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RIA FORMOSA ILHAS PODEM DESAPARECER EM 30 ANOS Alterações climáticas põem em risco ilhas barreira como o Farol e a praia de Faro. Metade das casas ilegais continuam por demolir Texto CARLA TOMAS Infografia JAIME FIGUEIREDO

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Page 1: RIA FORMOSA ILHAS o Farol e Faro. PODEM casas … · rochas que protege a ilha a sudoeste tem meio século e o enchimento de areia "era para durar quatro anos e durou menos de um",

RIAFORMOSA

ILHASPODEM

DESAPARECEREM 30 ANOS

Alterações climáticaspõem em risco ilhas barreira

como o Farol e a praia de Faro.Metade das casas ilegaiscontinuam por demolir

Texto CARLA TOMAS Infografia JAIME FIGUEIREDO

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D assaram 10 anos desde

que um mar grande e

enfurecido pela intem-périe fez desabar ondasde seis metros sobre as

77 casas que existiamna ilha da Fuseta, dei-xando um rasto de des-

truição. As poucas queficaram de pé acabaram meses depoisretiradas pelas máquinas. Onde antesse erguiam desordenadamente casasde veraneio em madeira ou tijolo comtelhados de zinco ou de fibrocimentoestende-se agora um areal em recu-peração. A duna vai crescendo com aajuda de plantas e de pequenas cercasde madeira que agarram a areia.

Mas o que aconteceu na Fuseta poderepetir-se noutras ilhas-barreira. Asprojeções associadas às alterações cli-máticas apontam para uma subida donível médio do mar de cerca de ummetro até final do século. A subida das

águas, conjugada com a maré alta e aintensificação de tempestades, não dei-xa dúvidas de que as ilhas aqui existen-

tes há cerca de seis mil anos poderãoficar parcial ou totalmente submersasdentro de 30 a 50 anos. E se nada forfeito para o evitar, a ria Formosa serátransformada num contínuo de mar.

"Com a subida do nível médio do mar,as ondas vão rebentar mais alto e aduna que forma as ilhas-barreira terápoucas possibilidades de resistir. O queaconteceu na Fuseta vai repetir-se, no-meadamente na península do Ancão",avisa Carlos Antunes, especialista emengenharia geográfica da Universidadede Lisboa. As ilhas transformar-se-ãoem bancos de areia, que ficarão sub-mersos na maré cheia.

Os núcleos da Praia de Faro e do Fa-rol são os mais expostos ao risco, con-firma Oscar Ferreira, especialista emdinâmicas costeiras da Universidadedo Algarve. As recargas artificiais deareia entre a Quarteira e Vale do Lobo,realizadas em 2010, "minimizaram o

recuo da linha de costa, mas basta umatempestade conjugada com uma maréalta e elevada energia para que recuecinco ou seis metros". Na Fuseta e nos

ilhotes a demolição das construçõespermitiu "a renaturalização e recupe-ração positiva dos ecossistemas", quenão é possível onde há casas.

Nestes 10 anos só foram abaixo cercade metade das 898 construções identi-ficadas como ilegais em zona de risco

pelo Programa Polis da Ria Formosanos núcleos da Fuseta, Praia de Faro,Hangares, Farol, Deserta e ilhotes. Enão há data para as máquinas volta-rem a atuar, prevendo-se apenas queo processo de requalificação e rena-turalização destas ilhas seja concluídoaté 2030. Quanto às cerca de duasmil casas consideradas legais, que nãoestão na lista para demolição, será anatureza a ditar o seu fim.Política versus ciênciaA maioria das demolições aconteceuentre 2014 e finais de 2015. 0 então mi-nistro do Ambiente, Jorge Moreira daSilva, invocou a imagem da Fuseta paralembrar que não queria "ver repetidonoutros locais o cenário de destruição"e mandou avançar as máquinas.

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Porém, mudaram-se os tempos e avontade política substituiu-se à de-cisão técnica. Em 2016, o novo mi-nistro do Ambiente, João MatosFernandes, abrandou o processoargumentando ser "necessáriauma avaliação de grande por-menor, que conjuga risco, legalidade e

ponderação social". Agora recusa tecerao Expresso mais comentários.

A Agência Portuguesa do Ambienteexplica que "o Governo decidiu queseria definida uma faixa de risco agra-vado, restringindo a área prioritaria-mente a intervencionar" e que "ne-nhuma construção comprovada comoprimeira e única habitação, ou comocasa de pescador, viveirista ou maris-cador, seria objeto de demolição semantes estar garantido o realojamento".

Desde 2016, só foram abaixo 69 ca-sas. Das 413 que ainda estão por demo-lir, 119 são primeiras habitações de pes-cadores e mariscadores, a larga maioriasituada nas pontas poente e nascenteda Praia de Faro, onde os caminhos sefazem por areia ou passadiços estreitose se erguem casas frágeis de tijolo, ma-deira ou placas de zinco e lusalite.

