica discursiva; se, especificamente, ele disser que a tica discursiva parte daticacertamente, uma parte valiosa e importante, mas no uma parte que possamanter-se por si mesma, no a fundao (ou a fundao na modernidade) detoda validade que a tica pode possuir ento eu acredito que estar nocaminho certo. Mas se algum procura defender as alegaes mais ambiciosasque ele e Apel tem feito em nome da tica discursiva, ento no haver nenhumarazo para acreditar nas alegaes (esse ser o caso se a tica discursiva forrestrita a certo conjunto definido de normas que se supe caracterizar a razo) ouas alegaes sero vazias. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 172).

    Desse modo, a posio de Putnam afirma que, se as normas demandam termos

    valorativos para preench-las de contedo, ento valores e normas esto entrelaados. E se

    assim o , O relativismo de qualquer tipo com relao aos valores no pode deixar

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    intactas as normas (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 161). Pretender universalizar

    as normas implica pressupor que os valores que elas expressam tambm reivindicampretenses de validez universais.

    Nesse sentido, Habermas alega que Putnam ignora uma distino bsica entre juzos

    de empricos e juzos de valor; ignora igualmente a distino deontolgica entre uma moral

    universalista da justia e uma tica pluralista do plano de vida, para a qual, as normas so

    universais e os valores so particulares. Segundo esta viso, s nos sentimos estimulados a

    protestar contra valores que se diferenciam dos demais devido sua pretenso universalista

    de validez. H de se reconhecer, portanto, que os valores tem um carter vinculado comunidade na qual surgiram, e s adquirem uma pretenso universalista de validez na

    medida em que se configuram como mximas ou normas. Portanto, o nivelamento entre

    valores particulares e normas universais traz consequncias comprometedoras para uma

    concepo universalista da moral. Portanto, conclui Habermas: no possvel conciliar

    uma tica pragmatista dos valores com a validez universalista de moral igualitria e com

    os fundamentos do Estado democrtico de direito (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p.

    80).

    Outro ponto delicado para o qual Habermas chama a ateno em querer atribuir aos

    valores particulares o mesmo carter universalista das normas diz respeito ao prprio

    pluralismo entendido enquanto valor que admite ser necessrio preservar desacordos

    razoveis nas concepes de mundo, posto que estas, ao contrrio dos juzos empricos,

    possuem um carter totalizante, isto , pretendem estruturar a vida em sua totalidade. Na

    medida em que determinados valores de uma comunidade especfica possuem carter

    universalista, isso poderia incorrer em um totalitarismo no que diz respeito superposiocultural de valores.

    Da que o pluralismo das concepes de mundo se diferencie da competnciaentre as teorias cientfica pela classe de dissenso que se pode esperar razovel.() que fazem qualquer intento ulterior de alcanar um consenso seja absurdo ou

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    inclusive perigoso. Pois, na prtica, tal empenho pode conduzir supresso dasdiferenas legtimas. As boas razes para esperar desacordos razoveis so boas

    razes para suspender o intento de convencer aos outros de que a concepoprpria a correta. (HABERMAS & PUTNAM, 2008, p. 96).

    Putnam (cf. 2008, p. 118-119) concebe o pluralismo de uma forma distinta de

    Habermas. Para ele, pluralismo significa que outras culturas e modos de vida dispem de

    intuies que no temos exatamente porque no fazemos parte delas. Segundo ele,

    Habermas discordaria disso exatamente porque tal concepo supe que h intuies, isto ,

    crenas dessas outras comunidades que so verdadeiras e que podem resultar emaprendizagem para a minha. Habermas, segundo Putnam, parece supor que s possvel

    questionar os juzos de valor emitidos pelos membros de outra comunidade: 1) se

    permissvel deontologicamente: no violam nenhuma das normas universais e; 2) se eles

    tem pretenso de universalidade, ou seja, afeta todos os concernidos por aquele projeto.

    Tambm aqui a leve discrepncia entre ambos os filsofos no que concerne ao

    modo de encarar o pluralismo depende de suas concepes acerca da objetividade dos

    valores. possvel, contudo, depreender das duas posies, uma disposio para a

    discusso racional dos valores, quando estes extrapolam o nvel do contexto cultural em

    que foram gerados e interagem com outros mundos da vida. Se a posio de Putnam, por

    um lado, parece enfocar a capacidade de aprendizagem e a transcontextualizao no

    sentido da assimilao de valores, ou de componente cognitivos e semnticos desses

    mesmos valores, de uma outra cultura o que associamos ao conceito de uma vida boa a

    preocupao de Habermas , face a um mundo globalizado, embasar uma concepo

    pluralista que garanta a convivncia harmnica das diversas vises de mundo num Estadode direito democrtico.

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    4. Concluso

    Da anlise de Putnam da dicotomia fato/valor obtivemos um carter objetivo dos

    valores, que possibilita que eles sejam conhecidos e discutidos racionalmente. Do seu

    debate em relao dicotomia normas/valores com Habermas, depreende-se que, apesar do

    dissenso em alguns pontos, ambos os filsofos concordam que os valores possuem sim esse

    carter de objetividade, ainda que sob diferentes perspectivas, e que possvel engajar-nos

    numa discusso a respeito dos valores, ainda que num mundo pluralista. Esse pluralismo,

    alis, deve ser visto no como obstculo para a universalizao da moral, mas at mesmo

    como um valor a ser preservado que possibilita uma aprendizagem contnua para ampliar

    nossas concepes de uma vida realizada (Putnam) ou como um desacordo razovel

    desejvel que possibilite a convivncia harmnica das diferentes concepes de mundo

    num Estado democrtico, possibilitando uma vida justa (Habermas).

    Para a educao moral, essas concluses trazem perspectivas importantes.

    Primeiramente, viabiliza e fundamenta no somente a discusso moral pela mera discusso:

    os valores e as normas podem ser reconhecidos intersubjetivamente como um modo de vida

    melhor (valores) e mais justo (normas), atravs de uma discusso visando um consenso.

    Atravs desse carter consensual e dialogicamente participativo, o contedo das

    proposies morais no simplesmente imposto de fora para dentro dos alunos, mas

    internalizado pelos mesmos alunos como sujeitos participativos, capazes de assimilar

    racionalmente as propostas morais. Em segundo lugar, h de se reconhecer que o

    pluralismo, oriundo de diversas vises de mundo, talvez o maior desafio atual no plano da

    tica. Diante disso, a postura do professor no deve ser de acovardamento ou omisso

    diante da educao moral, tampouco de uma imposio dogmtica e unilateral de uma viso

    de mundo sua no seria bom comear a encarar o prprio pluralismo como desejvel?

    mas de algum que aceita o desafio, se mostra aberto ao dilogo e a aprendizagem e

    estimula a busca por melhores repostas para a conduta tica na formao dos cidados,

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    valendo-se de sua capacitao para ajudar os alunos a atingirem consensos fundamentais de

    valores e normas, mesmo em face ao pluralismo, que possam nortear suas vidas numhorizonte mais fecundo de sentido.

    REFERNCIAS

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