rodrigo nunes

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O luxo do comunismo

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  • www.osmilnomesdegaia.eco.br | rio de janeiro, 09.2014 1

    O Luxo do Comunismo

    Rodrigo Nunes

    Para um texto cujo subttulo poderia haver sido o uso ps-humano de valores humanos, nada mais adequado que abrir com uma citao de The Human Use of Human Beings, de Norbert Wiener:

    Num sentido bastante real ns somos nufragos em um planeta condenado. Mas mesmo em um naufrgio a decncia humana e os valores humanos no necessariamente desaparecem, e devemos fazer o melhor uso deles. Se necessariamente teremos de afundar, que seja de uma maneira a que possamos aspirar como estando altura de nossa dignidade.1 Por mais familiar que o esprito destas palavras possa nos soar, o naufrgio de que falava esta passagem escrita em 1950, quando a ideia de crise ambiental ainda estava por ser formulada no era aquele que hoje nos inquieta. Tampouco era aquele sugerido pelas grandes ameaas que comeavam ento a assentar-se no horizonte de preocupaes da humanidade: a Guerra Fria e o risco de uma conflagrao nuclear. Assumindo uma perspectiva realmente ampla, Wiener se referia de algo ainda maior e mais definitivo que o fim das condies de vida em nosso planeta, ainda mais inelutvel e irreversvel que um inverno nuclear ou que os processos fsicos que atualmente conduzem o sistema-Terra na direo de parmetros alm de um espao operacional seguro2 para a humanidade. O que ele tinha em mente era a tendncia estatstica da natureza 1 Norbert Wiener, The Human Use of Human Beings. Cybernetics and Society (New York: Da Capo, 1954), 40. 2 Johan Rockstrm et al., A Safe Operating Space for Humanity, Nature 461 (2009): 472-5.

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    desordem 3 expressa pela segunda lei da termodinmica; isto , a tendncia de crescimento da entropia geral de um sistema fechado e, uma vez que admitamos tratar o universo como um sistema fechado, a noo de morte trmica do universo que da decorre. Tratava-se, em resumo, da ideia de que nossa pequena ilha local e temporria (...) de entropia decrescente no interior de um universo em que a entropia como um todo tende a crescer4 este pequeno planeta onde se desenvolveram as nicas formas de vida de que at hoje tivemos notcias, e tambm a espcie humana, suas mquinas e seus projetos est, como tudo mais, fadada a desaparecer num processo csmico que caminha implacavelmente rumo a uma uniformidade sombria da qual no se pode esperar mais que pequenas e insignificantes flutuaes locais.5 Antes que eu seja acusado de substituir um problema j suficientemente grande e difcil de tratar (o aquecimento do globo terrestre) por outro ainda maior e mais inexorvel (a morte trmica do universo), permitam-me explicar que a citao deste trecho cumpre aqui uma dupla funo. A primeira consiste em revelar, por contraste, uma estranha tendncia na histria do pensamento ocidental: o excepcionalismo humano que, ao mesmo tempo que admite a finitude de praticamente tudo que nos cerca, inclusive a de cada indivduo humano como tal, parece incapaz de contemplar a possibilidade de que a humanidade seja, ela tambm, finita enquanto espcie. A segunda consiste em pensar o que acontece com nossa disposio para a ao quando admitimos esta possibilidade e propor uma poltica que no dependa da esperana para se justificar. Comecemos com o primeiro ponto. No podemos deixar de louvar a inflexibilidade demonstrada pelo pai da ciberntica diante do pensamento de que, como disse Jean-Franois Lyotard, de certa 3 Ibid., p. 28. 4 Ibid., p. 36. 5 Ibid., p. 31.

