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TRATAMENTO E QUALIDADE DE VIDA DOS PACIENTES RENAIS CRÔNICOS ESCOLHER E VIVER ANDRÉ FRANÇOIS

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TraTamenTo e qualidade de vida dos pacienTes renais crônicos

escolher e viver

andré François

C a c h o e i r a d o S u l , R SR i c a r d o B r e n d l e r

2� 2�

Ele busca na meditação e na ioga a serenidade para conviver com sua

condição. Demonstra também ser persistente e batalhador. Divorciado, vive

com a filha de 5 anos. Vê o transplante como uma forma de mudar sua vida e

prepara-se para voltar em breve à fila.

Toda pessoa que Tem doador vivo não espera

Rosana Mussoi Bruno é médica assistente da equipe de Nefrologia e

Transplante Renal da Santa Casa de Porto Alegre, onde Ricardo é

atendido. Ela trabalha com diálise peritoneal desde 1988, quando esse

método era utilizado principalmente em pacientes que não tinham mais aces-

sos vasculares para a hemodiálise.

Segundo ela, a diálise peritoneal é um método cada vez mais usado no

mundo todo, e a opção por esse tratamento dependeria de vários fatores. “Mas,

independentemente do tratamento, a perda da função renal acontecerá de

qualquer jeito a longo prazo”, explica.

Por isso, ela chama atenção para a importância do transplante e de se

ampliarem as estruturas para captação de órgãos de doadores mortos – sobre-

tudo no que diz respeito às equipes de saúde, que devem estar preparadas para

informar sobre o processo e realizá-lo.

Mussoi avalia, no entanto, que “o transplante no Brasil é muito estimula-

do. A legislação é maravilhosa, os médicos querem fazer, as equipes cirúrgicas

e as equipes clínicas são bem remuneradas. O transplante é a melhor coisa que

existe em nefrologia no Brasil. Só não tem mais transplantes porque não tem

mais doadores. Toda pessoa que tem doador vivo não espera. (...) Quem espera

é quem não tem doador”.

de volTa à Fila

Bem-disposto, terno e gravata. Assim o médico Ricardo Brendler, 48

anos, recebe a ImageMagica na sala de diálise da Santa Casa de Porto

Alegre. Esse cirurgião e especialista em pneumologia veio de Cachoei-

ra do Sul, a 200 quilômetros da capital, não para um congresso da sua espe-

cialidade, como faz supor o traje. Veio como paciente para uma consulta de

rotina.

Ricardo tem problema renal desde os 2 anos, motivado por uma amida-

lite, e desde então convive com a doença. Quando estava cursando a faculdade

de medicina, buscou informar-se sobre sua condição. Em 1991, aos 29 anos,

fazia residência quando perdeu totalmente a função renal. Optou então pela

diálise peritoneal e tornou-se um dos primeiros pacientes no Rio Grande do

Sul a seguir esse tratamento.

Foi, segundo ele, uma alternativa satisfatória, até que, após dois anos e

quatro meses na fila, conseguiu um rim para transplante. O órgão resistiu em

seu organismo durante dez anos e proporcionou a Ricardo muita liberdade e

uma vida praticamente normal. Ele viajava, fazia paraquedismo e surfava. Mas

em 2003, após uma complicação, perdeu novamente a função renal. Ficou um

curto período em hemodiálise e em seguida recomeçou a diálise peritoneal.

Segundo ele, essa opção de tratamento permite mobilidade e é relati-

vamente simples de seguir. “É como se fosse tomar um medicamento durante

cerca de meia hora”, explica. Ricardo não tem problemas com os cuidados re-

queridos pelo tratamento. Sabe bem como realizar a esterilização do material e

evitar uma infecção na hora de trocar as bolsas. A peritonite, infecção causada

pelo cateter posicionado no peritônio, é relativamente comum em pacientes

que realizam a diálise peritoneal.

Nesses seis anos de tratamento, ele não teve nenhum problema. “A diá-

lise me dá liberdade. Eu trabalho, viajo para outras cidades. Posso fazer a troca

em qualquer canto.”

Ricardo enfatiza a necessidade de que o paciente reconheça a condição

de renal crônico. “Primeiro você tem que entrar em um processo de aceitação,

depois de transcendência. Precisa ver a coisa toda como um processo, entender

que vai ser renal crônico a vida toda.”

