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Ane Braga

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Uns poucos raios solares espremiam-

se entre a vegetação densa das grandes

árvores da mata fechada.

A cacofonia de diversos anacãs

encobria o som das cascas de Angelim-

pedra pisadas por suas botinas já

gastas pelo tempo.

Inesperadamente o rastro de sua

presa, a tanto custo seguido, fora

perdido. Recomeçara a chover.

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O CÍRIO

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Como caboclo forte que era aguentava

a alternância entre o calor

insuportável e chuva torrencial com

grande vigor.

Aquele outubro de 1700 estava quente

como o inferno.

Um fruto, talvez um ouriço, com

diversas castanhas em seu interior,

desabou sobre sua cabeça.

Decerto um coatá nervoso o tenha

lançado em sua direção para enxotá-lo

daquela área.

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Não que culpasse o pobre animal. Ele

próprio não sabia o que estava fazendo

no meio da mata àquela hora.

Plácido olhou ao redor e percebeu que

deixara para trás os grandes cedros e

angicos, e se adentrara na região das

castanheiras.

Andara muito pela mata.

O cansaço chegava até os ossos e seu

mosquete nunca pesara tanto.

Precisava urgentemente se refrescar

um pouco.

Sabia que andaria muito além das

castanheiras até encontrar ao menos

um veio d’ água.

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O CÍRIO

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Lembrou-se do igarapé.

Olhou o céu quase invisível pelas

copas das árvores. Estremeceu.

Necessitava chegar ao igarapé

Murucutu antes que escurecesse, pois

sua lamparina estava sem óleo de

copaíba e, desta forma, não teria como

enxergar na escuridão.

Lamentava ter perdido o rastro de sua

caça. Quem dera sua presa estivesse

às margens do igarapé esperando por

ele. Mas, qual! Uma vez desafortunado

sempre desafortunado.

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Ane Braga

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Filho de um português fugido da

península, não se sabe muito bem o

motivo, e de uma bonita índia

convertida pelos jesuítas, sua triste

sina começara bem cedo.

Homem de muita fé e pouca vergonha,

seu pai logo fora chamado pelo criador

numa noite de muita bebedeira e

nenhum juízo.

Plácido ergueu os olhos novamente

para o céu. A chuva parara.

Depois de muito caminhar, finalmente

chegara às margens do igarapé.

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O CÍRIO

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O mesmo que há anos tragara a vida

de seu pai bêbado.

Com amargura pelas lembranças,

sentou-se numa pedra e retirou as

botinas.

Velho tolo.

Deixara ao encargo de um menino, seis

irmãos e a desconsolada mãe.

Na pequena casinha de pau-a-pique, a

mãe cozinhava os brotos da terra que

as crianças buscavam na mata.

Aprendera a pescar antes mesmo de

escrever seu nome e caçara sua

primeira paca antes de contar até cem.

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Ane Braga

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A mãe, sempre zelosa, enfeitava a

pequena casa com suas esteiras feitas

de juncos.

Seus colares de sementes e seus belos

cestos eram vendidos nas pequenas

comunidades formadas por religiosos e

soldados, os mesmos que numa

manhã de mansa claridade, levaram

seus irmãos e sua mãe sabe-se lá

aonde, para o próprio bem deles,

enquanto ele estava na lida arando a

terra.

Mais tarde, enquanto vagava pela

mata, encontrara parte das vestes da

mãe.

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O CÍRIO

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Estavam cheias de terra e sangue.

De seus irmãos, nunca soube.

Estavam perdidos entre o céu ou o

inferno.

Quanto a ele, perdera o pai, a mãe, os

irmãos e a fé. Sua outrora fervorosa fé.

Plácido massageou os pés descalços e

foi se refrescar no igarapé.

A tarde estava se despedindo e ele não

poderia ficar muito tempo ali.

Enfiou a cabeça na água e afundou

seus maus pensamentos.

Ao levantar a cabeça imaginou ter visto

algo entre as pedras lodosas.

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Passou a mão pelo rosto molhado.

Olhou melhor.

De cenho franzido aproximou-se do

objeto. Era uma santa.

A imagem de uma santa.

Abismado, perguntou-se quem a teria

deixado lá. Talvez alguma alma

desiludida como ele. Ou quem sabe,

não fosse pura pretensão de sua parte

pensar assim, a imagem estava ali

esperando por ele. Para dar-lhe

incentivo e apagar suas mágoas.

Restaurar sua fé.

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O CÍRIO

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Pensando assim, Plácido retirou a

imagem da pedra lodosa, colocou-a

com veneração no chão enquanto

calçava suas gastas botinas e

pendurava seu mosquete atravessado

nas costas.

Pegou a santa com devoção e seguiu de

volta para casa.

O caminho de volta fora suave e

rápido.

De quando em quando Plácido ouvia o

sussurro da mata a seu redor e

inexplicavelmente o som parecia-lhe

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diferente agora. Mais reconfortante.

Melodioso. Divinal.

