ricardo brendler cachoeira do sul, rs · tos para que a irmã possa usar a máquina cicladora da...
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Ele busca na meditação e na ioga a serenidade para conviver com sua
condição. Demonstra também ser persistente e batalhador. Divorciado, vive
com a filha de 5 anos. Vê o transplante como uma forma de mudar sua vida e
prepara-se para voltar em breve à fila.
Toda pessoa que Tem doador vivo não espera
Rosana Mussoi Bruno é médica assistente da equipe de Nefrologia e
Transplante Renal da Santa Casa de Porto Alegre, onde Ricardo é
atendido. Ela trabalha com diálise peritoneal desde 1988, quando esse
método era utilizado principalmente em pacientes que não tinham mais aces-
sos vasculares para a hemodiálise.
Segundo ela, a diálise peritoneal é um método cada vez mais usado no
mundo todo, e a opção por esse tratamento dependeria de vários fatores. “Mas,
independentemente do tratamento, a perda da função renal acontecerá de
qualquer jeito a longo prazo”, explica.
Por isso, ela chama atenção para a importância do transplante e de se
ampliarem as estruturas para captação de órgãos de doadores mortos – sobre-
tudo no que diz respeito às equipes de saúde, que devem estar preparadas para
informar sobre o processo e realizá-lo.
Mussoi avalia, no entanto, que “o transplante no Brasil é muito estimula-
do. A legislação é maravilhosa, os médicos querem fazer, as equipes cirúrgicas
e as equipes clínicas são bem remuneradas. O transplante é a melhor coisa que
existe em nefrologia no Brasil. Só não tem mais transplantes porque não tem
mais doadores. Toda pessoa que tem doador vivo não espera. (...) Quem espera
é quem não tem doador”.
de volTa à Fila
Bem-disposto, terno e gravata. Assim o médico Ricardo Brendler, 48
anos, recebe a ImageMagica na sala de diálise da Santa Casa de Porto
Alegre. Esse cirurgião e especialista em pneumologia veio de Cachoei-
ra do Sul, a 200 quilômetros da capital, não para um congresso da sua espe-
cialidade, como faz supor o traje. Veio como paciente para uma consulta de
rotina.
Ricardo tem problema renal desde os 2 anos, motivado por uma amida-
lite, e desde então convive com a doença. Quando estava cursando a faculdade
de medicina, buscou informar-se sobre sua condição. Em 1991, aos 29 anos,
fazia residência quando perdeu totalmente a função renal. Optou então pela
diálise peritoneal e tornou-se um dos primeiros pacientes no Rio Grande do
Sul a seguir esse tratamento.
Foi, segundo ele, uma alternativa satisfatória, até que, após dois anos e
quatro meses na fila, conseguiu um rim para transplante. O órgão resistiu em
seu organismo durante dez anos e proporcionou a Ricardo muita liberdade e
uma vida praticamente normal. Ele viajava, fazia paraquedismo e surfava. Mas
em 2003, após uma complicação, perdeu novamente a função renal. Ficou um
curto período em hemodiálise e em seguida recomeçou a diálise peritoneal.
Segundo ele, essa opção de tratamento permite mobilidade e é relati-
vamente simples de seguir. “É como se fosse tomar um medicamento durante
cerca de meia hora”, explica. Ricardo não tem problemas com os cuidados re-
queridos pelo tratamento. Sabe bem como realizar a esterilização do material e
evitar uma infecção na hora de trocar as bolsas. A peritonite, infecção causada
pelo cateter posicionado no peritônio, é relativamente comum em pacientes
que realizam a diálise peritoneal.
Nesses seis anos de tratamento, ele não teve nenhum problema. “A diá-
lise me dá liberdade. Eu trabalho, viajo para outras cidades. Posso fazer a troca
em qualquer canto.”
Ricardo enfatiza a necessidade de que o paciente reconheça a condição
de renal crônico. “Primeiro você tem que entrar em um processo de aceitação,
depois de transcendência. Precisa ver a coisa toda como um processo, entender
que vai ser renal crônico a vida toda.”