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    maneira j estamos todos mortos.6 A ideia, seja ela de esquerda ou de direita, de que todos os problemas com que se depara a humanidade seriam igualmente solveis em um prazo mais ou menos longo no pode deixar de envolver a pressuposio, por definio inverificvel, de que a humanidade contaria com um tempo infinito para resolver seus problemas. A confiana em nossa capacidade infinita de resoluo de problemas supe, isto , uma existncia infinita da humanidade premissa de origem religiosa que raramente se viu diretamente questionada, ainda menos a partir da modernidade, em que convergia perfeitamente bem, num ponto de fuga distante, com a f nos poderes redentores da razo, do progresso e da tcnica. Casos como o de Wiener ou de Gabriel Tarde que indiretamente zombava de nossa soberba ao afirmar que no h fssil vegetal ou animal de uma espcie extinta h sculos que no tenha tido uma segurana legislativa, uma certeza aparentemente fundada, de que viveria tanto quanto o planeta7 so sem dvida a exceo. Muito mais comuns so aqueles como o de Kant, que, embora contemplasse a possibilidade de que convulses naturais como as que engoliram os reinos animal e vegetal antes da era do homem8 pudessem vir a cortar o progresso moral da humanidade, no deixava de apostar que as capacidades naturais voltadas ao uso da razo 9 podero se desenvolver plenamente no futuro indefinido da espcie. Caso contrrio, observava ele, a natureza, cuja sabedoria devemos tomar como axiomtica no julgamento de todas as outras situaes, incorreria na suspeita de se prestar a jogos infantis apenas no caso do homem.10 6 Jean-Franois Lyotard, The Inhuman (Stanford: Stanford University Press, 1991), 10. 7 Gabriel Tarde, Monadologie et Sociologie (Paris: Institut Synthlabo/Les Empcheurs de Penser en Ronde, 1999), 79. 8 Immanuel Kant, The Contest of the Faculties, Political Writings (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), 185. 9 Immanuel Kant, Idea for a Universal History with a Cosmopolitan Purpose, Political Writings, p. 44. 10 Ibid., p. 45.

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    Fica explcito no argumento kantiano a suposio, ainda que apenas postulada, de uma ordem teleolgica subjacente natureza: seria contraditrio (arbitrrio, infantil) que, com uma mo, a natureza dotasse uma espcie de capacidades que a elevam acima das demais, destinando-a aos mais altos fins a que a prpria natureza poderia aspirar; ao mesmo tempo que, com a outra, a impedisse de realizar plenamente estes potenciais. Mais que isso: se aceitamos a hiptese de um universo arbitrrio, sugere Kant, todos os princpios prticos teriam de ser abandonados11, e no haveria mais nada que pudesse imbuir nossas aes de sentido. pouco provvel que, fora do domnio da religio, vejamos algum abraar abertamente, nos dias de hoje, este argumento ou sua premissa (mesmo que apenas postulada) de uma ordem teleolgica, e em ltima instncia moral, da natureza. Pelo contrrio: em um mundo amplamente vacinado pela racionalidade cientfica contra qualquer tentativa de projetar uma teleologia ou uma ordem moral sobre a natureza, parecemos perfeitamente dispostos a entender a atribuio de sentido como atividade humana, demasiado humana, e a aceitar um universo desprovido de sentido, dado ao acaso e contingncia. No nos parece estranho admitir que o surgimento e desenvolvimento da vida na Terra no tenham sido mais que uma imensa casualidade, uma ocorrncia fortuita que poderia igualmente no ter ocorrido. E, no entanto, ainda nos parece assimetricamente mais difcil conceber que nosso fim possa ser to carente de sentido embora no de causas quanto nosso incio. Penso aqui, evidentemente, no negacionismo em suas diferentes formas, que ou decorrem diretamente da incapacidade de assumir subjetivamente as implicaes mais amplas da crise ambiental, ou cinicamente exploram essa dificuldade a fim de manterem-se plausveis apesar das evidncias montantes em contrrio. Mas o negacionismo apenas o caso mais evidente, e mesmo aqueles que aceitam a crise ambiental em toda sua potencial gravidade no esto necessariamente livres da tendncia de seguir tentando atribuir a ela um sentido moral ou csmico que no tem. 11 Ibid.

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    H quem enxergue um possvel fim da espcie como retribuio pelos pecados da humanidade e, fazendo assim, projete sobre ele um esquema moral de crime e castigo. H tambm quem veja na catstrofe a nica esperana de, a partir das cinzas, construir uma humanidade distinta daquela que ter ardido, e com isso projete sobre ela um esquema religioso de sacrifcio e purificao. Por ltimo, h aqueles que se s conseguem entender qualquer referncia aos riscos reais que a crise ambiental comporta como pertencendo ou a um esquema (crime e castigo) ou ao outro (sacrifcio e purificao), e que so portanto igualmente incapazes de entender o fim como uma coisa que pode simplesmente acontecer. Em ltima anlise, aquilo que estes criticam nos outros revela sua prpria limitao: a incapacidade de conceber o fim como algo que possa existir independentemente de uma projeo de nossos medos e desejos algo que, em sua impassvel arbitrariedade, em sua total indiferena a nossos propsitos, pode simplesmente acontecer. Reduzir o fim a um para-ns (mesmo, ou especialmente, quando ns so os outros) prova de uma incapacidade de conceber a possibilidade de que ele seja real em-si, ou seja, de conceb-lo fora de qualquer domesticao em um para-ns que exatamente o caso da extino do humano como fim da intencionalidade, isto , como a eliminao de qualquer ns para o qual possa haver um para-ns. O fim de que a crise ambiental nos fala no tem nenhum sentido escatolgico (como redeno, revelao, juzo final, telos). Sendo a obliterao de toda capacidade humana de atribuir sentido, ele propriamente falando sem sentido. Ele simplesmente a ideia de que o prazo que a humanidade teria para resolver seus problemas, desenvolver suas aptides ou realizar seus desejos pode ser unilateralmente abreviado, como num exame em que o tempo se esgotasse antes de conseguirmos responder todas as questes. No , portanto, um fim, mas apenas a interrupo que nos surpreenderia no meio de nossas mais baixas tarefas, bem como de nossos mais elevados projetos. Esta distino terminolgica entre interrupo e fim pode nos ser bastante til.12 12 Falar em termos de interrupo tem a vantagem de introduzir seriamente o fator tempo na discusso: mesmo que admitamos a possibilidade de que possam existir um ou mais technical fixes capazes de realmente solucionar a crise ambiental sem gerar novos problemas, isto no elimina a questo sobre se a interrupo no

