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Rodas de FumoO uso da maconha entre camadas

médias urbanas

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Universidade Federal da Bahia

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Rodas de FumoO uso da maconha entre camadas

médias urbanas

Drogas: Clínica e CulturaCETAD/UFBa

Salvador, 2000

Edward MacRaeJúlio Assis Simões

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© Direitos para essa edição, cedidos à Editora da Universidade Federal da Bahia.Feito o depósito legal.

2ª Impressão 2004

Projeto Gráfico da Coleção e CapaIure Aziz e Karime Salomão

Editoração EletrônicaIure Aziz e Karime Salomão

Revisão de TextoOs autores

Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas CETAD/UFBAExtensão Permanente da Faculdade de Medicina da UFBAPrograma de Prevenção ao Abuso de Drogas - PREVDROGAS/SESABRua Pedro Lessa, 123 - Canela, CEP: 40110-050 - Salvador - BATels: (071) 336-8673 e 336-3322, Fax: (071) 336-7605E-mail: [email protected]

Editora da Universidade Federal da Bahia EDUFBA/UFBARua Barão de Geremoabo , s/n campus de Ondina CEP: 40170-290Salvador - BA Tel/fax: (071)263-6163, E-mail: [email protected] Atendemos pelo reembolso postal

MacRae, Edward. Rodas de fumo : o uso da maconha entre camadas médias / Edward MacRae, Júlio Assis Simões. - Salvador: EDUFBA; UFBA / CETAD, ©2000, 2004.

150 p. (Coleção drogas: clínica e cultura)

ISBN 85-232-0207-2

1. Antropologia social - Psicoativos I. Simões, Júlio Assis II. Título.

CDD: 362.295CDU: 633.888:316.723-058.13

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�... malandragem dá um tempo,

que fazer a cabeça tem hora,

é por isso que eu vou apertar,

mas não vou acender agora...

(�Malandragem dá um Tempo�

de Popular P., Adelzonilton e Moacyr Bombeiro)

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Sumário

Prefácio

Apresentação

A maconha no Brasil

Fatores socioculturais

Usuários não�marginais: um estudo de caso

Circunstâncias da iniciação ao uso da maconha

Precepção dos efeitos da maconha

Lidando com o controle social: segredo, auto imageme redes de sociabilidade

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Controles informais do consumo: rituais e sanções

Aquisição do produto e técnicas de consumo

O consumo da maconha associado a outras atividades

Tolerância, padrões de consumo e a hipótese da�escalada�rumo a outros psicoativos ilegais

A maconha e a lei

Atitudes com relação às campanhas de prevenção

Aspectos políticos da repressão às drogas

Conclusão

Bibliografia citada

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Prefácio

Ao longo dos quase vinte anos que tenho dedicado ao trabalhocom usuários de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas, seus fa-miliares, e divulgado uma ideologia preventiva, apoiada na educa-ção para a saúde e proteção da vida, tenho lamentado, profunda-mente, a quase inexistência de trabalhos socioantropológicos quenos aproximem da cena dos bastidores. Conhecemos, largamente,os aspectos farmacológicos das mais diversas substânciaspsicoativas. Conhecemos os danos que causam ao organismo físicoe os efeitos imediatos e mais distantes sobre o psiquismo. O queconhecemos mal, negligenciamos ou não conhecemos, são os as-pectos relacionados com as motivações individuais e seusdeterminantes sociais e culturais. Aliás, tudo que nos foi legado aolongo do tempo — mais remoto ou mais próximo — parece ter sidoesquecido: o uso ritual de cogumelos no México antigo, a folha dacoca no Planalto Andino, o álcool pelos romanos, o “fruto da sabedo-ria” no Paraíso... Nossos olhos estão cada vez mais voltados para adescoberta de produtos químicos, capazes de suprimir o desejo dealterar a percepção do mundo, um mundo cada vez mais complexo,ou de conformar o usuário dependente à ordem do Estado, tornan-do-o um “toxicômano domado”, segundo a expressão de ClaudeOlievenstein. Este é o grande desafio dos que trabalham com asdiversas estratégias objetivando reduzir os danos causados pelo con-sumo de substâncias psicoativas, injetáveis ou não: dar, aos ho-mens que optaram pela toxicomania, a proteção que merecem sema submissão que os aniquilam.

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Desde a criação do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Dro-gas (CETAD-UFBA), em 1985, tenho chamado a atenção para doisaspectos: o primeiro, relacionado com a necessidade de amplos es-tudos epidemiológicos, em populações específicas e na populaçãogeral; o segundo aspecto, relacionado com o conhecimento dassubculturas consumidoras de substâncias psicoativas, através deestudos etnográficos que nos aproximem da realidade dos consumi-dores e seu setting, isto é, “o conjunto de fatores ligados ao contextono qual a substância é tomada, o lugar, as companhias, a percepçãosocial e os significados culturais atribuídos ao uso”. Sem estes ele-mentos, as chamadas intervenções preventivas não passam deimposições ideológicas, cujos resultados não têm sido encorajadorese o consumo de “drogas de toda ordem” não cessa de crescer pelomundo a fora. Aliás, os quatro levantamentos junto à população es-tudantil de dez capitais brasileiras, realizados pelo Professor ElisaldoCarlini, da Escola Paulista de Medicina, superando toda sorte dedificuldades, mudaram, radicalmente, nossa percepção do proble-ma: o álcool, o tabaco, os medicamentos psicotrópicos e os inalantessão de longe os produtos mais consumidos por nossos filhos e filhas,quando comparados à maconha e à cocaína. Estes dados impuse-ram, aos que não queriam ver, a realidade de que nossas criançasestão bebendo muito cedo e eu acrescentaria que estão morrendoem acidentes de automóveis, embriagadas.

Pois bem, este trabalho sobre a maconha, dos pesquisadoresEdward MacRae e Júlio Assis Simões, vem nos surpreender com osdepoimentos de quem usa sem se sentir destinado ao fogo do infer-no. É um trabalho sério, desprovido de preconceito, quase sem par-tido (digo quase porque não acredito na completa isenção do pesqui-sador e da pesquisa científica; a escolha de um caminho tem sem-pre a ver com o caminhante), e que coloca diante do leitor dadoshistóricos e sociológicos de relevância; nos expõe o percurso decriminalização do uso da maconha no Brasil, nos afastando de suahistória natural, pelo menos em regiões como o Nordeste, às mar-gens do São Francisco, ao longo de quatorze seções bem documen-tadas, passando, ainda, entre outros aspectos, pelas circunstânci-as da iniciação; controle social; controles informais, seus rituais e

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sanções, para concluir com pertinentes reflexões sobre a maconha ea Lei, atitudes com relação às campanhas de prevenção e a política.

Não se trata de um texto contra ou a favor da maconha, massobre os que, livres para não usá-la, decidiram falar de suas histó-rias pessoais para Edward e Júlio que, competentemente, soube-ram ultrapassar o nível do mero voierismo para encontrar a almade cada contador, construindo para nós a realidade que a ficção decada um permite evidenciar, basta saber ouvir.

Professor Antonio Nery Filho

Praia de Itacimirim, julho de 1999.

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A maconha (Cannabis sativa) é provavelmente a substânciapsicoativa ilegal de uso mais difundido no Brasil. Embora não sedisponha de um conjunto ordenado de informações estatísticas arespeito do nível de seu consumo entre os vários estratospopulacionais do País, vários levantamentos parciais indicam queesta é uma prática disseminada especialmente entre os jovens1 .

A relevância da questão, entretanto, não tem sido acompanhadade uma correspondente destinação de recursos e esforços para in-vestigar e conhecer melhor todos os complexos aspectos de que sereveste o fenômeno. Enquanto “droga”2 , a maconha é tratada emtermos quase sempre negativos, como “causa” de distúrbios físicos,psicológicos e morais, como mal a ser extirpado. Assim, procura-seapenas investir na repressão ao tráfico e na elaboração de campa-nhas preventivas visando manter o usuário potencial ou regularafastado do “perigo”. A julgar, porém, pelas declarações dos própriosórgãos repressivos e preventivos, tal estratégia tem se reveladoincapaz de atingir o objetivo proposto de eliminar a oferta da canabis,assim como de outros psicotrópicos ilícitos.

Uma dificuldade básica reside em que a discussão sobre as “dro-gas” é carregada de emoções e valorações. Nem poderia ser dife-rente, visto que as experiências e as questões levantadas pelassubstâncias psicoativas parecem resvalar em sentimentos profun-dos das pessoas: medos e esperanças. Em boa medida, a tendênciapara apresentar as “drogas” indiferenciadamente como as causasprimeiras de estados maléficos percebidos como associados a seu

Apresentação

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uso é fruto desse grande envolvimento emocional (Weil, 1986:19).Nessa lógica, as substâncias psicoativas em si mesmas tornam-seo fundamento de todo o chamado “problema da toxicomania”, e sesupõe que a solução para tanto está na eliminação das possibilida-des de acesso a elas.

Ora, insistir em ver a “droga” necessariamente como um mal édesconhecer um dado elementar: as pessoas têm parte ativa nabusca destas substâncias. A motivação para querê-las está obvia-mente ligada aos efeitos que elas podem desencadear. Na verdade,o uso de psicoativos constitui um meio entre outros para experi-mentar alterações na consciência ordinária de vigília - talvez a maisantiga, persistente e difundida técnica nesse sentido, encontrávelnas mais diversas culturas humanas. Discutir a questão das “dro-gas” entre nós remete, portanto, ao problema dos sentidos atribuí-dos a estados alterados de consciência em nossa cultura.

Freqüentemente, a condenação às “drogas” insiste no caráterdanoso e inaceitável das experiências de alteração de consciênciapor si mesmas. O argumento comum de que as “drogas” represen-tam uma fuga à realidade supõe, genericamente, que a “realidade”é o que é apreendido por um certo padrão de “consciência ordináriade vigília”, tida unilateralmente como “boa” e “desejável”.

Entretanto, muitas práticas habituais e lícitas da vida diária têm,em comum com o uso de psicotrópicos, a propriedade de desencade-ar algum tipo de estado mental alterado. Podemos pensar, como su-gere Weil, nos rodopios executados por crianças quase até o des-maio. Ou ainda, como lembra Masur (1987), nas sensações de umapessoa “divertindo-se” numa montanha-russa. O sonhar acordado,o delírio, a hipnose, o transe, a meditação, o arrebatamento místicosão também outros modos de experimentar alteração de consciên-cia, muitos dos quais podem ser desenvolvidos como técnicas pecu-liares. O arrebatamento místico e o transe são, aliás, experiênciasestimuladas e bastante valorizadas em muitas religiões, incluindoo catolicismo, as denominações “espíritas”, o candomblé e aumbanda.

As sensações provocadas pelas diferentes substânciaspsicoativas variam grandemente. Estudos farmacológicos têm con-tribuído para ressaltar essa diversidade, determinando os princí-

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pios ativos e as reações orgânicas e psíquicas peculiares a cadasubstância. De qualquer maneira, parece ser útil nesta discussãoestabelecer uma distinção entre as propriedades das substânciaspsicoativas e as experiências subjetivas de seu uso. As “drogas”têm a capacidade de desencadear certos efeitos interpretados como“barato”, mas não são as únicas responsáveis por eles. O signifi-cado de experiências com psicoativos não pode ser determinadono âmbito da análise farmacológica: para compreendê-lo, é neces-sário considerar também as expectativas individuais e o ambien-te sociocultural em que a substância é usada, pontos que desen-volveremos adiante com as noções de set e setting, respectiva-mente. Estes fatores influenciam o significado das experiênciasindividuais, e é necessário determinar seu peso em cada situa-ção considerada.

No caso da maconha, expectativas e ambiente parecem ter acen-tuada influência na determinação das reações e condutas indivi-duais. A maconha é uma substância sui generis do ponto de vistafarmacológico. Não se enquadra adequadamente como estimulan-te, nem como depressor, nem como alucinógeno. Seus efeitos nãocostumam ser nítidos e perceptíveis à primeira vista, e uma mes-ma pessoa consumindo doses equivalentes da mesma amostra demaconha pode ter experiências subjetivas bastante diversas de si-tuação para situação. Mensurações obtidas em laboratório salien-tam a pequena periculosidade oferecida pela maconha em termosdos efeitos orgânicos a longo prazo, ausência de síndrome de absti-nência, riscos insignificantes de overdose e pouca alteração nacapacidade relacional do usuário3 . De outro lado, há todo um lequede indagações no que diz respeito às experiências subjetivas com aerva. Neste caso, parece imprescindível retornar aos usuários re-gulares e recuperar a visão que possuem de sua própria vivênciacom a canabis.

Este estudo toma por objeto um uso social específico da maco-nha: entre indivíduos das camadas médias urbanas formalmenteintegrados à sociedade de consumo e ao mercado de trabalho, nopleno gozo de sua sanidade física e mental. Insistiremos, ao longodo texto, na importância de se considerar o ponto de vista dos usu-ários habituais e controlados para um melhor entendimento e uma

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ação mais eficiente quanto ao “problema das drogas”. Em princípio,as experiências destes usuários não-marginais servem de neces-sário contraponto aos estudos feitos com toxicômanos sob tratamen-to, onde a maconha é apresentada como primeiro degrau da escala-da de degradação física e moral, à qual se imagina que todo uso depsicoativos necessariamente conduz.

Este trabalho compõe-se de quatorze seções. Nas três primeiras,procuramos delimitar o tema do uso da canabis, à luz de dados his-tóricos e sociológicos referentes ao Brasil e do esquema conceitualque fundamenta esta investigação, incluindo em seguida informa-ções a respeito das técnicas de pesquisa empregadas e dos sujeitosselecionados para as entrevistas. As seções restantes dedicam-seà análise e comentário do material coletado nas entrevistas e ob-servações feitas. Focalizaremos os seguintes aspectos: caracterís-ticas dos entrevistados quanto ao uso de psicoativos; sua iniciaçãoao consumo da maconha; seu aprendizado da percepção dos efeitosda erva; suas estratégias em face do controle social; o desenvolvi-mento de controles informais do consumo; estratégias de aquisiçãoe técnicas de uso; associação da maconha a outras atividades; aquestão da tolerância aos efeitos da erva e suas conseqüências;atitudes em face da criminalização do uso da maconha e com rela-ção a campanhas de prevenção.

Esperamos assim apresentar um painel de dados e interpreta-ções que possa ser útil para repensar programas de informação eprevenção do uso de drogas no sentido de incorporar ativamentevivências e pontos de vista dos próprios usuários.

Notas

1 O Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID)vem realizando, sistematicamente, levantamentos sobre o uso de drogas entreestudantes do ensino fundamental e médio em dez capitais brasileiras desde1987. Enquanto naquele ano 2,8% dos estudantes diziam ter consumido maco-nha alguma vez em suas vidas, em 1997 a proporção havia subido para 7,6 %. Osignificado dessas cifras é pequeno, já que contabiliza usos excepcionais quetalvez não tenham se repetido. Mais relevante é a analise do “uso freqüente”, quecontabiliza usos de seis ou mais vezes nos trinta dias antecedendo à pesquisa,bem mais reduzido (1,1 % para o total da população pesquisada), onde também seconstata uma tendência ao aumento dessa prática, embora em nível menor.

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2 Segundo Arnao (1980: 14), a expressão “substância estupefaciente”, que ésinônimo legal-policial-burocrático do termo “droga”, aumenta ainda mais a con-fusão já existente em torno do assunto. Em farmacologia, “estupefaciente” indica,na verdade, uma ação típica dos opiáceos, mas não é absolutamente aplicável aoutras substâncias ilegais, como a canabis, cocaína e alucinógenos”. Como adefinição do termo “droga” envolve um complicado entrelaçamento do ponto devista médico-farmacológico com o ponto de vista legal, a palavra aparecerá nodecorrer deste relato sempre entre aspas, a não ser quando for indicado expres-samente em que sentido está sendo empregada. Em seu lugar serão empregadosos termos “psicoativo” e “psicotrópico”, denominações abrangentes em farmacolo-gia para designar substâncias que produzem alterações no estado psíquico.

3Jandira Masur, em comunicação oral apresentada em seminário promovidopelo IMESC a 16/6/88 em São Paulo, sintetizou alguns achados recentes rela-tivos à pesquisa de efeitos orgânicos e psíquicos causados por cinco substânci-as psicoativas: álcool, cocaína, heroína, tabaco e maconha. Os aspectos foram:efeitos por uso crônico; presença e intensidade de síndrome de abstinência;riscos implicados por overdoses; e alterações sensíveis na vida de relação porefeito do uso prolongado. Quanto a efeitos por uso crônico, a maconha acompa-nha a cocaína e a heroína, as três se caracterizando por acarretar danos físicose psíquicos a longo prazo menores que o álcool e o tabaco. Quanto à síndrome deabstinência, esta não se caracteriza no caso da maconha. Os riscos de overdosesão considerados quase nulos, assim como os do tabaco. A maconha situa-setambém próxima ao tabaco por causar muito pouca interferência nas relaçõespessoais cotidianas dos usuários regulares. Consultar também, a respeito, Carlini(1986) e Arnao (1980), (Mansur e Carlini, 1989).

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A maconha no Brasil

Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a utilização socialdas propriedades psicotrópicas da maconha não é costume recenteno Brasil. Acredita-se que o hábito de fumar a canabis tenha sidointroduzido no país por escravos africanos desde a colonização (Dória,1986 (1915); Iglésias, 1986 (1918); Moreno, 1986 (1946); Mott, 1986).Já neste século, o uso da erva se difundiu por algumas áreas doNorte e Nordeste do país, entre populações indígenas, habitantes dezonas rurais e segmentos urbanos populares e marginalizados(Iglésias, op. cit.; Moreno, op. cit.; Henman, 1982; 1986)

Entre grupos negros do Nordeste e indígenas que com eles de-vem ter mantido contato, a maconha era empregada "como ervamedicinal, estimulante no trabalho físico e nas pescarias, e comoagente catalisador das rodas de fumantes que se reuniam no fimda tarde" (Henman, 1982:7). Observadores e estudiosos de cultosafro-brasileiros fizeram referências à utilização da maconha emrituais religiosos, e alguns, como Gilberto Freyre, chegaram a as-sociar as tradições religiosas e a maconha como elementos cultu-rais de resistência à "desafricanização" (Mott, op. cit.).

Embora tenha surgido no Brasil o primeiro ato legal de proibiçãoda venda e uso da maconha no mundo ocidental — determinadopela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 1830 — o consumo daplanta só se tornou plenamente uma questão de saúde pública nes-te século. O Código Penal da República, em 1890, embora procla-masse a proibição do comércio de "coisas venenosas", não faziamenção expressa à maconha (Toron, 1986:141). Desde as primei-

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ras décadas deste século, porém, passou-se a identificar perigo no usoda maconha praticado por estratos populares em centros urbanos, osquais, segundo Henman (1982), haviam adotado seu consumo fora dospadrões tradicionais da roda de fumantes nordestina. Começou a cris-talizar-se, entre autoridades médicas e policiais brasileiras, a associ-ação "pobre — preto — maconheiro — marginal — bandido".

Textos da literatura internacional sobre ópio e haxixe, tanto decientistas como Morerau de Tours, quanto de literatos "hachischin"cultuadores do decadentismo como Baudelaire e Gauthier, fomen-taram a interpretação do uso da maconha como fonte de degenera-ção psíquica e moral e de enfraquecimento da "raça brasileira".

Em 1916, Dr. Rodrigues Dória, professor na Faculdade de Medici-na da Bahia, publicou o texto de uma comunicação que apresenta-ra ao II Congresso Científico Pan-americano, realizado em Washing-ton no ano anterior. Baseando-se em observações pessoais do usoda maconha em cidades do Vale do São Francisco, o autor faz umadas descrições mais completas que se tem do uso tradicional damaconha no Brasil. Fala, por exemplo, dos feirantes que, após otrabalho, em volta de seus cachimbos ou "maricas" recitavam asloas da maconha. Durante décadas o conteúdo desse texto foi repro-duzido na maioria dos documentos produzidos sobre o tema e ser-viu para promover uma vinculação na visão oficial, entre o uso damaconha e a cultura afro-brasileira. Apresentando a difusão do usoda maconha, pela população como um todo, como uma espécie devingança da raça negra contra "seus irmãos mais adiantados emcivilização", fomentou também o alarmismo perante o processo desua popularização crescente e problemática, do ponto de vista mé-dico, civil e criminal (Cavalcanti; 1998:85).

Nos anos 30, intensificou-se nos EUA a campanha visando tornarilegal o consumo da maconha e erradicá-lo (Becker 1976a). No Brasilaparecem, nessa época, estudos médicos que não só reforçavam aidéia de que o consumo da maconha é um "vício legado pelo negro",como também estabeleceram toda a série de crenças e esquemastradicionais de interpretação relativa aos efeitos catastróficos à saúdehumana provocados pelo uso da erva. Nesses estudos, a maconhaera apontada como causadora de agressividade, violência, delíriosfuriosos, loucura, taras degenerativas, degradação física, idiotia, sen-

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sualidade desenfreada. Suas propriedades farmacológicas foramidentificadas às do ópio e seus derivados, o que levou a qualificar oconsumo da erva como "uso compulsivo". Com base nisso esses estu-dos apresentavam o usuário da maconha simultaneamente como"marginal" e "doente" e, incluindo a erva entre a categoria das "dro-gas estupefacientes", pregavam a interdição legal de sua produção econsumo (Dória, op. cit.; Iglésias, op. cit.). Em 1912, um decreto fede-ral já punia o comércio de substâncias de "qualidade entorpecente".Em 1932, por meio de outro decreto, a punição passou a atingir tam-bém o usuário de "substâncias toxicoentorpecentes" (Toron, op. cit.).

Embora já contasse com vários opositores desde a década anteri-or, o uso da maconha só passou a ser penalizado em lei em 1934.Mas, conforme relata Cavalcanti, foi no período após a guerra queocorreu a elevação do combate ao "maconhismo" à condição de ban-deira nacionalista. O assunto invadiu a imprensa diária e tornou-se tema freqüente dos congressos médico-psiquiátricos, unifican-do a atuação dos reformadores sociais.

Em 1946 realizou-se , em Salvador, o "Convênio Interestadual daMaconha", reunindo os representantes das Comissões Estaduais deFiscalização de Entorpecentes (CEFE) de Pernambuco, Alagoas,Sergipe e Bahia, além de representantes da Comissão Nacional deFiscalização de Entorpecentes, visando unificar o combate ao uso damaconha e rever a legislação. Ao final foram aprovadas uma série demedidas para unificação e incremento dos trabalhos de erradicaçãodesse uso. Estas incluíam: planejamento de medidas para atuaçãocomum à região; destruição dos cultivos; medidas jurídicas de revi-são ou interpretação da legislação; inclusão em congressos de psi-quiatria, higiene e correlatas, do tema "repressão e profilaxia dastoxicomanias" especialmente a produzida pela maconha; estudo evigilância especial dos delinqüentes contra a propriedade; instruçãoe educação do pessoal indicado para o trato com esses problemas;intercâmbio obrigatório entre as CEFE (atas, trabalhos, ficha de vici-ados ou de pesquisas); multiplicação dos dispensários de higienemental e das medidas para descobrir psicopatas; divulgação educativae selecionada, dos perigos das toxicomanias; internamento e trata-mento, pena ou medida de segurança, colônias agrícolas para os vi-ciados e traficantes; biblioteca especializada; fiscalização hábil, se-

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rena e metódica, do exercício profissional da medicina; matrículados cultos afro-brasileiros e intercâmbio policial-médico de ordemeducativa-higiênica; e, plantio pequeno, sob fiscalização das CEFE,para fins de estudo da maconha, dos pontos de vista farmacológico,clínico, psicológico e sociológico (Cardoso, apud Cavalcanti 1998;116)

As novas perspectivas de atuação organizada e sistemática viri-am consolidar o tema da maconha como uma preocupação social,através da imprensa diária. A partir de meados dos anos '50, o volu-me de notícias publicadas sobre o assunto aumentou consideravel-mente, veiculando a idéia de “desvio de caráter” do fumador de ma-conha. Este passou a ser representado não mais como "vítima dovício" mas como “desordeiro” que promovia verdadeiras invasões doespaço urbano. O discurso jornalístico adotava uma forma bastantehomogênea para relatar esta condição. Usando um estilo quase sem-pre irônico ou sarcástico, enfatizava uma suposta índole do“maconheiro”, mais do que o problema genérico do uso de drogas.Essa abordagem jornalística teve muito mais ressonância socialque os estudos com ambições mais científicas que até então havi-am tratado do fenômeno, oferecendo à população tanto umasintomatologia quanto as supostas conseqüências sociais do con-sumo da maconha. Estas representações nortearam, ou influenci-aram, o modo como as novas gerações seriam prevenidas, instruí-das, ou, surpreendidas por seus familiares como consumidores demaconha (Cavalcanti 1998:119 e 132)

A força reinvindicatória que exerceria a “revolução cultural” dosanos 60 sobre o simbolismo do uso da maconha, em quase todo oOcidente, marcou a inclusão do “jovem” num mundo até então con-cebido quase exclusivamente como habitado pelos bandidos denun-ciados pela imprensa. A partir dessa década, o costume de fumarmaconha deixou de ser apanágio das camadas pobres e marginali-zadas e ganhou amplitude entre segmentos da classe média urba-na. Nos anos que se seguiram à implantação do regime militar au-toritário no país, o uso da maconha adquiriu a conotação de buscapor um estilo alternativo de vida, uma expressão de liberdade depensamento e sensações, praticada por grupos de jovens.

O professor de filosofia Luiz Roberto Salinas Fortes, preso repeti-damente por razões políticas, foi detido uma vez em 1974, falsa-

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mente acusado de tráfico de drogas. Usuário contumaz da planta,ele fez uma bela descrição dessa época e dos seus "delírios quotidi-anos liberados pela canabis liberadora":

"Como rigorosos militantes fumávamos desbragadamentetodos os dias, da aurora ao crepúsculo, do banheiro à cozinha,da mesa à cama, da roupa à nudez, cavalgando em loucuranossos sonhos visionários. Militantes rigorosos e corajosos emcontestação permanente cada fósforo aceso como ato de pro-testo contra tudo e todos. Na verdade, dávamos prosseguimen-to, da forma possível, às fracassadas tentativas de existência eorganização política de toda uma geração. Prosseguíamos nomesmo combate, transfigurando-o, inventando novas formas,mergulhando nas comunidades caóticas, nas trips coletivas,nos debates e discussões intermináveis, na busca desespera-da de novas formas de convivência e no radical, definitivo,irreversível rompimento com a ordem de coisas vigentes. Fácilcontestação — fácil? — que desestruturava o universo bem-pensante e se exprimia através da permanência da clandesti-nidade, passando de mão em mão, de boca a boca, de pulmão apulmão na ciranda do baseado, néctar com nepente, erva, ser-va. Grandiosas "batalhas" — lembram? — registravam-se todoo santo dia, desde a procura da mercadoria na Vila Brasilândiaaté a roda de samba na rua Diana, passando pela leitura do IChing na rua Caiowáa sob a direção do iluminado guru. Havia,de um lado, o bloco, o magote, na sua permanente rebeliãofantástica e, de outro, o resto, o incolor, o inodoro universo dacaretagem, onde pontificavam os carrancudos patrulheiros dologos, com todas as idéias bem no lugar e encarapitados emsuas dialéticas pacificadoras. De um lado, a nova intensidadee a euforia inesperadas. De outro, o mundo das obrigações e dorelógio. De um lado, a dimensão ignorada pela "caretice" geral,estado de graça, alegre durar. " (Salinas Fortes, 1988:81).

Setores do Estado ditatorial logo reconheceram na utilização da ervauma atitude de rebeldia, uma contestação cultural à ordem e ao regi-me vigentes (Lins e Silva, 1985; Henman, 1982). Passou-se então àedição das severas "leis antitóxicos" que englobaram a maconha.

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Em 1968, com a revogação de um artigo do Código Penal, houve aequiparação legal entre "traficantes" e "usuários", aplicando-lhespenas idênticas. Essa postura foi ratificada pela lei de 1971, que,como agravante, permitia que se fizessem e acatassem denúnciaspor "consumo de drogas" sem a necessidade de um "laudotoxicológico" comprobatório (Toron, op. cit., p.142). Durante a vigên-cia desta lei, entretanto, alguns magistrados passaram a adaptarsua aplicação, permitindo que pessoas caracterizadas como meros"usuários" obtivessem algum benefício legal. Uma das formas deobter esse benefício era produzir uma declaração de autoridademédica atestando que o indivíduo detido por posse ou consumo era"dependente" da substância (Lins e Silva, op. cit., p. 124). Em 1976nova lei foi promulgada, repondo a distinção entre "traficante" e"usuário" e a exigência de "laudo toxicológico" para a instauraçãoda ação penal (Toron, op. cit.). Entrementes, o crescimento da de-manda por maconha levou, em alguns casos, até a uma obscuraintegração entre redes de tráfico e setores da própria polícia, tor-nando-se o suborno outra alternativa para se escapar de uma de-tenção. Também o uso tradicional da erva entre populações indíge-nas — caso dos Tenetehara do Maranhão — passou a ser combatidopelos órgãos de repressão do Estado brasileiro (Henman, 1986).

Com o final da ditadura militar e o restabelecimento da discussãodemocrática, diversas vozes têm se levantado com críticas à atuallegislação. Até políticos como Fernando Henrique Cardoso e seuscolaboradores próximos fizeram críticas ao tratamento dispensado ameros usuários. Várias propostas de lei foram apresentadas e, diver-sas comissões parlamentares têm discutido o assunto, apresen-tando diferentes projetos de lei visando uma melhor adequação dalegislação de entorpecentes.

Estes, porém, apesar de amenizar alguns dos mais criticadosdefeitos da lei em vigência, não deixam de repetir alguns de seuspiores vícios. Assim, por exemplo, continuam a atribuir ao CódigoPenal a regulamentação de um tema melhor abordado no CódigoCivil (ver Sá 1993). Também deixam de lado as variáveis relaciona-das ao estado psíquico do usuário e ao contexto sociocultural emque se dá o uso, não buscando nem diferenciar entre as diversassubstâncias proibidas (MacRae 1997:113).

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A juíza Maria Lúcia Karam, criticando um desses projetos, fazconsiderações aplicáveis aos outros projetos discutidos. Ela consi-dera que, acenando com a chamada política do possível, na realida-de acaba por sufocar qualquer voz questionadora e adere à tendên-cia de abandono de princípios de um Direito garantidor, em prol deuma repressão mais rigorosa e supostamente mais eficaz, negoci-ando os pequenos avanços no tratamento do consumo de drogas —avanços que, de todo modo, mantêm a inadmissível criminalizaçãoda posse para uso pessoal —, ao preço do desmedido rigor repressivono que concerne ao tráfico. Assim é que o novo projeto propõe aelevação de penas para o tráfico sugerindo a equiparação de seumínimo à pena de um homicídio (Karam, 1998;14)

Esta breve sinopse histórica, focalizando o papel desempenhadopela maconha nas tradições brasileiras e as diferentes reações soci-ais por ela motivadas, deixa clara a magnitude da questão social queenvolve a utilização da substância. Ela mesma se reveste de comple-xos aspectos culturais, políticos, jurídicos e de saúde pública.

