rio cricaré e s história cultural de seu povo
DESCRIPTION
História do norte do Estado do Espírito Santo com enfoque à cidade de São MateusTRANSCRIPT
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
1
Agradecimentos
Sempre me senti inclinado a escrever
sobre a história das vilas coloniais do Rio
Cricaré (Kiri-Kerê: dorminhoco). No entanto,
nunca consideraria que um tema tão
corriqueiro em minhas aulas fosse exigir
tanto de mim. Confesso que reli o que pude
sobre a história de São Mateus e do Espírito
Santo. Muitas vezes fui além, ao tentar
elaborar conceitos novos e práticos para o
entendimento do grande público.
A experiência de lecionar por dois
anos em São Mateus foi de suma
importância. Entendi definitivamente que
contribuir para a construção de um
conhecimento é um prazer inigualável. Por
isso, sou grato pelas oportunidades que me
foram concedidas, durante o biênio
2004/2005, nas várias instituições
educacionais de São Mateus.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
2 2
Trabalhando no centro, na periferia,
em bairros distantes, como Guriri, e em
escolas particulares, pude me aproximar do
olhar que os mateenses têm da sua própria
História. Eles me ensinaram o que nenhum
livro poderia. Conviver com crianças, pré-
adolescentes, jovens e adultos no período
matutino, á tarde e na Educação de Jovens e
Adultos (EJA) no período noturno, me fez
refinar as técnicas e métodos em sala de
aula.
É por isso que só tenho a agradecer a
todos que fizeram parte da minha vida
profissional enquanto estive em São Mateus.
Agradeço à Ritinha, da Escola Morada do
Ribeirão, pelo carinho sincero; aos
funcionários e professores de todas as
escolas pelas quais passei, pela rica
convivência.
Em Vitória, novamente, agradeço a
minha querida mãe, pela paciência de ter lido
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
3
todos os rascunhos e, com a visão de um
leigo sobre os meandros mais técnicos da
construção do conhecimento histórico,
indicar o caminho das pedras para que o
texto permanecesse agradável, simples e
fácil.
Ao eterno amigo, que me acompanha
desde o primeiro dia de aula do curso de
História na UFES, André Luiz Bis Pirola, e
sua visão de rapina para a crítica
extremamente construtiva. Ao professor
Gilvan, por ter demonstrado interesse e
disposição para a orientação. E, por último,
ao professor Estilaque, que, sem imaginar, se
tornou há muito minha referência. A todos,
muito obrigado!
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
4 4
Prefácio
Sobre a história de São Mateus,
evidente que muito ainda deve ser
desvendado, corrigido, apagado e, sobretudo,
perdoado. É natural, quando não se possui
uma sistematização em pesquisas. Do que
temos, tentamos trazer o conhecimento para
as ruas ─ meta ambiciosa. Permitir que a
história de São Mateus pudesse ser lida por
qualquer um é o mesmo que tentar
popularizar Bach ou Nietzsche.
Sem pretensões ou arrogância de julgar
o trabalho livre de críticas, tentamos
transmitir, em poucas linhas, os aspectos
básicos da historia da cidade de São Mateus
de uma forma mais agradável, simples e fácil,
para que alunos, o povo e os turistas possam
ter a possibilidade de encontrar,
rapidamente, o papel do povo mateense na
História.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
5
Tendo certa experiência com alunos na
região, temos a certeza de que a maior
dificuldade que esta obra encontrará é a de
que ela seja simplesmente lida. Na verdade,
esta é a meta principal: que ela seja lida!
Com este foco, tentamos mostrar que a
história de São Mateus está relacionada com
contextos muito maiores. Por isso, no início
de todo capítulo há uma introdução
elucidativa das condições capixabas, do
Brasil ou do mundo. Nessas “introduções”
tentamos informar que o processo histórico
deve ser entendido como o conjunto de
“verdades” que cada povo ou indivíduos
carregavam em si e, conseqüentemente, o
contato entre eles durante todo o período da
colonização e do império.
Sempre tentando ao máximo a
imparcialidade ideológica, expomos as visões
de mundo de cada grupo social, para que o
leitor compreenda, de uma forma mais
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
6 6
ampla, como se deram os choques culturais
existentes no passado, principalmente com
relação a São Mateus. Assim, entender o
passado de São Mateus, para nós,
basicamente, é entender os tupis, os
portugueses, os botocudos e os africanos. É
conseguir se aproximar dos interesses e das
angústias desses grupos sociais e do
desenrolar desse contato, freqüentemente
agressivo.
Tendo a certeza de que a educação e o
turismo no município devem sistematizar o
passado do seu povo, trazemos este ensaio
didático-pedagógico para que o processo de
autodescoberta dos mateenses, de si
mesmos, se inicie de forma agradável,
simples e fácil.
Nesse rol de prioridades, esperamos
que as informações contidas sejam
analisadas sem paixões étnicas, religiosas ou
culturais para que, de uma vez por todas, a
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
7
socialização da informação no Brasil possa
gerar cidadãos livres e críticos, em busca de
conceitos próprios, para que decisões acerca
de seu futuro sejam efetivamente
libertadoras.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
8 8
Introdução
Escrever sempre é um grande desafio.
Escrever sobre o passado de São Mateus é
ainda mais desafiador. Percebi,
evidentemente, que não poderia menosprezar
nenhuma cultura que originou o povo
mateense, muito menos falar sobre uma São
Mateus de brancos europeus ou brasileiros
somente.
Os confrontos culturais ocorridos no
passado em São Mateus nos permitem
encontrar a visão de mundo de cada grupo:
tupi, botocudo, africano e europeu. O choque
cultural foi a resultante de um projeto
português e estes embates geraram
dificuldades para todos. No entanto, “os
atores históricos” tinham suas razões para
agir como agiram e devemos ser cautelosos
no julgamento do passado, julgamentos
sempre modelarão preconceitos.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
9
A linguagem informal foi
propositalmente concebida numa tentativa de
alcançar toda a população, incluindo alunos
e turistas. As questões tratadas neste texto
são indicações para um esclarecimento sobre
as identidades que formam a identidade do
povo mateense. Induzir uma convivência
harmoniosa no dias atuais é uma tarefa
complexa. Fornecer algum conhecimento é
ajudar a preparar um cidadão consciente.
Qual sociedade nós queremos para o futuro
de nosso país? Claro que existem
permanências tradicionais que ainda
imperam, no entanto devemos começar já.
Contornar as injustiças para que a exclusão
através da pobreza e da violência deixe de ser
conseqüência de todo esse processo
notoriamente discriminatório.
A publicação é mais que um projeto
pessoal, é uma contribuição. A busca por um
futuro melhor não deve ser um sonho
individual, uma utopia confinada em
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
10 10
cérebros, deve ser o resultado das ações
cotidianas de toda a sociedade. Dar sentido a
vida de um cidadão é dar as armas da paz,
dar o desprezo e a discriminação
preconceituosa e excludente é dar e ser o
crime.
Conhecer é mais do que possuir, é
poder. É poder ajudar, é poder mudar, é
poder produzir o bem no dia-a-dia. Onde há
conhecimento verdadeiro, há discernimento
luminoso e onde há discernimento, a
possibilidade de progresso humano se amplia
de forma fraternamente consistente. Sob os
desígnios do hoje, sejamos a força da paz e
da ajuda mútua constante por um mundo
melhor e menos desigual amanhã!
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
11
Parte 1
Tupis, botocudos e portugueses:
As primeiras culturas do Cricaré
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
12 12
Entendendo os americanos...
A maioria dos estudiosos acredita que
há mais de 40 mil anos, seres humanos
saíram do Norte da China e chegaram à
América. Nessa época, o nível dos oceanos
abaixou muitos metros e o gelo avançou
muito entre um estreito que liga a Rússia ao
Alasca, formando uma verdadeira ponte
congelada em pleno oceano. Por isso, os
filhos desses primeiros asiáticos exploradores
podem ser considerados os primeiros
americanos de verdade.
Há milhares de anos, esses primeiros
americanos se espalharam com suas famílias
por toda a América. Cada grupo foi se
desenvolvendo em lugares bem distantes um
do outro. Assim, para cada região diferente
existia uma forma de viver diferente. Várias
culturas se formaram. Nas terras congeladas
ao norte do planeta surgiram os esquimós;
na América Central surgiram grandes cidades
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
13
governadas pelos maias; onde hoje é o Peru
surgiu um grande império comandado pelo
povo inca; nas florestas da América do Sul
surgiram grandes nações de índios. Uma
dessas nações nós chamamos Jê, e a outra,
Tupi.
A família Tupi e a família Jê possuíam
milhares de tribos, e cada uma possuía um
nome diferente. Ao chegar ao Brasil, em
1500, os portugueses encontraram os tupis
em Porto Seguro, e não os jês. Os tupis
tinham expulsado os botocudos (Jê) para o
Interior. Em 1500, os índios da região de São
Mateus acabavam de sair de uma grande
guerra. Somente dois séculos depois os
botocudos conseguiram voltar para as terras
ao norte do Espírito Santo, pois os tupis
abandonaram essas terras. Podemos
perceber, então, que a guerra fazia parte da
vida do índio e que ele encarou com muita
coragem o português, um inimigo
desconhecido até então. A diferença toda é
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
14 14
que os portugueses trouxeram armas
poderosas que os índios não conseguiam
vencer e doenças que suas ervas e raízes não
podiam curar.
São Mateus e os Primeiros Habitantes
Quais foram os primeiros habitantes
das terras ao redor do Rio Cricaré? Quando
os primeiros portugueses fundaram o
povoado de São Mateus, em 1544, seus
vizinhos eram os índios tupis. Quatorze anos
depois, portugueses e tupis se enfrentaram
em uma batalha sangrenta pela posse de
uma terra ─ o Brasil ─ que os índios
descobririam que não seria mais deles.
Séculos mais tarde, os vizinhos foram outros,
os botocudos. Estes conseguiram resistir até
o século 20. Então, quais foram os primeiros
habitantes de São Mateus? Começaremos
com os tupis, pois eles habitavam as terras
do Cricaré quando São Mateus surgiu. Mas
como viviam os tupis daquela época?