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    Ao mesmo tempo, no podemos tratar esta interrupo como um evento que viria todo de uma vez. Estamos falando de sculos com sorte em que os humanos vivero com o desdobramento de efeitos, em grande parte imprevisveis, das causas que j produzimos e daquelas que porventura sigamos produzindo, implicando cada vez mais restries vida no planeta, e portanto tambm a nossas possibilidades de ao e sobrevivncia. Isto significa que, em que pese a irreversibilidade de longo prazo de muitos dos impactos j produzidos at aqui, ainda h algum tempo para evitar o pior, mesmo que numa janela de oportunidade que vai se estreitando progressivamente entre duas inrcias: a do sistema fsico terrestre e a de um sistema econmico que, como o escorpio da fbula, apenas age conforme sua natureza, mesmo que esta implique a nossa (e portanto tambm a sua) morte. Mas chegamos a ao segundo ponto que o trecho citado no incio visava levantar: por qu? Por que agir para evitar o pior? Quando nos deparamos com o prospecto da interrupo, arbitrria e desprovida de sentido, de nossa existncia e capacidade de projetarmo-nos no futuro, qual o sentido de apelar, como faz Wiener, decncia e aos valores humanos? Se, ademais, mesmo que fssemos inteiramente vitoriosos em defender a vida terrestre, isto no passaria de um breve sursis diante do naufrgio inapelvel do universo, de que nos serviria manter nossa dignidade? Talvez Wiener, que nos deu o problema, possa tambm oferecer-nos uma pista para resolv-lo. Com admirvel esprito esportivo, ele observa que a contemplao do Big Freeze csmico no precisa necessariamente conduzir ao pessimismo: a diferena prospectiva normal entre o prximo e o remoto nos leva a atribuir mais importncia s ilhas de entropia localmente decrescente como o planeta em que vivemos do que ao universo como um todo.13 Em outras palavras, nosso provincianismo cognitivo faz com sobreviria antes que consegussemos encontrar um tal fix, de forma que a simples confiana na possibilidade de uma soluo tcnica ainda no nos diz nada sobre sua efetividade ou eficcia. possvel que eu ganhe na loteria, mas da no segue que seja racional que eu me fie unicamente nesta possibilidade... Em um caso como o do aquecimento global, preferir medidas imediatas para reduzir a emisso de gases de efeito estufa ao invs de apostar que em algum momento uma soluo tecnolgica poder aparecer me parece um uso perfeitamente razovel do princpio de precauo. 13 Wiener, The Human Use, pp. 39-40.