Fo r t a l e z a , C EB r u n a S a n t o s d e S o u s a

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quarTo cor-de-rosa

Os pais de Bruna de Sousa, 17 anos, temem pela vida da garota. O pai

e um dos irmãos estão fazendo testes de compatibilidade para lhe

doar um rim. Enquanto espera, a família se esforça para que ela siga

o tratamento com diálise peritoneal nas melhores condições.

Bruna recebeu o diagnóstico de doença renal em 2003, e há oito meses

começou a diálise peritoneal. A enfermeira Socorro Rolim, da clínica que Bru-

na frequenta, insistiu para que ela tivesse um quarto em condições adequadas,

limpo e organizado. “Eu falei com o pai dela e ele disse: ‘Dou um jeito, fico

devendo, mas o quarto dela eu faço’. Ele construiu o quarto e está aí para ela

fazer a diálise”, conta Joana, sua mãe, enquanto mostra o cômodo, o mais bem

cuidado da casa, com paredes pintadas de cor-de-rosa e piso azulejado.

A irmã Tamires, de 18 anos, se ofereceu para fazer o treinamento e hoje

é quem cuida de Bruna. Toda noite, arruma o quarto e realiza os procedimen-

tos para que a irmã possa usar a máquina cicladora da diálise em segurança.

Quando está tudo pronto, chama Bruna. “Nos primeiros dias, foi difícil, mas

depois foi legal. Eu me sinto orgulhosa por ajudar minha irmã”, diz Tamires,

que, além das tarefas em casa, acompanha a irmã nas consultas. Yara, uma

prima de 14 anos, também fez o treinamento para auxiliar Bruna caso Tamires

esteja ausente.

Bruna ainda brinca, mas já namora e adora dançar forró. Estudiosa, está

na sétima série, e suas matérias preferidas são ciências, geografia e história. A

menina conta um segredo: escreve poesia e mantém um diário. Na porta do

quarto há vários papéis colados; em um deles, há um texto cujo tema são as

lágrimas. Autora: Bruna Santos de Souza.

S ã o Pa u l o, S P — Pa r i n t i n s , A MG u i l h e r m i n a R i b e i r o d o s S a n t o s

90 91

a vida em uma caixa

A picape chega ao seu destino: a moradia da dona de casa aposentada

Guilhermina.

Assim que avistam o carro da entrega, Guilhermina e o marido,

José Ribamar, levantam-se das cadeiras de balanço nas quais estão sentados na

varanda e correm para abrir a casa para os carregadores. Sem esse material, ela

teria que viajar três vezes por semana até Manaus para frequentar uma clínica de

hemodiálise. O percurso de vinte horas em um barco provavelmente obrigaria

Guilhermina a mudar de cidade.

Já na sala, ela conta com lágrimas nos olhos que a doença renal, adquirida

em associação com hipertensão e diabetes, custou a ser percebida. Ela se sentiu

mal em março de 2008 e foi levada para um hospital de Manaus. Enquanto este-

ve inconsciente, os médicos decidiram pela diálise peritoneal em função de sua

idade e local de moradia. A família concordou, e quando Guilhermina acordou

já havia passado pela cirurgia de colocação do cateter. Só quando uma de suas

filhas explicou o que estava acontecendo é que ela começou a assimilar a situa-

ção.

Enquanto conta esse episódio, ela chora e diz que ficou “muito triste, mui-

to mal”. O marido a consola, e ela relata que, por ter perdido uma cunhada na

hemodiálise, tinha pavor desse procedimento. “Ela morreu na clínica. Eu não

queria aceitar de jeito nenhum isso.” Somente depois que o desespero passou é

que ela entendeu que faria outro tratamento; e que poderia fazê-lo em casa, sem

precisar ficar conectada a uma máquina no hospital.

Essa mãe de oito filhos, todos adultos, vai mensalmente a Manaus, acom-

panhada do marido, para uma consulta de rotina com o médico Rolando Valen-

zuela. Dois dos filhos fizeram o treinamento e agora cuidam de Guilhermina,

com a colaboração dos outros.

Adilson, um dos filhos, diz que vê a mãe bem melhor com o tratamento.