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
15
Os índios tupis conseguiram
desenvolver o plantio da mandioca há
centenas de anos, e dela faziam vários
alimentos. Plantar era uma vantagem, já que
eles, com isso, não ficavam dependentes
somente do que podiam caçar ou pescar. Por
isso, só saíam de um lugar quando as
plantas começavam a produzir menos, devido
ao esgotamento dos nutrientes do solo. Eles
eram seminômades, isto é, não ficavam em
um lugar para sempre, mas também não
mudavam de lugar rapidamente.
Na aldeia tupi, existiam grandes
malocas, que eram barracões imensos de
madeira, cobertos de palha, que eles usavam
como casas coletivas. Todas as malocas eram
construídas em torno de um grande pátio,
onde aconteciam as festas, as danças, os
jogos, as cerimônias religiosas, as reuniões
para decidir algum assunto de interesse da
tribo e muitas outras atividades. Nas
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
16 16
malocas, as famílias viviam reunidas e
dormiam em redes de algodão que as
mulheres faziam. As fogueiras eram usadas
para cozinhar os alimentos e à noite serviam
para aquecer do frio, espantar insetos e
animais da floresta.
O pintor francês Debret, mostra uma cena cotidiana
dos tupis
Os homens acordavam cedo para caçar
em grupo. Na floresta, eles tinham técnicas
para pegar vários animais. Faziam
armadilhas, usavam zarabatanas enormes,
tinham uma mira incrível com arco, para
pegar animais em cima das árvores, e ainda
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
17
imitavam o som dos bichos para que fossem
atraídos e capturados. Nunca matavam por
prazer ou raiva, sempre para a alimentação.
Depois da caça, os homens voltavam para a
aldeia com comida suficiente para toda a
tribo, sem desperdício. Respeitavam a
natureza, prova disso é que o Brasil era uma
imensa floresta em 1500. Além do mais,
possuíam animais de estimação como o
macaco e o papagaio.
As mulheres eram muito trabalhadoras
e respeitadas. Cuidavam da casa, das
crianças, preparavam a caça e juntas
cozinhavam para toda a tribo. Nas horas
vagas faziam roupas e utensílios para o dia-
a-dia. Entre os tupis, elas eram também
encarregadas de cuidar do cultivo da roça de
mandioca. O resto do dia era usado por todos
para o lazer, para a conversa e para o
descanso. Os índios não batiam nas crianças,
que viviam livres pela aldeia, mas elas
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
18 18
„morriam de medo‟ da floresta e dos bichos
que nela viviam.
Criança indígena
Eles conheciam uma quantidade
enorme de plantas e ervas para curar várias
doenças. Muitas nós usamos até hoje. Todos
respeitavam muito o cacique, pois ele era o
chefe guerreiro, e também o pajé, que era o
homem que fazia contato com o mundo dos
espíritos. A religião era ligada às forças da
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
19
natureza: acreditavam em um deus, que os
tupis chamavam de Tupã. Na sociedade
indígena não existia pobreza, pois, entre os
índios, tudo era de uso da comunidade, isto
é, todos eram donos e ninguém era dono
sozinho.
Assim, os índios viviam repartindo tudo
entre eles. Todos os meninos eram
preparados para a guerra, pois sempre
lutavam com as tribos inimigas. Na guerra
dos índios eram usados o arco, a flecha e o
tacape. Mesmo assim, o objetivo não era
matar, mas capturar o inimigo. Em muitas
tribos, os guerreiros inimigos capturados,
que tinham demonstrado muita coragem na
batalha, ficavam presos na aldeia dos
vencedores, casavam e tinham filhos. Depois,
eram mortos em um ritual religioso muito
importante e seus corpos eram comidos, pois
acreditavam que a coragem dos guerreiros
capturados passaria para quem comesse um
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
20 20
pedaço da carne do morto. Era uma honra
para o prisioneiro ser comido nesse ritual,
pois isso indicava que ele tinha honrado a
valentia de seu povo e tinha sido considerado
um grande guerreiro pelos próprios inimigos.
Os mais valentes tinham sua história
contada por séculos entre os seus parentes.
Podemos encontrar várias provas do
passado dos tupis em São Mateus. De
tempos em tempos são encontrados restos de
vasos de cerâmica em locais diferentes da
cidade, pois os tupis eram ótimos artesãos do
barro. Também várias urnas funerárias já
foram encontradas, e muitas revelaram que
eles eram enterrados de cócoras dentro delas,
algumas vezes com conchas ou objetos
pessoais. Essas descobertas são
importantíssimas, pois esclarece mais sobre
a vida dos tupis antigos. Pesquisadores já
conseguiram provar que alguns dos objetos
tupis encontrados em São Mateus são de
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
21
quase cinco mil anos atrás. Isso significa
dizer que as pirâmides do Egito eram
novinhas nessa época e as civilizações
estavam ainda começando a se desenvolver.
No século 17, a região do Cricaré ficou
livre para que os botocudos pudessem voltar
para o litoral. Os tupis abandonaram a região
de São Mateus, devido principalmente às
doenças que os portugueses traziam e que
contaminavam seus corpos despreparados
para combater novas doenças, para as quais
os índios não possuíam defesas
imunológicas. No início da colonização
portuguesa, essas novas doenças européias
dizimaram milhares de índios tupis do Norte
do Espírito Santo. Foi uma importante arma
usada pelos portugueses contra os índios.
Temos relatos de índios que receberam, como
um presente dos portugueses, roupas
contaminadas por doenças altamente
contagiosas. Muitas tribos desapareceram em
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
22 22
razão dessa contaminação. Ainda no século
17, percebendo que seu povo estava
diminuindo, através desse novo tipo de
guerra dos portugueses, os tupis que
restaram preferiram deixar o Norte do
Espírito Santo.
Com a região praticamente desabitada,
os índios botocudos, que estavam no Interior,
ocuparam as florestas do norte até o litoral.
Os botocudos não tinham o hábito de
plantar; alimentavam-se da coleta de frutos e
vegetais, da caça de animais e da pesca de
peixes. Eles eram nômades, isto é, não
ficavam presos a um só lugar, estavam
sempre se deslocando em busca de outros
alimentos. Muitos botocudos não sabiam
nadar direito, mas eram ótimos construtores
de canoas. Eles viviam em acampamentos
que rapidamente poderiam ser desmontados
e remontados em outro local.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
23
Os botocudos que habitaram as terras
vizinhas de São Mateus eram guerreiros, e
não tinham medo do europeu, pelo contrário,
o europeu „morria de medo‟ dos botocudos,
que não aceitavam a presença de europeus e,
por isso, faziam uma guerra diferente:
ficavam espalhados nas matas, escondidos, e
suas flechas matavam qualquer um que
tentasse navegar pelos rios ou invadir suas
florestas.
Guerreiro botocudo
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
24 24
Durante séculos, os viajantes que
precisavam passar pelo Norte do Espírito
Santo usavam estratégias, ou até mesmo
índios aculturados que, em um ataque,
pudessem salvar as pessoas convencendo os
botocudos. A história de Linhares, por
exemplo, começou com um destacamento
militar para proteção contra os índios, que
logo foi completamente destruído por eles.
Somente no século 19 um pequeno grupo de
colonos conseguiu sobreviver aos botocudos e
fundar Linhares.
Os botocudos usavam círculos de
madeira nas orelhas e nos lábios, chamados
de botoque, derivando daí o nome botocudos.
Durante muitos séculos, a região Norte do
Espírito Santo foi considerada área
desconhecida pelos portugueses, pois
ninguém tinha coragem de conhecer essas
terras, já que os que tentavam não voltavam
para dizer o que tinham conhecido. Como os
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
25
botocudos do Rio Cricaré, os do Rio Doce
consideravam o português um inimigo. Com
vizinhos tão capazes, a existência de São
Mateus e Conceição da Barra pode ser
considerada, portanto, uma vitória.
Um raro contato entre brancos e botocudos
Os índios botocudos eram tão temidos
pelos portugueses que, no século 19, o
imperador Dom Pedro II proibiu o massacre
de índios em todo o Brasil. Porém, em virtude
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
26 26
do instinto guerreiro e a resistência dos
botocudos, ele abriu uma exceção: os
botocudos do Norte do Espírito Santo
deveriam ser dominados para a colonização
dessas terras, e “o massacre dos botocudos”
ele chamou de “guerra justa”.
Em São Mateus, podemos encontrar
vários sítios arqueológicos. Na região de
Pedra D‟água é comum cavar e encontrar
objetos indígenas de centenas de anos.
Vários desses objetos antigos podem ser
vistos no Museu de São Mateus, um ótimo
lugar para se saber um pouco mais sobre a
nossa História e admirar os objetos que
faziam parte da vida dos índios e dos
moradores antigos da cidade. Por isso,
quanto mais investimento em pesquisas
arqueológicas, mais artefatos antigos podem
ser encontrados, descobrindo-se novos dados
sobre os antigos habitantes da região do
Cricaré.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
27
Entendendo os europeus...
Tudo começou antes de Cristo, no
Império Romano. Os romanos dominaram a
Península Ibérica e chamaram aquela
província de Hispania. Construíram cidades e
grandes fábricas de potes de barro que eram
usados para transportarem líquidos e
alimentos por todo o império. Com a invasão
dos bárbaros e o fim do império, os romanos
que viviam na Hispania se misturaram com
esses bárbaros e, mais tarde, todos se
tornaram cristãos. Em 711, os árabes já
tinham conquistado quase toda a Península
Ibérica. Os cristãos ficaram espremidos no
Norte dessa península.
A Europa, no ano 1000, estava na
Idade Média. Grandes reinos e seus senhores
viviam em grandes castelos, com muitos
servos ao redor plantando para que todos
pudessem comer. A religião e a terra, na
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
28 28
Idade Média, eram os principais motivos para
disputas e guerras. Os árabes eram odiados
pelos Ibéricos, simplesmente por que eles
dominavam as terras deles e eram
muçulmanos.
Logo os cristãos começaram a derrotar
os árabes na Guerra de Reconquista.