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    que, mesmo que tenhamos f na previso cientfica da finitude csmica, o destino final do universo nos parea relativamente desimportante diante daquilo que est nossa frente aqui e agora. A conscincia da futilidade csmica de nossos propsitos no diminui nossa propenso a criar propsitos para ns mesmos, a conferir valores e sentidos quilo que nos cerca. Parafraseando Jacques Lacan, poderamos dizer que, se, em termos csmicos, o sentido no (porque o universo inteiramente indiferente a nossos propsitos e desejos), ainda assim h sentido (na medida em que no podemos deixar de produzir sentido ou de atribuir valor quilo que nos cerca). E se h sentido, justamente porque aquilo que nos imediatamente mais prximo no pode deixar de nos importar. preciso, alis, reconhecer que conferir sentido s coisas no uma atividade exclusivamente humana como nos indica o conceito de valor biolgico, entendido como o valor que um ser vivo qualquer atribui a tudo aquilo que responde s necessidades imperativas que provm da luta constante por manter-se vivo.14 Onde poderamos, com efeito, falar de uma especificidade do humano no modo como nossos valores nos so reflexivamente acessveis, o que lhes faculta diversidade e complexidade maiores que aqueles encontrados entre outros seres vivos. Ao mesmo tempo, conforme evidenciam expresses como morrer por uma causa ou dedicar a vida a um sonho, o humano capaz de atribuir valor a valores, atribuir sentido a (ter) um sentido, de forma que a conexo de um valor de segunda ou terceira ordem com o propsito biolgico de manuteno da vida possa se tornar de tal maneira indireta que deixe de ser evidente. Neste caso, os valores deixariam de responder de maneira simples a qualquer propsito biolgico para tornarem-se, propriamente falando, um excesso arbitrrio, um fim em si mesmo uma perverso, por assim dizer, anti-natural. Algo que poderamos, portanto, chamar de luxo, entendendo a palavra nos termos do quiasma entre economia geral e economia restrita descrito por Georges Bataille: aquilo que, do ponto de vista 14 Antonio Damasio, Self Comes to Mind. Constructing the Conscious Brain (New York: Vintage, 2010), 50.

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    restrito, aparece como negao da vida (desta vida particular, deste indivduo que vai contra o imperativo do valor biolgico em nome de uma quimera), , ao mesmo tempo, do ponto de vista geral, a verdade profunda do movimento de que a vida exposio.15 Verdade profunda que Bataille identifica com a ddiva sem retorno, a prodigalidade sem interesse, a dilapidao sem propsito sem sentido, como so sem sentido as ilhas de neguentropia que emergem no oceano de uma entropia que, sem outro sentido que no sua prpria direo, caminha impassvel rumo ao grau mximo. Entre ns que aqui estamos, o mais provvel que a associao das palavras luxo, fim em si mesmo e anti-natural nos traga mente o nome do inimigo que devemos de fato nomear: o capitalismo. Afinal, foi sob o impulso por definio insacivel de auto-valorizao e acumulao do capital que potencializou-se radicalmente o impacto da ao humana sobre o planeta, ao ponto dela tornar-se uma fora em escala geolgica. , ainda, este mesmo movimento autotlico que explica a imensa resistncia inercial que encontra hoje qualquer tentativa de reverter as tendncias de um sistema cujo imperativo de lucro encontra incentivos econmicos no curto prazo naquilo que implica destruio a mdio e longo prazo. A crise ambiental expe, mais do que nunca, a faceta excessiva e inumana que fazia Marx descrever este movimento em termos que sugeriam a possesso demonaca ou os zumbis, onde o capitalista aparece como capital personificado e dotado de conscincia e vontade, suporte do movimento sem limite do capital...16 O capital como fora demonaca17 [dmonische Zwang] da compulso de repetio, como pulso de morte ou, luz da fico cientfica, como parasita xenomorfo cuja autorreproduo pe em risco a existncia de seus hospedeiros, a humanidade. Mas bom observar que o capitalismo nem sempre foi, alis nem sempre , pensado assim; e que, para muitos, anti-natural seria antes o seu contrrio. Chamemos aquilo que sob as mais diversas formas se ops historicamente ao capitalismo de 15 Georges Bataille, La Part Maudite, Prcd de La Notion de Dpense (Paris: Minuit, 2011), 61. 16 Karl Marx, Capital. A Critique of Political Economy (London: Penguin, 1990, vol. I), 253-4. 17 Sigmund Freud, Beyond the Pleasure Principle, The Standard Edition of the Complete Works of Sigmund Freud (London: Vintage, 2001, vol. XVIII), 35.

