ricardo gomes e natali bentley - teatro, antropologia e a arte do ator entre oriente e ocidente

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  • Teatro, Antropologia e a Arte do Ator entre Oriente e Ocidente

    Ricardo Gomes DEART/UFOP Professor Adjunto Doutor em histria, teoria e tcnica do teatro e do espetculo Universit degli Studi di Roma Diretor e ator Natali Bentley UFOP graduanda Direo Teatral orientador: Ricardo Gomes (iniciao cientfica) PIBIC-CNPq Atriz e diretora Resumo: Na busca de princpios norteadores para o trabalho do ator brasileiro, dentro de uma perspectiva transcultural que nos permita incorporar s tcnicas ocidentais as tradies cnicas asiticas, o Ncleo de Pesquisa sobre a Arte do Ator entre Oriente e Ocidente, sediado na UFOP, utiliza princpios oriundos da formao do ator no teatro-dana tradicional indiano e do treinamento do ator ocidental. Neste artigo, abordaremos dois desdobramentos desse trabalho, que percorrem caminhos que dialogam com a Antropologia Cultural, para alm da Antropologia Teatral, que um dos fundamentos de nossa pesquisa: a possibilidade de dilogo com a tcnica da mmesis corprea e a pesquisa de campo realizada no Vale do Jequitinhonha durante o processo de construo do espetculo A casa de l.

    Palavras-chave: Teatro - Antropologia Cultural - Antropologia Teatral - Trabalho do Ator

    Nos ltimos anos, atravs dos Estudos da Performance, da Antropologia Teatral

    e mais recentemente da Etnocenologia (que ao mesmo tempo refletem o que acontece nas

    prticas que estudam e exercem influncias sobre elas), vimos dilurem-se as fronteiras do

    teatro, da dana e do ritual, das manifestaes espetaculares da cultura popular e dos

    gneros espetaculares da cultura erudita, assim como das culturas orientais e ocidentais.

    O que definimos hoje como Teatro refere-se, cada vez mais, mais a um

    determinado contexto social do que a um gnero artstico especfico. Seria possvel, ento,

    estabelecer quais so as tcnicas especficas do trabalho do ator? Para tentar responder a

    essa pergunta parece-nos fundamental recorrer Antropologia Cultural, ou, mais

    especificamente, etnografia, que consiste na observao e anlise de grupos humanos

    tomados na sua especificidade, e etnologia, que utiliza comparativamente (...) os

    documentos apresentados pela etnografia. (LVI-STRAUSS, 2008, p. 14)

    Mauss (2003, p. 407) define a tcnica como um ato tradicional eficaz

    tradicional porque transmitida socialmente e eficaz porque um meio para um fim preciso

    e as tcnicas do corpo como as maneiras pelas quais os homens, de sociedade em

    sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo (ibidem, p. 401). Cada

  • sociedade impe ao indivduo um uso rigorosamente determinado de seu corpo (LVI-

    STRAUSS in MAUSS, 2003, p. 12), pois cada tcnica corporal funda-se sobre certas

    sinergias nervosas e musculares que constituem verdadeiros sistemas, solidrios de todo

    um contexto sociolgico (ibidem, p. 14). Essas tcnicas so assimiladas atravs da

    educao e da imitao, mas no ato da imitao intervm elementos psicolgicos e

    biolgicos de cada indivduo (MAUSS, 2003), tornando-as montagens fisio-psico-

    sociolgicas de sries de atos (ibidem, p. 420).

    No h dvida de que o trabalho do ator um conjunto de tcnicas corporais

    fisio-psico-sociolgicas, mas estas diferem das tcnicas quotidianas apesar de nelas

    basearem-se pois na cena os comportamentos vivos so revividos ou restaurados. O

    comportamento restaurado definido por Schechner (in BARBA; SAVARESE 1995, p.

    205) como seqncias de comportamento que, ao contrrio dos comportamentos vivos,

    so materiais maleveis, fragmentos, que podem ser montados, moldados, modificados, re-

    arranjados ou reconstrudos, pois so independentes do sistema casual (social,

    psicolgico, tecnolgico) que os trouxe existncia.