Senhores feudais, cavaleiros medievais e seus
exércitos de servos uniram-se para expulsar,
definitivamente, os árabes da Península. Em
1139, os árabes foram expulsos da região que
se tornou Portugal. Mas os árabes ainda
estavam no Sul da península. Tudo era uma
questão de tempo. Em 1492, os árabes foram
expulsos de toda a Península Ibérica,
surgindo posteriormente a Espanha, ao lado
de Portugal.
Podemos perceber que os portugueses
tinham acabado de sair de uma guerra
sangrenta quando chegaram ao Brasil em
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
29
1500. Os portugueses tinham muita
experiência em guerras com inimigos
grandiosos. Eles viam os povos que não eram
cristãos como pecadores, e a guerra era a
forma de vencer a ignorância desses povos e
também espalhar as idéias cristãs pelos
territórios que interessavam a eles. Essa é
uma razão para a invasão e a cristianização
do Brasil.
São Mateus e os Primeiros Colonizadores
Quais foram os primeiros colonizadores
de São Mateus? Qual a história deles até
chegarem às margens do Rio Cricaré? Por
que escolheram este rio?
Bom, já que São Mateus só não é mais
antiga que Vila Velha e Vitória dentro do
Espírito Santo, comentaremos neste capítulo,
inicialmente, as descobertas marítimas
portuguesas, para conseguirmos entender o
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
30 30
motivo pelos quais os portugueses, no ano de
1544, escolheram o Vale do Rio Cricaré para
viverem com suas famílias. Boa viagem!
Após a descoberta de um novo
continente, ao oeste da Europa, em 1492, por
Cristóvão Colombo, os europeus voltaram
seus olhos para esse mundo desconhecido
para eles ─ a América. Os portugueses,
então, decidiram investir nestas novas terras
como os espanhóis. Nesta disputa por
territórios, foram firmados vários tratados
entre portugueses e espanhóis.
Aos portugueses, ficou definido uma
pequena parte do que hoje é o Brasil e aos
espanhóis todo o resto das terras que nem se
conhecia, pois não podiam calcular o
tamanho real da América. Só para ter uma
idéia, os portugueses chamaram a terra deles
de “Ilha de Santa Cruz”. Só depois que
perceberam que o território era grande
demais para ser uma ilha e por isso foi
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
31
escolhido outro nome: Brasil. O território
recebeu este nome devido ao pau-brasil, uma
árvore, na época, encontrada em grande
quantidade no litoral. Ela era muito usada
para tingir tecidos, pois do seu caule extraía-
se um caldo vermelho, cor de brasa.
Mas, como eram as viagens dos
primeiros exploradores ou colonizadores do
Brasil? As viagens eram muito perigosas nos
navios de madeira da época (caravela e nau).
Não existiam motores, eles eram movidos
pelo vento, que soprava nas velas. O Oceano
Atlântico era praticamente desconhecido.
Essas viagens, da Europa para a América
(para chegar ao Brasil), demoravam meses.
Nesses navios, havia sempre crianças
entre os marinheiros. É que alguns pais
pobres, de Portugal, vendiam seus filhos para
os comandantes dos navios que viriam para o
Brasil. Eles faziam isso porque não tinham
condições de sustentar os meninos, e o
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
32 32
dinheiro ajudava a alimentar os outros
irmãos por um bom tempo. Nessas viagens,
as crianças recebiam funções diferentes: os
pajens eram serviçais dos tripulantes e os
grumetes eram usados para qualquer tipo de
serviço a bordo. Como a viagem era muito
arriscada e perigosa, todos passavam por
muitas dificuldades. Os grumetes faziam de
tudo: remendavam redes, limpavam o convés,
faziam reparos nas velas do mastro,
carregavam e traziam o que lhes pediam.
Enfim, todo o tipo de trabalho pesado.
Dormiam no próprio convés, como os
marinheiros, sob o calor do dia e o frio da
noite, durante toda a viagem. Muitos não
agüentavam a viagem por causa do trabalho
duro, dos acidentes e da fome, pois comiam
biscoitos que apodreciam logo. A água
também era pouca e muitas vezes também
era podre e, por isso, muitos grumetes e
pajens chegavam a desmaiar de desidratação,
ou até morrer antes de terminar a viagem.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
33
Em 1502, uma frota de navios
portugueses, em expedição de exploração,
passou pela foz do Rio Cricaré e mediu sua
largura e sua profundidade, deixando uma
estaca de pedra para marcar o local. Américo
Vespúcio (por causa do nome dele o nosso
continente chama-se América) estava nessa
expedição que passou pelo Cricaré e por
outros rios do Brasil
Igreja Velha de São Mateus
Somente em 23 de maio de 1535 o rico
navegador português chamado Vasco
Fernandes Coutinho chegou por aqui para
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
34 34
começar a colonização portuguesa. Chamou o
lugar de Capitania do Espírito Santo, hoje
Vila Velha. Os índios, na praia, lançavam
flechas e demonstravam não aceitar o
desembarque dos portugueses, do navio
Glória, na terra deles. Por isso, Vasco decidiu
lançar tiros de canhões. Deu certo. Os índios
não tinham como enfrentar as armas
portuguesas e a única saída era abandonar
aquele local.
Os portugueses começaram a construir
as casas e preparar a terra para o cultivo da
cana-de-açúcar (exportada para a Europa
para a fabricação de açúcar). No entanto, os
índios não desistiram de lutar e sempre
atacavam a nova vila. Logo o medo começou
a tomar conta dos pobres portugueses, que
tinham sido convencidos a vir para uma terra
cheia de florestas, animais perigosos, e
índios, destinados a defender seu espaço a
qualquer custo.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
35
Esses portugueses viviam em casas de
madeira e barro (estuque) e não possuíam
móveis, somente objetos altamente
importantes para eles, como utensílios
domésticos e ferramentas. Eles eram quase
todos analfabetos e viviam na miséria quase
absoluta. Mas todos tinham um ideal: mudar
de vida e construir um mundo novo em um
lugar distante. E foi graças à coragem desses
primeiros colonizadores capixabas, que
enfrentaram enormes dificuldades, que
podemos nos orgulhar de viver no Estado do
Espírito Santo, com um povo que luta todos
os dias em busca de uma vida melhor.
Porém, a História nos mostra um
território com enormes dificuldades nos
primeiros tempos da colonização portuguesa
no Brasil. Com duas forças diferentes ─ de
um lado os índios querendo defender suas
terras dos poderosos invasores europeus, e
do outro lado os portugueses prontos para
colonizar e desenvolver uma região
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
36 36
considerada por eles como atrasada ─ não
podemos dizer quem tinha razão, muito
menos quem foi o errado na História. O
problema é que, para eles, não havia espaço
para conviverem no mesmo local, pois
lutavam pela mesma terra e pensavam muito
diferente um do outro. Cada um com sua
visão de mundo.
Os portugueses acreditavam que os
índios eram inferiores, por isso formavam
grupos armados, que entravam nas florestas
para escravizar índios (que eram usados nas
lavouras dos portugueses). Isso deixava os
silvícolas mais irritados ainda, pois entre os
escravizados estavam suas mulheres e
maridos, irmãs e irmãos, pais e mães, primos
e primas, sobrinhas e sobrinhos, netos e
netas.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
37
Uma tarde típica no histórico Porto de São Mateus
Com esse clima de guerra, os índios
passaram a atacar cada vez mais a Vila do
Espírito Santo (Vila Velha). Eles conheciam
muito bem todo o litoral do Espírito Santo e
já eram acostumados a fazer guerra nas
florestas. Foi assim que, em 1544, os índios
se uniram e quase dizimaram os portugueses
de Vila Velha, destruindo suas casas, os
engenhos de açúcar e suas plantações. Após
esse ataque, muitos dos colonos portugueses
fugiram para a vila de Campos (atual cidade
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
38 38
Rio Cricaré, as portas de São Mateus por séculos.
de Campos/RJ), enquanto outros foram
morar na nova vila criada na ilha de Santo
Antônio (Vitória), e outros foram para a
região do Rio Cricaré, no Norte do Estado,
fundando São Mateus e Conceição da Barra
simultaneamente.
É incrível a coragem desses colonos,
que não suportavam mais o ataque dos
índios em Vila Velha, decidindo habitar uma
região isolada e distante de tudo, no vale do
Rio Cricaré. Mas o que importa é que eles
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
39
conseguiram colonizar dois locais diferentes:
um, no litoral, Conceição da Barra, e outro,
sete léguas subindo o rio, São Mateus,
formando, assim, as comunidades irmãs.
No ano da fundação de São Mateus, em
1544, não existiam estradas como hoje;
também não havia cidade alguma por perto
do Cricaré. A vida era de quase isolamento
total do mundo. É óbvio supor, então, que, se
Conceição da Barra e São Mateus estavam
muito distantes de outros lugares habitados
pelos portugueses, restavam às duas se
unirem e conviverem harmoniosamente. Uma
prova disso é que várias famílias antigas,
portuguesas, existem nas duas vilas.
É fácil imaginar que os casamentos
aconteciam com freqüência entre as famílias
das duas cidades, aumentando, assim,
através do parentesco entre seus habitantes,
os laços emocionais entre as duas cidades.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
40 40
Os navios de outros lugares passavam
poucas vezes ao ano no Rio Cricaré. A vida
era muito simples e quase sem nenhum
conforto. Longe e isolados, barrenses e
mateenses conseguiram permanecer na
região bravamente. Mesmo com o ódio entre
índios e portugueses, a falta de suprimentos
e a dificuldade de produzir para vender para
outras regiões, os primeiros habitantes
mateenses foram bravos resistentes, que
avançaram por todas as dificuldades, sempre
deixando claro que eram grandes homens e
mulheres que estavam dispostos a fazer tudo
para que São Mateus prosperasse e se
tornasse a cidade linda que é hoje.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
41
Parte 2
Guerra e garra:
O desenvolvimento de São Mateus.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
42 42
Entendendo a colonização...