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    comunismo ou, como quer Nick Dyer-Witherford, commonismo: o ideal genrico de igualdade instanciado em prticas de vida em comum e pelo comum [in common and through the commons].18 Encontraremos, ento, uma extensa tradio que enxerga neste ideal uma negao da vida19 ou um movimento contrrio ao rumo plantado na natureza das coisas.20 Na medida em que viver seria essencialmente espoliar, ferir, subjugar o outro e o fraco, oprim-lo, impor-lhe duramente nossas prprias formas, incorpor-lo e, pelo menos, no mnimo, explor-lo21, o desejo de dar fim explorao no poderia ser mais que uma abstrao fria e anti-natural, um valor arbitrrio, um perverso absolutismo da razo. Um luxo, portanto, no sentido dado acima. Este seria um dos sentidos em que se poderia compreender a ideia de luxo do comunismo proposta no ttulo, mas ainda h outros. Quando o problema com que a humanidade se depara justamente a insustentabilidade de seus atuais padres materiais de vida, qual vem se somar a presso crescente da massa de trabalhadores do antigo terceiro mundo cujo poder de consumo cresceu dramaticamente nas ltimas dcadas, a demanda por igualdade no se tornaria impossvel de conciliar com a necessidade de manter o sistema fsico planetrio dentro de um espao operacional seguro? No teria o comunismo se tornado agora j no desde a perspectiva conservadora de Burke e Nietzsche, mas do ponto de vista do meio-ambiente se tornado um luxo? Se compreendemos comunismo no sentido mais estrito que se refere ao movimento operrio dos sculos XIX e XX e suas expresses como poltica de estado, inegvel que este historicamente haja compartilhado do excepcionalismo que 18 Entenda-se igualdade aqui como o oposto de desigualdade, no de diferena. A definio de commonismo oferecida aqui suficientemente espaosa para acomodar desde ndios (e neo-ndios) at os entusiasmados protagonistas da primeira fase da Revoluo Russa e hackers, sem-terra, sem-teto, redes de troca etc. 19 Friedrich Nietzsche, Par-del le Bien et le Mal, in Oeuvres Compltes (Paris: Robert Laffont, vol. II), 708. 20 Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, 1791, http://www.fordham.edu/halsall/mod/1791burke.asp. 21 Ibid., 709.

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    infundadamente supunha a humanidade, e portanto tambm o sistema fsico que lhe garante as condies de vida, como eternos e imortais de jure. Marx, primeiro a descrever o impulso autodestrutivo do capital, pensou-o em termos da criao das condies de emancipao da humanidade, sem considerar que a extino da humanidade pudesse simplesmente interromper o processo de sua prpria emancipao; ele pensou a autodestruio do capital sem cogitar da nossa. Neste sentido, comunismo e liberalismo estiveram durante muito tempo efetivamente irmanados na crena num progresso material infinito como redeno, sem jamais levar suficientemente a srio a questo dos limites que um sistema terrestre finito parece impor a este ideal. Dos dois, talvez at possamos dizer que o comunismo em sentido estrito tenha sido ainda mais alheio a esta preocupao, na medida em que, concentrando-se corretamente no combate escassez produzida pelo sistema capitalista, recusou-se com frequncia a reconhecer a escassez como propriedade material. Esta confuso cuja lgica extica parece concluir que, porque h escassez no capitalismo, a escassez no pode tambm ser em si posta em questo pela crise ambiental. Admitir esta ltima no exige justamente a capacidade de contemplar a hiptese de limites que o so em-si, e no apenas para-ns?22 Um materialismo sem desgaste, perda ou custo, sem escassez, consumo de energia e entropia, no merece mais propriamente o nome de idealismo? Em todo caso, deste parentesco histrico entre comunismo e excepcionalismo que provm o grande impasse poltico em que nos encontramos, presos entre os chifres de um dilema: de um lado, uma direita que gostaria de usar a questo ambiental para fazer da igualdade um luxo; de outro, uma esquerda para quem o imperativo da reduo da desigualdade faria das preocupaes ambientais um luxo. 22 Embora corretamente celebrados por Arun Saldanha por terem chegado o mais perto de formular uma posio inteiramente materialista onde a poltica e a cincia materialista tivessem a mesma ontologia de base, Deleuze e Guattari tambm reduzem a escassez a um para-ns quando citam aprovativamente a afirmao de Maurice Clavel a respeito de Sartre, segundo a qual uma filosofia marxista no pode se permitir introduzir como ponto de partida a noo de escassez. Gilles Deleuze e Flix Guattari, LAnti-Oedipe (Paris: Minuit, 2008), 35, n. 25. Ver Arun Saldanha, Some Principles of Geocommunism, Geocritique, 23 de julho de 2013, http://www.geocritique.org/arun-saldanha-some-principles-of-geocommunism/.