    O comportamento restaurado a principal caracterstica de todas as formas de

    performance sendo o teatro uma delas logo, podemos definir o trabalho do ator (seja no

    mbito do treinamento ou nos ensaios e espetculos) como a utilizao de tcnicas

    corporais psico-fsicas visando criao de comportamentos restaurados originais, tendo

    como matria-prima os comportamentos vivos. A partir dessa premissa, a preparao do

    ator visa a cultivar sua capacidade de observao e treinar seu corpo para torn-lo capaz de

    aprender, reproduzir e recriar tais comportamentos. Essa definio no se limita ao trabalho

    do ator, podendo ser estendida a outros tipos de performance, como a dana, por exemplo,

    pois, como assinalamos, a especificidade do teatro est hoje ligada ao contexto social no

    qual ele se insere, no existindo nenhuma diferena essencial entre os diversos gneros de

    artes cnicas.

    Partindo desses pressupostos, o Ncleo de Pesquisa sobre a Arte do Ator entre

    Oriente e Ocidente, sediado na UFOP, busca princpios norteadores para o trabalho do ator

    brasileiro, dentro de uma perspectiva transcultural que nos permita incorporar s tcnicas

    ocidentais as tradies cnicas asiticas, utilizando princpios oriundos da formao do ator

    no teatro-dana tradicional indiano e do treinamento do ator ocidental.

    Uma vez entendidos os comportamentos humanos como materiais de trabalho,

    torna-se mais ou menos indiferente, sob esse aspecto, o seu contexto de origem. O que nos

    permitir avaliar o interesse de um material especfico e o que dever ser preservado desse

    material, enquanto comportamento restaurado, situa-se no seu nvel pr-expressivo. Desse

    modo, sem ignorar que cada comportamento representa uma expresso que se insere em

    um determinado sistema simblico, ao concentrarmo-nos no nvel pr-expressivo, nosso

  • principal objetivo a energia, a presena e o bios de uma determinada ao, no o seu

    significado.

    Um dos desdobramentos de nossa pesquisa, que foi contemplado pelo CNPq

    com uma bolsa de iniciao cientfica, intitula-se Da tcnica liberdade: possveis

    contribuies do Kathakali para a mimese corprea, e visa a relacionar as tcnicas de

    atuao do Teatro Kathakali (um estilo de teatro-dana tradicional originrio do Sul da ndia)

    com o trabalho de mimese corprea (metodologia fundamentada pelo LUME Ncleo

    Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais). Nessa pesquisa, investigamos os meios para

    encontrar a organicidade em trabalhos tcnicos que envolvem a exatido/preciso de aes

    codificadas e repetidas.

    A organicidade aqui entendida como diferentes zonas de intensidades, vida,

    fluxos de energia e, segundo Grotowski, como corrente de impulsos: uma fora que gera

    um estado cnico extracotidiano capaz de dilatar o corpo do ator, resultando em sua

    potencialidade e presena cnica.

    Segundo Burnier (2001, p. 49), energia, do grego, energon, significa em

    trabalho (em= entrar; dentro, ergon, ergein = trabalho).

    A energia (vibrao, a vida, a generosidade, a humanidade, um conjunto de

    fatores que nos conduzem ao estar-em-vida) a preciso e organicidade. Esses elementos

    podem ser agrupados sob o conceito de presena (ibidem, p. 49).

    As variaes de equilbrio devido base dos ps nos exerccios de Kathakali e

    as diferentes tenses no corpo determinam sua tonicidade, e, consequentemente, a

    qualidade do fluxo de energias. Trata-se de um corpo extracotidiano, no qual a forma da

    coluna vertebral cria uma arquitetura de tenses que dilatam a presena do ator (BARBA;

    SAVARESE, 1995, p. 232).

    O teatro oriental extremamente codificado no modo de repetio muscular e

    orgnica da ao, do mesmo modo que na mimese h codificao seguida da repetio do

    material coletado.