Chegou a sua pequena casa, não tão

pobre como a de seus pais, mas

igualmente humilde, e improvisou um

pequeno altar para a Santa.

Diante do pequeno altar, Plácido

elevou seus pensamentos e venerou a

Santa.

Ainda emocionado, recolheu-se a seu

pequeno quarto. Sem comer ou beber.

Pela primeira vez após tantos anos de

aflição, Plácido estava em paz.

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O CÍRIO

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A manhã seguinte trouxe consigo a

esperança.

Plácido se levantou, fez as abluções

matinais e antes de pensar em saciar a

fome que o devorava, seguiu até a sala.

Qual não foi sua surpresa ao deparar-

se com o pequeno altar vazio.

Olhou o chão. Nenhum sinal de queda

da Santa.

Verificou portas e janelas. Nada fora do

normal.

Desolado e já sem fome, pensou que

talvez não fosse digno de esperança.

Seu destino seria perambular pela

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O CÍRIO

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mata à cata de sementes e à caça de

animais para saciar sua fome.

Jamais seria alguém bom o suficiente

para ter uma família ou ser um pai de

verdade. O que seu pai jamais fora ou

se preocupara em ser.

Plácido pegou seu mosquete junto à

parede e saiu para o amanhecer

ensolarado.

A manhã já não parecia tão boa nem

os sons da floresta tão agradáveis.

Caminhou por um longo tempo e sem

que percebesse, estava novamente

junto ao igarapé.

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Na pedra lodosa do dia anterior, estava

inexplicavelmente a santa de suas

esperanças.

Eufórico, pegou novamente a santa e a

levou para casa.

Lá chegando, olhou para seu pequeno

e singelo altar.

Talvez a santa tivesse se ofendido com

tamanha simplicidade.

Mas, em nome de Deus, o que poderia

fazer para melhorar o altar?

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O CÍRIO

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Num lampejo, veio-lhe à mente o

manto de sua mãe.

Belo, colorido, sagrado. Presente da

filha do pajé Taipassu quando a mãe

entrelaçara seu destino ao de seu pai.

Correu até o baú de cedro há muito

esquecido num canto do quarto e, com

olhos úmidos, forrou seu pequeno

altar de pedra.

Cerimoniosamente colocou a santa.

Feliz, saiu para caçar.

Ao voltar no final do dia, sua santa

estava lá.

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Certamente o manto de sua mãe fora

apreciado.

Com a ajuda de seu braseiro, colocou

a pequena ararajuba para cozer.

Provavelmente a refeição fora obra de

sua santa, já que a pequena ave estava

morta de queda bem no seu caminho.

Banhou-se. Tomou café forte. Jantou.

Seguiu até o altar para agradecer as

dádivas do dia e foi se deitar.

O amanhecer traria novas

esperanças.

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Plácido acordou radiante.

Levantou-se e rapidamente fez as

abluções. Correu para a sala.

A Santa sumira. Novamente.

Chocado, não compreendeu o motivo

do novo desaparecimento. Não sabia

onde estava errando e resolveu voltar

ao igarapé.

A santa esta lá. No mesmo lugar. Entre

as pedras lodosas.

Inconformado e confuso encontrou

alguns seringueiros conhecidos e

contou-lhes o caso.

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O CÍRIO

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Incrédulos, os seringueiros queriam

ver se o caso era verdadeiro.

Plácido levou novamente a santa para

casa.

Os seringueiros acamparam ao sopé

da maçaranduba que fazia vezes de

divisa entre a mata e o suposto quintal

de Plácido.

Prepararam a própria comida e

dormiram no chão, confortados

somente pela pequena fogueira de

hipnóticas labaredas.

Da noite, fez-se a aurora.

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Mais uma manhã ensolarada se

avizinhava.

Santa do altar novamente sumira.

Plácido e os seringueiros praticamente

voaram até o igarapé.

Entre as pedras lodosas às margens do

Murucutu, a Santa.

Boquiabertos, os seringueiros

espalharam o misterioso caso da

santa que desaparecia da casa de

Plácido e voltava ao igarapé a todos

que encontravam.

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O CÍRIO

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O assunto chegou ao governador que

ordenou que a santa fosse levada a

seu palácio e lá mantida sob severa

vigilância.

Pela manhã, a santa havia sumido

novamente e fora reencontrada às

margens do Murutucu, na mesma

pedra de sempre.

Devotos começaram a surgir.

Plácido encontrou amigos,

reencontrou a fé, formou uma família.

Quanto à santa, teve sua vontade

satisfeita.

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Uma ermida foi construída no já

famoso igarapé da pedra lodosa.

Por vizinho, ganhou Plácido. Seu fiel

mais fervoroso.

Daquele dia em diante a santa seria o

Círio a iluminar e a dar esperanças a

todos que a procurassem.

Seus milagres seriam conhecidos e

repassados geração a geração,

incutindo nos homens a certeza de

que há sempre superação, não

importando os obstáculos.