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quarTo cor-de-rosa
Os pais de Bruna de Sousa, 17 anos, temem pela vida da garota. O pai
e um dos irmãos estão fazendo testes de compatibilidade para lhe
doar um rim. Enquanto espera, a família se esforça para que ela siga
o tratamento com diálise peritoneal nas melhores condições.
Bruna recebeu o diagnóstico de doença renal em 2003, e há oito meses
começou a diálise peritoneal. A enfermeira Socorro Rolim, da clínica que Bru-
na frequenta, insistiu para que ela tivesse um quarto em condições adequadas,
limpo e organizado. “Eu falei com o pai dela e ele disse: ‘Dou um jeito, fico
devendo, mas o quarto dela eu faço’. Ele construiu o quarto e está aí para ela
fazer a diálise”, conta Joana, sua mãe, enquanto mostra o cômodo, o mais bem
cuidado da casa, com paredes pintadas de cor-de-rosa e piso azulejado.
A irmã Tamires, de 18 anos, se ofereceu para fazer o treinamento e hoje
é quem cuida de Bruna. Toda noite, arruma o quarto e realiza os procedimen-
tos para que a irmã possa usar a máquina cicladora da diálise em segurança.
Quando está tudo pronto, chama Bruna. “Nos primeiros dias, foi difícil, mas
depois foi legal. Eu me sinto orgulhosa por ajudar minha irmã”, diz Tamires,
que, além das tarefas em casa, acompanha a irmã nas consultas. Yara, uma
prima de 14 anos, também fez o treinamento para auxiliar Bruna caso Tamires
esteja ausente.
Bruna ainda brinca, mas já namora e adora dançar forró. Estudiosa, está
na sétima série, e suas matérias preferidas são ciências, geografia e história. A
menina conta um segredo: escreve poesia e mantém um diário. Na porta do
quarto há vários papéis colados; em um deles, há um texto cujo tema são as
lágrimas. Autora: Bruna Santos de Souza.
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a vida em uma caixa
A picape chega ao seu destino: a moradia da dona de casa aposentada
Guilhermina.
Assim que avistam o carro da entrega, Guilhermina e o marido,
José Ribamar, levantam-se das cadeiras de balanço nas quais estão sentados na
varanda e correm para abrir a casa para os carregadores. Sem esse material, ela
teria que viajar três vezes por semana até Manaus para frequentar uma clínica de
hemodiálise. O percurso de vinte horas em um barco provavelmente obrigaria
Guilhermina a mudar de cidade.
Já na sala, ela conta com lágrimas nos olhos que a doença renal, adquirida
em associação com hipertensão e diabetes, custou a ser percebida. Ela se sentiu
mal em março de 2008 e foi levada para um hospital de Manaus. Enquanto este-
ve inconsciente, os médicos decidiram pela diálise peritoneal em função de sua
idade e local de moradia. A família concordou, e quando Guilhermina acordou
já havia passado pela cirurgia de colocação do cateter. Só quando uma de suas
filhas explicou o que estava acontecendo é que ela começou a assimilar a situa-
ção.
Enquanto conta esse episódio, ela chora e diz que ficou “muito triste, mui-
to mal”. O marido a consola, e ela relata que, por ter perdido uma cunhada na
hemodiálise, tinha pavor desse procedimento. “Ela morreu na clínica. Eu não
queria aceitar de jeito nenhum isso.” Somente depois que o desespero passou é
que ela entendeu que faria outro tratamento; e que poderia fazê-lo em casa, sem
precisar ficar conectada a uma máquina no hospital.
Essa mãe de oito filhos, todos adultos, vai mensalmente a Manaus, acom-
panhada do marido, para uma consulta de rotina com o médico Rolando Valen-
zuela. Dois dos filhos fizeram o treinamento e agora cuidam de Guilhermina,
com a colaboração dos outros.
Adilson, um dos filhos, diz que vê a mãe bem melhor com o tratamento.