Pode-se perceber, de qualquer forma, como a ação dos médicosbrasileiros nas décadas de 20 e 30 foi decisiva para desqualificarpor completo a validade do conjunto de práticas e representaçõesque orientava o uso da canabis entre grupos de negros, índios etrabalhadores pobres do Norte e Nordeste. Não deixa de ser curiosoque tais estudos médicos tenham efetuado registros até cuidado-sos dos contextos tradicionais de uso da canabis antes que este setornasse questão médico-policial. Pode-se ver hoje como estes re-gistros na verdade ofereciam pouca evidência para as conclusões,atribuindo ao uso da maconha incontáveis danos físicos, psíquicose morais. O fato é que a versão médico-policial se impôs como ver-dade oficial no assunto, e foi em contraposição a ela que os novosusuários da canabis na década de 60 em diante, vindos das cama-das médias urbanas, procuraram elaborar representações e práti-cas alternativas para revalorizar e justificar o uso da maconha. Talelaboração, entretanto, não passou por uma recuperação dos con-textos tradicionais de uso da erva no Brasil — já irremediavelmen-te diluídos na associação com a malandragem e o banditismo —mas, sim, pela absorção do ideário cosmopolita da "contracultura"que então se esboçava nos países do Primeiro Mundo (cf. Henman,

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1982). O antropólogo Gilberto Velho, em estudo pioneiro, baseado emobservações realizadas na Zona Sul do Rio de Janeiro entre 1972 e1974, retratou com bastante detalhe um grupo de pessoas, de idadesvariando dos 25 aos 35 anos, aproximadamente, que fazia uso dediversas substâncias psicoativas (mas principalmente da maconha).Ele entende isso como fazendo parte de um estilo de vida sofisticadoe hedonista (Velho denomina esse grupo de "aristocratasvanguardeiros"), relacionado a padrões cosmopolitas sem nenhumareferência a antigas tradições populares do Brasil. Outro grupo estu-dado pelo autor era, formado por indivíduos provenientes dos mes-mos estratos sociais mas em média dez anos mais jovens. Estes nãoapresentavam os sofisticados interesses artístico culturais dos pri-meiros, estando muito mais voltados para uma subcultura centradano surf. Mas tampouco faziam qualquer ligação entre seu uso contu-maz de maconha com o velho uso popular (Velho, 1975 e 1998).

Nota-se também que as campanhas preventivas e punitivas fra-cassam no seu objetivo primordial de frear e coibir o consumo. Ca-beria indagar as razões de tal fracasso e explorá-las com o intuitode repensar a questão. Um sério ponto fraco destas campanhas re-side justamente no seu baixo nível de credibilidade junto a seusdestinatários preferenciais (fato, aliás, eloqüentemente constata-do em nossas entrevistas). Resumindo, temos no geral a seguintesituação: "o jovem (alvo predileto das campanhas) assistia a pales-tras onde era ensinado que fumar maconha levava à perdição; quan-do finalmente sua curiosidade suplantou o medo que nele fora in-fundido e ele fumou um baseado, viu que o monstro que fora pinta-do inexistia e que o ritual era simples como beber uma pinga." (Pes-soa Jr., 1986:149).

Em outras palavras, qualquer pessoa que decida efetuar umaexperiência de uso de uma substância ilícita pode estabelecer parasi um quadro referencial do significado dessa prática, fundamenta-do na sua vivência pessoal, concreta. Este freqüentemente entraem contradição com os perigos alardeados pelas campanhas ofici-ais, fazendo com que elas se tornem alvo de descrédito. As campa-nhas preventivas tenderão ao fracasso enquanto não apoiarem suaatuação no conhecimento efetivo do público a que se destinam. Esteconhecimento, como já ressaltamos, pode e deve incluir as experi-

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ências daqueles que têm um histórico pessoal de consumo habitu-al e moderado de substâncias ilícitas, e não se restringir apenasaos casos extremos, definidos como patológicos.

Com isso, os programas preventivos poderão recuperarcredibilidade e eficácia, evitando o risco adicional de contribuírempara a cristalização de preconceitos sociais que vêem todo usuáriode maconha, por exemplo, como "drogado", sinônimo de "doentemental", "elemento improdutivo e parasitário", tutelável e "moral-mente nocivo", alienado e autodestrutivo, unicamente motivado pelodesejo de "evadir-se da realidade". (Velho, 1981; 1985).

Ultimamente, esse tipo de abordagem vem se tornando mais fre-qüente devido à necessidade de se fazer frente ao uso de drogasinjetáveis, cujo uso descuidado é considerado um importante fatorresponsável pela disseminação da infeção pelo HIV. Surge agorauma nova abordagem para o uso de drogas, conhecida como de "re-dução de danos". Sua proposta reconhece que as pessoas continua-rão a se utilizar de substâncias psicoativas como sempre o fizeramao logo da história. Ela aceita essa realidade, tentando minimizar odano eventualmente provocado, tanto para os indivíduos como parao conjunto da sociedade (O'Hare;1994:67). Embora essa abordagemainda seja mais utilizada em relação ao uso de opiáceos e outrasdrogas injetáveis, começa-se também, em certos países, a pensarnesses termos para lidar com as conseqüências negativas do usoda canabis; e na Austrália já se publica material informativo nessesentido para seus usuários (Bleeker e Malcolm; 1998).

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Fatores socioculturais

Uma sugestão, para repensar a questão das drogas, é abordá-la apartir de outros ângulos. A tendência comum no discurso oficial emtorno do consumo de substâncias psicotrópicas é enfatizar o termogenérico "droga", sem que se faça uma distinção cuidadosa entresubstâncias diversas, seus efeitos variados sobre a psique humanae os contextos específicos nos quais ocorre seu uso. Estudiosos douso de substâncias farmacologicamente definidas como drogas têmproposto que, para a correta compreensão de como essas substânci-as afetam os usuários, é necessário considerar três fatoresdeterminantes entre si. (Embora cada um tenha sua terminologiaprópria, por praticidade de exposição, utilizaremos aqui a de NormanZinberg, na certeza de não deturpar as concepções dos outros):

a) a droga em si — isto é, a ação farmacológica da substân-cia incluindo a dosagem e a maneira pela qual ela é tomada(endovenosa, aspirada, fumada por via oral, etc.);

b) o set — isto é, o estado do indivíduo no momento do uso,incluindo sua estrutura de personalidade, suas condições psi-cológicas e físicas, suas expectativas;

c) o setting (cenário ou ambiente social) — isto é, o conjuntode fatores ligados ao contexto no qual a substância é tomada, olugar, as companhias, a percepção social e os significados cultu-rais atribuídos ao uso. (Zinberg, 1982: Arnao, 1980: Becker, 1976b).

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Dos três fatores mencionados, o que parece até o momento me-nos estudado e ao qual a antropologia mais pode trazer contribui-ções é, justamente, o que diz respeito aos aspectos socioculturais,o setting. Uma vasta produção antropológica tem demonstrado quea interpretação de fenômenos físicos, biológicos ou sociais dependede pressupostos culturalmente estabelecidos. Pressupostos cultu-rais redefinem as fronteiras entre sanidade e doença, uso e abuso.Numa sociedade complexa como a nossa, em que os agrupamentossociais são tão distintos no que respeita a seus estilos de vida evisões de mundo, há diferentes formas de vivenciar e encarar oconsumo de substâncias ilícitas como a maconha, formas essasque, não raro, são conflitantes entre si. Fica aberto, assim, um es-paço para se considerar as diferentes modalidades de uso da maco-nha e os significados culturais atribuídos à sua utilização. No quese refere ao problema colocado por esta pesquisa, cabe perguntar deque modos o cenário sociocultural influencia a formação e a con-servação de um padrão de consumo regular da maconha e de quemodos se desenvolvem, entre os usuários regulares, mecanismosque possibilitam o uso controlado da substância.

No decorrer deste trabalho, priveligiamos dois autores em espe-cial, que tentaram elaborar respostas às questões mencionadas noparágrafo anterior. Eles serviram, em grande parte, como referên-cia para a investigação inicial, embora ao retrabalhar o materialpara publicação tenhamos levado em conta outros cujas concep-ções só vieram ao nosso conhecimento posteriormente. Assim, nos-sas observações e entrevistas em profundidade foram grandementeinformadas pelas obras do sociólogo Howard Becker, e do médicoNorman Zinberg. Becker, em um trabalho pioneiro, preocupou-seem explicar como alguém se torna e permanece consumidor regu-lar da maconha, enquanto Zinberg atentou para as formas de con-trole social que permitem manter um consumo controlado de subs-tâncias ilícitas. Vamos apresentar resumidamente, a seguir, asprincipais idéias e contribuições desses dois estudiosos no queimporta ao tema da presente investigação.

Becker descarta as tentativas de explicar o uso da maconha combase na premissa de que um comportamento particular pudesseser encarado como resultado da presença de um determinado "tra-

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ço de personalidade" que predispusesse ou motivasse o indivíduo aadotar tal comportamento. No caso, o traço de personalidade quelevaria o sujeito a consumir maconha seria geralmente identifica-do como "uma necessidade (psicológica) por fantasias e fuga dosproblemas psicológicos que o indivíduo não seria capaz de enfren-tar" (Becker, 1966a: 42). Becker argumenta que, ao invés de sepensar em "motivações desviantes" anteriores ao ato, deve-se, aocontrário, entender como essas motivações se desenvolvem no cursoda experiência que o indivíduo tem com a atividade considerada"desviante". Ele procura demonstrar que o indivíduo só pode se sen-tir motivado a consumir maconha depois que aprende a identificare apreciar seus efeitos, e que tal aprendizagem se dá através decontatos com outros usuários. Para Becker, essa aprendizagem con-siste em: a) aprender a inalar da maneira correta, isto é, de formaque a substância seja realmente absorvida; b) aprender a reconhe-cer os efeitos, que não seriam muito evidentes à primeira vista eque devem ser associados ao uso da erva; c) aprender a consideraros efeitos como algo prazeroso e a lidar com eles de maneira a obtero melhor resultado possível em termos do prazer procurado; d) apren-der a enfrentar as formas de controle social que desaprovam essehábito, através do desenvolvimento de estratégias de obtenção daerva, de garantir segredo em face de não-consumidores e de justifi-car, a si mesmo, o seu comportamento diante da condenação moral(Becker, 1966b). Estes estágios formam a "carreira" do fumante demaconha. Diz Becker:

"No curso desse processo desenvolvem-se as disposições ou mo-tivações para o uso da maconha, as quais não poderiam estar pre-sentes quando o indivíduo se iniciou no seu uso, posto que envol-vem e dependem de concepções sobre a droga que só poderiam serdesenvolvidas no tipo de experiência efetiva detalhado acima. Aocompletar este processo, o indivíduo está desejoso e apto a consu-mir maconha por prazer". (Becker,1966a: 58).

Zinberg trabalha especificamente com a hipótese de que o cená-rio sociocultural (social setting) é o que permite a utilização de subs-tâncias ilícitas segundo um determinado padrão, através do desen-volvimento de sanções sociais — valores e regras de conduta — ede rituais sociais — estilos de comportamento —, os quais, juntos,

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constituem os controles sociais informais. Para Zinberg, as san-ções sociais indicariam se e como certa substância pode ser usada;as sanções podem ser informais e compartilhadas por um grupo, ouentão formalizadas por leis e regulamentos. Os rituais sociais seri-am os padrões estilizados de comportamento prescritos em torno douso de determinada substância. Estão incluídos nesses rituais osmétodos de aquisição e consumo, a escolha do meio físico e socialpara o uso, as atividades associadas ao uso e as maneiras de evitare lidar com efeitos negativos. Dessa forma, esses rituais serviriamcomo reforços e símbolos das sanções sociais (Zinberg, 1984: 5 - 6).

Os controles sociais informais — juntamente com as técnicasde consumo, a percepção e apreciação dos efeitos e a elaboração deconceitos que justificam e mantém, para o indivíduo, o seu padrãode consumo — constituem o que Becker, mais tarde (1976b: 189),denominou "cultura da droga". A "cultura da droga" tende a ser oresultado do entrelaçamento de experiências através de redes in-formais de comunicação entre usuários. Portanto, para que essainformação circule, é necessário que os consumidores estejam li-gados entre si por um determinado período de tempo e mantenhamum sistema de relações, através do qual se articulam uma série deentendimentos comuns sobre determinada substância e as melho-res maneiras de utilizá-la.

As limitações dessa "cultura da droga", no que diz respeito aocontrole de uso de determinadas substâncias, são limitações ine-rentes ao tipo de conhecimento informal. A "cultura da droga" ba-seia-se numa "lógica do concreto" (Lévi-Strauss, 1976), isto é, umasistematização que se dá ao nível dos dados imediatamentevivenciados pelos usuários, por meio da identificação, confrontaçãoe transmissão de experiências específicas. Desse modo, se produ-zem técnicas simples, cuja eficácia enquanto formas de controlede uso depende, em boa medida, do encadeamento das redes derelações pessoais e dos canais de comunicação entre consumido-res. De todo modo, parece-nos importante ressaltar que as experi-ências com psicoativos e as elaborações em torno delas geram umtipo de saber acerca da natureza, das propriedades e do uso adequa-do dessas substâncias. Trata-se de um saber que, embora não seja"científico" no sentido estrito, está longe de ser falso. Ao contrário,

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é produto de um processo de constituição de padrões culturais queregulam as práticas de consumo, estabelecendo referências para adistinção entre "uso" e "abuso".

Mais recentemente essas idéias foram retomadas na Holandapor Jean-Paul C. Grund em seu estudo sobre comportamento derisco para AIDS entre usuários de drogas injetáveis. Embora nãoestudasse o uso de canabis, suas pesquisas sobre usuários de he-roína e cocaína tem implicações que ajudam a pensar sobre con-sumidores de outras substâncias também. Assim, por exemplo, eleconstatou que os usuários de heroína e cocaína, que eram tambémtraficantes bem-sucedidos, tinham muito menos problemas relaci-onados ao uso de drogas e eram mais capazes de regular o seu uso,embora geralmente usassem mais cocaína, por estarem em umasituação de abastecimento suficiente da droga. Isso evitava queficassem completamente fixados em obtê-la e permitia a formaçãoe a manutenção de rituais e regras reguladoras. Estes, por seu lado,reforçavam a estrutura de vida necessária para manter as ativida-des de traficante que geravam os recursos necessários para asse-gurar a disponibilidade da droga. A partir daí Grund desenvolveuuma ampliação do modelo hipotético de Zinberg:

"Disponibilidade da droga, rituais e regras, estrutura de vida for-mam uma trindade, são fatores interativos em um processo circu-lar internamente coerente, onde esses fatores são eles mesmosmodulados (modificados, corrigidos, reforçados, etc.) pelos resulta-dos. É, assim, um circuito retroalimentador (feedback circuit) quedetermina a potência dos processos de auto-regulação que contro-lam o uso de drogas". (Grund, 1993: 301).

Assim Grund introduz duas novas variáveis à equação: disponi-bilidade da droga e "estrutura de vida", entendida como " padrões deocorrência regular de atividade doméstica, recreacional, laboral ecriminosa que moldam e constrangem a vida diária dos usuários"(Grund,1993:244). Grund considera que, embora uma restrição ar-tificial à disponibilidade de drogas possa diminuir seu uso até certoponto, isso tem um custo psicossocial. Além de criar um forte in-centivo econômico para o mercado ilícito, aumenta o valor simbóli-co das substâncias, conduzindo a um estreitamento do foco de in-teresse do consumidor. Fixação na droga leva a uma limitação nas

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expressões comportamentais quando há falta, e uma indulgênciaimpulsiva quando ela se torna disponível. Como resultado, os rituaise as regras em torno da substância tornam-se menos direcionados àauto-regulação e à manutenção da saúde, e mais dirigidos ao sigilo,e às transações visando seu abastecimento. Uma disponibilidadeadequada dá condições para o desenvolvimento de regras e rituaisque possam restringir o uso e criar padrões estáveis de uso. Confor-me indicam seus resultados isso pode não significar padrões de usomenor, mas permite que os usuários não desenvolvam os problemasconsiderados típicos dessa população.

Os casos observados por Grund tratam de envolvimentos comsubstâncias causadoras de dependências muito mais severas quea canabis, tanto de ordem física quanto psicológica. Isso explica aimportância dada à disponibilidade da substância, uma vez que suafalta é capaz de gerar desespero em certos usuários, impedindo-osde darem um andamento normal aos outros aspectos de suas vidas.No caso dos usuários de canabis, a "fissura", se é que ela existe, émuito mais branda, não interferindo de maneira significativa emsuas outras atividades. Mas não deixa de ser relevante a lembran-ça de que é a falta ou a dificuldade de encontrar o produto que moti-va certos indivíduos a se aventurarem por ambientes e atividadesmarginais que normalmente evitariam, não tendo nenhuma outrarazão para freqüenta-los além do desejo de se abastecerem de umasubstância cuja distribuição por vias mais bem socialmente inte-gradas é impossível. Um bom indicador disso é o costume já menci-onado de se formarem "vaquinhas" entre amigos, de maneira a re-duzir ao máximo o contato com o "submundo".

Já Martine Xiberras, partindo de uma posição que poderíamosconsiderar mais fenomenológica, desenvolve concepções análogas,concordando com Becker que o desvio é criado pelo espírito dos ou-tros, e concebe o uso de drogas de maneira não isolada. Considerao que se diz, se pensa e se fantasia sobre isso como constitutivo dofato em si. Ela destaca o fenômeno da sociabilidade canábica. En-tende a sociabilidade como oposta ao social puramente racional emecânico que pode ser administrado. Esta permite levar em contaelementos como: o imaginário coletivo, o aspecto sensível da exis-tência e o emocional, que não pode ser reduzido às práticas rituais

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e à dimensão religiosa que caracteriza a toxicomania. Xiberras con-sidera que toda sociedade necessita de algum tipo de droga, sendo oessencial encontrar o uso conveniente. Na nossa sociedade com-plexa e heterogênea, o disfuncionamento, como aquele provocadopelo uso de psicoativos, faria parte do funcionamento. Ao se que-brar a clausura do próprio corpo pode-se favorecer uma nova rela-ção com o outro, uma nova comunicação (Xiberras,1989:8-9).Con-siderando que atualmente não há um discurso unificado para jus-tificar o modo de vida do toxicômano, a autora, busca estudar agestualidade codificada e as práticas sociais específicas para re-construir, a partir do estilo de vida, as escolhas e valores subjacentesao uso de drogas e à toxicomania.

Evitando uma concentração exclusiva na natureza farmacológicados vários produtos, Xiberras enfatiza a importância de se conside-rar diferentes padrões de uso: práticas "pesadas" e "leves". As pesa-das constituem um estilo de consumo desenfreado de produtos e demodos de absorção violentos. Implicam uma busca de anestesiatanto para o corpo quanto para a alma, levando a uma concentraçãoem si mesmo e a um fechamento ao mundo externo. Isso redunda-ria numa submissão total à força das substâncias, conduzindo aoisolamento característico das toxicomanias solitárias e individu-ais, como a heroinomania.

As práticas "leves" provocam um estado de efervescência e deuso, mesmo que caótico, das faculdades cognitivas e emotivas. Esseestado é similar ao do "transe", onde todas as capacidades do sujei-to estão em alerta, prestes a reagir ao menor estímulo interno ouexterno. Essas práticas parecem caracterizar um desejo de abertu-ra para o mundo exterior. Os usuários buscam estar sob controle,participando plenamente do seu meio, próximo ou distante. Os pro-dutos levam à euforia extrovertida e o princípio da prática se cons-trói sobre um desejo de comunicação ampliada; o consumo aconte-ce de forma comunitária. De fato essa prática adquire o valor deuma iniciação ou de uma integração ao grupo, e constitui um apren-dizado real de uso da droga como domínio de si e como um novoprocesso de socialização no interior de um grupo de afinidade.Xiberras considera que, na comunhão efervescente dos fumadoresde canabis, está-se jogando o episódio mais importante do destino

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do uso ocidental de drogas. Pois, ao passar por cima de todas asindecisões, enfrentando a amnésia moderna em torno do usomilenar que a humanidade vem fazendo das drogas, os detentoresdas práticas "leves" provam por sua existência terem reencontradopor si mesmos o antigo conhecimento relacionado aos psicotrópi-cos. (Xiberras, 1989: 132-159).

Assim, neste trabalho, mais especificamente voltado ao uso dacanabis, norteamo-nos por abordagens como os desses estudiososdo uso de substâncias psicoativas que vêm preconizandoposicionamentos mais complexos, enfatizando a importância crucialde outros fatores além da sua composição química, para poder darconta de seus efeitos, sejam eles físicos, psíquicos ou sociais.

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Usuários não marginais: um estudo de caso

As considerações preliminares buscaram estabelecer o pano defundo conceitual para esta investigação visando discutir aspectosrelacionados ao uso habitual e controlado da maconha entre indi-víduos pertencentes às camadas médias urbanas no Brasil contem-porâneo. Não se pretenderá aqui desenhar um perfil quantitativodo usuário de maconha, mas sim, inspirando-nos nos métodos deobservação participante desenvolvidos pela antropologia, realizaruma descrição de como consumidores regulares de maconhavivenciam sua relação com a substância, procurando assim ilumi-nar os significados culturais associados a esse tipo de comporta-mento. Procuramos retratar o que poderia ser chamado de"subcultura da maconha" entre adultos com boa integração social.Desejamos com isso contribuir para um modo alternativo de enca-rar a questão do crescente consumo da substância. Objetivamente,procurou-se entender de que maneira se desenvolvem, entre usu-ários habituais os padrões de consumo - freqüente e controlado damaconha, e qual o papel desempenhado pelos vários agentes de con-trole social.

Partimos, como Becker e Zinberg, do pressuposto de que é a ex-periência dos indivíduos com o uso da planta que proporciona ascircunstâncias nas quais de se desenvolvem conceitos e padrõesde uso costumeiro e controlado. No caso da maconha, considerandoos "estágios" que constituem a carreira do fumante habitual, nossaintenção foi investigar os diferentes aspectos embutidos nessaaprendizagem, com ênfase nas manifestações de uma "subcultura

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da maconha". Procuramos verificar como, entre os usuários regu-lares das camadas médias urbanas brasileiras integradas à socie-dade, se produzem generalizações sobre a experiência de uso daerva que tendem a se contrapor e a substituir as concepções con-vencionais que condenam o consumo da planta e a associam, ain-da, a formas de "marginalidade social". A investigação voltou-se,pois, para resgatar preocupações, sentidos e valores através dosquais consumidores pautam seu consumo, fugindo ao tratamentoconvencional que os vê passivamente submetidos ao "vício" ou aum desejo abstrato de "fuga à realidade".

Segundo a tradição metodológica da disciplina, o antropólogo devetrabalhar sempre em estreito contato e interação com os indiví-duos que constituem seu objeto. Há muitos anos temos mantidocontato com usuários desta substância, bastante comum no meiouniversitário, intelectual e artístico que freqüentamos. Travamoscontato aprofundado com indivíduos que há anos vêm fazendo usoregular da canabis concomitantemente ao seu engajamento ematividades profissionais variadas e relativamente bem-sucedidas,a se julgar pelos títulos acadêmicos conquistados, concursos passa-dos e cargos devidamente ocupados. Assim, no decorrer das últi-mas duas décadas, temos acompanhado as variadas estratégiasempregadas por freqüentadores desses meios sociais para concili-ar de modo adequado o uso desse psicoativo com as demandas apre-sentadas por seu meio social. Um embasamento teórico tanto so-bre a questão das drogas em geral, quanto sobre o uso da canabisespecificamente, serviu para tornar-nos conscientes de certas ques-tões que normalmente escapam da atenção dos "nativos", sem in-teresse antropológico pelo tema.

Quando pensamos em realizar este trabalho, originalmente en-comendado pelo Instituto de Medicina Social e de Criminologia deSão Paulo e em grande parte realizado em 1987, já dispúnhamos deum amplo conhecimento do campo a ser estudado. Resolvemos en-tão adotar, como estratégia de sistematização desse conhecimen-to, o estudo de alguns casos que nossa experiência já nos mostravaserem bastante representativos de um numeroso grupo de usuá-rios. Seguindo as perspectivas teóricas de Becker (1966a:45) eZinberg (1984), assim como o exemplo de Velho (1975 e 1998), rea-

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lizamos entrevistas em profundidade com alguns usuários escolhi-dos entre nosso próprio círculo social ou relacionados a ele. O rotei-ro elaborado para essas entrevistas pautou-se bastante nesses tex-tos considerados como congruentes com a realidade vivida no Bra-sil pelos presentes autores e aplicados aos contextos paulista ebaiano com as devidas adaptações. Buscávamos explicitar e confir-mar certos aspectos da relação dos sujeitos com a substância, alémde buscar informações novas, muitas vezes só acessíveis atravésdesse tipo de entrevista.

Assim, foram relizadas entrevistas com 10 indivíduos que hátempo considerável — contável em anos — vinham usando regular-mente maconha. Ao definirmos inicialmente a idéia de "uso regu-lar", não foi objeto de preocupação estabelecer uma freqüência mí-nima de consumo — por exemplo, número de cigarros por semana— para selecionar os informantes. Atentamos, principalmente, parao período de tempo de uso da erva e para o interesse manifestadoem tê-la disponível. De qualquer forma, o grupo total selecionadoapresenta taxas de freqüência de uso suficiente para considerá-loshabituais: o leque vai de duas vezes por semana (caso único) atéuso diário de vários cigarros. No geral, quase todos tendem para ouso diário. Quanto ao tempo de uso por ocasião da entrevista, o in-tervalo final para o grupo variou de três a dezessete anos.

Conforme já foi referido, os consumidores foram escolhidos den-tro de um universo de indivíduos formalmente "integrados" à socie-dade, isto é, pessoas com formação profissional específica, regular-mente empregadas, nível elevado de escolaridade, pertencendo àscamadas médias urbanas. As entrevistas se realizaram em doiscentros urbanos, Salvador (BA) e São Paulo (SP). A realização doestudo em uma outra cidade além de São Paulo, local de residênciade ambos os pesquisadores, foi feita com o intuito de atingir redesde usuários mais distantes e tentar obter uma primeira estimati-va do alcance possível de generalização de padrões no contexto ur-bano brasileiro contemporâneo.

Além das entrevistas com usuários paulistas e baianos foi tam-bém ouvido Henrique Carneiro, então com 26 anos, ex-presidenteda União Metropolitana de Estudantes Secundaristas (UMES), e daUnião Estudantil de Estudantes Secundaristas (UEES) e candidato

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do PT a deputado federal por São Paulo. Muito ativo politicamente,especialmente no tocante a questões de interesse da juventude, eleparticipou de movimentos pela descriminalização da maconha e emespecial de um ato público visando esse fim realizado durante a cam-panha eleitoral de 1986. Este terminou com a intervenção da polícia,que prendeu um grande número de participantes. No depoimentoque nos concedeu, ele fornece detalhes sobre o andamento dessacampanha e a maneira como agem as forças de repressão contraela. Atuando dentro de organizações de esquerda, inicialmente clan-destinas, e atualmente dentro do Partido dos Trabalhadores, demostraampla experiência de contato com setores organizados do operariadoe constata que lá também é difundido o uso da maconha. Segundo orelato, essa prática é particularmente comum entre aqueles que tra-balham em condições insalubres ou em turnos noturnos. Entre osgrupos citados, onde se encontram usuários da maconha, estão ostrabalhadores nas docas, os feirantes, os funcionários de indústriasquímicas e até os metalúrgicos do ABC.

Apesar das dificuldades apresentadas pelo método de entrevis-tas para o levantamento de normas de conduta e atitudes acerca deuma prática condenada por influentes setores da sociedade e per-seguida pela polícia, os pesquisadores consideram bastante fidedig-nos os resultados que obtiveram. Isso é devido ao fato de terem con-tado com a confiança dos entrevistados conquistada através derelacionamentes anteriores ou da recomendação de seus pares.Assim, também, puderam complementar as informações levanta-das nessas entrevistas através de contatos informais suplementa-res com os indivíduos selecionados, bem como, eventualmente, comoutros consumidores regulares apresentados por estes.

O estudo em Salvador

Entre os dias 20 de janeiro e 10 de fevereiro de 1987 um dospesquisadores esteve em Salvador com o intuito de contactar usu-ários e entrevistá-los. Esse tempo normalmente seria consideradorelativamente exíguo para um empreendimento de tal delicadeza.Afinal tratava-se de, numa cidade que não era a sua, procurar indi-víduos dispostos a revelar com minúcias práticas que sabiam ser

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ilegais e em função das quais haviam, com o passar dos anos, cria-do mecanismos de ocultamento ou camuflagem. Numa situação des-sas, torna-se bastante difícil qualquer pretensão de conseguir umaamostra estatisticamente representativa do universo de usuáriosde maconha na cidade. No entanto, este fato não representou umproblema metodológico, uma vez que procurávamos somente fazerum estudo de caso que revelasse os contornos gerais da "cultura damaconha" vigente entre indivíduos efetivamente integrados cultu-ral e economicamente na sociedade. O pesquisador, embora paulista,já dispunha de uma ampla rede de contatos em Salvador, devido avisitas anteriores àquela capital, algumas vezes com objetivos depesquisa. Usando do prestígio e da confiança que já adquirira ante-riormente nessas relações, o pesquisador procurou informantes usu-ários entre as redes de amizade desses seus contatos. No ano se-guinte foi realizada outra rápida visita a Salvador, para confirma-ção dos dados.

Nesse curto espaço de tempo, foi possível realizar cinco entre-vistas na Bahia com indivíduos que preenchiam os pré-requisitospropostos. A impossibilidade de ouvir mais depoimentos deveu-semenos à dificuldade de encontrar informantes (o número de usuá-rios rapidamente encontrado foi da ordem de dezenas), e mais aosproblemas da coadunação de horários para a realização das entre-vistas, que freqüentemente se estendiam por mais de duas horas.A seguir, um rápido perfil biográfico dos entrevistados:

Tereza Batista — Dentista de 29 anos. Nascida em Feira deSantana, viveu em Salvador e no Rio de Janeiro. Tem envolvimentoscom música e dança em nível amador. Não declara ter nenhum in-teresse por política organizada, nem mesmo pelas atividades do mo-vimento negro, apesar de ser mestiça. Teve um contato ligeiro como candomblé. Sua droga preferida é a maconha, a qual usou regular-mente durante os últimos seis anos anteriores à entrevista.

Quincas — Arquiteto de 28 anos. Nascido no interior da Bahia,foi educado em Salvador. Já participou de várias montagens de pe-ças e musicais, mas obtém o seu sustento como funcionário públi-co, exercendo funções ligadas à arquitetura. No passado, já militouna política estudantil e em iniciativas políticas de cunho libertário(lutando pela libertação da maconha, entre outras causas). Soltei-

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ro, tem um filho atualmente sob os cuidados de seus pais. Temuma certa aproximação com o candomblé, mas não é um pratican-te assíduo. Sua droga favorita é a maconha, que fumou sistemati-camente durante os13 anos que antecederam à entrevista.

Tieta — Tem 30 anos e é formada em economia, embora atual-mente sobreviva trabalhando como fotógrafa. Nascida no interior,morou em Salvador desde a infância. Já foi militante política domovimento "Liberdade e Luta" mas, atualmente, não se interessapor política organizada. Não tem nenhum engajamento religioso.Sua droga favorita é a maconha, que usou regularmente duranteos 10 anos anteriores à entrevista .

Gabriela — Historiadora de 23 anos, trabalha em um arquivopúblico. Faz aulas diárias de dança e não tem nenhum engajamentopolítico e religioso. Sua droga preferida é a maconha, que na épocada entrevista fumava há 11 anos.