José Ribamar vai além e aconselha a diálise peritoneal. “É um bom remédio, e a

gente fica com uma vida tranquila. Ter um cateter pendurado na barriga não im-

porta. Ela também não aceitava isso, mas agora leva uma vida normal. Só não está

melhor porque tem diabetes e hipertensão; mas se fosse só o problema dos rins,

ela estaria ótima, poderia até andar de bicicleta. Esse cateter não impede nada.”

rumo à casa de guilhermina

De São Paulo, o carregamento com o material para diálise peritoneal

sai da empresa fabricante, em um caminhão da transportadora, rumo

a uma longa jornada, cumprida em várias etapas.

Até Belém, são cerca de seis dias de estrada. Na capital do Pará, a carga

é colocada em uma balsa que sobe o rio Amazonas em direção a Manaus. Mais

cinco dias de viagem, e as caixas chegam à capital do Amazonas. Ali, depois de

inspecionadas e liberadas, passam para a transportadora local.

Na sede dessa empresa, a carga é “roteirizada”, ou seja, devidamente des-

tinada aos pacientes da região. Em Manaus, as caixas partem rumo a Parintins,

uma ilha de 100 mil habitantes famosa pela Festa do Boi, que todos os anos atrai

milhares de turistas no mês de junho, e onde vive a destinatária: Guilhermina

dos Santos.

Em muitas mãos e braços, as caixas embarcam no Novo Aliança, um enor-

me barco de metal de três andares que transporta pessoas e carga. São 20 horas

de viagem antes de serem descarregadas e colocadas em uma picape, que as leva-

rá até a casa da paciente. Esse foi o destino dessas 50 caixas. Outras delas chegam

a viajar por quase um mês para atingir pacientes ainda mais distantes.

S a l va d o r, B AD i a c í z i o A l v e s d e O l i v e i r a

12� 12�

Diacízio também adora equitação, e possui carteira de velejador. Depois

do transplante, “se tudo der certo”, pretende “comprar um barco para velejar

na Baía de Todos os Santos”.

O transplante era para ter acontecido antes, mas não foi possível por

complicações. Agora, ele aguarda a data ser marcada para breve. Seu irmão

Manoel Alves de Oliveira, 36 anos, será o doador. Dos 11 irmãos que tem, Dia-

cízio conta ter maior afinidade com Manoel desde pequeno. Ele brinca que

isso deve ter se refletido na genética também: “Foi feita a avaliação toda, e ele

é 100% compatível. Nós somos 100% compatíveis”.

100% compaTíveis

Diacízio de Oliveira, 53 anos, administra há 12 a AcriTraços, uma mi-

croempresa que fabrica peças de acrílico. Faz de tudo ali, da produ-

ção ao atendimento. É casado com a médica Maria, tem dois filhos e

um neto, e ainda arranja tempo para nadar, praticar equitação e velejar. Com

tantas atividades, fica difícil perceber que ele tem doença renal e sobrevive

graças à diálise peritoneal.

Ele mostra, orgulhoso, a empresa onde trabalha, enquanto conta que

talvez tenha que vendê-la. A possibilidade de um transplante está muito próxi-

ma, e ele não sabe como manterá a empresa durante a recuperação.

O transplante é a grande expectativa de Diacízio, que há um ano e meio,

desde que descobriu a doença, utiliza a diálise peritoneal. Ele se diz satisfeito

com o tratamento, sua primeira e única opção antes do transplante. Quando

conversou com seu médico, Luiz Pereira, foi informado sobre os métodos de

diálise. “Ele colocou para mim o seguinte: a hemodiálise eu teria que fazer no

hospital três vezes por semana. Já a diálise peritoneal pode ser feita em casa,

enquanto você dorme; e você fica com o dia livre para trabalhar.”

O médico prescreveu para Diacízio uma combinação dos dois métodos

de diálise peritoneal – manual e automática – para que ele se adaptasse melhor

ao tratamento. Ele se conecta na máquina à noite, desconecta-se pela manhã

e faz uma troca manual ao meio-dia. “No começo a gente fica meio assustado,

fica com medo mesmo. Daí eu me acostumei, normal. Faço minhas tarefas, e

nem lembro que estou com o cateter aqui.”