José Ribamar vai além e aconselha a diálise peritoneal. “É um bom remédio, e a
gente fica com uma vida tranquila. Ter um cateter pendurado na barriga não im-
porta. Ela também não aceitava isso, mas agora leva uma vida normal. Só não está
melhor porque tem diabetes e hipertensão; mas se fosse só o problema dos rins,
ela estaria ótima, poderia até andar de bicicleta. Esse cateter não impede nada.”
rumo à casa de guilhermina
De São Paulo, o carregamento com o material para diálise peritoneal
sai da empresa fabricante, em um caminhão da transportadora, rumo
a uma longa jornada, cumprida em várias etapas.
Até Belém, são cerca de seis dias de estrada. Na capital do Pará, a carga
é colocada em uma balsa que sobe o rio Amazonas em direção a Manaus. Mais
cinco dias de viagem, e as caixas chegam à capital do Amazonas. Ali, depois de
inspecionadas e liberadas, passam para a transportadora local.
Na sede dessa empresa, a carga é “roteirizada”, ou seja, devidamente des-
tinada aos pacientes da região. Em Manaus, as caixas partem rumo a Parintins,
uma ilha de 100 mil habitantes famosa pela Festa do Boi, que todos os anos atrai
milhares de turistas no mês de junho, e onde vive a destinatária: Guilhermina
dos Santos.
Em muitas mãos e braços, as caixas embarcam no Novo Aliança, um enor-
me barco de metal de três andares que transporta pessoas e carga. São 20 horas
de viagem antes de serem descarregadas e colocadas em uma picape, que as leva-
rá até a casa da paciente. Esse foi o destino dessas 50 caixas. Outras delas chegam
a viajar por quase um mês para atingir pacientes ainda mais distantes.
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Diacízio também adora equitação, e possui carteira de velejador. Depois
do transplante, “se tudo der certo”, pretende “comprar um barco para velejar
na Baía de Todos os Santos”.
O transplante era para ter acontecido antes, mas não foi possível por
complicações. Agora, ele aguarda a data ser marcada para breve. Seu irmão
Manoel Alves de Oliveira, 36 anos, será o doador. Dos 11 irmãos que tem, Dia-
cízio conta ter maior afinidade com Manoel desde pequeno. Ele brinca que
isso deve ter se refletido na genética também: “Foi feita a avaliação toda, e ele
é 100% compatível. Nós somos 100% compatíveis”.
100% compaTíveis
Diacízio de Oliveira, 53 anos, administra há 12 a AcriTraços, uma mi-
croempresa que fabrica peças de acrílico. Faz de tudo ali, da produ-
ção ao atendimento. É casado com a médica Maria, tem dois filhos e
um neto, e ainda arranja tempo para nadar, praticar equitação e velejar. Com
tantas atividades, fica difícil perceber que ele tem doença renal e sobrevive
graças à diálise peritoneal.
Ele mostra, orgulhoso, a empresa onde trabalha, enquanto conta que
talvez tenha que vendê-la. A possibilidade de um transplante está muito próxi-
ma, e ele não sabe como manterá a empresa durante a recuperação.
O transplante é a grande expectativa de Diacízio, que há um ano e meio,
desde que descobriu a doença, utiliza a diálise peritoneal. Ele se diz satisfeito
com o tratamento, sua primeira e única opção antes do transplante. Quando
conversou com seu médico, Luiz Pereira, foi informado sobre os métodos de
diálise. “Ele colocou para mim o seguinte: a hemodiálise eu teria que fazer no
hospital três vezes por semana. Já a diálise peritoneal pode ser feita em casa,
enquanto você dorme; e você fica com o dia livre para trabalhar.”
O médico prescreveu para Diacízio uma combinação dos dois métodos
de diálise peritoneal – manual e automática – para que ele se adaptasse melhor
ao tratamento. Ele se conecta na máquina à noite, desconecta-se pela manhã
e faz uma troca manual ao meio-dia. “No começo a gente fica meio assustado,
fica com medo mesmo. Daí eu me acostumei, normal. Faço minhas tarefas, e
nem lembro que estou com o cateter aqui.”
Sua rotina quase não mudou depois que começou a fazer a diálise peri-
toneal. Ele conta que às vezes nem se sente doente, a não ser pelo fato de ter
perdido um pouco da força física que tinha antes. “Final de semana, geralmen-
te eu trabalho no sábado, e no domingo dou uma pequena caminhada e faço
minha natação semanal no mar. Normalmente são 500 metros. Eu nado do
Forte de São Diogo para o Forte de Santa Maria; vou e volto nadando.”