Vadinho — Pequeno empresário de 25 anos, sócio de uma con-fecção. É filho de uma família da burguesia baiana "atualmente emdeclínio". Já teve envolvimento com teatro e artes plásticas e, atu-almente, trabalha com desenho e estamparias. Não tem nenhuminteresse por política, mas teve uma formação cristã e já trabalhoucom uma instituição de caridade presbiteriana. Sua droga favoritaé a maconha, que fumou durante os 8 anos que antecederam aentrevista.

As entrevistas, em três casos (Vadinho, Quincas e Tereza Batis-ta), foram precedidas por visitas à casa do informante e pela convi-vência constante com alguns dos seus amigos mais próximos. Apartir daí foi possível verificar pessoalmente o estilo de vida de clas-se média e o grau de integração cultural e econômica do sujeito.Nos dois casos em que isso não foi possível (Grabriela e Tieta), com-pensou-se com uma investigação sobre esses pontos junto àquelesque possibilitaram o contato.

As entrevistas, em quatro casos (Quincas, Gabriela, Tieta e Te-reza Batista), foram realizadas no local de hospedagem doentrevistador, um confortável apartamento de classe média no cen-tro da cidade que reunia os pré-requisitos básicos para a grava-ção: silêncio e ausência de outras pessoas que poderiam cons-tranger ou interromper a sessão. No caso de Vadinho, a entrevista

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ocorreu na casa do informante, que também oferecia ótimas con-dições de entrevista.

Em todos os casos, seguiu-se as linhas gerais de um roteiro pre-viamente elaborado, embora a informalidade da sessão tenha, emmuitos casos, levado à reformulação de algumas perguntas e a cer-tas alterações na sua ordem de seqüência.

O estudo em São Paulo

O grupo paulistano foi contatado pelo outro pesquisador. As mes-mas ressalvas lembradas para o caso baiano, no que toca à delicadezado assunto e à necessidade de estabelecer um clima de confiançamútua entre entrevistador e entrevistado, valem novamente aqui,não obstante o pesquisador ser natural e habitante de São Paulo econhecido de alguns do entrevistados. De igual maneira, as circuns-tâncias defrontadas, e o número reduzido de entrevistados,desautorizam qualquer tentativa de enxergar representatividade es-tatística no grupo de sujeitos selecionados, embora pelo seu conheci-mento da população sob estudo, os pesquisadores têm confiança naampla aplicabilidade de suas respostas. O contato e a escolha dos en-trevistados se fez a partir da mobilização da própria rede de relaçõespessoais do pesquisador, dando-se preferência a conhecidos "indire-tos", isto é, amigos de amigos, com os quais foi possível estabelecerrelacionamentos francamente amistosos e minimizar as barreirasinterpostas pela falta de intimidade. Durante o período de realizaçãoda entrevistas — 15 de janeiro a 12 de fevereiro de 1987 — pôde opesquisador avistar-se com seus informantes várias vezes, além dasituação da entrevista, o que possibilitou observações adicionais eintensificação dos contatos, retomados de tempos em tempos.

Os entrevistadores não formam um grupo de amigos. Apenas doisdeles, por já terem trabalhado num mesmo lugar, tiveram contatosmais estreitos entre si. Entretanto, vários possuem amigos e co-nhecidos comuns, e o conjunto apresenta considerável grau de afi-nidade no que diz respeito, não só ao uso de drogas, mas também acertos aspectos do estilo de vida, interesses artísticos, literários epolíticos e pontos de vista existenciais. A seguir, alguns dados so-bre os informantes paulistas:

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Eduardo — Arquiteto, paulistano, 29 anos. Empregado em umafábrica de móveis, faz desenhos e projetos de ambientes. Mora comamigos. Aficionado por cinema, leitor diário de jornais, interessadoem ficção e literatura técnica relativa à sua profissão. Já militouem vários grupos políticos, mas atualmente não está engajado emnenhuma organização. Usa álcool e tabaco regularmente. Já teveuma breve experiência em psicoterapia de grupo. Homossexual de-clarado. Por ocasião da entrevista era usuário freqüente de maco-nha há três anos, mas há mais tempo experimentador ocasional.

Joana — Revisora, redatora e profissional de texto, formada emLetras, paulista do interior, 40 anos. Trabalha numa editora e fazfree-lancers. Mora com irmã, cunhado e sobrinhos e tem um filho.Interessada em leituras específicas e literatura. Nunca militou emorganizações políticas. Usa tabaco regularmente. Já teve várias ex-periências com psicoterapia, mas não desenvolve nenhuma no mo-mento. Usuária freqüente da maconha havia cerca de 15 anos.

Wolf — Advogado e professor de língua, alemão, 30 anos. Esteveno Brasil de 1977 a 1980 e retornou em 1984. Trabalhou em umamultinacional e agora dedica-se à elaboração de uma dissertaçãode mestrado. Casado com brasileira, mora com a esposa. Muito in-teressado em cinema e música popular. Leitor diário de jornais.Participou de grupo político organizado de esquerda na Europa. Nãoé eleitor no Brasil, mas é simpatizante do PT e dos "verdes" ale-mães. Usa álcool e tabaco regularmente. Já utilizou ácido lisérgicoe cocaína. Por ocasião da entrevista era consumidor de haxixe emaconha havia 15 anos.

Adalberto — Sociólogo e professor paulistano, 27 anos. Trabalhanuma Universidade e elabora uma dissertação de mestrado. Morasozinho. Muito interessado em artes, faz teatro como atividadesemiprofissional e é músico diletante. Interessa-se bastante, tam-bém, por filosofia, astrologia, mitologia e religião, embora não sevincule a qualquer instituição religiosa. Leitor diário de jornais.Não usa tabaco. Teve várias experiências com ácido lisérgico e co-gumelo e por ocasião da entrevista era consumidor freqüente demaconha há 10 anos.

Crisântemo — Revisora, redatora e profissional de texto, paulistado interior, 39 anos. Trabalhou até recentemente numa editora,

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onde exercia cargo de chefia. Atualmente é profissional autônoma.Curso universitário de Letras incompleto. Mora sozinha. Interes-sa-se por música, horticultura, floricultura e desenvolve atividadesemiprofissional como astróloga. Participou de grupo político orga-nizado de esquerda. Interessada em questões filosóficas e religio-sas, sem engajamento definido. Leitora esporádica de jornais. Usatabaco e álcool com freqüência. Já provou ácido lisérgico e cogume-lo, usa cocaína com certa regularidade. Consumia habitualmentemaconha há 17 anos quando foi entrevistada.

Eduardo e Wolf foram entrevistados em suas respectivas resi-dências. Joana, Adalberto e Crisântemo foram recebidos na casa dopesquisador. As entrevistas se realizaram em ambientes tranqüi-los, e o cumprimento do roteiro foi plenamente satisfatório em to-dos os casos, garantindo-se um clima amistoso e informal.

A partir das constatações resultantes do conhecimento do campoe da análise das entrevistas, um relatório inicial de pesquisa foi ela-borado para o IMESC, em 1989. Este, apesar de nunca haver sidopublicado, foi bastante divulgado entre estudiosos do assunto atravésda fotocopiagem, obtendo boa repercussão e citação em diversos tra-balhos científicos. Posteriormente, em 1998, perante o crescente in-teresse pelos aspectos antropológicos do uso de psicoativos, e sob ainstigação do diretor do Centro de Estudos e Terapia do Abuso deDrogas CETAD/UFBa, onde um dos autores havia passado a traba-lhar depois de se mudar definitivamente para Salvador, resolvemosrevisar e atualizar o trabalho para publicação.

Os dados colhidos anteriormente mostravam-se ainda pertinen-tes, apesar do passar dos anos. Confirmando a nossa idéia inicial arespeito do seu grande conservadorismo, o que se poderia chamarde "subcultura da maconha" não havia mudado de forma significa-tiva; até os nomes dados a diferentes tipos da erva continuavam osmesmos, embora agora aquela que apresenta muitos "cabelos" alémde ser conhecida como "Maria Betânia" também pode ser chamadade "Elba Ramalho". Mas as formas de uso, de aquisição e os cuida-dos para evitar efeitos percebidos como negativos eram ainda osmesmos. Os autores continuavam em contato com diversos usuá-rios de canabis que haviam feito parte do grupo observado mas nãoentrevistado. Mantiveram contato também com diversos destes,

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embora alguns não mais morassem nas cidades onde haviam sidoentrevistados e um houvesse falecido devido a AIDS. Sabe-se queos sobreviventes continuam engajados em ocupações de classemédia, e em alguns casos alteraram naturalmente seu regime deuso de canabis, tendendo a diminuir sua freqüência em consonân-cia com novas condições psicossociais. Eduardo e Vadinho tiveramproblemas posteriores com a polícia, quando, por circunstâncias for-tuitas, foram flagrados na posse de pequenas quantidades de canabisque mantinham para uso próprio.

Caracterização do grupo de entrevistadosquanto ao uso de psicoativos

Para a totalidade dos entrevistados, a maconha foi a primeirasubstância psicoativa ilícita que utilizaram. Antes dela, algunstiveram experiências com psicotrópicos legais, como anfetaminase medicamentos de feito estimulante. Além da maconha, a cocaí-na é a única outra substância ilegal que todos já haviam experi-mentado. Um dos entrevistados faz uso de cocaína com regulari-dade, enquanto os demais são provadores ocasionais e não semostram particularmente atraídos por essa substância. Solicita-dos a apontar as substâncias que gostariam de experimentar, osusuários apontaram o ácido lisérgico, o cogumelo e alucinógenoscomo a mescalina e o peyote. Entre as que não experimentariamou rejeitariam completamente, são citadas a heroína e os medi-camentos legais em geral, estes referidos muitas vezes como "dro-gas químicas".

A maioria dos entrevistados elege a maconha como sua "droga"predileta, e em todos os casos ela é a de uso mais constante. Apresença de cocaína como a única outra substância experimenta-da por todo o grupo liga-se à sua recente e progressiva disponibili-dade no mercado, bem como a certo ideário que, nos últimos tem-pos, tem veiculado a cocaína como "droga da moda", ligada a certostatus de prestígio social. No entanto, todos os entrevistados sãounânimes em ressaltar as diferenças entre maconha e cocaína,em termos dos efeitos produzidos e do complexo de práticas e atitu-des ligadas ao consumo de cada uma. Esses mesmos critérios le-

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vam os entrevistados, por outro lado, a efetuarem certa aproxima-ção entre a maconha e alucinógenos como o ácido lisérgico e o co-gumelo, substâncias das quais alguns são entusiastas. No caso dosbaianos, outra "droga" bem vista são o lança-perfume e o "cheiri-nho da loló", uma mistura caseira de éter, clorofórmio earomatizante.

Chama a atenção ainda o fato de a heroína receber elevado graude rejeição, motivada em parte pelo perigo da dependência a elaatribuído e pela via de administração injetável, vista com desapro-vação. As manifestações contrárias às "drogas legais", calmantes eestimulantes não impediram que alguns admitissem usá-las oca-sionalmente para fins medicamentosos.

Comparando com os grupos estudados por Velho, uns 15 anosantes no Rio de Janeiro, constatamos uma preocupação similar emevitar usos de picoativos que pudessem vir a afetar a performancefísica ou social do indivíduo (Velho, 1975:75).

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Circunstâncias da iniciação aoconsumo da maconha

Os relatos de iniciação obtidos no estudo referem-se a circuns-tâncias em que se misturam, em proporções variadas, curiosidadee temores com relação aos efeitos da maconha. A situação ordiná-ria é travar conhecimento prévio com pessoas que fumam e vê-losfumar em mais de uma ocasião. Os temores expressam, de formasdiversas, a preocupação com a reação individual aos efeitos dacanabis.

Fica patente nos relatos que, à época das primeiras experiên-cias, todos já tinham determinados conceitos e atitudes com rela-ção à maconha, os quais, pelo menos em parte, eram derivados do“consenso imaginário” (Henman, 1982). Este é produzido basica-mente pelo aparato médico-legal, que vê a erva, sob o rótulo de “dro-ga psicotrópica”, enfocando apenas os aspectos danosos à saúde, àprodutividade e à integração social1 . Assim, é comum que temoresiniciais se associem à idéia da “droga” como alucinógeno sedutor,extremamente prazeroso, que imediatamente enreda seu provadornas cadeias da dependência, escravizando-o. Nos relatos, os temo-res de iniciação se expressam através de uma superestimação doefeito da substância (“alucinógeno perigoso”, “coisa do diabo”), hojedita com ironia ou humor da desqualificação do hábito por referên-cia a uma suposta origem social (“coisa de marginais”), ou aindadas nefastas conseqüências imaginadas sobre a motivação e a ca-pacidade de discernimento crítico dos usuários (“alienação”).

Se o tributo ao “consenso imaginário” leva os indivíduos a man-ter cautela em suas primeiras aproximações com a substância, isso

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obviamente não elimina a motivação ou a curiosidade pela experi-ência. A seqüência de passos que leva às primeiras tragadas, aouso ocasional e daí ao uso regular pode ser percorrida com maior oumenor velocidade, conforme a ocorrência de oportunidades e a dis-posição pessoal para tanto. De qualquer modo, nota-se que o conta-to com usuários habituais e experimentados e a observação diretadas situações em que ocorre o uso da maconha geram o apoio socialcapaz de atenuar a força dos temores e preparam o terreno para aexperiência pessoal. Desencadeia-se, assim, o processo pelo qualas concepções convencionais podem ser testadas e questionadas,sendo paulatinamente contrapostas à percepção fundamentada nainformação “autêntica”, provida pelos usuários experientes e navivência concreta dos efeitos da substância (Becker, 1976b).

Embora os entrevistados, de modo geral, revelem dificuldadesem rememorar detalhes de suas respectivas iniciações – ocorridashá muitos anos – é constante a menção de que as primeiras expe-riências se deram na companhia de amigos, parentes, companhei-ros ou conhecidos que já cultivavam esse hábito. Isso, em primeirolugar, mostra como são comuns as oportunidades de contato com asubstância a partir de uma simples extensão das redes de relaçõespessoais. Pode-se depreender de vários relatos que esses usuáriosmais experientes tenham desempenhado algum papel de instruto-res para os novatos, como sugere Becker (1966a). Um relato, noentanto, explicita a presença ativa de um orientador.

“Eu morava num pensionato em São Paulo, até então o meuconhecimento em termos de diversão social era o álcool, eraa única coisa que rolava. Aí eu conheci um rapaz que fumavadireto. Um dia saí com ele, meio nessa proposta de experi-mentar, eu queria experimentar, e ele se dispôs não só a for-necer como a participar comigo disso. Assim, chegamos aoquarto dele e ele enrolou um enorme, eu assustei. Eu soumuito mineira, vou devagar nas coisas, daí disse:

- Olha, eu quero experimentar, não quero enlouquecer!

Aí ele ficou me dando uns toques de como se dá bola e tudoo mais, e tinha essa relação de confiança, percebe? (...) Pas-

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sei a chamar esse meu amigo de capitão, muito agradecidapela assessoria toda que ele me deu. (Joana, SP).”

Nesta fala vemos, perfeitamente combinadas, as duascondicionantes típicas da motivação de provar maconha, a curiosi-dade e a cautela: “Eu quero experimentar, não quero enlouquecer”.A expressão “enlouquecer” é indicativa do fato de que, de algumamaneira, as pessoas motivadas a provar a erva dispõem de algumconjunto de noções prévias para representar a si próprias altera-ções no estado psíquico esperáveis de substâncias tais como a ma-conha. Pode-se reafirmar que, em grande parte, essas noções pré-vias são derivadas dos perigos alardeados pelo discurso médico-le-gal oficial, a partir da transformação deste em “consenso imaginá-rio”. A contrapartida dessa adesão implícita ao discurso oficial podeser a produção de um desejo de experimentar e verificar, por si, areal dimensão da coisa, mas em condições seguras, que podem serproporcionadas pelo contato intensificado com um usuário ou umgrupo de usuários conhecidos e confiável.

A ênfase nas relações de amizade e no sentimento de confiançadas situações de iniciação, já constatada no estudo de Velho (Velho1975: 61 e 62), contrasta com a ausência de qualquer menção nosentido de se ter sido “forçado” a consumir a erva. Isso nos leva adiscutir uma questão importante e recorrente na literatura sobre otema, a saber, a idéia de que a progressão no uso de substânciasilícitas envolve a submissão do indivíduo às normas do grupo quepraticaria um “culto” à droga. Simplificando com certo exagero, pode-se dizer que essa idéia decorre de postulados básicos da psicologiasocial relativos à motivação de pertencer a um grupo: o indivíduofaria de determinado grupo um objeto de identificação e procurariaadotar hábitos e costumes grupais, entre os quais poderia se in-cluir o uso de substâncias psicoativas ilícitas (Masur, 1987: 62).Posta nestes termos, essa concepção patina ao tentar encontrar amotivação inicial ou decisiva do processo de identificação, recor-rendo ora a formulação genérica de determinados traços psicológi-cos individuais — tais como impulsos escapistas, incapacidade deenfrentar a realidade, etc. —, ora à força coercitiva das “normasgrupais”. Nenhuma dessas alternativas, porém, parece fornecersoluções adequadas para importantes problemas pendentes. Como

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dar conta do comportamento diversificado que um mesmo indivíduopode apresentar em diferentes períodos, com respeito ao uso desubstâncias ilícitas? Como compreender por que, após as primei-ras experiências, alguns indivíduos se tornem usuários regularesde “drogas”, outros apenas ocasionais, outros ainda descartem-nascomo objeto de interesse? O desejo de pertencer a um grupo é umaspecto cuja explicitação pode ser útil na investigação de determi-nados casos, mas falha como tentativa de explicação geral baseadanas motivações de adquirir dado costume ou hábito. Seu erro é in-sistir em apresentar impulsos muito genéricos ou muito circuns-tanciais como padrões congelados e definidos de ação.

Por outro lado, a idéia de que na raiz do consumo de substânciasilícitas está a submissão do indivíduo às normas de um grupo ébastante freqüente nas manifestações de pais de jovens “drogados”,quando tomam conhecimento desse hábito de seus filhos. A consi-deração desse prisma nos permite explorar alguns mecanismos damicropolítica familiar, onde a “droga” enseja a produção de umasérie de categorias de acusação. Um relatório produzido pelo Grupode Orientação para Pais de Toxicômanos, projeto experimental de-senvolvido pelo IMESC (IMESC, 1985) com o objetivo de proporcionarum espaço de discussão e reflexão para pais que se deparam com ofato de seus filhos usarem “drogas”, nos fornece interessantes pis-tas a esse respeito. Nas primeiras reuniões, os encarregados daorientação assinalaram que os pais consideravam o uso da drogacomo “problema emocional em função da fragilidade evulnerabilidade da personalidade do filho”, sendo sempre o filho “maissensível” aquele “suscetível às influências externas”. Em seguidasreuniões, o grupo de pais dirigia ataques a objetos externos (tera-pia, amigos, polícia, fragilidade emocional do filho), o que, na opi-nião dos encarregados da orientação, era um meio de os pais evita-rem lidar com suas própria frustrações e expectativas em relação aseus filhos.

Parece-nos que a responsabilidade das “influências externas”exprime também um conjunto de reações defensivas despertadasquando a família deixa de ser o referencial exclusivo ou preferenci-al na formação de atitudes, valores e expectativas de seus mem-bros mais jovens. No contexto familiar, como é sabido, constroem-

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se certas aspirações quanto à conduta e ao “futuro” dos filhos, asquais podem se ver frustradas por alternativas postas ao longo datrajetória dos jovens, em contato com outros grupos de convivência.O fato de o uso da “droga” estar associado a comportamentos contrá-rios aos esperados no domínio do trabalho e da família, como sugereVelho (1981, 1985), contribui para desencadear, nos pais, reaçõestais como as descritas acima. O filho “drogado” pode ser visto comoimprodutivo e parasitário, fraco, sem vontade, manipulado por ami-gos “falsos” e, assim, ser responsabilizado por todas as perturbaçõese desordens da esfera doméstica. Era o que ocorria nas primeirasreuniões do grupo de Orientação, onde os pais criticavam seus fi-lhos e os apresentavam como “depositários das dificuldades do lar”.

Estas considerações pretendem constituir um alerta em favorde uma utilização mais cuidadosa, ao nível analítico dos conceitosgerais relacionados à motivação para o uso de substâncias psico-trópicas ilícitas. Idéias acerca da adesão a um “culto da droga” re-sultante da combinação entre personalidade frágil e imposição dasnormas grupais precisam ser depuradas de suas conotaçõespreconceituosas, assim como de suas pretensões globalizantes. Pelomenos um dos relatos da iniciação de nossos entrevistados vai nadireção inversa do que aquelas idéias sugerem: trata-se da histó-ria de um jovem que, ao descobrir o irmão mais velho fumandomaconha, forçou-o sob chantagem a deixá-lo experimentar. Incluí-mos aqui a transcrição desse depoimento sugestivo para realçar anecessidade de distinguir e relativizar essas noções cristalizadasde caráter geral.

“Mas eu comecei assim. Meu irmão mais velho e a turmadele fumavam, eu achava que tinha uma história diferentequando ele saía e voltava. (...) Aí um dia eu segui eles, elesforam pra um lugar assim no meio do mato (...) Eu tava maisou menos sabendo o que era, porque as pessoas na cidade jácomentavam, aquela turma, não sei quem e não sei quemfumavam, ele andava com aquele pessoal e comecei a associ-ar uma coisa com a outra. Tinha loucura para saber qual eraa história da maconha, fiquei esperando a hora de ele botar ocigarro na boca, quando ele pegou eu apareci. Eu vi. Ele jogoupra lá. Não adianta jogar que eu vi, eu quero agora, pode me

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dar senão eu conto pra minha mãe. Os amigos todos tenta-ram contornar a história: Não, você não viu nada! Eu falei: euvi e não adianta, eu conto pra minha mãe se vocês não medeixarem fumar também! Não quiseram, insisti até que pron-to, não teve jeito, me deixaram fumar”. (Quincas, BA)

Este depoimento nos leva ainda a uma última consideração arespeito das motivações para o uso da maconha. A metáfora do “fru-to proibido” é freqüentemente lembrada por nossos entrevistadospara descrever o impulso inicial ao consumo da canabis. A proibi-ção se exerce de forma tão loquaz e espalhafatosa que acaba geran-do uma intensificação do desejo de provar seus efeitos. Nas situa-ções em que o iniciação à maconha se processa durante a adoles-cência, a prática pode adquirir a conotação de “desafio” e caracteri-zar um rito de passagem para certo círculo de adultos jovens. A his-tória de Quincas é exemplar a esse respeito. No que se refere àtrajetória de vida de usuários regulares, parece-nos possível levan-tar a hipótese de que os primeiros usos de psicoativos disponíveis,lícitos ou ilícitos constituem ritos de passagem significativos paraa admissão a certo status de adulto, ritos esses às vezes tão impor-tantes quanto as primeiras experiências sexuais, por exemplo.

Esta passagem a um círculo de sociabilidade mais amplo podeser vista também como determinando uma nova maneira de enca-rar o mundo. Quando o uso da maconha aparece fortemente ligadoa experiências de percepção além-cotidiano, a passagem é avalia-da pelos próprios indivíduos com uma espécie de ponto de inflexãode suas trajetórias de vida, encaminhando-os no que acreditam seruma ampliação da percepção da realidade (e não de “fuga”). O relatoabaixo e bastante significativo a respeito:

“A maconha é importante na minha vida, desde ela signi-ficar uma passagem, porque ela pintou num momento, de pas-sagem, de rompimento dos laços familiares, tudo o que vocêpoderia incluir nessa idéia de ‘desencaretamento’... Você estátendo um outro tipo de contato com outras pessoas, uma coi-sa que tem uma função, a princípio, um pouco liberadora emcerto sentido... Ela de alguma maneira significou entrar emchoque maior com o mundo. Uma coisa que é clandestina,

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que tem um pouco a ver com a loucura... É clandestina não sóno aspecto do espaço externo, isso eu acho interessante, mastambém num espaço interno. O externo é vigiado e tal. Mas oespaço interno também é. Daí, você pode ter, de repente, aíno seu espaço interno, pensamentos, emoções que são inusi-tadas... Então isso eu acho que enriquece a percepção dascoisas. (Adalberto, SP; grifo nosso)

Notas

1 Henman (1982) discute a repetição monótona de certas teses maniqueístassobre a droga nos meios de difusão como tendo a clara intenção de criar umconsenso social sobre os efeitos de drogas que “só pode ser chamado imagináriopara não dizer falso”. Ele continua:

“É imaginário, primeiro porque não leva em conta nenhuma percepção dosusuários, que são as supostas vítimas do ‘flagelo’, e segundo porque nem aomenos se baseia na mais mínima pesquisa científica do fenômeno. As ‘provas’apriorísticas do efeito nocivo das drogas ilícitas restringem-se em geral ao âmbi-to dos laboratórios farmacológicos, onde doses heróicas são administradas re-petidamente a cobaias até produzirem os resultados desejados, e onde os pes-quisadores que se submetem a essa manipulação de dados são premiados pelasmais prestigiosas instituições científicas do país”.

Em Contraposição, Henman menciona a criação de um consenso alternativoao oficial: “um consenso denominado genuíno ou autêntico porque parte daexperiência pessoal dos usuários”.

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Percepção dosefeitos da maconha

Um dos pontos básicos da teoria acerca do “aprendizado” do fu-mante de maconha, elaborada por Becker (1966a, 1966b), a qualorientou a elaboração de nosso roteiro de entrevistas, é o momentoinicial da carreira do fumante, ou seja, a necessidade de se apren-der a técnica “correta” de aspirar a fumaça. Todos os nossos entre-vistados descrevem a técnica “correta” de fumar maconha mais oumenos do mesmo modo: deve-se tragar fundo a fumaça e retê-lanos pulmões tanto tempo quanto possível sem causar desconforto.A execução adequada dessa técnica pode, de fato, requerer um es-tágio de aprendizado, sobretudo no caso de indivíduos não habitua-dos a fumar tabaco. De modo geral, os entrevistados afirmam teraprendido a maneira correta de fumar observando e imitando o com-portamento de usuários mais experientes.

A importância de utilizar o método adequado de aspiração da fu-maça é crucial nos primeiros passos da carreira do fumante, pois,de outra forma, pode-se não obter a dosagem dos princípios ativosnecessária para que se produza a almejada alteração do estado psí-quico1 . Um dos nossos entrevistados apresentou também uma in-terpretação da importância do modo de tragar, relacionando-o aoprocesso de respiração como via estratégica para a produção de al-terações no organismo e na mente:

“Eu trago, espero, seguro um pouco. Olha, isso é muitoimportante realmente. Porque é uma coisa que tem a ver coma respiração, né? Quando você fuma tem o barato da altera-

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ção do ritmo de sua respiração. Quando você mexe com o rit-mo da respiração, normalmente, sem nada, dá barato, dá al-terações... Por exemplo, essa coisa de você aspirar, segurarum tempo, depois ir soltando devagar, isso é quase um exer-cício respiratório também. Tem exercícios de ioga que sãoassim, é como se estendesse sua respiração. E tem o fato deque a erva dilata os brônquios também.” (Adalberto, SP)

Esta interpretação, vê-se logo, é tributária do consenso “alterna-tivo” criado em torno do consumo da maconha, com suas referênci-as a técnicas orientais de respiração e alterações de consciência,enriquecida por informações médicas acerca dos efeitos orgânicosda erva (o entrevistado é filho de um médico). À parte sua sofistica-ção, ela reflete a consagração da prática de tragar e reter a fumaçacomo forma por excelência de se consumir a maconha. É precisonotar, porém, que com o tempo, o usuário experiente pode recorrera variações na técnica de tragar, inclusive optando por fumar amaconha do mesmo modo como o cigarro de tabaco. Uma justifica-tiva para esse procedimento pode ser o desejo de experimentar um“barato” mais leve ou “pessoal”.

“Às vezes as pessoas me falam: é, você fuma maconha comose estivesse fumando cigarro. É que eu gosto de fumar assim,às vezes. Porque eu comecei imitando, mas depois encontreium jeito que é, para mim, melhor de fumar. Tem gente quefala que assim não é legal, não dá efeito. Mas eu respondo: oefeito que eu quero não é igual ao efeito que você quer”. (Cri-sântemo, SP)

A questão seguinte, no processo de aprendizado segundo Becker,refere-se ao modo de identificação e apreciação dos efeitos da ma-conha. Becker afirma que os efeitos da maconha não são evidentesà primeira vista. No seu entender, a substância produziria apenassensações “cruas” puramente orgânicas — boca seca, fome, certavertigem —, sintomas que o iniciante deve, em primeiro lugar, re-lacionar com o fato de ter fumado a erva, reconhecê-los em si mes-mo e avaliá-los. Para Becker, esse processo de identificação e apre-ciação dos efeitos depende da interação sucessiva do novato comoutros usuários. A interação provê ao iniciante os conceitos com os

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quais ele pode perceber e expressar a experiência de alteração doestado psíquico que associa ao uso da maconha. Além disso, atra-vés desses conceitos adquiridos mediante interação com outrosusuários, o iniciante poderá ou não redefinir essas sensações comoprazerosas. Quando essa redefinição se processa, o indivíduo esta-rá apto a consumir maconha regularmente por prazer.

Becker sustenta que é possível reconstruir todo esse processo deconstituição do fumante de maconha através do “método da induçãoanalítica” com uma investigação conduzida por entrevista2 . Nossaexperiência, porém, demonstrou uma dificuldade evidente de saída:os informantes não se lembram de todos os detalhes de sua inicia-ção no consumo da maconha, ocorrida há muitos anos. O que encon-tramos foram relatos feitos com maior ou menor riqueza de deta-lhes, mas obviamente enviesados pelo ponto de vista presentemen-te mantido pelos entrevistados. Somos, portanto, levados a questio-nar o padrão extremamente claro e definido que Becker diz ter en-contrado em seus informantes. Sua hipótese permanece útil comoreferencial para interpretação dos dados, mas não pode ser testadapor meio de técnicas de pesquisa post-facto, tal como ele pretendeu.