A região entre o Sul da Bahia e o Norte
do Espírito Santo sempre foi habitada por
várias tribos de índios. Em 1500, o
comandante português Pedro Álvares Cabral
chegou ao Brasil, onde hoje é a cidade de
Porto Seguro. Ele deu de cara com muitos
índios da nação Tupi. Os índios receberam
Cabral e seus homens muito bem. Os
portugueses abasteceram os tonéis de água,
carregaram os navios de comida, rezaram
uma missa e partiram para a Índia. Mas essa
“amizade” não demoraria muito. Logo os
índios perceberam que os portugueses não
vieram para visitar, e sim para ficar. Isso
causou um problema novo para os índios,
pois, se antes eles faziam guerra pela posse
das terras, com a chegada dos portugueses
eles teriam que lutar pela vida.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
43
Em 1500, os portugueses, que tinham
acabado de conquistar o lucrativo comércio
de especiarias na Índia e na China, não
deram muita bola para o Brasil, mas logo
começaram a colonizar este grande território.
Pense como um português da época: como
colonizar um lugar gigantesco com apenas
um punhado de portugueses? Pense! Esses
portugueses teriam que abandonar a Europa
para se enfiar em uma floresta desconhecida,
sem nada ─ nada ─, além de animais e índios
em pé de guerra. Ah, já íamos nos
esquecendo dos franceses, ingleses e
holandeses que queriam invadir o Brasil de
qualquer jeito. Foi uma tarefa monstruosa
para o pequeno reino de Portugal, que queria
“construir” o Brasil e lucrar com ele. Como
não achou metais preciosos no começo, foi
obrigado a produzir cana-de-açúcar e vender
na Europa. Com muita inteligência,
portugueses expulsaram todos os invasores e
piratas que rondavam a costa do Brasil.
Exportaram toneladas de melaço de cana
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
44 44
para a Europa. Porém, nem de longe
podemos dizer que foi uma tarefa fácil.
Assim, a guerra contra os índios não pode ser
encarada por nós como justa. Mas, para os
portugueses da época, era questão de vida ou
morte.
A Batalha do Cricaré
O famoso padre jesuíta José de
Anchieta escreveu sobre essa batalha alguns
anos depois do grande acontecimento. Um
grande sociólogo do Brasil já disse que ela é a
prova da incompetência portuguesa na
colonização do Brasil. Porém, todos parecem
não reconhecer o grande feito dos índios, que
foram mais do que guerreiros, foram heróis.
Essa histórica e importantíssima batalha
parece estar esquecida por todos nós nos
confins do século 16. É por isso que devemos
nos perguntar: o que foi a Batalha do
Cricaré? E por que ela aconteceu?
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
45
Bom, meses antes da famosa batalha,
Vasco Fernandes Coutinho, donatário da
Capitania do Espírito Santo, escreveu uma
carta desesperada ao Governador Geral do
Brasil, Mem de Sá (Salvador/BA), pedindo
que este lhe enviasse navios e homens para
enfrentar os índios, que já haviam destruído,
novamente, quase toda a Vila Velha e a Vila
de Vitória. Em 1558, Mem de Sá, então,
enviou seis navios e mais de duzentos
homens armados com arcabuzes (espingarda
antiga), sob o comando de seu filho, Fernão
de Sá. Eles partiram de Salvador, em direção
à Vitória, para socorrer o donatário e seus
colonos portugueses.
Antes, porém, pararam na Vila de Porto
Seguro, para reabastecer e planejar melhor o
ataque aos índios ao redor da Vila de Vitória.
Foi lá que eles receberam a informação de
que os índios estavam em grande número às
margens do Rio Cricaré. Sabendo dessa
informação valiosa, Fernão de Sá partiu
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
46 46
imediatamente com seus homens. Chegando
à foz do Cricaré, no dia 22 de maio de 1558,
passou pela pequena vila portuguesa,
Conceição da Barra, e entrou, com uma
caravela, pelo rio, até onde o Rio Mariricu
(mererike: fortaleza) encontra-se com o
Cricaré (kiri-kerê: dorminhoco). Nesse local, a
meio caminho de São Mateus, pelo Rio
Cricaré, Fernão de Sá e seus homens
puderam ver as fortificações dos índios.
Os índios usavam a tática dos
mereriques para as guerras. Eram seis
enormes muralhas circulares de toras, uma
dentro da outra, que formavam um imenso
forte. Os índios fizeram três desses fortes,
interligados por grandes corredores
protegidos. Eles, realmente, estavam
preparados para a guerra contra os
portugueses. Do navio, os portugueses
chegaram, em pequenos barcos, às margens
de areia fofa do rio. Em grande número, os
portugueses conseguiram destruir o primeiro
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
47
forte dos índios, que se reorganizaram nos
outros dois que ainda restavam.
Encontro do Rio Mariricu com o Rio Cricaré
Os índios atacavam com centenas de
flechas, matando muitos portugueses, e os
portugueses atacavam com armas de fogo,
matando muitos índios. Ao perceberem que
as armas portuguesas estavam dificultando a
vitória indígena, alguns índios foram
enviados às tribos vizinhas para convocar
mais guerreiros. Usando machados, os
portugueses conseguiram destruir o segundo
forte dos índios, fazendo com que estes
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
48 48
lutassem mais bravamente pelo último forte.
A desvantagem tecnológica das armas dos
índios era evidente. Mas a vantagem
numérica deles era bem maior, e mais
guerreiros indígenas chegavam a cada
minuto para a grande batalha.
Percebendo que vários soldados não
possuíam mais pólvora e que a luta corporal
entre os tacapes indígenas e as espadas
portuguesas não conseguiria derrotar a
imensidão de índios que chegavam a todo
instante das florestas, Fernão de Sá ordenou
que soldados fossem, nos pequenos barcos,
ao navio, que esperava no meio do rio, para
trazer mais munição. Assim, os índios, que
estavam no único forte restante, passaram a
ficar em grande vantagem contra os
portugueses, já que a pólvora não chegava e
os portugueses não eram tão numerosos
como os índios.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
49
Rio Cricaré
Uma chuva de flechas cortava o céu em
direção aos portugueses (que eram cada vez
menos), na sua luta contra os índios (que
eram cada vez mais). Com bravura, os índios
foram derrotando todos os portugueses que
restavam, e, com bravura maior ainda, os
portugueses enfrentaram aquela situação
desesperadora. Nos últimos instantes da
batalha, Fernão de Sá tinha somente dez
homens com ele para lutar. Percebendo a
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
50 50
situação gravíssima, Fernão ordena que seus
homens recuem, a nado, para o navio, que
estava esperando no leito do Rio Cricaré.
Com centenas de flechas sobre suas
cabeças, Fernão de Sá foi atingido por várias
flechas, e morreu. Somente três dos seus
homens conseguiram escapar ao ataque final
indígena. Após os sobreviventes chegarem ao
navio, a nado, os portugueses partiram,
rapidamente, em busca da proteção do
oceano, pois, assim, os índios não podiam
alcançá-los. Passando pela foz do rio Cricaré,
juntaram-se aos outros navios da frota e
partiram, com extrema tristeza e ódio, rumo
a Vitória, por terem perdido a batalha e o seu
comandante (Fernão de Sá). Não sabemos
exatamente o que aconteceu com o corpo de
Fernão, sem dúvida um grande guerreiro
português, que lutou bravamente até os
últimos segundos de sua vida para defender
o povo português nesta terra tão perigosa
naquela época para eles.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
51
A morte de Fernão de Sá foi notícia em
toda a Europa, e o sentimento de vingança
entre os portugueses, contra os índios,
aumentou ainda mais. Por outro lado, os
índios conseguiram uma importantíssima
vitória contra seus inimigos portugueses, que
estavam invadindo suas terras, matando e
escravizando seus parentes mais amados.
Essa grande batalha entre portugueses e
índios aconteceu entre as atuais cidades de
São Mateus e Conceição da Barra, em 1558.
Foi um marco na História da
colonização portuguesa no Brasil e uma
prova, para os portugueses daquela época, de
que os nativos não eram tão inocentes e
ignorantes como eles pensavam.
Entendendo os brasileiros...
Em 313, o imperador romano
Constantino proibiu que os cristãos fossem
perseguidos e mortos, pois, a partir daquela
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
52 52
data, não seriam mais acusados de heresia,
isto é, de não seguirem a religião dos
romanos. Assim, os cristãos puderam se
estruturar e organizar a Igreja Católica. Os
católicos tiveram grande responsabilidade na
conversão dos bárbaros europeus ao
Cristianismo.
Séculos mais tarde, toda a Europa era
católica. Os diversos reinos da Idade Média
eram praticamente independentes e
totalmente unidos pela mesma religião cristã.
A Igreja Católica, então, tornou-se muito
poderosa, e a única religião da Europa, até
1517, quando um próprio monge católico
protestou contra a prática de alguns católicos
que vendiam o perdão dos pecados em troca
de dinheiro e terras. Esse monge, chamado
Martinho Lutero, acabou fundando uma
outra religião cristã: o Luteranismo.
O papa Católico não aceitou perder
fiéis, e perseguiu os protestantes com a
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
53
mesma crueldade com que os romanos
tinham perseguido os cristãos do Império
Romano. Em meio a essa guerra religiosa
entre católicos e protestantes, na Europa, o
Brasil foi colonizado. Os jesuítas tinham uma
missão: assegurar que a América fosse
católica. Para isso, eles educavam os filhos de
portugueses e catequizavam os índios.
Em um mundo intolerante, as religiões
dos índios e dos africanos foram
ridicularizadas e perseguidas por cristãos
preconceituosos. O poder militar do reino de
Portugal garantiu que a única religião do
Brasil fosse a católica, enquanto os católicos
garantiram que Portugal fosse o único a ter o
direito de colonizar o Brasil.
Em virtude dessa união entre o rei e o
papa, hoje, nós, brasileiros, possuímos o
mesmo território, língua e a mesma cultura
de um modo geral, com algumas diferenças
regionais. O mais importante, porém, é que,
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
54 54
cada vez mais, entendemos que devemos
conviver com as diferenças e com a liberdade.
No Tempo da Mandioca
Os Jesuítas foram religiosos católicos
que vieram para o Brasil no início da
colonização portuguesa com uma missão:
catequizar os índios, isto é, transformar os
índios em católicos. Mesmo que os índios não
pedissem isso, os jesuítas passaram a formar
aldeias onde os índios eram ensinados a
deixarem de lado suas crenças tradicionais
para acreditarem nas crenças dos jesuítas.
