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Escala no escritório de Álvaro Siza

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Page 1: Rio-Lisboa-Porto

18fevereiro 2003

Exclusivo por Andréa MagalhãesFotos de Christina Serqueira

Rio-Lisboa-PortoEscala no escritório de Álvaro Siza

Só de ouvir “Rua do Aleixo”, o taxista já pergunta: “As senhoras vão para o escritório do Dr. Siza Vieira?”. Nos livros, a arquitetura portuguesa é pré e

pós-Siza. Nas universidades lusitanas, o número de alunos de arquitetura já é igual ao número de arquitetos no mercado de trabalho, e muitos desses alunos confessam a influência do mestre. Ele é cultuado, reverenciado. É o Niemeyer de lá. Quatro meses antes do seu 70° aniversário, Escala viaja até a cidade do Porto para entrevistar este ícone da arquitetura mundial.

Assunto para conversar é que não falta, ó pá. São sete décadas de vida, quase cinco de arquitetura. Em pauta, os preparativos para o seu 70° aniver-sário; o prêmio Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2002, que ganhou pelo projeto do Museu Iberê Camargo, em Porto Alegre — a pedra fundamental já foi lançada e a inauguração está prevista para 2005; a ditadura de Salazar; a reclusão e a abertura da arquitetura portuguesa para o mundo; a globalização; o Guggenheim no Rio; a arquitetura portuguesa hoje; os jovens arquitetos; projetos para 2003.

Domingo, 9 de fevereiro de 2003, 12h. Escala no escritório de Álvaro Siza. Teve muito brasileiro achando que era piada de português. Não era. Antes de entrar, parada para observar o prédio e a famosa Rua do Aleixo. Sobre ela, poesia pura. Residências. Clima antigo, realçado pelos paralelepípedos.

O prédio, erguido no alto de uma encosta, com vista para o estuário do Rio Douro, é um capítulo à parte. Discreto, parece, num primeiro momento, simples demais para ser obra e endereço profissional de um dos maio-res arquitetos da atualidade, nome-chave da Escola do Porto. Mas apenas num primeiro momento. É preciso um olhar mais atento para distinguir-se nele a propriedade formal, o árduo trabalho de escala e a pluralidade de linguagens típica da arquitetura de Siza.

A planta em U cria um pátio interno voltado para o Sul, que articula os quatro pavimentos de escritórios — o edifício foi projetado e construído nos anos 90, com o fim de abrigar, entre outros, as sedes de trabalho dos três arquitetos portugueses mais reconhecidos; a saber, Siza, Fernando Távora e Eduardo Souto de Moura. O térreo, parcialmente enterrado, recebe ventilação e iluminação a partir da Rua do Aleixo, do grande pátio interno e de um outro menor.

Para melhor captar a luz do sol, Siza projetou os dois lados do edifício com formas diferentes: um deles tem planta semelhante a dentes de serra, com grandes janelas pivotantes. O outro, de frente para a rua, apresenta organização linear, com aberturas de proporções quase domésticas. A complexidade espa-cial exprime as variadas exigências dos usuários.

Frio de -10°C. Pontualidade brasileira — a equipe já estava atrasada cerca de 10 minutos. Hora de entrar e “viajar” no universo de Álvaro Joaquim Melo Siza Vieira, ou, simplesmente, do mestre Álvaro Siza.

O escritório de Siza fica na Rua do Aleixo

Nas fotos do centro, o prédio do escritório do arquiteto. Ele destaca-se entre antigas construções comerciais e residen-

ciais. Ao fundo, o estuário do Douro e o Oceano Atlântico

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Rio-Lisboa-Porto Escala: Bom dia, Sr. Siza, e obrigada pela entrevista. Ah, parabéns adiantados pelo seu aniversário, já que, a princípio, não deveremos estar aqui em junho. Siza: Muito obrigado. Quer dizer que a história do aniversá-rio vazou no Brasil?

Escala: É a globalização (risos). Siza: Pois é. Mas não quero saber dos preparativos. Prefiro trabalhar. Acho que deveria chegar uma hora na vida em que andássemos para trás. Contudo, no Brasil, eu sou um jovem arquiteto perto do Niemeyer (risos).

Escala: O humor é uma das suas características? Siza: Estou me lembrando de uma história engraçada comigo e com o Niemeyer. No fim da entrevista, eu conto.

Escala: Gostaria de começar, então, matando a curiosidade de um conselheiro da revista, o arquiteto Franklin Iriarte, que me pediu que lhe perguntasse sobre a apresentação de seus projetos. Siza: A Escala é uma bela revista. Vi a matéria da minha amiga Janete Costa. Muito boa. Sobre a apresentação, é um mal necessário. A concepção é o importante. Costumo trabalhar com maquetes em cartolina, em diversas escalas.

Escala: Qual a razão para esta opção? Siza: Maquetes de cartolina são rápidas de fazer. Elas poupam muito trabalho. As grandes são ótimas para controlar os espaços interiores. Para os leigos, elas faci-

litam muito a compreensão do espaço.