Nossos entrevistados, aparentemente ao contrário dos de Becker,afirmam ter experimentado “barato” ou algum tipo de alteração doestado psíquico em suas primeiras experiências. Arrolam uma va-riedade de sensações e comportamentos vivenciados: diferença napercepção do tempo, do espaço e das formas, aumento da sensibili-dade em geral, hilariedade, alucinações visuais e auditivas, “que-da de pressão”, frio, tremores, medo, excitação sexual, relaxamen-to, falta de controle sobre os próprios movimentos. Do mesmo modo,a constatação de se perceber sob efeito remete a situações especi-ficas diversas: a contemplação diferenciada de um objeto ordinário,audição mais nítida de música, sensação proporcionada por estarnuma praça num dia de sol, sensibilidade tátil pronunciada etc. Asprimeiras experiências são julgadas de maneira também variável:“incríveis”, indiferentes, decepcionantes, pouco prazerosos ou fran-camente desagradáveis. A transcrição de duas narrativas mostra avariabilidade das sensações e reações vivenciadas, assim como dasrespectivas avaliações dos informantes, nas quais transparecemseus atuais pontos de vista:

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“Eu fui experimentar a primeira vez na Bahia, numa situ-ação estranha porque era uma paquera e era uma maneirade aproximação. Então eu não tinha nenhum interesse emfumar, mas aí a pessoa me ofereceu e eu fumei, achei queficava mais bonitinho assim. E depois de tanta prevenção, euachei que não foi nada, uma época achei que era palha, hojeeu acho que não era palha, era legal, eu que não conseguiaavaliar, porque achava que, quando se fala de droga, se falamuito em ficar fora de si, de perder as referências ou se sen-tir muito diferente. Daí quando você fuma maconha você nãose sente muito diferente, você sente talvez uma percepçãodiferenciada, mas não se vê nada, não é alucinógeno. Daíachei que não era nada.” (Eduardo, SP)

“Eu fazia oitava série na época, fiquei na turma de unsmeninos mais velhos, alguns deles fumavam e eu era amigadeles e geralmente a gente fumava para estudar. A primeiravez foi assim: eu saí achando que os postes iam atrás de mim,pode? Foi uma onda, porque eu saí, quando fui pra casa, pertodo meio-dia, eu entendi que os postes iam atrás de mim. Aíeu voltei, falta de experiência, mas de repente eu acho quedá um pouco de medo, eu não me lembro muito porque temtempo, mas eu devia estar com um pouco de medo, ou espe-rando que a droga tivesse uma causa mais violenta a nível dealucinação maior, e como não aconteceu eu posso tersomatizado, né?” (Gabriela, BA)

Estas falas relatando sensações bastantes distintas, indicamque mesmo antes de suas primeiras experiências com maconha,os informantes demonstram possuir algumas noções para repre-sentar a situação de “estado psíquico alterado” que acreditam serproporcionada pela substância. Chama a atenção o fato de que essaalteração seja designada pela expectativa de “ver coisas”, ter alu-cinações. Essas noções prévias, é claro, são confrontadas e afeta-das pelas experiências individuais concretas. Não parece exato,portanto, supor que a elaboração conceitual a respeito das experi-ências concretas com a erva advenha exclusivamente da aquisi-ção, pelo iniciante, de conceitos vigentes entre os usuários com

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os quais interage. Nem todas as entrevistas explicitam, aliás, queos informantes tenham aplicado noções aprendidas com consu-midores veteranos às próprias sensações e comportamentosexperienciados, no sentido de redefinir os efeitos percebidos comoagradáveis e prazerosos. Essa permanece uma hipótese plausível,em vista dos laços de sociabilidade que se forjam através do uso dasubstância e do apoio social representado pelo grupo de usuáriosamigos. Pode-se, portanto, inferir com Becker que as concepçõesrelativas à maconha se constroem em grande parte no curso dacarreira do fumante. Mas parece importante considerar tambémo papel que as percepções individuais desempenham na elabora-ção conceitual em torno da maconha, questão que não encontrauma formulação clara na teoria de Becker e que aqui deixamosapenas indicada3 .

A importância do apoio social representado pelas atitudes dosusuários mais velhos fica evidente nas situações em que é conve-niente minimizar ansiedades, temores e sensações desagradáveisdo iniciante, e conduzi-lo para a fruição do “barato”. Há, nos relatos,sugestões de que a expectativa ansiosa dos novatos pode afetar-lhes a percepção dos efeitos da erva. Outro aspecto lembrado é o deque o iniciante freqüentemente encontra maior dificuldade paramanter controle sobre os efeitos na canabis: são os mais acometi-dos de hilariedade, dispersão da concentração e falhas na coorde-nação motora. A esse respeito, porém, pode-se observar que, à me-dida que cultivam o hábito de fumar maconha, os indivíduos reve-lam-se progressivamente capazes de identificar, apreciar e man-ter controle sobre os efeitos. Nesse percurso intervêm tanto avivência pessoal quanto a troca de experiências na interação comoutros consumidores.

Notas

1 Escrevendo em 1953, portanto antes do isolamento em laboratório do maisimportante princípio ativo da maconha, o THC (fato que ocorreu em 1964), Becker,em nota de rodapé (1966a: 47n), assinala que, segundo observação de umfarmacologista, o ritual de inalação da maconha seria um meio eficiente deintroduzir a substância na corrente sangüínea. Ocorre, de fato, que o THC éaltamente solúvel em gorduras e, sendo os alvéolos pulmonares revestidos por

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uma lipoproteína, a administração da maconha pela via pulmonar garante adissolução do princípio ativo e sua penetração no sangue com grande eficácia.

2 Assim Becker (1966a: 45) justifica seu método de investigação: “Tenteichegar a uma exposição geral da seqüência de mudanças na atitude e na expe-riência individual que sempre ocorreram quando o indivíduo se torna desejosoe capaz de usar maconha por prazer. O método exige que todo caso coletado napesquisa dê substância à hipótese. Se for encontrado um caso que não dê subs-tância à hipótese, o pesquisador é obrigado a alterá-la a fim de a adequar ao casoque tenha provado ser errada a idéia original”.

3 Anthony Henman, em trabalho em preparação, sugere a pertinência dateoria do simbolismo elaborada por Dan Sperber (Sperber, 1978) para a supera-ção da dicotomia, presente em Becker, entre “sensações orgânicas cruas” e“emoções aprendidas”. A argumentação básica, grosso modo, é de que haveriaum plano intermediário-(o simbólico) onde se produziriam associações parcial-mente inconscientes que pré-representariam, por assim dizer, a alteração daconsciência ordinária para cada indivíduo.

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Lidando com o controle social:segredo, auto imagem e redes de

sociabilidade

De acordo com as sugestões de Becker, é interessante investi-gar a seqüência de eventos e experiências por meio das quais umapessoa torna-se usuária de maconha a despeito dos controles soci-ais que condenam essa prática como inadequada, imoral, anormale ilegal. Já nos referimos à associação comumente feita entre con-sumo de maconha e imputações de irresponsabilidade, fraqueza decaráter, marginalidade, doença, dependência, assim como as puni-ções legais que incidem sobre seu uso, porte e comércio. Em princí-pio, tudo isso atua como um conjunto de sanções efetivas convenci-onais e legais para prevenir a utilização da erva. Assim, para tor-nar-se um consumidor regular de maconha, o indivíduo precisa ul-trapassar os obstáculos postos por esses mecanismos de controle:precisa ter acesso à substância, manter certo segredo sobre suaprática e justificar para si mesmo a validade e a inocuidade dessehábito. Discutiremos adiante os procedimentos relativos à aquisi-ção da maconha, e nos ocuparemos aqui da questão do segredo e doreajuste da auto-imagem.

De certo modo, todos os entrevistados, nas primeiras fases de suasrespectivas carreiras de fumantes, foram “desviantes secretos”, nostermos de Becker (1966b). Percebiam claramente que a prática eraestigmatizada e temiam que a descoberta por parte de não-usuárioscausasse distúrbios, reações negativas e penalidade. Alguns tive-ram de enfrentar situações desagradáveis provocadas pela descober-ta, pelos pais, de alguma quantidade de maconha guardada. Alémdisso, havia que se resguardar da punição legal. Em contrapartida,

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essa situação de compartilhar sob sigilo uma experiência ilícita eprazerosa acabou por forjar laços de amizade e um certo grau de co-munhão de valores entre usuários. Daí o estabelecimento de novasrelações pessoais e a ampliação da rede de sociabilidade.

Prática típica dessas primeiras fases em que o uso da maconhaera altamente estigmatizado era a chamada “roda de fumo”. Os usu-ários se reuniam para fumar em um local que garantisse sigilo ediscrição, freqüentemente com pouca luz. Ficavam todos juntos,enquanto o “baseado” circulava de mão em mão e ouvia-se, quandopossível, alguma música adequada à ocasião. Acendia-se eventual-mente incensos para dissimular o cheiro da erva e contribuir parao “clima”. Essa é a descrição ideal que hoje é feita com certa nostal-gia e ironia, da “roda de fumo”.

“A fase onde eu comecei a fumar, eu estava num inter-nato na Alemanha, só de rapazes. Uma situação típica erasábado à tarde, a gente fazia uma festinha e ficava numasala ouvindo música, tomando vinho e fumando. Semprefumava junto com os colegas, nunca sozinho. Deixávamossó uma luzinha, ouvíamos Emerson, Lake & Palmer, PinkFloyd e ficávamos viajando (...) Maconha pra mim hoje émais uma lembrança de antigamente, uma nostalgia, umaesperança de sair ainda um pouquinho dos limites docotidiano”.(Wolf, SP)

A “roda de fumo” provia segurança e apoio social para os fuman-tes. Numa situação de grande estigmatização do consumo de maco-nha, fumar servia como sinal diacrítico para o reconhecimento entreindivíduos com determinadas atitudes sociais, políticas, morais eculturais que se opunham ao cotidiano, ao “sistema”, aoestablishment e aos “caretas”, conforme também constatou a pes-quisa de Velho (Velho, 1975: 74 e 119).

“Como na época que eu comecei a fumar eu estava numafase rebelde da minha vida, contestadora, contestar tudo portudo pra tudo, a maconha entrou nessa fase. Teve uma épo-ca que era mais ou menos um cartão de visita. Isso me apro-ximava de umas pessoas e me distanciava de outras, agiapelo menos como um seletor. Tinha uma coisa de

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confiabilidade, pelo marginal da coisa, pelo obscuro da coi-sa”. (Tieta, BA)

A confiabilidade e a presumida comunhão de interesses “alter-nativos” presidiram à elaboração, por parte dos usuários, das jus-tificativas e racionalizações que tornavam válido, a seus olhos, ocostume de consumir maconha. Aos poucos, desaparecem os te-mores e resistências iniciais, que operavam pela associação daerva a “coisa de marginais”, a uma síndrome de “dependência” oua algo “alienante”. O uso da maconha passa a assumir umaconotação de hábito prazeroso, pacífico e inócuo. Na consolidaçãode uma auto-imagem positiva enquanto usuário, contraposta aosestereótipos sociais de “drogado”, “alienado”, “viciado”, “dependen-te” e “bandido”, é importante o modelo fornecido pela figura de ou-tros usuários regulares que integram o círculo de relacionamentodos fumantes.

“Eu fui conhecendo, fui vendo que as pessoas fumavamem festa, fumavam na hora que estavam transando ou fu-mavam quando queriam. Primeiro comecei a ver a droga so-cialmente, foi uma coisa de ir reparando, de ver que estavatudo bem (...) Eu acho uma droga bem fraca, bem leve e mes-mo pessoas que eu conheço e que fumam há anos estãomuito bem e bonitas”. (Eduardo, SP)

Salinas Fortes, mais arrebatado, descreve assim os seus ami-gos usuários da erva em 1974:

“Éramos definitivamente clandestinos. Inatingíveis, ina-cessíveis. E isto nos confortava o espírito, lavava a alma. Forado alcance dos controles múltiplos. Éramos um punhado deirredentistas, bruxas e alquimistas que descobriam poderesignorados ao mesmo tempo em que, com a fé reacendida,saravá São Tomás de Quincey, a crença fortalecida, a purezareconquistada, o otimismo robustecido, dedicavam-se semnenhum medo no peito à tarefa de propagação da boa nova,dispostos a transformar mais uma vez este mundo incorrigí-vel, e certos de que era preciso como diria Merleau-Ponty,‘formar uma nova idéia da razão’ ”. (Salinas Fortes 1988: 82)

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Nosso roteiro de entrevistas incluía uma pergunta específica(Existe alguma comunidade informal de malucos? – Você acreditafazer parte dessa comunidade?) que buscava entender os possíveislaços unindo os usuários de substâncias ilícitas. O termo “maluco”foi escolhido por parecer significar o oposto de “careta”. As respos-tas obtidas indicam que essa suposição era correta mas que assimcomo seu antônimo, a expressão “maluco” é altamente ambígua epode ter conotações tanto positivas quanto negativas.

Se “maluco” é visto como sinônimo de “aberto”, “contestador”,“irreverente” etc. assume uma conotação positiva. O termo, porém,pode ser atribuído aos “bichos grilos”, como são conhecidos jovenspróximos da indigência que buscam sobreviver através da venda deum tosco artesanato, enveredando freqüentemente para o campoda malandragem. Distinguem-se dos marginais mais tradicionaispela adoção de um estilo de vestir, vocabulário e valores fortementeinfluenciados pelo movimento hippie. Os “bichos grilos” são rejeita-dos pelos seus pares de classe média, que consideram seu estilo devida ultrapassado e decadente.

Na verdade, os ideais comunitaristas, correntes entre grandes par-celas da juventude na década de ’70 são pouco enfatizados pelos nos-sos entrevistados já em fins dos anos ’80. Mas, perante as proibiçõesao consumo de “drogas”, certo espírito de cumplicidade persiste.Cavalcanti, pesquisando em Olinda, detectou a mesma hetero-geneidade da população de usuários, o que levou a falar de dois “tiposideais”: os “maconheiros bandeirosos” e os “maconheiros white-collar”(Cavalcanti posteriormente preferiu chamá-los de “maconheiros ocul-tos” em sua tese apresentada em 1998), similares aos nossos “bichosgrilos” e “classe média”. Apesar das diferenças que separam os doistipos, Cavalcanti considera que persiste entre ambos um sentimentoque perpassa as redes estreitas e chega a ser delineador de frontei-ras. Todos os fumantes, segundo essa perspectiva, compartilhariamum “sentimento de pertença”, a revelação de uma “estranheza” co-mum. (Cavalcanti,1988: 6).

Não há dúvida de que participar do “mundo das drogas” continuaa abrir a possibilidade de contatos interclasse num grau de intimi-dade pouco comum na sociedade brasileira. Convidar alguém parafumar um baseado ainda é uma maneira freqüentemente utilizada

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por alguns dos nossos entrevistados para iniciar relacionamentoscom estranhos. Alguns até afirmam ser esta uma maneira quaseinfalível de iniciar uma “cantada” de cunho sexual. Mesmo o velhoespírito de fraternidade contestatória pode ainda ser detectado nocostume de oferecer pequenas quantidades de maconha a quemestá em falta, além de ser importante no processo de aquisição daerva, como veremos mais adiante.

Se a rede de sociabilidade formada em torno do uso da maconhaera antes crucial no sentido de constituir canal de comunicações eapoio social para uma atividade considerada “desviante”, hoje essepapel parece ser menos necessário. A convivência prolongada com aerva sustenta a afirmação generalizada entre nossos entrevistadosde que a maconha produz efeitos leves, controláveis e sem seqüelasconsideráveis. As dificuldades de controlar os efeitos, ou de agir nor-malmente sob “barato” só aparecem nas fases iniciais do uso. Essasconcepções dos usuários são em grande parte corroboradas pela ava-liação psicofarmacológica dos efeitos da canabis: embora a potênciadestes varie de acordo com as amostras particulares da substância,há uma tendência dos especialistas a considerá-los de baixatoxicidade e incapazes de conduzirem a dependência física, confor-me discutiremos mais extensivamente adiante.

A divulgação deste conhecimento “nativo” e especializado sobreos efeitos da canabis tem gerado algumas mudanças no status e nasatitudes socialmente construídas com relação à substância. Há umacrescente tendência nos meios científicos e em certos setores daopinião pública no sentido de considerar a maconha uma “droga pou-co perigosa” em comparação com substâncias como a heroína, o áci-do lisérgico e a cocaína, por exemplo. Além disso, há a própria expan-são do consumo da erva. Perguntamos sobre os ambientes em queacreditavam ser mais freqüente o uso da canabis, nossos entrevis-tados, embora citassem meios artísticos e intelectuais (especialmenteos voltados para as humanidades), julgam que o hábito está hoje bas-tante difundido e ocorre em todas as camadas sociais.

Hoje nos meios intelectuais e artísticos, assim como entre largossegmentos da juventude, os valores da subcultura da maconha sãoconhecidos e normalmente aceitos mesmo pelos não-usuários. As-sim, poucos estranham ou reclamam do surgimento de rodas de fumo

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durante suas festas ou outras atividades de lazer. Mesmo entre aque-les que, por variadas razões, se colocam contra a prática, vigora umavisão crítica da atuação truculenta e autoritária da polícia e esta éconsiderada em última instância como muito mais ameaçadora quea maconha ou seus traficantes. Assim dificilmente se encontraráentre eles quem se disponha a desempenhar o papel de delator.

A difusão do hábito parece produzir, como contrapartida, certodesencantamento em nossos entrevistados com relação a valores,expectativas e propriedades atribuídas à maconha pelo consumo“alternativo”. Levados a explicitar o tipo de significado que a maco-nha poderia ter representado em suas vidas, alguns dos entrevista-dos ressaltaram sua própria abertura e novas percepções e relacio-namentos, mas não a consideram hoje símbolo de qualquer estilode vida. A mesma entrevistada que afirmara que a maconha de-sempenhara numa época de sua vida, a função de “cartão de visi-ta”, diz o que pensa atualmente a respeito disso:

“Acho que mudou em função de minha própria cabeça. Namedida em que mudei meu significado pro meu mundo. Mu-dou a história, né? Hoje ela é um cigarro, um uísque que eutenho em casa, que eu gosto, me gratifica. Mas também jánão confio mais na pessoa pelo simples fato dela fumar outomar qualquer tipo de droga”. (Tieta, BA)

Ou, ainda, como diz Crisântemo (SP):

“Pra mim, fumar maconha é como chegar em casa e fazerum carinho no cachorro, entendeu? Já virou como um cigar-ro, uma coisa que faz parte do cotidiano, e com que se temmais uma relação afetiva do que qualquer outra coisa”.

Em suma, nossos entrevistados consideram que fumar maco-nha é algo bem menos “marginal” e estigmatizado do que era an-tes. Pode-se perceber também que este grupo de usuários procuramostrar independência de opinião em relação a qualquer determi-nação externa, incluindo os valores do “desbunde” associado às dé-cadas de 60 e 70. Seu discurso evita qualquer supervalorização ou“culto” à maconha, encarando-a com a mesma banalidade atribuí-da ao álcool e adaptando-a ao cotidiano1 . Por outro lado, além de

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conhecerem bastante gente que fuma maconha, nossos entrevis-tados parecem hoje preocupar-se em manter seu consumo em se-gredo apenas em relação a alguns familiares mais velhos, vizinhosde pouca intimidade, alguns colegas de trabalho, chefes, patrões e,é claro, a polícia.

Notas

1 A adaptação da maconha ao cotidiano, assim como a de outras “drogas” é,justamente, o que sustenta a crítica ideológica contra o uso de “drogas” que partede outra vertente, fora do discurso médico-preventivo-legal. Ver, por exemplo,Caiafa (1985: 37), assumindo o que declara ser certo ponto de vista punk: “Adroga teve um papel importante na década de 60, quando ela era realmente ummeio de dizer não. Agora, a droga se difundiu e foi adaptada a um grandenúmero de situações bem convencionais. Atualmente existe um lugar socialpara a droga, ou seja, não é fácil fazer dela um uso transgressor, porque elaagora ‘cabe’ adequadamente, ela por vezes já é norma”.

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Controles informais do consumo:rituais e sanções

Exploramos nesta seção as principais referências a respeito decomo a maconha é utilizada, no sentido de detectar sanções e ritu-ais que funcionem, tal como sugeriu Zinberg (1984), como contro-les informais do consumo, compartilhados pelos usuários. Ressal-tamos a princípio que nossos dados tendem a corroborar as hipóte-ses de Zinberg com relação ao uso da maconha. Constatamos, deum lado, haver uma progressiva desritualização no consumo dacanabis: ele ocorre numa variedade de situações e circunstâncias.De outro, as prescrições relativas ao uso assumem um caráter maisgeral, não necessariamente consensual, e tendem a serinternalizadas pelos usuários, tendo em vista o reconhecimento decada qual acerca de suas próprias vontades, limites e disponibilida-des pessoais, à semelhança do que se dá com o álcool.

A tendência predominante a princípio entre nossos entrevista-dos era a de utilizar a maconha somente em ocasiões especiais equase sempre em grupo. Era a situação da “roda de fumo”. O própriocomportamento de fazer passar o cigarro de maconha de mão emmão, prática característica do ritual da “roda de fumo” funcionavatambém como meio de ajustar os indivíduos aos efeitos da fumaçae à percepção do “barato”. Nesses estágios iniciais, era mais co-mum as pessoas se reunirem para fumar, embora raramente essefosse o único ou principal objetivo desses congraçamentos.

À medida que os usuários se familiarizaram com cada aspectodo uso da maconha, a “roda de fumo” veio perdendo o papel dereforçador da aproximação controlada. A lenta mas progressiva

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desestigmatização social da maconha1 , bem como a crescentepopularização e disseminação de seu consumo, contribuíram paraque os controles externalizados no ritual da “roda” deixassem de sernecessários. Passa-se então a usar a maconha em circunstânciasmais prosaicas e de modo menos solene: durante festas, antes de irao cinema, ouvir música, ver televisão. A canabis passa a constituirum complemento ou adjunto de reuniões sociais, e definitivamentedeixa de ser o objetivo desta ocasião. Além disso, passa-se a usar amaconha solitariamente com muito mais freqüência.

No curso desse processo, vai-se apurando a percepção tanto dosefeitos da erva quanto das reações do próprio organismo. Os usuári-os vão assim estabelecendo seu próprio quadro referencial de san-ções relativas ao uso da maconha, com base na vivência pessoal ena inter-relação com outros consumidores. Estes processos indivi-duais são descontínuos e são às vezes pontilhados por fases descri-tas como “de consumo exagerado”, cujas conseqüências negativasnão deixam de ser sentidas e meditadas:

“Eu fumava até mais, comprava em quantidade e, de re-pente, não fazia mais nada então. Depois, passei a fumar só àtardinha, à noite. Ou então no final de semana, quando nãoestou fazendo nada. Quer dizer: tem primeiro aquele conceitoque a gente acha que é nenhum, depois a gente já acha quefumar o tempo todo atrapalha profissionalmente. E realmen-te atrapalha”. (Vadinho, BA)

Como explicita o depoimento acima, muitos usuários percebemapós algumas experiências eventualmente desagradáveis, que épreciso selecionar as circunstâncias e a ocasião para usar maco-nha. A situação de trabalho é freqüentemente eliminada, seja emvirtude da possível ameaça, representada pela descoberta do fatopor chefes e colegas, seja pela queda de rendimento, dispersão ouperda de objetividade experimentadas nessas ocasiões. Tende-se,portanto, a reservar o uso da maconha para horas de lazer edescompromisso. Isso, porém, não é regra geral absoluta: há situa-ções em que os usuários acreditam poder compatibilizar o uso damaconha e o desempenho no trabalho. Há certo consenso em con-siderar a maconha inoportuna para a execução adequada de ativi-

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dades que exigem concentração, precisão, método, ou mesmo me-canização. Em contrapartida, outros acreditam poder realizar me-lhor e mais facilmente atividades que requeiram um tipo de coor-denação rítmica dos movimentos do corpo (incluindo atividades comolimpar a casa, carpir um quintal e dançar).

O consenso das sanções aparece mais claramente nas técnicaspara lidar com a questão da “bandeira”, isto é, dissimular indíciosque possam revelar a prática ilícita àqueles de quem se pretendemanter segredo. São considerados “bandeirosos” o forte cheiro damaconha e, secundariamente, a vermelhidão provocada nos olhosapós o uso. O cheiro é o indício que mais preocupa os usuários: aose fumar maconha tem-se freqüentemente o cuidado de manterportas e janelas vedadas, ou queimar incenso para dissimular oodor da fumaça. Já a vermelhidão nos olhos é vista com algumaironia e humor, como na fala baixa:

“Tenho observado pessoas que estão viciadas é em colírionão em maconha”. (Joana, SP)

Notamos que, apesar da preocupação objetiva com o cheiro, étambém corrente entre os entrevistados a idéia de que qualquerfumante pode passar plenamente despercebido em público. Isso seliga à observação quanto aos efeitos autocontroláveis da maconha,(o usuário pode se comportar normalmente sob efeito) como tam-bém à sensível desestigmatização da prática do ponto de vista dopróprio usuário. Daí se atribuir menos importância a possíveis in-dícios denunciadores como olhos vermelhos. A entrevista recém-citada desenvolve um pouco mais essas idéias:

“Olhos vermelhos já é algo veiculado como sendo um dossinais para detectar, acredito que um leigo sabe disso. Agora,o que eu quero dizer é o seguinte: eu posso ter fumado, estarcom os olhos vermelhos até, não sei se necessariamente eufico com os olhos vermelhos quando eu fumo, mas posso atéestar; sair à rua e ninguém desconfiar. Você pode ter olhosvermelhos por “n” motivos: poluição, álcool (...) Se você não seculpa e não tem nenhum problema com isso, você fuma e sai,eu já fumei e fui pro trabalho e ninguém notou, eu já fumei efui bater papo com a minha mãe (...) (Joana, SP)

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Fumando a sós ou em grupo, todos os entrevistados declararamreconhecer sua própria “medida” a respeito de quanto consumir.Sabem por si quando devem parar ao terem atingido o tipo de alte-ração psíquica ou de relaxamento desejados, conforme seus esta-dos pessoais e o ambiente. O intervalo de tempo entre cada inala-ção parece funcionar como base para o usuário controlar o grau deabsorção da substância, esteja ou não acompanhado. De ordinário,os usuários param de fumar após algumas inalações, para avalia-rem o “barato”, perceberem se a erva “bateu”, e depois decidirem sedesejam mais ou não (Zinberg, 1984: 138). Reproduzimos a seguiralgumas declarações a respeito:

“(P – “O que determina quando você vai parar de fumar?”)

“Ter feito a cabeça, eu estar legal. Eu acho que pra chaparcomigo não é negócio, porque aí eu acho que é estar consu-mindo à toa, ele não vai funcionar mais legal. Eu não sou defumar um baseado todo só porque estou com o baseado namão: fumo, fico legal e dispenso”. (Gabriela, BA)

“Na hora que bateu pra mim eu paro. Eu prefiro a maconhapra excitante, então na hora que ela bateu, que me deu umspeed, eu paro. Mais do que ali eu vou começar a ficar comsono, preguiça, sem vontade de fazer nada”. (Tieta, BA)

(P – “Quando você decide que já fumou bastante?”)

“Você tem uma sensação no próprio tempo que você fuma.Se você está com mais pessoas ou mesmo se você está sozi-nho, enquanto você está fumando dá pra perceber essa alte-ração, quando se fala que bate, quando o fumo faz efeito...você começa a sentir esse efeito, alguma sensibilidade napele, ou alguma coisa que você percebe nos lábios, ou quevocê está legal, ou está mais distraído, relaxado... Você nãovai fumar um baseado atrás do outro até achar que isso ba-teu, você fuma um ou dois, se não bateu também não vaibater”. (Eduardo, SP)

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Do mesmo modo, os entrevistados não relatam nenhuma ansie-dade particular na falta do produto. Procura-se deixar não faltar,mantendo-se um pequeno estoque ou ativando contatos para umanova compra, ou ainda obter pequenas quantidades de amigos. Al-gumas vezes se considera útil suspender o uso por algum tempo,para lidar com algum tipo de seqüela orgânica desagradável oumesmo para preservar o gosto pela coisa: é comum entre usuáriosa opinião de que o uso excessivo da erva deteriora a qualidade e apercepção do “barato”.

Para nossos entrevistados, a reação despertada pela falta demaconha, se é manifesta, é sempre mais amena do que a sentida,por exemplo, na falta de tabaco ou de cocaína. Trata-se de algo deque se gosta e, por isso, se prefere ter sempre à mão, mas que nãomotiva esforços ansiosos para se obter. Um de nossos entrevistadossintetizou a atitude habitual com relação à falta de fumo numaexpressão feliz:

“Acabou, acabou. É como estar na praia e o sol vai embora;daí, você volta pra casa”. (Quincas, BA)

Em suma, notamos uma ritualização flexível e decrescente nosprocedimentos de consumir a maconha. Parece-nos, tal como su-gere Zinberg (1984), que isso se deve à potência freqüentementebaixa da erva e ao elevado grau de controle manifestado pelos usu-ários com relação a seus efeitos, além de certa desestigmatizaçãoda prática. Por outro lado, a ausência de rituais altamenteestruturados em torno do uso da maconha não deve levar à conclu-são de que seus usuários sejam necessariamente dados a um com-portamento imprudente ou temerário. Ao contrário, através da pro-gressão no hábito e do conhecimento aí gerado, as sanções relati-vas à maconha têm sido internalizadas, e os rituais originalmentedesenvolvidos para reforçar as sanções não precisam mais ser se-guidos tão de perto (Zinberg, 1984: 137). Ocorre com a maconha umprocesso semelhante ao álcool: as prescrições referentes a seu usoassumem um caráter mais genérico, sem com isso perderem aeficácia. Tende a predominar, entre usuários como os nossos en-trevistados, o desejo de manter o “barato” sob controle, de modo a sepoder desfrutar de outras atividades – sejam executadas a sós ou

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em grupo. Não se pode dizer, nos casos investigados, que a maco-nha seja o centro exclusivo das atenções dos indivíduos nem o obje-tivo máximo de suas reuniões sociais ou interações.

Cumpre acrescentar ainda que as sanções, sendo genéricas, nãosão consensuais nem mesmo inteiramente conscientes ou elabo-radas por todos os entrevistados: elas podem ser vistas muito maiscomo práticas executadas por cada indivíduo conforme as situaçõese os estados que experimenta2 .

Notas

1 Quando se fala em processo de desestigmação da maconha, deve-se en-tender que este se produz e repercute diferencialmente na sociedade. Há umatendência nesse sentido entre segmentos mais escolarizados e informados dascamadas de renda alta e média. Nas camadas populares dos grandes aglomera-dos urbanos, entretanto, a identificação maconha-marginalidade-banditismo éalgo mais palpável e cotidiano, uma espécie de “profecia que se cumpre”. Osjovens fumantes explícitos nos bairros populares tendem a ser identificadoscomo bandidos: veja-se, a propósito, a discussão de Zaluar (1985, cap. 5). Pare-ce que o uso da maconha por prazer, livre da conotação de banditismo, no casojovens de camadas populares urbanas, depende da ampliação do círculo desociabilidade para fora do bairro e de sua própria classe social, e tende a acon-tecer longe dos respectivos locais de moradia. No caso do Rio de Janeiro, aassociação maconha-banditismo tem claramente a ver com a extensão das redesde tráfico nos bairros populares.

2 Poderíamos também pensar no funcionamento das normas do grupo arespeito do que seria considerado o uso aceitável de psicoativos. Embora essaquestão não tenha sido tratada especificamente nesta pesquisa, cremos que oobservado por Velho, também seja aplicável no caso dos nossos sujeitos. Segun-do ele, apear de certos desvios em relação aos valores da cultura dominante,seus grupos observados mantinham uma série de premissas e valores desta.Continuava presente uma noção de normalidade, de saúde, de doença, que pormais que tenha sido alterada em sua amplitude, marca o discurso do universo.Usar maconha é uma atividade aceita e definida como normal, experimentar ouusar irregularmente cocaína é aceito e pode ser valorizado. Mas o seu uso inten-so, cotidiano, incomoda e pode aparecer como desvio. Neste caso se exerce umcontrole social dentro do grupo capaz de identificar desviantes, manipulandocategorias da cultura dominante como “louco”, “doente”, e até “viciado”. (Velho,1975:75)

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Aquisição do produtoe técnicas de consumo

Procuramos estabelecer em detalhe os procedimentos atravésdos quais os usuários adquirem e consomem a maconha. A questãoda aquisição é relevante já que, em vista de a substância ter seuuso interdito por sanções legais recaindo sobre sua comercializaçãoe porte, os consumidores têm de manter laços com grupos nos quaisa canabis esteja disponível ou haja conexões que possibilitem obtê-la. Na investigação sobre as várias técnicas possíveis de seu con-sumo, procurou-se também estimar o grau de generalidade e uni-formidade dos padrões de uso.