Seu médico não fez restrição à natação, desde que a praia esteja própria
para banho. Mas, para praticá-la, Diacízio também toma certos cuidados. Pren-
de bem o cateter na barriga, para que ele não se solte, e, por conta própria,
descobriu um adesivo impermeabilizante.
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Fotografia
André François
Coordenação de projeto
Paula Blandy
Desenvolvimento institucional
Christianne Martins
Coordenação editorial
Alícia Peres
Edição de texto
Maria Alzira Brum Lemos
Reportagem
Paula Poleto
Projeto gráfico e design
Matiz Design
Marcelo B. Almeida
Tratamento final de imagens
Estúdio 321
Marina Neder
Impressão das cópias de trabalho
Espaço Visual Digitalização e
Impressão de Imagem
Pesquisa e prospecção de campo
Gabriela Prado
Assessoria técnica e científica
Nêmeton Centro de Estudos e Pesquisas
em Psicologia e Saúde
Conselho
Altair Lima
Ana Silvia Forgiarini
Fábio Tozzi
José Osmar Medina Pestana
Miguel Riella
Nair Benedicto
Ricardo Werner Sebastianni
Rubens Fernandes Jr.
Revisão
Carmem Cacciacarro
Tuca Borba
Realização
ImageMagica
Patrocínio
Baxter
Impressão
Ipsis Gráfica
Tiragem: 3.000 exemplares
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índice
André François .................................................................................................... 04
Doença renal crônica e tratamentos .................................................................. 10
Uma coisa que acontece com qualquer pessoa ................................................. 16
Eu vejo a parte social do paciente ...................................................................... 17
De volta à fila ....................................................................................................... 26
Toda pessoa que tem doador vivo não espera ................................................... 27
Faço tudo sozinha ............................................................................................... 32
Um novo olhar .................................................................................................... 38
Trabalhar e conviver ........................................................................................... 39
Melhor para todos............................................................................................... 46
Uma cuidadora dedicada ................................................................................... 46
Uma boa equipe de enfermagem é fundamental ............................................. 47
Para mim, eu não tenho nada ............................................................................ 56
Escolher é essencial ............................................................................................ 56
Viver para navegar .............................................................................................. 65
Quarto cor-de-rosa .............................................................................................. 71
Diálise e poesia .................................................................................................... 77
Em casa, cruzando fronteiras ............................................................................. 83
Rumo à casa de Guilhermina ............................................................................. 90
A vida em uma caixa ........................................................................................... 91
Tripla jornada .................................................................................................... 106
A dona das motocicletas ................................................................................... 117
Rotina retomada ............................................................................................... 122
100% compatíveis ............................................................................................. 126
Paciência, persistência e amor ......................................................................... 140
De pai para filha ................................................................................................ 141
Banho de piscina e planos para a família ........................................................ 161
As opções do portador de insuficiência renal crônica ................................... 166
Agradecimentos ................................................................................................ 168
Traduções / Translations .................................................................................. 173
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R e a l i z a ç ã o :
Pa t r o c í n i o :
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
François, AndréEscolher e Viver: Tratamento e Qualidade de Vida dos
Pacientes Renais Crônicos =The curve and the path: access to health care in Brazil / André François; [tradução para o inglês da Editora]. --
São Paulo: ImageMagica, 2009.
Edição bilíngue: português/inglêsISBN 978-85-61921-01-9
1. Cuidados médicos - Brasil 2. Fotografias 3. Serviços de saúde - Brasil 4. Sistemas de saúde - Brasil I. Título. II. Título:
The curve and the path: access to health care in Brazil.
08-09396 CDD-778.9
Índices para catálogo sistemático:1. Brasil : Saúde : Documentário fotográfico
778.92. Saúde no Brasil : Documentário fotográfico
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ISBN 978-85-61921-01-9COPYRIGHT © ANDRÉ FRANÇOIS 2009Os direitos desta edição pertencem a
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