Escala: Quem fica encar-regado de fazê-las? Siza: Os jovens arquitetos do escritório. Eles fazem e refazem com uma rapidez impressionante. Ganha-se tempo. Quando vamos parti-cipar de um concurso, uma obra pública ou simples-mente precisamos de algo mais resistente, então, enco-mendamos maquetes de madeira de uma empresa daqui mesmo de Portugal.

Escala: O trabalho é sempre coletivo? Siza: No início, é mais pessoal. Necessito de concentração. Depois que já tenho a sua concepção, partimos para discussões com os outros especialis-tas, como os engenheiros especializados em estruturas e em acústica.

Escala: Alguma mania profissional? Siza: Preciso dominar o projeto como um todo mentalmente, sem ter que olhar para as maquetes. Poderia dizer que é uma mania.

Escala: O senhor me desculpe, mas há uma curiosidade minha que não vai embora: domingo é sempre dia de trabalho aqui?

Siza: Domingo, e sábado também. Sempre venho traba-lhar nos fins de semana, com um ou dois colaboradores. São os dias em que consigo me concentrar e criar. O telefone e a campainha tocam bem menos, e isso é uma dádiva.

O térreo do prédio do escritório de Siza é parcialmente enterrado

Maquete de projeto recente

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20fevereiro 2003

Escala: O senhor deu a entender que tem pouco tempo para desenvolver e apresentar seus projetos. É isso mesmo? Siza: É. Hoje não se tem tempo para se fazer arquitetura. É um absurdo. Tudo tem que ser rápido. Esta aceleração é uma das conseqüências negativas da globalização e da entrada de Portugal na Comunidade Econômica Européia (CEE). A informática também tem sua parcela nisso. O computador apressa a arquitetura. Normalmente, eu tenho seis meses para desenvolver o projeto de uma obra pública ou um projeto para concurso na Comunidade.

Escala: Na sua opinião, quais são as conseqüências posi-tivas da globalização e da entrada de Portugal na CEE, para a arquitetura portuguesa? Siza: Felizmente, há muito mais conseqüências positivas. O maior intercâmbio entre estudantes, maior troca de informação, ampliação de mercado de trabalho para os arquitetos, unificação de regulamentações de obra...

Escala: O senhor é um arquiteto globalizado. Tem obras na Europa, nos Estados Unidos, na América do Sul... Além de talento, o que é preciso para tanto? Siza: Par ticipar de concursos internacionais com bons projetos. O intercâmbio é sempre muito válido.

Escala: O escritório de um arquiteto que constrói nos mais diversos locais do globo precisa passar por mudanças em sua estrutura? Siza: Sim. É bom contratar, por período determinado, colaboradores do país onde será realizada a obra. Esses arquitetos estrangeiros serão pontes fundamentais entre o escritório e a cultura do seu país. E, fundamentalmente, transmitirão à equipe especificações do Código de Obras do seu país.

Escala: Qual a sua posição a respeito do polêmico Guggenheim do Rio de Janeiro, projeto do francês Jean Nouvel? Siza: Não vejo problema.

Escala: O senhor já teve problemas em algum país por ser um arquiteto estrangeiro? Siza: No Brasil mesmo. Tive dificuldade para inscrever-me no concurso do Museu Iberê Camargo. A seccional local do Instituto de Arquitetos do Brasil não queria autorizar a minha participação. O projeto venceu o concurso e ganhou o prêmio Leão de Ouro na Bienal

de Arquitetura de Veneza de 2002. As obras já começaram em Por to Alegre. Também me lembro de problemas na Espanha.

Escala: Há 50 anos, o senhor não deveria imaginar seu futuro dessa maneira. Como era o estudante de arquitetura Álvaro Siza? Siza: Um aluno que vibrava com a revolução pela qual passava a Escola de Belas Artes do Porto e com a reconstrução da Europa no pós-guerra. Era uma fase de muitas obras. Um período muito estimulante para nós, estudantes de arquitetura. Pensava em projetos o tempo todo. À escola chegavam, naquela época (1949-1955), os melhores professores, como o arquiteto Fernando Távora, que eu tive o privilégio de ter como professor. Carlos Ramos era o diretor da escola. A relação aluno-professor era muito forte, porque a diferença de idade era pequena.

Escala: Até pouco tempo atrás, o senhor lecionou na Escola de Arquitetura do Porto. Também foi professor-visitante na Ecole Polythechnique of Lausanne, na Univer-sity of Pennsylvania, na Los Andes School, em Bogotá, e na Graduate School of Design of Harvard University. Como o senhor vê os estudantes de arquitetura hoje? Siza: São privilegiados, porque têm muito mais acesso à informação do que eu tive. Internet, intercâmbios profissionais, livros de críticos de todo o mundo... Hoje, não tenho mais tempo para lecionar. Mas continuo tendo contato com os universitários em conferências e seminários.

Escala: O estudo da arquitetura mudou muito do seu tempo de estudante para cá? Siza: Sim. Principalmente no que se refere à oferta de escolas. Hoje, a meu ver, há um número excessivo de escolas — existem hoje 20 e poucas faculdades de

Maquete do Museu Iberê Camargo, em Porto Alegre

Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto

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arquitetura em Portugal, quando em 1990 havia oito —, muitas delas sem a qualidade necessária. Isso não é bom, mas é inevitável.