No tocante à aquisição, os dados obtidos deixam claro oimbricamento entre as redes de consumidores e o que poderíamoschamar de “pequeno tráfico”. Numa situação de oferta variável, con-trolada por mecanismos obscuros e, acima de tudo ilegal, os consu-midores tratam de se organizar para assegurar o suprimento desua maconha. Com essa finalidade, verificamos que são formadaspequenas “cooperativas de compra”, ou “vaquinhas” reunindo usu-ários interessados em adquirir, em condições economicamente maisvantajosas, uma quantidade maior da erva para posterior subdivi-são. Mesmo quando não é esse o procedimento, sendo a operação decompra a mais difícil e arriscada de todo o processo de consumo, écomum que um indivíduo mais corajoso ou detentor dos contatosnecessários com fornecedores conhecidos (“canais”) ofereça-se paracomprar maconha (“fazer avião”) não só para si, mas também paraum grupo de amigos. Os riscos, no caso, vêm de duas direções. Porum lado, quem “faz avião” teme ser pego pela polícia e submetido a

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vexames, violências, chantagens e até prisão. Por outro, o indiví-duo se expõe a todas as incertezas e perigos do mundo do crime,podendo ser assaltado ou enganado por seus fornecedores.

Quem organiza uma “cooperativa” ou “faz avião” pode ou não es-tar interessado em algum proveito material. Ele pode simplesmen-te nada ganhar com a empreitada. Em outras circunstâncias, tal-vez retire um pequeno lucro ao revender a mercadoria a preço su-perior, ou reserve para si uma parte maior e melhor da porção ad-quirida. É raro, porém, que esses ganhos sejam elevados, já que oprocesso todo envolve redes de amigos. De um lado, tolera-se que oindivíduo que se dispõe a correr o risco de efetuar a compra recebaem troca alguma vantagem; de outro, o comprador que excede noseu interesse por ganhos pode ser visto como explorador e criarmal-estar entre suas amizades. De modo geral, as relações de ami-zade funcionam como moderador nas transações entre compradore interessados: o interesse por ganhos nesse nível é menos evi-dente e, ao seu lado, encontra-se uma disposição comum de com-partilhar o produto. Também nesse aspecto as redes de consumo demaconha são mais “amenas” que as de outras substânciaspsicoativas ilícitas, como a cocaína, por exemplo: esta costuma cer-car-se por interesses e cálculos muito mais egoístas, seja no planoda aquisição, seja no do consumo. Entre consumidores de maco-nha, em contraste, é bastante comum o fornecimento gratuito erecíproco de pequenas quantidades (“fazer presenças”), prática essavista como reiteradora de laços de amizade e comunhão entre osusuários.

“Consigo maconha através de amigos, um amigo tem e dáum pouquinho, a relação com esses meus amigos é muitoassim, as pessoas não são muito fissuradas, é uma coisa sa-dia nesse sentido, não rola comércio assim”. (Gabriela, BA)

“O que eu chamo de comunidade tem uma postura muitosaudável, é uma postura de servir mesmo. Já consegui fumoatravés de muitas pessoas dessa forma, acho isso algo fan-tástico porque dificilmente você encontra, com outro produtoou com qualquer outra coisa, essa disponibilidade nas pesso-as. Faço presenças com o maior prazer, assim como recebo,

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as pessoas se dão normalmente como um presente mesmo. Éa tônica comum”. (Joana, SP)

A questão da obtenção da maconha tem uma complexa face jurídi-ca e política. Pelas normas legais vigentes no Brasil, tanto o articuladorde uma “cooperativa” quanto o fornecedor de “presenças”, assim comoquem porta consigo ou mantém guardada qualquer quantidade decanabis, pode ser enquadrado nas penas de tráfico. A inclusão no textoconstitucional do tráfico de drogas como crime imprescritível einafiançável faz recair, em princípio, um descabido rigor punitivo, atémesmo sobre o fornecimento gratuito das substâncias proscritas en-tre amigos, ainda que em quantidade irrisória.1

Esta pesquisa não procurou aprofundar a questão do “grande trá-fico”, sobre o qual os usuários sabem pouco, não mais do que é di-vulgado pela imprensa. Seus contatos esporádicos com ele limitam-se às franjas do sistema. Fica patente, no entanto, que tal comér-cio, para realizar-se, precisa da inevitável cumplicidade de indiví-duos em posição de autoridade. De outra forma, seria impossível amovimentação através do país das grandes quantidades necessári-as para abastecer o vasto mercado brasileiro de maconha2 . Isso,para não entrar na questão do plantio e do contrabando. Retor-naremos adiante a esse tema ao discutirmos a visão dos entrevis-tados a respeito do tráfico, da proibição legal e da ação da polícia.

Uma vez obtida a canabis, ela passa a ser consumida de manei-ra marcadamente similar, tanto em São Paulo quanto na Bahia e,provavelmente, nos outros centros urbanos do Brasil. É notável comocertos detalhes se generalizaram pelo país todo, em particular, ohábito de fumar a maconha exclusivamente em forma de cigarro(“baseado”, “morrão”, “beque”, “fininho”). Certos termos, como “ba-seado”, “seda”, “chá”, “bagana” são encontráveis pelo país afora, em-bora haja também termos regionais ligados à prática. Talvez a ex-plicação para essa generalização de termos ligue-se ao fato de asrotas de tráfico servirem também para um tipo de difusão cultural,além da vinculação do consumo da maconha a certos aspectos deuma “cultura jovem” ou “alternativa” hoje difundida pelos centrosurbanos de todo o país.

Na preparação dos “baseados” segue-se um padrão geral de tra-tamento do fumo: sementes e talos são postos de lado e “dechava-

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se” o fumo, isto é, deixa-se o produto mais fino, esmiuçado. Quasetodos os entrevistados sabem preparar um baseado, enrolando-osomente com os dedos, ou com auxílio de algum apetrecho: um pro-saico cartão, a tradicional cédula de identidade ou uma pequenamáquina de preparar cigarros. É corrente hoje o uso de papéis in-dustrializados para feitura de cigarros (marcas nacionais, como o“Colomi”, ou estrangeiras), no entanto, conservam ainda o prestí-gio de boas “sedas” papéis de guardanapo de bar ou de embrulharpão. Uma vez enrolado o fumo, ele é em geral “pilado” levementecom um palito de fósforo ou algo semelhante. Os modos de enrolarcigarro quase não fogem desse padrão geral. Alguns, por comodida-de, adotam uma técnica desenvolvida na Europa, onde os cigarrosmesclando haxixe e tabaco são preparados com piteiras improvisa-das de cartolina. No Brasil essa mistura é pouco apreciada e o base-ado já enrolado com piteira é pouco conhecido por aqueles que nãotêm contato com usuários europeus de canabis. Cultiva-se, na ver-dade, certo conservadorismo ritual nas maneiras de preparar o ci-garro, e os usuários mais antigos parecem imprimir um valor es-pecial a esses hábitos.

“Prefiro fumar baseado no normal, sem ponteira nem nada,mas sempre deixo um restinho de papel assim sem fumo, embranco, para não vir fumo na boca. Mas é gostoso enrolar, écomo um caboclinho que está sentado com seu canivete lá,dechavando um fumo, fica curtindo fazer, aí fica lá pitando. Ésempre gostoso”. (Crisântemo, SP)

O modo típico de segurar o “baseado” costumava se distinguirda forma que os entrevistados portavam o cigarro de tabaco. Deordinário, o “baseado” é retido entre as pontas dos dedos indica-dor e polegar. Mas não é raro hoje reter-se o “baseado” entre osdedos indicador e médio e aspirá-lo com discreção, tal como sefaz com o tabaco. Essa maneira é às vezes preferida como estra-tégia para dissimular o uso da maconha em público. Mas servetambém como meio de marcar distância com relação à figura do“maconheiro” atualmente identificado como a do hippie órfão dadécada de 60” 3 . Parece insinuar-se aí certa distinção de statuse classe social, pois a forma de segurar o próprio cigarro de taba-

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co entre o indicador e o médio e tragá-lo de leve pode ser vistacomo sinal de “sofisticação”, ao passo que é comum homens ope-rários ou lavradores segurarem seus cigarros com a ajuda do po-legar e deles extraírem longas baforadas. Conforme uma nossainformante:

“Eu fumo que nem cigarro. Eu não faço aquela performanceassim de maconheiro: ulf, puxar assim, nada disso. Puxõeseu dou, às vezes, de leve, mas eu fumo e pego como cigarro,não gosto daquela bandeira de maconheiro, aquela marca re-gistrada de segurar a maconha daquele jeito. Eu fumo comocigarro, que é exatamente isso, e fumava em tudo quanto eracanto. Então, a história era não dar bandeira. Neguinho atépodia sentir o cheiro, mas não tava vendo de onde vinha, en-tão, você fumava normalmente”. (Tereza, BA)

Embora todos os entrevistados já tivessem fumado em situaçõespúblicas, essa prática é vista com evidentes reservas. O habitual éfumar em casa, sozinho ou com amigos, ou na casa de pessoas co-nhecidas, ou em situações de festa em que se conhece o ambienteou se certifica de que o ato não causará perturbações. Ocasional-mente, fuma-se em praias e ruas desertas. Todos declaram prefe-rir fumar no final da tarde, após o trabalho, ou à noite, mas em diasde lazer alguns costumam também fumar pela manhã. Os entre-vistados baianos apontam o verão, as férias, o carnaval e as festasde largo como épocas e situações de uso mais intenso. Ospaulistanos, por sua vez, não identificam um período ou ocasiãoparticular em que o consumo se torna mais freqüente. Apesar dadivergência de opiniões, na prática, todos os entrevistados pare-cem seguir o critério explicitado por um deles: “época de ano é quan-do tem, quando pinta ou quando se está com vontade”.

Atualmente, fuma-se sozinho tão freqüentemente como em gru-po. Quando em grupo, não se forma sempre uma “roda” no sentidoestrito — as pessoas se espalham —, mas se mantém o princípio defazer com que todos os interessados dêem cada qual o mesmo nú-mero de tragadas (“bolas”, “tapas”), estabelecendo-se uma ordempara a passagem do baseado. Todos declaram reconhecer o pontoem que fumaram o suficiente, por experiência própria, e afirmam

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que não costumam ultrapassá-lo quando o julgam atingido, sejasozinho seja em grupo.

Depois do “baseado”, alguns apreciam fumar tabaco, outros to-mem alguma bebida alcoólica forte, outros, ainda, não gostam de“misturas”. Muitos já experimentaram outras formas de consumirmaconha: fumada através de narguilé4 ou de “marica”, cozida embolo, preparada como chá, curtida em aguardente ou misturada comtabaco. Na nossa experiência de campo, estas variações na formade consumo são, porém, pouco freqüentes e consideradas como ex-ceção ou exotismo. Cavalcanti, porém, estudando o “maconhismo”em Recife, Olinda e Maceió, observou um uso freqüente de “mari-cas” quem, apesar de terem sido uma marca constante no antigomaconhismo popular, desaparecera com o uso marginal da maco-nha em cidades, para serem reintroduzidos no ambiente dacontracultura hippie (Cavalcanti 1998:180).

Todos os usuários desenvolvem também seus critérios para re-conhecimento da qualidade do produto a ser consumido. As gradaçõesde qualidade são estabelecidas a partir da avaliação de uma sériede aspectos: cor, presença de resina, quantidade de inflorescências(“berlotas”) em proporção a talos e sementes, cheiro e efeitos produ-zidos. Um entrevistado baiano nos forneceu um curioso esquemaclassificatório contendo avaliação e denominação de diferentes ti-pos de maconha, numa escala de qualidade:

“A ótima é a manga-rosa, ou a cabeça-de-negro, com aque-las berlotonas grandes. Boa é a que tem berlotas, mas vem umpouco quebrada. Ruim é a que tem os cabelos, é a famosa Ma-ria Bethânia, cheia de cabelos, mas se tirar eles todos temberlota embaixo. A péssima é aquela toda quebrada, empoeirada,mofada, seca, com muita semente.” (Vadinho, BA)

Notamos que os baianos tendem a apresentar um esquema maisrico de avaliação da qualidade. Isso parece se ligar às circunstânci-as específicas segundo as quais o produto é adquirido em Salvador.Lá, a maconha vendida se apresenta com freqüência na sua formamais “bruta”, o que ajuda o reconhecimento da quantidade deinflorescências. Também entre os usuários baianos foi mais fácilencontrar os que mantêm contatos direto com bases da rede de

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tráfico e distribuição, vão às “bocas” do Pelourinho e têm canaisconhecidos. Já em São Paulo, a maconha aparece mais habitual-mente na sua forma “prensada”, com inflorescências, talos e se-mentes constituindo uma massa compacta e indiferenciável à pri-meira vista, dificultando assim a avaliação da qualidade. Em SãoPaulo também as redes de tráfico são aparentemente mais intrica-das, difusas e ramificadas do que em Salvador.

Apesar dessas diferenças, que se explicam parcialmente em fun-ção da maior proximidade de Salvador a certos centros de produçãoe da amplitude do mercado paulistano, os esquemas classificatóriosseguem aproximadamente o paradigma baiano apresentado. Embo-ra as denominações variem, algumas expressões são emblemasconsensuais de boa qualidade. É o caso da “manga-rosa” e da “cabe-ça-de-negro”, que assumem hoje uma conotação quase mítica deexcelência. O mesmo se deu, no final da década de 80, por ocasiãodo despejo no litoral paulista e fluminense de grande quantidade demaconha acondicionada em latas (chegou-se a falar de 24 tonela-das), cuja qualidade passou imediatamente a ser louvada comomodelar. A expressão “da lata” passou não só a designar a boa ma-conha em geral, como também se estendeu para indicar tudo o queseria de qualidade superior, especial ou excelente. As “latas” vira-ram inclusive estampas de camiseta, vinhetas de emissoras derádio e temas carnavalescos no verão de 19885 . Este caso, aliás,apenas acrescenta mais um exemplo à série de expressões ligadasoriginalmente ao consumo de maconha que depois seuniversalizaram na fala de certos segmentos jovens urbanos — como“massa” (de “massa real”, a melhor porção da maconha) — equiva-lente a “legal” ou “ótimo” — ou “palha” (os talos e cabelos da maco-nha ruim) — sinônimo de “mentira” ou “falsificação”, etc.

Os usuários experientes cultivam certas práticas para acondi-cionar, conservar e tratar a maconha. Procura-se em geral guardá-la de modo a não expô-la à luz, envolta em plástico ou papel laminado.Muito comum é a utilização dos pequenos cilindros negros de plás-tico, que servem de embalagens para filmes fotográficos, como re-cipientes para acondicionar a erva. Algumas técnicas para “recu-perar” porções envelhecidas de maconha foram relatadas: respin-gar bebida alcoólica, ou mel ou deixá-la sob o sereno. São basica-

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mente modos de reidratar porções ressecadas e torná-las mais agra-dáveis ao consumo. A prática de deixar a erva sob o sereno é, aliás,parte do processo de cortume empregado para liberar a atividadequímica do THC durante a preparação da canabis para distribuiçãono mercado6 .

Notas

1 Uma síntese dos aspectos sociojurídicos da maconha no Brasil pode serencontrada em Toron (1985). Parte do debate recente sobre tráfico e consumode psicotrópicos ilegais pode ser encontrado em matérias e editoriais jornalísticos.Ver, por exemplo; “Drogas – orientação social, um caminho a ser seguido”, OEstado de S. Paulo, 20-3-1988, p. 55-56; “A proposta dos 32” Folha de S. Paulo,8-12-87, p. A-2. Este último é um editorial que critica explicitamente a amplia-ção de penalidade sobre o oferecimento gratuito, entre amigos, de pequenasquantidades de subsistâncias psicotrópicas ilegais.

2 Segundo matéria jornalística recente, “no Brasil, a média de apreensão demaconha gira em torno de 30 toneladas mensais, o que equivale a 360 tonela-das anuais de maconha apreendidas pela polícia”. Mas, continua o texto, “sabe-se que a maconha apreendida pela polícia representa uma pequena fração daquantidade consumida” (Revista Caos, n.º 3, p.66).

3 Essa distinção faz-nos lembrar outra vez a oposição estabelecida porCavalcanti (1988), entre os maconheiros white-collar e “bandeirosos”.

4 Iglésias, 1918, considerava ser o cachimbo o modo predileto de consumirmaconha. Esse cachimbo, de origem africana e chamado de “marica”, aindapode ser encontrado ocasionalmente. Eis a descrição dada por Iglésias de umdesses cachimbos que segue o mesmo princípio do “narguilé” árabe:

“O instrumento usado para se fumar a maconha é um cachimbo de argilacom um longo canudo de bambu ou taquari, que atravessa uma pequena cabeçacheia de água, onde o jato de fumo se resfria, antes de penetrar na boca dofumador”. (Brandão apud Iglésias, 1986: 45).

5 Folha de S. Paulo, 21-1-1988, p. A19

6 Sobre o processo de plantio, colheita, ressecamento e cortume da maco-nha ver Henman, 1986:106-7, e a matéria “Maconha: um mapa”. Revista Caos,n.º 3, p. 60-67.

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O consumo da maconha associado aoutras atividades sociais e efeitos

sobre o psiquismo

Um de nossos interesses foi conhecer os efeitos provocados pelouso da canabis sobre atividades como trabalhar, dirigir, manter rela-ções sexuais, criar, dormir. Vimos que, uma vez criada certa familia-ridade com a maconha, o usuário aprende a controlar seus efeitos ou,então, a programar seu uso de tal forma que não venha a ter conseqü-ências negativas sobre suas atividades cotidianas. Os entrevistadosmostraram-se conscientes de uma variada série de possíveis seqüe-las imediatas do ato de fumar maconha, tais como: sonolência, disper-são da atenção, alterações na orientação temporal, espacial e motora,perda de objetividade no pensamento. Essas seqüelas incluíam algu-mas sensações físicas desagradáveis, como queda de pressão,taquicardia e tremedeira. Como já vimos, é bastante generalizado orelato de que, apesar de inicialmente ser comum o hábito de fumarantes ou durante o trabalho ou o estudo, com o passar do tempo talprática vem a ser abandonada, por interferir na execução de tarefasque requerem atenção ou habilidade motora. Para lidar com os efeitosdesagradáveis, os usuários se valem de artifícios simples, tais como:selecionar os ambientes e as ocasiões para o uso; moderar a quanti-dade consumida; evitar a lassidão com o uso de algum estimulante(cafeína) ou álcool; suspender o uso da maconha por algum tempo.

Para os usuários, há certas atividades que parecem serfavorecidas pela canabis — como ouvir música, dançar ou desenhar— e costumam ser precedidas por um baseado. De uma forma ou deoutra, esse favorecimento é interpretado em termos de amplifica-ção e aprimoramento da sensibilidade e da percepção.

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O aumento da percepção tátil é mencionado por quase todos, eseu corolário parece ser uma intensificação do prazer sexual e dodesejo. Nas palavras de uma das entrevistadas:

“Nada dá maior tesão. Você fica mais... eu acho que aguçaa tua sensibilidade. Então para trepar é ótimo. Para você to-car as pessoas é uma maravilha. Fumando você viaja muitomais. É como se você estivesse sentindo mais as coisas. Paramim aguça para caramba minha sensibilidade”. (Teresa, BA)

Alguns sugerem que a canabis provocaria relaxamento e des-prendimento das preocupações corriqueiras, de modo a possibilitarmaior grau de introspeção, atenção a detalhes e estabelecimentode associação entre percepções, idéias e sentimentos normalmen-te vistos como desconectados ou irrelevantes entre si. Assim, osentrevistados são levados a sentir que a maconha “abre canais”,aguça a criatividade, solta a imaginação e a “intuição”, acentua apercepção do ambiente físico e dos sentimentos pessoais e contri-bui para o “autoconhecimento”. Vejamos algumas falas:

“Quando estou com a maconha e pego uma questão, eu meconcentro mais, daí eu consigo tirar muito mais conclusões eir mais fundo em determinadas coisas do que normalmente.Então, é isso que eu chamo de efeito terapêutico, às vezes elapromove associações muito interessantes dentro de minhavida, dentro do mundo, da minha relação com as pessoas, daminha relação comigo mesma”. (Tieta, BA)

É grande o efeito benéfico da maconha, não só para o corpo,que é um relaxamento muito necessário para a vida que agente leva, como também esse aspecto de ser uma ferramen-ta para o autoconhecimento, de ter insights ... Ela te facilita,você retorna da experiência enriquecido, se conhecendo muitomais.” (Joana, SP)

“Dá uma fumadinha, relaxa, dilata, tem muito a ver comdilatar... Às vezes, depois de exercícios que exigem muita dis-ciplina, concentração, análise, eu gosto de usar para dar umadissolvida na cabeça. Às vezes, com o fumo a cabeça fica mais

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rápida, faz associações mais inesperadas. Às vezes éinspirador: pra desenhar, tocar, é ótimo, tem afinidade. Praescrever; às vezes estou escrevendo uma coisa que exigemuita concentração. Então, depois que eu estou um montede tempo naquilo, de repente, fumar às vezes dá um salto,descondiciona da linha em que você estava preso, e acho quese você sabe se utilizar disso, é até um fator criativo... Achointeressante como a maconha inspira a favor coisasinabituais. Isso eu acho saudável para a percepção, como selimpasse um pouco os canais... Sensorialmente, pra ouvir,ver cinema, é uma coisa muito atraente. Ou ver natureza. Àsvezes, você tem percepções interessantes das pessoas, de ros-to, de expressão. Você fica muito sensível aos climas, aos es-tados das pessoas, e mais sensível a todos os seus problemas,também.” (Adalberto, SP)

Notamos também uma tendência a direcionar diferentementeas experiências com a canabis conforme se dêem em grandes reu-niões sociais ou em situações mais íntimas. Em reuniões sociais,seu uso é comparado ao álcool, acrescentando-se que certas ativi-dades nesses contextos são melhor desfrutadas sob efeito – dançaré o caso mais típico. Já nas ocasiões de maior intimidade, incluin-do o uso solitário, são ressaltados os efeitos relacionados àintrospecção e à percepção diferenciada do ambiente.

Maconha e criatividade

A discussão a respeito dos efeitos da canabis sobre a imaginaçãoe a criatividade vem de longa data. Tornou-se famoso o “Clube dosHaxixins”, criado em 1840, na França, por artistas do calibre deTheóphile Gauthier, Baudelaire, Alexandre Dumas e Gerard deNerval. Aos testemunhos destes (Gauthier, 1987; Baudelaire, 1986)vieram, mais tarde, se juntar as exaltações à canabis feitas porRimbaud, Benjamin, Kerouak, Allen Ginsberg, John Lennon e muitosoutros. Embora alguns estudiosos, como o psiquiatra Sonnenreich(1982; 54) afirmem que a droga nunca poderia substituir o talentona produção artística, são corriqueiras afirmações dos nossos en-

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trevistados no sentido de a canabis propiciar experiências capazesde alterar as concepções normalmente mantidas a respeito do mun-do. Walter Benjamin (1984), entre outros, corroborou esse ponto devista.

Note-se que, nas falas de entrevistados reproduzidas acima, sãoutilizadas expressões como “a maconha inspira”, “a maconha faci-lita”. Nenhum dos entrevistados afirmou que a maconha possa pro-duzir algo que já não tenha algum nível de existência latente ouvirtual nas próprias pessoas. Pode-se asseverar que, para nossosentrevistados, a maconha não “inventa” nada de novo, não tira lei-te de pedra. Acredita-se, sim, que ela tende a acentuar o estado deespírito em que o indivíduo se encontra no momento do uso, bemcomo promover percepções não-ordinárias acerca de fatos e relaci-onamentos existentes no âmbito da convivência dos sujeitos e noconjunto de suas atividades e interesses. Por isso, também, os usu-ários podem considerar a maconha contra-indicada em ocasiões detensão ou depressão acentuada, embora não haja pleno consensoquanto a isso1 .

Canabis e religião

Desde a Antiguidade, uma origem divina tem sido atribuída àcanabis. Os Vedas, considerados como tendo sido escritos por voltade 2000 a.C. na Índia, consideravam-na como um néctar divino,capaz de fornecer ao homem saúde, longa vida, e visões dos deuses.Fazia-se com ela um preparado, chamado Bhang, que se considera-va capaz de deter o mal, trazer boa sorte e purificar o pecado. Aque-les que pisassem nas folhas da planta poderiam sofrer malefícios, ejuramentos sagrados eram selados com cânhamo. Indra, deus dofirmamento, tinha uma bebida predileta feita de canabis e ela eratambém fumada em rituais para o deus Xiva. Até hoje, os homenssantos, devotos de Xiva ou de sua consorte Kali, utilizam o Bhangpara ajudar a atingir os picos do ascetismo e da contemplação(Verlomme, 1978:176). Também no Tibete, a canabis era utilizadaem rituais do budismo tântrico para facilitar a meditação profundae aumentar a percepção (Schultes e Hoffman; 1987:92-101). O ZenAvesta, da Pérsia de 600 a.C., codificando os ensinamentos de

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Zoroastro, menciona uma resina intoxicante que se crê que fosseproveniente do cânhamo, e os assírios já a utilizavam como incen-so em 90 a.C. Na África também é largamente utilizada com finssociais e religiosos por diversos povos como os hotentotes, osbosquímanos e os kaffirs, entre outros. Os kasai do Congo a consi-deravam como uma divindade que protegia contra malefícios físi-cos e espirituais (Schultes e Hoffman, 1987:100).

Há uma controvérsia irresolvida sobre a existência ou não dacanabis na América pré-colombiana e certas evidências arqueoló-gicas parecem apontar para seu uso em tempos muito antigos(Bennett, Osbourn e Osbourn, 1995:267). O que se sabe é que atual-mente a canabis desempenha um papel importante na vida religi-osa de vários grupos indígenas como os cuna no Panamá e os corano México. Os tepehua, outro povo mexicano, também a usam como nome de Santa Rosa, em cerimônias de cura, considerando queela atua como mediadora perante a Virgem. Os tepecanos, do noro-este do México, ocasionalmente a utilizam como substituto do peiote,chamando-a de Rosa Maria.

Martine Xiberras considera que as chamadas “práticas leves”de uso de psicotrópicos, que se encontram no pólo oposto ao da sub-missão às substâncias (as “práticas pesadas”), tentam resgatar in-tuitivamente conhecimentos tradicionais da droga, cujos funda-mentos se encontram enraizados em um passado antigo que não éalcançado pela memória curta das toxicomanias modernas. Estaspráticas estariam atualmente esvaziadas de qualquer conteúdo te-órico ou ideológico, mas, sem se dar conta, o consumidor moder-no entra em estados alterados de consciência, transe ou êxtase,que inúmeros povos e culturas experimentaram durante muito tem-po. O uso desses produtos conduz sempre à mesma experiênciaancestral do mundo: uma comunicação muito amplificada, o im-pacto do coletivo sobre as paixões individuais, a sensação de uniãoe de comunhão com o cosmo como um todo. A partir das descriçõesdos fumantes de canabis se poderia chamar essa experiência de“intersubjetividade transcendental”. A partir da entrada em estadode transe a extrema sensibilidade a todas as percepções leva, porassim dizer, à penetração na alma dos outros sujeitos. Se o outrosujeito se encontra no mesmo estado, a comunicação se estabele-

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ce sem nenhum obstáculo. Se há vários outros, o ambiente geralcomeça a vibrar em uníssono, e as paixões e os sentimentos atin-gem os corações de todos, como se estivessem no centro da consci-ência coletiva (Xiberras; 1989:155-159).

Xiberras, vivendo na França, crê que essa experiência de uniãocósmica, vivida pela juventude ocidental, perdeu o conteúdo místi-co que tinha em outras culturas, mas embora isso seja, em grandeparte, verdadeiro no Brasil urbano também, aqui há exceções, poisentre nós o uso religioso da canabis é muito raro, mas existe. Atépoucos anos atrás, conforme relatório do Confen, era usada sob onome de “Santa Maria” na “Colônia Cinco Mil”, uma das vertentesdo culto acreano do Santo Daime, como é conhecida a bebidaenteógena ayahuasca. Seus adeptos porém insistem que “a SantaMaria não é maconha”, e utilizando uma terminologia diferentedaquela normalmente utilizada pelos “maconheiros”, tanto para aplanta em si quanto para outras palavras relacionadas ao seu uso(“pitar” e não “fumar”; “papelim” e não “seda”; “mariano” e não“maconheiro”; por exemplo), enfatizam a diferente natureza do usoritual em relação ao uso “não consagrado”.

Porém as autoridades não quiseram reconhecer o status sagradodesse uso e a insistência dos daimistas da “Colônia Cinco Mil” emsuas práticas propiciou o início de uma feroz campanha repressivapor parte da Polícia Federal, levando a intranqüilidade e o estigma acerca de dez outros centros do culto em Rio Branco, onde somente o“daime” era utilizado. Em conseqüência dessa associação entre ouso ritual dessas duas substâncias psicoativas de origem vegetal, aprópria ayahuasca foi incluída na lista do DIMED de entorpecentes epsicotrópicos de uso proscrito. Essa situação só veio a se alterar, al-gum tempo depois, quando o Confen recomendou a liberação parauso ritual da ayahuasca mediante um acordo de cavalheiros comlíderes da religião, de que a canabis deixaria de ser usada em suascerimônias (MacRae; 1992:72 e Sá; 1987). Mas a Santa Maria conti-nua a ser considerada sagrada pelos seguidores dessa vertente doSanto Daime (embora seja veementemente rejeitada por daimistasde outras “linhas” e por adeptos de outra religiões ayahuasqueiras).Isso dificulta a proscrição do seu uso por parte desses daimistas,mesmo em se tratando do uso extra-ritual, o único atualmente pos-

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sível. Essa desritualização compulsória acaba por ter um efeito con-traproducente de somente enfraquecer a atuação do sistema de va-lores, regras de conduta e rituais sociais da doutrina religiosa que odisciplinaria, sem, de fato, conseguir impedir o consumo.2

É também objeto de polêmica a utilização da canabis nos cultosafro-brasileiros, e os escritos antropológicos sobre o assunto sãomarcados pela ambigüidade, notando-se certo movimento de dissi-mulação/ocultação a seu respeito, muitas vezes atribuindo-o aoscatimbós de origem indígena. Essa postura, inspirada provavelmentepelo desejo de mostrar a respeitabilidade da cultura negra, provo-cou simpatizantes das causas indígenas a enfatizar, por sua vez, aorigem africana desse costume religioso estigmatizado. Dois dosentrevistados baianos falaram sobre o uso de folhas de canabis comooferenda ao orixá Exu em certos rituais do candomblé e há tambémreferências à sua consagração a Oxalá. Mas, em geral, o “povo desanto”, sempre cioso dos segredos de sua religião e da necessidadede cultivar uma imagem “respeitável”, costuma negar qualquerinformação sobre o tema.

Também é notória a utilização da ganja por parte dos rastafarianosda Jamaica, que a têm como parte inseparável do seu culto, desde adécada de ’40, como auxiliar de meditação (Barrett, 1988:128-136).Entre os rastafarianos da Bahia, também é bastante apreciado,embora não seja objeto de uso ritual, se tomarmos a noção de ritualestritamente vinculada às práticas religiosas. Porém, há variasatitudes, correntes entre eles, influenciadas por princípios de reli-giosidade e ocasionalmente alguns rastas associam atitude e a re-lação que mantêm com a canabis às experiências de caráter mís-tico, religioso e sensorial (Cunha, 1991).