    Uma das principais contribuies do Kathakali para a presente pesquisa refere-

    se preciso, pois nele o mais simples gesto estudado para se eliminar tudo o que possa

    conter de banal e vulgar (BROOK, 2005, p. 38), ou seja, a clareza dos gestos que so

    codificados e transmitidos faz com que no haja neles nada alm do necessrio para

    transmitir o significado da ao. Essa clareza/nitidez da forma gera uma qualidade autntica

    na execuo de aes e dinamizao de energias. O treinamento nesse tipo de tcnica

    pode propiciar para o trabalho da mimese corprea uma ateno minuciosa e detalhista

    perante as diferentes tenses, inclinaes e direes do corpo observado.

    A tcnica da mimese corprea consiste na observao (trata-se aqui da

    observao de um ator, no de um antroplogo) e na imitao de aes fsicas e vocais do

  • cotidiano, alm de imitaes fsicas de aes em imagens; fotos e quadros seguidos de

    memorizao, codificao e teatralizao.

    Trata-se, portanto, da recriao do material coletado, um processo de recriao

    da corporeidade percebida no cotidiano. Esse material serve de matria-prima para a

    pesquisa a ser desenvolvida, sendo seu ponto de partida.

    Esse trabalho de restaurao do comportamento, ou seja, o trabalho de seleo

    e dilatao (separao), somente pode acontecer se existe um processo de fixao por

    meio de tcnicas codificadas. O ator compe sua ao numa sntese, ele segmenta as

    aes, escolhendo e dilatando certos fragmentos, compondo os ritmos, conseguindo um

    equivalente da ao real por meio do que Schechner chama de restaurao de

    comportamento ( in BARBA e SAVARESE 1995, p. 70). Atravs desses fragmentos de

    comportamento que podem ser re-arranjados e reconstrudos, o ator busca em seu corpo

    um equivalente orgnico quilo que foi observado.

    Podemos encontrar um exemplo de intercesso de tcnicas que aproximam-se

    da mimese corprea com tcnicas de atuao do teatro oriental no espetculo A casa de l

    (direo de Ricardo Gomes), que estreou em Belo Horizonte em maio de 2010, em cujo

    processo de trabalho foi realizada uma pesquisa de campo de um ms no Vale do

    Jequitinhonha (MG). A dramaturgia do espetculo, que teve como referncia literria a obra

    de Guimares Rosa, foi criada a partir das improvisaes dos atores, inspiradas nos

    encontros com os moradores da regio.

    Apesar de toda a partitura de aes dos atores ter sido criada a partir de

    fragmentos de comportamento coletados durante a viagem ao Vale do Jequitinhonha, o

    espetculo no buscou realizar uma descrio da vida da regio. A casa de l conta a

    estria de um casal desde a infncia at a velhice. Um casal como qualquer outro com

    suas tristezas e alegrias, suas partidas e chegadas e, ao mesmo tempo, O Casal, que vive

    a dimenso mtica da unio do masculino com o feminino, em um tempo circular onde morte

    e nascimento esto no mesmo momento em que tudo sempre recomea. Para recriar

    cenicamente esse tempo circular, foram utilizadas tcnicas de atuao que puderam ser

    executadas somente por atores que possuam um treinamento prvio em um tipo de teatro

    codificado e baseado na elaborao do tempo-ritmo das aes. Desse modo, incidindo, por

    exemplo, sobre o ritmo das aes do ato de colocar um leno na cabea, no modo tpico das

    senhoras do Vale, procuramos dar a esse gesto quotidiano uma dimenso mtica.

    Segundo Lvi-Strauss (2008, p. 32): A histria organiza seus dados em relao

    a expresses conscientes, e a etnologia, em relao s condies inconscientes da vida

    social. Talvez essa abordagem dos comportamentos de uma determinada sociedade,

    proposta por esse tipo de operao de restaurao do comportamento, se aproxime dessa

    perspectiva etnolgica.

  • REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BARBA, E.; SAVARESE, N. A arte secreta do ator: dicionrio de antropologia teatral. (superviso de traduo de Luis Otvio Burnier). So Paulo: Hucitec/Unicamp, 1995. BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. BURNIER, L. O. A arte de ator: da tcnica representao. Campinas: Unicamp, 2001. LVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. (traduo: Beatriz Perrone-Moiss). So Paulo: Cosac Naify, 2008. MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. (traduo: Paulo Neves). So Paulo: Cosac Naify, 2003.