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    preciso dizer que o dilema falso; um dilema, alis, ao qual no podemos mais nos dar o luxo. O que pretendo fazer a seguir, para concluir, defender a necessidade de reter a igualdade, ou o commonismo, como princpio guiador de nossas respostas polticas crise ambiental; mas faz-lo sem nenhum apelo a ideias piedosas do tipo apenas o comunismo pode nos salvar. Suspendamos a questo (sempre de fundo religioso) de nossa salvao, e coloquemo-nos apenas o problema que Wiener nos propunha: que valores, num naufrgio, eleger como estando altura de nossa dignidade? Ou seja: esqueamos a pergunta sobre como gostaramos de viver eternamente, e perguntemo-nos ao contrrio como queremos viver o tempo que nos resta, seja ele qual for o que no deixa de ser um modo de perguntar-nos como queremos morrer. Ser possvel, com isso, delinear um terceiro sentido de luxo do comunismo, que aquele que gostaria de defender. Na metfora do naufrgio de Wiener, interessam o tom de um estico elogio capacidade de manter-se um gentleman, a good sport, nas condies mais desfavorveis. A dignidade diante do naufrgio o derradeiro luxo que se espera de uma elite: manter-se impassvel diante do infortnio uma marca de distino social na tica da virtude vitoriana que o pai da ciberntica parece invocar. Mas o tom interessa justamente na medida em que possvel pervert-lo; ou seja, na medida em que podemos responder a questo quais so os valores aos quais queremos nos dar o luxo? com a afirmao da igualdade como princpio: um comunismo como luxo. Como luxo, evidentemente, no do modo como o entendem os apologistas do capitalismo que gostariam de se aproveitar da crise ambiental para fazer com que tudo mude, contanto que continue igual. Isto sim, no sentido de um valor que no precisa buscar sua justificativa numa narrativa de redeno ou numa ordem profunda das coisas, mas pode, com toda a leveza trgica que a situao pede, se afirmar na arbitrariedade de sua prpria escolha: este um valor ao qual decidimos dar valor. Se verdade, como se diz, que a mudana climtica pe todos os habitantes do planeta no mesmo barco, isto significa apenas que, assim como no Titanic, no estamos todos neste barco do mesmo modo. Pelo contrrio, a questo ambiental evidencia

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    diferenas claras quanto distribuio de recursos, custos e efeitos. A distribuio dos recursos marca divises tanto entre pases e regies do mundo quanto internas pases e mesmo cidades: alguns consomem muitos recursos enquanto outros consomem muito poucos. O mesmo vale para os custos, que se distribuem segundo linhas desiguais. O passivo ambiental e social da explorao de novos recursos cai desproporcionalmente sobre alguns pases (o petrleo na Nigria), regies (as hidreltricas na Amaznia) e, principalmente, um determinado tipo de populao (subhumanos e no-humanos, no dizer de Juliana Fausto23); os lucros e benefcios vo desproporcionalmente para pases, regies e grupos mais ricos. Finalmente, os efeitos da mudana climtica afetam desproporcionalmente os mais pobres: impactos sobre populaes em reas de risco, migraes foradas, suba do preo de alimentos por conta de eventos climticos extremos...24 Em outras palavras, a questo ambiental inteiramente atravessada por questes sociais e polticas, porque ela inteiramente atravessada por divises sociais e polticas; algo que a maioria de nossos polticos pode querer negar, mas que sabem muito bem os poderosos lobbies da indstrias petroleira e automobilstica, do agribusiness, da minerao, das construtoras etc. Estabelecer o commonismo como princpio guiador de nossas respostas polticas crise ambiental como princpio de luta ou mquina de guerra, no de uma poltica de estado significa estar de posse de um primeiro critrio para determinar a escolha e a priorizao destas respostas: tm preferncia aquelas que impliquem uma melhor distribuio de recursos, custos e efeitos. Resumindo o princpio em uma frase, se, como se diz, todos precisamos fazer sacrifcios, o peso destes sacrifcios tm de cair de maneira proporcionalmente maior sobre aqueles que proporcionalmente tm maiores condies de absorv-los e que proporcionalmente mais se beneficiaram das 23 Juliana Fausto, Os desaparecidos do Antropoceno, apresentao no Colquio Os Mil Nomes de Gaia. 24 Como cogentemente argumenta o personagem principal de White Noise, de Don DeLillo: Estas coisas acontecem com pessoas pobres que moram em reas expostas. A sociedade organizada de tal maneira que sejam os pobres e os no-educados a sofrerem o grosso do impacto dos desastres naturais e causados pelo homem. As pessoas em reas alagveis ficam com as enchentes, as pessoas em barracos ficam com os furaces e tornados. Eu sou um professor universitrio. Voc j viu um professor universitrio numa daquelas enchentes da TV descendo a sua prpria rua de barco? Don DeLillo, White Noise (Nova York: Penguin, 1986), 114.