Sua rotina quase não mudou depois que começou a fazer a diálise peri-

toneal. Ele conta que às vezes nem se sente doente, a não ser pelo fato de ter

perdido um pouco da força física que tinha antes. “Final de semana, geralmen-

te eu trabalho no sábado, e no domingo dou uma pequena caminhada e faço

minha natação semanal no mar. Normalmente são 500 metros. Eu nado do

Forte de São Diogo para o Forte de Santa Maria; vou e volto nadando.”

Seu médico não fez restrição à natação, desde que a praia esteja própria

para banho. Mas, para praticá-la, Diacízio também toma certos cuidados. Pren-

de bem o cateter na barriga, para que ele não se solte, e, por conta própria,

descobriu um adesivo impermeabilizante.

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Fotografia

André François

Coordenação de projeto

Paula Blandy

Desenvolvimento institucional

Christianne Martins

Coordenação editorial

Alícia Peres

Edição de texto

Maria Alzira Brum Lemos

Reportagem

Paula Poleto

Projeto gráfico e design

Matiz Design

Marcelo B. Almeida

Tratamento final de imagens

Estúdio 321

Marina Neder

Impressão das cópias de trabalho

Espaço Visual Digitalização e

Impressão de Imagem

Pesquisa e prospecção de campo

Gabriela Prado

Assessoria técnica e científica

Nêmeton Centro de Estudos e Pesquisas

em Psicologia e Saúde

Conselho

Altair Lima

Ana Silvia Forgiarini

Fábio Tozzi

José Osmar Medina Pestana

Miguel Riella

Nair Benedicto

Ricardo Werner Sebastianni

Rubens Fernandes Jr.

Revisão

Carmem Cacciacarro

Tuca Borba

Realização

ImageMagica

Patrocínio

Baxter

Impressão

Ipsis Gráfica

Tiragem: 3.000 exemplares

20� 20�

índice

André François .................................................................................................... 04

Doença renal crônica e tratamentos .................................................................. 10

Uma coisa que acontece com qualquer pessoa ................................................. 16

Eu vejo a parte social do paciente ...................................................................... 17

De volta à fila ....................................................................................................... 26

Toda pessoa que tem doador vivo não espera ................................................... 27

Faço tudo sozinha ............................................................................................... 32

Um novo olhar .................................................................................................... 38

Trabalhar e conviver ........................................................................................... 39

Melhor para todos............................................................................................... 46

Uma cuidadora dedicada ................................................................................... 46

Uma boa equipe de enfermagem é fundamental ............................................. 47

Para mim, eu não tenho nada ............................................................................ 56

Escolher é essencial ............................................................................................ 56

Viver para navegar .............................................................................................. 65

Quarto cor-de-rosa .............................................................................................. 71

Diálise e poesia .................................................................................................... 77

Em casa, cruzando fronteiras ............................................................................. 83

Rumo à casa de Guilhermina ............................................................................. 90

A vida em uma caixa ........................................................................................... 91

Tripla jornada .................................................................................................... 106

A dona das motocicletas ................................................................................... 117

Rotina retomada ............................................................................................... 122

100% compatíveis ............................................................................................. 126

Paciência, persistência e amor ......................................................................... 140

De pai para filha ................................................................................................ 141

Banho de piscina e planos para a família ........................................................ 161

As opções do portador de insuficiência renal crônica ................................... 166

Agradecimentos ................................................................................................ 168

Traduções / Translations .................................................................................. 173

20� 20�

R e a l i z a ç ã o :

Pa t r o c í n i o :

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

François, AndréEscolher e Viver: Tratamento e Qualidade de Vida dos

Pacientes Renais Crônicos =The curve and the path: access to health care in Brazil / André François; [tradução para o inglês da Editora]. --

São Paulo: ImageMagica, 2009.

Edição bilíngue: português/inglêsISBN 978-85-61921-01-9

1. Cuidados médicos - Brasil 2. Fotografias 3. Serviços de saúde - Brasil 4. Sistemas de saúde - Brasil I. Título. II. Título:

The curve and the path: access to health care in Brazil.

08-09396 CDD-778.9

Índices para catálogo sistemático:1. Brasil : Saúde : Documentário fotográfico

778.92. Saúde no Brasil : Documentário fotográfico

778.9

ISBN 978-85-61921-01-9COPYRIGHT © ANDRÉ FRANÇOIS 2009Os direitos desta edição pertencem a

André François, São Paulo, SPTel [55 11] 25779902FAX [55 11] 25789036

[email protected]