Muitos índios só aceitavam ficar nessas
aldeias jesuítas, pois eram os únicos lugares
onde os eles não podiam ser capturados e
escravizados pelos colonos portugueses.
Os jesuítas acreditavam que os índios
precisavam mesmo dos ensinamentos
cristãos. Na prática, a conversão dos índios
ao catolicismo foi tarefa difícil. Muitos índios
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
55
adotavam a doutrina cristã, mas, na maioria
das vezes, só procuravam as aldeias jesuítas
quando estavam em perigo. Os adultos, em
sua maioria, não abandonavam as antigas
tradições indígenas, e quando cansavam da
insistência dos jesuítas abandonavam a
aldeia e nunca mais voltavam. Percebendo o
fracasso com os adultos, as crianças
indígenas passaram a receber toda a atenção
dos padres jesuítas. Elas eram educadas sob
as regras e condutas da vida européia e,
claro, da religião católica.
Com o passar do tempo, muitos novos
aldeamentos jesuítas se formaram. Os
jesuítas foram os maiores defensores dos
índios durante a colonização do Brasil. Eles
não aceitavam a brutalidade com que os
portugueses costumavam tratar os índios.
Várias vezes eles denunciavam os colonos por
sua crueldade, e muitas vezes brigaram pelas
vidas dos índios que estavam em suas aldeias
e fora delas. Nas aldeias jesuítas existiam
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
56 56
plantações e criações de animais para a
alimentação de todos. A construção de igrejas
e casas era uma forma de urbanizar a antiga
floresta. Por isso, muitas cidades brasileiras
de hoje, no início, eram aldeias jesuítas.
Igreja São Benedito, local exato da fundação de São
Mateus em 1544.
Para dar nomes portugueses aos locais
no Brasil que tinham nomes indígenas, era
comum batizar rios e vilas com nomes de
santos católicos. Por isso, no dia 21 de
setembro de 1596, dia do apóstolo São
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
57
Mateus, o padre jesuíta José de Anchieta
visitou a vila de portugueses do rio Cricaré e
a batizou de Vila de São Mateus. Aproveitou
para mudar também o nome do rio Cricaré
para rio São Mateus, e da pequena vila do
litoral, chamada Vila da Barra do Rio Cricaré,
para Vila da Barra do Rio São Mateus
(Conceição da Barra). Oficialmente, os
nomes mudaram, mas o povo continua
usando o antigo nome indígena do rio:
Cricaré.
Durante séculos, os jesuítas foram os
únicos que se dedicaram à educação no
Brasil. Na verdade, eles foram os primeiros
professores dos brasileiros. Mesmo nas vilas,
eram eles que educavam os filhos dos
portugueses. Informações importantíssimas
sobre a vida colonial brasileira podem ser
encontradas nos livros, cartas e poemas dos
jesuítas, que, com riqueza de detalhes, nos
tempo, os jesuítas tinham em seu controle
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
58 58
muitas terras aonde os colonos não podiam
entrar, e muitos índios que os portugueses
Igreja Velha, inacabada por causa da expulsão dos
jesuítas em 1759.
não podiam escravizar. Temendo esse grande
poder dos jesuítas, que, aliás, só aumentava,
o ministro do rei de Portugal, chamado
Marquês de Pombal, expulsou, em 1759,
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
59
todos os jesuítas do Brasil e, claro, de São
Mateus também.
Foi por isso que a Igreja Velha de São
Mateus não foi concluída. Muitas outras
construções ficaram inacabadas pelo Brasil,
outras foram destruídas, e outras,
abandonadas. Sobre a educação, poucos
podiam pagar professores particulares para
ensinar seus filhos a ler, escrever e contar.
Foi um tempo muito difícil para o ensino no
Brasil. É claro que, nessa época, a
esmagadora maioria das crianças e dos
adultos era totalmente analfabeta. Poucos
nem sequer pensavam em estudos ou
escolas. Na verdade, somente décadas depois
da expulsão dos jesuítas começaram a
aparecer algumas poucas escolas em
algumas vilas do Brasil. Porém, é com
tristeza que constatamos que até hoje o
Brasil possui analfabetos.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
60 60
Poucas décadas antes da expulsão dos
jesuítas, porém, uma notícia se espalhou:
alguns aventureiros, navegando pelo Rio
Cricaré e pelo Rio Doce, descobriram
algumas pedras preciosas no interior da
Capitania do Espírito Santo. Rapidamente,
muitas expedições partiram desses rios, em
busca de tesouros. Muitos aventureiros
enfrentavam muitas dificuldades atrás de
ouro e diamantes. Antes da expulsão, muitos
jesuítas também se aventuraram, com
centenas de índios, pelos rios adentro, na
esperança de conseguirem verbas para a
grande missão à qual se dedicavam no Brasil.
Logo, todos queriam encontrar a região
do interior da Capitania do Espírito Santo
onde diziam conter muito ouro e diamantes,
a chamada Serra das Esmeraldas. A noticia
passou a ser conhecida por todos, inclusive
na própria Europa. Percebendo a importância
da descoberta, o rei de Portugal ordenou que
fosse feito um relatório completo sobre todas
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
61
as características do Rio Cricaré (largura,
profundidade, localização). Dessa forma, a
pequena Vila de São Mateus passou a ser
conhecida e vigiada sob as ordens do rei de
Portugal.
Com as descobertas de grandes minas
de ouro e pedras preciosas no interior do
Espírito Santo (onde hoje é Minas Gerais), foi
proibido que pessoas do litoral navegassem
em direção às Minas pelo Rio Cricaré e pelo
Rio Doce, para evitar o contrabando de ouro
e o ataque de piratas. Outra medida
importante foi a divisão do Espírito Santo em
dois: uma faixa de terra no litoral continuou
sendo o Espírito Santo e o Interior passou a
ser Minas Gerais.
O Espírito Santo foi usado como
barreira para defender as minas dos piratas
estrangeiros e contrabandistas brasileiros e
portugueses. Por isso, os governantes
apoiaram a ida de pessoas para São Mateus e
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
62 62
o desenvolvimento da agricultura na pequena
vila. Assim, ao redor de São Mateus, a
mandioca começou a ser produzida em
grande quantidade. A produção da farinha de
mandioca deu tão certo que ela se tornou
famosa em todo o Brasil, passando a ser
vendida para todas as regiões como a melhor
e mais saborosa farinha brasileira. Os navios
chegavam carregados de produtos trazidos de
outras regiões do Brasil e de outros países, e
partiam com os porões carregados de farinha
de mandioca. A farinha de São Mateus foi
muito usada na região de Minas Gerais, no
Rio de Janeiro, Salvador e até exportada para
outros países do mundo.
A mandioca era um alimento que os
portugueses conheceram através dos índios,
que a plantavam e a usavam como alimento
diário. Durante todo o período em que o
Brasil ficou sendo uma colônia de Portugal, o
alimento básico foi, praticamente, a
mandioca e sua apreciada farinha.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
63
Praça São Benedito, local exato das primeiras casas de
São Mateus em 1544.
Os portugueses usavam muitos dos
conhecimentos dos índios para tentar ter
uma vida menos cruel neste “novo mundo”,
que era o Brasil para eles. Além dos
alimentos, alguns costumes como fumar e
tomar banho todo dia também foram
assimilados pelos portugueses que viviam
aqui. A própria língua dos índios tupi, foi a
maneira mais usada de se comunicar no
Brasil até 1782, quando o rei de Portugal
proibiu definitivamente a comunicação dos
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
64 64
colonos na língua dos índios e obrigou todos
a falarem somente o português.
Neste mundo ainda em construção,
onde as culturas se encontravam no dia-a-
dia a todo instante, a pequena vila do rio
Cricaré (ou São Mateus) começou a crescer e
a prosperar. Os agricultores da “rainha
mandioca” passaram a viver melhor do que
os seus pais tinham vivido e, assim, São
Mateus foi se tornando importante. As pedras
que vinham dentro dos navios, para que eles
não balançassem muito no oceano, eram
usadas para construções como a Igreja de
São Benedito, a Igreja Velha e o Porto do Rio
Cricaré. Com esse novo comércio, muitas
pessoas melhoraram de vida e algumas casas
ficaram maiores e mais bonitas.
Com o passar do tempo, mais
moradores chegavam, incentivados pelos
governantes do Espírito Santo, do Brasil e de
Portugal a aumentarem a população e a
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
65
riqueza que surgia pela venda da farinha de
mandioca. Como a mandioca era o alimento
principal dos escravos, milhares de donos de
escravos do Brasil eram obrigados a comprar
grandes quantidades desse produto para
alimentar seus trabalhadores.
O lucro com a venda da mandioca foi
tão grande, que vários agricultores
começaram a construir casarões de verão ao
lado do porto. Era um local onde eles
poderiam passar temporadas longe da
fazenda e, ao mesmo tempo, ficar perto dos
negócios que aconteciam com a chegada dos
navios.
A farinha de mandioca foi tão
importante para São Mateus que, em
determinada época em que todo o Espírito
Santo passava por muitas dificuldades,
somente um local permanecia em
crescimento e conseguindo grandes lucros:
São Mateus. Em 1828, a província do
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
66 66
Espírito Santo arrecadou 195 contos de réis
em impostos, dos quais 120 foram da farinha
mateense. Assim, São Mateus era a cidade
mais rica de todo o Estado, e os lucros de seu
comércio foi um alívio para todo o Espírito
Santo!
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
67
Parte 3
Nativos e estrangeiros
Brasileiros e africanos em São Mateus
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
68 68
Entendendo os donos de escravos...
A escravidão existia a milhares de anos
antes de portugueses chegarem ao Cricaré,
em 1544, e ainda existe hoje em alguns
países do mundo.
Para começar, no Império Romano, a
escravidão era usada para diversos tipos de
trabalho. Mas, na Roma antiga, não era a cor
que determinava quem seria escravo; na
maioria das vezes, era a guerra contra outros
povos. Muitos habitantes dos povos
conquistados pelos romanos eram feitos
prisioneiros e escravos por eles. Como a
Península Ibérica fazia parte de uma
província dos antigos romanos, a escravidão
não era desconhecida dos portugueses.