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    circunstncias que tornaram os sacrifcios necessrios. Trata-se de perguntar qual o mximo de igualdade que podemos ter em condies em que os limites [constraints] tendem a crescer; mas tambm de apostar que a busca deste mximo de igualdade a melhor maneira de minimizar o crescimento destes limites. Ao mesmo tempo um utilitarismo in extremis se para morrer, que seja com o mximo de felicidade para o maior nmero de seres e um pessimismo alegre. Algumas conseqncias importantes podem ser extradas deste princpio. Se um certo discurso ambiental e um certo discurso de esquerda ainda se reconhecem como mutuamente excludentes porque, na verdade, ambos aceitam uma premissa que lhes dada pela economia liberal: para haver distribuio preciso haver crescimento. Se aceitamos esta premissa, nos deparamos com um dilema em que levar a srio os limites que a crise ambiental impe ao crescimento indefinido implicaria abandonar a luta contra a desigualdade, ao passo que levar a srio a luta contra a desigualdade implicaria ignorar a crise ambiental. A nica soluo possvel cortar este n grdio, ou seja, rejeitar a premissa: afirmar a indissociabilidade da justia social e da justia ambiental significa dissociar a reduo da desigualdade da ideia de crescimento indefinido. Deixamos, ento, de falar na distribuio da riqueza a ser criada para falar na redistribuio da riqueza j existente. Tambm podemos encontrar no princpio tanto uma razo para agir imediatamente (evitar maiores danos para as maiores vtimas) quanto um inimigo imediato claro (a indstria do petrleo). Por fim, podemos deduzir dele uma direo pela qual orientar nossas aes: uma progressiva desconexo entre a reproduo da vida e a reproduo das condies que ameaam a vida. O segredo da resilincia do capitalismo no modo como ele torna nossas condies de reproduo dependentes de nossa participao na reproduo do prprio capitalismo por exemplo, na medida em que a necessidade de energia de baixo custo numa situao onde h pouca oferta de energia no-fssil faz com que tenhamos um interesse contrrio taxao da indstria do petrleo. Desconexo

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    progressiva significa capacidade crescente de escapar s alternativas infernais25 que o capitalismo impe a nossa sobrevivncia e, consequentemente, limites crescentes capacidade de reproduo do capital. Deste telos de desconexo progressiva entre vida e capital tambm se pode deduzir um ponto de partida para a ao poltica: a manuteno ou criao, em condies no-capitalsticas, das condies de reproduo de diferentes comunidades ou coletivos, em todas as escalas. Mas que nosso ponto de partida seja local no implica que nossa ao s possa ser localizada. preciso, com efeito, distinguir dois sentidos de local. Que a ao seja local no sentido de que ela s possa partir de algum ponto porque no existe nem soluo global one-size-fits-all, nem agente poltico capaz de faz-la valer no segue que o nico espao de ao possvel seja a atomizao infinita da pequena escala. Passar da enunciao de um problema global concluso de que a nica soluo seria a aposta em aes meramente locais (o segundo sentido) recuar diante do verdadeiro problema. Considerar o problema em sua dimenso global, das redes longas que articulam diferentes localidades sob condies capitalsticas, nos obriga a confrontar o desafio em outros termos: como criar uma transio que v das redes longas capitalistas e carbono-dependentes que temos em direo a alguma outra coisa, que combine redes mais curtas e redes longas organizadas em outras bases?26 Alm disso, simplesmente confiar que uma nova ordem ir emergir espontaneamente da proliferao de pequenas aes locais esbarra inevitavelmente no problema da interrupo: a questo no se esta catalaxia ou no concebvel em abstrato, mas se possvel no tempo de que dispomos, e se razovel fazermos dela nossa principal aposta. No creio que possamos nos dar o luxo de descartar nenhuma das formas de ao a nossa disposio; preciso, pelo contrrio, produzir as redes que conectem 25 Ver Isabelle Stengers e Philippe Pignarre, La Sorcellerie Capitaliste. Pratiques de dsenvotement (Paris: La Dcouverte, 2005). 26 Talvez Nina Power tenha, num artigo escrito posteriormente apresentao deste texto, chegado por outros caminhos ao nome perfeito para a posio que delineio aqui: o neologismo decapitalism, formado por analogia deschooling (desescolarizao) de Ivan Illich, decolonisation (descolonizao) e degrowth (decrescimento). Ver Nina Power, Decapitalism, Left Scarcity and the State, Filip 20 (2015), http://fillip.ca/content/decapitalism-left-scarcity-and-the-state.