Mas o emprego religioso da canabis no Brasil, além de poucocomum, continua sendo objeto de polêmica e dissimulação, devidoà sua ilegalidade, o que dificulta a consolidação de rituais públicosde uso. Não deixa de ser irônico pensar que a política proibicionistaneste caso age de maneira contraproducente em relação ao contro-le do seu consumo. Pela sua vã insistência na proscrição absoluta,deixa de mobilizar os poderosos controles rituais e os sociais infor-mais de que dispõe organizações religiosas como as dorastafarianismo e do Santo Daime. Estas são conhecidas pelos seus

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princípios puritanos e pela eficácia da sua regulamentação, às ve-zes bastante rígida, de outros aspectos do comportamento de seusadeptos; como no uso de bebidas alcóolicas e na estruturação desuas vidas sexuais.

Maconha , lassidão e a síndrome amotivacional

Os relatos sobre o uso da maconha mencionam com freqüênciaseus efeitos “calmantes” e hipnóticos. Todos os nossos entrevista-dos se mostraram cientes dessas conseqüências, dizendo que amaconha produz lassidão, faz “capotar” ou propicia um sono gostoso.Crisântemo (SP) até afirmou que, durante certa época, chegou ausar a maconha regularmente para dormir. Esse tipo de efeito já foiconstatado em numerosos estudos psicofarmacológicos. Carlini, porexemplo, constatou a ação hipnótica não só do Delta-9-THC maistambém do canabidiol (CBD), ambos presentes na maconha (Carlini,1986: 77). Porém, estudos efetuados na Costa Rica entre usuárioscrônicos não constataram maiores alterações nos padrões deeletroencefalograma durante o sono, também não sendo encontra-da qualquer evidência clara de alteração morfológica causada pelacanabis ao cérebro (Institute of Medicine, 1982: 84 e 89).

Outra questão freqüentemente levantada quanto ao uso da subs-tância diz respeito à chamada “síndrome amotivacional”. Esta éabordada em um dossiê publicado pela organização francesaToxibase3, em 1995, com uma ampla revisão da literatura científi-ca atual sobre os efeitos da canabis em seres humanos. Lá asíndrome é concebida como uma maneira de alheamento existen-cial, apresentando um constante déficit mnésico, e embotamentoafetivo e intelectual. Essa síndrome é considerada como especial-mente afeita à adolescência, levando o indivíduo a voltar-se sobresi mesmo e seu mundo onírico, proporcionando uma instabilidadede humor e melancolia. O indivíduo se mostra freqüentementemarginalizado e em confusão psicológica. A autonomia dessasíndrome é atualmente bastante discutida por estudiosos, mas con-tinua, apesar disso, a evocar as manifestações classicamente ob-servadas entre usuários crônicos (Toxibase, 1995:12).

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Os usuários observados para este estudo já não eram mais ado-lescentes, e seu uso, geralmente regido por controles sociais infor-mais e por regras de uso pessoais, raramente interferia com seuscompromissos sociais ou com seus objetivos de vida. Isso era de seesperar, já que a observação foi realizada entre pessoas já previa-mente selecionadas pela sua boa integração social, mas, de todaforma, serve para corroborar a idéia de que essa síndrome não écaracterística típica dos usuários, especialmente em se tratandode adultos.

Maconha e memória

Entre usuários de canabis é bastante comum a referência joco-sa à “queima de neurônios” que, segundo divulgam certos adeptosde técnicas de prevenção através do amedrontamento, seriaprovocada pelo costume de usar a maconha. Poucos usuários real-mente acreditam nessa possibilidade, que entre cientistas nãoencontra defensores, mas quando se referem a ela, muitas vezesestão de fato aludindo a perturbações de memória, freqüentementereportadas.

A publicação da Toxibase aborda a questão das alteraçõesprovocadas na memória, afirmando que distúrbios da memória sãodiscretos. Estes são reportados com maior freqüência nos EstadosUnidos, paralelamente ao aumento da concentração média de THCna droga disponível no mercado clandestino. Segundo o dossiê, osestudos são bastante contraditórios e dizem respeito a um temadifícil de avaliar de maneira objetiva. Oscilam entre aqueles quenão detectam nenhuma alteração a outros que tendem a alegaruma perda intelectual importante. Todavia, a maioria desses estu-dos estariam maculados por erros metodológicos que lançariamdúvidas sobre seus resultados. Porém o dossiê termina por concluirque o uso regular de canabis, mesmo por curto período, induz per-turbações da memória imediata, problemas que podem persistirmesmo após alguma semanas de abstinência. Além disso, essa con-seqüência do uso da substância seria potencializada pela suafreqüente associação ao uso do álcool. A atuação da canabis sobre a

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memória seria, sem dúvida, a mais preocupante, e os estudos apre-sentando resultados negativos quanto a esse efeito teriam sido re-alizados junto a populações não representativas. Dependeria dadosagem, e sua importância seria a mesma apresentada pelo usodo álcool (Toxibase; 1995: 11) .

Confirmando o que já havia sido constatado na nossa convivên-cia com usuários de canabis, vários entrevistados se referiram aefeitos adversos que o uso da maconha teria sobre a memória. Defato, essa séria a única conseqüência negativa duradoura percebi-da, uma vez que as outras são concebidas como parte do “barato” e,portanto, temporárias. Experimentos realizados para verificarempiricamente a relação entre o uso da maconha e dificuldades dememória têm confirmado essa constatação (ver Ferraro, 1980). In-felizmente, tais estudos se concentram sobre os efeitos da intoxi-cação durante o aprendizado ou a recordação, e não sobre as pertur-bações registradas quando o usuário está sóbrio e encontra dificul-dades em recordar material também memorizado nesse estado.

Maconha e a condução de veículos

Uma das argumentações levantadas com maior freqüência con-tra o relaxamento das proibições à maconha diz respeito ao perigoque viriam a representar motoristas que fumam e dirigem. Segun-do Arnao, vários estudos têm indicado a ocorrência de alteraçõesna habilidade de motoristas provocados pelo uso da canabis, emboraesta ainda pareça ser menos perturbadora que o álcool (Arnao, 1980;86-91).

Uma pesquisa multicêntrica, realizada para a ABDETRAN peloCETAD/UFBa e o Instituto RAID de Pernambuco com vitimas deacidentes de trânsito em Recife, Salvador, Brasília e Curitiba, de-tectou, através de testes de urina, que 7,3% haviam feito uso demaconha. Mas fica difícil atribuir a causa de seus acidentes direta-mente a esse fato, uma vez que foram adotados limites de detecçãopara todas as substâncias analisadas indicativos de valores de usoabaixo daqueles capazes de produzir manifestações psicoativas im-portantes, conforme admite o próprio relatório. Deve-se tambémlevar em conta que a presença de metabolitos dos canabinóis pode

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ser detectada na urina até duas semanas após o uso, ou seja, mui-to tempo após cessarem seus efeitos psicomotores. Além disso apesquisa deixou de discriminar o nível de alcoolismo ou de presen-ça de outras drogas desses usuários de maconha, tornando impos-sível determinar se, nos casos em que houvesse comprometimentodas faculdades psicomotoras, se isso se deveria ao uso dessa subs-tância ou de outra, como o álcool, por exemplo (ABDETRAN,1997).

O já citado dossiê preparado pela Toxibase cita numerosas pes-quisas consagradas ao tema, freqüentemente apresentando resul-tados contraditórios. Seria difícil interpretar os resultados da me-dida de taxas de THC e de seu metabolito psicoativo junto a moto-ristas que a consomem de forma muito ocasional, mas as observa-ções seriam mais fáceis com sujeitos que a usam regularmente.Estima-se que o risco de acidente após um consumo de dose eleva-da de canabis seja multiplicado por entre 2 e 3,5, sempre com baseem estudos pontuais. De fato, encontra-se uma grande prevalênciade THC nos fluidos biológicos de motoristas implicados em aciden-tes de trânsito, mas nunca se demonstrou um aumento no númerode acidentes atribuíveis a um aumento do consumo de canabis poruma dada população. O uso de canabis antes de se tomar a direçãode um veículo apresenta, portanto, riscos reais, mas estes são con-siderados por diversos autores como menores que os apresentadospelo álcool. Alguns até chegam a questionar se o custo social provo-cado pela ameaça de controles sobre os motoristas seria compen-sado por um beneficio verdadeiro.

Não haveria nenhum estudo provando, de maneira indiscutível,que se possa atribuir somente ao uso da canabis acidentes queocorrem com operários que trabalham com máquinas. Igualmente,o uso de canabis não aumentaria a incidência de faltas ao traba-lho nem faria diminuir o rendimento (Toxibase, 1995:9)

Nenhum dos nossos entrevistados afirmou que deixaria de to-mar a direção de um veículo se estivesse “de barato”, mesmo reco-nhecendo as dificuldades que essa condição dá ao ato de guiar. Po-rém, mais do que uma acusação contra a maconha, isso espelha airresponsabilidade do motorista em geral, sempre disposto a tomaro volante de um veículo mesmo sob o efeito de bebida, tranqüilizan-tes, barbitúricos e outros medicamentos com efeitos psicoativos ou

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simplesmente do cansaço. Neste caso reprimir a maconha pareceser menos eficaz do que promover campanhas intensivas de educa-ção para o trânsito.

Notas

1 Há grande proximidade entre o ponto de vista dos usuários sobre os efeitosda canabis nos estados de ânimo particulares e a imagem de Baudelaire lembradapor Masur (1987: 64): “O haxixe será, para as impressões e os pensamentosfamiliares do homem, um espelho que aumenta, mas um simples espelho”.

2 Atualmente, no processo de expansão da religião para outros países, naHolanda, onde o uso da canabis é tolerado, o culto da Santa Maria é realizadopor daimistas locais.

3 Toxibase é um importante banco de dados francês reunindo textos produ-zidos em toda a Europa. Através de convênio com alguns centros de referênciabrasileiros, este material está disponível para consulta, entre eles o CETAD/UFBa.

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Tolerância, padrões de consumo ea hipótese da �escalada� rumo a

outros psicoativos ilegais

Alguns férreos opositores da canabis enfatizam o surgimento detolerância e sintomas de abstinência que levariam a um uso maisfreqüente e em dosagens sempre maiores (ver, por exemplo, Nahas,1984). Nossos entrevistados reconhecem, em alguns casos, osurgimento de uma certa tolerância a uma amostra específica demaconha. Esta tolerância, porém, não pode ser satisfatoriamenteeliminada pelo simples recurso a dosagens maiores. Recorre-se,então, ao consumo de uma amostra diferente da substância. Issopode ser melhor entendido se lembrarmos da enorme variação nonível Delta-9-THC encontrado em diferentes amostras de maconha1 .Assim como oscilam os níveis desse agente ativo, também variamos níveis dos outros componentes da maconha (canabidionóides), osquais, embora incapazes de desencadear efeitos alucinogênicos, pos-sivelmente interagem de tal modo que seu efeito global demonstracerta heterogeneidade (ver Petersen, 1980: 12). Nessa hipótese, tal-vez a tolerância desenvolvida pelo usuário seja relativa a uma dadacombinação de componentes, e pudesse desaparecer perante umaligeira alteração nos níveis dos princípios ativos.

O histórico de uso de maconha relatado por nossos entrevista-dos, certamente não demonstra um constante aumento de doses.Pelo contrário, todos se dizem satisfeitos com seu relacionamentocom a canabis e, depois de certo tempo de uso, desenvolveram umpadrão estável de consumo, cuja eventual alteração depende maisde fatores socioculturais do que das propriedades intrínsecas à com-posição química da erva.

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Uma pesquisa realizada entre 50 estudantes da USP usuários demaconha confirma essa idéia. A influência de amigos, a saída da casapaterna, viagens e crises pessoais foram fatores consideradosconducentes ao aumento no uso, enquanto o compromisso acadêmicoou profissional servia como redutor. A repressão legal não apareceu aícomo fator importante na redução do consumo. A maioria dos entre-vistados relatou a perspectiva de manter, no futuro, o mesmo nível deuso da maconha ou reduzi-lo ligeiramente. Quanto a padrões de uso, oprincipal dado obtido foi a emergência de duas tendências principais.Uma delas mostrava os sujeitos aumentando seu consumo até o pontode saturação, seguindo-se então um processo de redução. Essa redu-ção era geralmente associada ao aparecimento de novos interessesacadêmicos ou profissionais. O outro padrão observado era mais durá-vel, elevado e estável, mas as autoras da pesquisa especulam que, nofuturo, esse uso também venha a seguir o curso do padrão preceden-te, onde o nível de consumo diminui gradativamente sem acarretarinterrupção. As autoras pensam também que, levando em considera-ção o fato de que se trata de uma população adaptada e integrada àsociedade, esse consumo elevado possa se prolongar ainda por muitotempo sem trazer conseqüências pessoais ou sociais mais sérias. Hátambém relatos de uso leve, prolongado e estável da maconha. Estes,embora quantitativamente poucos, apontam para a possibilidade deuma convivência com a maconha em que a “droga” tenha pouca rele-vância no contexto de vida do sujeito, de maneira análoga ao uso soci-al do álcool (Magalhães e Barros, 1988: 7).

Verificamos em nossas entrevistas períodos de interrupção voluntá-ria do uso da maconha. Em parte tal atitude se deve ao interesse emlidar com algum efeito desagradável que o usuário associe eventual-mente ao consumo constante da canabis. Parece também que, às ve-zes, os usuários reagem às reiteradas mensagens antidroga e preocu-pam-se em certificar de que não estão “viciados” ou sujeitos a algumtipo de síndrome de abstinência de ordem psíquica ou física, suspen-dendo o uso por dias ou semanas. Afora essas interrupções voluntárias,todos estão sujeitos aos período em que a maconha escasseia ou oca-sionalmente desaparece por completo do mercado. Como já salienta-mos, os entrevistados são unânimes em declarar que não experimen-tam qualquer sensação de mal-estar ou de “fissura” nessas situações.

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Nossos entrevistados não acreditam que a maconha seja preju-dicial a médio ou longo prazo. Alguns opinam que ela “faz bem” —um até teceu considerações sobre um possível efeito rejuvenes-cedor. Os partidários de que a maconha “faz bem” afirmaram que,com o passar do tempo, aprende-se a ter uma relação “saudável”com a erva. Os efeitos desagradáveis foram atribuídos ou apotencialidades já latentes no próprio usuário, ou a fatores de or-dem social resultantes da política oficial de repressão ao uso. Oprincipal exemplo desse tipo de efeito negativo seria a “paranóia”, omedo exagerado que tipicamente acomete certos indivíduos sob oefeito da canabis, atemorizados com a possibilidade de virem a cairnas mãos da polícia. Como já ressaltamos, essa visão da inocuidadeda maconha encontra respaldo científico em muitos dos estudosmédicos e psicofarmacológicos realizados recentemente.2

Hoje está bastante difundida a noção de que a maconha é relati-vamente inócua, mas permanece um grave receio. Diz-se que éuma “droga liminar” ou “o primeiro degrau na escalada para o ví-cio”. Argumenta-se que o seu uso levaria a uma dependência e auma eventual tolerância. Depois de se viciar na canabis, o sujeitose tornaria insatisfeito com o gradual desaparecimento das sensa-ções prazerosas oferecidas inicialmente. Passaria então a procu-rar outras “drogas” cada vez mais fortes e perigosas.

A questão da tolerância à maconha já foi tratada acima: suaconstatação científica é escassa e os usuários entrevistados, em-bora registrem tolerância para uma amostra específica da planta,não deixam de sentir efeitos prazerosos com erva de outra proce-dência ou, então, após um breve período de abstinência.

Apesar de nossos entrevistados terem feito ou continuarem fa-zendo uso de outros psicoativos além da maconha, o padrão obser-vado é o de um ocasional desejo por variação dentro de uma gamade substâncias usadas numa mesma rede social: cocaína, ácidolisérgico (ou assemelhado) e cogumelos. Como assinalamos, todoseles demonstraram certa afiliação a um ideário que poderíamoschamar de “naturalista”, rejeitando enlatados e produtos percebi-dos contendo muita “química”, incluindo-se aí remédios convencio-nalmente encontrados em farmácias. A maioria enfatizou tambémsua repulsa a qualquer tipo de droga injetável.

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Convém lembrar que a “hipótese da escalada” se desenvolveubasicamente na América do Norte e na Europa e se voltava a umatentativa de explicar a origem da heroinomania, que se apresentacomo grave problema nesses lugares. Na defesa dessa hipótese sãocitados estudos como o de uma Comissão de Inquérito americana,que constatou que 50% dos consumidores de heroína haviam tidoexperiências precedentes com maconha.

Esse tipo de argumentação com base estatística é problemático,porém, por várias razões metodológicas. Em primeiro lugar, serianecessário inverter a pergunta. Seria um engano perguntar quantosheroinômanos teriam fumado maconha antes de usarem heroína.Mais próxima da verdade, uma Comissão de Inquérito canadenseconstatou que o alcoolismo é a forma mais freqüente de associaçãoa opiáceos, seguida do uso intenso de barbitúricos. Isso nos levariaa argumentar, como Arnao, que a canabis é geralmente a primeiradroga ilegal, mas não a primeira substância psicoativa utilizadapelos viciados em heroína (Arnao, 1980: 105).

Mais correto seria indagar quantos usuários de maconha pas-sam a usar heroína. Neste caso, dados americanos indicam umaincidência de 4% (apud Arnao, 1980: 101). Mas mesmo este resul-tado só poderia ser considerado significativo se a incidência da he-roína fosse avaliada do total da população.

Além disso, uma simples correlação estatística não pode ser consi-derada capaz de, por si mesma, demonstrar uma relação de causa eefeito, se não for confirmada por outros dados experimentais. Experi-ências recentes demonstram a falta de fundamento farmacológico parao argumento da “escalada”: foi constatada que os receptores cerebraisdos opiáceos são diferentes dos receptores do THC (Arnao, 1980: 102).

Os proponentes da “teoria da escalada” enfatizam também o papelde controle monopolístico do mercado das drogas ilícitas por gruposde traficantes que usariam a maconha como isca e, depois, causari-am uma escassez artificial a fim de passar a vender drogas pesadas.Nossos entrevistados acreditam que tal processo ocorre com relaçãoà cocaína, freqüentemente comercializada nos meios onde circula amaconha. Em certas ocasiões, a cocaína parece surgir em abundân-cia ao lado de uma escassez quase total da erva. Isso porém é usadopelos entrevistados como argumento para oficializar e regulamentar

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o mercado de canabis, tirando-o das mãos dos traficantes de substân-cias realmente danosas. Mas os entrevistados também colocam emquestão se a escassez ocasional de maconha não possa ser devidasimplesmente a um desinteresse dos traficantes pela erva em favorda cocaína, cujo comércio é mais rendoso3 .

Seja como for, o argumento de que a tolerância com relação àmaconha conduz inexoravelmente à procura de psicoativos mais for-tes ignora as diferenças qualitativas entre substâncias precariamenterotuladas como “drogas” – diferenças estas às quais os usuários sãobem atentos e cientes. Na realidade, os efeitos da maconha e daheroína são totalmente diferentes, o que torna bastante improvávelque se procure, na última, um produto cuja maior potência neutrali-zaria uma suposta tolerância à primeira. Não parece haver também,necessariamente, grande empatia entre usuários de uma e de ou-tra substância4. Com relação à maconha e cocaína, também há dis-tinção significativa entre suas propriedades: a maconha é umfármaco ambíguo, tendendo a desencadear um estado de relaxamen-to, contemplação e introspecção, enquanto a cocaína é um poderosoestimulante. Apesar de maconha e cocaína serem freqüentementeencontráveis na mesma rede social, cada uma tem seus adeptosque — embora dispostos a variar ocasionalmente, fazendo uso deambas, tendem a manter sua preferência por uma ou por outra.

Discutindo a questão da escalada Arnao enumera uma série defatores individuais, sociais e políticos que devem ser levados emconta: predisposição individual, fatores sociais e fatores políticos.(Arnao, 1980: 105 - 106)

“Predisposição individual - Certos indivíduos teriam umapredisposição à busca de alterações no estado de espírito atra-vés de substâncias psicotrópicas. A maioria das pesquisassobre o uso de outros psicoativos por parte de viciados emheroína aponta a incidência maior de consumo de álcool e detabaco do que de canabis. Vale recordar aqui que a teoria daescalada foi originalmente lançada por uma organização ame-ricana nos anos 30 com a argumentação de que a escaladaem direção à dependência física partia inevitavelmente dotabaco, passando em seguida, pela maconha e terminandonos apiáceos e na seringa (Verlomme, 1978: 32).”

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Na passagem de uma droga a outra é relevante o papel desempe-nhado pela desinformação a respeito dos diferentes efeitos e peri-gos representados pelas diversas substâncias. Na Bahia, durante ocarnaval, por exemplo, é difundido o uso do chamado “cheirinho daloló”. Os foliões, em meio à animação da festa e inebriados peloálcool, freqüentemente se dispõem a aspirar qualquer substânciaque lhes seja apresentada num pano úmido, totalmente alheiosaos sérios riscos em que podem incorrer.

É relevante notar também que o descrédito em que caem as cam-panhas preventivas, que exageram os efeitos nocivos de substânci-as como a maconha, levam à descrença generalizada sobre os peri-gos reais apresentados pelas diferentes drogas.

Fatores sociais – A influência do grupo social em queocorre o uso da canabis pode ser determinante na possibili-dade de uso de outras drogas. Por exemplo, embora nos EUAnegros e brancos tenham o mesmo consumo de maconha,quando passam a droga mais pesadas, usam substânciasdiferentes. Nos guetos negros e hispânicos, a heroína seencontra próxima da maconha; entre universitários bran-cos de classe média, surgem os alucinógenos, e entre osjovens brancos de nível sócio-econômico baixo, asanfetaminas são muito populares. Entre os nossos infor-mantes, ao lado da maconha encontram-se mais costu-meiramente a cocaína, os alucinógenos, o lança-perfume eo “cheirinho da Loló”.

Segundo um boletim da Organização Mundial da Saúde, “o abusoda canabis facilita a associação de grupos sociais ou subculturaisenvolvidos com drogas mais pesadas como os opiáceos. A passagempara essas drogas seria uma conseqüência de tais associações, masdo que o uso da canabis em si” (Bulletin of the WHO n°. 32, 1965,apud Arnao, 1980).

Fatores políticos – O próprio status ilegal do uso e do mer-cado da canabis pode ser um fator de escalada, como já vimos.A criminalidade atribuída ao uso da canabis e de outras dro-gas estariam relacionadas a vários fatores:

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1. descrédito nas instituições – quando o sujeito constataque a maconha é menos perigosa do que diz a propagandaoficial, passa a desacreditar de toda informação veiculada so-bre drogas em geral e a ter menos respeito pelas outras insti-tuições sociais.

2. a classificação da canabis como droga – equiparando amaconha a outras substâncias mais pesadas, estas se tor-nam mais familiares e menos temíveis.

3. contato com o mercado ilícito de drogas – aproxima osconsumidores da maconha a outras drogas mais pesadas.

Arnao conclui por considerar que a escalada da canabis à heroínanão é determinada por características intrínsecas à primeira, maspor fatores individuais e sociais. Tanto o heroinômano dependentequanto a sociedade acham no conceito de escalada uma explicaçãoaparentemente válida para o uso de drogas mais fortes, o que tornadesnecessário procurar um entendimento mais profundo e talvez in-conveniente. Assim, os toxicodependentes, ao atribuírem à canabisum papel determinante no início do seu uso de psicoativos mais dano-sos, liberam-se da necessidade de analisar os complexos fatores sub-jetivos que estão freqüentemente na raiz de sua conduta. Para a soci-edade, a hipótese da escalada permite minimizar ou ignorar os com-plexos fatores sociais e políticos essenciais na difusão da heroína efornece o álibi para a repressão aos consumidores de canabis.

Finalmente, vale a pena considerar alguns dos resultados daaplicação da política holandesa que optou por tratar como lícita avenda de pequenas quantidades de maconha e haxixe a usuários.Como se sabe, naquele país um decreto delimitou, desde 1976, umadistinção entre drogas pesadas e drogas leves. Estas seriam acanabis e seus produtos e a posse de até 30 gramas destas é consi-derada ofensa sumária e não leva a processo criminal.

A posse de mais de 30 gramas de drogas leves ou de qualquerquantidade de drogas pesadas é considerada crime, assim como aimportação, exportação, produção, venda e transporte de drogas tantoleves quanto pesadas. Na prática, não se instauram processos cri-minais nos casos em que drogas leves são vendidas para uso pesso-

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al em certos cafés, previamente autorizados, conhecidos como coffeeshops, desde que certas condições estritas sejam observadas. Há evi-dência do sucesso da separação dos mercados no fato de que muitopoucos jovens que usam drogas leves na Holanda passam a usar dro-gas pesadas. A descriminação da posse drogas não tem levado a umaumento no seu uso (UNDCP 1996). As coffee shops pagam impostosformais produzindo abundantes fundos que são destinados à preven-ção e tratamento do abuso de drogas (Escohotado 1997:19). Estes con-tribuem para que a Holanda tenha a melhor rede de assistência domundo para alcoólicos e outros toxicômanos. Proporcionando assesso-ria e cuidados gratuitos a cerca de 90% desses casos.

Dados sobre o uso de canabis em Amsterdã entre 1987 e1994mostram que ele se manteve estável. Embora experiência na vidatenha subido de 23 a 29% da população, a prevalência do uso nosúltimos 12 meses e 30 dias permaneceu estável em 10% e 6%. Amédia de idade de início de uso também permaneceu estável, emtorno dos 20 anos e a idade quando uso foi feito nos últimos 30 dias éentre 15 e 35 anos. Fora dessa faixa o uso em Amsterdã é muito raro.

Quanto ao risco de escalada ao uso de drogas pesadas, nota-se umcerto “uso na vida” (4,2% de usuários de canabis usaram heroína,21,7%, cocaína e 7,9% ecstasy), apontando para um uso experimen-tal, mas os dados de uso nos últimos 30 dias, muito mais indicativosde um uso regular, são 2% para cocaína, 0,2% heroína e 1,5 ecstasy.Assim entre of usuários de canabis 98% não havia usado outras dro-gas no mês anterior ás entrevistas. Isso permite que se conclua queo alegado risco de uso de outras drogas, pelos usuários de maconhade Amsterdã, seja bastante limitado (Cohen 1997:87-8).

As opiniões dos nossos entrevistados se coadunam com essas idéi-as. Estão de acordo que a maconha não conduz necessariamente aoutros psicoativos, ressaltando que esse processo dependeria das ca-racterísticas próprias de cada indivíduo. Quincas (BA), Tereza (BA) eAdalberto (SP) afirmaram achar que o uso da maconha pode facilitaroutras experiências devido ao acesso que estabelece a usuários deoutros tipos de psicoativos. A experiência com a maconha ajudaria atirar a impressão negativa que se tem sobre o uso de “drogas” emgeral e talvez aguçasse a curiosidade a respeito das diversas formasde alteração da consciência obtidas pelo uso de outras substâncias.

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Todos os entrevistados declaram-se satisfeitos com o uso quefazem da canabis, mostrando-se “maconheiros impenitentes” e gran-des defensores do consumo da substância. Estas opiniões marcamum forte contraponto aos trabalhos realizados entre toxicômanossob tratamento e que freqüentemente abjuram todos os “tóxicos”,culpando a maconha por colocá-los no “caminho do vício”, numaescalada irrefreável em direção a “drogas pesadas”. O contraste entreessas posições talvez seja devido às maneiras diferentes dos indiví-duos dos dois grupos se relacionarem com os psicoativos, as quaissó podem ser plenamente entendidas levando-se em conta as dis-tinções entre as substâncias utilizadas, o estudo psicológico dosindivíduos e o contexto sociocultural de suas práticas.

Notas

1 Segundo a matéria jornalística “Maconha: um mapa”, a maior parte da maco-nha consumida no Brasil apresenta níveis bastante baixos de THC: de 0,5 a 3 ou4%. Segundo E. A. Carlini, “uma única vez analisamos uma amostra de maconhaque apresentou uma concentração de THC de 10%” (Caos, n.º 3, p. 64).

2 Carlini, por exemplo, considera que, do ponto de vista físico, é quase certoque o uso da maconha, mesmo crônico, não causa grandes distúrbios. Somentedois efeitos ocasionais estariam demonstrados acima de dúvidas: um efeitotaquicordizante de 20 a 30 minutos de duração após o uso da canabis e umaqueda na taxa de testosterona, com diminuição acentuada do número deespermatozóides no líquido seminal. Estes efeitos são reversíveis, voltando osvalores ao normal após a interrupção do uso da planta (Carlini, 1986: 72).

3 O valor elevado e a facilidade de transporte são, provavelmente, os princi-pais fatores que fazem do tráfico de cocaína um negócio mais atraente e rendosoque o da maconha. A cocaína dispõe, aparentemente, de uma estrutura de tráfi-co muito mais rica e monopolizada. A principal preocupação da polícia, atual-mente, também parece ser o tráfico de cocaína: “As investigações da PolíciaFederal seguem os rastros da cocaína, e os carregamentos de maconha sãoapreendidos acidentalmente, junto com a cocaína ou através de denúncias”(Caos, n.º 3, p. 66). Ver também a matéria “Alta nos preços de droga indicaaumento de consumo”. Folha de S. Paulo, 28-2-87, p.10.

4 Ver, por exemplo, Willian Burroughs relatando sua experiência com hero-ína em Junky (Burroughs, 1984). Embora cruzasse com usuários de maconhaem sua rede de relações pessoais, e tivesse sido um fumante intermitente,Burroughs dirige aos “fumetas” (maconheiros) alguns comentários ácidos, comoestes: “Maconheiros são gregários sensitivos e paranóicos. Se você ficar conhe-cido como “deprê” ou “corta-barato”, ninguém fará negócio com você. Logo vi quenão ia agüentar muito tempo essas figuras (...) Fumetas são uma raça de sociá-veis. Sociáveis de mais pro meu gosto”. Por outro lado, Burroughs é obviamentecrítico da visão que associa a maconha a danos físicos, crime ou violência.

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A maconha e a lei

Poucos entrevistados reportaram ter tido problemas sérios coma polícia devido ao seu consumo da erva. Porém, todos manifesta-ram temor a esse respeito, e alguns relataram histórias alarman-tes sobre corrupção policial e violência física e moral (às vezes, atésexual) sofridas por amigos nas mãos dos supostos “agentes da or-dem”, aos cuidados dos quais a atual legislação os expõe. São fre-qüentes também as acusações de que os próprios policiais estari-am envolvidos no tráfico e no uso da substância. Citam-se váriashistórias a respeito de policiais traficantes e usuários que, apesarde conhecerem a inocuidade da maconha, por experiência própria,abusariam de seus poderes para reprimir e chantagear.

No discurso dos usuários ocorre freqüentemente a inversão davisão tradicional da maconha como “o bandido”. Para eles, o grandevilão é o sistema social vigente e os valores hipócritas que promove;ou, numa outra formulação, uma cultura excessivamente racional ematerial onde há pouco espaço para percepções não-ordinárias.

Suas opiniões acerca dos reais motivos que levariam àcriminalização da maconha expressaram perplexidade. Vários falamnas possibilidades de altos lucros advindos da proibição, e são fre-qüentes os exemplos de corrupção policial. Alguns acreditam que ospróprios legisladores, quando não são diretamente beneficiários daclandestinidade do comércio da maconha, usufruem dividendos polí-ticos junto a um público cujo moralismo mal informado eles mesmocuidam de insuflar. O uso meramente eleitoral da “questão das dro-gas” é fato bastante conhecido atualmente, tanto no plano interna-

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cional — cujo exemplo máximo é a ex-primeira-dama norte-ameri-cana Nancy Reagan e sua “cruzada mundial antidroga”1 , quanto noplano doméstico — pode-se lembrar os ataques à campanha do entãosenador Fernando Henrique Cardoso à prefeitura de São Paulo em1985, baseados em suas opiniões sobre a inocuidade da maconha.