Assim, é mais fácil supor a razão pela
qual os portugueses já usavam escravos em
suas terras em Portugal, na África e na Ásia,
no início da colonização do Brasil. Esses
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
69
escravos eram africanos, capturados por seus
inimigos da África, ou pelos próprios
portugueses.
Na África, existiam guerras entre as
tribos, como acontecia com os índios do
Brasil. Os portugueses passaram a oferecer
armas e munições para algumas dessas
tribos africanas. Com essas armas, algumas
tribos se tornaram mais poderosas que
outras. Nas guerras, então, as menos
poderosas eram derrotadas e capturadas
pelas tribos mais fortes. As tribos mais fortes,
que tinham contato com os portugueses,
levavam os prisioneiros de guerra e os
vendiam aos portugueses em troca de mais
armas e munições.
Da África, os portugueses traziam
esses prisioneiros, como escravos, para o
Brasil e para outras colônias. Na cabeça de
todo europeu e de todo brasileiro, até o
século 19, a escravidão era um hábito que
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
70 70
eles conheciam desde criança e, por isso, se
acostumaram com essa crueldade contra os
negros. Na mente dos brasileiros da época e,
claro, dos mateenses, o trabalho forçado era
o mesmo que ser pobre, ter menos prestígio
social, ser menos inteligente que os outros.
Então, restava a quem já fazia esse trabalho
há séculos continuar fazendo, infelizmente.
O Porto de São Mateus
Não podemos culpar os antepassados
portugueses pela escravidão, pois a
mentalidade da época era outra. Mesmo
assim, não podemos achar que a escravidão
era algo aceito por todos, tampouco justa. Ao
contrário do que alguns dizem, o negro
nunca aceitou a escravidão; afinal, quem
aceitaria? Mas, por que trazer escravos da
África, se aqui existiam tantos índios para
trabalhar na lavoura dos portugueses? Bom,
para começar, precisamos entender por que
ter um índio como escravo era tão
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
71
complicado para um português no início da
colonização do Brasil.
Primeiro, somente algumas tribos
praticavam a agricultura; outras não a
conheciam, ou não tinham paciência para
esperar tanto para colher, já que existia
muita comida nas florestas e nos rios. A
agricultura não fazia parte da vida de muitos
índios no Brasil, o que aumentava o
descontentamento desses índios com os
portugueses, que os obrigavam a fazer uma
coisa que muitos deles nunca faziam.
O Porto de São Mateus
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
72 72
Segundo, os índios caçavam ou
plantavam para se alimentar, e os
portugueses plantavam a cana-de-açúcar
para vender na Europa. Isso piorava a
situação, pois o índio não conseguia entender
por que era obrigado a cuidar de uma
plantação que ninguém nunca mais veria.
Lembrando que não podemos dizer que era
falta de inteligência do índio, já que eles não
conheciam o comércio e nem o dinheiro
ainda. Por isso, não poderiam entender,
completamente, a exportação do melaço da
cana-de-açúcar para a Europa, que seria
refinado e se transformaria em açúcar.
Terceiro, entre os índios, os homens
eram caçadores e guerreiros. Mesmo nas
tribos que faziam a agricultura, o papel do
homem era caçar e defender a tribo. A
agricultura era um trabalho das índias. Por
causa disso, cuidar das plantações era visto
por qualquer índio como uma humilhação.
Seria como se um homem de nossa sociedade
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
73
fosse obrigado a fazer alguma coisa que só as
mulheres fazem: encaramos como uma
humilhação, porque nossa sociedade
recrimina. O mesmo acontecia com os índios
que eram obrigados a trabalhar nas lavouras
de cana-de-açúcar: eles se sentiam
recriminados e humilhados.
Quarto, os índios caçavam até
conseguirem o alimento necessário para
alimentar a todos da aldeia. Dependendo da
quantidade de pessoas, a caça podia durar
horas seguidas. Após a caça, que nunca era
um trabalho fácil, pelo contrário, dependia de
muita habilidade e experiência, os índios
ficavam na aldeia, junto com as famílias, os
filhos, os parentes e amigos.
Por último, quando os índios eram
escravizados, muitas vezes seus parentes e
amigos organizavam ataques nas fazendas,
onde eles se encontravam, para libertá-los.
Outras vezes, os índios fugiam para as
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
74 74
florestas e voltavam para a tribo. Para
completar, o governo de Portugal não
arrecadava nenhum centavo em impostos
com os escravos índios, pois os donos de
fazendas iam com seus capangas, por conta
própria, às florestas e capturavam os índios
que queriam. Diferente da importação de
escravos negros da África, em que o governo
conseguia fiscalizar a chegada dos navios e
cobrar tarifas sobre a quantidade de negros
que entravam no Brasil, dando lucro aos
portugueses.
O Porto de São Mateus é um local
muito importante para a História do Espírito
Santo e do Brasil, pois, com o surgimento de
São Mateus, em 1544, o Rio Cricaré passou a
ser usado como a melhor forma de se chegar
e sair de São Mateus. Afinal, não existiam
rodovias, naquela época. Era pelo Cricaré que
a maioria dos viajantes chegava e saía, e por
onde os comerciantes compravam e vendiam
seus produtos. O Rio Cricaré era “a estrada”
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
75
para São Mateus, e o Porto era “a porta” de
chegada, de saída e o local de recepções e
despedidas.
Com a produção da farinha
aumentando na Vila de São Mateus, a partir
de 1750, o porto passou a ser mais usado
pelos produtores para a venda de
carregamentos cada vez maiores. Os
comerciantes de São Mateus compravam
cada vez mais produtos de outras regiões.
Com o passar do tempo, os produtores de
farinha foram lucrando tanto, que passaram
a comprar mais terras, para aumentar a
produção, e mais escravos para trabalhar
nessas novas terras, aumentando, assim, o
lucro e a riqueza deles e da Vila de São
Mateus também.
Com a superprodução da farinha de
mandioca, mais ou menos a partir de 1800,
São Mateus se tornou parada obrigatória
para os navios que vinham do Nordeste, do
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
76 76
Rio de Janeiro, da Europa e de vários outros
locais. Para os comandantes desses navios,
parar no Espírito Santo era quase uma
obrigação, pois, naquela época de poucas
cidades e habitantes, os locais em
desenvolvimento significavam mais lucros
para esses comerciantes.
Farinha e escravos, o Porto era o local de importação e
exportação.
O Porto de São Mateus recebia uma
quantidade muito grande de navios, que
chegavam para comprar farinha ou para
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
77
vender algum produto. Com esse comércio
super ativo, muitas famílias de São Mateus
enriqueceram e muitas outras saíram da
miséria. Em 1828, São Mateus se tornou a
vila mais rica da província do Espírito Santo.
Na verdade, São Mateus era mais rica do que
todas as outras vilas e povoados, juntos, de
todo o Espírito Santo. Inclusive a primeira
vila (Vila Velha) e a capital (Vitória).
No começo do século 19, a Vila de São
Mateus se tornou um lugar de ótimos lucros.
Muitas fazendas plantavam mandioca e
outras variedades de alimentos, muitas
pessoas lucravam com o comércio do dia-a-
dia e outras prestavam serviços para
conseguirem algum dinheiro para viver. Mas
foi o aumento da chegada de negros pelo
porto que mudou mesmo as feições de São
Mateus.
Com o número de fazendas e de
pessoas aumentando, o comércio de escravos
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
78 78
passou a aumentar muito pelo porto. Navios
chegavam direto da África para vender negros
em São Mateus. O porto de São Mateus era
conhecido na Europa e na África como um
lugar de parada dos navios negreiros e dos
comerciantes de gente. Milhares de africanos
entraram, como escravos, pelo porto,
centenas ficaram na própria vila e outros
milhares foram vendidos pelos comerciantes
mateenses para outras regiões do Brasil.
Nesta época, a região de São Mateus
tinha uma aproximação muito forte com a
antiga Capitania de Porto Seguro do período
colonial e província da Bahia do período
imperial, hoje a parte sul do Estado da
Bahia. São Mateus vendia e comprava muitos
produtos dessa região ao norte.
Quando Dom Pedro I proclamou a
Independência do Brasil em 07 de setembro
de 1822, as províncias que não eram
governadas por portugueses enviaram cartas
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
79
de apoio a ele. A Bahia possuía muitos
portugueses que não aceitaram perder o
Brasil como colônia de Portugal e não
apoiaram a decisão de D. Pedro I. O Espírito
Santo apoiou, menos São Mateus, para não
ficar contra seus parceiros comerciais
baianos.
Na verdade, os políticos de São Mateus
ficaram neutros e nada disseram nem a
favor, nem contra. Esperaram com muita
esperteza. D. Pedro I enviou então uma força
militar, de 12 homens, a São Mateus para
averiguar. Descobriram que não havia revolta
e de lá saíram com a carta de apoio a Dom
Pedro I e a Independência do Brasil.
Em 1850, uma lei imperial proibiu o
tráfico de negros da África. Como no Brasil já
existiam muitos negros, o comércio de
escravos passou a funcionar somente dentro
do país. Muitos navios passaram a vender
escravos do Nordeste para o Sul, do Interior
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
80 80
para as capitais e de uma capitania para a
outra.
Assim, como o porto de São Mateus
ficava bem no meio das rotas de comércio,
muitos navios entravam no Cricaré para
vender escravos, e aproveitavam para
comprar muita farinha de mandioca,
lucrando em dobro.
Casarões do Porto eram usados como lugar de
negócios e armazenamento
Os casarões do porto eram usados para
a venda de negros. Eles eram acorrentados,
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
81
surrados e vendidos como objetos de valor,
como homens sem alma, como animais sem
história. A crueldade do comércio de gente,
que aconteceu com tanta força no porto de
São Mateus, serve para mostrar quanto se foi
injusto com o povo africano ─ uma forma de
meditação de como ainda há pessoas que
insistem em acreditar que existem pessoas
melhores pelo que têm ou pela cor da pele.