Escala: Nos livros especializados, fala-se em arquitetura portuguesa pré e pós-Siza. Como lhe cai saber que o senhor é tido como um marco? E mais: como lhe cai saber que muitos jovens optam pelo curso de arquitetura influenciados pela sua pessoa e pela sua obra? Siza: Tudo é uma questão de circunstâncias. Não dá para analisar sem pensar na história de Portugal. Nosso país passou por quatro décadas de ditadura, só terminada em 25 de abril de 1974. Naquela época ditatorial, Portugal vivia isolado do resto do mundo, fechado em si mesmo. Tínhamos grandes arquitetos — a maioria, infelizmente, já desaparecida —, mas eles não eram conhecidos fora daqui. Não eram publicados. Um exemplo era o excepcional Fernando Távora, primeiro arquiteto do nosso tempo que trabalhou em contemporaneidade. Um absurdo daquela época: o barroco brasileiro era muito mais conhecido no mundo do que o português. No período pós-ditadura, houve a abertura. Portugal foi ao mundo e o mundo veio a Portugal. Mudou tudo aqui. O país chamava a atenção, estava em evidência. Havia curiosidade em relação ao país. Os olhos dos outros países se voltaram para a arquitetura portuguesa, assim como para outros aspectos culturais. Quem fazia arquitetura na época ficou em evidência. Sobre o fato de jovens optarem pelo curso de arquitetura influenciados pela minha obra, fico feliz.

Escala: Como é sua relação com os seus jovens colaboradores? Siza: É interessante. Trocamos muitas experiências. A maioria dos colabo-radores fica no escritório por dois ou três anos, trabalhando em projetos

específicos. Depois, pede sua independência. Há uma cons-tante renovação do staff. A maioria encara o período no escritório como uma escola. Hoje, são 25 ao todo.

Escala: Muitos estrangeiros? Siza: Alguns. Os estrangeiros precisam da autorização do Governo para trabalhar no país. Aqui no escritório, respeitamos muito isso, simplesmente porque, se houver algum colabo-rador irregular, eu vou preso. E eu não tenho mais idade para fazer meus projetos numa cela.

Escala: Há chance de seus colaboradores o enxergarem como um avô? Siza: Deus me livre (risos).

Escala: Na sua opinião, a arquitetura portuguesa está ganhando novos nomes? Quais? Siza: Certamente, mas não gostaria de citar nomes desta nova geração. Sempre me esqueço de alguns, e me vejo em maus lençóis depois.

Escala: Para o senhor, qual foi o período mais marcante da arquitetura portuguesa? Siza: Foi o da aber tura política, depois da ditadura de Salazar. Nossos arquitetos e suas obras saíram da obscuridade. Construiu-se muito: prédios, novas estradas, monumentos... Não apenas em Lisboa e no Por to, mas também nas cidades do interior, que se desenvolveram bastante. Era o progresso. O lado ruim foi o muito que se destruiu do patrimônio.

Escala: Como o senhor vê a arquitetura portuguesa hoje? Siza: Ela está longe de ser brilhante, mas há autores e obras de grande qualidade. Há uma atualização e um intercâmbio com outros países, que considero bastante positivos.

Escala: O que é ser arquiteto para o senhor? Siza: Ser arquiteto é penoso. Cada vez mais, trabalhar numa profissão que exige o máximo da qualidade com o mínimo de tempo. Depois, não entendem porque prédios, como o do Porto, caem. Mas também é muito prazeroso. A minha maior alegria é pensar um espaço, vê-lo surgir e verificar que ele ficou bem no lugar.

Escala: Em quais projetos o senhor está trabalhando atualmente? Siza: Faço uma ampliação da Escola de Design em Pasadena, com Frank Gehry; o arranjo do Passeio do Prado, em Madri; duas torres em Roterdã; e um grupo de apartamentos em Lisboa, entre outros projetos.

Escala: Qual presente gostaria de ganhar este ano? Siza: Assim, eu vou confessar tudo (risos).

Escala: Conta a história engraçada do mestre Niemeyer? Siza: Vou contá-la, então. Todos queriam Niemeyer na EXPO’98, em Lisboa, mas ele não aceitou o convite, pois é público que morre de medo de avião. Pois bem, arrumaram uma videoconferência para ele par ticipar. Eu também fui chamado a par ticipar. No final do evento, transmitido para o mundo inteiro, a palavra volta para mim. Eu falo, e, em seguida, é dada a palavra para o Niemeyer, que diz concordar plenamente com o que eu falei. Ele parabeniza a minha pessoa e as minhas palavras. Então, termina o evento, mas a equipe técnica se esquece de desligar o microfone do Niemeyer e de tirar a imagem dele do ar. Ele se vira para o senhor que estava ao lado dele e dispara: “Não entendi nada que este homem disse”. (Risos). n

Museu de Arte Contemporânea de Serralves