Esta postura de suspeita e questionamento, por parte dos entre-vistados, com relação aos motivos da criminalização da maconha,não deve ser desqualificada como reação interessada de “consumi-dores apologéticos”. Nossos entrevistados são, em média, relativa-mente bem informados, há considerável divulgação dos casos en-volvendo autoridades no tráfico de psicotrópicos ilícitos, e muitosestudiosos e autoridades reconhecidas têm advogado idéiascorrelatas. O advogado Nilo Batista, por exemplo, considera acriminalização da maconha a decorrência lógica de um sistemalegal que não atribui qualquer valor ao prazer e para o qual a saúdeestá na razão direta da aptidão de inserir-se no meio de produção,mesmo que através de um trabalho alienante (Batista, 1985:112).Yvonne Maggie (Maggie, 1985: 65), Michel Misse (Misse, 1985:50), Gilberto Velho (Velho, 1985: 89) e outros enfatizam o aspectocultural da questão, mostrando que a criminalização do uso dacanabis se deve menos às suas propriedades psicofarmacológicasque às suas ligações percebidas ou fantasiadas com grupos sociaisestigmatizados, como os negros, as camadas pobres da população ea “juventude rebelde” de classe média dos anos 60 e 70, oposta aosvalores familiares em torno da sexualidade e do trabalho.

Questionados sobre a relação da maconha com atos violentos ecriminosos, os entrevistados respondem com a noção usual de quea erva não cria nada, não induz o indivíduo a qualquer ato que nãoesteja predisposto. Observa-se ainda que a canabis, tendendo aprovocar relaxamento e contemplação, não propicia atitudes vio-lentas.

“Nenhuma droga altera nada de sua existência, nenhumadroga altera seu estado de espírito, ela só o torna mais evi-dente”. (Tieta, BA)

“A maconha é um calmante, como é que pode levar o indi-víduo a tomar uma atitude violenta? Eu acho que a maior

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novela, a maior historinha contada entre todas sobre a ma-conha é essa, de que ela induz violência. Não dá pra engolir,é ridículo”. (Joana, SP)

“Maconha levar ao crime ou violência? De jeito nenhum: Atépelo contrário: pode levar você a ser vítima”... (Adalberto, SP)

Sonnenreich (1982), ao fazer um apanhado dos resultados dasvárias pesquisas sobre a correlação maconha-agressividade, res-salta conclusões contraditórias, talvez porque tais investigações nãodiscriminem tipos de uso e de usuários, submetendo a um mesmorótulo indivíduos, modos e graus de consumo diversos entre si. Valelembrar que um grande difusor da idéia de que a canabis levaria àviolência foi Harry Anslinger, chefe do Bureau of Narcotics dos EUA.Na década de 30, o Bureau colaborou diretamente na divulgação derelatos jornalísticos falsos sobre crimes hediondos que teriam sidopraticados por indivíduos “enlouquecidos” pela maconha (Sloman,1983; Becker, 1976 a).

Todos os entrevistados se manifestaram favoráveis àdescriminalização da maconha. Alguns recomendaram a regulamen-tação do mercado, alegando que isso serviria para diminuir acriminalidade e a violência que existem em torno do tráfico e asforças de repressão não conseguem coibir. Tieta (BA) e Wolf (SP) su-geriram que seria bom poder comprar maconha em maço, industria-lizada. Adalberto (SP) e Joana (SP) pensam que a descriminalizaçãopoderia ser feita de forma gradual e, concomitantemente, fossemveiculadas informações honestas e desmistificadoras sobre o assun-to. Já Quincas (BA), embora também favorável à descriminalização,receia que a industrialização poderia acarretar alteração da qualida-de do produto, além de retirar de vez o “sabor do proibido” que deu àerva o charme da “marginalidade” e da “contestação”.

Entre os estudiosos do assunto, as opiniões não são consensuais.Alguns, como Nahas (1987) e Murad, insistem no contestável pres-suposto de que a canabis representa um grave perigo à saúde físicae mental. Dessa forma, eles se colocam intransigentemente con-trários a qualquer medida de liberação de seu uso.

Outros, como Carlini (1986) e Masur (1987), aprofundam a dis-cussão dos aspectos psicofarmacológicos e contribuem para demons-

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trar que o consumo regular da canabis é relativamente inócuo aoorganismo. Carlini pensa que o problema social, político e econômi-co representado pela canabis é de tal ordem que a parte científicaou farmacológica da questão fica obscurecida. Declarando-se favo-rável a uma mudança na atual legislação — que classifica qual-quer indivíduo apanhado com a erva ou como “viciado” (e portantocarente de tratamento) ou como “traficante” (merecedor de cadeia)—, ele deseja o desenvolvimento de uma compreensão legal maisadequada da figura do experimentador ocasional. Por outro lado,Carlini se coloca pessoalmente contra o uso da maconha em virtu-de de convicções de ordem política e social: a seu ver, o uso dacanabis anestesia na juventude a capacidade de reagir e protestarcontra as desigualdades e a estrutura político-social arcaicas e ul-trapassadas de países como o Brasil. Em apoio à sua opinião, Carlinirecorre a observações gerais sobre a correlação entre uso crescen-te de drogas e sistemas políticos que excluem a participação políti-ca da juventude. Ele retoma aqui, de maneira mais matizada, apolêmica tese lançada pelo sociólogo Luciano Martins, que estabe-lecia um nexo entre a difusão do uso de “drogas” no Brasil dos anos70 e a vigência do sistema político autoritário. Veio daí a expressão“geração AI-5”, para designar uma geração supostamente apolíticae alienada, mas que hoje já ocupa importantes postos na sociedade.

Já o advogado e ex-governador fluminense Nilo Batista é explici-tamente a favor da descriminalização do uso da maconha. Batistaargumenta que: 1. Os serviços policiais e judiciários são inaptos paralidar construtivamente até com dependentes físicos de “drogas pesa-das”; 2. É questionável a incriminação da autolesão, que pode serconcebida no uso de “drogas pesadas”; 3. A incriminação mesmo in-direta (como faz a lei brasileira) do uso de certos psicoativos éinconstitucional, porque conflita com convenções internacionais dasquais o Brasil é signatário e através das quais se comprometeu aministrar tratamento aos usuários de “drogas” (Batista, 1985).

Mesmo Sonenreich que, enquanto psiquiatra, crê que a maco-nha seja capaz, em certos casos, de levar à doença mental, afirmaque o problema pertence ao campo político — social e não pode serresolvido somente a partir da opinião dos médicos. Para ele, toda apopulação deve opinar a respeito. Falando como profissional, diz não

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acreditar que as leis punitivas contra o usuário possam atenuar omal eventualmente representado pelo consumo de psicoativos ile-gais, de modo que não as considera úteis. Sonnenreich acrescentaque é difícil entender a proibição da maconha enquanto o álcool éamplamente propagandeado e consumido (Sonnenreich, 1982: 166).

Abordando a questão do ponto de vista socio-cultural, a Associa-ção Brasileira de Antropologia (ABA) aprovou por unanimidade, em1984, uma moção que incluía o pleiteamento da criação de um gru-po de trabalho específico para discutir e divulgar estudos sobre ouso da Cannabis sativa em diferentes segmentos da sociedade bra-sileira, além de pedir sua descriminalização.2

Notas

1 Nancy Reagan conseguiu, através da organização da “cruzada antidroga”,superar a antipatia da opinião pública norte-americana a sua personalidade einfluência junto ao presidente Reagan, nos anos 80.

2 A seguinte moção foi aprovada por unanimidade na XIII Reunião da Asso-ciação Brasileira de Antropologia, em Brasília, DF, a 18.04.1984:

1º) Considerando que o uso da Cannabis sativa é prática tradicional emdiversos segmentos da sociedade brasileira, tanto entre populações indígenasquanto na zona rural e urbana;

2º) Considerando que as pesquisas científicas, tanto nacionais quanto inter-nacionais, relativas ao uso da Cannabis sativa, não comprovam que seu usoimplique dependência nem provoque obrigatoriamente danos sociais;

3º) Considerando que a experiência de outros países que adotaram políticaliberal quanto ao uso da Cannabis sativa revela menos prejuízos sociais e pesso-ais do que nos países onde seu uso constitui crime.

A Associação Brasileira de Antropologia decide:

1º) Promover a criação de um grupo de trabalho específico que reúna pesqui-sadores interessados em discutir e divulgar trabalhos sobre o uso da Cannabissativa em diferente segmentos da sociedade brasileira.

2º) Encaminhar ofício aos órgãos encarregados da repressão ao uso da Cannabissativa no Brasil, incluindo cópia desta moção, pleiteando imediata descri-minalização de seu uso.

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Atitudes com relação àscampanhas de prevenção

A questão do uso não-medicamentoso de psicoativos pareceter o poderoso dom de estimular noções fantasiosas de persegui-ção e catástrofe. Falando-se tanto com usuários quanto com aque-les engajados em trabalhos de prevenção, tem-se a freqüente sen-sação de total desconhecimento de cada parte a respeito das prá-ticas, atitudes e intenções da outra. Por um lado, os usuárioscostumam atribuir motivações puramente policialescas e repres-sivas aos técnicos de prevenção, ignorando que os tempos estãomudando e que hoje muitos destes, através de seu contato diretocom usuários e toxicômanos, já começam a ter uma visão maismatizada sobre o assunto, incluindo-se aí freqüentemente umanoção mais realista dos defeitos da maconha.

Pelo outro lado, é ainda comum a propagação da noção deque a “droga”, qualquer que seja, é um tipo de demônio pronto atomar posse do corpo e da alma do primeiro incauto que se apro-xima dela. Para os partidários desta opinião, todos que defen-dem posições menos alarmistas e mais tolerantes sobre a ques-tão ou teriam como motivação promover o lucrativo tráfico dedrogas ou então facilitar a dominação da nação por potênciasou ideologias alienígenas. Para tanto, defenderiam o uso de dro-gas visando a “alienação do povo”, a “corrupção da juventude”ou o “enfraquecimento da fibra moral”.

O nível de histeria é aumentado ainda mais pela propagaçãoda idéia mistificante de que o uso de psicoativos ilícitos é práti-ca quase exclusiva dos jovens, ignorando assim a grande pro-

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porção de usuários adultos e socialmente integrados como osnossos entrevistados. Isso facilita a recomendação de medidasrepressivas e invalida os protestos dos usuários que são dessaforma transformados em “menores” incapazes de tomar deci-sões próprias.

A intenção deste trabalho foi justamente o de mudar um pou-co este quadro e, através da apresentação de informações deta-lhadas e menos maniqueístas, desarmar os espíritos e permitir oestabelecimento de um diálogo mais frutífero entre ambas as par-tes, permitindo assim a promoção de medidas realistas e eficazespara evitar os danos graves que certas modalidades de uso dealgumas substâncias psicoativas podem de fato acarretar.

Assim, durante as entrevistas procurou-se também dar aten-ção à questão das campanhas de prevenção contra o uso indevidode drogas e como elas eram percebidas por esses usuários. Fren-te às dificuldades das atuais investidas nesse campo, buscou-se saber onde os usuários obtêm informações que julgamconfiáveis sobre o tema.

As fontes consideradas mais confiáveis são principalmenteamigos e conhecidos, com experiência própria de uso, certos au-tores como Huxley e Castañeda, que também escreveram a partirde suas próprias vivências, e algumas reportagens da grande im-prensa que são vistas como menos preconceituosas e pareçamtraduzir um conhecimento mais realista do “mundo da droga”.

Entre nossos entrevistados, em profundidade, alguns pou-cos mencionaram também certas pessoas que julgam mais ex-perientes e cuja atuação lhes inspira confiança. Vadinho (BA)foi o único a mencionar especificamente amigos médicos, en-quanto Joana (SP) disse que busca informações junto a pessoasque estudem a maconha. Todos, com maior ou menor ênfase,insistiram na importância de suas próprias vivências.

Em geral, a correspondência entre as opiniões proferidas pe-los que se atribuem perícia no assunto e a experiência vivida dosusuários parece ser o fator determinante para que estes estabele-çam uma relação de confiabilidade para com os primeiros.

Como fontes de informação menos confiáveis, surgem comdestaque certa imprensa considerada “discriminadora” e pro-

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gramas policiais de rádio e TV, cujo enfoque da questão é en-tendido pelos usuários como deturpador, “melodramático”, de-masiadamente maniqueísta e distante de suas experiênciasparticulares. As principais críticas dos entrevistados recaemsobre o maniqueísmo moralista, a simplificação grosseira e a“mistificação” dos efeitos da substância. Além da imprensa, sãovistos como praticantes desse tipo de informação desacreditadaas igrejas, professores de ensino básico, “pessoas simplórias”,“sem instrução” ou “muito deslumbradas” e as autoridades po-liciais. Uma argumentação comum em defesa da canabis é con-frontar sua perseguição com a legalização e ampla divulgaçãode substâncias como o álcool e o tabaco, vistas como mais noci-vas ou perigosas.

Olievenstein discute a questão do abismo das gerações e dadificuldade enfrentada pelos mais velhos em entender a “revo-lução da droga” e influenciar o comportamento dos jovens:

“Nesta revolução da droga, os adultos foram os últimos aser informados; os adolescentes experimentaram ou experi-mentam as drogas e sabem, pelo menos, quais os efeitos queas mesmas provocam. Eles lêem a literatura adequada. Pro-curam as informações necessárias e o fazem já há muitosanos. A experiência psicodélica, por exemplo, foi comentada edescrita centenas de vezes. Pouco a pouco, o clássico conflitodas gerações se transforma (e isso é evidente nos EUA) numabismo entre as gerações jovens que criam seus próprios sis-temas de valores – baseados especialmente em suas própriasexperiências – e os nossos valores, baseados na experiênciado passado. Como se tais valores não pudessem mais sertransmitidos. Nesse abismo entre as gerações, as drogas sãomais um sintoma, um discurso ao mundo, do que a causa”.(Olievenstein, 1980: 7)

Dessa colocação podemos apreender que, mesmo não aceitandoos valores dos jovens, os mais velhos não devem subestimá-los, con-siderando as suas opiniões infundadas e cientificamenteinjustificáveis. Olievenstein afirma, mais adiante, que talvez osadultos não entendam o que acontece com a juventude porque não

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sabem escutar e ver. Mesmo considerando “dramaticamente majo-ritários” os efeitos nocivos das drogas, ele escreve:

“parece que o importante é compreender que não se podeter, de forma alguma, uma concepção maniqueísta dos efei-tos dos produtos utilizados pelas gerações jovens”.

Weintraub também detecta uma falta de clareza nos entendi-mentos a respeito da maconha que se reflete na abundância deopiniões totalmente subjetivas adiantadas por religiosos, educado-res, autoridades policiais, médicos, assistentes sociais etc. Quasesempre a informação que se tem sobre a maconha é puramenteanedótica e, embora muitos sejam movidos pelas melhores inten-ções, não faltam os que se aproveitam do tema para finsautopromocionais. Isso pode ser perigoso pois, como diz Weintraub,o resultado prático de uma palestra incompetente é alienar os quejá têm experiência com a maconha e aguçar a curiosidade dos ain-da inexperientes. (Weintraub, 1983: 87 e 88).

Nesse sentido e a julgar pelas reações de nossos informantes, amaior parte das campanhas preventivas acaba fracassando ou sur-te efeito oposto ao pretendido. Segundo nossos entrevistados, taiscampanhas seriam baseadas em informações falsas, exageros, de-turpações. Seriam “uma palhaçada”, “histórias da carochinha”, pro-duzidas por gente que não sabe do que está falando, ou estão a ser-viço de forças externas (o ex-presidente arquiconservador america-no Ronald Reagan foi explicitamente mencionado por Gabriela ).Embora alguns achem que as campanhas poderiam ser úteis seesclarecessem honestamente sobre o uso da maconha e de outrospsicoativos, consideram que atualmente a maioria das informa-ções oficiais só serve para exacerbar o preconceito e “piorar” a situ-ação, incutindo culpas e promovendo o autoritarismo. Por outro lado,pensam também que as campanhas acabam por despertar a curio-sidade dos mais jovens, insuflando o gosto pela rebeldia e o desejode fazer algo proibido.

Também relevante à questão da prevenção foi a pergunta: “Vocêacha que há uma relação entre “caretice” e consumo de drogas?Você usa habitualmente o termo “caretice”? Procurava-se aí elicitaras representações dos entrevistados a respeito das diferenças per-

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cebidas entre usuários e não-usuários. Aproveitava-se também aoportunidade para testar o uso de termos relacionados à palavra“careta”, a qual muitos idealizadores de campanhas preventivistascostumam associar exclusivamente a não-usuários de drogas.

As respostas obtidas indicam que, para os entrevistados, ser ounão fumante deixou de ter qualquer significado mais amplo, o pró-prio termo “careta” é muito ambíguo e não mais se relaciona ne-cessariamente com o uso de drogas. Sua aplicação varia de acordocom o contexto, mas significa grosso modo alguém que é autoritá-rio ou fechado a experiências novas. Assim, os entrevistados afir-mam que há muitos “caretas” entre usuários de drogas, assim comoexistem muitos não-usuários que não são “caretas”. De qualquermodo, o sentido do termo é quase invariavelmente pejorativo, o quedeveria dar a pensar àqueles que orientam campanhas de preven-ção para promover a “caretice”, pensando assim valorizar um ter-mo considerado “jovem” para a abstenção de drogas.

Na verdade, quando alguma celebridade faz, como fez alguns anosatrás o cantor Roberto Carlos, uma afirmação pública de que é “ca-reta”, pode ser simplesmente considerado retrógrado e autoritárioe apenas comprometer sua imagem de ídolo perante os usuários,sem produzir qualquer impacto sobre o uso de psicoativos ilícitos.

Concluindo nossos pensamentos sobre campanhas de prevençãoao uso da maconha, fazemos coro às idéias do psicólogo da educaçãoPaulo Ronca que em sua tese de doutorado concluiu que o uso emlarga escalada da maconha em nossa sociedade é um fato consuma-do e irreversível. Sugere portanto que aos cientistas cabe agora aurgente tarefa de inventar um programa educativo para a maconha,com o claro objetivo de discutir com os usuários sua opção e como,onde, quando e, principalmente, quanto é possível fumar.

Segundo Ronca, infeliz é o programa, educativo que venha pre-gar a prevenção, pois “prevenir” sugere “impedir” e não se impede oque é definitivo. Deste deve-se falar abertamente comentando semmedo ou lamúrias. O programa, para ser útil, deve ter por base areflexão crítica sobre a lucidez e a responsabilidade social que en-volvem o convívio com a maconha. (Ronca, 1986 e 1987)

O saudoso Richard Bucher, psicanalista, pesquisador e estu-dioso da prevenção ao abuso de drogas, também via com olhos críti-

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cos grande parte das ações que se apresentavam como “preventi-vas”. Considerava-as como freqüentemente atreladas a propósitosideológicos inconfessos — como manipulações da população ou decertas camadas, imposições visando a proveitos econômicos ou polí-ticos. Segundo ele, para serem realmente operantes, deveriam levarem conta o conjunto das aspirações e dos anseios da juventude, in-seridos naquilo que ela tem de melhor: a ousadia de esperar e exigirmudanças. Tanto os alunos quanto os educadores e os pais de famí-lia deveriam assumir maior liberdade de ação para se engajaremcomo atores, apesar de todas as pressões sociais. Cabe a eles con-cretizarem-se quanto ao seu potencial reflexivo e criativo e respon-sabilizarem-se pelas ações formativas a serem desenvolvidas no con-tato com os jovens. É grande, portanto, a importância da educaçãoafetiva, filosófica e valorativa para opor-se ao adestramento instru-mental de abordagens de cunho hegemônico e repressivo

Somente essa abordagem poderia revelar toda a dimensão so-cial e existencial da problemática das drogas. Sem o confronto comessa realidade, não se entenderia a amplitude da questão, nemque ela faz parte de um contexto mais abrangente, abarcando o ca-minhar da humanidade a um destino incógnito, mas que depende-rá da sua conscientização (Bucher,1996;78-79).

A já mencionada abordagem de “redução de danos”, atualmentemais voltada para a prevenção de doenças infecciosas entre usuári-os de drogas injetáveis, pode oferecer indicações de uma maneiramais íntegra e eficaz de lidar com o uso da canabis; descartandoposturas meramente repressivas para enfatizar as complexidadesda questão e as diversas variáveis que moldam os efeitos do seu uso.Outro aspecto, normalmente escamoteado de forma indevida, é o fatode que transcorridas várias décadas desde o boom do uso da maco-nha entre jovens da classe média urbana, ocorrido nos anos 60 e 70,é mistificante pensar na população usuária como composta essenci-almente por “jovens”, ainda em processo de formação física e psíqui-ca. Hoje há também, entre eles, muitos adultos, como os usuáriosretratados neste trabalho, cuja maturidade e responsabilidade socialnão costuma ser levada em conta por campanhas preventivistas queinsistem em o tratá-los de maneira infantilizante e prepotente, ne-gando-lhes seus direitos de cidadania.

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Aspectos políticos darepressão às drogas

Muito já se escreveu acerca da “medicalização da sociedade”,isto é, do processo de imposição de certas normas que, sob a justifi-cativa de proteger a saúde pública, traduzem o propósito de exercerum controle mais minucioso sobre a população como um todo. Adiala(1986a) nos chamou a atenção para o papel crucial exercido pelosmédicos especialistas, sobretudo os psiquiatras, na criação de umanova representação das drogas e na incorporação dessa represen-tação pelo sistema punitivo do Estado.

O movimento pela criminalização das substâncias entorpecen-tes e de conscientização do público acerca do problema que elasrepresentavam começou nas últimas décadas do século XIX e deveser visto no Brasil dentro do contexto do processo de monopolizaçãodas práticas curativas pelos médicos credenciados e pelos recém-criados hospitais, hospícios e faculdades de medicina. Surgiu en-tão a medicina social que, deixando o campo hospitalar, passou atratar da comunidade, visando a manutenção da saúde através docombate às causas da doença e da especialização disciplinar dosagentes responsáveis por esse controle. Para essa disciplina, ascausas dos males no Brasil seriam decorrentes do clima tropical eda miscigenação racial, sendo portanto indicadas campanhas dehigienização social e planos de prevenção eugênica.

Pensava-se em termos de degeneração física, moral e social dapopulação, e a psiquiatria organicista difundia a crença de que oálcool e as drogas eram uma das principais causas de alienaçãomental. Assim o Código Penal de 1890 foi dotado de uma série de

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artigos que reforçavam o controle da prática médica pelos especialistasformados pelas faculdades, penalizando o exercício da medicina semhabilitação, a prática do espiritismo, o exercício do curandeirismo e aministração de “substâncias venenosas”. Durante os anos que se se-guiram foram-se estreitando as relações entre a política e a medicina eem 1934 foi acrescentada à lei a relação das substâncias consideradascomo entorpecentes e proibidas, incluindo-se aí a maconha.

Embora já conhecessem seu uso, os médicos haviam dado poucaatenção à canabis até então, devido ao fato de seu uso ser restritoao norte do país, e aos segmentos negros, índios e mestiços. Assim,a associação da maconha com a criminalidade e com a “escória dasociedade” marcou uma nova fase da campanha contra o uso ilícitode psicoativos. Em 1936 foi criada a Comissão Nacional de Fiscali-zação de Entorpecentes (CNFE), cujas atividades se voltaram emgrande parte à erradicação das plantações desse assim chamado“ópio dos pobres”.

Ao eleger a canabis como a “droga brasileira”, estabelecendo em1946 o Convênio Interestadual da Maconha, a CNFE criou a oportu-nidade de unificar, em nível nacional, a luta contra os entorpecen-tes. Em outro artigo, Adiala voltou a enfatizar a vinculação do cha-mado “Problema da Maconha no Brasil” à manutenção de estereóti-pos racistas e à consolidação de uma dominação política e econô-mica da população negra. Mostrou também sua contribuição para oprocesso de “normalização” da sociedade brasileira, permitindo aformação de um campo de delinqüência sujeito ao gerenciamentodo sistema punitivo (Adiala, 1986b).

Mas, se a preocupação das autoridades com o uso da maconhadeve ser atribuída mais a fatores culturais que à sua atuaçãopsicofarmacológica, não se pode deixar de lado o efeito das pressõesinternacionais exercidas sobre o Brasil nesse sentido. HenriqueCarneiro, um dos nossos entrevistados paulistas, militante da polí-tica estudantil e engajado em campanhas pela descriminalizaçãoda maconha diz:

“Minha tese é a seguinte: os EUA, depois da Segunda GuerraMundial, estabeleceu uma ordem mundial que foi selada comuma série de acordos. Vemos assim o de Bretton Woods, queselou a ordem financeira, o Plano Marshall que reorganizou a

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economia européia e a ligou a essa ordem financeira, a nívelmilitar a constituição da OTAN e também, a nível ideológico ecultural toda a campanha do American Way of Life. Foi todauma instauração de uma nova ordem mundial e foi justa-mente no pós-guerra de 1945 que se proibiu a maconha anível mundial. Isso se deu inclusive com a instauração daprópria ONU, que também seria uma espécie de ordem políti-ca internacional. Foi por iniciativa dos EUA e de outros trêspaíses, incluindo o Brasil, pegos para decorar, que se apre-sentou a moção na Assembléia Geral da ONU. Assim comohavia ocorrido com a Lei Seca, depois do pós-guerra deu-se acriação de toda uma economia paralela baseada no tráfico.Ela precisa ser clandestina para funcionar nesse circuito quedá um superlucro.” (Henrique Carneiro, SP)

Essa visão, embora se apegando a datas diferentes, reflete a ar-gumentação de Henman, para quem a onda de medidas legislativasadotadas a nível mundial contra as drogas, a partir de 1910, tevevárias finalidades. Por um lado, serviu para desacreditar sistemasculturais ou grupos étnicos renitentes à dominação pelas potên-cias ocidentais e seus sistemas de valores. Mais importantes doque essa ofensiva cultural, porém, seriam as considerações estra-tégicas como a afirmação da superioridade dos EUA sobre seus “de-cadentes” rivais europeus, através da demarcação de sua superio-ridade moral e de sua posição de principal poder ocidental. Isso fi-cou particularmente claro no episódio da querela sobre o comérciode ópio no Oriente, quando a Grã-Bretanha acabou tendo que cederàs pressões americanas para cessar suas atividades nesse ramo.(Henman, 1988).

Desde então, a política proibicionista mundial capitaneada pelosEUA em relação aos psicoativos levou à criação de poderosos gruposinteressados na perpetuação dessa “guerra às drogas”, tais como osespecialistas em repressão, os traficantes e setores doestablishment da saúde, que vêem aí uma oportunidade de aumen-tar seu campo de influência e ação, e a indústria farmacêutica quelucra com a substituição do uso de psicoativos ilícitos por remédiosde sua produção. Estes, além de caros, são freqüentemente maisdanosos à saúde que o “vício” que pretendem curar.

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Henman continua sua argumentação afirmando que o resultadoé um rápido enriquecimento dos grupos dispostos a participar de ati-tudes ilegais e o empobrecimento correspondente daqueles que semantêm atrelados à economia legal. Isso tem efeitos altamentedesestabilizantes nos países onde se concentra a produção de drogasilegais, privilegiando certos setores e enfraquecendo a coletividaderepresentada pelo Estado. Nesse sentido a guerra às drogas torna-se“subversiva”, uma vez que, apesar do investimento massivo no apa-relho repressor, a corrupção generalizada e a busca de lucros ilícitosterminam por minar a legitimidade dos governos. Esse enfraqueci-mento da credibilidade das instituições do Estado nas nações produ-toras do terceiro mundo serve aos interesses a longo prazo das gran-des potências mundiais, ao facilitar a dominação econômica e amanipulação política. A “guerra às drogas” tende a reforçar as insti-tuições ligadas aos pontos de vista americanos ao invés de incenti-var a formação de estruturas autônomas e independentes.

Além disso, essa “guerra” possibilita uma interferência maisdireta no equilíbrio de poder dentro de certos países, especialmenteonde já existe um quadro de conflito armado ou de sérios distúrbiospolíticos. Em situações de redemocratização ou de estabilidade polí-tica relativa, os aliados naturais das grandes potências ocidentaissão os grupos que defendem a manutenção de controles sociais se-veros como resguardo contra perturbações da ordem social que even-tualmente podem vir a ocorrer. Através de um controle da informa-ção que é passada a esses grupos, pode-se canalizar a repressãopara aqueles setores da economia ilícita que são percebidos comoameaças aos interesses das potências.

Freqüentemente, tais manobras são acompanhadas de campa-nhas propagandísticas alegando que os inimigos do sistema vigen-te são os grandes lucradores no narcotráfico. Tais campanhasmaniqueístas ignoram os relatórios dos próprios serviços secretosamericanos, que apresentam um quadro bem mais complexo dasituação onde, freqüentemente, também se vê um envolvimentono tráfico ilícito de drogas de poderosos membros do sistema gover-namental pró-capitalista e pró-americano (Henman, 1988 e 1985).

Nos últimos anos, o pretexto de dar combate ao narcotráfico temencoberto verdadeiras invasões de certos países da América Latina

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por forças americanas. Deixando de lado a sistemática de comba-ter o tráfico através do fornecimento de verbas e condições materi-ais a grupos independentes e governos aliados, o governo america-no tem agora uma frota de aviões e helicópteros para atuar direta-mente na América Latina. Esse esquadrão foi organizado com afinalidade de realizar ataques a laboratórios de cocaína e pistas deaterrissagem supostamente utilizadas por traficantes da regiãoandina. Outra estratégia, a de pulverizar com inseticida as planta-ções de coca da região, tem sido denunciada por entidadesambientalistas (apud Folha de S. Paulo – 13/10/1988). As possibili-dades que isso abre à ingerência estrangeira em áreas marcadaspor conflitos sociais e políticos são imensas, ameaçando seriamen-te a soberania dos países da América Latina.

O entrevistado Henrique Carneiro argumenta também que oreforço do combate às drogas no Brasil serviu para manter o poderdo aparelho de repressão montado durante a ditadura militar. Se-gundo ele, muitos dos agentes policiais envolvidos nas atrocidadese torturas praticadas contra opositores daquele regime, agora esta-riam envolvidos na repressão aos entorpecentes. Nesse novo cam-po de ação atuariam freqüentemente por conta própria, dando pou-ca atenção aos políticos que lhes são hierarquicamente superio-res. Assim, ao comentar a repressão exercida contra uma passeataque organizou em 1986, diz:

“Vai ver que eles (policiais do DEIC) resolveram ali, semconsultar nem o Montoro (o então governador de São Paulo),nem o Muylaert (o então Secretário de Segurança) nem nin-guém e utilizaram o poder que têm para ir ali e atacar. Podeser que em conjunção direta com a Polícia Federal que tam-bém é da camarilha do aparelho repressivo. Aliás você vê essefenômeno no DEIC e na Polícia Federal, também, dos setoresque eram da repressão política que agora fazem da droga a gran-de salvação da sociedade contra seus inimigos ideológicos.”(Henrique Carneiro, SP)

Para Gilberto Velho, após o fim da ditadura, atravessamos umasituação de crise dos padrões culturais e morais que davam sentidoa um certo estilo de vida. Em ocasiões como essa é comum aos mem-

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bros das gerações mais velhas, apegados aos velhos padrões, lança-rem acusações buscando invalidar as posições contestadoras dos in-divíduos das gerações mais jovens. Para tanto é útil a alegação de“doença mental”, uma acusação de alto poder de contaminação e queuma vez acionada implica elaborado ritual de exorcização envolven-do o aparato institucional e o saber oficial e que, com o respaldo da leicarrega consigo a possibilidade de coerção pelo próprio aparelho deEstado. Na sociedade brasileira, segundo Velho, dois tipo de acusa-ção mostram o funcionamento da idéia de doença mental como ele-mento explicativo e exorcizador: “subversivo” e “drogado”.