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    tticas de obstruo, desconexo e refuncionamento,27 experincias locais e as esferas estatal, internacional e global, de forma a reforar as condies de possibilidade umas das outras, bem como potencializar seus efeitos. Como disse Mckenzie Wark em sua resposta ao Manifesto Aceleracionista, precisamos saber jogar com um baralho inteiro de formas sociais.28 Quo perto estamos de conseguir pr em prtica uma poltica assim? A verdade que estamos muito longe, tanto em termos de nossa capacidade de influenciar o debate pblico, quanto de nossa capacidade de ao. Mas por isso tambm devemos enxergar um sentido ttico triplo em partir da indissociabilidade das questes social e ambiental como princpio. Primeiro, o de impedir a incorporao da crise ambiental por discursos que visem us-la como Cavalo de Tria para introduzir medidas socialmente regressivas ou solues meramente cosmticas como o chamado capitalismo verde. Segundo, o de evitar seu simtrico inverso, a ideia de uma certa esquerda para quem a 27 Por obstruo entendo aquilo que at hoje tem sido a principal ttica dos movimentos sociais em questes ambientais: o esforo para impedir a realizao de grandes projetos extrativos, de infra-estrutura etc. Embora necessria e por vezes bem-sucedida (como no caso do gasoduto Keystone, nos Estados Unidos), a obstruo tem os limites de ser sempre inteiramente localizada e defensiva: ela pode barrar o avano de redes longas capitalsticas em algum ponto, mas raramente tem condies de modificar sua lgica, ou de propor uma lgica alternativa. No mais das vezes, os projetos em questo acabam realocados para outras regies. Por desconexo entendo iniciativas que aumentam a independncia da reproduo social em relao s redes longas capitalsticas; esta posio seria hoje normalmente associada com iniciativas de localizao (da produo de energia e alimentos, por exemplo), mas num futuro decapitalista isto no precisaria necessariamente ser o caso. Por ltimo, refuncionamento refere-se ao repurposing de que falam os chamados aceleracionistas, mas principalmente ao conceito de Umfunktionierung que Walter Benjamin tomou de Bertolt Brecht expresso no imperativo de no abastecer o aparelho de produo sem modific-lo o mximo possvel. Walter Benjamin, The Artist as Producer, trad. John Heckman, New Left Review 62 (1970): 89. Refuncionamento e desconexo caminham juntos: enquanto desconectar sempre refuncionar no sentido de minimizar nossa dependncia em relao a redes longas capitalsticas e carbono-dependentes, refuncionar tambm indica que, ao invs da nica direo de encurtamento de redes, devemos pensar quais redes longas queremos manter (a internet, por exemplo?) e que condies precisam ser criadas para que isso seja possvel sobre novas bases. Por contraste, a maneira como o Manifesto Aceleracionista pensa o conceito de refuncionamento bastante unidimensional, como mera apropriao das redes longas por um ns que permanece indeterminado. Ver Nick Srnicek e Alex Williams, #Accelerate: Manifesto for an Accelerationist Politics, The Accelerationist Reader, ed. Robin Mackay e Armin Avanessian (Falmouth: Urbanomic; Berlin: Merve, 2014). 28 Mckenzie Wark, #Celerity: A Critique Of The Manifesto For An Accelerationist Politics, http://syntheticedifice.files.wordpress.com/2013/06/celerity.pdf.

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    crise ambiental no passaria de uma cortina de fumaa para nos afastar do problema da desigualdade social. Terceiro, e mais importante, o de construir no sentido de bricolar uma base social para as lutas por justia social e ambiental que esto por vir.29 Conseguiremos fazer isto? No tenho a menor ideia. Mas tambm no tenho a menor dvida de que nossa nica chance de ter uma chance passa pela constituio de movimentos de massa capazes pela obstruo, a desconexo e o refuncionamento de progressivamente reconfigurar nossas condies de vida, para que a vida tenha ainda alguma condio de continuar a existir.

    29 O filme A Idade da Terra, de Glauber Rocha, referenciado no subttulo deste colquio, poderia ser tomado como um pressgio da pluralidade e flexibilidade ttica que a crise climtica exige. O filme alegoriza a chegada futura de um Cristo do Terceiro Mundo, mas este Cristo no um, mas quatro: o Cristo Negro interpretado por Antnio Pitanga (que antes interpretara o malandro que lutava contra a resignao supersticiosa dos pescadores em Barravento); o Cristo Guerrilheiro (Ogum-Lampio, segundo Glauber) de Geraldo D'El Rey, que antes vivera o Manuel Vaqueiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol; o Cristo Militar (Tarcsio Meira); e o Cristo ndio que vira operrio e depois pescador, interpretado por um branco (Jece Valado). Interessa menos aqui tentar compreender a complexa sntese barroca da viso poltica de Glauber que reter a ideia sugerida pelo filme de que, pace Heidegger, apenas mais de um Deus pode nos salvar.