Hoje, São Mateus é um das cidades
capixabas que possuem mais descendentes
de negros. E, como em todo o Brasil, de uma
forma geral, são mais pobres. É por isso que
devemos analisar o passado, a História,
aprender com os erros dos brasileiros antigos
e contribuir para que o nosso mundo seja um
mundo de maior justiça, onde não haja
preconceito e discriminação de nenhum tipo
ou espécie.
Para os descendentes de escravos de
São Mateus é importante conhecer o passado
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
82 82
e ter a certeza de que, por séculos, a riqueza
deste país foi construída também por braços
negros. Agora, é com os mesmos braços que
se deve exigir igualdade na educação, na
saúde e na justiça. Se, antes, a liberdade do
negro deveria ser negociada com seu dono,
agora é através do voto que todos os
descendentes de africanos e brasileiros da
forte raça negra têm a oportunidade de exigir
não só a liberdade, mas também a igualdade
de condições.
Entendendo os escravos...
Ao serem capturados em sua tribo, os
africanos (homem ou mulher) eram
separados de sua família para sempre. Eram
vendidos para os portugueses que, nos
porões de navios imundos, traziam centenas
de africanos acorrentados, por meses, até o
Brasil. Doenças, fome, sede eram causas
constantes de mortes durante a travessia do
Oceano Atlântico.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
83
Em solo brasileiro, os “carregamentos”
eram vendidos em diversos locais do Brasil.
Em um lugar totalmente diferente, com uma
língua estranha e com hábitos e costumes
que não se pareciam em nada com a vida na
África, muitos africanos desembarcavam e
esperavam algum fazendeiro pagar o preço
pela sua liberdade, em troca de um futuro de
humilhação, opressão e dor. Logo a realidade
iria mostrar como seria a vida, no Brasil, a
partir daquele instante, para o negro
escravizado.
Viviam trabalhando na lavoura, na
plantação de cana-de-açúcar e de outros
produtos agrícolas como a mandioca, que era
usada também como alimento de escravos. O
fato de viverem em um lugar totalmente
estranho, obrigados a trabalhar em troca de
nada, longe de tudo e de todos que
conheciam, fazia com que alguns negros
entrassem em depressão profunda e
morressem ─ era o “banzo”.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
84 84
Grande parte, porém, não morria,
lutava como podia para não aceitar aquela
situação. Mulheres estupradas pelos
portugueses abortavam como forma de não
aceitar que o filho fosse escravo, outros se
suicidavam, muitos fugiam e voltavam para
libertar o restante, e os mais corajosos
chegavam a assassinar os senhores de várias
formas diferentes.
É verdade que, por conhecerem a
agricultura, os negros entendiam o que
acontecia ao seu redor e dentro da fazenda de
cana-de-açúcar ou de mandioca, mas não
aceitavam nunca a posição em que estavam.
São Mateus foi uma das regiões do Brasil
onde mais surgiram quilombos ─ que eram
comunidades distantes que vivam
praticamente isoladas e protegidas da
escravidão. Era a conquista da liberdade.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
85
A Terra dos Quilombos
Como forma de ilustrar melhor como
foi a escravidão em São Mateus, para não
sermos repetitivos falando exclusivamente da
escravidão, veremos duas histórias reais,
muito bem contadas por Maciel de Aguiar em
seu livro “Os Últimos Zumbis”, que ilustram
bem fatos das vidas de alguns escravos
mateenses.
Com essas duas estórias poderemos
entender melhor como era a relação de
alguns senhores e seus escravos. Porém, não
poderemos levar esses dois casos como as
únicas formas em que escravos e senhores se
relacionavam. Nem todos os senhores eram
perversos, e nem todos os escravos eram
guerreiros da abolição. Boa viagem!
Por volta do ano 1680, um fazendeiro
de nome José Trancoso trouxe do continente
África doze negros para serem escravos em
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
86 86
sua nova fazenda. Os escravos trabalhavam
muito e em troca só recebiam chibatadas dos
capangas do senhor. Uma desses escravos
era uma mocinha, “de olhos esfumaçantes”,
que os outros negros chamavam de princesa.
O nome dela era Zacimba Gaba. Ela era
princesa da nação africana de Cabinda, onde
hoje fica o país Angola. Ao saber da estória de
ter uma princesa em sua fazenda, o senhor
resolveu chamar a mocinha. Ele a interrogou
e proibiu sua saída da Casa Grande.
Pelourinho, tratamento dado aos escravos
insubordinados.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
87
Ao longo de anos Zacimba apanhou do
senhor no pelourinho do porto de São
Mateus; as chibatas cortavam a carne
fazendo-a gritar de dor. Os outros escravos
da fazenda, que também eram de Angola,
passaram a tramar um plano para libertar a
princesa, que era violentada pelo senhor
constantemente.
Zacimba, ao longo dos anos, foi
amadurecendo, e com seu sangue nobre
passou a liderar um movimento de libertação
dos negros da fazenda de José Trancoso. Por
meses, os negros pegaram uma cobra,
conhecida como “preguiçosa”, cortavam a
cabeça, torravam e moíam tudo,
transformando num pó muito fino, que era
dado ao senhor na comida, em doses muito
pequenas. Certo dia, as dores do senhor
começaram; os negros aguardavam o
momento certo para a liberdade. Quando Zé
Trancoso passou a “gritar feito um boi”, os
capangas descobriram que seu patrão tinha
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
88 88
sido envenenado. Sabendo que os capangas
matariam muitos escravos, até descobrirem a
verdade, os negros invadiram a casa matando
todos, só poupando a família do senhor.
Zacimba comandou a fuga de seu povo,
da fazenda, e andaram pelas matas até
Riacho Doce, depois de Itaúnas, lá formando
um quilombo, lugar esse onde todos os
negros eram livres e trabalhavam na terra,
dividindo toda a produção como irmãos.
Vários negros de outros quilombos, ou
fugidos dos capangas dos outros senhores de
escravos, se refugiavam no quilombo da
princesa Zacimba. No entanto, a princesa
não estava satisfeita.
Ela sabia que o povo de sua terra
estava sendo trazido, aos milhares, para ser
escravizado no Brasil por brasileiros e
portugueses, que achavam que o trabalho era
humilhante e por isso tinham que escravizar
os africanos, povo forte e guerreiro, que,
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
89
infelizmente, não possuía as armas de fogo
que os europeus possuíam. Foi aí que ela
passou a atacar os navios que traziam
escravos da África para o Brasil. Esses
navios, que precisavam entrar no Cricaré
para desembarcar, ficavam na costa
esperando a maré aumentar para entrar no
rio. Enquanto os navios esperavam na
entrada do rio, a princesa Zacimba e seus
guerreiros atacavam.
A princesa e outros guerreiros
corajosos preparavam as canoas e esperavam
anoitecer para o ataque mortal. Quando
anoitecia, eles remavam na escuridão até
chegarem aos navios negreiros. Os negros
vinham trancados em porões, acorrentados,
sem água e comida, nus e doentes. Muitos
morriam na viagem e eram jogados no mar.
Mas Zacimba tinha outros planos para os
que chegavam vivos: a liberdade. Atacavam
pelos lados, de surpresa, venciam as
batalhas pegando os marinheiros
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
90 90
desprevenidos, e libertavam os negros. Por
dez anos libertaram centenas de negros. Os
europeus já não ficavam perto do mar, pois
temiam o ataque dos negros do quilombo do
Riacho Doce.
A antiga princesa e escrava Zacimba
Gaba cumpriu sua missão: ia aonde a
opressão, a injustiça, a covardia dos
brasileiros e dos europeus estivesse. Para ela,
o seu povo deveria continuar livre, e não,
viver como escravo, como propriedade de
outro, apanhando, comendo mal, vivendo em
outro país, longe das esposas e maridos,
longe dos filhos e, principalmente, sem
liberdade. Zacimba morreu invadindo um
navio, cumprindo sua missão e seu ideal,
mostrando para todos os negros de hoje que
eles devem lutar pela valorização da sua cor,
pelos seus direitos e, principalmente, pela
igualdade entre os homens.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
91
Outra triste estória, envolvendo
escravos, ocorrida nos arredores de São
Mateus, foi a da jovem Constança de Angola.
Ela era escrava do Coronel Matheus Gomes
da Cunha, irmão do Barão de Aimorés, que
viveu, por volta de 1880, na Fazenda
Cachoeiro. Sobre os filhos de escravas, muita
crueldade aconteceu.
Antiga Fazenda Cachoeiro
Certo dia, a esposa do coronel ouviu o
choro do menino novo de Constança. Ela
detestava choro de criança e achava que o
serviço atrasava muito com o pequeno tempo
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
92 92
em que as escravas precisavam ter para
cuidar dos meninos. Por isso, em um desses
choros do filho de Constança, a senhora
pegou o bebê e saiu andando com a escrava
Constança gritando atrás dela, mesmo assim
a sinhá pegou o bebê pelos pés e jogou
dentro de uma fornalha em brasas.
Constança, aos berros, gritava dizendo que ia
matar a sinhá.
Os negros tentaram fazer uma rebelião
e a esposa do coronel foi morar fora da
fazenda; foi para a cidade. Constança ficou
dias no tronco, sendo surrada por Zé Diabo,
um capitão-do-mato, negro, ex-escravo,
considerado pelos negros “traidor da raça”.
Ele usava uma capa preta e tinha uma cara
assustadora. Constança foi libertada por um
grupo de negros fugidos, que estava nas
matas, e ficou sabendo do horroroso episódio
de crueldade da esposa do coronel Matheus
Cunha. Fugitiva, ela passou a lutar contra as
injustiças da escravidão. A esposa do coronel
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
93
voltou para a Fazenda Cachoeiro, porque sua
fama de perversa matadora de menino já
tinha se espalhado por toda a região, e na
cidade ela era recriminada como assassina.
Antiga cadeia, Casa da Câmara e hoje, o museu de
São Mateus.
Constança, porém, estava nas matas
com vários outros escravos fugidos; eles eram
contra a opressão e a maldade dos donos de
escravos. Com os outros guerreiros nas
matas de São Mateus, lutaram em várias
fazendas para libertar escravos e acabar com
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
94 94
os capitães-do-mato de cada uma delas.