Quem aqui vive não consegue pen-sar noutro destino. Maria da Con-

ceição, de 73 anos, já viu o marentrar-lhe pelas traseiras e sair

pela porta da frente, mas nãotem medo nem quer sair. "Como

vamos pagar uma renda, água e luz emFaro?", interroga. O que vale é que "os

últimos invernos têm sido mansinhos".A Câmara de Faro recebeu €2 mi-

lhões em 2012 para construir novos fo-

gos no Bairro do Montenegro, junto ao

aeroporto, mas a "falência técnica" da

autarquia fez atrasar o processo. O pre-sidente da Câmara, Rogério Bacalhau,acredita que "só lá para 2023" serão

realojadas naquele local metade dasfamílias que ainda vivem nas pontas daPraia de Faro. Para as restantes, terão"de se encontrar outras soluções", masnão sabe quais.

Esta é a única das ilhas-barreira ondese pode chegar de carro. É a mais estrei-ta onde persiste ocupação urbana. Nãotem mais de 150 metros de largura. Nocentro, com ruas de alcatrão, erguem--se meio milhar de casas legais, entrevivendas e prédios de três andares, em

área desafetada do domínio públicomarítimo desde 1959- Estão em faixa de

risco, mas sem ordem de demolição. So-bre esta incoerência, Rogério Bacalhaunão opina. "Temos de nos preocuparcom o risco que correm os que vivemaqui e não têm para onde ir, e não comas segundas habitações, na sua maioriaocupadas só no verão", argumenta.

Licenças renovadasJá na ilha da Armona, onde mais casasexistem e menos gente vive em per-manência, o objetivo da Câmara deOlhão é requalificar o núcleo urbanoconcessionado à autarquia desde 1983e prolongar a licença da concessão,que termina em 2022, "pelo menospor mais 10 anos". Como a maioria das

casas está localizada no meio da ilha oudo lado da ria, o autarca António Pina

rejeita alertas de risco. "Não se justificamorrer por antecipação só porque háuns estudos que dizem que a água vaichegar a algumas casas daqui a 10 anose a outras daqui a 30 ou 50. Daqui a 50anos não serei vivo e não é por isso quevou encomendar já o caixão", diz.

Do outro lado do canal surge a ilha daCulatra, onde residem cerca de mil pes-soas. Na aldeia existe uma igreja, umaescola até ao 6Q ano, um infantário e umcentro de saúde. O aglomerado de casas

começou a ser erguido em 1850, mas só

teve reconhecimento legal há dois anos.Com base num estatuto aprovado peloParlamento em 2018, cada família podepedir uma licença por três décadas,com possibilidade de renovação. Con-

tudo, as casas não podem ser vendidasa quem vem de fora nem arrendadas,mas somente transmitidas a descen-dentes de pescadores. "Assim evita-se aespeculação que existe noutros sítios",confia Sílvia Padinha, da Associação deMoradores da Culatra. Os que ali vivemsó aceitam que as casas vão abaixo "se a

natureza assim mandar". E sustentamque o núcleo urbano está a mil metrosdo mar e que a ilha engordou quatroquilómetros nos últimos 70 anos.

Para José Lezinho, mariscador e re-presentante dos moradores do vizinhonúcleo dos Hangares, não faz sentidodeitar as casas abaixo porque estãolocalizadas na zona com menor riscodo lado da ria. 'Temos é de minimizaros danos, colocar passadiços para as

pessoas não pisarem as dunas e colocarmais areia, não só para proteger quemaqui vive, mas também para que asilhas cumpram a sua função de prote-ção da parte continental", defende. Se

desaparecerem, o próprio aeroporto deFaro pode ficar ameaçado.

Também Jorge Rico, que tem casana ilha do Farol desde 1965, não seconforma com a ideia de quereremdemolir parte das habitações (maiorita-riamente de férias) deste núcleo. "Estasilhas permitem proteger Faro e Olhão,e por isso devem ser defendidas comtecnologia como a usadana Holanda", susten-ta O enrocamento de

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rochas que protege a ilha a sudoestetem meio século e o enchimento deareia "era para durar quatro anos e

durou menos de um", critica. Em redordo farol do cabo de Santa Maria, que dánome a esta parte da ilha, distribuem-se

quatro centenas de casas, metade das

quais na lista para demolição. Parado-xalmente, são as menos vulneráveis aorisco, enquanto as legalizadas estãomais expostas às tempestades.

Do outro lado do canal ergue-se ailha Deserta, onde já não moram casas.Desta ilha e dos ilhotes espalhados pelaria foram retiradas duas centenas de

construções desde 2010. No seu lugarerguem-se agora novas dunas e plantasque ajudam a fixar a areia e permitemo retorno de aves como os colhereiros,as garças ou as chilretas.

INICIATIVADurante 100 dias,o Expresso e a EDPtrazem à terra o debatesobre o nosso futuroe o ambiente.Acompanhe no Expressoe em expresso.pt/vidasustentavel.Porque nada mudase não mudarmos

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Praia da Fuseta com cercas e plantas a fixar as dunas (foto grande).Núcleo da Armona visto do lado da ria. Casa na Praia de Faro

que já foi atravessada pelo mar durante um temporal

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