“Subversivo” serviu durante o período ditatorial para estigmati-zar os opositores esquerdistas do regime. Este, visto como perigosoe violento, seria uma ameaça à ordem estabelecida e agiria emconjunto com outros de igual inclinação. Mas as acusaçõesextrapolariam o campo da política. O “subversivo” seria também umaameaça à ordem moral; características atribuídas a ele como deser criminoso e agente de ideologia alienígenas, ateu, traiçoeiro,levavam ao questionamento de sua própria humanidade.

Já a categoria “drogado” percorre caminho inverso. Ambas sãoacusações totalizadoras, mas enquanto no caso do “subversivo” aacusação política contamina todo o comportamento, no caso do “dro-gado”, uma acusação inicialmente restrita ao campo médico e mo-ral, assume dimensões políticas. Além de “moralmente nocivo”,ameaçando assim os valores instituídos, ele seria presa das ma-quinações de forças estrangeiras que desejariam alcançar o con-trole do País através do domínio e do enfraquecimento da juventu-de. Assim, além de ser “doente mental”, o “drogado” seria uma ame-aça à família constituída, além de ser um parasita fugindo às suasobrigações e incapacitado para o trabalho.

Através dessas acusações desqualifica-se, portanto, aqueles quepor suas ações ou pelas opiniões que defendem põem em dúvidauma ordem e concepção do mundo, que até então vinha sendo vistacomo naturais e indiscutíveis (Velho, 1981).

Henrique Carneiro parece bastante ciente disso ao afirmar:

“Eu levo a questão para o lado político porque sempre tiveuma militância ligada ao movimento estudantil, e o consumode drogas há algumas décadas já faz parte da cultura da ju-

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ventude por um lado de afirmação da curiosidade intelectual,de curiosidade libertária inclusive, de poder dispor do própriocorpo, de poder conhecer sua própria mente. Isso fez com queessa prática cultural se transformasse numa das principaisáreas de conflito da massa da juventude com a repressão. Hojepode-se afirmar que é a principal área de atrito. A principalforma da polícia reprimir as pessoas na vida cotidiana é sobreo pretexto da droga”. (Henrique Carneiro, SP)

Podemos também ir mais além e, parafraseando o conceitofoucaultiano do “dispositivo da sexualidade” que a partir do final doséculo XVIII teria viabilizado uma ingerência do poder social navida pessoal dos indivíduos (Foucault, 1974), sugerir que não é for-tuito que hoje, quando se pensa em droga, logo surja uma associa-ção com sexualidade. Da mesma forma como a sexualidade foiproblematizada, hoje se dá grande ênfase ao perigo representadopelo uso das drogas recreacionais, das quais a maconha é uma dasmais difundidas. Sob o pretexto do controle à droga, professores,médicos, psicólogos e assistentes sociais podem interferir nos re-cônditos mais íntimos da vida familiar.

A mesma desculpa permite que policiais invadam domicílios,revistem e prendam cidadãos nas ruas e, em certos casos, atécometam assassinatos. São freqüentes e notórios os casos em queo combate à droga tem sido usado como pretexto para reprimirindivíduos que incomodam os poderosos por outras razões menosconfessáveis. Além de problematizações da droga e da sexualidadeservirem ambas como porta de entrada para o controle dos corpos,outra semelhança os liga: uma estranha “conspiração de silên-cio” entre usuários de drogas (até a lei é ocasionalmente invocadapara silenciar os que defendem de alguma maneira) convive comuma verdadeira explosão do discurso médico, psicológico, jurídicoe penal sobre o assunto. Discutindo a sexualidade do século XIX,Foucault refuta o que chama de “hipótese repressiva” mostrandocomo de fato o silenciamento vitoriano convivia com uma verda-deira incitação ao discurso sobre a sexualidade. Agora, com res-peito à questão das drogas, um processo similar parece estar emoperação.

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Como diz Carneiro:

“É uma campanha publicitária para criar um modelo deinimigo ideológico e um modelo de peste social. A campanhada AIDS é em cima de uma peste e agora a da droga também.É aquela coisa do inimigo insidioso, do inimigo que se infiltradentro das próprias famílias, é aquela coisa da peste, da coisaque vem de dentro”. (Henrique Carneiro, SP)

Nos últimos anos a questão da descriminalização da maconhatem sido tema de diversas campanhas e manifestações políticas eculturais. O tema tem sido levantado com regularidade, especial-mente no meio universitário. Revistas estudantis têm discutido asrazões e os efeitos da criminalização da maconha e em algumasuniversidades, como a Universidade de Brasília ou a UniversidadeFederal do Pará, foram organizados debates públicos que terminari-am sendo invadidos por forças policiais que alegavam que tais reu-niões precisariam do aval do Conselho Federal de Entorpecentespara poderem acontecer. O ferimento que isso implica ao conceitoda autonomia da universidade não tem passado despercebido àsautoridades e professores dessas instituições que, na ocasião temreagido, sofrendo em conseqüência processos judiciais.

Mesmo quando o tema é levantado como parte de campanha eleito-ral, o candidato que o faz corre o risco de perseguição, tanto da partedas autoridades policiais quanto por seus próprios correligionários,que não consideram o assunto como sendo de seriedade.

Mas, apesar disso, o assunto tem sido levantado durante os últi-mos períodos eleitorais. O próprio Quincas, um de nossos entrevis-tados de Salvador, afirma que chegou a participar da campanha domúsico Galvão, quando este foi candidato a deputado federal peloPMDB da Bahia. Este usava em sua propaganda impressos seme-lhantes ao invólucro dos papéis de cigarro “Colomi” e, embora nãotenha se eleito, conseguiu arregimentar um entusiástico grupo decolaboradores e uma votação expressiva.

Mas a questão é muito delicada e a defesa da descriminalizaçãoda maconha freqüentemente leva à estigmatização do candidato.Exemplo disso é a maneira como, ao postular ao cargo de prefeito deSão Paulo, Fernando Henrique Cardoso foi chamado de “maconheiro”

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por seus opositores, devido ao fato de ter dado uma entrevista, al-gum tempo antes, em que pregava uma atitude mais compreensi-va sobre a questão e declarava ter fumado a erva uma vez fora dopaís e não ter gostado da experiência.

Até Fernando Gabeira, um dos mais insistentes advogados deuma revisão da postura oficial sobre a canabis, quando candidatoda coligação PV-PT na disputa pela governança do Rio de Janeiro,apesar de incluir discussões sobre a maconha na sua plataformade cunho ambientalista e libertário, perante uma reação popularconservadora, exigiu que o Jornal do Brasil desmentisse uma notí-cia que havia veiculado previamente em que dizia que ele defendiaa liberação da maconha. Já o deputado federal José Genoino, do PTde São Paulo, de atuação progressista na Câmara dos Deputados,tem defendido com freqüência uma abordagem mais tolerante daquestão das drogas sem prejuízo à sua imagem de político íntegro,coerente e batalhador.

Por outro lado, a questão das drogas é freqüentemente explo-rada de maneira demagógica e sensacionalista por políticos quevêem aí a possibilidade de angariar apoio de setores conservado-res da população, partidários de soluções repressivas para os pro-blemas sociais, qualquer que seja sua natureza. Assim, váriostêm conseguido se eleger fazendo coro ao tema da “guerra às dro-gas” promovida no Brasil em grande parte pelos consulados ame-ricanos, com o apoio dos setores conservadores da imprensa e dasociedade em geral. Em alguns casos, tem-se apelado para o pâ-nico que os psicoativos ilícitos suscitam entre setores da popula-ção para promover certos tipos de medidas repressivas que en-contram forte oposição na sociedade. Assim, defensores da penade morte, por exemplo, têm procurado tornar essa idéia mais acei-tável, propondo a execução de traficantes. Durante a elaboraçãoda Constituição de 1988 esse pânico foi manipulado com maiorsucesso para diluir a condenação movida pelos constituintes “pro-gressistas” à prática da tortura. Os “conservadores” conseguiramincluir ao seu lado como crimes inafiançáveis e insuscetíveis deanistia, o terrorismo, crimes hediondos e o tráfico de entorpe-centes, ampliando de tal modo essa categoria de crimes que elase tornou difícil de aplicar.

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Sobre o posicionamento dos partidos de esquerda a respeito daquestão da droga, Henrique Carneiro diz:

“Embora na Europa e nos EUA já exista um desenvolvi-mento das questões alternativas como a droga e os direitossexuais que fizeram com que a esquerda fosse obrigada adefender isso como uma demanda da emancipação social,no Brasil isso ainda não ocorreu. Mesmo na esquerdatrotskista, petista e em particular na Convergência Socialis-ta, onde militei durante oito anos, em última instância seconsidera que a droga é um fruto da decadência do capita-lismo. Apesar de defenderem formalmente o direito demo-crático ao consumo, assim como o direito a qualquer práticasexual, no fundo, no fundo, eles acham que é uma coisa de-cadente e que, portanto, precisa ser combatida ideologica-mente. Aí existe toda uma concepção que é quase de nívelético-moral, que é a concepção do sacrifício, ou seja, que oprocesso revolucionário exige dos militantes uma energiade sacrifício. Portanto você não pode estimular nada que leveà dissolução dos prazeres. Essa é uma tese de Lenin que em1918 se colocou contra a política feminista e a política sexu-al da juventude. Ele dizia que isso dispersava as energias,que a juventude tinha que se concentrar na militância paratomar o poder. Então aqui eles vêem a maconha como umacoisa marginal e não como um ponto do programa de eman-cipação, como uma demanda social.” (Henrique Carneiro, SP)

As campanhas pela descriminalização da maconha têm sido pre-dominantemente organizadas por setores estudantis, atingindo por-tanto uma população basicamente jovem e de classe média. Mas oconsumo dessa erva é bastante difundido pela juventude de todasas classes, e em suas memórias da campanha para governadorGabeira relata sua experiência com a juventude mais pobre:

“O episódio contribuiu para transformar a candidaturaem algo mais popular, levando a discussão a pontos ondenunca suspeitávamos que fosse chegar. Além disso, rea-briu uma brecha entre gerações numa área da populaçãoonde também não imaginávamos que existisse com a mes-

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ma intensidade que existe na classe média. Jovens su-burbanos, vestidos apenas de calção, saudavam-se nosbairros mais distantes, gritando: Vai liberar? Vai liberargeral?” (Gabeira, 1987)

Henrique Carneiro, em sua campanha para deputado, tam-bém encontrou uma reação similar entre jovens do operariadopaulista, onde é alto o consumo da maconha, especialmenteentre os que trabalham no turno da noite ou em condições in-salubres. Mas ele também encontrou dificuldades em promoveruma mobilização pela descriminalização que compara aos pro-blemas das campanhas pela legalização do aborto, onde as pró-prias mulheres que se submetem a essa operação, nas pesqui-sas, se declararam contra o aborto.

“A maconha, apesar de muito consumida, ainda não tema legitimidade de ser uma reivindicação política. As pes-soas ainda não entendem que você pode ir à rua fazer umapasseata pelo assunto, votar num candidato ou fazer umlobby na Constituinte em torno desse assunto. As pessoasainda têm isso como uma esfera do proibido, do marginal,do criminoso. Geralmente, em qualquer manifestação,mesmo que saibam que a polícia pode vir a prendê-las, aspessoas vão com aquele juízo moral seguro, tranqüilas deque o que elas estão fazendo é justo, é certo, e que a histó-ria assim como qualquer pessoa de bem vai reconhecerisso. Com a maconha não. A maconha ainda é caso de po-lícia. Então é preciso ser muito consciente e corajoso parase dispor a ir numa manifestação ou para votar no sentidode entender que esse assunto é uma questão prioritária.”(Henrique Carneiro, SP)

No mundo todo, o fracasso da política de “guerra às drogas”, pro-movida pelo governo americano, tem se tornado crescentementeevidente.1 As atividades econômicas relacionadas ao tráfico de subs-tâncias ilícitas são consideradas como a segunda principal ativida-de comercial do planeta, movimentando recursos somente inferio-res à produção de armas. Obviamente, uma suposição desta ordemé difícil de comprovar, devido à natureza clandestina desse tráfico,

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mas apesar de sua imprecisão ela nos dá uma idéia da dimensão dofenômeno que é raramente posta em dúvida.

Tampouco são animadores os dados sobre a proliferação do usodas substâncias psicoativas em geral. Atualmente nos deparamoscom uma situação em que, por um lado, há um uso muito difundidoe pouco criterioso das substâncias lícitas e por outro a disseminaçãoem escala planetária das ilícitas, freqüentemente utilizadas da ma-neira mais nociva. Em certos países da América Latina surge agorao consumo de heroína, até recentemente desconhecido na região, ealastra-se o uso da cocaína em novas modalidades, especialmentedanosas à saúde, como a prática de fumar crack ou “pasta base”. NoBrasil tornam-se comuns as operações, por parte do grande tráfico,visando substituir o costume de usar a maconha pela cocaína e ocrack, mais lucrativos e fáceis de distribuir clandestinamente, masapresentando riscos muito maiores à saude de quem os usa.

Cresce também a ameaça apresentada às estruturas democrá-ticas de muitos países devido ao poderio quase irresistível dos re-cursos oriundos do tráfico de drogas que, por sua natureza ilícita, sópodem atuar em oposição a todos os mecanismos reguladores daeconomia mundial. A movimentação e o investimento desses re-cursos levam à criação de um círculo vicioso de crescimento cons-tante, em que capitais ilícitos devem ser investidos em outras ati-vidades igualmente ilícitas, gerando mais recursos ilícitos. Assim,a economia mundial depara-se atualmente com um processoentrópico capaz de abalar as já frágeis estruturas existentes para ocontrole global da movimentação de capital.

Tentativas de dar conta desses problemas através de legislaçãorepressiva têm criado outras ameaças às liberdades democráticas.Desrespeito à soberania de países independentes, censura à im-prensa, invasões da privacidade como escutas telefônicas, quebrade sigilo bancário e até a exigência de testes aleatórios da urina defuncionários de determinadas empresas são justificados em nomeda repressão ao tráfico e ao uso de substâncias ilícitas. Até princí-pios jurídicos básicos, como aquele que atribui à acusação o ônusda prova, estão sendo colocados em discussão.

Vale a pena lembrar que não se trata somente de países tercei-ro-mundistas, como Peru, Bolívia, Colômbia e Panamá, mas até

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em países tidos como prósperos e democráticos, como Estados Uni-dos e Itália, constata-se a corrupção de políticos, magistrados, po-liciais, etc. por parte do narcotráfico e o cerceamento das liberda-des democráticas freqüentemente defendidos pelos paladinos da“guerra às drogas”.

Em contraposição a esse quadro de fracassos, a política de “ re-dução de danos” mais tolerante ao uso de substâncias ilícitas, vemse mostrando como uma forma eficaz de reduzir a disseminação dacontaminação pelo HIV em todo os países em que projetos de trocade seringas, tem sido aplicada de forma sistemática. Seus princípi-os já se estendem à prevenção de problemas causados pelo uso daheroína em alguns países que passaram a fornecer metadona e atéheroína a heroinômanos. Com a consolidação da Comunidade Eu-ropéia, o conseqüente fortalecimento econômico e político dos seuspaíses-membros pode prenunciar a possibilidade de uma contesta-ção mais firme da hegemonia mundial da política americana emdiversas esferas, inclusive no que tange à maneira de se fazer frenteao uso de substâncias ilícitas em geral e a canabis em especial.Neste sentido já se notam, em paises daquele bloco, movimentosde maior tolerância em relação ao uso de produtos derivados dessaplanta, tanto com a finalidade de alterar a consciência quanto paraobjetivos mais prosaicos tais como: a manufatura de tecidos, papele a produção de óleo.

Diante de tais perspectivas de mudança da conjuntura interna-cional, com um pouco de otimismo, poder-se-ia esperar que até oBrasil, viesse a rever sua política em relação ao uso dessa subs-tância. Porém desenvolvimentos recentes, tais como o engajamentodo próprio aparelho militar brasileiro numa pouco promissora cam-panha antidrogas, parecem sinalizar um crescente atrelamento aosditames da política americana de guerra às drogas.

Notas

1. Para uma análise do fracasso da política norte-americana de “guerra àmaconha” nos anos 80, ver Paixão (1994).

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Conclusões

Esta investigação sobre o meio sociocultural em que se dá o usohabitual e autocontrolado da maconha entre consumidores de ca-madas médias é um esforço inicial no sentido de aprofundar a com-preensão dos múltiplos significados atribuídos a experiências compsicoativos ilegais. Procuramos insistir na necessidade de umaabordagem que efetivamente inter-relacione os diversos ângulosque cercam a questão do uso de “drogas”. Acreditamos que o tipo deenfoque desenvolvido neste estudo possa ser aplicado em investi-gações semelhantes que tenham por objeto o uso de outrospsicoativos ilegais, feitas as adaptações e ressalvas indispensáveis.

A seleção de nossos entrevistados não se pautou por um critériode representatividade da população de usuários de maconha comoum todo. Conseqüentemente, não ambicionamos compor nenhumperfil estatístico. Utilizando redes de contatos já existentes, busca-mos simplesmente descrever as estratégias desenvolvidas por in-divíduos com uma longa história de uso de maconha para adequarsuas práticas às exigências de uma vivência “integrada” à socieda-de. Com isso, pretendemos também registrar a presença deste gru-po social que, embora numeroso, costuma ser ignorado por estudio-sos do assunto. Estes, em parte devido a circunstâncias de sua pro-fissão, tendem a concentrar sua atenção nas situações patológicasextremas de uso de psicoativos, que chegam a seus consultóriosmédicos e psicológicos ou freqüentam as delegacias de polícia.

Os critérios que empregamos para delimitar um conjunto deusuários de maconha como “socialmente integrado” foram bastan-

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te amplos e nos deixam abertos a certas críticas. Consideramosindicador de integração o fato de indivíduos exerceremcostumeiramente uma atividade profissional rentável o suficientepara poderem manter um estilo de vida condizente às expectativastípicas de seu nível de estratificação social e de sua faixa etária.Levamos também em conta os julgamentos positivos de seus paresa respeito de sua inserção no seu meio social.

Poderíamos ser acusados de termos investigado indivíduos pas-síveis de ser considerados como “desviantes”, “pouco ambiciosos”ou “inadaptados”, em última análise. A questão é que é impossívelestabelecer um conceito absoluto de “integração social” partindo deuma suposta harmonização individual a um conjunto de normassociais perfeitamente claras e definidas: tais normas “puras” nãoexistem nem nas chamadas sociedades “simples” tradicionalmen-te investigadas pelos antropólogos, nem poderiam ser encontradasnum meio urbano tão complexo, diferenciado e pontilhado de ruptu-ras e tensões como o nosso. De resto, a população brasileira é ex-tremamente heterogênea e qualquer critério demasiadamente res-trito de “integração” nos colocaria ao lado do alienista machadiano,que se viu na contingência de internar uma cidade inteira no seumanicômio para, finalmente, chegar à conclusão de que o“desviante” era ele. Basta notar que, num país com tão elevadosíndices de miséria e desemprego, o fato de alguém conseguir man-ter um padrão de vida de classe média já é excepcional.

Tratamos de pôr à luz práticas e representações destes consu-midores de maconha entendendo-as como modos informais de co-ordenar experiências individuais e regular o uso. Consideramosque, quando uma pessoa toma uma substância psicoativa qualquer,seja qual for a finalidade, suas experiências imediatas e subse-qüentes são influenciadas por suas sensações, idéias e crenças arespeito de tal substância. No processo mesmo de seu uso os con-sumidores desenvolvem noções por experimentação própria e ado-tando pontos de vista e sugestões vindas de fontes que julgamconfiáveis, noções essas que acabam tendo efeito normativo sobreo modo de consumo, compondo o que Zinberg chama de “controlesinformais”. No caso da canabis, a familiaridade desenvolvida atra-vés do seu uso em larga escala levou a uma internalização das

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“sanções sociais” e isso, aliado à baixa potência da erva geralmen-te encontrada no Brasil tem permitido um afrouxamento dos “ritu-ais sociais” a ela relacionados, sem acarretar uma perda de contro-le sobre seus efeitos.

Acreditamos ter mostrado como se forma e atua certa “culturada maconha”, nos termos de Becker, ou certo “consenso autêntico”,como diria Henman, baseado nas vivências e concepções dos pró-prios usuários. Ambos os termos poderiam ser aplicados ao resulta-do de nossa investigação, ainda que, em última análise, discorda-mos da expressão “consenso”. Reportando-nos novamente àheterogeneidade da cultura brasileira, parece-nos que ela tornaqualquer tipo de consenso quase impossível fora de âmbito da ciên-cia exata. No campo da investigação científica dos efeitos da maco-nha sobre a nossa psique, descobrimos que não há unanimidade.

Constatamos, porém, que há marcada coincidência entre as opi-niões de alguns dos seus mais ilustres expoentes e as dos sujeitosde nosso estudo. Tanto estudiosos quanto usuários consideram bas-tante relativa a nocividade da canabis no tocante a seus efeitosfísicos e psíquicos sobre o indivíduo. A tolerância, quando ocorre,desaparece depois de um breve período de abstinência ou com asimples mudança de qualidade da erva.

Apesar de os usuários da maconha se mostrarem freqüente-mente dispostos a experimentar outras substâncias psicotrópicas,têm bastante claro para si as diferenças entre elas, não só em ter-mos farmacológicos mas também em relação às expectativaspsicossociais que as cercam. Assim, a cocaína é associada à buscapela exaltação do ego e ao reforço do desempenho individual: os pró-prios rituais que cercam seu consumo enfatizam o individualismopossessivo. Já a maconha é associada a certo ideal de comunhãosocial onírica, e o espírito de compartilhar que acompanhava tradi-cionalmente o seu uso persiste hoje, mesmo que de forma atenua-da, na “roda de fumo”. Portanto não há sentido em postular progres-são linear entre as “drogas”, favorecendo uma escalada das maisfracas às mais fortes. Os indivíduos tendem a eleger uma substân-cia que se ajuste melhor a suas inclinações, vontades, disposições,interesses, necessidades, humores, permanecendo com ela prefe-rencialmente.

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Ao contrário das versões mais divulgadas, nenhum de nossos en-trevistados foi iniciado ao uso da maconha por perversos traficantesque, desejosos de aumentar sua clientela, tivessem abusado da su-posta ingenuidade, insegurança e confusão mental destes jovens.Na verdade, os iniciadores são em geral amigos, conhecidos ou pa-rentes. O acesso à canabis pôde ser feito através de uma simplesextensão das redes de relações pessoais. A iniciação pôde ser carac-terizada, em vários casos, como um ato de rebeldia e auto-afirmaçãoconcernentes a espíritos inquietos e inovadores, e não por uma sub-missão cega a um “culto da droga”. Passar a usar a maconha podeser, em muitos casos, uma forma de indicar que o jovem efetuouuma “travessia” em sua trajetória, dedicando-se a cultivar valoresdiferentes dos inculcados no grupo familiar. O contato com seus pa-res na “roda de fumo” serviu para lhes transmitir novas formas depercepção de si mesmos e do mundo. Em todos os nossos casos, essaexperiência é vista como referência importante para orientação daconduta dos sujeitos, mesmo que atualmente não emprestem ao atode fumar maconha qualquer significação especial ou transcedente.

É também através dessa rede de sociabilidade que os indivíduosdesenvolveram suas estratégias de consumo adequado. Trocandoexperiências, os usuários aprenderam a distinguir as atividadesem que a maconha atua como facilitador, inspirador ou comple-mento agradável, daquelas em que ela age como pertubador ouempecilho. No curso da carreira dos fumantes, verificamos que seestabelece progressivo autocontrole dos efeitos e sensações propor-cionadas pela erva, até seu uso integrar-se à vida cotidiana. A “rodade fumo” deixa de ser importante como ritual de controle, substitu-ída por sanções internalizadas e torna-se comum o uso solitário.

Estas considerações, porém, não devem obscurecer o importan-te aspecto lúdico da “roda de fumo”. Conforme aponta Cavalcanti, ohedonismo é o fator predominante no maconhismo coletivo, e seusveículos de aparição são os grafittis nos muros e nos banheiros pú-blicos, além de festas populares como o carnaval ou os concertos demúsica jovem (Cavalcanti, 1998). Do mesmo modo, nossas entre-vistas se passaram todas em tom jocoso e informal, e nossos infor-mantes fizeram questão de afirmar sorridentes estarem muito sa-tisfeitos com seu uso da maconha.

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Outra habilidade desenvolvida no seio da rede de sociabilidadeem torno do consumo da maconha é a aquisição do produto. É atra-vés desses grupos de pares que se dá o “pequeno tráfico”, baseadona cooperação, confiança mútua e baixa lucratividade, garantindoaos seus participantes segurança e relativa distância dos perigosdo mundo do “grande tráfico”.

Em contraste com o cotidiano das camadas populares urbanas,onde a violência assume formas novas e extremadas, a maioria dosnossos entrevistados leva uma vida relativamente pacata e distantede maiores ameaças físicas, comum às camadas médias. Mas o ca-ráter criminoso de suas práticas os leva a eventuais contatos com o“mundo do crime”, assim como ao risco de se tornarem vítimas dechantagens e outras formas de abuso de poder por parte de agentespoliciais. Em vista disso, previsivelmente, todos os entrevistados sãofavoráveis à descriminalização do uso da maconha, considerando aatual legislação hipócrita e autoritária ao permitirem a promoção desubstâncias como o álcool e o tabaco, enquanto ameaça com penali-dades severas um prazer que consideram inócuo.

As campanhas de prevenção, consideradas manifestações de umespírito de repressão ao prazer e disseminadoras de mentiras e máinformação, receberam o rótulo de “palhaçada”. Entretanto, algunsentrevistados pensam que as campanhas poderiam ter um papel mui-to importante a cumprir se divulgassem informações consideradasverídicas, sérias e confiáveis. Todos são muito críticos com relação àconfiabilidade das campanhas com as quais entraram em contato.

Assim, a título de conclusão, desejamos mais uma vez enfatizara necessidade se deixar de falar em “drogas” de forma genérica eunidimensional. A questão das drogas deve ser abordada em toda asua complexidade biopsicossocial, levando em conta as diferençasfarmacológicas, os estados psíquicos dos usuários, os diversos regi-mes de uso e o contexto sociocultural em que ocorrem. Sugerimosque as campanhas de prevenção deveriam encarar seu público alvocomo indivíduos capazes de atitudes sensatas baseadas em infor-mações convincentes. Os que trabalham nas campanhas de pre-venção freqüentemente constatam que seu público não é ignoran-te sobre o assunto e, muitas vezes, sabe até mais do que os própriosagentes de prevenção a respeito de certos detalhes do consumo e

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dos efeitos imediatos das substâncias consideradas tóxicas. Suaspráticas em relação ao consumo de substâncias psicoativastampouco é desregrada, sendo geralmente regidas por normas, va-lores, regras de conduta e rituais sociais semelhantes aos detecta-dos no estudos realizados nos EUA por Norman Zinberg entre seus“usuários controlados”. Nesse caso, a informação honesta e umaatitude serena e isenta de arroubos autoritários parece ser a me-lhor arma na busca pela tão essencial credibilidade.

Não se pretende aqui argumentar que os usuários já sabem tudosobre o assunto e que um trabalho de prevenção aos danos causa-dos pelo uso dessas substâncias seja desnecessário. Há, ainda, umgrande esforço a ser feito nesse sentido, como nos mostram os pre-juízos provocados pelo uso descuidado das próprias substâncias líci-tas. Mas, na busca pela credibilidade, esses perigos devem ser en-carados de maneira honesta e serena. A maneira mais eficaz delidar com a questão parece ser reconhecer sua natureza complexae cambiante, escapando da tentação de apresentar soluções geraise definitivas tanto para o uso da maconha quanto para o das outrassubstâncias psicoativas, tanto as atualmente lícitas quanto as ilí-citas. E em momento algum a prevenção aos danos causados pelouso de drogas deve ser confundida com o mero controle social, sobpena de tornar-se contraproducente, a exemplo da maioria das atu-ais campanhas.

Embora a legislação não deva ser vista como o instrumento prin-cipal no equacionamento da questão das drogas, ela tem um papelrelevante a desempenhar, contanto que leve em conta os múltiplosaspectos do problema. Para tanto, vale examinar a sugestão apre-sentada pelo jurista e membro do Conselho Federal de Entorpecen-tes Domingos Bernardo da Silva Sá. Ele propõe que o tema seja reti-rado do âmbito do direito penal e transferido ao do direito civil. Argu-menta que os penalistas modernos consideram que a pena de prisãonão serve nem em relação a comportamentos cuja tipificação comocrimes ninguém discute. No caso do consumo de drogas, cuja maté-ria se insere, principalmente, no âmbito da educação, da saúde e dacultura, áreas que importam, antes de tudo, às relações civis, e quecorrespondem às necessidades fundamentais da pessoa humana, ainteresses individuais pertinentes ao campo dos direitos da perso-

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nalidade, do direito de família e a outros ramos do direito privado, naesfera do qual deveriam ser resolvidos eventuais conflitos emergen-tes do universo das relações privadas. Seria, portanto, o direito pri-vado o foro adequado ao desenvolvimento dos limites pertinentes,dos mecanismos sociais de controle. A ótica repressivo-penal acabapor privar as instituições civis fundamentais — como a família, aescola e a empresa — do desenvolvimento de seus próprios instru-mentos limitativos da liberdade de agir, elaborados como forma deviabilizar a vida em sociedade. Seria aí, na experiência dos entre-choques, do diálogo e da indispensável transigência que se articula-ria a verdadeira, necessária e positiva “pedagogia dos limi-tes”(Sá,1993;14).A extrema complexidade do tipo de legislação preconi-zada não deverá ser aceita como pretexto para sua rejeição, já queexistem inúmeros exemplos de leis voltadas a questões comerciaise tributaristas, por exemplo, de igual ou até maior dificuldade.

Sua elaboração, assim como de qualquer programa que vise abor-dar a questão do uso de substâncias psicoativas, precisa deixar osgabinetes de alguns poucos especialistas ou de autonomeados“guardiões da saúde psíquica da nação”. Deve ser embasada empesquisas científicas e consultas aos diversos setores populacionaisenvolvidos, incluindo, além de médicos, psicólogos, policiais e ju-ristas, também membros dos Centros de Excelência credenciadosjunto à Secretaria Nacional Antidrogas, representantes da juven-tude, dos habitantes de favelas ou bairros dominados por trafican-tes, artistas, agricultores, donos de casas de espetáculo, clubes ouescolas, minorias étnicas, usuários, seus amigos e familiares, en-tre outros. Somente assim será possível deixar de lado as atuaisformas viciadas de pensamento e ação que se têm mostrado tãopouco eficazes na promoção de um verdadeiro controle do uso desubstâncias psicoativas, para buscar soluções verdadeiramente ino-vadoras e com maior possibilidade de sucesso.

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