Certa vez, numa emboscada que os
fazendeiros prepararam para Constança, ela
sofreu um ferimento. Todos os outros negros
fugiram e a deixaram no local. Por isso,
Constança foi presa na Cadeia Velha (onde
hoje é o museu). Porém, em um dia de
procissão, na calada da noite, vários negros
libertaram Constança da cadeia. O povo da
cidade ficou em pânico, pelo perigo e pela
“ousadia” dos negros.
Certa vez, à noite, num lugar às
margens do Rio Cricaré, denominado Piaúna,
Constança e os outros negros estavam
preparando o “dicumê” (comida), quando das
matas apareceu Zé Diabo, o capitão-do-
mato.Ele estava com um chicote em uma
mão e na outra tinha uma garrucha de dois
tiros. Constança era ótima lutadora de
capoeira angola e sempre andava com uma
faca muito amolada. Constança balanceava
de um jeito que Zé Diabo não tinha como
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
95
acertá-la com a garrucha de dois tiros. Ele
sabia que se errasse ela cortaria a garganta
dele. Após muitos minutos naquela ginga
mortal, já escurecendo, dentro da mata
ouviu-se um tiro. Constança desviou do
chumbo como raio e continuou na ginga de
capoeira esperando para atacar Zé Diabo.
Ele sabia que se errasse o segundo tiro,
já era. Muito tempo se passou, e Constança
foi cansando. Foi quando se ouviu o segundo
tiro. Quando foram ao local, Constança
estava morta com o tiro e Zé Diabo com a
garganta cortada. Como o prometido,
Constança foi enterrada no local, junto com o
filho, na Fazenda Cachoeiro.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
96 96
Conclusão
Devemos entender que ser índio, negro
ou branco não faz nenhuma diferença; ser
homem ou mulher também não; ser baixo ou
ser alto muito menos; gordo ou magro nada
muda, e que as diferenças existem por que a
beleza do ser humano está em ser diferente,
pois se fôssemos todos iguais e pensássemos
as mesmas coisas, não avançaríamos, pois
todos teríamos as mesmas idéias. Você é
diferente e gosta de ser respeitado por isso;
então, respeite os outros pela diferença deles
e todos transformaremos o mundo em um
lugar de respeito, harmonia e paz.
Depende de nós, ao analisarmos as
origens de São Mateus, perceber que muitas
foram as injustiças contra os nativos
indígenas, em prol de uma meta ou de um
sonho português em construir o Brasil nos
moldes europeus. Muito se avançou, e mais
se perdeu em troca da destruição de todo um
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
97
povo, de uma etnia que preferiu a harmonia
com a natureza, em troca da tecnologia da
destruição do próximo.
Os índios do Cricaré se foram, ou por
doenças, assassinados, ou pelo casamento
com o branco, pelos quais, nestes casos, seus
filhos, geralmente, menosprezavam a cultura
indígena, preferindo a vida dos brancos. A
vida e os ensinamentos indígenas se foram.
No entanto, as origens do povo mateense não
podem ser entendidas sem levar em
consideração os genes indígenas.
Nas origens de São Mateus
encontramos os tupis e os botocudos, de arco
e flechas; violentos ou amigáveis;
destruidores ou parceiros dos primeiros
colonizadores de São Mateus. Muito da
cultura deles foi repassada para o nosso
presente, e não conseguimos nos dar conta
de que somos um pouco índio no dia-a-dia
atual, pois usamos em diversas ocasiões
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
98 98
sabedorias de suas culturas para vivermos
melhor em nosso ambiente. Por isso, São
Mateus é índia, orgulho de poucos!
Os africanos, que vieram por imposição
habitar o Brasil, também foram dilacerados
como povo; sua cultura foi obrigada a
encontrar meios de ser repassada, para que,
hoje, os filhos da África conheçam suas
origens. Como esquecer de uma história tão
presente nos dias de hoje? Como esquecer
que o povo negro ainda sofre preconceito?
É preciso entender, de uma vez por
todas, que toda a monstruosidade da
escravidão foi uma prática usada por todos
independente da cor: pelos europeus contra
os negros, pelos brasileiros e também, pelos
próprios negros contra negros, quando estes
eram capatazes, capangas e até alguns que
ao se alforriarem, compravam escravos!
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
99
Precisamos entender que, hoje, negros,
brancos, índios, italianos, alemães,
japoneses, ou qualquer outra etnia, não
devem, nunca, reproduzir o preconceito
contra o outro. De um passado que não deve,
nunca, ser esquecido ou disfarçado, devemos
lembrar sempre, e memorizar todas as
formas injustas usadas como opressão e
discriminação, para que os males de nossa
sociedade sejam, hoje, reavaliados e
analisados, e se, realmente, é esse o mundo
que queremos que os historiadores de São
Mateus do futuro encontrem: o preconceito,
que ainda acontece.
Olhar para um dono de escravos do
passado nos dá certo ar de juiz, e sempre os
julgamos como pessoas que não eram
avançadas, como nós, para entenderem que
aquilo era errado. E nós, seremos julgados,
no futuro, por sermos preconceituosos pela
cor da pele, pela escolha religiosa ou pela
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
100 100
opção sexual? Como seremos julgados no
futuro?
Nas origens de São Mateus, o negro
está na base da História dessa cidade. Não
poderíamos pensar o que seria dela sem a
força da cultura africana. Por isso, São
Mateus é negra, orgulho de poucos!
Os corajosos colonos europeus, mesmo
com todas as dificuldades, conseguiram
permanecer em um lugar tão perigoso.
Isolados, sem mantimentos ou remédios, sem
comunicação com o mundo, eles progrediram
e conseguiram desenvolver uma pequena
praça, de colonos portugueses do ano de
1544, em uma cidade com mais de 100 mil
habitantes em 2006.
Os europeus venceram a prova mais
difícil que lhes foi dada pelo destino: a
sobrevivência, quase impossível, em um local
rodeado por uma floresta hostil e remota.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
101
Com sua obstinação, os portugueses foram
bravos desbravadores de dificuldades,
caçadores de esperança em busca da
supremacia total.
Conseguiram, pela disposição de serem
retos, pelo foco no progresso e pelo caráter
ecumênico de sua visão de mundo, o apogeu.
Entre a coragem e a persistência, os
europeus construíram seu caminho, abrindo,
com armas poderosas, sua passagem
triunfal. A coroa de louros, hoje, se chama
São Mateus, e o seu legado denomina-se
História!
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
102 102
Referências
AGUIAR, Maciel de. Os Últimos Zumbis: a saga
dos negros do Vale do Cricaré durante a
escravidão. Porto Seguro (BA): Brasil-
Cultural, 2001.
ANCHIETA, José de. De gestis Mendi de Saa. São
Paulo: Ministério da Educação e Cultura,
1970.
ASSIS, Eugênio de. Dicionário Geográfico e
Histórico do Estado do Espírito Santo.
Vitória, 1941.
BALESTERO, Heribaldo. O Povoamento do
Espírito Santo: marcha e penetração. Viana,
1976.
BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello.
Anchieta e a Obra Jesuítica no Espírito
Santo. Vitória: EDIT, 1999.
CARDIM, Padre Fernão. Tratados da Terra e Gente
do Brasil. São Paulo: Nacional, 1939.
DAEMON, Basílio Carvalho. História,
Descobrimento e Estatística da Província do
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
103
Espírito Santo. Vitória: Editora Espírito
Santense, 1879.
FAUSTO, Bóris. História Concisa do Brasil. São
Paulo: EDUSP, 2001.
FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de
Janeiro: Record, 2001.
FREIRE, Mário Aristides. A Capitania do Espírito
Santo. Vitória: Of. da Vida Capichaba, 1945.
HEMMING, John. “Os índios do Brasil”. In:
Bethell, Leslie (org.). América Latina Colonial.
São Paulo: EDUSP, 1998.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1994.
IBGE. www.ibge.org.br. Site Oficial do IBGE na
Internet.
LEITE, Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas no
Brasil. São Paulo, 1954
LOBO, Henrique. O Vale do Rio Doce. Vitória:
EGB, 2002.
MARQUES, César Augusto. Dicionário Histórico,
Estatístico e Geográfico da Província do
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
104 104
Espírito Santo. Rio de Janeiro: Typografia
Nacional, 1878.
MOREIRA, Thaís Helena Leite. História e Geografia
do Espírito Santo. Vitória, 2003.
NARDOTO, Eliezer. História de São Mateus. São
Mateus: EDAL, 2001.
NÓBREGA, Padre Manoel. Cartas do Brasil. Rio de
Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1931.
NOVAES, Maria Estella de. História do Espírito
Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito
Santo, 1980.
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do
Espírito Santo. Rio de Janeiro: Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, 1951.
OSÓRIO, Carla. Negros do Espírito Santo. Adriana
Bravin, Leonor de Araújo Santana – São
Paulo: Escrituras Editora, 1999.
PRIORI, Mary Del. História das Crianças no Brasil.
4. ed. – São Paulo: Contexto, 2004.
ROCHA, Levy. De Vasco Fernandes Coutinho aos
Contemporâneos. Vitória: Terra Capixaba,
1977.
Rio Cricaré e a História Cultural do seu Povo
105
SALETTO, Nara. A formação da sociedade
capixaba: os índios. artigo
SALETTO, Nara. Donatários, Colonos, Índios e
Jesuítas. Vitória: Arquivo Público Estadual,
1998.
SCHAYDER, José Pontes. História do Espírito
Santo: uma abordagem didática e atualizada
– Campinas, SP: Companhia da Escola,
2002.
SEYMOUR, Dora Alícia Gama. A Conquista Pelo
Pão: da guerra justa à política de civilização
dos índios botocudos do Rio Doce. Vitória:
Tese de Pós-graduação/UFES/Teoria da
História/ “Lato Sensu”, 1997.
TALLON, Miguel Depes. História do Espírito Santo:
Ensaio sobre sua formação histórica e
econômica. Vitória: Instituto Histórico e
Geográfico do Espírito Santo, 1999.